a segunda patria miguel sanches neto

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Sobre a obra:

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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossasociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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Copyright © 2015 Miguel Sanches Neto

PreparaçãoKathia Ferreira

Revisão técnicaDennison de Oliveira

RevisãoEduardo CarneiroTamara Sender

CapaAngelo Allevato Bottino

Foto do autorLeo Aversa

Geração de EP UBIntrínseca

Revisão de EP UBRodrigo Rosa

E-ISBN978-85-8057-672-6

Edição digital: 2015

Todos os direitos desta edição reservados à

Editora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 — GáveaRio de Janeiro — RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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“Povo de boa-fé, sempre à procura de um Führer;capaz de ser conduzido para o bem e para o mal.”

Um rio imita o Reno, Vianna Moog, 1939

“Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?/Será essa, se alguém a escrever,/

A verdadeira história da humanidade.”“Pecado original”, Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, 1933

“Tínhamos a impressão de viver numa bárbara colônia alemã.”Memórias do cárcere, Graciliano Ramos, 1954

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Neger, 1940

Wolfsschlucht, 1938

A teoria do lobo, 1941

Kanibalen, 1941

Agradecimentos

Biografia de um livro(conteúdo extra)

Sobre o autor

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Este romance é uma variante ficcional da história do Brasil durante a SegundaGuerra Mundial. Embora alicerçado em questões latentes naquele período, elenasceu das neuroses próprias de uma época de radicalismos e amplia temas eepisódios que ainda hoje são tabus no Sul do país. Por isso, fatos, pessoas e lugares,mesmo quando identificáveis, não se referem a situações reais.

Dessa forma, o autor e a editora declaram que não há intenção de ofender nemde julgar ninguém, sendo esta obra o desenvolvimento narrativo de umacircunstância histórica que, felizmente, pelo esforço e sofrimento de todos osenvolvidos, não chegou a acontecer. Tudo não passa, portanto, de um pesadelo. Eeste é um dos papéis da literatura: fazer com que vivamos acordados os pioressonhos da humanidade.

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Neger, 1940—

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Um.Naquele domingo à tarde, uma tropa se organizava para um novo desfile no Centro deBlumenau. Tais demonstrações se intensificavam, eram cada vez maiores e mais acaloradas.Os partidários chegavam uniformizados, vindos de várias procedências, e se reuniam nocomeço da rua XV de Novembro, logo ordenados em formações impecáveis. A rapidez comque faziam isso revelava um poder de ação. Mesmo quem participava pela primeira vez jásabia em que posição ficar no grupo e as músicas e palavras que deveria repetir. Prevaleciamos hinos medievais, cantados como se estivessem em marcha, incentivando a luta contra osinimigos terríveis e odientos. Não há guerra sem essa mística. Moradores da região,mulheres e crianças entre eles, sabiam as canções do exército alemão, aprendidas em O novolivro de cantos de soldados, distribuído pelo Partido Nazista do Brasil. Esses hinos, executadosem escolas e igrejas, vinham substituindo as músicas ancestrais e podiam ser ouvidos nacidade e nas imediações, enquanto uma mãe cuidava de sua criança ou da casa ou quandoum agricultor cultivava a terra. Todos se viam como soldados, até nas tarefas cotidianas.

Vagava pela cidade uma tropa de cerca de mil homens armados, como se seus revólveresfossem parte de uma vestimenta de gala. Estavam ali, no entanto, para fazer a limpeza. Erampara isso os desfiles. Marchando rumo à Prefeitura e depois por várias ruas, meio desertas,a tropa de assalto exibia a bandeira nazista e fazia grande barulho. Era regra umaembriaguez de cerveja entre os adultos, que avivava o entusiasmo dos discursos. Emmastros erguidos no jardim da frente das casas, tremulavam flâmulas com a suástica. Naslojas, alguns comerciantes mandaram fazer bustos de madeira de Hitler, deixando-os naentrada. Havia sempre a foto do presidente Getúlio Vargas nas repartições públicas, mas ado Führer aparecia com maior frequência.

Naquele domingo, a tropa saiu pelo Centro, cumprimentando os raros cidadãos com umHeil Hitler gritado em uníssono que ecoava nas quadras vizinhas. O bebê na casa doengenheiro Adolpho Ventura acordou com essas saudações estrondosas. Ele pegou o filhono berço, interrompendo os estudos em seus livros em alemão. Negro, filho detrabalhadores que haviam chegado à cidade para a construção da estrada de ferro, tinhaaprendido alemão na casa dos patrões de seu pai, frequentado a Neue Deutsche Schule, querecebia dinheiro da Alemanha, e se mudado para o Rio de Janeiro, onde cursara a Faculdadede Engenharia. Voltara para a colônia pela nostalgia da infância, um tempo em que só tinhaamigos loiros falando a língua de Goethe, que ele julgava a única com valor literário.Precisava ouvir nas ruas, usar no dia a dia e na hora de fazer amor o idioma que herdara.Nada lhe agradava mais do que ser um igual nos momentos em que se dirigiam a ele.

— Herr Ventura.

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Era assim que se referia a si próprio quando se imaginava dialogando com alguém. NoRio de Janeiro, era apenas um inadaptado, tentando manter o rigor, a correção na vestimentae a dedicação extrema a tudo que fizesse, o que o colocava em conflito com a cidade relaxadae os seus colegas de estudo e, posteriormente, de trabalho. Herr Ventura se sentira sempreisolado no Rio, e essa solidão só não era maior porque conseguia encontrar um ou outrodescendente de alemão em viagem ou morando na capital federal. Após conversar decoração aberto com um dos que considerava seu irmão de alma, voltava eufórico para apensão na Lapa. A alegria era tanta que ele abstraía a bagunça do local, os sons de músicaspopulares e o odor terrível de urina que empesteava aquela parte da cidade. Os demaisnegros com quem convivia o tratavam desdenhosamente como mulato, embora fosse tãopuro quanto eles. Talvez por seus hábitos estrangeiros. Nunca amou o Rio e permanecia aliporque precisava concluir a faculdade. Nos momentos de maior otimismo, imaginava-semorando na Alemanha, mesmo sabendo que só poderia conseguir, em termos de trabalho,emprego nas áreas de colonização alemã no Sul do Brasil. De preferência em sua cidade.Como precisavam de engenheiro para a conclusão de um imponente teatro, o VereinFrohsinn, e tendo amigos de infância na Prefeitura, acabou voltando ao lugar de ondepartira, não para um destino similar ao de seus pais, que ainda moravam numa casa demadeira na favela Farroupilha, às margens do rio Itajaí-Açu, mas para fazer parte da elitedirigente. Com o seu salário antecipado, alugou uma casa na rua da Ginástica, passando amorar sozinho. Sua mãe o visitava duas vezes por semana, lavava e passava sua roupa; oresto do serviço Ventura fazia, hábito adquirido nos muitos anos morando no Rio. DonaErendina entrava na casa do filho como empregada, as roupas humildes e gastas, e se dirigiaa ele como a alguém superior. Ventura resmungava em alemão, recusando-se ademonstrações de intimidade.

Se seu plano tinha sido morar sozinho, juntar um capital e tentar abrir um negócioqualquer, passados dois anos de sua chegada estava cuidando de uma criança recém-nascida.Fazia o papel de pai e de mãe, não aceitando a ideia de que ela ficasse na casinha distante dosavós.

O menino tinha a pele escura, cabelos enrolados e os olhos claros, numa tonalidadeindefinida entre o azul e o castanho, mudando de cor conforme a luz. Quando o filhoacordou com a saudação da tropa, Ventura tentou niná-lo. Ele não só não queria dormir,como não parava de chorar. A única coisa que o acalmava, nesses momentos, era um passeiono colo do pai. Saíram então para o jardim e para a calçada, indo até a esquina da alamedaRio Branco, a antiga Kaiserstrasse. Ao virar, encontraram os soldados. O engenheiro tinhasido enganado. Achara que a tropa seguia para o outro lado, mas era apenas o eco dosmovimentos dela que estava às suas costas. Evitava esses encontros por saber que amultidão anula as decisões pessoais, criando um monstro impiedoso. Uma pessoa que nãotinha coragem de xingar outra, integrada a uma legião qualquer, se tornava um agressor empotencial. Vinha conseguindo se proteger ao conversar individualmente com algum nazista,

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porém já fora constrangido diante de grupos. Ainda não havia se deparado com uma tropade assalto, embora conhecesse muitos de seus integrantes.

Olhando o desfile, extasiado com o movimento sincrônico dos partidários, o bebê deixoude chorar. Ventura ficou estático na esquina. Se retornasse, seria perseguido ou levaria umtiro. Só se afasta quem está fazendo algo errado. Restava esperar que o pelotão passasse.Contemplou com atenção, uma atenção exagerada, os soldados. E viu que vários deles oolhavam com ódio. Nunca antes sentira que sua figura despertasse tamanha repulsa,embora sempre incomodasse as pessoas por seu porte atlético, pelas roupas de qualidade epela fluência de ideias expressas no melhor alemão. Como um negro pode ter essa postura?Agora o ódio era mais profundo, ia além do despeito pessoal. Era um ódio contra seu filhomestiço.

Ao intuir isso, resolveu fazer uma saudação amistosa. Ergueu o braço direito, deixando ofilho no braço esquerdo, e disse Heil Hitler. E o efeito foi o inverso do que imaginara. Nãoconseguiu desarmar os olhares severos nem obteve o menor sinal de cumprimento. A tropapassou em silêncio, como se ele não existisse.

Ventura fixou os olhos nos soldados, recebendo com altivez aquele desprezo silencioso.Quase no final do desfile, ele ainda imóvel na esquina, um jovem saiu subitamente daformação, aproximando-se de Ventura, e lhe cuspiu na cara, para logo em seguida gritar:

— Suma daqui, negro nojento.Tal como se aproximara, o soldado se distanciou. Ventura não esboçou qualquer reação.

O cuspe encatarrado, com forte cheiro de cerveja, tinha atingido o rosto do bebê, quecontinuava quieto, hipnotizado.

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Dois.Nascido em São Paulo, de pais alemães, oriundos de Nuremberg, Julius Meister estudouprimeiro na escola alemã Mooca-Brás, mantida pela Cervejaria Antarctica e pela empresa detalheres e baixelas Wolf-Metal. A família havia emigrado para o Brasil após a GrandeGuerra, trazendo quase nada na bagagem. Depois de passar por vários empregos, seu paienfim arrumou uma boa posição na cervejaria e logo cresceu dentro da empresa, podendocustear o estudo do filho mais novo. Os outros três, todos homens, para desgosto da mãe,que sonhava com uma menina para companhia, já eram profissionais em meados dos anos1930, quando o pai abriu uma pequena fábrica de produtos de vidro e louça, aproveitando-osno novo projeto. A família desejava que Julius recebesse o melhor ensino, que cursasse umaboa universidade na Alemanha.

Nos momentos de entusiasmo alcoólico, o pai cantava os hinos nazistas e debochava doBrasil, criando no caçula um desejo de conhecer a terra de seus antepassados, querenascera, superada a crise. Ele nunca sentira pertencer a São Paulo, convivendo com outrosalemães desterrados que falavam mal o português, e só quando obrigados, nas conversascom os nacionais. Frequentou ainda a Deutsche Schule por um tempo, antes de, em 1939, auns meses do início da guerra, o pai o mandar à Alemanha para que continuasse os estudos.Não teve tempo de entrar na universidade. Havia ingressado na Hitlerjugend emNuremberg por recomendação paterna, seguindo os primos alemães. Assim que começou aguerra, acabou convocado para o Notdienstverpflichtung, o serviço de emergência. E isso odeixou triste e alegre. Não poderia estudar, porém, contribuiria com a pátria.

No quartel, foi preparado em poucas semanas, revelando-se um exímio atirador. Essetreinamento tinha o lado bom, as competições esportivas, com as disputas de natação, oshinos entoados alegremente, com uma força que o fazia sentir-se herói, e as lições sobreepisódios do folclore germânico. Depois, por alguns minutos, todos os dias, vinham aspregações nazistas, que ele talvez não percebesse serem feitas por homens poucointeligentes, por gente do povo que o partido e a guerra tinham transformado em pequenaslideranças, mas cuja repetição decididamente o desgostava. Quando, no entanto, elesnarravam a biografia de alguns nazistas, mortos pela causa, Julius se comovia, sentindo-seculpado, pois seus pais haviam abandonado a Alemanha enquanto a maioria ficara paradefendê-la.

Integrou-se à Wehrmacht com esse espírito de responsabilidade familiar, seguindo logopara a Polônia. Ao atirar no primeiro inimigo, matando-o, descobriu sua verdadeira vocação.Nenhum remorso, nenhuma comoção. Ele estava ali para exterminar os judeus quedominavam aquele país. Alguma coisa dentro dele floresceu com uma violência própria das

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tempestades. Avançando sobre os cadáveres que sua tropa deixava sangrando pelo chão,ganhou a mania de cuspir em seus rostos. Era um cuspe de superioridade.

Esse outro disparo servia para que ele matasse simbolicamente aquelas carcaças.Morriam porque eram uma escória. Os alemães deviam limpar o mundo desses lixos. Nãoentrou em Varsóvia, que estava sendo bombardeada pelos aviões Stuka, da Luftwaffe.Gostaria de ter conhecido essa região antes da guerra para avaliar o poder de destruição damáquina alemã.

Os soldados estavam ali para guardar a cidade, para que os poloneses não saíssem desuas casas e se juntassem em outros lugares. A cada ataque de bombas, surgiam grandeslevas de fugitivos. Se eram grupos maiores, visíveis do céu, os Stukas largavam bombassobre eles, e pessoas se movendo às pressas logo se transformavam em trouxas de roupascoloridas pelo sangue e pelo negro das explosões, atiradas de qualquer jeito num soloesburacado. Os que sobreviviam acabavam alvejados pelos soldados. Julius estava na linhade frente para interromper as fugas. A sua tropa era a tampa daquela imensa panela quefervia sob os bombardeios. Matar o maior número de pessoas, crianças, mulheres ou velhos,para a guerra terminar logo.

Em uma madrugada, não foram fugitivos que eles tiveram de enfrentar, e sim umacavalaria. Soldados poloneses com seus rifles, revólveres e metralhadoras tentaram rompero cerco. A Wehrmacht contava com blindados e equipamentos modernos; seus inimigos, noentanto, eram meio medievais, vinham de peito aberto, montados em cavalos, enfrentandode forma suicida um exército maior e mais equipado.

O general Erich von Manstein havia ordenado que não deixassem ninguém sair deVarsóvia. Os aviões alemães eram derrubados por atiradores que ficavam commetralhadoras no alto dos prédios, e agora essa tropa tentava romper o cerco. Os tanques secolocaram contra eles. E os soldados também. Julius viu a oportunidade de provar suabravura. Atirava avançando, sem se intimidar. Os inimigos caíam, mas os cavalosensanguentados e sem montaria continuavam em frente. Haveria cavaleiros fantasmas?Julius atirava neles, temendo algo sobrenatural. Derrubar as montarias dos polonesestambém era uma forma de ganhar a batalha. Só não gostava de matar animais.

Não sobrou nenhum soldado polonês nesse ataque. Os cavalos sobreviventes, mesmosem ferimentos, foram sacrificados.

É uma desonra ter que colocar nossos tanques contra animais, ele pensou.Quando Varsóvia foi enfim devastada, Julius e seus companheiros receberam uma

medalha pelo destemor, por terem enfrentado inimigos tão sanguinários em seu própriosolo. Chegara à Alemanha como um menino tímido e poucos meses depois era um soldado.

Para providenciar a condecoração, um oficial pegou seus do cumentos.— Sou brasilianer — Julius disse antes que terminassem de ler os seus papéis.Olhando-o com severidade, o outro perguntou:— Se você tivesse nascido na África, isso faria de você um negro?

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— Não, senhor.— Então o que você é?— Alemão, senhor.— Enquanto não se misturar.— Não vou me misturar.— Isso é mais fácil aqui do que no seu país.E foi essa conversa, a firmeza com que dera as respostas, e também o seu

comportamento destemido na frente de batalha que definiriam o destino de Meister. Logoele acabou mandado de volta. Não para São Paulo e sim para as colônias. Precisavamfortalecer as tropas no exterior.

Antes de partir, ainda em Varsóvia, saiu para uma visita às ruínas. Aquilo que um dia forauma cidade agora era um amontoado de detritos. Em meio ao lixo próximo de onde anteshavia uma loja, viu pedaços de sacos de estopa com o nome do Brasil e grãos velhos de café.Lembrou-se de que não usara, naqueles meses, nenhuma palavra em português. Ele nãoprecisava dessa língua. Não tinha também a menor saudade de São Paulo.

Somente ao chegar ao Sul mandou uma carta aos pais, dizendo que vinha servir a pátriaonde mais precisavam dele, e que tão breve quanto possível faria uma visita. Em Blumenau,havia bastante trabalho para organizar os alemães que queriam pertencer à força armada deHitler.

A guerra aqui não havia começado, ainda estavam na fase de arregimentar soldados etreinar um exército. Desde o primeiro dia, sempre que podia, Julius Meister cultivava ohábito de cuspir não em cadáveres, mas em pessoas abusadas que não entendiam ser aqueleum pedaço da Alemanha. Não encontrava muitos judeus contra quem disparar seu catarro.O perigo aqui estava entre os negros, mulatos e índios. E cuspia com força, como se atirasseneles.

Ficou conhecido entre os amigos como Julius, o Cuspidor. E não perdera a oportunidadede alvejar aquele negro metido com seu filho impuro no colo.

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Três.O engenheiro agora só saía de casa para o trabalho na Prefeitura, procurando sempre oshorários menos movimentados, fechando-se em sua sala nos fundos do prédio. Ele haviapercebido uma mudança de comportamento nos demais funcionários, principalmente nosque estavam abaixo dele na hierarquia, embora não tivesse dado valor a isso por nunca oterem tratado muito bem. A diferença era que haviam se tornado mais duros e insolentes.Se precisava encaminhar um projeto a outro setor da repartição e pedia isso ao contínuo,este demorava a fazer a tarefa, deixando sobre a sua mesa, de maneira a que todos vissem, apapelada urgente. Ventura acabava ele mesmo tomando as providências.

À tarde, os demais colegas graduados recebiam uma fatia de bolo e uma xícara de cafécom leite. Ele notara o desconforto que provocava na senhora, já velha e de lindos olhosazuis, que servia o lanche. Cada vez ela demorava mais para levar-lhe o café, até que seesqueceu completamente de passar em sua sala. Na primeira vez, foi à cozinha para pegar asua parte, criando constrangimento maior, pois os empregados mais simples, que comiamali, ficaram incomodados com sua presença. Um jovem chegou a colocar a xícara com forçana mesa e sair mastigando agressivamente o pedaço de bolo que, como forma de protesto,enfiara inteiro na boca. Restou ao engenheiro trabalhar em silêncio e sozinho, porque seudesenhista, um rapaz a quem ensinava o ofício, preferiu ocupar outra sala, deixando de sedirigir a Ventura depois desse episódio.

Todo mundo falava a mesma língua, alguns eram conhecidos desde a infância, mas cadavez ele usava menos o alemão para se comunicar. O idioma se tornara um recurso para aleitura e tudo que ele desejava, ao identificar esse isolamento, era voltar para casa, abrir umlivro e perder-se em obras que ignoravam a sua cor — uma cor que, antes apenas malvista,acabara uma ofensa. Ler como uma forma de encontrar-se com sua alma era algo que fizeraem todo o tempo de estudante, só que por outros motivos. No Rio, ele lia em alemão paravoltar ao local em que se criara. Agora, para fugir dele.

Assim que chegava em casa, encontrava a sopa preparada pela empregada branca quecontratara depois do nascimento da criança. Jantava rapidamente e recebia o filho limpo etrocado para que ela pudesse ir embora. Ventura o deixava em um berço no seu escritório,balançando-o com o pé enquanto lia distraidamente na poltrona, envolto em paisagenseuropeias. Tão logo a criança dormia, estava livre para se dedicar a outra atividade. Pensavaem como se tornaria um menino criado sem a presença da mãe e com um pai sempre lendo.Contudo, não havia alternativa.

Desde a perseguição na Prefeitura, percebeu que Gertrudes, a empregada alta, traçosmasculinos, mãos imensas, também assumira outro comportamento. Ele não queria aceitar

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isso, precisava de uma ajudante, e era fundamental que ela falasse corretamente alemão,para que o filho não tivesse dificuldades com a língua. Procurara em toda a cidade, e aoachá-la na casa de um médico prometera salário um pouco maior para que cuidasse dastarefas domésticas e do filho. A ganância tinha tirado Gertrudes do antigo trabalho e, nosprimeiros meses, fizera dela uma funcionária cuidadosa. Agora, esquecia a criança suja nofinal da tarde, num descuido que antes nunca ocorrera, e saía logo que ele entrava em casa,como se fugisse de qualquer contato com o patrão.

Mexendo nas fraldas do filho, Ventura notou que havia sujeira velha e que a criançaestava assada. Tirou sua camisa branca, revelando o tronco musculoso sob a camiseta demalha, e levou o filho ao banheiro. Soltou as fraldas, o alfinete sujo de fezes, deixando tudono chão, e aproximou o filho da bacia de alumínio que ficava ali para aquele fim. O pisoestava seco, o que confirmava que Gertrudes não lavava mais a criança no final da tarde. Aocolocar o nenê na água, ele se debateu, seguro por uma mão firme. Com a outra, Venturaensaboou o corpinho frágil, avermelhado.

— Você não cabe neste mundo — falou para o filho de pouco menos de um ano. — E sóexisto nele — concluiu, entristecido.

Depois de espalhar maisena nas assaduras do menino, vestiu-o com uma roupa limpa eresolveu deitar-se com ele na cama de casal, agora bem maior do que antes.

No momento de alugar a casa, já com mobília, gostara da ideia de ter uma cama grande.Sempre dormira em camas estreitas, apesar de seu corpanzil. Além do conforto de se virar àvontade, poderia receber dignamente a mulher com quem começara um namoro na suavolta. Foram muitas horas passadas ali em combates de pernas, braços, bocas e sexos. Eleainda sentia o cheiro dela se abria o armário no qual descansava um de seus vestidos. Noentanto, tudo que sobrara daquele tempo era o filho.

Deitou-se com ele, colocou seu braço sobre o corpinho e cantou a canção de ninar queouvira as mães entoarem para seus filhos arianos quando ele era criança:

Guten Abend, gut’ Nacht!Mit Rosen bedacht,mit Näglein besteckt,schlupf unter die Deck’!Morgen früh, wenn Gott will,wirst du wieder geweckt,morgen früh, so Gott will,wirst du wieder geweckt.

Não havia cobertor tal como na canção, a noite era quente, mas ele desejava mais do quenunca que, no dia seguinte, o filho acordasse para algo novo. Sem tirar as calças, dormiucom o menino. Amanheceu e o filho estava sentado na cama. Como a cortina ficara aberta, oquarto fora tomado pela luz. Ele não parecia o mulato claro que era, e sim um anjo loiro,

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tocado pelos raios de sol de uma manhã atemporal.Essa visão mudou o seu humor, fazendo com que as preocupações atuais, com o

crescimento das perseguições nazistas na cidade, desaparecessem. Tomou um banho e foipara a cozinha, onde Gertrudes já devia estar. Falaria duro — a casa vivia malcuidada e ofilho padecia com tal relaxo. Gostava de tudo asseado e não aceitaria desleixo.

Contudo, não havia ninguém na cozinha.Com o menino no colo saiu para o quintal. O leiteiro passava ainda de madrugada com

sua carroça, deixando sempre o litro de leite no jardim. Foi até lá, pegou a vasilha e, quandoia saindo, ouviu alguém bater palmas no portão. Voltou-se para a rua.

— Sou filho da dona Gertrudes — o rapaz disse.Ventura o conhecia. Era um dos que dependiam do trabalho da mãe.— Ela está doente?Isso explicaria as mudanças de comportamento nos últimos dias.— Mandou dizer que não pode mais trabalhar para o senhor.Mal disse isso e já saiu, sem mencionar o pagamento. Ventura devia duas semanas e

mesmo irritado gostaria de quitar tudo. Talvez durante a conversa, na hora do pagamento,pudesse tentar convencê-la a permanecer no emprego.

Ficaram parados no jardim uns minutos, ele e o filho, sem saber o que fazer. O litro deleite na mão era uma realidade material, embora tudo ganhasse uma consistência de sonho.Movendo-se nessa irrealidade, alcançou a cozinha, preparou a mamadeira e depois bebeuum copo de leite. Não teria tempo de tomar banho, levaria o filho para os avós cuidarem,medida que sempre evitara.

Trocou-se às pressas e foi até a praça pegar um automóvel. Assim que viu dois esperandofregueses, ficou mais tranquilo. Daria para ir à Farroupilha, deixar a criança e chegar atempo no trabalho. No primeiro, o chofer disse que não poderia fazer a corrida. O outrotambém recusou. Seria agora sempre assim?, ele pensou.

Em casa, arrumou o carrinho de bebê e saiu com ele pela cidade, a caminho da Prefeitura.Trabalharia ali na presença do filho e por lá mesmo tentaria arrumar outra empregada. Umhomem não conseguia cuidar sozinho de uma criança. Se não resolvesse esse problema,teria que entregar o menino a alguém, a alguma família que pudesse amá-lo.

Na entrada do prédio, as pessoas olharam com desprezo para Ventura. Esse era umsentimento que aumentava a cada dia. Não queriam mais a sua presença no serviço. Nem nacidade. Ele cruzara uma fronteira.

Na sua sala, outra pessoa ocupava a mesa que fora dele até o dia anterior. Era um jovemloiro, que nem se dignou olhar para ele, como se fosse o dono daquele local. Empurrando ocarrinho pelo prédio, Ventura procurou seu chefe, um homem que costumava ser atencioso,sempre elogiando o seu trabalho no Theater Verein Frohsinn, cujo projeto arquitetônicoimita um quepe da SS. Chegara a dizer que era no mínimo uma ironia que um técnico decor estivesse ajudando a construir a cidade alemã. Ventura ficara, naquela conversa,

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constrangido, pois não se via como um homem de cor. Ninguém percebia que ele era maisgermânico do que os colonos que falavam uma língua materna estropiada. Ele dominava oalemão literário, entretanto isso não era suficiente para branquear a sua pele.Envergonhara-se com o comentário do chefe, embora reconhecesse bondade nele. Essehomem estava agora lhe mostrando um ofício do Partido Nazista do Brasil proibindo aconvivência entre alemães e raças inferiores, como judeus, negros e índios. Seguiam oCódigo Penal de sua pátria, que pretendia proteger a Raça Alemã contra a desintegraçãocausada pela miscigenação de sangue judeu e mulato. O texto era explícito: “Seráconsiderado crime um ariano casar-se com alguém de origem judaica ou de cor.” Ele não secasara, mas tinha tido um filho com uma alemã. E o fruto desse crime estava ali, diante dosolhos de todos, e isso era uma afronta maior. A aplicação das leis alemãs nas áreas em queessa etnia fosse maioria estava garantida pelo acordo entre o Terceiro Reich e o EstadoNovo. Ventura achara que esse acordo seria uma grande oportunidade para que alçasseoutros postos por conta de seu domínio da língua, e agora surgia essa situação. Não apenaso seu chefe; todos deviam ter sido comunicados sobre a proibição de convivência comnegros. E obedeciam. Obedecer e mandar era da natureza desse povo.

— Alguém levará suas coisas em casa e também a indenização. É uma quantia suficientepara começar a vida em outro lugar.

Agradeceu a seu chefe com um sorriso de autopiedade e saiu para a rua, onde a maioriaalemã ignorava aquele homem jovem, alto, bem-vestido, andando igual a todos, com apostura rígida, sentindo-se alemão em tudo. Sonhava apenas nessa língua.

Quando, ainda no Rio, saía com prostitutas da Lapa, em casas que ele frequentava apenasnos momentos de maior desespero, acabava se frustrando. A maioria falava português edava os comandos sexuais nesse idioma. Com essas ele não conseguia chegar ao final,porque o sexo para ele tinha que ser no mínimo em uma língua estrangeira. Perguntavasempre pelas francesas e polonesas, e se havia alguém disponível de uma dessas etnias elese realizava, pedindo que gritassem muitos palavrões estrangeiros. E nas camas quentes eúmidas do Rio ele se imaginava na Alemanha, uma Alemanha que nunca conhecera, e daqual era um habitante a distância.

Agora lhe tiravam qualquer intimidade com ela.Saiu com o carrinho pela rua, conversando com o filho em alemão. Sem emprego, teria

tempo para a criança.

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Quatro.O dinheiro entregue por um empregado da Prefeitura, que aparecera acompanhado por umsoldado nazista, era bem menos do que ele calculara merecer. O soldado estava ali paragarantir que ele assinaria os recibos e outros documentos, como o pedido de exoneração docargo de engenheiro. Ventura não disse que a conta estava errada, que os trabalhos decontenção das águas nas margens do rio, projeto no qual atuava no momento, encontravam-se quase concluídos e que ele, o responsável pela melhoria, fazia jus ao bônus estipuladopelo intendente. Antigos acordos haviam sido suspensos para ele, e o que lhe restava eraconcordar com o proposto.

Recebera-os no seu escritório, e o soldado ficara mexendo na estante de livros. Tirava umvolume, folheava de maneira rápida e o devolvia ao lugar. Depois pegava outro. Ventura liamecanicamente os documentos que lhe tiravam o emprego, tendo o funcionário sentado emfrente, na cadeira que homens ilustres da cidade já haviam ocupado, quando estavamtratando das obras do teatro ou do rio. Ele não conseguia se concentrar nos documentosagora, pois quem se abancara ali, longe de ser amigo, era um oficial que viera executar umaordem. Pior do que ele era o soldado insolente mexendo na biblioteca. Talvez nunca tivesselido um livro, não soubesse nada de literatura e suas mãos tivessem deixado instrumentosrudes na roça para aprender a usar o revólver. Mãos acostumadas às armas dificilmenteamam virar páginas. Em um momento, o soldado derrubou um volume de poemas deRainer Maria Rilke, uma de suas devoções. Ventura conhecia o lugar de cada um dos livros,e mesmo a certa distância sabia qual deles havia sido derrubado. Evitou demonstrarirritação.

— Como o senhor vê, está tudo em ordem, segundo o princípio de justiça que o senhorsempre reconheceu em nós — disse o funcionário.

Ele sabia o nome daquele homem, estivera várias vezes com ele, mas fazia questão de nãose lembrar e de não pronunciá-lo nem interiormente, em seus monólogos.

Ainda não acabara de ler, todavia seria uma afronta continuar, pois indicaria desconfiança.Pegou a caneta que ficava sobre a escrivaninha e assinou nos lugares onde aparecia o seunome. Eram folhas muito bem datilografadas, indicando um trabalho esmerado. Entregou osdocumentos, recebeu o dinheiro e se levantou junto com o funcionário.

O soldado continuava atento aos livros. Embora esperassem que se virasse, ele não fezisso e, ainda olhando para as prateleiras, falou:

— O senhor não se importará de doar estes livros à biblioteca da cidade, não é? Nãodevem ter utilidade para o senhor, são livros em alemão.

Ventura ficou em silêncio. Quando você é oficialmente roubado, não há como

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argumentar. O roubo em tal circunstância é uma atitude que suspende todas as palavras,tornando vã qualquer forma de protesto.

— Não — ele disse, acompanhando o rosto do soldado, apenas o rosto, que se moveu emsua direção, enquanto o corpo continuava lhe dando as costas. — Não me importarei.

E isso desarmou os ânimos.— Poderia redigir agora uma doação.Não era uma pergunta, era uma ordem. Ventura voltou para a escrivaninha, pegou uma

folha e a caneta e esperou que o soldado ditasse o teor do que deveria escrever.— Termo de doação de uma biblioteca alemã — ele disse.O artigo indefinido no lugar do pronome possessivo indicava que aqueles livros nunca

tiveram um dono, pertenciam ao povo alemão. Assim, o adjetivo era maior do que osubstantivo. Ventura escreveu o cabeçalho com letras maiúsculas. E seguiu cada uma daspalavras que lhe foram ditadas, apenas corrigindo os eventuais erros do soldado. Esperavaque ele não se ofendesse com a correção gramatical. Depois assinou imediatamente a folha.

— Ainda hoje vem um carro buscar os livros — o soldado decretou. — É melhor quetodos estejam aí. Tenho boa memória.

— Vão estar.Quando as duas visitas se retiraram, Ventura sentiu que ficara no ar algo pesado que ele

não suportava. Não era um cheiro, apenas uma presença opressora. Foi, cômodo porcômodo, abrindo as janelas da casa, deixando que o vento limpasse tudo.

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Cinco.Sentado na poltrona da biblioteca que logo seria esvaziada, privando-o de seus últimosamigos alemães, lia trechos de Rilke como quem se despedia de um país. Era o volume que osoldado deixara cair. Nunca possuíra nenhum desses exemplares e não precisava deles. Umleitor é alguém que carrega clandestinamente as palavras que leu. Os livros são apenasréplicas materiais, réplicas menores, bem menores do que a presença interior das palavras,uma presença que às vezes não se anuncia. Só quem se dedicou apaixonadamente a umlivro sabe que ele lhe pertencerá para sempre, mesmo que não possa recordá-lo.

Quando viu as primeiras manifestações de ódio aos negros achou que era apenas algoisolado. Aquela pessoa não os suportava porque eram de fato mais indolentes do que oseuropeus. Entendia, portanto, a reação. Os alemães estavam construindo uma civilização emuma região insalubre e não podiam ser flexíveis. Tentava ignorar essa raiva geral aos de suacor, fazendo de tudo para mostrar-se indiferente a tais manifestações. A primeira vez que sesentiu publicamente atingido foi na igreja luterana. Ele seguira essa religião desde os seusanos escolares e fazia questão de continuar frequentando os cultos. Mas deixara de ir lá aoouvir um dos mais célebres pastores alemães no Brasil, Friedrich Kumer, coordenador daMissão Popular Evangélica Luterana. Seu discurso tinha pouco de religioso e muito denazista. Ele estava de passagem por Blumenau, em sua campanha de divulgação dos valoresdo nacional-socialismo. Ingenuamente, Ventura fora ouvir o pastor, um homem que jáescrevera diversos livros e publicava em jornais, sempre para promover a unidade alemã.

Ele começou falando que o nacional-socialismo surgira como uma forma de fortalecer oDeutschtum, a nação; nação que era uma família transoceânica que tinha no Führer a figurado pai, do irmão mais velho de todos os alemães, porque o Führer ainda trazia a juventudeem sua feição, em seus atos, e não podia ser visto como ancião. Até esse ponto do discursode Kumer, não havia grande novidade para Ventura e nada que o envergonhasse. Depois denegar o espírito mercenário do judeu, ele passou a tratar dos brasileiros, que eram, assimcomo os judeus, uma antirraça, porque entregues a todas as misturas.

— Vejam a natureza. Cada animal só se une com outro de sua espécie. Se queremos belosfilhotes de um pastor-alemão, unimos os dois exemplares mais puros. É esse o instinto queprevalece na natureza e que fez surgirem as grandes espécies. Assim, é preciso levantaruma barreira contra cada raça e buscar contribuir com esse processo natural derefinamento, evitando a Rassenschande, o crime de diluir o sangue ariano entre os nãoarianos.

E continuava:— Olhem para todos os lugares desenvolvidos aqui no Sul e sempre verão o domínio de

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quem não se deixou contaminar. Se continuarmos isolados em nossa nação íntima, unidospelo sangue, a pátria germânica será vitoriosa em qualquer lugar, em qualquer clima, nomeio de quaisquer elementos. Fujamos, portanto, do pecado da mistura.

Ventura sentiu que essas palavras eram dirigidas a ele, o único negro ali, que fazia de suapresença uma provocação, embora tivesse sido convidado por amigos, aceitando participardo culto também por cálculo — precisava se fazer pertencer ao grupo no comando da cidade.Tinha uma namorada grávida de um filho seu, e que fizera uma viagem ao Rio — seusamigos do tempo da faculdade arranjaram tudo lá — para poder ter a criança semescândalos. Ninguém sabia disso, que ele misturara o seu sangue com o dos alemães, e essediscurso do pastor o desmascarava. Estava ali como uma força do mal. Era nocivo paraaquelas pessoas com quem convivia. Traíra a confiança delas, levando para a cama uma desuas filhas de pele clara. É que nunca me senti diferente, ele se justificou interiormente.Porém, não importa o que uma pessoa pensa de si, só o que ela significa para os outros.

— O demônio — continuava Kumer em seu sermão —, o demônio toma muitas formas,assume muitas caras, mas o demônio se faz escuridão entre nós, não deixemos quecontamine a nossa Alemanha.

Antes de sair à rua, Ventura sempre passava um pouco de pó de arroz no rosto, paraesmaecê-lo. Ele se queria o mais branco possível, para destoar menos, e chegara mesmo a seimaginar ariano. Sua alma eram os livros, a responsabilidade, o espírito de organização, arealização pelo trabalho. Figurava, contudo, como a encarnação do mal, colocando em risco acomunidade.

Não prestou mais atenção no que dizia o pastor, perdido em seus próprios equívocos.Tornara-se o demônio. Só pensava nisso. Não podia entrar numa igreja, assim como nãopodia entrar nas mulheres alemãs, as únicas que lhe interessavam. Tinha que ficar do ladode fora. Do lado de fora das mulheres. Ouvia o pastor e agora não entendia nada do que elefalava. Outras palavras chegavam até seus ouvidos. O pastor se dirigia apenas a ele. Vocêsujou um sangue, você tornou negra uma descendência ariana, merece ser destruído. Nãopode disfarçar mais, sabemos o que aquela depravada carrega em seu ventre podre e vamosatrás dessa criança para matá-la, e depois de matá-la vamos queimar seu corpo imundo empraça pública para que todos saibam que sangue não se mistura, sangue-não-se-mistura, -sanguenãosemistura. E o pastor ria do seu nervosismo. Todos riam do pânico desse negrometido que acha que nos engana. E os últimos minutos desse sermão foram uma torturapara o engenheiro. Quando acabou, começaram as saudações, todos indo até a frente paracumprimentar Kumer, um grande orador, alguém que desmascarava as imposturas. AdolphoVentura pegou a direção inversa e saiu da igreja. Caminhava sentindo seus pés como quepisando em brasas.

Desde aquela manhã ensolarada de domingo, nunca mais se sentiu confortável na cidade.E esse desconforto só aumentou com a chegada de seu filho, alimentado sem o leite da mãe.Agora, olhando os livros que de fato nunca lhe pertenceram, ele se perguntava por que não

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fora embora antes. Tinha todos os motivos para deixar a cidade. E a resposta era sempre:porque mesmo destoando eu pertenço a esta paisagem. Não queria sair dali; o seu projeto,nos anos de estudo, era habitar a sua verdadeira pátria. E até a situação em que estava agoraera melhor do que qualquer outra longe dali.

Guardou o volume de poemas de Rilke e foi ver o filho, que acordava de seu sono depoisdo almoço. Ele havia preparado um mingau. A criança comera pouco, estranhando talvez apresença do pai.

Arrumou o filho no carrinho novamente, ajeitando ali dentro tudo que lhe pertencia,abaixou o tapa-sol, colocou o chapéu e começou a andar em direção à casa de sua infância.Ficava a uns poucos quilômetros da sua, nas margens do rio Itajaí-Açu, em um lugardestinado a negros e trabalhadores brasileiros, uma favela com uns cem barracos. Seria umatriste viagem de retorno. Embora já estivesse de volta havia bastante tempo, ainda nãoregressara de fato à sua Blumenau. Conquanto curta, seria longa a viagem. Estava sendodevolvido ao ponto de partida.

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Seis.Saía cedo de casa, descendo o morro em que moravam, de onde se podia ver uma longaextensão do rio, em seu eterno movimento de fuga. Era ali que nos dias quentes de verãotomava banho, indiferente à cor de seu corpo. Adolpho ia para a escola descalço para pouparo único par de sapatos, um embornal de pano a tiracolo, andando a passos largos parachegar logo, embora não estivesse atrasado. No colégio, tudo ganhava outro brilho. Aochegar perto, parava na casa de um amigo. Tirava da sacola seus sapatos bem-cuidados,sempre engraxados, e, com eles nas mãos, se aproximava dos fundos da casa. Em um tanquelavava os pés sujos de poeira ou de lama, secando-os com uma toalha tingida de marrompela mãe. Fazia isso com bastante minúcia, depois vestia as meias, cheias de áreas maisduras pelas linhas usadas também pela mãe para cerzir os rasgos, e mesmo sabendo queesses nódulos machucariam seus pés, sentia-se feliz pelo conforto que tais peçasproporcionavam. Calçava então os sapatos, batendo o pé com força no piso, em seguida davauns passos em círculo, experimentando-se na condição de civilizado. O ritual finalizava aoabaixar as barras das calças, dobradas até perto do joelho para a caminhada pelos trilhos epelas ruas de terra. Estava pronto para andar pelo Centro, onde o calçamento era mais umaforma de afastá-lo da terra primitiva.

Roupas, sapatos e materiais, tudo herança de amigos alemães com quem estudava.Herdar era uma forma bonita de definir a transação. Adolpho Ventura fazia as lições dosamigos, principalmente as tarefas de desenho e de escrita, levando o caderno deles no finalda aula e trazendo no dia seguinte. Com habilidades artísticas, imitava a letra de todos, faziaos traços de desenho diferentes de um para outro. Cedo soube que dependia totalmente desua capacidade intelectual para sobreviver. Em troca desses serviços, que os beneficiadoschamavam de ajuda — “Adolpho, estou precisando de sua ajuda” —, ele recebia sapatos deum, as roupas que outro já não usava, um caderno com partes em branco, um suspensórioou uma cinta e até meias furadas. Quando não se tem nada e a carência é grande, o pouco éexcesso.

Assim que levava a roupa para a mãe, ela lavava tudo com cuidado, pregando botõesfrouxos, reforçando costuras, acertando a altura das barras. Com os paletós, havia umaatenção maior. Como o tecido havia desbotado com o sol, ela descosturava tudo,delicadamente, para não rasgar o pano, e recosturava no avesso, dando uma nova vida aoterno. Mas as casas dos botões ficavam invertidas, fazendo com que ele abotoasse aocontrário, da direita para a esquerda.

Ao vê-lo com esses paletós, de tecido bem melhor do que as suas demais roupas, todoszombavam dele:

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— Lá vem o negrinho vestido pelo avesso.Ele ignorava a zombaria, rindo dela, feliz por poder usar essas sobras.Da casa em que lavava os pés, colocando sapatos que eram seus pertences mais caros, ele

seguia para a escola, pisando com segurança o calçamento de pedra.Só entrara na Neue Deutsche Schule por interferência de seu padrinho, o doutor Júlio

Schleder, para quem o pai trabalhava cuidando do jardim. Doutor Júlio perdera o filho únicona Grande Guerra, e isso o tornou um homem taciturno, indiferente ao cotidiano, mas comuma propensão a ajudar as pessoas. Ao saber que o seu empregado tinha um filho, que essefilho ainda não era registrado, ofereceu-se para apadrinhá-lo, e como reconhecimento osseus pais resolveram homenagear o rapaz morto. Tinham pensado no nome completo,Adolpho Schleder, porém o pai enlutado preferiu uma homenagem parcial e o afilhado ficousó com o primeiro nome. Até os seis anos de idade, ele se chamara Trajano, a partir daí essenome ficou restrito ao uso familiar.

O doutor Júlio conseguiu uma vaga para Adolpho na escola mantida pelos alemães e nosprimeiros anos o ajudou com o que precisava para os estudos. Sua vida nessa época foi boa.No final da aula, passava na casa de seu protetor para se fartar de comida, servida nacozinha, em um prato de ágata reservado a ele. Se o doutor Júlio estivesse disposto, apareciapara conversar com o menino, perguntando coisas dos estudos. Foi ele quem lhe deu osprimeiros livros de leitura, já em alemão, recomendando que nunca se afastasse dos grandesautores. A esposa, acometida por crises de nervos, permanecia na parte íntima da casa, emgeral nos quartos, com janelas e cortinas fechadas, vivendo à sombra do filho perdido. Sótinha tido aquela criança, após três abortos, e no dia em que o jovem foi chamado paradefender a Alemanha a mãe intuiu que ficaria sozinha. Ele morreu nos primeiros meses deluta; nunca souberam o paradeiro do corpo. Isso era mais uma tristeza para ela, não ter umtúmulo em que pudesse depositar a sua dor.

Finda a guerra, não só por causa da inflação no país, mas sobretudo pelo imenso vazioque se fez em suas vidas, resolveram seguir para o Brasil, onde tinham parentes. Osesforços de adaptação à colônia talvez ajudassem a esquecer aquela tragédia. Assimpensavam. Porém, tal não aconteceu. Um filho perdido é uma terra eternamente devastada.Nada nasce ali. Eles viviam ainda na cidade destruída pela guerra, embora estivessem longedela, no tempo e no espaço.

Quando Adolpho Ventura estava com doze anos, perdeu o protetor. Ele foi encontradomorto com a mulher, ambos deitados na cama, com suas melhores roupas. Levantaram-sebem cedo numa manhã de segunda-feira, tomaram banho, vestiram-se e se envenenaramcom ácido cianídrico. Estavam de mãos dadas e olhavam para a parede em que pendia umretrato a óleo do filho no uniforme militar. Não deixaram nenhum bilhete, e não precisava.A empregada, ao arrumar os quartos, encontrou os dois e disse que morreram felizes, aposição dos corpos indicava união. Talvez sonhassem com os filhos que teriam nesse novoenlace.

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Adolpho continuou os estudos, tendo que viver do pequeno rendimento do pai, queperdera o emprego e passara a ser explorado por outras pessoas menos generosas do que odoutor Júlio. Pensaram em tirá-lo da escola para que começasse a trabalhar. Isso não seriatrair os planos que os Schleder tinham para ele? Consentiram que continuasse na NeueDeutsche Schule, arranjando-se por conta. Adolpho então se especializou em vender tarefasescolares. Foi assim que se sustentou no Rio, para onde foi como companhia de um amigorico que queria cursar a mesma faculdade. Viveu os primeiros meses como secretáriopessoal do amigo, que logo desistiria do curso, entregue à boemia carioca. A essa altura,Adolpho já estava enturmado e continuou fazendo as atividades dos jovens com maisrecursos. Trabalhou ainda como desenhista profissional em um escritório de arquitetura,especialmente nos fins de semana, quando tinha mais tempo, recebendo por empreitada. Foinessa época que passou a ter as próprias coisas.

Agora, nesse caminho para a casa dos pais, ele se lembrava das inúmeras vezes que opercorrera ansioso para se afastar o máximo dali. Estava bem-vestido, um terno bem-cortado, tinha um chapéu-panamá para enfrentar o sol, um sol que se recusara a sair,frustrando o seu arranjo.

Logo estaria tudo nublado.Ia à casa dos pais com pouca frequência desde que se instalara de novo em Blumenau. E

invariavelmente de carro de praça, despertando a curiosidade dos vizinhos. Preferia seencontrar com os pais na própria casa, na cidade, onde eles nunca pernoitavam. Adolphocontinuava usando roupas que não lhe pertenciam. Continuava sendo o afilhado do doutorJúlio Schleder, vivendo naquele mundo que ele descortinara na infância.

Caminhar pelas ruas calçadas com o carrinho não havia apresentado dificuldades. Assimque deixou o calçamento, a viagem ficou mais lenta. Além do peso e de ele estar já cansado,havia os buracos da rua, a terra solta, pedras. As rodas ficavam presas de tempos emtempos, ele tinha que fazer mais força para a frente ou para o alto. Enfrentava ainda outrosproblemas. Desde que saíra de sua casa na rua da Ginástica, vinha sendo hostilizado. Algunsconhecidos não olharam para ele, temendo talvez a denúncia ao Partido Nazista pormanterem relações amistosas com um negro. A recomendação era bem clara — estavamproibidas todas as formas de contato com negros, índios e judeus. Curiosamente, nessaordem. Pessoas que ele não conhecia, das quais portanto não esperava cumprimento,olhavam-no com desdém ou com raiva. As novas recomendações externavam o que todossentiam? Faltava só um documento dizendo que deviam desprezar as outras raças?

Ainda no Centro, ouviu alguém atrás dele:— Lá vai o negro com sua trouxa de roupa suja.Tudo estava limpo. A trouxa de roupa suja era a criança. Talvez devesse dizer que se

tratava do filho de uma alemã. Poderia ao menos se virar para guardar o rosto do autor daofensa. Desanimado, apenas diminuiu um pouco o ritmo da caminhada para que nãopensassem que se intimidara. Andando assim continuou sua viagem, tentando fugir de uma

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chuva que se armava e logo caía sobre eles. O filho, quieto até agora, pôs-se a chorar. Tirouo paletó e o cobriu melhor, sem interromper com isso o berreiro. E Adolpho não conseguiaavançar, as rodas atolavam na terra amolecida pela água abundante. Pensou em largar ocarrinho e carregar o filho no colo, só que precisava daqueles pertences.

A sua camisa ficou transparente com a umidade, revelando seus bíceps dilatados, debaixoda camiseta de malha. As calças e os sapatos se enlamearam, como se fossem de ummendigo vagando pela rua. Na chuva, escorregando no chão liso, subiu até o morro ondeficava a construção de madeira, coberta de zinco, de seus pais. Era a mesma casa de suainfância, ainda invisível sob a água.

Lembrava-se de cada tábua dela. Conhecia as casas vizinhas. Sabia os degraus de terraque tinha que vencer para chegar ao patamar da porta da frente. Quando começou aempurrar o carrinho para cima, o filho ainda chorando, um choro mais conformado,Adolpho olhou para o barraco de um dos vizinhos. Um antigo colega continuava ali, com amulher e os filhos, depois da morte dos pais.

— Um negro sempre volta pra senzala — o ex-colega falou, com desdém.Ele ignorou a provocação. Em encontros no Centro, fazia questão de cumprimentá-lo, de

ter uma atitude de respeito ao passado comum, e o outro se sentia distinguido por aquelaamizade. Agora, revelava a inveja por quem conseguira sair daquele universo.

Ainda sem ver a casa, pressentiu que a mãe o aguardava. Quando criança, em dias dechuva, ela ficava esperando por ele na porta. Fazia algum serviço e corria para espiar ocaminho que terminava ali. Enquanto Adolpho não estivesse aquecido ao lado do fogão, nãose acalmava.

Assim que chegaram, ela foi na direção deles e pegou o neto, que parou de choramingar,protegido pelas mãos e pelo corpo em arco de dona Erendina. Como uma mulher comsessenta anos tinha aquela habilidade maternal? Adolpho entrou com o carrinho, deixandosuas pegadas e o sinal das rodas no assoalho de tábuas.

— Que bom que vocês chegaram.Era como se estivessem apenas retornando da escola, depois de uma manhã de aula

interrompida por um temporal.

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Sete.De calção, camisa branca e descalço — era assim que ficava em casa ao chegar da escola. Aroupa usada para ir à cidade era recolhida aos pregos na parede do único quarto da casa,com a cama de casal dos pais encostada no lado da janela e a dele perto da porta. Duascamas e uma cadeira, nenhum outro móvel, apenas esses pregos com as roupas da família.A mãe lavava as peças de sair somente uma vez por semana. Para não sujar eprincipalmente não gastar o tecido, elas ficavam na parede durante o tempo em que eleestava em casa. Nos dias frios, a mãe lhe dava uma calça velha de lã e um casaco grande, quedevia ter sido do doutor Júlio. Adolpho não tinha viva a lembrança dessas vestes, e sim aimagem de si próprio andando descalço pelos morros, calção e camisa claros, que logoestavam sujos, e a mãe os lavaria, fervendo em uma lata com bastante sabão, num fogoimprovisado no quintal.

Mal entrara na cozinha, dona Erendina já ordenara, como no passado:— Vá para o quarto se trocar, Trajano.Só era chamado pelo nome antigo nas conversas íntimas com os pais. Se havia mais

gente, prevalecia o tratamento oficial. Se os pais falavam dele a outras pessoas, usavam onome adotado.

— Nosso filho Adolpho está trabalhando na Prefeitura como engenheiro.Quem veio sob a chuva para a casa dos pais, expulso da cidade, foi Adolpho. Ao cruzar

aquela porta, retornou ao seu nome.Menino obediente, Trajano entrou no quarto onde ainda estava a sua cama. No lugar da

cadeira, um pequeno armário de madeira. Nos pregos, imagens de santos, uma foto dele noRio de Janeiro. Tirou a camisa, as calças e a camiseta. Os sapatos e as meias haviam ficado nacozinha. Apenas de calção, abriu o armário em busca de uma roupa do pai, encontrando ovelho casaco usado quando menino e que ainda servia nele. Realmente, no passado ficavagrande. Foi preciso que se passassem vinte anos para que seu corpo e a velha peça seajustassem. A lã do casaco estava desbotada, contudo não faltava nenhum botão. A roupa dofilho ausente ficara ali, pronta para uma emergência.

Sentindo contra a pele a aspereza do tecido, e também o seu aconchego, envolvido porum cheiro que remontava a outras sensações, na fragilidade daquela casa de madeira notopo de um morro, às margens de seu eterno rio Itajaí, a chuva açoitando paredes e telhadosde zinco, num barulho próprio de um barco enfrentando a tempestade, ele permaneceumais tempo do que precisava no quarto dos pais, que um dia também fora seu.

Quando voltou à cozinha, depois de ter cruzado a pequena sala, trazendo na mão asroupas úmidas, a mãe já dava um caldo ao neto, o pai limpava o chão que ele sujara, e havia

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uma paz profunda entre seres que se entendiam sem palavras. Trajano colocou as peçasúmidas junto ao seu paletó, que fora estendido numa cadeira ao lado do fogão a lenha, e sesentou à mesa, onde avó e neto se encontravam.

— Eles me despediram — falou em português com a mãe.Seus pais não dominavam bem o alemão. Tentara outras vezes falar com eles nessa

língua, mas se sentia mentindo. Era preciso despir também o idioma.Dona Erendina não deu importância ao comunicado do filho. Continuou alimentando o

neto. O avô se aproximou para comentar.— Esta chuva vai alagar tudo.Ele não falava ali ao engenheiro que até então cuidava dos trabalhos de melhoria do rio.

Era apenas um comentário avulso, feito diante do constrangimento do filho, num momentode perigo.

— Foi uma chuva inesperada — Trajano disse, no mesmo tom.— Inesperada para quem não vê os sinais — refletiu João Ventura, levando a conversa

sem propósitos para a questão principal da vinda do filho.Os sinais da nova situação política das colônias eram muito evidentes; ele não havia

prestado atenção e fora surpreendido pela tempestade.— Tem um virado de banana na chapa do fogão — disse dona Erendina.Trajano se levantou, sentindo as nervuras da madeira do assoa lho ao andar descalço pela

cozinha, e foi até o fogão. O virado — banana com farinha de milho — havia sido preparadoenquanto ele se trocava. Estava em uma frigideira, com uma colher dentro. Pegou afrigideira com uma das mãos, tomou da colher e, ainda em pé, provou aquela comida antiga.O gosto adocicado da banana o devolveu definitivamente ao passado.

Saíam pelas chácaras em bandos de meninos e sempre que encontravam um cacho debanana madura cortavam e levavam para casa. A mãe de um deles preparava na hora umvirado e um café fresco, servidos a todos.

— Tem café? — perguntou Trajano.— Acabei de passar — dona Erendina respondeu, olhando para o bule também sobre o

fogão.Ele não precisava ter feito essa pergunta. O cheiro de café se misturava ao do virado,

naquela cozinha fora do tempo.

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Oito.O recado na porta estava escrito em letras grandes, tremidas, próprias de uma pessoa combaixa escolaridade — COMPARECER NA DELEGACIA PARA DEPOIMENTO. Olhou aassinatura quase ilegível. Nas suas aulas na escola alemã, ele aprendera a escrever em letragótica, a preferida por todos ali. A letra romana não tinha força heráldica. Mesmo nacaligrafia ele se sentia distante dos trópicos, vagando imaginariamente em meio a castelosmedievais. Agora, esse recado em alemão gótico, maltraçado, anunciava algo que ele já sabia,mas que não queria admitir — quem tinha o poder não era necessariamente quem estudara.As levas de soldados germânicos cresciam a cada dia, aparecendo muita gente, até entãoperdida em trabalhos rústicos nas fazendas, que exibia na cidade um uniforme impecável eum inequívoco sentimento de autoridade. Esses jovens com pouco estudo, cansados de lutarcom uma terra indócil, encontravam nas tropas uma oportunidade de mudar de vida.

Ao colocar a chave na fechadura da porta, ele teve a sensação de estar invadindo umapropriedade alheia. Nada lhe pertencia, nem a sua bela caligrafia, um dos orgulhos quecarregara pelos anos de estudo. Entrou na casa e viu os móveis organizados, em contrastecom a casinha dos pais. Passara a noite lá, na cama da infância, talvez com os lençóis daquelaépoca. Sentindo o cheiro dos pais, o cheiro do filho que dormia no carrinho entre as duascamas, e também o da madeira da casa, ele caiu num sono sem sonhos.

Pela manhã, com sua roupa já em ordem, ele se trocou e voltou caminhando sob um soltímido. Gostaria de ter saído mais cedo, para evitar confrontos com os alemães — e aopensar isso lhe veio uma grande tristeza. Tinha que evitar as pessoas com quem mais seidentificava. Recebeu mais alguns xingamentos (“macaco engravatado”, “negro fujão”),conseguindo chegar em casa sem maiores incidentes.

Quando fechou a porta atrás de si, sem olhar para a rua, pensou que estava enfim asalvo. Depois refletiu: nunca estivera nem estaria protegido.

Desde que acordara, começaram os planos para esta sua outra vida. O dinheiro recebidoda Prefeitura ficara para os pais. A mãe não queria aceitar, você vai precisar disso, meu filho,para as despesas, e foi um sacrifício convencê-la a receber o envelope. Não era muito,porém, com certeza, era a maior quantia que ela e o marido já haviam tido. Poderia terajudado antes os pais, mas esperava as condições ideais de tirá-los da favela Farroupilha.Agora que não teria como trabalhar na cidade, podia fazer esse pequeno gesto, nãopropriamente desinteressado, pois eles cuidariam da criança.

Pretendia também vender alguns objetos mais valiosos e entregar a casa, voltando amorar com os pais. Recomeçar a vida do ponto onde, anos atrás, ele a deixara. Não davapara voltar a ser Trajano, o menino se perdera no passado, no entanto poderia tentar ser

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diferente do que fora até ali. Sua vida não passava de um equívoco. Fez um inventário rápidodo que era vendável. O relógio de ouro, o anel de formatura, a máquina de escreverContinental, da Wanderer-Werke, as louças de porcelana vindas da Baviera, os talheres deprata. Tinha pouca coisa. Gastara o salário com as necessidades do dia a dia e com os livros.E os livros agora estavam confiscados, deviam voltar a quem tinha um direito de sangue aeles. Ainda de manhã fora à Casa Berlin, na rua XV, e entregara o anel e o relógio pelametade do que valiam. Quando chegou à loja, o dono se apressou a convidá-lo para osfundos, onde ficava seu escritório, olhando para ver se ninguém tinha percebido a suaatitude amistosa para com um negro. Comprara o relógio ali, dois anos antes, tendo sidobem recebido. Voltara outras vezes para negócios menores e jamais causara qualquer tipode constrangimento. Pensava nisso enquanto caminhava para a loja seguinte. Não, devia,sim, ter despertado raiva nas outras vezes. Ele é que não percebera, convicto de suagermanidade. Não havia atentado para olhares tortos, para a repulsa de algum clienteatendido junto com ele, para o desprezo do funcionário, como uma pessoa assim pode usarum relógio de ouro? Estivera cego até ali. O dono da relojoaria fez uma proposta baixa,Adolpho reclamou.

— Outra pessoa nem aceitaria negociar com o senhor — ele falou, compassadamente.E como Adolpho não respondesse, ferido em seu orgulho, o relojoeiro dobrou a sua

oferta inicial, que ainda continuava baixa, mais do que isso ele não daria. Fecharam onegócio. Depois de abrir o cofre, o comprador retirou um maço de notas, contou a quantiacombinada e a entregou. Enquanto Adolpho conferia a soma, o relojoeiro preparou o recibo.Adolpho o leu, pegando imediatamente a caneta para assinar. Levantou-se e se despediu.

— Por aí, não — disse o dono. — Pode ter algum cliente agora. Saia pelos fundos.Sem olhar para ele, o relojoeiro ficou contemplando a assinatura no recibo, esse negro

tinha uma caligrafia bonita.Em uma outra casa comercial especializada em secos e molhados, armarinhos, louças,

discos, gramofones, tecidos, chapéus, capacetes, camisas, gravatas, brinquedos e vitrolas,onde ele sempre fazia as suas compras, foi recebido mais amistosamente. A oferta pelaslouças, pratarias e pela máquina de escrever também o frustrou. Mesmo assim, aceitou ovalor proposto. O engenheiro Adolpho Ventura tinha praticamente liquidado os seus bens.Voltou para casa e logo chegou o funcionário da loja com uma carroça para levar os objetos.

Só faltava entregar os livros e a casa. Seguiu um pouco antes do almoço para a delegacia.Depois, comeria algo em algum bar longe do Centro. Precisava descobrir a outra cidade, aparte que nunca lhe interessara, onde as pessoas ainda aceitassem a sua presença. Nadelegacia, ao se anunciar, recebeu a ordem para que esperasse na sala ao lado. Quando foiaté ela, viu que havia um bêbado.

— Sou um trabalhador. O senhor prendeu um trabalhador.Como Adolpho estava de terno, o bêbado o confundiu com o delegado.— Um trabalhador não pode beber?

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Não houve reação de Adolpho.— Sei que o senhor vai dizer que pode, mas que tem que beber pouco. Então me diga, o

senhor nunca teve vontade de beber até não se lembrar de nada? No começo da bebedeira agente se lembra de tudo, e isso é ruim. Então a gente bebe mais e mais e aí começa a ficarsem memória. Só mais um pouquinho e o mundo desaparece.

Enquanto falava, o bêbado ia ficando com a voz mais lenta, no final da última frase jáestava cochilando no banco, a cabeça encostada na parede.

Logo seria acordado por um policial.— Levante, seu imprestável.Embora o policial tenha falado em alemão e o bêbado tivesse contado a sua história em

português, este se levantou e seguiu, andando sem equilíbrio, para a sala do delegado.Ter sido deixado para depois do bêbado, uma humilhação a mais para o engenheiro.

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Nove.Ficar em pé, diante da escrivaninha, fazia parte de uma estratégia de constrangimento. Nãohavia nenhuma cadeira para a visita, obrigando-a a essa posição incômoda, de quem não ébem-vinda. Ventura podia ver a mesa vazia, sem papéis, o que indicava que ali as coisas nãoaconteciam por meio de processos, era apenas uma conversa entre homens.

— O senhor ontem nos fez perder tempo.— Me desculpe, mas não foi intencional — disse Adolpho, que não queria prolongar essa

conversa, apenas resolver o problema e voltar a cuidar da sua mudança para a casa dos pais.— Não, vocês nunca têm intenção de nada.E o delegado se mexeu na cadeira, afastando-a para trás, na tentativa de achar uma

posição mais cômoda. Aos poucos, a cidade ia ganhando a cor marrom-pardacenta dastropas de assalto. O delegado estava com esse uniforme. A cidade era quase só delas agora.Os antigos integralistas, com o fortalecimento dos alemães e com a abertura para outrasetnias europeias, haviam aderido ao nazismo. Ocupavam cargos nas repartições,requisitavam casas e passavam a morar nelas com a família, pois chegava todo mês umaquantidade grande de partidários antes isolados em zonas rurais. Fizeram-se, por isso, maisfrequentes os desfiles. As chácaras das imediações e os clubes de tiro tinham sidotransformados em campos de treinamento e as fábricas de tecido preparavam os uniformes,enviados até para a Europa, enquanto a Casa Krupp produzia armas na nova indústria deCriciúma. Em diversas cidades, os alemães já eram maioria e seguiam as Leis de Nuremberg,sem nenhuma oposição do governo do Brasil.

— Mandamos um caminhão, soldados e um oficial para resgatar a biblioteca alemã e osenhor não estava lá.

O verbo resgatar dava dignidade ao ato de pilhagem. Era como se o ladrão fosse ele e nãoos nazistas.

— Não sabia quando vocês viriam.— Devia ter esperado. O senhor não está trabalhando, está?— Agora, não.— Então não tinha nada de passear pela cidade quando todos os alemães estão pegando

no pesado.— Cuidava de meus assuntos.— Não me responda.O delegado se aproximou da mesa, puxando a cadeira, e sustentou um olhar meio

agressivo.— Onde você estudou?

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— Na Faculdade de Engenharia do Rio de Janeiro.— Onde você estudou aqui?— Na Neue Deutsche Schule.— E agora não quer que a biblioteca seja usada pelos estudantes alemães.— Não me recusei a doar.— Mas se recusou a abrir a casa, afrontando as autoridades. Ou você acha que os

soldados gostaram de ir à casa de um negro?O delegado gritou para um ajudante, que apareceu com uma folha, deixando-a sobre a

mesa e se colocando ao lado de Adolpho Ventura, que permanecia quieto, movendo omínimo possível os músculos.

— Assine aqui.Adolpho se vergou sobre a mesa e pegou a caneta, olhando rapidamente para o teor

daquele documento, no qual se confessava culpado por ter obstruído a polícia. Se nãoassinasse, poderia ser preso. Quando começou a assinatura, descobriu um riso contido noslábios do delegado.

— Pode levá-lo.E o soldado o segurou pelo braço, empunhando com a outra mão a sua arma engatilhada.

Tinha sido preso do mesmo jeito.Numa sala interna, pararam diante de outra escrivaninha, com mais um soldado.— Que pertences tem aí?— Nenhum.— Passe a carteira.Ela estava com o dinheiro que conseguira da venda de suas coisas. Ventura a tirou

lentamente do bolso do paletó, devia ter levado esse dinheiro aos pais. Estava tão perdidoquanto a biblioteca. A carteira foi colocada na gaveta da escrivaninha depois que retiraramos seus documentos. Nenhum deles mencionou o dinheiro, era como se as cédulas nãoexistissem. E, de fato, a partir dali não existiriam.

— Tire a roupa.Ele se despiu com agilidade, permanecendo de calção e camiseta. Lembrou-se da noite

anterior em que tinha sido tão bom ficar assim na cozinha dos pais.— Tudo.E logo estava completamente nu. Os dois soldados avaliaram o tamanho de seu sexo por

uns segundos, enquanto Ventura dobrava a roupa para colocar sobre a escrivaninha. Emtroca, recebeu um pijama desbotado e chinelas gastas. Após ter se vestido, sentindo o cheirode sabão de soda, foi levado à cela e empurrado para junto de outros negros com pijamasidênticos.

Estavam todos, transcorridas décadas do fim da escravidão, numa senzala. Não haviadiferenças agora, pouco importando que um deles tivesse lido alguns livros e morado porum tempo entre os patrões. As grades, aqueles pijamas e o lugar sujo os uniam.

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O almoço, uma polenta sem gosto, foi servido num único caldeirão, sem colher. Um dospresos arrastou a vasilha até o meio da cela, todos se ajoelharam ao redor dela, comendocom as próprias mãos. Mesmo sem fome, Adolpho se aproximou. Dois presos abriramespaço; ele afundou a mão na massa mole daquela comida.

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Dez.A decisão de ir à casa de Adolpho foi tomada contra as ponderações do marido.

— Ele disse que voltaria assim que resolvesse as coisas.— Já faz um mês.— Confie nele.Erendina sabia não poder confiar no mundo. Por isso, arrumou-se num final de tarde,

depois de ter dado banho no neto e preparado a comida, e saiu quando estava escurecendo.Negros não podiam andar pela rua após as 22 horas, a não ser que estivessemcomprovadamente a serviço. Ela acompanhava as novas restrições pelo rádio que o filho lhetrouxera.

Teria que vencer a distância de alguns quilômetros rapidamente. À noite, com um xalesobre a cabeça, cobrindo parte do rosto, não seria incomodada pelos nazistas. E dormiria lá.Nunca pedira isso a ele, mas agora estavam todos juntos.

Mudando de lado na rua quando vinha alguém em sua direção, preferindo sempre asáreas escuras, andando como se temesse alma penada, Erendina chegou à casa de Adolpho.Havia luz na sala e isso era um bom sinal. Ela abriu o portão, que não tinha tranca, e entrouno jardim, sentindo que a casa guardava algo estranho. As janelas estavam iluminadas. Ofilho vivia sozinho e não era de dar festa. E quem iria a um jantar na casa de um negrorecentemente demitido? Ela ouviu risos e até briga de crianças.

Embora estivesse com a chave da cozinha, achou prudente espiar pela vidraça antes deentrar ou de bater na porta. Os seus pés amassavam ervas daninhas que haviam tomadoconta do quintal. O jardim era um dos orgulhos de Adolpho. As flores e as outras plantasviviam podadas, não havia mato. Erendina tinha errado de casa? Como já estava perto dajanela da sala, resolveu espiar através da cortina de renda, reconhecendo os móveis da sala.Não se equivocara.

E logo viu um casal de crianças loiras e uma jovem mãe com elas. O marido devia estarna biblioteca de Adolpho. Descobriu então que a casa tinha sido requisitada pelos nazistas.

Com o pouco alemão que sabia, tinha entendido quando se falava nessa prática nosprogramas de rádio. Estavam tomando as casas de pessoas com problemas na justiça.

Não sabia o que o filho fizera nem para onde havia ido. Saiu depressa do quintal, sem seimportar se estava ou não pisando em algum canteiro. Tinha que ser ágil. Faltava poucopara as 22 horas. O certo era tomar o caminho direto, passando pela rua XV, e sair logo doCentro.

Duas quadras depois, encontrou um estabelecimento aberto. De longe, podia ouvir asconversas dos homens no balcão. Tomavam chope e falavam de assuntos masculinos. Ela

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cruzou a rua, tentando manter-se invisível na noite. Não contava que no quintal da casa emfrente houvesse um pastor-alemão, que latiu quando ela se aproximou. Imediatamente,alguns homens saíram do bar com os seus canecos.

— É um ladrão — um deles gritou.E correram até Erendina, que ficou paralisada sob uma árvore, acossada pelos latidos do

cão e pelos homens. Logo teve seu xale arrancado com brutalidade.— Uma negra.— Parece mais um demônio.— Sabe que não pode andar na rua fazendo as suas bruxarias.— Estou indo para casa — foi tudo que ela falou.Os homens fizeram um círculo em torno dela.— Quer um chope? — um deles ofereceu.— Não está vendo que ela só toma pinga? — o outro perguntou e todos riram.Falavam em alemão. Erendina entendia vagamente as brincadeiras.— Me deu vontade de mijar — um terceiro falou, rindo.— Em mim também — disse o que oferecera chope.Eles passaram o caneco para os amigos e abriram a braguilha.— Vamos mijar nos pés da velha.Novas risadas, enquanto Erendina continuava quieta. Apenas olhava com indiferença

para o homem que tivera a ideia zombeteira. A pinga, que seu marido tomava, era maisdigna do que o chope e a cerveja, pelo menos a pessoa não precisava ficar se aliviando a todahora. Os lugares da cidade onde havia cervejarias eram fedidos.

Um tiro interrompeu a brincadeira dos bêbados, que olharam para a casa em que estavao cachorro, agora emudecido. Um homem saiu com um rifle na mão.

— Deixem a velha ir para casa.— Você está defendendo os negros?— Não, é só uma questão de decência. Voltem para o bar.Houve uns segundos de hesitação. Um dos bêbados poderia pular sobre ele, talvez

alguém ali estivesse armado e planejasse disparar contra o vizinho.Aos poucos, começaram a se mexer rumo ao bar. Andavam lentamente, olhando para a

porta, tomada pelos demais frequentadores. Os que tinham tirado o sexo para fora,guardaram-no e fecharam a braguilha, sem olhar para a pessoa que os enfrentara. Erendina,porém, se virou para ele.

— Muito obrigada.— Suma daqui a senhora também.E o cachorro voltou a latir. Ela seguiu pela rua, perdendo-se na escuridão.Só quando ela estava longe o homem entrou em casa, permanecendo na sala com o rifle

ao alcance da mão. Um daqueles idiotas poderia aparecer de novo.Ao chegar, Erendina contou ao marido o que devia ter ocorrido com o filho. Não podiam

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fazer nada além de esperar.— Desde que foi embora para o Rio, ele está tentando voltar — a mulher disse.

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Onze.Os cães da fazenda estavam acostumados a ajudar no pastoreio humano. Mal um doselementos se afastava, os cachorros o cercavam e o conduziam de volta. Não faziam issolatindo, e sim com um olhar severo, dentição travada, prontos para o ataque. Impossívelescapar deles, pois corriam bem mais, e se pegassem a vítima não receberiam o comando deparada. Por isso, poucos soldados bem armados e alguns cães cuidavam de grupos grandesde negros que trabalhavam nas fazendas nazistas.

Esses campos de internamento não tinham grades, telas nem arames. Em barracões queno passado serviram para guardar mantimentos, com esteiras no chão, centenas de homensdormiam. As sedes das fazendas, com as casas dos soldados e dos administradores, juntocom os barracões, geralmente tinham muros de alvenaria baixos que podiam ser vencidospor qualquer adulto. Sentinelas passavam a noite atentas aos movimentos, fazendo a rondacom os cães.

Os negros haviam sido enviados a essas fazendas para receber uma verdadeira educaçãoentre os seus e também para trabalhar, diziam os nazistas. Eram, na maioria, jovensretirados de orfanatos brasileiros, embora houvesse também levas de adultos, alguns jávelhos, expulsos de suas casas e de seus empregos sob a acusação de algum crime ou desimples vadiagem. Todos internados para receber instrução, na linguagem dos nazistas, ecom isso melhorar o país.

Na fazenda Vita Nova, só ocorrera um incidente até então. Um negro de uns trinta anos,analfabeto e entregue à cachaça, sentindo falta da bebida nos primeiros dias de reclusão,saiu no começo da noite para ir à cidade. Escapou dos soldados, porém não dos cachorros,que o acuaram e depois avançaram sobre ele. Os gritos podiam ser ouvidos no alojamento.Nasciam de uma garganta que estava sendo estraçalhada e tinham algo demoníaco.Ninguém fez nada. Os soldados continuaram nos seus postos. Súbito a noite ficou emsilêncio, e voltaram a ser ouvidos os grilos, em sua estridência sem fim. Quando os cãesretornaram ao pátio, estavam com os pelos do focinho ensanguentados.

Só no outro dia foram recolher o corpo do fugitivo, que conseguira correr uns trezentosmetros além do muro. Havia partes rotas, com os ossos à vista, e buracos na terra arada, desuas tentativas de escapar dos cães.

— Não foram os pastores que fizeram isso; eles só atacam, não comem as vítimas — disseo gerente da fazenda. E logo ordenou: — Enterrem esse negro antes que outros animaiscomam o resto.

E ele foi destinado a uma vala funda, no campo, tal como se faz com algum animal mortono pasto.

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Poucos tentavam escapar porque não tinham para onde ir e seriam facilmenteidentificados. Cabeças raspadas, roupas de trabalho idênticas e uma suástica gravada a fogona parte interna dos braços anunciavam que pertenciam ao nazismo.

Assim que amanheceu, no dia seguinte à sua prisão, Adolpho foi colocado em um vagãode carga com os outros presos, amarrados, e todos deixaram a bela estação ferroviária deBlumenau, em estilo enxaimel, rumo ao novo destino. Ao contrário do que acontecia naEuropa, os campos de internamento aqui eram menos vigiados, de maior número eespalhados por várias regiões, administrados por fazendeiros ou industriais que se valiam,assim, de mão de obra gratuita.

Ao ouvir alguém dizer que não pagavam pelos serviços, o dono da Vita Nova, AlbertThielen, se irritava. Tinha que comprar comida, contratar soldados e capatazes, alimentar oscães, dar instrução aos negros. Um custo alto. Dizia a seus amigos que aceitava o sistemaporque era uma forma de limpar as cidades dessa raça, isolando seres libidinosos para quenão se reproduzissem. Os campos de internamento dividiam mulheres e homens, uns longedos outros, para evitar a procriação. Ainda assim, a quantidade de internos crescia todo mês,já que recebiam sempre novos grupos. Quem quisesse transformar sua empresa ou fazendaem campo de internamento devia ser filiado ao Partido Nazista e fazer uma solicitação,informando quantas pessoas podia abrigar.

Na chegada à propriedade, Adolpho já imaginava o que aconteceria com eles, poisflagrara os soldados explicando em alemão, a um novato, os procedimentos. Não falariamais essa língua, fazendo-se apenas um espião das conversas. Assim que fossem alojados,eles receberiam no braço o ferro quente com a suástica. Depois disso, seria gravado nelesum número, para indicar a quem pertenciam. Era o fim da liberdade. Seriam eternamente osnegros dos nazistas.

Na sua vez, Adolpho esticou o braço musculoso. O capataz que fazia o serviço, ao lado dosajudantes armados, segurou a sua mão.

— Mãos finas — comentou.E apertou fundo, no antebraço, o ferro aquecido no braseiro. O cheiro de pele queimada

tomava conta do barracão, tornando o ar irrespirável. Era comum que gritassem na hora deserem marcados; Adolpho apenas olhou o ferro, sem mover o braço. Ele ficou na ponta dospés, sentindo a dor. Outro homem, com ferros quentes, inscreveu o seu número, de acordocom a certidão emitida pelo Partido Nazista. Era o no 6.052. Tivera um nome durante ainfância. Depois recebera outro. E agora era apenas esses dígitos. O funcionário que omarcou quis saber, no final do serviço:

— No que você trabalhava?Quem tivera uma vida boa recebia as piores funções. Por isso fora mandado para a

fazenda. Em uma fábrica poderia cansar-se menos, já ali não sobraria nenhuma atividademais leve.

— No comércio — mentiu para ocultar a sua profissão.

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— Aqui vai ter que calejar as mãos — o soldado disse e escreveu: trabalhador agrícola.Assim que passavam por esse cadastramento, os homens eram levados ao pátio e ficavam

sentados sob um sol quente já nas primeiras horas da manhã. Aguardariam as ordens parao primeiro dia. Os que estavam ali havia mais tempo tinham saído cedo em direção aocampo, para erguer cercas para o gado ou capinar plantações de café, roçar pastos oucarregar sacarias.

O antebraço de Adolpho queimava de dor, e ele tentava protegê-lo do sol. Assoprarpareceria um ato afeminado, então ele, sem se levantar, abaixou a calça e mijou com umesguicho potente sobre a ferida, sentindo um pequeno alívio enquanto a urina morna tocavaa pele machucada. O ferimento voltaria a arder ainda mais forte, embora já fosse o ardumeda cicatrização.

Outros presos fizeram o mesmo e logo um soldado gritava com eles:— Seus porcos, parem de urinar no pátio.E com uma expressão de prazer nos rostos, aqueles homens, um após outro, como se

esperassem a vez, aliviavam-se sobre a pele queimada.Isso só parou quando se ouviu um tiro.— Guardem essa porcaria de vocês dentro da calça.

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Doze.Na manhã seguinte à sua ida à casa do filho, e sem ter dormido nada naquela noite,Erendina saiu muito cedo na companhia de João Ventura. Aos sessenta anos, e depois de terpassado a maior parte da vida em Blumenau, eles tinham que buscar outro lugar para viver.

Erendina pegou o neto, e o marido carregou uma trouxa onde guardou o que podia serlevado numa viagem complicada. Sem pensar no futuro, deixaram a casa.

— Feche a porta — ele disse para a mulher.— Pra quê? Nunca voltaremos.— Para que tenham ao menos que arrombar.Com o neto em um dos braços, trancou a entrada do barraco. Qualquer um poderia pôr

abaixo a porta com pouco esforço, mas teria que se sentir invadindo um lar. O marido estavacerto.

Tinham ouvido no rádio que todo negro que não estivesse trabalhando seriaencaminhado para os campos de internamento. Como não trabalhavam para ninguém emespecífico, seriam enviados para lá. Uns vizinhos haviam sido presos na noite anteriorquando voltavam de uma festa. Queriam saber quem eram os seus patrões. Tentaramexplicar que faziam serviço em algumas casas mostrando as mãos calejadas. Não eramvagabundos.

— Desde quando calo é documento? — disse o soldado, empurrando-os para umcaminhão já com outros negros e mulatos.

Os nazistas tinham mais raiva dos mulatos. E os vizinhos apanharam pela ousadia demostrar as mãos. Receberam empurrões no momento em que subiam naquele veículo queparecia uma carrocinha de cachorro.

— Não machuquem os futuros trabalhadores — brincou um dos soldados, enquanto osque estavam na carroceria colocavam as algemas neles, forçando os braços para trás.

Um vizinho viu a cena toda de um ponto mais escuro da rua e, ao chegar em casa, contouaos pais dos rapazes. Era mais de meia-noite quando bateram na porta dos Ventura. O pai deAdolpho pegou um velho facão, usado para trabalhos de poda de árvore, sua única arma,como se com isso pudesse enfrentar qualquer inimigo. Foi até a porta, perguntando quemera. Quando o vizinho se identificou, deixou o facão no assoalho. Abriu apenas uma parte daporta. O outro entrou.

— Agora sabemos o que aconteceu com o seu filho, estão levando todos os negrospresos, seu João.

— Ouvimos no rádio.— Se descobrem que vocês têm um rádio, são capazes de fazer alguma barbaridade.

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— Era de nosso filho — e ao dizer isso ele tentava se livrar de qualquer culpa.— Vamos embora amanhã de manhã.— E os filhos de vocês?— O que a gente pode fazer?— É a escravidão de novo — disse João Ventura.Ainda se lembravam da época dos escravos. Pertencentes à nação dos nagôs, eles viveram

tantas coisas duras, os sofrimentos nas fazendas, as humilhações nas casas dos brancos, nãopodiam se esquecer das mulheres negras que davam à luz filhos dos patrões que mais tardeseriam criados como escravos. Tudo isso tinha acabado. Crescera, casara e criara seu filhoacreditando que a escravidão nunca mais voltaria.

O vizinho logo foi embora, ainda queria avisar outras pessoas. João Ventura e a mulher jáhaviam decidido o caminho a seguir, haviam chorado tantas vezes o desaparecimento dofilho que não restavam lágrimas, e essas notícias só confirmavam a urgência de partir. Umacidade com tanta gente loira não podia mesmo suportar os de nossa cor, pensou.

Agora, descendo o morro naquela madrugada, quase ninguém na rua, eles pareciamMaria e José em fuga com o menino Jesus. Um casal negro e velho com uma criancinhamulata. Uma das histórias que Erendina ouvira era de uma imagem africana de Cristo.Numa comunidade rural, havia uma escultura de madeira de um Cristo loiro. Os donos damaior fazenda da região, com centenas de escravos, reverenciavam aquela imagem. Eramreligiosos, embora tratassem impiedosamente os trabalhadores. Todos os dias, mandavamacender velas à divindade. E elas ficavam ali, queimando por longos períodos. Aos domingos,a família do fazendeiro ia à missa, ouvia o latinório do padre, se ajoelhava diante doSalvador. Não perceberam que, a cada semana, o Cristo ficava mais escuro. E de loiro passoua mulato, tornando-se um Cristo retinto, o que foi tido em toda a comunidade como ummilagre. E os fazendeiros pararam de ir à igreja. Não cultuariam a imagem de alguém que separecia com seus servos. A fama do Cristo negro cresceu, pessoas vinham de váriasfazendas da região para conhecer o santo que protegia os mestiços.

A filha mais nova do fazendeiro, que antes mandava queimar velas a Cristo, um diaapareceu na igreja. Viu pessoas pobres ajoelhadas diante daquela figura que se fizeraafricana. Ela se ajoelhou entre os devotos. Rezou longamente. Ninguém sabe o que pediu, oque prometeu, as confissões que fez. E a moça nunca se casou. Tempos depois, a imagem deCristo sumiu da igreja, muitos diziam que o pai dela mandara roubar e queimar aquelaimagem falsa, só que isso já não fazia diferença. Assim que o pai morreu, a filha herdou afazenda, alforriou os escravos, vendeu as terras e foi para um convento. Ainda diziam queela se apaixonara por um escravo e que, não podendo viver com ele, pois seu pai o vendera,escolhera a clausura. Outros afirmavam que ela mandara fazer um novo Cristo negro, queficava na sua cela monástica.

Fugindo com o neto, Erendina se sentia numa nova legenda bíblica.Andaram no sentido contrário ao Centro, por uma estrada que levava às fazendas. Não

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andavam pela estrada, e sim pelo lado de dentro das cercas, nas capoeiras e nas matas quemargeiam o rio Itajaí, sempre se escondendo. De um lado o rio, em seu curso eterno. Àdireita, as montanhas cobertas de mata rala. Eles se sentiam oprimidos entre esses doiselementos.

A mulher procurara panos verdes, encontrando dois vestidos. Colocou um e o outro foirasgado, servindo como capa para cobrir o marido. Saíram assim, camuflados na paisagemverdejante.

O caminho era muito mais difícil. Se viam alguém vindo, de carroça ou a pé, ficavamparados no meio do mato, esperando que passasse. Erendina havia trazido uma sacola comaçúcar. Nessas horas de perigo, para o bebê não chorar ela molhava o dedo na própria boca,enfiava no açúcar e lhe dava para chupar. O menino sugava com força, principalmentequando já não havia doce. O dedo da avó enrugara nessa operação.

Se não havia mais lugar para eles ali, tinham o resto do país. Bastava sair daquela regiãotransformada numa grande colônia nazista.

A distância que os separava de Gaspar era pequena, uns poucos quilômetros, algo queeles venceriam em menos de meio dia. Porém, como tiveram que pegar os caminhos maiscomplicados, o interior de matas e campos, a viagem levaria o dia todo.

Após o almoço, quando estavam em uma ponta de mato colada à estrada, comendo broa ebebendo o café trazido numa garrafa de vidro tapada com rolha, eles foram descobertos. Omato se mexeu e surgiu um rapazinho. Não falou nada para eles, ficou apenas olhando.Trazia uma espingarda de caça, devia estar atrás de algum animal.

Assim que João o viu, a arma sendo segurada com as duas mãos, teve a reação de secolocar na frente da mulher e do neto. Ficaram paralisados uns segundos, o casal olhando ojovenzito.

Uma voz de homem, fora da mata, o chamou. Surgiram mais vozes, frases em alemão,risos. Era com certeza um grupo de caça. Ele não estava sozinho e devia ter entrado ali paravistoriar a mata.

O casal não disse nenhuma palavra nem fez o menor gesto, de tão assustado. O bebêmamava o dedo doce da avó. Não percebia o outro. Cresceu o barulho de sua boca sugandoo nada. O silêncio era tão sufocante que João estremeceu ao ouvir o farfalhar do mato sendopisado. O rapaz começou a voltar pelo mesmo caminho e antes de sair da mata olhou paratrás, mais espantado que o casal.

Erendina molhou o dedo novamente e o afundou no açúcar, colocando-o na boca domenino. Não teriam como correr com a criança. Esperavam pela entrada dos homens, quetambém estariam armados. Podiam ser das tropas de assalto. Talvez matassem os três,deixando seus corpos na mata. Ou apenas quisessem levá-los presos para a cidade, -destinando-os a algum campo de trabalho forçado. Sem conversar nada, decidiram ficar ali,esperando. As vozes se fizeram mais alegres, brincavam entre si. Em seguida foramdiminuindo. Estavam indo embora sem saber que, numa pequena clareira naquele capão de

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mato, um casal de velhos tentava salvar uma criança.Quando João e Erendina voltaram a caminhar, acobertados pelo tecido verde, esperavam

um tiro a qualquer momento.

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Treze.O caminho até a lavoura era comprido e eles seguiam a pé, cercados pelos cães. Quandoreceberam suas novas roupas, de tecido resistente, não encontraram calçados. Um delesreclamou que estavam faltando os sapatos.

— Vocês logo vão ter — respondeu o capataz.E os nazistas riram do comentário. Assim que começara a estudar, Adolpho Ventura

parou de andar descalço. A civilização eram camadas de proteção entre o corpo e o mundo.As roupas, o chapéu, os sapatos. Os próprios livros serviam como um estofamento que nãodeixava a realidade ferir quem se dedicava a eles. Aprendera a estofar cada vez melhor o seucorpo. Roupas e botinas de qualidade. Móveis. Um diploma. A língua alemã. Uma biblioteca.E se encontrava ali reduzido a um conjunto parecido com um pijama, de algodão áspero, acalça tendo como cinto um cordão.

Seus pés finos logo se machucaram nas pedras e nos tocos de plantas. Andava por issocom as pernas meio abertas, tentando diminuir o desconforto. No primeiro dia na lavoura,foram roçar um pasto, o cabo da foice, feito do galho torto de alguma árvore, encheu a suamão de bolhas. Primeiro a bolha cresce, criando bolsas de água. Daí elas estouram ecomeçam a sangrar. Enrolou um trapo nas mãos e continuou roçando. Agora dependiaunicamente delas para sobreviver.

Na primeira noite, teve delírios, talvez pelo cansaço ou pelos ferimentos. Na volta docampo, na tarde seguinte, o homem mais velho que trabalhava no seu grupo (destinado aosserviços pesados) entregou a Adolpho um favo de abelhas jataí, que não tinham ferrão epermitiam que se colhesse o mel sem riscos. Havia encontrado uma pequena colmeia notronco de uma árvore.

— Passe nos ferimentos — recomendou o novo amigo.Adolpho pegou o favo pesado e o segurou como se fosse uma hóstia, numa reverência

sagrada. Em vez de saciar a fome e o desejo de doce com aquilo, doava ao companheiro.— Serve para tirar a dor?— Para cicatrizar. Lave os machucados antes.E só o fato de ter recebido esse favo, que ele passava de uma mão para a outra,

segurando com cuidado para não deixar vazar o seu líquido viscoso, já tinha feito com quediminuísse a dor. No barracão não havia banheiro. Desde que chegara, não sabia o que eraum banho. Os outros informaram que uma vez por semana eram levados a um rio para selivrarem da pestilência, assim diziam os nazistas. Naquela noite, Adolpho tirou um balde deágua do poço, gemendo ao mexer a manivela com as mãos feridas.

— Pare de fazer cena — disse um dos guardas.

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Bebeu um gole de água direto do balde, sentindo o gosto de terra. Adolpho estavaperigosamente próximo do chão. Pisava nela, tinha terra nos cabelos, nas unhas, nosferimentos. A terra vermelha entrava em todos os seus poros e ficava alojada ali. Na esteiraem que dormia sem tomar banho, podia sentir uma camada de pó. Nos momentos dedescanso no trabalho, depois de ter comido o que lhes levavam e bebido uma caneca deágua, ele se deitava em qualquer lugar. Era uma intimidade promíscua com aquele solo.Bebeu outro gole e levou o balde para dentro do galpão. Como não havia bacia, teve deenfiar as mãos no balde. Deixou-as um tempo de molho, para a pele se enrugar e a sujeirasair sem fricção.

Passado um bom tempo, retirou as mãos de lá. As suas costas doíam, pois estavaagachado sobre o balde. Levantou-se e enfiou os dois pés na água, equilibrando-seprecariamente. Mais um tempo de espera, enquanto as mãos secavam. Em seguida, sentadono chão, pegou o favo que deixara ao lado, embrulhado em um pano sujo, e esfregou o melnas mãos e nos pés. Conquanto a sujeira não tivesse saído de todo, não conseguiria umalimpeza maior. Apoiando-se nos joelhos e nos cotovelos, para proteger as áreas cobertas demel, arrastou-se até o seu canto e dormiu imediatamente.

Logo estava sonhando com baratas. Elas invadiam o barracão e iam todas para a suaesteira. Comiam o mel que o cobria. Sentia suas boquinhas. Tinha nojo de barata e agoraestava sendo o banquete delas. Tentaria espantar ao menos as que tomavam seu rosto, asque roíam seus lábios. Ao passar a mão pela boca, sentiu o gosto de mel. E o sonho sedesfez. Como uma criança, chupou um dos dedos e continuou dormindo, agora sem sonhos.

No outro dia, viu que as mãos e os pés tinham desinchado e estavam menos vermelhos.Enrolou-os com um pano e foi para a roça.

Na noite seguinte, não tinha mais mel, e o mesmo homem lhe passou um maço de picão.— Faça um chá e coloque os pés e as mãos nele, deixe o maior tempo possível.Num tacho em que se ferviam as roupas, ele conseguiu autorização para fazer a infusão.

Sentando-se num banco, enfiou os pés e as mãos ali, enquanto ainda estava quente. Fez issomais uma noite e notou que os ferimentos iam se fechando.

Com a cicatrização, formou-se uma camada de pele endurecida, uma couraça quesubstituía os sapatos e as luvas. O próprio corpo criava a sua proteção contra o mundo. Nãoprecisava de invólucros. O trabalho e as andanças fizeram surgir outro homem, seusmúsculos enrijeceram, ele se sentia maior, já não sofria tanto nas tarefas agrícolas. Comoestavam sempre no campo, no sol e na chuva, voltou a ter a vida tribal de seus antepassados.A África da qual fugira desde sempre estava em todo lugar. Aprendeu a se alimentar defrutas silvestres, encontradas no campo, a trabalhar poupando energia sem diminuir orendimento. Nunca imaginara que poderia ter essa outra vida. Errara quando, em seus anosde estudo, se sentia pertencer à Alemanha. Sonhara-se nessa outra pátria e se encontravano cativeiro. Um cativeiro que o devolvia a seu povo. Ele pertencia aos meninos meioatoleimados que nunca frequentaram escola e que agora passavam uma hora por dia em

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alguma outra fazenda, com um professor impaciente, aprendendo a ler. O resto do dia eradestinado ao trabalho, porque nada ensina melhor um pobre do que uma ferramenta pesadana mão. A isso os nazistas chamavam, rindo, de educação para o trabalho. Era também umigual o jovem pederasta que se oferecia no barracão, procurando as esteiras que aceitavam oseu corpo. Vinha enrolado numa bata feita com um lençol velho, nu por baixo, e brincava deser mulher com quem quisesse. Com os jovens, com os mais velhos. Como se chamasse José,ficou conhecido como Maria José. E Adolpho sentia um carinho muito grande por ele,fraternal. E ouvia a confissão de seus amores noturnos. Eram uma família forçada. Estavamvivendo ali porque não haviam sido aceitos entre os brancos.

O casco nas mãos e nos pés deu a Adolpho uma irmandade maior. Nunca confessou aninguém os seus estudos, talvez alguns até soubessem de sua ligação com os nazistas, sóque viam o seu sofrimento, acompanhavam o seu cansaço, e quem trabalhava tanto assim,quem não tinha o menor orgulho, bem, só podia ser correto. Esqueçamos, pois, que nopassado ele se sonhou outro.

Uma noite, saindo da cozinha, pisou sem querer numa brasa caída do fogão. Mal sentiu ovolume, esmagando-a com o pé pesado sem se queimar. Tinha conseguido adaptar-se a essavida. No Rio, nas noites de São João, seus conhecidos comemoravam com os vizinhos,brincando em torno das fogueiras; no final, os restos de tições eram espalhados e algunshomens cruzavam, descalços, o braseiro. Não demonstravam a menor dor. E falavam empoderes mágicos. Aqueles homens deixavam o corpo e ficavam flutuando. Como nãoestavam mais ali, não havia dor, pois o corpo era só uma massa que se movia. Algunssuspeitavam que eles tinham parte com o demônio. Por isso não sentiam nada. Eram aencarnação do diabo. Adolpho se tornara um deles, e a razão desse poder se revelava. Os pésestavam tão cascudos de tanto ele caminhar descalço que nada podia machucá-los, e só umprego talvez os furasse. Na festa de São João, se um dia voltasse a participar de uma, elepoderia andar sobre brasas, assustando as pessoas com a sua força demoníaca. Semcomentar isso com ninguém, riu sozinho, enquanto seus pés disformes, espalhando-se paraos lados, libertos do molde de sapatos e botinas, seguiam para o alojamento.

Lá na sua esteira, os colegas de infortúnio descansavam; ele passou a mão endurecidanos próprios lábios. Era a parte de seu corpo mais macia, e esse contato despertou o desejo.O sexo sobrevivia a tudo — ao cansaço, à fome, ao medo. Chega uma hora em que a frutacheia de sementes se arremessa sozinha no solo. Pensou nos corpos das mulheres queamara, a maioria loira, algumas mulatas. Se um negro não amasse uma branca, as raçasnunca se conheceriam, e cada um seria uma ilha; era por isso que estavam ali, para não semisturarem, para não lançarem a fruta bojuda de sementes na terra do outro. Ele queriasonhar com a sua amada, com aquela beleza que o deixava com as pernas bambas, a vontadeincontrolável de se atirar no abismo. De repente percebeu que suas mãos calejadas, inválidaspara o tato, mexiam com o próprio sexo. E mesmo a aspereza dessas lixas que poderiamraspar a sujeira de uma tábua, mesmo esses cascos prontos para enfrentar os piores

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caminhos produziam nele um atrito de prazer.A mão era dele. A pele também, pois a tinha herdado dos trabalhos. Os movimentos mais

bruscos lhe pertenciam. Segurar no cabo da foice. No cabo da enxada. Pegar o palanque dacerca. Empilhar pedras para os muros. Erguer caibros para coberturas. Serviam para isso assuas mãos. Mas elas ignoravam esses afazeres ao se lembrarem da maciez de certos lábios.

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Quatorze.Erendina colocou o neto numa cama feita de folhas verdes. O avô colhera nos arbustos asmais macias, levando-as a um buraco na terra que ele havia cavado com as mãos. Tinhamque fazer isso antes de escurecer. Com um graveto duro, afofou o solo e, com os dedos, foitirando os torrões soltos. A terra que saía funcionou como barreira de proteção. Emseguida, vieram as folhas; sobre elas a avó colocou o pano verde que servira de capa aomarido.

— Parece um berço — ele falou, ao acomodarem o neto naquele local.— Uma manjedoura — ela disse, com voz de choro.Ficaram olhando a criança. Nunca puderam ser avós, pois o filho os escondia das pessoas,

embora fosse sempre atencioso. Tinham vivido longe dele e do neto. Nem conheciam a mãe.Nunca perguntaram por ela e Trajano também evitara qualquer menção.

Tudo na vida deles ficara ruim. Perderam a casa e o filho. Não queriam pensar nisso;sabiam que ele poderia ter sido assassinado. Os nazistas não suportariam um negrointeligente, um doutor em engenharia. Também foram obrigados a deixar como bandidos acidade em que haviam morado tantos anos. Só uma coisa boa estava acontecendo.Receberam o neto, que dependia agora só dos dois.

Deitada do lado esquerdo, ao redor do buraco, Erendina se virara em concha para ele.Não queria que nenhum animal o incomodasse à noite. Do outro lado, João adotou posiçãoidêntica. No meio deles, a semente protegida pela casca. Dormiram assim. Mais algumashoras de caminhada, na madrugada seguinte, e eles chegariam.

Acordaram ainda no escuro, com a criança brincando sozinha na cama de folhas. A avó apegou no colo, enquanto o avô começou a preparar as coisas para partirem. Pela altura dalua, era já um horário próximo do nascer do sol. Tinham um resto de viagem para fazer a péaté a entrada de Gaspar. Se tudo corresse bem, começariam então uma viagem longa detrem. Deram água com açúcar ao neto e se colocaram a caminho.

Súbito o marido falou para se esconderem numa moita de bambus. Erendina tinha medodo bambuzal, lugar de cobras. No meio das hastes, não identificaria o animal, ainda maisnessa meia escuridão da madrugada. Sem outra opção, entraram lá e ficaram em silêncio,ouvindo apenas a luta de espadas dos bambus movidos pelo vento.

Uma tropa de assalto aparecera na estrada. Também se encaminhava para Gaspar. Apesarde estarem no meio do mato, e não tendo nenhum público, eles marchavam com rigor,cantando os hinos; por isso João ouvira sua aproximação. Enquanto iam ocultos pelamargem, a tropa ocupava o centro da via. Todos bastante armados. Só quando osultrapassaram, entenderam a missão daqueles soldados do nazismo. Um grupo de negros e

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mulatos ia amarrado pelas mãos no meio da formação, que se dividia em duas.Percorriam fazendas e vilarejos capturando os negros. Não sabiam o destino desses

coitados, decerto alguns acabariam encontrando Adolpho. Erendina gostaria de sair dali efalar com eles, dizer que se reconhecessem o filho dela, e o descreveria com elogios,dissessem que estavam levando a criança a um lugar onde a cor da pele não fosse crime.Gostaria de abraçar esses presos, ser a mãe deles, embora não pudesse nem chorar,permanecendo imóvel, o dedo açucarado na boca da criança, porque até uma velha seriaaprisionada.

Ela se lembrou das histórias dos laçadores de negros, de homens que saíam em busca deescravos desaparecidos. Eles eram acostumados aos trabalhos com o gado, sabiam laçarbezerros, ovelhas, alguns laçavam até galos ariscos. E era com suas cordas que pegavam osescravos, depois de descobrir onde eles se escondiam e de correr atrás deles no momento daprisão. Os laçadores puxavam o criminoso, não raro arrastando-o pelo chão, os pés atados.A visão daqueles homens, mulheres e crianças amarrados materializou o que ela sóconhecia pelas histórias ouvidas em criança. Erendina estava indo não para o futuro, comoera o plano, e sim para o passado. Ela não tinha sessenta anos; tinha seis e podia ainda ouvira voz da mãe narrando esses episódios.

Distanciando-se a tropa, eles saíram da moita de bambus, entrando num pasto, para seesconder entre umas pedras grandes. Sentaram-se e ela misturou farinha com água,levando com os dedos pequenas porções até a boca do menino.

— Teremos que ficar umas horas aqui e caminhar no sol quente — disse o marido.— Você viu aquelas crianças no colo das mães?— Eram um pouco mais velhas do que a nossa.— O que vão fazer com elas? — Erendina disse isso e começou a soluçar, olhando para o

neto.— Não pense nisso. É melhor.— Vão matar, não vão?— Não. Precisam de gente para trabalhar.— Se não matarem com um tiro, as crianças vão morrer de fome, de doença.— Já disse que não vão matar.Ela abraçou o neto, como se esse gesto pudesse proteger também as crianças que iam

presas.— É a coisa mais triste que vi na vida — ela concluiu.Nesse momento, o neto começou a chorar. Chorou sem parar, ficando meio roxo, e

nenhum dos dois se preocupou com isso. Não havia mais ninguém ali, que ele externasse asdores do passado longínquo, as dores do futuro e também as do presente. Chorasse portodos. Pelos vivos. Pelos mortos. Pelos que ainda vão nascer.

Alguns minutos depois, ainda soluçando, ele dormiu no colo da avó.

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Quinze.— Quem de vocês sabe ler e escrever? — perguntou o capataz Franz Wriede, em seuuniforme pardo.

Eles estavam no pátio, naquele começo da manhã, perfilados com as roupas limpas.Ninguém tinha noção da passagem do tempo, como se experimentassem a eternidade. Nadaacontecia para marcar as datas. Por uma mágica, desapareceram os dias e os meses. Acomida era a de sempre; o trabalho, diário. Restavam apenas os ciclos da natureza, as épocasdas frutas, da colheita e do plantio de certos alimentos. Sabiam que era começo de mêsporque ficara definido que nessa data ganhariam roupas limpas.

Os uniformes se encontravam em ordem, os trabalhadores da fazenda Vita Nova não semexiam. Por sorte, o capataz não tinha acesso às fichas de internamento com a escolaridadedos presos.

— Não acredito que todos sejam analfabetos — ele insistiu.O silêncio tinha se transformado em uma linguagem de sobrevivência. Diante dos

nazistas, evitavam falar. Poderiam pensar que armavam algum levante. À noite, noalojamento, cochichavam entre si, sempre em pequenos grupos. Falar era algo perigoso. Lere escrever mais ainda.

— Por isso estamos dando instrução aos meninos — disse o capataz.Os meninos ficavam em outra fazenda, trabalhavam na roça, sem contato com os adultos.

Um grupo avistava o outro em alguma tarefa. Enquanto os meninos cortavam arroz nobanhado, os homens podiam estar fazendo uma cerca a dezenas de metros dali, e assim umobservava os movimentos do outro. Mas não se comunicavam.

Ninguém de fato acreditava que os meninos aprendessem algo.— Precisamos de alguém que ajude nas aulas. Que saiba ler e escrever em alemão.Adolpho ouvia tudo com uma cara de incompreensão. Nenhum dos companheiros olhava

para ele. Se assumisse o seu diploma, teria problemas. Não era prudente ter um escravo quedominava a escrita, ainda mais em dois idiomas.

— São todos uns animais — concluiu o capataz.E foi dada a ordem para que começassem a trabalhar. A um golpe do chicote de Franz

Wriede, os soldados fizeram o grupo andar sob a investida dos cães. O sol daquela manhã deverão aquecia a cabeça dos trabalhadores. Ninguém comentara o incidente do dia anterior,com o afeminado José, que acabara recebendo uma função doméstica. Como sabia cozinhar,ficava na fazenda ajudando os cozinheiros brancos. Não confiavam essa tarefa a negros, poispodiam ser generosos na comida, causando prejuízo aos proprietários. Aceitaram, noentanto, José como auxiliar. Ele também lavava as roupas dos escravos, fervendo-as em

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grandes tachos, depois estendia tudo nos varais externos, fora do pátio.Sabiam que ele dormia com os negros, servindo de mulher, e fechavam os olhos para

isso. Era uma coisa animal, afirmavam os soldados. Bichos que precisam se aliviar dequalquer forma, nem que seja entre os do mesmo sexo. Na hora de trabalhar no refeitório,José usava um avental comprido que lhe dava um aspecto feminino e andava sempre comum meneio de cintura que provocava o riso dos nazistas.

Na manhã do dia anterior, fora pego com um dos soldados, na despensa anexa à cozinha.Ninguém soube com qual soldado. Apenas que José fora levado ao pátio, nu como estava, eamarrado, pés e mãos juntos. Wriede chamou os trabalhadores no final do dia e surrou omaricas com o chicote na frente deles. José gritava antes, durante e depois dos golpes, asnádegas ensanguentadas. Tentava se arrastar pelo pátio para fugir do açoite, e isso fez comque também esfolasse os joelhos. Alguns negros riam da gritaria e dos trejeitos, como sefossem falsos. Divertiam-se com a cena. Outros repuxavam o rosto a cada lambada que oamigo recebia. Por que fazer isso com ele? Não era pelo fato de levar vida de mulher, maspor ter se deitado com um alemão. O que queriam? Os homens estavam ali, isolados e semamor. Tanto os soldados quanto os prisioneiros precisavam de companhia. E se alguém sedispunha a isso, que mal havia? Os que pensavam assim deviam favores a José. Não sósexuais. Atuando no refeitório, ele aumentava a quantidade de comida sempre que nãoestava sendo observado. Ao preparar a refeição, acrescentava mais carne, mais banha, maisaçúcar para fortalecer os colegas. Muitos tinham sido ajudados uma vez ou outra por ele. Seriam agora de seu calvário, encenado de forma tão realista, era por pura crueldade.

Ao lado de Adolpho, alguém comentou:— Ele grita por nós.Tentando se levantar, embora fosse impossível, José caiu de rosto no chão, as nádegas

totalmente expostas.— Você gosta de safadezas, não é? Gosta de se misturar com outras raças, não é verdade?

Então vamos proporcionar isso a você. Um presente dos alemães.O capataz despejou algo em suas nádegas e ele fez uma expressão de dor. Depois foi até

um dos soldados que estava com o cachorro mais feroz da fazenda, apelidado pelosprisioneiros de Führer. O capataz o soltou e disse “vá”. O cão saiu em disparada. Terminariao serviço, pensaram, pois se lembravam do bêbado estraçalhado pelos cães numa tentativade fuga. O cachorro se atirou sobre José, as patas dianteiras arranharam seus ombros, astraseiras se mexiam, levando e trazendo o seu corpo com violência. Ele estava sendoviolentado publicamente. Devia ser urina de cadela que Wriede jogara em José, atiçando odesejo do animal.

O rapaz gritava mais forte enquanto os nazistas riam. Alguns presos também. Isso eradiversão para quem não tinha experimentado a guerra.

Quando o cachorro se saciou, retirando-se num arranco para atender ao comando de seudono, José soltou um último grito.

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Seu rosto, de esfregar-se contra o chão, estava arranhado. Com muita dificuldade,lentamente, equilibrou-se de novo nos joelhos e olhou para o capataz.

— Vocês não deviam tratar assim quem sabe escrever — gemeu José.Ainda em clima de diversão, levaram o preso ao quarto sem janelas que servia para

castigar os que desobedeciam. Foi trancado ali enquanto os soldados mandavam os outrospara o alojamento.

— Ficarão sem janta hoje — disse o capataz. — É que o ajudante não conseguiu preparara comida. Espero que amanhã consiga.

No dia seguinte, cedo, souberam do acidente. José tentara fugir — o que era impossívelaté para alguém saudável — e fora pego por uma das sentinelas, que deu ordem para elevoltar. Como não obedeceu, o soldado atirou. O segundo morto da fazenda Vita Novatambém foi enterrado no campo, em lugar desconhecido.

Os presos souberam disso ao serem levados ao rio para o banho mensal. A água estavamuito fria e eles se sentaram nus nas lajes. Em pequenos grupos, iam para a água, dividindopedaços do sabão caseiro que ficava sobre uma pedra. Na volta, sem se secar, o corpoarrepiado por causa daquela água e do horário, recebiam o uniforme que seria usado portrinta dias, até o próximo banho.

Outro preso que entendia alemão soube de detalhes da morte pela conversa entre doissoldados.

— Deram um tiro na nuca, depois cortaram o cacete e enfiaram na boca dele. Foienterrado assim.

Quando voltaram ao pátio, antes de começar o dia de trabalho, ouviram o discurso docapataz. Queriam ajudar quem sabia ler e escrever. Como ninguém se apresentasse, foramenviados ao campo.

Adolpho ficou pensando que usavam os uniformes lavados por José. Tinha sido a mulheraté de quem não se deitara com ele. E agora todos eram viúvos, mesmo os que zombavamdo maricas.

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Muitos brasileiros que não entendem o destino de grandeza que nos espera — dizia o presidenteGetúlio Vargas em mais um discurso transmitido pela Rádio Nacional — estão difamando onosso governo. Afirmam que estamos incentivando a prisão de brasileiros ordeiros, de trabalhadoresnegros, e que importamos os métodos e as ideias do fascismo, promovendo a extradição de judeus ligadosao comunismo internacional. Nada é mais falso do que essa calúnia. Não importamos ideias nemmétodos; desde o início da colonização, de uma colonização que é hoje a nossa maior riqueza humana, asideias italianas e alemãs estão em curso em nossa sociedade e fizeram muitos adeptos de outras etnias,mesmo entre brasileiros centenários. Nada mais natural que as colônias estrangeiras, que são o nossoprogresso como nação, cultivem seus mitos e que nós, como governo, respeitemos as leis vigentes em seupaís de origem. Que uma cidade onde haja a maioria de uma raça queira preservar a sua pureza. Alegamque nos Estados Unidos há uma democracia, mas é lá que encontramos o grande movimento da Ku KluxKlan, que luta para evitar a hegemonia negra. No mundo ocidental, há um enorme esforço para protegero homem branco de origem europeia das contaminações. Cada país ocidental tem hoje os seus nazistas. OBrasil também tem os seus nazistas. Esse pensamento de pureza começou a se instalar aqui com osprimeiros imigrantes. Não é algo recente. Eu tenho os meus nazistas. Sei que eles não são perigosos; são,isso sim, uma fonte de riqueza, um elemento de organização dos tumultos raciais em que íamosperigosamente nos perdendo. Deixemos que recriem o Brasil nas regiões em que são maioria. Eaprendamos a lição de prosperidade com eles. Não temos nada a temer.

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Dezesseis.Dedicando-se ao neto, Erendina recordava o tempo em que fora mãe, um tempo distante,renascido nessa viagem. Dormindo em seus braços, enquanto venciam o resto do caminho,ele procurou com as mãos os seios murchos. A avó estremeceu com aquele movimento domenino buscando a mãe que praticamente nunca teve. Com um mês de vida, eles sesepararam. O pai cuidou sozinho e como podia da criança que sonhava com leite materno.Erendina pensou em abrir o vestido, retirar a bolsa flácida de pele e lhe entregar. Ao menosera de uma mãe, mesmo que havia muito sem uso. Tinha sido um órgão de mulher, funçãoque quase já não desempenhava. Ela possuía e não possuía a parte do corpo que o netobuscava.

— Quer que eu carregue um pouco? — perguntou o marido.— Não — ela respondeu, apertando o neto contra o corpo.Não era de alguém que o carregasse que ele precisava, e sim de uma mãe. Ela decidiu que

não morreria antes de criá-lo. Quando fosse um jovem, quando tivesse um emprego, aídeixaria que alguma doença, algum acidente ou qualquer outra coisa interrompesse a suavida.

— Não dá para prosseguir por aqui — João disse, preocupado.Havia uma imensa vala no campo. Deviam voltar à estrada, cruzando uma cerca de arame

farpado, e andar alguns metros na via principal, ao lado do rio. Aproximaram-se da cercapara observar se vinha alguém. Primeiro o marido passou pelos fios de arame, erguendo emseguida um deles com a mão e apertando o de baixo com o pé, de forma a criar umaabertura mais larga para o neto e a mulher. Na hora de passar, ela enroscou o vestido nagarra do arame, rasgando-o na altura do peito, que surgiu negro e mole, com um arranhãojá a sangrar.

— Está doendo? — perguntou o marido.— Não — ela disse com raiva, guardando o seio e arrumando o vestido como pôde.No lugar, cresceu uma mancha escura. Lembrava-se de quando amamentara Trajano.

Mesmo alimentando-o muito, continuava a soltar leite, molhando o seu vestido. Eraincômoda aquela umidade, da qual tinha saudades agora. Sabia de casos de mulheres queproduziam leite sem terem tido filhos, queriam tanto ser mãe que os seios inchavam esurgiam umas gotas vertidas para ninguém. Isso, porém, não aconteceria na idade dela. Seacontecesse, que tipo de leite uma velha daria? Um leite fraco, com certeza.

— Vamos voltar para o mato — propôs João assim que contornaram a cratera.— Não hámais perigo, a tropa já está bem à frente.

Seguindo pela estrada desimpedida e deserta, logo chegaram à casa do amigo, entrando

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pelos fundos. Brasilino Meyer era alemão e trabalhara na construção da estrada de ferrocom João e outros negros. Depois fora contratado pela Rede Ferroviária como mestre delinha. Morava em uma casa próxima da plataforma de embarque de Gaspar. Foi a mulherdele, dona Frida, quem os recebeu. Ela não sabia que eles viriam, mas ficara feliz ao vê-los.

— Que bom que vocês conseguiram!E foi abraçando Erendina e tirando a criança dela. A avó deixou, pois era outro colo de

mulher, de uma mulher bem mais jovem. Seus filhos estavam grandes, no entanto o netodevia sentir um cheiro de mãe naquele corpo. E imediatamente começaram a conversarsobre os nazistas.

— Passaram por aqui. Pisaram nos canteiros da horta. — E os três olharam para oquintal.

— Vão pisando em tudo — João comentou.— Vocês devem estar com fome.— Comemos no caminho. Mas se tiver leite para a criança…E as duas mulheres foram para a cozinha. Frida preparou uma mamadeira, sentou-se na

cadeira perto da mesa e o amamentou.Não precisavam explicar o que estavam fazendo ali. A situação era de conhecimento de

todos.— Pra onde pretendem ir?— Pro Rio de Janeiro — disse João.— Adolpho voltou pra lá?— Não sabemos.Depois de uns minutos de silêncio, Erendina começou a falar e chorar ao mesmo tempo:— Quando ele estudava no Rio, eu sempre ficava sonhando fazer uma visita… Em todo

aquele tempo, ele nunca voltou para ver a gente… E devia ter ficado por lá. Quando vejo oque está acontecendo, esse ódio todo, acho que o grande culpado foi gente como nosso filho,ninguém iria suportar um doutor negro.

— Não há culpados — falou Frida. — Querem um país só pra eles.— Um país branco — emendou João.— E muita gente aprova o que eles estão fazendo.— Eles têm coragem de fazer o que muitos apenas sonham.Erendina voltou à conversa:— Fico imaginando se Adolpho estivesse ainda no Rio, se tivesse levado a gente com ele.

Não teria sido melhor? Na hora, acho que sim… Estaria em um bom trabalho, nóscuidaríamos da casa. Lá ninguém se incomodaria tanto com a gente… Então me penitencio.Sabe por quê? Porque aí a gente não teria este neto. Poderia ser outro, o que não seria amesma coisa. O nosso neto é este. É por ele que estamos aqui.

Tendo terminado a mamadeira, a criança se ergueu e estendeu os braços para a avó, numgesto de carinho, como se agradecesse a sua fala. Ela não entendia as palavras, mas

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compreendia o amor.Na hora do almoço, que as duas mulheres prepararam juntas, tendo antes feito a criança

dormir no quarto de um dos filhos dos Meyer, Brasilino chegou.— Estava pensando em vocês hoje, na hora em que a tropa passou.Os dois amigos se abraçaram.— Ficaram lá na plataforma para vistoriar o trem da manhã. Não querem que nenhum

negro escape. Tiraram um mulato que viajava com a mulher.— Estão olhando todos os trens?— Todos.E a refeição foi feita em silêncio. Embora preocupados, os Ventura comeram bastante

para enfrentar a viagem, que seria bem pior do que imaginavam.Antes de voltar ao serviço, Brasilino os animou um pouco.— Não se preocupem, vou achar um jeito de enviar vocês no trem da noite.Frida pegou uma cesta e a forrou com cobertores. Serviria para levar o menino com

conforto. Arrumou mais comida, umas bolachas, linguiça defumada e pão. Garrafas comágua. Teriam que viajar escondidos um longo trecho. Só a partir do estado de São Paulopoderiam seguir como passageiros comuns. Agora, seriam apenas uma carga.

Brasilino voltara à tarde com uma ideia simples. Havia uma caixa de madeira em queviera uma máquina. Ele a guardara para armazenar milho em espiga. Esvaziou-a, colocando-a sobre o carroção, e acomodou as coisas da viagem lá dentro. Perto da hora do trem, Fridamisturou água e açúcar num copo de vinho e deu para o nenê.

— Assim ele dorme.Erendina se deprimiu. Uma criança que quase não mamara na mãe, criada com leite de

animais, agora tinha que beber vinho para dormir. Como seria esse menino?Não quis ver a carinha dele enquanto sugava a bebida adocicada. Foi para o carroção,

entrou na caixa, um pouco mais alta do que uma pessoa sentada, e ficou esperando o neto.João o trouxe. Erendina o recebeu no colo, os olhos já sonolentos, e logo o marido estava aseu lado. Brasilino colocou a tampa da caixa, pregando-a bem forte. Antes, fizera algunsfuros pequenos para a entrada de ar.

— Não falem nada daqui para a frente, e mantenham o nenê quieto.Havia um balde para eles fazerem as necessidades, e bastante água e comida. Na estação

de Sorocaba, um amigo de Brasilino ia retirar a caixa e soltá-los. Ele só passaria o telegramano dia seguinte, quando o trem estivesse próximo.

A caixa foi deixada na plataforma, no meio de outras encomendas. João e Erendinaperceberam o momento em que a tropa chegou, um pouco antes do trem. Era um ruído debotas contra o ladrilho, de passos irritados. Até a forma de as pessoas andarem servia paraintimidar. Ouviam-se conversas. Alguém gritando, provavelmente um negro capturado pelosnazistas. Então o baque na caixa em que estavam. Ela se mexeu tão bruscamente que os doisforam jogados contra as paredes. O bebê acordou; a mão de Erendina sufocou o seu choro.

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Ela se sentiu matando o neto.— Cuidado com isso — recomendou Brasilino Meyer aos carregadores.Quando o trem começou a se mover, os dois choraram, aliviados. Estavam enfim

deixando o país dos nazistas. Iam em busca de outra pátria. Passariam calor, teriam pouco ar,cãibra por não poderem se levantar nem se deitar direito, iriam embebedando o neto, ogarrafão de vinho batizado estava ali, e sentindo o cheiro dos próprios excrementos, mastudo seria apenas por algum tempo.

E a encomenda seguiu para o seu destino.

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Wolfsschlucht, 1938—

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Um.Soltou o cabelo e se arrepiou ao sentir os fios tocando seus ombros nus pela aberturatraseira do vestido. Acostumara-se tanto ao coque, obrigatório nas colônias, que sofria umestremecimento só com o derramar dos fios secos sobre a pele. Alguma coisa estavaacontecendo em seu corpo, Hertha não sabia exatamente onde. Essa modificação já ocorreratantas vezes sem que identificasse o ponto em que tudo tinha início. Os cabelos, até ali algoexterno, começavam a se comunicar com um centro qualquer. Ocorria uma orquestraçãodas partes de seu corpo. A carne sob suas unhas pulsando. O couro cabeludo a latejar,movido pelo bombeamento do coração. Aberto, fechado. Aberto, fechado. A respiraçãointensificada fazia com que a boca perdesse toda a umidade. Não suportava uma tensãoassim. Se surgisse um vento ou uma pessoa às suas costas, ela estremeceria, armando-separa o bote. E sozinha nesse quarto, no alto do hotel Majestic, sobre o qual tanto ouvirafalar, preparava-se para um encontro incógnito com um corpo que não imaginava comoseria. Preciso de alguém, ela pensou, que se sinta seguro ao meu lado. Era isso o sexo,corpos que se uniam para se proteger contra o vazio. Um corpo, de homem ou de mulher,um corpo que se cole ao meu. Nesse momento, o odor cresceu tanto que sentiu náuseas.Ainda havia pouco o cabelo estava seco, os fios esvoaçantes tocavam seus ombros, e agoraganhava peso e aroma. Aroma de fruta madura, transpirando açúcares. Conhecia bem oodor ardido de sexo, do seu e dos homens com quem dormia, e mesmo sozinha se inebriavacom essa presença ácida. Quem era esse outro? Ali havia somente o ar do rio Guaíba. Vinhados peixes aquele cheiro? A pouca distância, com suas facas impiedosas, os peixeiros tiravamas escamas e as barrigadas de seres prateados. Só que estava suficientemente afastada do riopara ignorar essas vísceras. Aquilo em verdade nascia só dela. Talvez alguém com uma facagrande raspasse sua pele.

Puxou os cabelos em duas metades das costas para o peito, aproximando as mechas desuas narinas e respirando fundo. Baixou um pouco o vestido. O seio direito foi o primeiro aaparecer. Rosada, a aréola se arrepiara pelo contato forçado com o tecido. Era lindo o seuseio, ela o admirava. E o outro surgiu, o bico ainda imenso, de mãe que amamenta, sim, elaproduziria vários filhos. E os dois úberes receberam o volume de seus cabelos impregnadosde sexo. Pena que a poltrona que via atrás de si, refletida no espelho, estivesse vazia. Massubiam vozes masculinas do fosso do hotel e também um resquício de fumaça de charutos.Um senhor ria, que piada contariam naquele fim de tarde? Gostaria de ter um daqueleshomens, mesmo que fosse velho, mais velho do que seu tio. Era bom pensar no tio quehavia cuidado dela após a morte dos pais. Isso a apaziguava. Com uma inesperadatranquilidade, recompôs a roupa, penteou lentamente os cabelos, devolvendo-lhes alguma

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leveza. Nunca usara um vestido tão caro como este, com o qual fazia um papel de noivaclandestina, indo para núpcias que nunca poderia confessar.

Interrompendo esses devaneios, alguém bateu na porta.Ela nem se mexeu para abrir. Desde que saíra de Blumenau, não precisava mais fazer

certos esforços. Bruno Fricke procurara Onkel Karl explicando que havia um serviço paraela em Porto Alegre, uma apresentação para certos alemães. Seu tio não perguntara nada;sem formação artística, desconhecia que Hertha tocava piano convencionalmente, nenhumade suas eventuais qualidades musicais justificando tal convite, a longa viagem de trem, asdespesas que teriam, o bom pagamento. Karl olhou para a sobrinha com os olhos doces,como que dizendo que ela lhe dava orgulho, e sua voz saiu emocionada:

— Tinha certeza de que logo você encontraria seu caminho.O mais difícil para ela era suportar a inocência de Onkel Karl. Ele nunca repreendera sua

vida livre, nem mesmo acreditava nas histórias sobre seus namoros naquela cidade pequenaonde todos ampliavam os detalhes de qualquer desvio. A ingenuidade de seu tutor, dandocoragem para as suas fugas, também despertava remorso. O tio era uma pessoa correta,incapaz de ver maldade nas coisas, por que enganar justamente o único homem que nãogostava dela como corpo? As pernas longas e firmes, a pele sem marcas, os cabeloscompridos que ela era obrigada a manter amarrados em nome da decência, mesmo queaparente, naquela cidade puritana, os olhos azuis e sempre úmidos, aqueles lábios quetantos homens beijaram e que diziam as palavras mais impronunciáveis, tudo isso constituíaforça e maldição. Hertha era uma máquina amorosa nova e perfeita. Mas, diante do tio, etalvez somente diante dele, sentia-se um todo, não apenas um corpo.

Ela se aproximou de Onkel Karl e beijou sua testa. Conversaram sobre o concertoprivado que daria na sociedade germânica de Porto Alegre. Bruno trazia um contrato, onome de Hertha datilografado naquela folha, seguido de sua profissão, pianista, e os valoresque receberia, um conjunto de provas de que a sobrinha deixaria de ter a vida irresponsávelimprópria em uma jovem de dezoito anos, e isso numa cidade em que todos desde cedo sededicavam a uma profissão. Karl assinou o contrato como testemunha, contente. No dia dapartida, com o mesmo entusiasmo ajudou a carregar a mala de Hertha até o carro, que aaguardava na frente de casa, com um chofer. Eles a levariam à estação, e de lá ela seguiriacom Herr Bruno para Porto Alegre.

Durante a Grande Guerra, Bruno Fricke combatera na Alta Silé sia. Fora da vida militar,não encontrou outra ocupação, vendo-se obrigado a vagar por algumas cidades até se ligarao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, onde conheceu o jovem AdolfHitler. Preso em Munique na passeata da Odeonsplatz, no Putsch da Cervejaria, no início damarcha a Berlim, detida pela polícia (quando Hitler foi ferido e muitos acabaramperseguidos), Bruno cumpriu a pena sem outros projetos a não ser recomeçar a vida emalgum lugar distante. Solto, pegou um navio para a América do Sul e desembarcou em PortoAlegre. Após um tempo trabalhando em uma pequena granja alemã da região, ao ver o

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crescimento da figura de Hitler voltou às atividades políticas.Na hora de partir, Hertha não carregou a mala nem a maleta com os pertences pessoais.

Bruno cuidava de tudo. No trem, ele achou os assentos e deu a ela um guarda-pó para aviagem, que seria demorada e repleta de poeira. Desde que saíra de casa, tudo estavaresolvido. Na chegada ao destino final, quando o dia estava clareando, ela sentiu a pele dorosto áspera. Passou a mão e descobriu o que acontecera. Bruno também acordava e riudaquela cena: o seu guarda-pó estava sujo de fuligem e de terra, pois ela deixara a janelaaberta. Percebendo isso, Hertha abaixou o vidro, que espelhou seu rosto enegrecido.

— Você está parecendo um neger — Bruno riu de novo. — Fomos tão longe buscar a maisbela alemã do Brasil e ela se transforma numa escrava.

Com um lenço que Bruno lhe passou, Hertha limpou como pôde o rosto, esperandochegar logo ao hotel. Aquele guarda-pó, no início da viagem, lhe dera ares de freira. Semprese perguntara se uma freira sentia desejo. E aquela freirinha falsa, que seguia ao lado de umhomem meio desconhecido, era puro desejo. Não deixou de pensar na força dos dedos deBruno em seu corpo, mas ele não tentara nada. Desmanchava-se em gentilezas antecipandoqualquer coisa de que precisasse, comentando sem malícia, uma vez que estavam sozinhos,o tipo de apresentação que ela faria em Porto Alegre. Empreendeu, portanto, uma viagem defreira, com a beleza de seu rosto apagada pela fuligem da locomotiva.

Na estação, Bruno seguiu uns passos à frente com a mala, que não estava pesada —pedira que trouxesse pouca roupa, comprariam tudo novo, e isso foi o que mais aentusiasmou.

Ele guardou a bagagem no carro que os esperava, abriu a porta e estendeu a mão paraajudá-la a entrar.

Agora, ali em seu quarto no Majestic, enquanto se virava por conta da batida leve namadeira, não saiu do lugar nem disse uma palavra. Um segurança, sempre do lado de fora,abriu a porta, anunciando, em voz submissa, que a cabeleireira e a maquiadora haviamchegado. Hertha mirou o espelho, esperando que as duas se aproximassem. Cumprimentou-as em alemão. E elas logo começaram o serviço. Maquiagem e penteado, pois as unhas dasmãos e dos pés já tinham sido feitas no dia anterior. Não lembrava mais a jovem colona queBruno fora buscar tão longe, indicada por Hans Lems, chefe do Partido Nazista deBlumenau, nem a negra que a viagem de trem improvisara. Tornara-se uma mulher afeitaao luxo. A essas coisas nos acostumamos muito rápido, ela pensou, olhando-se no espelhoda penteadeira.

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Dois.No primeiro dia em Porto Alegre, saíra na companhia de Herr Bruno. Seguindo pela rua daPraia, passaram em frente ao Grande Hotel, o preferido dos políticos. Ela estudoudemoradamente as janelas daquele prédio, imaginando quem estaria hospedado ali. A umdaqueles quartos seria levada em breve para tocar piano? Olhando para o alto, parada naesquina, sentiu um estremecimento. Não tinha medo, já se deitara em tantas camas, e comhomens velhos, nada seria totalmente inusitado. O prazer podia variar, não o contato entredois corpos, por diferente que fosse.

— A senhorita teria preferido este hotel? — Bruno quis saber.Hertha sorriu, e esse sorriso poderia significar desde malícia até ingenuidade, um sim e

um não, alegria ou enfado. Aprendera a viver em segredo; agora precisava esconder aindamais o que carregava na alma. Ninguém lhe dizia com quem ela dormiria. Na hora vocêsaberá, afirmara Bruno ao contratá-la. O pastor Hans Methner a chamara, dizendo que umenviado do cônsul alemão de Porto Alegre, Friedrich Ried, precisava falar com ela. Elaseguira até a casa do religioso, temendo alguma repreensão por suas liberdades amorosas; opastor, porém, não insinuara nada, deixando-a com Bruno.

— Viemos em busca da senhorita, que nos foi indicada como uma das mulheres maisbelas do país. E vejo ser verdade. Trata-se de um serviço pela causa alemã. Teremos umvisitante ilustre e é nosso desejo dar a ele a melhor companhia feminina que pudermos.

Bruno não tratava o assunto como algo pecaminoso ou imoral. Era uma transação. Falouque Hertha poderia seguir com ele como pianista, e isso a protegeria dos comentários locais.Revelou os valores que pretendiam pagar. Ela não fez perguntas. Percebeu na hora que tudoseria bastante discreto.

Ali no seu passeio para o reconhecimento de Porto Alegre pensou que, com certeza,acabaria no melhor quarto do Grande Hotel, sufocada pelo corpo flácido de um fauno. Ospolíticos velhos queriam mulheres novas, recompensa por uma vida dedicada ao país. Opovo tinha que pagar com a sua melhor rês. Ela seria a de hoje, depois de outras terem sidoofertadas. E viriam várias ainda. Cada quarto do Grande Hotel era um abatedouro.

Conversando sobre a beleza arquitetônica da cidade, com seu palácio, um paláciorepublicano, e com os inúmeros prédios que revelavam a grandiosidade do povo do RioGrande do Sul, prédios à altura de sua coragem, falou Bruno, eles alcançaram a praça daAlfândega, rumo às lojas. Vamos comprar o seu enxoval, disse seu acompanhante, como opai que prepara a filha para o casamento. Braços dados, andavam com o corpo ereto, numexercício quase marcial.

Ela entrou na Casa Herman tal qual uma senhora acostumada aos melhores produtos.

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Herr Bruno explicou que tipo de roupa buscavam. Hertha não precisava nem falar. O seucontratante se comunicava por ela, dizia o que pensava sobre a moda, que tipo de sapatoficava melhor. Fora encarregado de providenciar determinada modelo, a mais arianapossível, para causar boa impressão em quem em breve chegaria. Com certeza, receberainformes sobre o estilo de roupa, o formato dos cabelos, a natureza da maquiagem —escultor de uma estátua viva, era assim que ele se sentia. Como matéria dócil, Hertha sedeixava moldar, em silêncio e sorridente, passiva e lânguida.

Quando provou o primeiro vestido, percebeu as mãos da vendedora percorrendo a suacintura. Seus olhares se cruzaram, cálidos. Era bom um contato assim tão íntimo einesperado. Por um instante, imaginou que a mulher, uns dez anos mais velha, olheirasfundas de quem sofre as ansiedades do corpo, fosse tirá-la para dançar. Apertara a suacintura a pretexto de ajustar bem a peça, e, não vendo resistência, subira sorrateiramente asmãos até seus seios e arrumara o tecido ali.

— Este vestido intensifica a cor de seus olhos — disse a vendedora, fitando Hertha comferocidade.

Era um vestido azul.— Também precisamos de um vestido branco — Bruno falou, igno rando o entendimento

entre as duas.A vendedora saiu em busca de outro modelo. Hertha se virou para o espelho,

aproximando-se tanto dele que a sua respiração embaçou o vidro.Algumas horas depois, o ex-combatente da Grande Guerra conduzia Hertha até a Casa

Masson, na mesma rua da Praia, apresentando-lhe algumas joias. O interesse dela estavanum colar e num par de brincos de pérola, mas nem chegou a tocar nessas peças. Seuempresário — ela começara a se ver mesmo como uma artista — escolhia um anel e umcolar com pedras de diamante azuis, para que outros olhos, tão brilhantes quanto os dela,embora menores, surgissem em seu corpo. Ela apareceria toda de azul, vestido e joias, oucom o vestido branco e os discretos diamantes, imaginou.

Não fora consultada sobre as compras; emprestava seu corpo para que as vendedoras eHerr Bruno acrescentassem roupas, sapatos, chapéus, objetos. Terminada a visita às lojas,passaram pelo chalé da praça XV, sentaram-se em uma das mesas externas, tendo oMercado Municipal ao lado, e tomaram sorvete. Foi o único momento em que Bruno aconsultou naquela tarde:

— Qual o sabor de sorvete que a senhorita prefere?— Escolha o senhor — ela falou, fixando seus olhos no movimento da praça.

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Três.Na primeira noite em que dormiu no Majestic, após ter jantado com Herr Bruno, que aacompanhara até a porta do quarto sem manifestar nenhum interesse erótico, ferindo seuorgulho de fêmea irresistível, ela se sentiu completamente sozinha. Mais desamparada doque em qualquer outro momento de sua vida de órfã, de menina que não despertava acamaradagem das outras nem a amizade sincera dos rapazes e dos homens mais velhos.Todos se aproximavam para roubar uns instantes fugidios de prazer, e se voltavam —muitos nem a olhavam à luz do dia —, era para mais uma abordagem ligeira, respiraçãoofegante, uivos contidos, mãos com movimentos tensos. A sua beleza e a liberdade de dispordo seu corpo generosamente a condenaram a uma vida sem amizades. Era uma solidãoestranha a sua, repleta de perseguidores. Agora, um homem manifestava total desinteresse,alargando o deserto ao seu redor. Para se sentir um centro, precisava de alguém querendoentrar em seu corpo.

Ainda vestida na cama de casal, vendo as caixas com tudo que comprara naquele dia (oque era para fazê-la feliz), Hertha se reportava à sua cidade, onde os homens mais rudes nãose intimidavam diante de sua beleza e a seguiam pelas ruas, insinuando-se. Lá, era fácilarrumar uma companhia. Ali, temia sair do quarto, mesmo sabendo que só assim poderiasaciar a sede que a solidão aumentara.

Ao abrir a veneziana, olhou para o comprido pátio interno, que se comunicava com duasruas, e viu homens fumando na frente da porta de entrada. Eles olharam para cima, talvezestranhando aquela figura loira e aparentemente disponível. Ao se registrar, declarara-sepianista, e o recepcionista a estudou com um olhar incrédulo. Ela não pareceria umapianista? Pianistas não podiam ser mulheres sensuais? Suas mãos de dedos longos e ossosdeliciosamente salientes não eram próprias para o piano? Uma pianista não se hospedariasozinha num hotel de luxo? Toda mulher não acompanhada era sempre meretriz? Hertha sefez essas perguntas enquanto o funcionário conferia a sua ficha. Bruno estava ao lado,embora tivesse sido ela quem tomara a iniciativa de passar os dados para o registro. Naquelaprimeira noite na cidade, refletia que teria sido melhor declarar-se atriz. Talvez alguém dohotel informasse aos outros hóspedes de sua presença e ela recebesse a visita inesperada dealgum senhor.

Em casa, no quarto ao lado do de seu tio, dormia sozinha, sem poder passar a noite foranem acolher os amantes. Porém, isso não era tão triste, já que tinha uma cama de solteiro.Numa cama de casal, como agora, uma noite desacompanhada era um desperdício. Elafechou a veneziana, arrumou os cabelos, desamarrotou o vestido com as mãos, sentindocada saliência de seu corpo, e abriu a porta. Mal colocou o rosto para fora do quarto, viu um

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rapaz de terno escuro, sentado em uma cadeira no corredor, que não estava ali quandoentrara.

— Boa noite, Fräulein Hertha. Está precisando de algo?Ela sorriu, manifestando surpresa, e o rapaz se levantou para fazer uma mesura, como se

pedisse desculpa por constrangê-la.— Meu nome é Frederico, estou aqui para a sua segurança — ele explicou, aproximando-

se da porta com a intenção disfarçada de não deixá-la sair, obstruindo a passagem.Ela reparou na arma sob o paletó. Ergueu os olhos para o rosto de Frederico, agora bem

perto do seu, e viu um homem neutro, tal como Bruno. O que tirava desses homensqualquer interesse sexual por uma mulher bonita e carente? Foi a pergunta que se fez.

Com voz macia, fingidamente sonolenta, que poderia ser desmascarada pelo brilhoardente de seus olhos desejosos de prazer, Hertha mentiu:

— Tinha ouvido um barulho.— Desculpe-me se a incomodo me mexendo na cadeira.— Agora estou tranquila porque sei que o senhor passará a noite aqui.— Pode dormir sem medo.E ela fechou a porta, fazendo uma mesura com a cabeça. Ganhara a companhia masculina

pela qual tanto ansiava, ficaria a poucos metros dela, talvez até pudesse ouvir a suarespiração, só que não teria serventia alguma. A sua orfandade se fizera maior. Impossívelaceitar que um homem se acercasse dela destituído da mínima febre amorosa. Talvez elenão resistisse. Por isso deixou a porta somente encostada, esforçando-se para quepercebesse isso. Tirou a roupa de maneira ruidosa, as peças caindo no chão, e se deitoudescoberta.

Por meia hora, não percebeu o menor movimento no corredor. Era como se Fredericonão estivesse ali, e esse silêncio provava justamente que ele estava. Quando esqueceu ojovem tão perto e distante, ficou pensando em seu futuro encontro. Deveria ser com umhomem temido, visto que ninguém se interessava por ela. Tinha agora um guarda à portade seu quarto e roupas caras, mas tudo isso não era para ela. Hertha se viu como umpresente vivo. Depois de usada, talvez se transformasse em um problema. E sabia como seresolviam os problemas naquele mundo. O arrepio que nesse instante percorreu o seucorpo foi de pavor. Então puxou a colcha sobre si e fez de tudo para dormir.

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Quatro.A solidão daquela noite só cresceria nos dias seguintes. As saídas para as comprasaconteceram mais algumas vezes. Bruno aparecia pouco no hotel. Se explicava algo a ela, erasempre de forma incompleta.

— A apresentação musical de Fräulein acontecerá a qualquer momento.Já no dia seguinte à sua chegada, Hertha conhecera outro de seus guardas. Quando veio

seu café da manhã, em salvas de prata, ela viu que a cadeira desaparecera do corredor e umhomem estava em pé ao lado da porta. Após o café, a pretexto de deixar a bandeja no chão,do lado de fora do quarto, ela fixou seu olhar no novo protetor.

— Meu nome é Max, senhorita. Ficarei à disposição durante o dia.Embora com aspectos físicos distintos, Frederico e Max se confundiam. Ambos tinham o

rosto duro, o olhar vago e o corpo bem definido, de quem pratica esportes. Se havia umacoisa que Hertha conhecia eram os corpos masculinos. Mesmo sob roupa folgada podiaidentificar uma musculatura atlética. Max era esguio e forte. Jovem como Frederico,revelava renúncia em seus movimentos. Mais um indiferente gravitando ao seu redor.Estaria passando por alguma provação? Por um período de abstinência, em que poderia ter àdisposição homens atraentes porém sem atração por ela?

Max recolheu a bandeja deixada no chão, cego para o par de pernas meio descoberto e aoalcance de seus lábios. Depois a levou até um console que ficava no centro do corredor, comum jarro de flores naturais. Todos os dias aquelas flores seriam renovadas. Observar isso, amudança das flores, se tornaria uma de suas rotinas.

No final da tarde, apareceriam as mulheres que cuidavam de sua aparência. Ela foraorientada a fazer um almoço frugal, no restaurante do hotel, sob a mira de Max, que nãoentrava no salão, permanecendo a uma pequena distância. Logo Hertha apelidou, para usopróprio, os seus vigias de Sombra 1 e Sombra 2. E essa pequena brincadeira serviu para quese divertisse um pouco.

O almoço acabava com o garçom perguntando se queria algum prato diferente no diaseguinte. Sua resposta era que se fizesse o habitual, não tinha preferências. Recusavatambém a taça de vinho oferecida.

Após descansar no começo da tarde, era geralmente acordada pela camareira que vinhapreparar seu banho. Na primeira vez, tentou conversar com a moça, sem obter respostasanimadoras. Passou apenas a sorrir para ela. Enquanto a outra organizava o banheiro,despia-se de forma exibicionista; nem sua nudez dourada chamava a atenção ou constrangiaa funcionária.

O banho era demorado, não porque gostasse de água, e sim para preencher suas tardes,

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que terminavam com a chegada das duas outras mulheres, silenciosas e extremamentegentis. Uma delas cuidaria de seus cabelos, a outra da maquiagem. Ajudavam-na a vestir umdos modelos novos. Finda essa preparação, restava-lhe sentar-se na poltrona e esperarindefinidamente.

Os barulhos da rua cessavam e ela ainda permanecia de prontidão. Só podia tirar asroupas quando tivesse certeza de que não viria ninguém. Daí se deitava mesmo sem sono esem cansaço. Ao ouvir movimento no corredor, imaginava que talvez pudesse ser o seudesconhecido senhor. Alguns passos nem chegavam em seu quarto, localizado no meio doandar, outros se aproximavam de sua porta e continuavam. Não saía para ver quem era,tinha certeza de que Frederico se levantaria da cadeira e perguntaria se estava precisando dealguma coisa. Dali de seu posto, ele devia saber o momento exato em que ela tirava a roupae vestia a camisola. Talvez houvesse um relatório que ele entregava a Herr Bruno ou aalguém superior, registrando que, às 22h14, a pianista Hertha Sheiffer havia retirado o seuvestido preto, os sapatos de salto e abaixara lentamente a meia-calça. Sua calcinha erabranca e trazia rendas, mas ela não a trocara. Vestira uma camisola com mangas compridas,escovara o cabelo repetidamente, desfazendo o pen teado, fora até a cômoda, bebera um copode água da jarra que ficava lá, apagara a luz e se deitara. Não fora possível informar o queela pensara minutos antes de adormecer nem os seus sonhos. A limitação desse observadorera maior: não fora possível saber sequer se ela sonhara.

Sim, ela sonhava a mesma cena. Estava na casa de Onkel Karl, aparecia um homem e apedia em casamento. O velho Karl falava das qualidades da sobrinha, moça amável, com odefeito de dormir com todos os homens que a procuravam. Ela saía da sala chorando eamaldiçoava o tio. Como tinha coragem de afastar assim um pretendente? Por causa dele,não conseguia casamento. Em alguns de seus sonhos, Karl pedia que ela ficasse nua, abrisseas pernas e mostrasse o sexo, para provar que desde mocinha não era virgem. Em todasaquelas manhãs, Hertha acordava de bruços, a mão esquerda sob a boca e a direita entre aspernas, tapando o sexo.

Transcorridas as primeiras noites, não sabia exatamente quantos dias haviam se passado.Mais de uma semana, com certeza. Seus vestidos tiveram de ir para a lavanderia, para serempassados. Sua roupa íntima também fora levada. E Bruno a visitava cada vez menos. Emuma de suas aparições, ela perguntou:

— O que esperam de mim?Ele sorriu discretamente, fez uma pausa e disse, sem olhar para ela:— Que espere.E essas duas palavras significavam muitas coisas. Não devia fazer perguntas. Perguntar

era não ter paciência. Queriam que se preparasse para a apresentação. Todos aqueles diaseram de ensaio. Atriz que representava para o espelho de maneira infindável, quandosubisse ao palco seu número seria uma perfeição.

Nunca Hertha havia ficado, depois de adulta, tanto tempo sem homem.

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Para resignar-se, ela acompanhava, todos os dias, a troca das flores do vaso no corredor.Ainda estavam novas, firmes e cheirosas, e eram substituídas por outras.

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Cinco.Ela conhecia bem os jovens que a vigiavam. Vira muitos deles na Alemanha, na únicaviagem à terra de seus antepassados, em 1935. Eram fanáticos do Partido Nazista e secomportavam como se fossem os santos de uma religião — o nacionalismo ariano —,subordinando-se à pátria. Talvez por ter sido criada sem pai, ou pela excessiva doçura deOnkel Karl, discreto simpatizante do nazismo, ou por puro desejo de se sentir parte de algo,ela participara da Juventude Teuto-Brasileira, e como outros sonhara com uma Alemanhaque transpusesse o oceano e incorporasse as colônias. Nos encontros com aqueles jovens,aprendera a cultuar o país de seus pais: gedenke dass du ein Deutscher bist. Jamais se esquecerade que era uma alemã, e nas palestras aprendera a ter orgulho disso.

Aos quinze anos, fez o pedido tardio de admissão à Juventude, afirmando em umdocumento a sua ascendência alemã e um ano a menos de idade, mesmo tendo queprometer obediência a seus chefes e só dizer a verdade. Reuniam-se todas as semanas nasede do Partido Nazista, ao lado da Prefeitura, numa das pontas da rua XV de Novembro, eisso no começo não passava de uma desculpa para encontrar-se com rapazes e seguir rumoa algum lugar apropriado para namoro à beira do rio Itajaí, um barracão abandonado, a casade algum rapaz que morasse sozinho ou um terreno vazio. Desde o início, suas atividadesamorosas aconteciam em contato com a terra, com as plantas e com a umidade, quasesempre a céu aberto. Após as primeiras reuniões, ela foi assimilando o que ouvia, que aAlemanha nazista era a civilização mais avançada do mundo e que esse progresso daindústria estava diretamente relacionado à força de uma raça, que vivíamos aqui no Brasilem desacerto com o tempo de lá, mas que tanto nos trópicos quanto na Alemanha ancestralo sangue era o mesmo, o sangue que nos unia a uma pátria muito além de suas fronteiras.

Aquelas moças ao seu redor e também os rapazes com quem saía eram a família que elanão tinha tido. Nunca chegou a ser fanática. Quando se encontrava entre fanáticos, não sesentia estranha e sim igual; agia e pensava como todos e até defendia ideias que, ao sedistanciar daquele ambiente, não tinham grande valor para ela.

Estava dentro e fora do grupo dos jovens nazistas. Assim havia sido sempre em sua vida.Nunca conseguia uma condição una. No entanto, era intensa a ponto de parecer verdadeira.Por isso, e também por sua beleza, fora escolhida como uma das jovens que conheceriam aJuventude Hitlerista a convite do governo alemão. O grupo seguiu de trem até Santos, enessa viagem Hertha ficara com um passageiro, aproveitando os poucos minutos de paradanas estações para se encontrarem rapidamente em algum canto protegido.

Em Santos, não pôde se despedir do novo amigo. Os jovens nazistas tomaram o naviorumo ao destino com o qual seus pais sempre sonharam. Ela subiu a bordo pensando na

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emoção que Erica e Werner sentiriam se estivessem ali com a filha. Só o fato de embarcar alevava automaticamente à pátria. Entretanto, a pátria dela não era a de seus colegas, e simum lugar onde poderia encontrar-se com as paisagens vistas por seus pais mortos.

Ficou em um camarote pequeno com mais três moças que só conversavam sobrecasamentos arianos, filhos belos e saudáveis, muitos filhos, pois precisavam de mais alemãespara melhorar o mundo. Quem sabe encontrariam homens, de preferência soldados, que seapaixonassem por elas. Voltariam casadas e teriam meia dúzia de rebentos, para ajudar naexpansão da Alemanha. O pastor e os professores sempre estimulavam que parissemmuitos filhos, filhos respeitadores de Deus e do Führer, lembrando que era missão patrióticaaumentar a prole, a prole limpa de sangue estranho. Nesse caso, nada melhor do que umcasamento na Alemanha.

Viajavam como um exército. As moças de camisa branca, gravata masculina, saiasmarrons compridas e de cintura alta, mostrando apenas as meias brancas e os sapatospretos. Os rapazes com calças curtas, camisas de mangas dobradas, uma gravata, tudo da cormarrom, e meias que subiam até os joelhos. Moviam-se em grupo, reunindo-se para asrefeições, para a ginástica no convés, para o ensaio dos hinos nazistas e as aulas teóricassobre a nova Alemanha, que ocorriam em um salão amplo, com a suástica imensaestampada na parede principal. O palestrante era o doutor Karl Neubert, de Porto Alegre,que usava o microfone para criar o clima dos comícios a que assistiriam ao chegar. Duranteo dia, Hertha estava ocupada em ser uma jovem nazista, acompanhando as lições do líder,que não se cansava de proclamar a grandeza da pátria-mãe, que não podia ser traída poraqueles que viviam longe. Todas as vezes que Hertha ouvia essa expressão, lembrava-se damãe, a sua verdadeira pátria perdida.

Quando suas companheiras de quarto dormiam, exaustas das atividades do dia, depois deum jantar farto, ela vestia roupas comuns, saindo furtivamente para a área de trabalho donavio. Um marinheiro arrumara, numa região alta e protegida, um esconderijo amoroso. Elelevava cobertor e uma garrafa de vinho conseguida clandestinamente na adega dorestaurante. Deitados sob a luz das estrelas, bebiam, alimentando-se um do outro. Algumashoras antes do amanhecer, um vulto ébrio se aproximava da cabine das jovens brasileiras.Na sua terceira escapada, uma das colegas de quarto, Ethel, acordou. Enquanto a amiga sedeitava, perguntou com voz abafada:

— O que você esteve fazendo?Ethel esperava uma desculpa que acobertasse o verdadeiro motivo do passeio noturno.— Estava tentando aumentar a população alemã — respondeu Hertha, sem o menor

constrangimento.Ethel ficou confusa, sem saber se isso era mesmo verdade ou apenas uma zombaria.— Com algum de nossos companheiros? — Ethel tentou um tom natural.— Com um marinheiro.— Mas a tripulação é toda de brasileiros!

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E ela teve certeza de que Hertha só podia estar brincando, pois estavam cansadas deouvir as exortações sobre a pureza da raça e a depreciação dos nacionais, esses macacosindolentes.

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Seis.A viagem de navio foi cansativa, pois Hertha vivia em dois turnos. Quando chegaram ao caisdo porto de Hamburgo, ela estava esgotada. O doutor Neubert os apresentava à comitiva daJuventude Hitlerista como fanáticos brasileiros, irmãos de raça, sangue e ideais. Depois dolongo discurso, todos os cinquenta convidados cantaram o hino da Juventude Hitlerista:

Avante! Avante!Entoam as trombetas reluzentesAvante! Avante!A juventude perigo não conhece.Alemanha, tu hás de ser só brilhoE queremos que sejas nosso abrigo.(…)Führer, a ti pertencemos,Em ti temos um companheiro.

Enquanto eles cantavam, os anfitriões admiravam a beleza daqueles jovens. Continuavamsendo alemães conquanto nascidos em outras paragens. Feitas as apresentações individuais,e após uma conversa formal, o grupo foi levado a Krankenhaus zu Barmbek, um hospital deisolamento, como ficariam sabendo. No começo, não entenderam exatamente o que faziamali. O doutor Neubert foi conversar com os diretores e voltou um tanto constrangido.

— Meus jovens soldados, ficaremos aqui durante três dias por motivos de saúde.— Ninguém está doente — disse um dos meninos, timidamente.Ele teve que explicar.— Os alemães acham que nós, brasileiros…— Somos alemães — Ethel o cortou, obrigando-o a reformular a frase.— … que nós que moramos no Brasil podemos ter doenças que se espalhariam por aqui.— Que tipo de doença? — ainda era Ethel, a mais despachada do grupo.— Venéreas.E todos se sentiram envergonhados diante dessa palavra. Se fossem pessoas vividas, no

entanto eram jovens, algumas ainda crianças. Como podiam pensar isso deles?Sem nenhuma reação visível, Hertha ficou preocupada. Já havia dormido com inúmeros

homens e alguns tinham vida sexual livre, como o recente marinheiro. Sabia o que fazerpara não engravidar, contudo estava, sim, sujeita a uma doença.

No hospital, como as demais moças, foi examinada, tomou remédios que as enfermeiras

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traziam, apenas para a limpeza do sangue, e no final da quarentena soube que seu corpopermanecia saudável. Em breve poderiam entrar na Alemanha.

Nos dois dias seguintes, conheceriam a cidade.Hertha andava com o grupo, vendo praças e prédios, visitando cafés. Sempre que

possível, saía sozinha, à procura de lugares menos luminosos. Em uma de suas excursõesindependentes, acabou nas imediações da Herbertstrasse, em St. Pauli, a zona que atendiaprincipalmente os marinheiros, onde viu grupos de esfarrapados num beco, prostitutasnuma região mais afastada e crianças descalças, vestindo trapos. Nada tão diferente doBrasil, ela pensou, embora as casas ali tivessem sido recentemente pintadas como que paramostrar a melhoria de vida dos alemães. Súbito se deparou com um senhor bem-arrumado,provavelmente à procura de sexo. Ela vestia uma de suas roupas de passeio.

— É difícil ver uma alemã tão bonita como a senhorita — o homem lhe disse,galantemente, quando ela o olhou nos olhos, sem temor ou embaraço.

Talvez se referisse ao fato de ser difícil encontrar ali, naquele lugar de pobres e mulheresperdidas, alguém jovem.

— Não sou da Alemanha — ela respondeu.— Isso é uma falta de sorte.Nesse momento, um grupo de nazistas, em uma pequena formação militar, se aproximou

deles e o homem seguiu adiante. Eles fizeram o gesto de saudação, gritando Heil Hitler;Hertha retribuiu meio constrangida. Voltou ao alojamento e ficou pensando que sempre sevira como alemã; bastaram aqueles poucos dias de viagem para começar a ser brasileira.

Na altura em que todos já estavam cansados dessa parada longa em Hamburgo, foramautorizados a ir para Berlim. Lá tiveram nova recepção, agora junto com outros gruposrecém-chegados, em um refeitório imenso. Na parede principal, as bandeiras nazistas e umafoto gigante de Hitler. Almoçaram com representantes de várias partes do mundo, todosalemães, só que não da Alemanha, falando uma única língua, compassando os corações deacordo com as palavras dos discursos tão sonoramente difundidos. Hertha voltou a se sentiruma única raça.

Logo após o almoço, tomaram outro trem rumo à concentração mundial da JuventudeHitlerista, em Kuhlmühle. Até ali, eles não tinham noção do que era essa força. Aochegarem ao acampamento, com suas barracas brancas lembrando as torres das igrejasgóticas, encontraram milhares de jovens reunidos para as práticas esportivas e militares.

Uma companhia da tropa de assalto apareceu, com suas motocicletas e tanques, fazendodemonstração de manobras de guerra, nas quais todos tomaram parte. Aquilo os irmanava,pertenciam à grande Alemanha. Hertha foi mais nazista nesse acampamento do que tinhasido até então, e não sabia se pelo alívio de não ter contraído uma doença no navio ou pelaalegria juvenil de fazer parte de um exército, nem se lembrou de sexo.

No outro dia, voltaram a Berlim em caminhões escoltados por motocicletas, como seestivessem indo para a frente de batalha. Embora mera encenação, essa experiência de

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combate ficaria na memória daqueles estrangeiros. Tinham defendido a Alemanha, mesmoque ela ainda não estivesse em guerra.

Para reforçar o clima de luta, eles foram conduzidos ao Túmulo do SoldadoDesconhecido. Uma comitiva de moças, Hertha entre elas, com suas blusas brancas, levou,em passo marcial, uma coroa de flores, depositando-a aos pés do monumento. Estavam alipara homenagear os mortos da batalha de que participaram imaginariamente. Era o recenteexército reconhecendo-se parte de algo maior, reafirmando inconscientemente ocompromisso de morrer pela Alemanha. E a Alemanha era o Führer.

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Sete.Lembrou-se da Alemanha nesses dias de reclusão. Estava novamente às voltas com os seusqueridos nazistas. Era impossível ser uma alemã jovem e bela e se afastar dessascompanhias, morasse em qualquer parte do mundo. Só entendeu que esse tempo no hotelera uma quarentena igual à do hospital de isolamento quando Bruno apareceu após uns diasde ausência. Hertha se arrumara para o encontro que nunca acontecia. Uma leve securatomou conta de sua boca ao ouvir a maçaneta do quarto se mover; ela se sentara napoltrona, olhando para a janela aberta, e não se virou em direção à porta. Identificou passosde mais de um homem. Teria chegado o visitante? Uma mulher sedutora, nessa situação,não faz gestos bruscos de reconhecimento nem toma a dianteira.

— Fräulein Hertha — Bruno disse suavemente.Ela se voltou para a entrada. Em pé, parados, estavam Bruno e um homem de terno de

linho e chapéu nas mãos tensas. Não se levantou. Levantar-se seria revelar subserviência.Entre a menina que fora à Alemanha e a mulher de hoje não havia somente uma distânciade três anos, e sim todo um aprendizado. Ela disse, no mesmo tom de voz de Bruno, queentrassem.

A porta foi encostada. Hertha não usava chaves. Não precisava delas, pois seus guardasestavam sempre a postos e não a incomodavam. Só Herr Bruno podia visitá-la. Agora que elese encontrava com o homem esperado, iria apresentá-lo de forma direta, deixando-o ali,pensou ela. Era só desempenhar o seu papel, permitindo que a comandasse em tudo. Osdois senhores se moveram lentamente, ela voltara a olhar para a janela e logo percebeu umapresença às suas costas. Levantou-se ainda sem fitá-los com maior atenção.

— Gosto de olhar o movimento da rua da Praia — ela disse de forma displicente.Não estava mais suportando o aprisionamento no hotel. Findo o período das compras, ela

quase não saía. Hertha se virou, percebendo que os visitantes se posicionaram maisafastados do que imaginara. Deu dois passos até eles, tirando a luva e estendendo-lhes amão. Bruno a beijou primeiro, dizendo que estava ali com o doutor Otto Sommer. E estebeijou sua mão também.

— De fato, a senhorita é extremamente bela.Ela se virou em direção ao sofá que ficava no canto do cômodo. Bruno, porém, não se

mexeu.— O doutor Otto está aqui profissionalmente.Os seus movimentos sedutores haviam sido em vão.— Sim?— Veio examiná-la.

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— Vou me despir — ela disse, com naturalidade.— Sairemos.— Não, não é preciso — e começou a tirar o vestido.Tinha uma enorme agilidade para despir-se, mesmo com roupas cheias de botões e laços.

Seus ombros apareceram, em seguida as costas e a calcinha rendada. O vestido escorregaraaté o chão, sem resistência, fazendo-se um amontoado de tecido mole, uma pele totalmentedespregada do corpo. Ela se deitou na cama enquanto Bruno fechava a janela. O doutor Ottoabriu sua maleta, uma maleta que ela não havia notado. Logo estavam a sós. Bruno saíra emsilêncio. Otto acendeu o abajur ao lado da cama. Ajoelhou-se diante de Hertha, pedindo queela tirasse a última peça e afastasse as pernas. Colocou as luvas e começou o exame. Mexeuna maleta, retirando uma espátula, e coletou amostras do muco vaginal.

Minutos depois, concluiu essa fase.— A senhorita pode se vestir. Está tudo bem rosado, com aspecto saudável. Só preciso

coletar um pouco de urina.Entregou-lhe um vidrinho, levantando-se e tirando as luvas para arrumar a maleta.

Paciente involuntária, Hertha se ergueu com calma, sem tentar esconder a nudez, e foi aobanheiro. O médico acompanhou como homem aquele corpo magro, com pernas compridase uma bunda saliente, que se movia em erótica lentidão pelo quarto. Na volta, vestia umacamisola. Foi até a porta, obrigando o médico a segui-la, e entregou o frasco. Ela se despediucom uma mesura, apagou as luzes e foi direto para a cama.

Deitada antes do horário, ainda no final da tarde, tão somente pelo fato de ter colocado acamisola, Hertha não dormiu. Via-se na Alemanha, três anos antes, inspecionada por ummédico que temia a contaminação do país. Pensou um pouco no medo que sentira de umadoença vergonhosa, um medo que agora não tinha, e repassou os vários momentos daviagem. O encontro com o ministro da Educação e Propaganda, Joseph Goebbels, foiinicialmente decepcionante. Esperavam um alemão de porte atlético, de proporções físicas eestéticas condizentes com o novo país. Era assim que devia ser o responsável pelapropaganda de uma nação tão heroica. Conheciam a sua voz potente pelo rádio eencontraram um homenzinho de face e corpo chupados. Descobririam que no próprio Reichele era tratado como um minigermano. Essa frustração, no entanto, revelou-se passageira,pois ao se dirigir ao grupo ressurgiu o grande homem, com dimensões míticas. E era assimque devia ser um ministro da Propaganda — o discurso maior que o homem. Ele destacoutodas as mudanças do país, já não havia pobreza, a indústria mais avançada do mundoempregava o cidadão disposto a trabalhar, tudo fruto das ações do nacional-socialismo.Hertha provavelmente não pensara naquela ocasião, fascinada pela grandeza de Berlim epelas propagandas nazistas, o que agora lhe vinha como uma revelação: unicamente amulher nova, bela e saudável contava para os nazistas. As beldades eram a melhorpropaganda da Nova Alemanha. A mulher estava no mesmo nível dos aviões modernos, doscarros de passeio luxuosos e dos tanques terríveis. E Goebbels, como os demais políticos,

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gostava dos bons carros, de roupas e de palácios luxuosos. Ele não tirou os olhos de Hertha,como se discursasse para ela.

Quando o doutor Otto a examinou, estava atestando a grandeza de uma raça. Ela era aNova Alemanha também. Entendeu ali o sentido de uma das práticas que mais a fascinavamnos encontros da Juventude Teuto-Brasileira. E que lhe dera a desenvoltura diante doshomens.

No acampamento que fizeram, em 1937, no município de Pindorama, no Rio Grande doSul, Hertha encontrou mais liberdade do que no acampamento na Alemanha, nos Alpes,para onde seguiram ao deixarem Berlim. Lá, prevalecia o dever, as diversas atividadesfísicas, sempre rigorosas, como se fossem atletas treinando para as Olimpíadas, que seriamcom certeza a guerra. O corpo, só valorizavam o corpo. Um corpo em competição comoutros, em competição consigo próprio. Na guerra, somos a máquina que vai ser destruídaou avariada. Hertha era admirada pelas moças ao vestir as malhas para os treinos. Emverdade, o que admiravam nela, mais do que a beleza, era o funcionamento de suasengrenagens.

Chegando ao acampamento brasileiro, as mulheres sob o comando de Frau Nebel, elacom dezessete anos e mais exuberante do que na excursão pela Alemanha, Hertha Sheifferviu toda a diferença. Havia o mesmo objetivo de formar um exército pronto para lutar pelapátria-mãe, e os instrutores, preparados por um curso de formação nazista, repetiam osensinamentos sobre a grandiosidade dos arianos, a história germânica, o valor da mulher,que traz em seu útero o país de amanhã, e também a importância de manter-se sempresaudável, pois elas eram a Nação. As atividades atléticas se misturavam com as instruções decampanha e com as horas dedicadas aos hinos — ao cantar em voz alta, num grande coro,ninguém se sente à parte; a música faz da multidão um todo.

O melhor momento do dia era o banho de sol. Todas tiravam a roupa, algumas meninasainda sem pelos, e ficavam deitadas nas pedras à margem de um riacho, onde iriam sebanhar. Aquela visão de corpos brancos era uma forma de reforçar a raça, vejam comosomos, a alvura de nossa pele, é assim que devem continuar nossos filhos, não deixemosque isso se perca. Hertha tinha os pelos de um dourado que reluzia ao sol, como astrombetas de que falava o Hino da Juventude Hitlerista.

Não podiam sair dali. Os rapazes acampavam a alguns quilômetros. Os dois grupos seencontravam separados por caminhos montanhosos. Isso faria do isolamento algo quasedesesperador para Hertha, não fosse a cena matinal de nudez. Nesse momento, faziam aguerra de barro, agarrando-se umas às outras no meio do lamaçal, Hertha se deixando tocare tocando aqueles corpos. Seios, pernas, bundas e, com sorte, uma carícia enlameada nosexo, que não tinha mais a cor de trigo maduro, mas a da terra escura. Uma terra que nãoera a da pátria-mãe.

O melhor do acampamento, no entanto, acontecia à noite. Frau Nebel comandava asdanças, as Elfentanz, à luz da fogueira central. Todas as meninas saíam nuas de suas

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barracas, e o que eram corpos leitosos durante o dia ganhava a cor quente do fogo, numjogo de sombras, corpos anônimos executando movimentos coletivos que começavammarciais e terminavam em uma bagunça juvenil. O corpo, ali, funcionando como máquinade prazer, num culto da beleza da fêmea que se exibe em estado de alegria para oacasalamento.

Por essas experiências de nudismo e por seus encontros com tantos homens, Herthanunca se intimidaria ao ficar nua diante de quem quer que fosse.

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Oito.Nos três dias seguintes à visita de Otto Sommer, o ritual continuou inalterado. Seria o tempode obter os resultados dos exames? Ou uma forma de provar sua resistência? A cabeleireirachegava no horário e começava a cuidar do penteado, que pouco variava. O volume dos seuscabelos poderia se alterar dependendo do dia, essa era a única mudança. Nos momentos demaior lubricidade eles ficavam pesados. O corpo calmo, eles ganhavam uma leveza outonal.Depois experimentava um de seus vestidos; já não gostava tanto deles por não servirempara a sedução. Nem se olhava no espelho. Lia revistas e jornais que os guardas traziam eouvia longamente o rádio Philips que Herr Bruno mandara instalar. Arrumava suas coisas noarmário, esticando a colcha da cama para que tudo parecesse em ordem no caso de umavisita surpresa. Em sua cidade, a vida se enchia de tarefas. Cuidava da casa e fazia pequenostrabalhos, resolvendo problemas da loja de ferragens de Onkel Karl. Não trabalhava nobalcão, para isso existiam os empregados, embora ajudasse na contabilidade. Se faltava o quefazer, pegava o carro do tio e seguia para algum lugar distante na zona rural, parando paracontemplar campos, árvores e construções. Sempre fora mulher livre, acostumada à rua, àsviagens, a ocupações que a afastavam do destino doméstico.

E agora se encontrava reduzida aos movimentos de uma presidiária, sem poder irsozinha ao restaurante do hotel, vigiada até no sono. Se falasse alto, dormindo, o guardaentraria em seu quarto para ver o que havia. Podendo voltar no tempo, não teriaconcordado com a viagem a Porto Alegre e com esse serviço que no começo lhe parecera tãoencantador. Sabia-se feita para o sexo, por isso aceitara o convite quase de imediato,condicionando-o formalmente à aprovação do tio, uma aprovação mais ou menos certa. Odinheiro também contara, sem ter sido determinante. Estava ali mais pela aventura. Acuriosidade é que move uma pessoa dedicada ao prazer. Passar pelo maior número dehomens para conquistar um conhecimento do mundo.

Nos últimos dez dias, ela não conhecera intimamente ninguém. O único episódio comalgum erotismo fora com o doutor Otto, algo controlado de ambos os lados: ela querendomanter-se acima de seu desejo; ele lutando para tratá-la como mera paciente. Por isso, aspequenas faíscas não haviam sido suficientes para incendiar nada entre eles. Naquela tarde,ao se deitar solitariamente, Hertha tentou se entusiasmar, recordando a mão que tocara suavagina. Não conseguiu. O exame a constrangera.

Não se perguntava em que dia aconteceria alguma coisa, mas até quando ficaria semsexo. Num pequeno rompante, depois de ter sonhado com a sua cidade, em uma noite emque dormira mal, mexendo-se sem parar, foi de camisola até o corredor. Ainda estavaescuro, embora já se ouvissem os barulhos da manhã. Um cheiro de café e pão se insinuava

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por todo o hotel. Ela tomava café cedo porque esse era um dos seus poucos prazeres.Evitava, no entanto, surpreender os funcionários arrumando o salão. Nesse momento,ouvia-os caminhando pelos andares, escutava pedaços de diálogos, um riso meio perdido.Era assim a sua vida nesses dias, uma sombra entre fantasmas.

Ao abrir abruptamente a porta dupla, como que demonstrando o desejo de que seuquarto se comunicasse com o resto da cidade, e sair com a roupa de dormir, deparou-se coma cadeira vazia. Max, o Sombra 2, não estava ali. Devia ser o horário da troca de turno. Aoolhar para o seu lado direito, o do console, viu-o com a camareira, trocando as flores. Pelaprimeira vez, rosas vermelhas.

— São bonitas, não? — falou a empregada, olhando as rosas, dispostas em leque abertono vaso de porcelana com motivos orientais.

Era como se ela não tivesse surgido ali como louca, em uma aparição espalhafatosa.Nenhuma surpresa em Max nem na camareira, que deviam ter previsto essa explosão aqualquer momento. Estavam mais preocupados com as rosas do que com ela.

— Chegaram do florista agora de manhã — Max informou.O que ela diria diante desses comentários banais? Percebeu-se descalça, os dedos

compridos descobertos. As pernas desprotegidas pela camisola curta. Seus cabelos comcerteza se apresentavam eriçados, como os pelos de uma gata assustada. Tão belas aquelasrosas matinais e ela ainda noturna. Sem dizer nada, recolheu-se ao quarto e fechou as duasportas, puxando-as cuidadosamente.

Entendeu o sentido das rosas ao ver Bruno com um terno elegante, de riscas de giz,chegando no final da tarde com um vestido novo, diferente dos anteriores. Havia chegado omomento? Nos jornais, que ela lia com curiosidade, não se fazia referência a personalidadesvisitando Porto Alegre. Todas as manhãs ela buscava um nome, um sinal, conformando-secom não saber nada sobre a identidade de seu amante.

O vestido que acabara de receber era bem mais comportado do que os anteriores. Dariaseriedade a seu corpo. As suas auxiliares chegaram, e Herr Bruno não saiu do quartoenquanto ela se preparava. Só se virou para a janela no instante em que Hertha começou ase despir e depois a vestir, com a ajuda das mulheres, o novo modelo. Ele não comentaranada. Não denunciara o encontro nem mesmo com um gesto. Ela, porém, sabia. As rosasvermelhas, o vestido, a elegância de Bruno, os cuidados excessivos da cabeleireira e damaquiadora, o novo penteado.

Até ali ela estivera se acostumando a roupas chiques. Como no teatro, ela ensaiara para aestreia. Ao ficar pelo quarto com aqueles trajes, com os sapatos de salto alto, ao se ver tantasvezes no espelho maquiada e bem penteada, a ex-menina criada na colônia ganharafamiliaridade com os novos hábitos. E talvez tivesse ficado isolada dos homens não somentepara manter a limpeza de seu corpo; também para que a noite de amor que se preparavafosse intensa, para que ela pudesse saciar-se enquanto saciava o parceiro, para não ser umaencenação frustrante. Tudo isso eram suposições, não podia ter certeza sobre o encontro.

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Seria realmente hoje? Ou tudo não passava de mais um alarme falso? Apesar das dúvidas,ela se animou, movendo-se com prazer pelo quarto, um prazer que só tinha experimentadonos primeiros dias no hotel, quando se encantava com os presentes, com o toque frio dostecidos caros que cobriam seu corpo. Colocou o conjunto de diamantes, subiu nos sapatostambém novos e ficou se contemplando no espelho. Ninguém diria que ela fora criada nointerior, que participara de acampamentos. Era a expressão mais bem-acabada de umamulher de sociedade.

As ajudantes partiram depois de organizarem tudo. Bruno se aproximou, dando-lhe obraço. Anoitecia. Saíram do quarto; no corredor, não havia sinal de Frederico nem de Max.Acabara o tempo de cativeiro? Como seria sua vida daqui para a frente? Ela não tinha amenor noção do que estava para começar. E isso não a alarmava. Queria que alguma coisaacontecesse para poder deixar aquele limbo.

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Nove.O carro, de um preto reluzente, os esperava no pátio interno do hotel Majestic. Bruno aajudou a entrar e depois se sentou a seu lado.

— Vamos dar uma volta pela cidade.Ainda poderia ser mais uma preparação, agora para a vida social. Como se comportar à

noite. Talvez fossem a um restaurante ou a alguma festa. Seu acompanhante estava bem-vestido. O carro arrancou lentamente. O barulho do motor ficou mais denso em seguida,indicando que estavam subindo uma ladeira. Passaram em frente ao Teatro São Pedro, semapresentação nenhuma. Viu apenas a entrada iluminada. O carro desceu rumo ao Mercado,e ela identificou a porta principal da Livraria do Globo, também fechada. À noite, PortoAlegre parecia mais europeia do que de dia, e Hertha ficou olhando sonhadoramente parafora, sem se preocupar para onde estavam indo. Em certo ponto, percebeu que davam voltasnas proximidades do Centro. Encontrou mais de uma vez a lua refletida nas águas doGuaíba, algumas embarcações iluminadas, o odor de peixe. Herr Bruno falava de sua vindapara o Brasil, anos atrás, para trabalhar.

— Hoje eu não teria deixado a Alemanha. Como estou aqui, tento ser útil.Em todo esse período, era a única conversa livre que eles estavam mantendo, uma

conversa com grande espontaneidade, que ia da família em Munique até o trabalho nacontabilidade da granja, os lucros da empresa, o que dizia seu chefe, as oportunidades entreos colonos. As luzes convocavam Hertha para a cidade, para o labirinto que o carro percorrianuma velocidade suave. A conversa de Bruno a chamava para o interior do veículo. Entreum e outro ponto, a sua atenção foi se dispersando e ela sentiu uma pequena vertigem. Nãohavia nenhuma claridade além daqueles dois fachos produzidos pelos faróis, mas elapercebeu que um homem abria o portão que dava para um jardim de vegetação alta e densa.Na mesma hora em que entraram, o motorista desligou as luzes e seu acompanhanteemudeceu. Para onde estava sendo levada? Ninguém iria vesti-la tão luxuosamente parapraticar alguma violência, pensou num momento de medo.

O carro então parou e dois vultos apareceram ao lado da porta.— Daqui para a frente não posso ir — comunicou Bruno.— Obrigada — Hertha disse, sorrindo.— Toque a melhor música que você puder.— Vai depender do piano — ela respondeu se levantando.Notou que os vultos estavam uniformizados. Não lhe deram a mão para sair do carro.

Caminharam a seu lado sem dizer nada. Hertha se virou para o veículo que ficara a algunsmetros e o distinguiu como um bloco mais escuro dentro da escuridão. Os sapatos

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produziam um barulho de quando se pisa em pedras pequenas. As muitas árvores naquelepátio não permitiam que a lua iluminasse o seu caminho. Onde estaria? Em uma chácaranas imediações do Centro? Em algum quartel? Uma porta com uma fechadura enferrujadase abriu, despertando um atrito de aço envelhecido, e ela levou um susto, desequilibrando-see quase torcendo o pé. Será que o couro do sapato teria se estragado? Foi o que pensou apósse recompor; foi o que pensou para se recompor. Sua mente continuava fazendo conjecturassinistras. Se a porta era assim tão enferrujada, não estava indo para um salão, para umacasa. Aquele seria um lugar pouco frequentado, ermo. Por que a enfeitariam para matá-laem um depósito abandonado? Tinha sido contratada na presença de seu tio. Não, nãopoderiam fazer nada. Sim, poderiam, refletiu, era só criar um enredo: saiu sozinha à noite efoi perseguida por marginais, que abusaram dela e se livraram do corpo. Quantas históriasiguais a essa tinha ouvido? Talvez agora estivesse dentro de uma delas. Não mostraria medo.

Em menina, atormentada por sonhos horríveis, queria fazer como todas as crianças comfamília: levantar-se, ir até o quarto dos pais e pedir um lugar na cama; ou apenas chamar amãe, que viria a seu quarto, iluminando-o. Mas seus pais estavam mortos, e era criada porum tio, homem bondoso porém refratário ao mundo. Então, ela ficava em silêncio, olhosbem abertos na escuridão de seu quarto, e as coisas aos poucos iam ganhando espessura.Logo enxergava tudo, mesmo sem luz. Bastava não parar de olhar. Já adulta, sem medo dastrevas, acordava à noite para treinar essa forma de desvendar o quarto. A luz vinha todadela.

— Cuidado com o degrau — disse um dos soldados.Uma luz fraca surgiu longe, estavam na boca de um túnel. Sentia o cheiro de bolor, de

coisas que não respiram, que não recebem os raios de luz. O que iria fazer ali? Estendeu amão direita e tocou numa parede que não vertia água, embora apresentasse uma friezaúmida. Entrava nos subterrâneos da cidade, empurrada para uma cova.

— A senhorita siga sempre em frente.E no momento em que essa frase foi dita, a porta se fechou às suas costas, com um

barulho mais intenso, porque agora ela estava no interior daquela garganta mal iluminada.Num ato de coragem, declarou em voz alta:

— Assim que chegar àquela lâmpada, vou ver se estraguei o meu sapato.

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Dez.Antes de voltar a seus postos, os soldados pararam um instante, atentos a algo no túnel. Umolhou para o outro.

— Parece que ela falou alguma coisa.— Ouvi a palavra sapato.Bruno estava do lado de fora do carro, fumando. Os dois soldados também gostariam de

fumar, se não fosse proibido. Eles se aproximaram.— Melhor o senhor apagar o cigarro — um deles disse.Bruno tragou longamente, avivando a brasa, e depois atirou o cigarro recém-aceso no

chão, amassando-o com o bico do sapato contra as pedras.— Não tem como ela voltar por esta entrada?— Colocamos trava e cadeado.— Poderá ficar parada ali.— Vai ter medo de que abramos a porta e a encontremos.O motorista acendeu os faróis do carro, sem ligar o motor, e as bases da construção se

revelaram. Estavam no jardim de um casarão do século XIX. A entrada do túnel era uma dasvárias portas maciças que levavam aos porões. Bruno mesmo não saberia dizer em qualdelas Hertha estava. Como os faróis projetavam luz em toda a extensão da parede, talvez láde dentro ela visse alguma luminosidade se olhasse na direção da porta.

— Quanto tempo até chegar lá? — Bruno perguntou.— Se for direto, uns vinte minutos.— Vamos apagar a primeira lâmpada agora. E acender a outra. Terá que ir adiante —

informou o outro soldado, que foi até um poste próximo ao carro e mexeu nosinterruptores. — Pronto.

O motor do carro foi ligado. Bruno, que viera no banco de trás, tomou o lugar ao lado dochofer e o Ford fez a volta no pátio, desviando das árvores. Não precisou dizer para ondedeviam ir. Em poucos minutos, paravam na frente do palácio do governo. Dois guardasabriram o pesado portão de ferro e o carro entrou, estacionando antes do segundo portão,que dava acesso ao pátio da residência do presidente do estado. Havia movimentação desoldados. Ele desceu do automóvel e subiu rapidamente os degraus da ala direita do prédio,indo até a escada no final do corredor e dali à sua sala no subsolo. Dois homens da Gestapoacompanhavam programas em um rádio Telefunken Super Ocean.

— Nenhuma notícia especial — anunciou um deles, antes que ele perguntasse algo.Bruno tirou o paletó, acendeu um cigarro e se sentou diante de sua mesa.Um funcionário trouxe um material datilografado. Ouvia-se uma máquina de escrever ao

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fundo. Leu aquela folha enquanto o outro, com seu uniforme militar, esperava em pé, a seulado.

— É isso, podem fazer cópias no mimeógrafo para amanhã cedo.Todo o subsolo do palácio seria tomado pelo cheiro de álcool e pelo barulho do

mimeógrafo durante aquela noite. Não havia nenhum inconveniente, pois ninguém alidescansaria nas próximas 48 horas.

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Onze.Ao se aproximar, a lâmpada se apagou. Por uns segundos, Hertha mergulhou na escuridãototal; logo, outra lâmpada, bem mais longe, foi acesa e ela continuou a explorar aquelessubterrâneos.

As paredes de tijolos, com formas arredondadas, tinham uns dois metros de altura, o quefazia sua cabeça quase tocar o teto. A largura, no meio, não passava de um metro. No chão,espaço apenas para os pés de uma pessoa. Era provavelmente um túnel que servia comorota de fuga. Um exército poderia passar por ali, desde que em fila indiana. Não havia nadaobstruindo, indicando que era usado. O cheiro de bolor se misturava ao dos tijolos, pois seurosto estava muito próximo da parede e ela podia identificar cada um dos odores. Maisalguns metros e ela só ouvia os próprios passos sobre os tijolos e o fluxo de seu sangue nasveias. Quando o mundo exterior não produz nenhum ruído, os sons do nosso corposobressaem. Seus passos seguiam no ritmo das batidas do coração.

Súbito, tropeçou em algo mole. Não dava para ver o que era. Com o pé, tentou identificar.Material fibroso, ela pisou mais adiante e percebeu algo roliço e rijo, avançou mais com o pée descobriu — só podia ser uma vassoura. Passou por cima dela. Isso explicava o fato de,apesar do odor, tudo estar aparentemente limpo. Alguém varrera o túnel e acabaraesquecendo a vassoura. Para se certificar dessa limpeza, abaixou-se e passou o dedosuavemente no chão. Não havia ciscos. Também não tocara em teias de aranha enquantoavançava. Essa faxina era um bom sinal, e se sentiu mais amparada. Não queriam talvez queela sujasse a roupa.

Uma corrente de ar percorria o túnel, mas era impossível saber de onde vinha e paraonde ia. Se não refrescava o local, ao menos tirava a sensação de aprisionamento sob a terra.Não fora abandonada em uma cova, e sim encaminhada a uma passagem.

Distanciando-se da outra lâmpada, descobriu uma porta baixa e teve que se arcar, quasetocando os joelhos no chão, para atravessá-la. Mais à frente, vencida uma curva longa, umponto de luz. Chegara a algum lugar. Não apressou nem retardou os passos, no mesmoritmo foi até lá, entrando em um salão amplo, as paredes brancas, com uma cama queparecia de hospital, armário, cadeiras, um jarro de água e um copo que ela identificou comode cristal. A única porta se mostrou trancada quando tentou abri-la. Após alguns minutos,sentou-se na cama, com cuidado para não amarrotar a roupa. Os pés ficaram no ar. Sem tero que fazer, lembrou-se de averiguar os sapatos. Estavam limpos e não achou nenhumarranhão no couro.

Talvez seu encontro acontecesse ali, naquela cama de ferro, com lençóis brancos esimples. Todo aquele preparo para acabar como uma enfermeira que dorme com o médico

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de plantão. A cada novo fato, ela entendia menos o que estava acontecendo.Um barulho na porta. A fechadura sendo acionada. Também a maçaneta. Hertha desceu

da cama. O barulho dos sapatos contra o piso ecoou fora da sala, talvez percorrendo todo otúnel, no percurso de volta.

A porta se abriu num movimento brusco, como se estivesse sendo arrombada, e apareceuuma mulher de uns cinquenta anos, traços rudes.

— A senhorita pode tirar a roupa e se deitar.Acostumada a ser dirigida, Hertha se desnudou com cuidado para não estragar o

penteado nem amassar muito o vestido. Desde que aceitara a viagem, não apresentavaresistência. Era um exército obediente.

Deitou-se. Agora viria o homem? Ele apagaria a luz? Ficou olhando o teto, onde cresciauma rachadura. A tinta era nova e tudo ali parecia preparado apenas para aquele momento,embora a construção fosse antiga. A mulher mexia no pequeno armário encostado naparede. Ao se virar para Hertha, ajeitava luvas nas mãos.

— Abra bem as pernas.E sem esperar que ela as abrisse, começou a tocar em sua vagina.— Pode se virar agora e descontrair os músculos.Ela, no entanto, não se mexeu, olhos fixos na mulher, que parecia estar gostando de

vasculhar seu corpo.— É que precisamos ver lá dentro.Sem nenhuma força, quase com carinho, ela voltou a tocar no corpo de Hertha, indicando

o movimento. E Hertha se moveu docilmente. Havia usado outras vezes essa via; mesmoassim sen tiu desconforto.

Antes que ela se desvirasse, a enfermeira tinha saído da sala, pedindo — mudara o tomde voz — que se limpasse com as toalhas úmidas que deixara ao lado da cama e se vestisse.Logo a ouviu informar a alguém do outro lado da porta:

— Nada.Não conseguiu entender o que a outra pessoa perguntou.— No cabelo não olhei.Quando ela retornou para a sala de exames, porque era para esse fim aquele espaço,

Hertha ainda se vestia. A enfermeira a ajudou, pedindo licença para averiguar os seuscabelos. Estava com um belo penteado, realçando os cachos loiros. Ela os apalpoudelicadamente.

Já vestida, Hertha fez a primeira pergunta:— A senhora tem um espelho?A outra mexeu na maleta sobre o armário e tirou um pequeno estojo, abriu-o e o

entregou à moça, que estudou o rosto e o penteado. Nada tinha se desfeito. Há mulheresque não se amarrotam, não borram jamais a maquiagem e nunca se despenteiam.

Do outro lado da porta, alguém a aguardava.

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Doze.— Entre — disse Bruno.

Embora já passasse da meia-noite, ele continuava à sua mesa, debruçado sobre papéis. Oajudante de ordens se aproximou, dizendo que o presidente mandava chamá-lo.

Ele se ergueu, colocou o paletó, apertou o nó da gravata e saiu. Desde o começo da tardedaquele dia, Getúlio Vargas estava na residência oficial de seu interventor Osvaldo Cordeirode Farias, que tivera de se deslocar para outro endereço. Nos retornos a Porto Alegre, opresidente preferia a suíte luxuosa do quarto andar do Grande Hotel, com a entradaimponente de portas giratórias. Cenário de muitas de suas ações políticas, de encontros comapoiadores e jornalistas, ele apreciava o lugar porque se sentia um homem solteiro naqueleambiente, com possibilidade de alguma aventura feminina. Os hotéis eram um descansopara a sua vida doméstica, e o Grande Hotel, em particular, tinha um encanto especial pordevolvê-lo a outro tempo, em que numerosos eram os planos e bem menores as tensões.

Dessa vez, no entanto, Getúlio requisitara a residência da sede do governo. Na época emque era presidente do Rio Grande do Sul, morara ali. E fora com a família naquela casa que,poucos anos antes, tramara a Revolução que o levaria ao poder máximo do Brasil. Emboraagora estivesse desacompanhado — mulher e filhos haviam ficado no Rio de Janeiro —,decidira passar aqueles poucos dias na sua antiga residência para poder recepcionar melhora sua visita. Essa viagem não era oficial, e mesmo dona Darcy desconhecia os motivos que ohaviam trazido, nesse começo de verão de 1938, ao velho centro de sua vida política. Oembaixador Oswaldo Aranha, um de seus homens mais próximos, não aprovaria a viagem, eprovavelmente a definiria como uma temerária tomada de partido. Mas os acontecimentostinham levado àquele episódio. Ele não pudera mais recuar após a aceitação dos termospropostos. A partir do que ficasse definido agora, o Brasil poderia enfim ter uma presençana política internacional. E ele próprio seria um dirigente de maior projeção. Era uma apostaperigosa; a sua vida política sempre ocorrera dessa forma, um lance mais arriscado queoutro.

Não unicamente com o propósito de reviver a Revolução de 1930 ele solicitara aresidência de seu interventor, também queria maior contato com o palco desse encontro quevinha sendo tramado nos bastidores, com pouca participação de seus assessores mais fiéis.Uma das aprendizagens nesses muitos anos de decisões políticas era que somente o líderpodia ter todas as informações, os demais deviam conhecer parte delas, quer dizer,fragmentos. Era isso o exercício do poder.

A segurança da cidade toda tinha sido aumentada, e mais ainda a do palácio, tudo deforma discreta. Ao noticiar a vinda de Vargas, um jornalista escrevera que o ditador que

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acabara de implantar o Estado Novo, antes um político afeito à simplicidade e à relaçãodireta com o povo, precisava agora se fazer acompanhar de militares. Vargas não desmentiuo seu desafeto, pois desse modo ajudava a ocultar o que estava por acontecer. Como em umarevolução, as notícias tinham que ser dadas na última hora, para garantir a vantagem dasurpresa.

Ao cruzar o pátio que separava o palácio e a residência, Bruno Fricke passou por váriosseguranças. Tão logo entrou no prédio, depois de dois soldados uniformizados lhe abrirem aporta e a passagem, foi direto ao cômodo onde Getúlio gostava de ficar, principalmente nosmomentos de tensão. Era o salão de fumar, e lá estava aquele homem tão imprópriofisicamente para o cargo de presidente de um país como o Brasil. Faltava força simbólica nasua figura, pensou Bruno. Vargas fumava um de seus charutos e caminhava de um lado paraoutro da sala. Cumprimentaram-se.

— O senhor poderia me dizer se estou exercendo efetivamente o papel de anfitrião?Desde que essa visita começara a ser planejada, tudo secretamente, um grupo de nazistas

radicados no país, sob as ordens de Karl Henning von Cossel, chefe do Partido Nazista doBrasil, comandava a organização e a agenda. Cossel era amigo de Vargas e exibia, na sede dopartido em São Paulo, uma foto de Hitler e uma de Getúlio, esta autografada e comdedicatória. Fora o pivô de toda a negociação, que entrava agora em seu estágio final.

Membro do partido, pessoa de confiança de Von Cossel, Bruno fora encarregado de tratardiretamente com a administração do governo brasileiro dos detalhes do encontro e docerimonial. Por isso estava instalado com outros homens da Gestapo no prédio do palácio.Era ele quem tinha mais informações, causando desconforto na polícia local e nosrepresentantes das forças armadas, que haviam recebido a ordem de facilitar ao máximo aatuação de Herr Bruno.

Ainda no começo, um clima de mistério e de incertezas se espalhara. Dada a naturezadessa visita, totalmente incomum, pouca coisa era revelada com antecedência. Vargasdesconhecia, até o dia anterior, a data exata do encontro. Recebera um telegrama de VonCossel, dizendo apenas que era aguardado em Porto Alegre na manhã seguinte, e tivera quecancelar a sua agenda e viajar imediatamente. Deixaria de atender a compromissosmenores, pois estava previsto para aqueles dias o grande encontro e ele pedira que nadaimportante fosse marcado. Voou de manhã para Porto Alegre, permanecendo à tarde e ànoite à espera. Mesmo agora, continuava sem notícias.

— Um contratempo talvez retarde a chegada — informou Bruno.Vargas parou no meio da sala, tragou fundo seu charuto, engolindo com a fumaça a sua

raiva. Estavam fazendo dele um boneco, movendo o presidente para longe de seus deveres eo mantendo às cegas. Tirando o charuto dos lábios, mas deixando a mão que o segurava àaltura do rosto, e com um olhar erguido para o teto, como se saboreasse um puro raro, elesorriu.

— Teremos que suspender a pequena recepção — comunicou, meio constrangido, Bruno.

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Ao lado, na Sala de Música, haviam preparado um cardápio especial, vegetariano, o quepor si só já era uma pequena ofensa aos hábitos culinários locais, essencialmentecarnívoros. Agora ocorria esse cancelamento de última hora.

— Presidente, estou tentando conseguir informações precisas pelo radiotransmissor. Acomunicação é difícil, o senhor há de entender.

— Só nos resta esperar um pouco mais, senhor Bruno. — E o presidente procurou ocinzeiro e bateu metodicamente a cinza do charuto, anunciando o fim da conversa.

Os termos “um pouco mais” era uma ameaça sutil, ao mesmo tempo que comunicavauma aceitação resignada daquele atraso. Bruno se retirou depois de um novo pedido dedesculpas.

Getúlio Vargas recebeu em seguida o mordomo, preocupado com o atraso do jantar.— Cancelado — Getúlio anunciou como se fosse uma medida militar.Logo se ouviu no bufê uma movimentação de passos, um arrastar de cadeiras, uma

conversa a meia-voz. Vargas foi para a Sala de Música totalmente vazia e ficou andando emmeio às muitas cadeiras dispostas em círculo. O mordomo reapareceu perguntando sequeria que lhe servissem algo. A comida estava retornando intacta à cozinha. Vargasrecusou. Precisava perder peso; além disso, não apreciava a culinária vegetariana.

Desceu as escadas até o salão da parte inferior, que ficava no nível do jardim dos fundos,tomou a ala esquerda do prédio e foi para o último cômodo, o mesmo que, durante algunsanos, dividira com a esposa. Os móveis ainda eram os de outrora, e isso o deixou maismelancólico. Tinha voltado ao passado e estava em um novo jogo com o destino. Talvezfosse melhor ligar para Oswaldo Aranha e relatar os acontecimentos. Ligou, no entanto,para o chefe da polícia do Distrito Federal, Filinto Müller, que o acompanhara na viagem, epediu informações sobre o paradeiro de Von Cossel, cujos passos estavam sendo vigiados.Soube que ainda aguardava no salão do Grande Hotel.

O presidente se tranquilizou. Tirou o smoking, colocou o pijama e foi até a janela. Haviauma grande quantidade de soldados no jardim e essa imagem o devolveu à Revolução de1930.

Só então se deitou para não dormir.Bruno, de volta à sala que ocupava havia duas semanas nos subterrâneos do palácio,

também não dormiria aquela noite; não poderia nem se deitar.

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Treze.Ao cruzar a porta de onde viera a conversa, Hertha encontrou dois guardas loiros e altos epôde ouvir, distanciando-se, o barulho dos passos da mulher que a examinara. Havia outrasala, com os tijolos nus e apenas umas cadeiras. A lâmpada pendia sem adornos. Eles acumprimentaram, endurecendo o corpo, estendendo a mão e pronunciando um Heil Hitlersonoro. Instintivamente, ela fez o mesmo. Na sua viagem à Alemanha, habituara-se a fazer ocumprimento nazista, que não tinha para ela um valor especial. Saudava os companheirosnovos porque estava no país deles, era uma questão de cortesia. Nos acampamentos noBrasil, achava esse hábito meio ridículo e só o usava para não frustrar as pessoas. Mesmo aversão dos integralistas (o anauê), e ela conhecia muitos integralistas, não lhe pareciaespontânea. Ali, naquele subterrâneo, depois de tanta espera, sua reação foi instintiva, comoum gato que pressente o perigo e eriça o pelo.

Atravessada a sala, outro corredor estreito. Um dos guardas foi na frente, o outroesperou que ela se movesse. Ganhara uma escolta até a estação seguinte. De um de seusnamorados, recebera uma edição de A divina comédia, traduzida para o alemão e comentadapelo pastor protestante Giovanni Andrea Scartazzini, da qual lera alguns cantos. Nessemomento, sentia-se vagando pelos círculos infernais. A caminhada sob a terra se fizera maisrápida, em passo de soldado, e o chão parecia inclinado. Estariam descendo? Alcançou arcosfechados com tijolos que dariam para outros túneis. No seu trajeto anterior, também haveriapassagens obstruídas que poderiam levar a outros lugares; a falta de luminosidade, porém,não lhe permitira reconhecê-las. Pequenos dutos no teto traziam um pouco de ar. Eladeveria estar transpirando, mas seu corpo não produzia suor, e numa mulher,principalmente nas suas condições, isso era uma grande vantagem.

Desde a entrada no túnel, quando Bruno a deixara sozinha, sabia que ficaria marcada.Quem precisava se esconder em cavernas, não podendo hospedar-se num hotel ou na casade algum conhecido, só poderia ser perigoso.

Vencidas mais algumas curvas, chegaram a uma porta antecedida por um pequeno salão.O guarda da frente a abriu, ficando ao lado. Hertha entrou e ouviu o barulho da fechadura.Era uma porta de ferro, ela notou. Tinha cruzado uma das fronteiras. Ali começava algumacoisa.

Entrara em uma acanhada sala de recepção. As paredes revestidas com madeira clara, ochão de piso escuro. Tudo novo, pois sentia o odor enjoativo de resina. No teto, umventilador, trabalhando lentamente, refrescava o cômodo sem produzir uma movimentaçãointensa de ar. Havia duas outras portas, uma menor, semiaberta. Hertha se aproximou e viuque era um lavabo. Uma pia branca e uma prateleira com escova, cremes, perfume,

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sabonete. A toalha de linho pendurada. Tudo aquilo era para ela, pois reconhecera asmesmas marcas e produtos que encontrava em seu quarto no hotel Majestic. Olhando essesprodutos, ela se recordou do hotel como algo remoto. Desde que saíra dele já transcorreramais tempo do que todos os dias em que estivera esperando.

Olhou-se no espelho e viu que, mesmo sem suar, sua feição estava um pouco cansada.Arrumou o cabelo, lavou as mãos, secou o pescoço, reforçou o perfume, refazendolevemente a toalete. Os cabelos continuavam cacheados e soltos. Após uns minutos, saiu dolavabo, que permanecera com a porta apenas encostada, e se sentou num sofá de trêslugares. Numa mesa de centro, revistas de moda e de arquitetura. Ela pegou uma e ficoufolheando, passando rapidamente as páginas, em silêncio.

— Desculpe-me ter feito a senhorita aguardar.Hertha não percebera a entrada do homem, que estava bem diante dela. Como o sofá era

baixo, para que seus olhos alcançassem o rosto daquele homem seria preciso que elaerguesse ao máximo a cabeça, e mesmo assim teria a visão de um ângulo pouco preciso.

A outra porta estivera encostada, só que ela nem percebera. Acostumara-se a não forçarnada, a deixar que as coisas acontecessem, a não ser a parte em que atuava. Lia uma dasúltimas revistas, pensando no que se ocuparia dali para a frente, quando ele entrou.

Ainda não tinha nome nem um rosto. Era um par de calças largas nas pernas, sapatosgrandes, bastante lustrosos. Bolsos de um paletó. Sentia o cheiro do tecido novo e do couro.Se ele não se afastasse, ela não conseguiria erguer-se. O desconhecido, talvezcompreendendo isso, deu um passo para trás e lhe estendeu a mão de dedos grossos elongos. Ela a segurou e sentiu que a força daquele homem estava nos dedos, não que ele aapertasse, e sim pela firmeza delicada. Foi se erguendo com o rosto reto e viu os botões dopaletó, a gravata, o nó da gravata, até aparecer apenas o cabelo fino e meio ralo. Ele jábeijava a sua mão.

Quantos minutos demora um beijo? Ela havia entrado num tempo pastoso, que serecusava a passar. Enquanto ele ficou vergado sobre sua mão, poderia ter contado todos osfios de seu cabelo, pelo menos era essa a sua sensação. O rosto foi se erguendo muitolentamente, e a primeira coisa que ela viu foi o nariz, e sob o nariz o bigode.

— Ah — ela disse e retirou a mão ainda presa na dele.— Quem deveria estar surpreso era eu. Surpreso com sua beleza.Os dois ficaram em silêncio uns instantes. Ele a segurou pelo braço, as pontas dos dedos

quase se tocando, e a conduziu até a porta que ficara obscenamente aberta, revelando acama preparada.

— Nós esperamos demais — ele disse.Ao se incluir na espera, ele estava sendo galante. Hertha sentia o sangue pulsando nos

dedos que apertavam seu braço. Nada mais denunciava a urgência de cruzar aquela porta.

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Quatorze.A porta se abriu e um Getúlio Vargas sorridente, terno de linho claro bem passado, entrouno Grande Salão do palácio. Era pouco mais de nove da manhã e ninguém diria, a julgarpela fisionomia do presidente, que aquela havia sido uma noite de insônia e charuto.Tomara o seu café na companhia de alguns assessores, colocara bastante açúcar na xícara ecomera fartamente. Uma boa refeição matinal restaura a aparência, acreditava. Eleengordara nos últimos anos por conta desse hábito de fazer da comida uma compensaçãopara as tensões.

Funcionários do Itamaraty tinham preparado a solenidade nos últimos momentos, o quelevara a uma movimentação nervosa em todas as direções. No terraço do palácio haviavários soldados, com suas armas em posição de tiro, atentos a tudo. Era possível ver o rio, asruas próximas e mesmo uma eventual chegada de aviões. O exército tomara as ruas, paraintimidar qualquer manifestação.

E toda a confusão que se iniciara nas primeiras horas da manhã subitamente cessara,como se tivesse soado um toque de recolher. Da outra ala do salão, saiu o líder da Alemanhacom sua equipe e homens da Gestapo. Depois de uma pequena parada, os dois ditadoresrecomeçaram a marcha até o centro, onde fora colocada uma mesa de tampo de mármorecom pés de madeira trabalhada, reservada às grandes solenidades. Hitler seguia com umaexpressão tensa; Vargas sorria. Interiormente talvez fosse o contrário. Vargas disfarçavaseus temores; Hitler exagerava o perfil de líder em combate.

Encontraram-se atrás da mesa, apertaram as mãos longamente para que os fotógrafos,convocados de última hora, pudessem registrar a primeira visita do chefe supremo donazismo à América. O seu ímpeto expansionista o trouxera ao Brasil para oficializar umnovo acordo econômico e político negociado secretamente.

Durante toda a noite, um grupo do Partido Nazista e representantes do Itamaraty ligadosa Getúlio cuidaram da revisão rigorosa do documento, em português e em alemão, que seriaassinado pelos dois ditadores. Como estava atrasada a visita surpresa de Hitler, ninguémentendeu, na noite anterior, a razão de tanta urgência para concluir os acertos. Só depoissouberam que o presidente alemão já havia aterrissado, incógnito, num avião do SyndicatoCondor, que o trouxera de Buenos Aires, aonde chegara depois de algumas escalas secretas.No Brasil, fora recebido num bunker instalado, por ordem de Vargas, nas galeriassubterrâneas do palácio, com suas ramificações secretas por vários pontos do Centro dacidade. Ele entrara por uma delas e passara a noite ali, alguns metros abaixo de onde seencontrava o anfitrião. E só saiu do esconderijo para o ato que se iniciava agora. Getúliosoubera que a cerimônia estava mantida assim que se levantara. Von Cossel chegara ao

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palácio, anunciando ao chefe da segurança que precisava falar com o presidente.Essas eram medidas de guerra impostas ao governo brasileiro, pois se receava uma

emboscada ao Führer, o chefe de Estado mais temido em todo o mundo. Tudo se faziaurgente para evitar situações que colocassem em risco a vida dele. E a solenidade começou,com o mestre de cerimônias explicando o motivo do encontro: selar a união de duas naçõesa caminho do futuro. E convocou Getúlio para o discurso de recepção.

Ele foi breve. Elogiou a Alemanha e seu líder, que havia tirado o país da mais completamiséria e feito dele uma terra de progresso, progresso científico, social e cultural. Afirmouque o Brasil se orgulhava de se alinhar a uma nação tão próxima, e aí falou do longorelacionamento com a Alemanha, da colonização, forte no Sul, e da presença do elementogermânico na construção do Brasil moderno. Originalmente, no discurso preparado peloItamaraty, os termos eram diferentes. Valorizava-se o elemento germânico na constituiçãodo homem brasileiro. Só que os representantes do Terceiro Reich exigiram a mudança dessafrase, por estar em desacordo com sua ideologia.

Vargas leu o texto aprovado pelos alemães. No final, aplausos intensos; aplausospreviamente definidos, pois se encontravam ali sobretudo os funcionários dos doisgovernos.

O tom amistoso de Getúlio foi sucedido pela fala marcial de Hitler, que começou lendo odiscurso redigido por seus assessores e aprovado pelo Itamaraty, sobre a importânciaestratégica do Brasil para a economia alemã, o apoio científico, industrial e econômico queesse país receberia, o investimento que seria feito na indústria metalúrgica, para que elapudesse em breve se tornar uma das mais avançadas da América — e esse trecho tinha umaintenção clara: hostilizar os norte-americanos. O discurso, traduzido para o português, talcomo o de Vargas fora vertido para o alemão, circulava em cópias mimeografadas entre ospresentes, no entanto acabou sem função. Hitler foi aumentando o tom de voz até tirar osolhos do papel e começar a falar de suas lutas, de seus inimigos, o império judeu ecomunista não podia avançar, a guerra impiedosa contra essas forças era obrigação moraldas nações que queriam triunfar. Sua gesticulação foi se intensificando e ele se perdeutotalmente nas acusações aos inimigos, na defesa da pátria, repetindo que o Brasil tambémera uma extensão da Alemanha e que os dois países, a partir de agora, marchariam unidoscontra as forças desagregadoras. A sua fala era já a guerra, uma guerra interior da qualHitler não podia se livrar.

No final, todos estavam encantados com o Führer, que havia encarnado uma outrapersonalidade na frente do público. Mesmo seus homens mais próximos não ficavamimunes a essas transformações. Seu cabelo, no começo bem penteado e colado ao crânio poralgum creme para disfarçar uma calvície crescente, se despregou e balançava durante suasgesticulações. Era outra pessoa, quase uma divindade se manifestando na frente de todos.Um dos funcionários do Itamaraty que conhecia as religiões africanas teve certeza de que elerecebia um santo naquele instante.

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Quando o ditador se calou, ouviu um sonoro Heil Hitler feito por seus assessores, quealçaram o braço direito em sua direção. Alguns brasileiros seguiram a saudação. O grandelíder, sorridente e sem a pose marcial do início, cumprimentou Getúlio. Seriam as fotosdessa saudação, e não as do primeiro momento do encontro, que os jornais estampariam nodia seguinte.

Depois foram assinados os acordos de cooperação entre os países, em que o Brasilreconhecia as Leis de Nuremberg nas comunidades em que a maioria da população fossealemã. E os dois presidentes se retiraram para o gabinete na companhia apenas de VonCossel, do cônsul Friedrich Ried e dos generais Eurico Gaspar Dutra e Góes Monteiro,respectivamente ministro da Guerra e chefe do Estado-Maior do Exército, entusiastasdefensores da necessidade de compra de armas alemãs. O interventor Osvaldo Cordeiro deFarias, sempre implicando com as forças germânicas no país, fora enviado por Vargas a umamissão no interior. Em breve, seria deposto.

Sacando um documento de uma pasta de couro com a suástica, Von Cossel o estendeuaos dois presidentes, que assinaram um acordo secreto autorizando a ampla atuação doPartido Nazista no Brasil.

Agora só faltava a aparição dos líderes diante da população. A Rádio Sociedade Gaúcha ea Rádio Difusora Porto-Alegrense irradiaram o horário do comício. E as pessoas jáinformadas anunciavam a presença de Hitler e de Vargas no Auditório Araújo Vianna, naconcha acústica.

Eles saíram do gabinete e foram ao centro do Grande Salão, que estava quase vazio, comguardas e uns poucos funcionários. Pelas janelas do palácio entrava o murmúrio de umamultidão, não se sabia ainda se grande ou mediana. Vargas parou diante da escada do ladoesquerdo, enquanto Hitler andou mais alguns metros até a escada do lado direito. Os dois seolharam e começaram a descer os degraus no mesmo instante. Depois de vencer a metadedos lanços, eles se encontraram no patamar em que as escadarias se unificavam, e nessemomento foram fotografados. Era um deslocamento simbólico — os dois presidentes seaproximando para fazer o resto do percurso. As portas de entrada do palácio foramsolenemente abertas para eles.

A multidão erguia os braços no gesto nazista para saudar o líder. Ele repetia a saudação,imóvel por uns segundos. Um imenso cordão de isolamento criava um caminho entre aspessoas. Do palácio, eles iriam ao centro da praça da Matriz. Von Cossel, Eurico GasparDutra, Góes Monteiro e outras autoridades se juntaram aos presidentes, num bloco a certadistância. E começou a marcha para alcançar, a poucos metros dali, o auditório. Hitlerestudava a fisionomia das pessoas, que não eram muito diferentes das nascidas naAlemanha. Mesmo mais morenas, por causa do sol dos trópicos, pertenciam à Europa.

Pararam no monumento a Júlio de Castilhos. Vargas explicou, com a ajuda de Von Cossel,que se aproximara, quem era o herói positivista. Hitler se voltou para o jovem gaúcho queaparecia na face sul do monumento, com sua fisionomia meio indígena, montado em seu

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cavalo. Então fez uma defesa da máquina, que a força atual eram os tanques, os aviões, ossubmarinos e navios, que a cavalaria estava com os dias contados. Precisavam criar o Brasilmoderno. Pouco prestou atenção em Júlio de Castilhos, por conta de seus traçosmiscigenados, detendo-se contemplativamente nas demais figuras humanas, com feiçõesarianas, cheias de juventude e força física.

Ao descer as escadas da praça para enfim chegar ao nível da rua e alcançar o auditório,ele viu os dois cachorros de bronze no topo do corrimão. Não estava prevista pelocerimonial uma parada diante dessas imagens. Entretanto, Hitler não apenas parou, comoafagou a pelagem dura de um dos pastores-alemães estilizados. Sentindo talvez saudades,moveu a mão como se estivesse com seu chicote de cães. O vento imaginário que forçava apelagem dos animais vinha da Alemanha. Não, ele não estava tão longe de sua terra.

Logo chegaram à concha e subiram para o palco, entre aplausos e gritos. Uma bandatocava Badenweiler Marsch. Nesse momento, a esquadrilha de cinco aviões Junkers Ju 87, daLuftwaffe, com a suástica estampada na fuselagem, invadiu o céu de Porto Alegre numamanobra festiva. Esses bombardeiros de mergulho (talvez os mesmos Stukas que atacaramGuernica, na Espanha) fizeram voos rasantes sobre o público aglomerado em torno doAuditório Araújo Vianna, enchendo-o com o som de seus motores.

E seria dessa potência ruidosa que as pessoas se lembrariam quando, daí a algunsminutos, depois da retirada da esquadrilha, Hitler começasse o seu discurso.

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Quinze.Acordando com o barulho dos Stukas, Hertha pensou que estavam bombardeando PortoAlegre. E saltou da cama.

Não sabia direito onde se encontrava. A noite de sono fora uma viagem infinita dentro deum túnel escuro que nunca chegava ao fim. Seguindo descalça e nua, seus pés tinhambolhas. Não queria mais andar; no entanto, como o túnel era muito estreito, se dormisse umpouco ali, poderia ser pisoteada pelo exército em fuga. Por isso, quando acordou com osaviões, achando que ainda estivesse nas galerias, pulou da cama. Tinha que correr e escaparda tropa que estaria vindo. Foi para o único lugar de onde vinha alguma luz. Nesse local,antes tão inalcançável e agora tão próximo, forçou o que o obstruía e as duas folhas dapersiana se abriram revelando o céu, mais azul nessa manhã do que em outras. Ao olharpara a parte alta da cidade, viu os aviões com a suástica e descobriu onde estava. Então selembrou de tudo.

Seu quarto continuava idêntico, com os móveis nos mesmos lugares, as roupas usadas nanoite anterior no armário, o jarro e o copo com água no criado-mudo, o outro travesseirointocado na cama de casal, tal como nos últimos dias. Enquanto constatava isso, os aviõesvoltaram, passando bem perto do último andar do Majestic, o que fez os móveis balançaremum pouco, criando um vácuo silencioso após o rápido cruzar dos Stukas, que deviam estarali apenas para divertir as pessoas — se fosse um ataque, as bombas já teriam sido lançadas.

Hertha se aproximou da penteadeira, que também tremera com a passagem dos aviões, eolhou os seus lábios, mais vermelhos do que o natural. Precisava se livrar da noite anterior.Caminhou até o banheiro e abriu o registro da banheira. Como havia esquecido de pôr otampão, a água entrava e escorria imediatamente. O tampão estava na sua frente, só que elademorou a entender sua função. Depois de resolver isso e deixar a banheira encher, tirou aroupa e entrou. Sentada ali, começou a lavar os cabelos, que guardavam uma fragrânciaforte, um hálito podre, como se um vento ruim tivesse sido armazenado num bosque. Ele foicruzá-lo mas, sem força, ficou retido, impregnando-se nas cascas das árvores. A seu lado,segurando fortemente seus braços, sentiu a respiração quente do Führer. Vinha de suasgalerias interiores um odor de carne estragada, de lixo. Experimentara isso com outroshomens, todos mais velhos. Era o cheiro da podridão do corpo, da velhice dos órgãosinternos. Na primeira vez, pensou que fossem dentes estragados. O senhor com quem elaestava tinha a dentição em ordem e não era dali o odor. Percebeu que aquilo brotava docorpo todo e não de um único lugar. Com o Führer, era mais intenso, talvez porqueestivessem sob a terra. Quando ele respirava, ofegante, a seu lado, o hálito subia até os seuscabelos e parava ali.

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De olhos fechados, lavou as mechas rapidamente, esfregou-se inteira, identificando cadaparte. Os pés de dedos longos. As canelas finas. Os joelhos obscenamente redondos. Ascoxas firmes e generosas. O sexo com sua pelagem suave. As pregas do ânus. O umbigo.Essa contabilidade era própria de quem sobrevivia a um ataque de bombas.

Levantou-se na sua escuridão interior e se secou. Só quis enxergar de novo depois,vendo-se no espelho do banheiro — nua, cabelos úmidos e escorridos, como uma ninfa saídadas águas frias de um rio.

Trocou-se, usando uma das roupas que trouxera de casa, e, cabelos molhados, deixou seuquarto. Max não estava mais no corredor. Enfim cruzara o túnel, que começara naquelesdias de quarentena; havia agora saídas em todos os lugares? Olhou para o vaso no console eviu que ainda eram as rosas vermelhas do dia anterior, já sem viço, com uma pétala caída nochão.

Comecei a envelhecer, pensou. E foi até a porta do elevador.

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Dezesseis.Sozinha pela primeira vez, tomou café no salão do hotel, rapidamente porque queria omundo externo. A cidade se esvaziara nessa manhã de domingo. Poucas pessoas, somenteaquelas que trabalhavam, podiam ser vistas em alguma atividade.

Encantada com esse súbito despovoamento, seguiu rumo à praça da Alfândega, tambémerma. Encontrou o porteiro do Clube do Comércio e um bêbado dormindo num banco, sobo sol já alto. Para onde haviam ido as pessoas? Andando destemidamente, uma ratazanasaíra de um buraco na parede de um prédio e cruzara a rua, sentindo-se a dona absoluta damanhã.

Na noite anterior, tendo passado algumas horas juntos, o Führer virou o rosto paraHertha e, voz muito meiga, elogiou novamente sua beleza de estátua grega. E pediu:

— Poderia ficar sozinho?Ela o olhou com incompreensão, o que o levou a explicar-se:— Evito passar a noite com mulheres.E aquele plural foi uma indelicadeza maior do que o pedido para que se retirasse. Essa

não era a regra. Os homens queriam sempre ficar com ela, lutavam por mais um minuto,por um novo encontro. Não sabia o que fazer com essa dispensa no meio da noite.

Uma lâmpada fraca estava acesa na cabeceira da cama. Sabia onde ficava o interruptor daluminária do teto e o acionou, num ato temerário, fazendo com que o quarto fosse inundadopor uma luz que não permitia que se escondesse nada. Os olhos pequenos do Führer sefecharam por uns instantes. Hertha se ergueu, deixando que o lençol escorregasse por seucorpo. Totalmente nua, apenas com as joias que ganhara de Bruno Fricke, os movimentostomados por uma lentidão felina, ela foi em busca da roupa que ficara pelo chão, misturadaàs peças masculinas. Pegou as suas e vestiu a calcinha, subindo-a com cuidado pelas pernas.Em seguida colocou o sutiã no mesmo ritmo sensual; por fim, o vestido. Ficou com ossapatos na mão, como alguém que não quer fazer barulho.

— Os guardas podem indicar a saída — Adolf meio que ordenou.Hertha sorriu, indo na direção da porta. Antes de abri-la, olhou para a cama e viu aquele

homem despenteado, os braços desnudos sobre o lençol, revelando ombros pequenos, asorrir para ela. Era a mãe deixando o filho no quarto depois de tê-lo distraído por unsmomentos.

Na parede em que ficava a cabeceira da cama, estudou mais uma vez a pintura estilizadade uma mulher muito branca, de olhos azuis. Os mesmos olhos do filho. Fora apresentada àsenhora do retrato ao chegar àquele cômodo:

— Minha mãe — dissera Adolf.

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Não precisava ter dito nada, os traços denunciavam o parentesco. Esse homem só seinteressaria, vida afora, por fêmeas que lhe lembrassem a mãe. Uma mãe ainda jovem,melhorada pelos pintores a seu serviço.

— A luz — ele sussurrou, e ela teve que voltar para perto da cama para alcançar ointerruptor.

Na penumbra, ao afastar-se, sentiu uma mão segurando sua perna por baixo do vestido.Parou, impassível.

— Durmo sempre sozinho — ele tentava se explicar.Hertha voltou a se mover, obrigando-o a retirar a mão. Antes de fechar a porta, disse, em

tom maternal:— Durma bem.Não soube se houve algum comentário por parte dele. Ela já estava em outro mundo,

distante daquele quarto austero. Criara-se uma distância impossível de ser vencida entreeles. Hertha contava com a possibilidade de que ele se levantasse, ainda nu, e viesse a seuencontro, pedindo mais sexo. Isso não aconteceria. Como a porta continuava encostada, elapensou em retornar e dizer que preferia passar a noite com ele, porém não se contraria,principalmente na cama, um político tão poderoso. Uma vez em movimento, as engrenagensnão podiam ser paradas.

A sala estava escura. Ficaria ali até que abrissem a porta para o túnel. Sentou-se no sofápara colocar os sapatos e após uns minutos ouviu o barulho da fechadura e o movimento dafolha de aço se movendo.

Um soldado, não sabia se um dos que a trouxeram até ali, a chamou com um gesto. Elaandou até ele em silêncio e a porta foi fechada em seguida.

— Nesta direção.Hertha não disse nada nem se despediu com um sinal, começando a caminhar. Andou

bem menos do que na vinda e encontrou uma porta destrancada, que ela empurrou comcuidado. Outro soldado a recebeu.

— Por aqui — disse.E a levou até um carro que, imediatamente, acendeu os faróis.— Ele vai conduzir a senhorita ao hotel.Depois de várias voltas, reconheceu a entrada do Majestic, que também parecia um túnel,

só que bem mais amplo.Nessa manhã de domingo, quando a realidade voltara a fazer sentido, ela começara a

achar que tudo fora um delírio. Não saíra do hotel. Não fora levada às entranhas da cidade,não estivera com Adolf Hitler. Para comprovar a si mesma que sonhara esse tempo todo,verificava cada quintal, cada portão, concluindo que ali não poderia haver entradas paragalerias subterrâneas. Fora enganada por sua imaginação. A longa espera havia feito comque imaginasse tudo aquilo de que se lembrava obscuramente.

Andou mais um pouco e percebeu um barulho de multidão. Era algo impensável na

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cidade esvaziada. Mesmo assim, acelerou o passo para aquele lado, vencendo a ladeira. E acidade, súbito, se fez povoada e todos se moviam para um centro. O barulho de uma vozcomeçou a sobressair no grande murmúrio.

Forçando a passagem, Hertha se perdeu no meio das pessoas, esgueirando-se entre elaspara se aproximar do lugar de onde vinha a voz. Agora sabia de quem. Mulheres com seusfilhos, grupos de homens, moças, famílias inteiras ouviam o discurso do Führer. Essaspessoas tinham os olhos brilhando, num momento de prazer, um prazer tão intenso queuma mulher desmaiara perto dela. Mesmo temendo ser pisoteada, continuou avançando.Queria ter certeza da noite com aquele homem.

Agora ouvia bem o discurso, embora não visse quem o pronunciava. Tratava da grandeAlemanha, ninguém poderia deixar de ser alemão em nenhuma parte do mundo, por maisdistante que fosse, só com um material puro poderíamos desenvolver o homem novo. Ele jánão estava no Brasil, e sim na sua terra. Hertha estudou as pessoas, algumas talvez nãoentendessem o idioma, mas não deixavam de se encantar com sua voz e seus gestos deorador.

No meio do tumulto, um rapaz olhou Hertha, apaixonadamente, e ela correspondeu aesse olhar. No mesmo instante, estavam avançando juntos e conversando.

E ela sentiu a mão dele tocar seu corpo.— Você gosta?— Ele grita demais — respondeu ao rapaz.— Não estou falando de Hitler.— Mas eu estou. Vamos chegar mais perto — ela propôs.— O mais perto possível.E encostou seu corpo no dela, aproximando-se dos bancos de concreto a céu aberto,

voltados para a concha acústica. Em pé neles, as pessoas podiam ver melhor. O jovem achouum lugar para Hertha no braço de um dos bancos e a ergueu, segurando-a ali. Assim, elapodia ver o ditador enquanto ele sentia o cheiro do sexo dela, bem próximo do seu nariz, omesmo cheiro que identificara nos seus cabelos úmidos.

Hitler voltava à temperatura normal para afirmar que o Brasil era também a Alemanha.Agora mais do que nunca.

Todos acompanhavam com muita excitação aquele homem. Na visita de Hertha àAlemanha, em 1935, havia a possibilidade de uma participação dele no Encontro daJuventude Hitlerista. Um problema qualquer não permitiu que ele falasse aos jovens. Eaquela fora uma das decepções de sua viagem. Se tivesse participado de um de seuscomícios, ela voltaria mais crente no nazismo. Se tivesse ouvido Hitler antes de passar anoite com ele, poderia ter gostado de se deitar com o líder. Isso não ocorrera, então sedeitara apenas com o homem.

Precisamos nos afastar das grandes figuras para vê-las melhor, pensou.

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Neste exato momento, o Führer faz um longo discurso no Centro da cidade, que nós transmitimos aosouvintes da Rádio Difusora Porto-Alegrense: “(…) este é um grande país, e um destino de glória o aguarda.Mas para isso é preciso fazer acordar as forças das raças puras, evitar a mistura de sangue. Há aqui umgrande perigo: parte da população está ficando cada vez mais escurecida. E vocês que estão na região maisariana do país, vocês têm um papel importante. Os judeus, esses nossos inimigos hereditários, querem queo Brasil seja negro, porque os judeus agem sorrateiramente para nos destruir. É preciso que o Brasil resista.É preciso que o Brasil seja dos brancos e não dos inferiores. A contaminação racial é um crime, um crimecometido contra o futuro. E não há nada com o qual tenhamos mais responsabilidade do que com o futuro.Todos dizem que o Sul do Brasil é uma área europeia. Vocês querem ser iguais à África ou querem conti -nuar ligados à Alemanha? Não se deixem estragar. Não tenham piedade de quem quer nos corromper.Esta parte do país nasceu para ser grande, nasceu para ser branca…”

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Dezessete.Quando o Mercedes preto, conversível, com a bandeira do Brasil e do Terceiro Reich, seafastou da multidão, com os dois líderes acenando ao povo, Hertha entendeu que tudo haviaacabado. Era como se eles acenassem para ela. Iriam até o aeroporto e lá se despediriam. Elaveria as fotos nos jornais do dia seguinte, Hitler parado no alto da escada de acesso ao avião,o braço direito levantado, e Getúlio, no chão, fitando-o com um sorriso.

Era também Hertha quem partia. Ela ergueu a mão em direção àquele carro que, nosprimeiros metros, sem nenhuma tração mecânica, tinha sido empurrado por alguns homensda comitiva em sinal de carinho. Só com a marcha acionada o Mercedes ganhara velocidade.Nesse momento, Hitler identificou Hertha no meio da multidão. E se olharam friamente, poruns segundos, enquanto o carro se afastava.

O rapaz que não a abandonara desde o encontro convidou-a para almoçar em umrestaurante que ele conhecia na região do porto e que servia um peixe excelente. Rindo,Hertha mentiu:

— Já tenho compromisso.Após andarem mais uma quadra juntos, ela disse que seu noivo a aguardava. A desolação

do jovem era grande. Encontrara uma mulher tão bonita e desfrutável, poderiam fazertantas coisas. E após deixar que ele a tocasse, que sentisse o volume de seu corpo,simplesmente se afastava. Uma mulher não poderia fazer isso com um homem doente dedesejo em uma manhã de domingo.

Hertha tomou outra rua enquanto ele ficou na esquina, olhando para aquelas pernasaltas, o corpo ereto, os cabelos mal pentea dos que anunciavam toda a beleza de que eramcapazes. Esperou uns minutos e ela não se virou. O seu domingo estava completamentearruinado. Como para confirmar para si mesmo que a comida do restaurantezinho era defato ótima, seguiu para lá. Ela não imagina o que está perdendo. E esse projeto de vingançao deixou um pouco menos triste.

Hertha chegou ao hotel pela rua de trás. Foi direto para o restaurante e almoçou sozinha,pensando em voltar para Blumenau. Tio Karl talvez estivesse preocupado com ela. Na suachegada, mandara um cartão-postal. E fizera umas ligações para informar de seu sucesso emPorto Alegre.

Subiu para seu quarto e se trancou lá. Agora poderia ir aonde quisesse, só que faltavavontade de sair. Chega uma hora em que a cidade onde estamos de passagem perde todo oencanto. Mesmo Berlim cansa e se torna monótona. E tudo que desejamos é retornar paraos nossos chinelos velhos, as nossas roupas de trabalho, os cheiros em que nosreconhecemos.

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Ela dormiu a tarde toda e não desceu para o jantar. Um funcionário do hotel levou umsanduíche e um copo de leite ao seu quarto. Tendo ceado com uma fome de camponesa,ficou ali ouvindo rádio até ter sono novamente. Quando acordou, já era dia. Ostrabalhadores tomavam a rua, provavelmente conversando sobre a visita inesperada doFührer. Pediu os jornais, embora não seja nada agradável ler os informes de uma cidade àsvésperas de deixá-la. Eles traziam matérias que saudavam o surgimento de um outro Brasil.

No meio da manhã, ainda com o terno caro que usara no seu último encontro, agoraamassado, a pele do rosto oleosa, olhos de cansaço, vermelhos, Bruno apareceu em seuquarto. Trazia uma mala grande, nova.

— Você vai precisar — ele falou, abrindo-a sobre a cama.Em seguida retirou do bolso um envelope gordo. Ali estava a sua paga por ter passado a

noite com Adolf. Agora, ao pensar no Führer como homem, na intimidade, referia-se a elepelo primeiro nome. Conhecera Adolf, vira a aparição de Hitler. Ela pegou o envelope e ocolocou na penteadeira com um desinteresse total por seu conteúdo. Não abriria na frentedele nem contaria o dinheiro.

Transcorridos uns segundos e vendo que o contrato estava concluído, Bruno Fricke tiroudo bolso interno do paletó a passagem.

— Não poderei levar você de volta.— Eu me acostumei a ficar sozinha.— Não podíamos deixar você entrar em contato com ninguém.— Fiquei preparada para passar algumas horas com… — quase disse Adolf — …com o

Führer.— Aprender a suportar a solidão é sempre útil.E os dois ficaram quietos, pensando no que fora dito.— Ele gostou de você.— Como pode saber?— Pelo tempo que passou no quarto dele.— Ah!— Algumas ele nem recebe. Mostra-se gentil, faz elogios excessivos e depois apenas beija

teatralmente a mão antes de se retirar.E Hertha ergueu a mão na direção de Bruno. Durante esse pequeno encontro, eles

ficaram em pé. A mala aberta sobre a cama criava um clima de desolação. O seu ventre vazioera uma linguagem muito forte. Bruno beijou a mão de Hertha e foi para a porta.

— Ainda nos encontraremos.— E será como uma primeira vez — ela disse, sorrindo.— Um carro vai levar a senhorita até a estação.Ele fechou a porta e seus passos firmes foram ouvidos pelo corredor.Na hora da partida, ela evitou olhar o vaso de flores. Havia uma nobreza em nunca se

despedir das coisas. Desceu até a portaria onde já estavam suas malas e foi direto para o

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carro estacionado na frente do hotel Majestic. O motorista carregava a bagagem, e daí emdiante ela só olharia para a frente.

A viagem de trem seria longa. Ela buscou se acomodar no seu assento, enquanto umcarregador arrumava as malas no compartimento acima de sua cabeça. Colocou o guarda-pópara a viagem poeirenta, procurou uma posição para o corpo e fechou os olhos. Nãodormiria. Isso era o que mais tinha feito nos últimos dias. Só não queria ver a paisagem. Eficou imaginando o trem como um túnel do qual sairia muito tempo depois.

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A teoria do lobo, 1941—

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Um.Mais magra, e com um vestido gasto, Hertha saiu sem rumo pela cidade. Tudo que vivera alevara àquele estado de desleixo e ao insaciável desejo de vagar como se andasse em umacela de prisão, por uma Blumenau que não era mais sua. Havia tantas formas deaprisionamento, nenhuma pior do que aquela. Poderia ter ido embora, mas achou que nãoseria necessário. Nunca acreditou que seus amigos, jovens que conhecia desde criança, commuitos dos quais tinha dormido na época em que vivia em busca de todas as sensações, quesenhores que ela aprendera a ver como pacatos, cuidando apenas de seus negócios e dosjardins, tentando construir uma vida nova longe da Alemanha, que essas pessoas que atépoucos anos atrás não representavam perigo nenhum agora tinham se transformado emsoldados violentos, em delatores, em perversos opressores, em criminosos. Todos deliravam,sonhando-se no direito de eliminar quem não fosse igual. Ela se identificara aos seus emalguns momentos, porém tudo mudara para sempre. Em casa, Onkel Karl a olhava comtristeza, pois ela se recusava a trocar de roupa, eternamente com o mesmo vestido, que umdia havia sido belo e hoje era quase um trapo.

Na volta de Porto Alegre, sua mala veio cheia de peças caras, e ela as exibia nas festas enos encontros sociais. Era a mulher mais bem-vestida da cidade. Por alguns meses, chamoutanto a atenção que Karl, por timidez, não gostava de sair com ela. Tinha vivido um períodode glória artística na capital do Rio Grande do Sul. Algumas famílias a chamavam para tocarpiano nas festas; ela prudentemente recusava. E todos achavam que era por orgulho. Depoisde se apresentar em Porto Alegre para grandes personalidades, diziam que até Getúlio seencantara com ela, desprezava as pessoas da colônia, achando que somos todos uns broncos.

Os vestidos de festa logo não serviriam nela. Começaria a engordar. Quando Karl soubeda gravidez, um risco naquela vida de jovem bonita e solta, ele se entristeceu. Não dissenada, não censurou nem com um olhar.

— Tudo vai dar certo — ela consolou o tio.— Confio em você.E tal passividade, essa afirmação sem a menor ironia, e sua forma de não reagir aos

golpes fizeram Hertha sofrer bem mais do que se ele tivesse batido nela, chamando-a devadia. Nos momentos em que se encontrava com os amantes casuais e em disputa pelocorpo um do outro, ela gostava de ser chamada de vadia. Talvez, no passado, tivesse saídocom tantos homens apenas para se sentir assim. Os seus amantes podiam se referir a eladesse modo; não seu tio. Isso a ofenderia imensamente. Uma ofensa que seria menor do queaquela confiança cega. Ela teria que se acostumar com a atitude de Karl. Era a sua maneirade enfrentar a derradeira vergonha pública.

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Os primeiros meses de gravidez ela passou praticamente em casa. Achava que diminuiriao desejo, que a presença de um feto em seu útero traria a pacificação. No entanto, assimcomo no resto do mundo, assim como na sua cidade, em seu corpo não havia paz, as forçasda maternidade e do sexo estavam em choque. Ela poderia ser apenas a mãe gestando ofilho por dias; a qualquer momento seu corpo era tomado de assalto pela ansiedade e elasaía, pulando a janela de seu quarto, para um encontro urgente. Já não vagava em busca dehomens. Tinha um endereço. Chegava à noite, às vezes de madrugada, abria o portão e aporta da outra casa com as chaves que ganhara e, em poucos minutos, depois das explosõesde palavras, das crispações de músculos, das contrações de todo o seu organismo, findava abatalha. Então, a mãe se sentia um tanto envergonhada por estar ali nua, a barriga inchada,estendida na cama como quem se rende.

Na viagem ao Rio, saindo num trem à noite, sem se despedir de ninguém além do tio,teve certeza de que o desejo nunca diminuiria. E que nesse seu estado ela dependeria, nacasa de uns novos amigos que a acolheram, apenas de suas mãos. Elas lhe dariam algumalívio até que seu corpo fosse desabitado e ela pudesse receber seu homem e fossem só doisna hora do sexo. Lá, por causa do calor, ela inchou mais do que teria inchado em Blumenau,sofreu mais do que teria sofrido se contasse com alguém da família ao lado, embora osamigos, um casal jovem e sem filhos, fossem bastante atenciosos.

Agora, quando tudo findara, ela continuava sozinha, sem a criança e sem seu homem, eandava pelas ruas na esperança de protegê-los. Passava o dia vagando, sempre com omesmo vestido.

— Lá vai a bela mendiga — comentavam os homens nos cafés e na frente do Cine Busch.— Essa eu já comi — mentiam alguns.— Eu ainda sairia com ela. Só que antes tinha que dar um bom banho, e obrigá-la a tirar

esse vestido.Hertha tomava banho muito espaçadamente e se banhava de roupa, lavando-se numa

bacia, afrouxando o tecido para que sua mão limpasse o corpo com um pano. Os cabeloseram ensaboados, ela de joelhos diante da bacia, daí lavava as pernas, erguendo as barras dovestido para a higiene. Esses banhos, porém, não eram suficientes para lhe dar o aspecto delimpeza.

Usava sapatos masculinos, resistentes para as caminhadas. Saía de casa, na rua doCemitério, rumo ao sul e chegava ao fim da cidade, às vezes entrava na zona rural. No outrodia, pegava o caminho inverso. Percorria assim todos os cantos de Blumenau, ora no sentidoda correnteza do rio Itajaí, ora em sentido contrário, tanto na margem esquerda quanto nadireita. Ter um rio como centro faz de uma cidade uma experiência angustiante. As águasnão param. Ela também não parava. A sua tez logo perdeu a brancura da mulher criada emcasa e ganhou uma cor estranha, de um amarelo sujo, do excesso de sol que tomava na rua.Se tirasse o vestido, ele ainda ficaria desenhado em seu corpo, revelando as áreas brancas desua pele.

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Karl não falava nada. Foi primeiro perdendo o desejo de ir para a loja de ferragens, poistodos comentavam que a sobrinha tinha enlouquecido. Para ele, essa loucura era a da mãearrependida. Tinha dado o filho que não podia assumir. Karl até pensara em ficar com acriança, criar como se fosse de algum empregado, mas nem fora consultado. Quando Herthavoltou do Rio, alguns meses após o nascimento, ela lhe comunicou:

— Ficou por aí.E ele não fez pergunta nenhuma, não confessou que gostaria de educar o bastardo, que

arranjaria uma forma de esconder a verdadeira mãe, que poderia manter o bebê ali comeles. Todos os seus planos secretos se desfizeram e ele outra vez se conformou com essegolpe.

Daí em diante, Hertha também deixara de ajudá-lo nos pequenos serviços da loja. Passavaos dias em casa e dormia cedo. No comércio, com o poder cada vez maior dos nazistas, ele sesentia constrangido. Não participava ativamente das manifestações de louvor a Hitler, nãoperseguia ninguém; até tinha saudades da Alemanha, embora a Alemanha que semanifestava ali não fosse nem um pouco parecida com a sua. Deixava os retratos de Hitler eGetúlio expostos e contribuía para o partido, o que não foi suficiente para que seusfuncionários, nazistas praticantes de todos os rituais, inclusive o da caça aos negros,tivessem menos poder do que ele.

Hertha voltou sem o filho e Karl foi pressionado a arrendar a loja aos funcionários.Tinha algum dinheiro, uns imóveis alugados. E agora passava seus dias em casa, trancadona sala, ouvindo rádio, pelo qual acompanhava os movimentos de Hitler. Este é um tempoem que só ficar em casa já é fazer bastante pela humanidade, pensou. Nas primeirassemanas, Hertha dividia a casa com o tio; depois começaram suas andanças. Eles quase nãose encontravam durante o dia; à noite, exausta, ela se deparava com ele na sala, luzesapagadas, o rádio ligado, apenas a brasa do cigarro acesa. Não tentava uma conversa, ficandoali por uns instantes. Quando Karl tragava, avivando a brasa do cigarro, ela podia enxergarrapidamente seus olhos tristes, perdidos no nada.

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Dois.Passando em frente ao cemitério São José, nas proximidades de sua casa, um lugar em quetudo se iniciara, ela não resistiu e entrou, subindo o pequeno morro coberto de túmulos.Alguns deles, antes bem cuidados, estavam abertos, sob uma camada de cal branca quecontrastava com o verde da grama em volta. À noite, lembrariam fantasmas, pequenasmanchas que a luz da lua iluminaria dando um brilho sobrenatural.

Era como se cada um desses túmulos estivesse esperando por ela, como se fossem umaboca aberta para devorá-la. Um soldado atiraria na alemã que envergonhava sua gente.Como, apesar de causar constrangimento, ela era branca, seria enterrada ali e não nocemitério luterano, pois se afastara da religião de seus pais. Aquele chão pertencia mais aosalemães do que qualquer outra parte da colônia. Embora de certa forma Hertha fizesse partedesta última pátria, ela também a negava.

Começou a contar os buracos cobertos com a cal higiênica e logo desistiu, porque erammuitos e ela seguia por caminhos confusos, voltando pelas vielas já percorridas. Dava paraperceber, porém, que as covas aumentavam a cada dia, a cada denúncia, até nas regiões maisnobres do cemitério. Andou entre túmulos e buracos, pensando nas noites que passara ali,nos momentos em que, invadindo aquela área aberta, vinha se deitar sobre a grama,olhando a lua indiscreta que também cobiçava seu corpo branco, iluminando-o.

Pertencia a uma geração de jovens que acreditara que o amor feito no cemitério era umaforma de convocar a força de todos os mortos, de trazer de volta o sangue dos antepassadosque aquela terra tinha absorvido, fertilizando-se com ele. Quando estivera na Alemanha,soubera disso pelas jovens nazistas, e como estava na época de todas as descobertas, chegoua encontrar-se com um rapaz, durante o dia, no cemitério Friedhof Heerstrasse, tambémdenominado Waldfriedhof Heerstrasse, em Berlim. Ergueu o vestido, encostada em umtúmulo, as costas contra as fotos de mortos (ela se recordava dos olhos tristes de um jovemna imagem da lápide), e o seu companheiro furtivo abriu a braguilha e ficaram ali em pé,numa tarde fria, com pouca gente entre os túmulos e os ciprestes, revivendo a humanidade.Fazer amor no cemitério era principalmente isto para aquela Alemanha prestes a todas asatrocidades: convocar os ancestrais. Hertha virava o rosto, desviando-se da barba áspera docompanheiro, e contemplava os olhos do morto. Se ficasse grávida, seu filho nasceria com asexpressões dolorosas daquele rapaz? Não guardara o nome dele, só a feição desolada. Foium pequeno transe, uma forma de conhecer melhor a cidade, uma excursão sexual por umcemitério famoso. Várias jovens faziam amor nesses locais, sonhando com a época daquelamultidão desaparecida, como se ela as exortasse a lutar contra os inimigos, infiltrando-se emúteros que queriam continuar a grande linhagem. Soube de algumas moças que

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engravidaram nessas idas ao cemitério e que seus filhos nasceram formosos, tornando-se oorgulho dos pais, pois sabiam que neles desaguava uma raça. Não eram somente filhos docasal, vinham de todos os ancestrais.

Nesse período, as pessoas mais reservadas evitavam os cemitérios, sempre povoado porcasais em busca das raízes, abrindo o seu corpo para o que vinha de outras eras, recusando-se a morrer.

Hertha voltou ao Brasil e se esqueceu dos amores nos cemitérios. Tinha se entregado aoshomens em todos os lugares, mas depois da viagem a Porto Alegre se acostumara a algumluxo. Aprendera a gostar de camas macias, de tecidos finos, do odor das flores. Quando secansou de procurar esses ambientes mais requintados, sentiu vontade de fazer amor nocemitério luterano de sua cidade, onde seus pais estavam enterrados, e no católico, perto desua casa. Como não poderia fazer isso à luz do dia, encaminhava-se a um deles à noite,esperando pelo amante.

Agora, tudo isso era passado. Não tinha mais amante, e o cemitério São José estavaesburacado e ela se revoltara com os de sua origem. Andou por aqueles caminhosestrangeiros por mais uns minutos e parou diante de um túmulo recém-despovoado. A calestava fresca, o cheiro de coisa podre tomava o ar. Torrões escuros restavam ao lado. Ela seagachou diante do buraco e pensou: parece um berço. E essa imagem encheu sua alma deangústia. Chorava, diante do túmulo esvaziado, as lágrimas que nunca vertera no jazigo dospais. Ia sempre lá, era o lugar predileto quando se encontrava com o amante. Fazer sexosobre aquele túmulo era usar a cama materna, sendo protegida e abençoada. Nunca sentiumedo ou solidão nessas fugas aos cemitérios porque sabia que os pais a acompanhavam. Seacontecesse algo, ela os chamaria e eles viriam correndo acudi-la. Então, não tinha lágrimaspara quem velava o seu desejo insone. Nunca revelou ao amado por que escolhia sempreaquele ponto do cemitério luterano para se deitar. E antes de tirar a roupa pedia, em seuspensamentos, que a mãe a protegesse.

— Você parece uma santa aqui — ouvira de seu homem.E pensando naqueles momentos de entrega ela chorava diante do vazio, sem saber onde

seu filho e o pai dele andariam.— Era parente da senhorita? — perguntou o coveiro, que se aproximara sem fazer

barulho.Não havia percebido a sua presença, e no entanto não se assustou. Não se assustava com

nada.— Meu filho e meu marido — ela disse.O coveiro a conhecia e sabia que ela era solteira e jamais a vira com uma criança, sempre

sozinha, com alguns homens à noite. Falava-se que ela usava o cemitério para encontrosamorosos, embora ele não tivesse presenciado nada. Hertha ganhara fama de louca e agoravagava suja pelas ruas, por isso não devia ser levada a sério.

— Aqui ficava uma família de mulatos, mortos há algum tempo — informou o coveiro.

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— Meu filho e meu marido — ela repetiu.— Foram retirados hoje depois de uma denúncia.— Para onde foram levados?— Para uma vala comum no campo.Hertha se levantou e, sem olhar para o coveiro, seguiu para a saída. Precisava encontrar

o local onde estavam enterrando de novo os ossos daqueles defuntos indesejados. Ao seaproximar deles, estaria mais perto de seu filho.

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Três.As manhãs eram o pior momento do dia. Acordava com a luz no quarto, pois deixava asvenezianas abertas e as janelas destravadas, na esperança de que à noite ele aparecesse.Esperava todas as noites acordar com outro corpo ao lado do seu. Não de alguém que játivesse saciado o desejo e fosse indiferente a ela, disso tivera em demasia, já conhecera osladrões de sensações, eram dessa índole os homens que se afundavam em seu corpo,vasculhando-o com o eterno instrumento cego, e depois partiam com a urgência da chegada.Homens não lhe interessavam mais, porque eram apenas viajantes, e ela conhecera umcolono, alguém que se ligara àquele solo, que o cultivara, transformando-o em terra fértil.

Como o colono não podia ser dono daquela terra, fora expulso. O mato tomara conta detudo e, desde então, ela se sentia um terreno abandonado, invadido por ervas daninhas,sempre aguardando o retorno de quem saberia cuidar daquele solo.

Noite após noite, esperava por ele. E quando o sol invadia o quarto e a sua solidão serevelava, Hertha tinha vontade de chorar. Dormira esses meses todos com o velho vestido,só raramente lavado, e era com ele que sairia à rua. E se erguia lentamente — o peso de umcorpo que não fazia mais sexo era no mínimo duas vezes maior do que os que tinham esseprivilégio —, procurava com os pés os sapatos pretos, sapatos de andarilho, deixados ao ladoda cama, calçando-os sem olhar para o chão. A sua vida se dividia entre a cama e os sapatos.Ao calçá-los, sabia que outro era o ciclo. O tempo de esperar havia acabado, começava otempo de procurar.

Já na cozinha, encontrava o café preparado, embora Onkel Karl não estivesse lá. Para ele,só havia o tempo de se esconder. Ela comia o pão amanhecido e tomava em pé a caneca decafé com leite, na frente da mesa, como se não fosse mais permitido se sentar, pois precisavasair. Essas andanças, que haviam deixado sua pele queimada, também afinaram seu corpo,guardando da sua antiga beleza apenas resquícios. Ossos saltados no rosto, braços e pernasdelgados, dedos desnudos de carne. Embora comesse regularmente, ela murchava.

Ao sair da casa pela porta da cozinha, contornando a construção para chegar ao jardimda frente, naquele dia seguinte à sua conversa com o coveiro, já decidida a ir em busca davala dos negros, sentiu que algo aconteceria.

Talvez enterrassem lá também os negros mortos nos trabalhos escravos das fábricas efazendas, misturando os ossos antigos com os dos cadáveres novos. Não suportariaencontrar no meio das ossadas um corpo ainda apodrecendo. Os ossos não nos assustamtanto porque são a parte mineral do corpo, não são propriamente o corpo, e sim algo quenão apodrece. Ficava imaginando como seriam os olhos de alguém em estado de putrefação.E isso lhe despertava calafrios. Pensara nessas coisas muitas vezes antes de dormir, na noite

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anterior, e pela manhã essas imagens retornavam, com mais força ainda.Quando chegou perto do portão, viu ossos jogados ao lado das hortênsias floridas. Achou

que era apenas um pesadelo acontecendo à luz do dia. Pensara tanto em esqueletos durantea noite que eles invadiam a sua existência diurna. A única forma de demolir uma miragemera tocando-a, para que sua matéria de sonho se esboroasse. Hertha se aproximou dosossos, um fêmur e algumas tíbias, e se abaixou sobre eles. Eram de gente. Não tinha dúvida.Lembrou-se de suas aulas, do esqueleto que ficava na sala, e também da vez em que fora vera exumação de um corpo junto com os colegas. Sem dúvida, eram humanos aqueles ossos.Talvez não fossem reais, apenas uma visão.

Então conduziu o seu dedo lentamente até o fêmur, sentindo a sua textura porosa e fria,o que a levou a contrair o braço num impulso e precipitar o choro. Eram os ossos de seurebento. Estivera todo esse tempo procurando por ele e alguém jogava os seus ossos ali, noseu quintal. Esperara o pai aquela noite, como em tantas outras, e quem aparecera fora acriança perdida. Não podia pular a janela para encontrar-se com ela e ficara esperando.Tudo que procuramos também nos procura de forma muito mais intensa, ela pensou.

Hertha se sentou no chão. Por que tinham matado seu filho? Era ele ali, sabia disso deuma forma que só as mães podem saber. Ele estaria com pouco mais de um ano, comossinhos finos e frágeis, que teriam talvez a superfície perfeita do mármore. Ninguémpoderia, entretanto, convencer Hertha de que aquelas peças grandes e velhas, comidas pelaacidez da terra, não pertenciam à sua criança.

Com as mãos, e chorando de maneira contida, começou a cavar o chão do jardim. Nãodeixaria aqueles ossos sem uma cova. Seus dedos finos entravam na terra com facilidade elogo havia um pequeno buraco, insuficiente para o corpo de uma criança. Ela continuavacavando, molhando a terra com suas lágrimas. Sempre ouvira dizer que era bom mudarpara uma casa nova num dia de chuva. Ela regava a cova do filho com lágrimas absorvidasrapidamente pela terra. Ele ficaria para sempre no quintal, ela não precisaria mais percorrera cidade à sua procura. Também não ficaria em uma vala comum, seria ao menos umtúmulo. E pensando nisso tudo, no descendente que ela não soube reter, cavava o jardim. Eseus movimentos iam ficando acelerados. Fazer uma cova grande, onde também pudesse seenterrar. Uma cova do tamanho de seu útero seria insuficiente. Seu menino crescera, vejamesses ossos, ela teria que fazer um buraco grande para que pudesse entrar com ele no colo edepois arrastar a terra sobre eles como a mãe que se deita com a sua criança e puxa umcobertor que vai protegê-los do mundo, das assombrações, dos perigos da noite e tambémdo frio. E ela estava sentindo muito frio agora. Queria esse cobertor. Por isso tinha quecavar, cavar o chão do quintal, cavar o berço para seu filho, cavar o útero. E ela cavava, comforça, com raiva, ajoelhada sobre aquela terra.

Sentindo uma mão tocar em seu ombro, não olhou para a pessoa a seu lado.— Você está se machucando — ouviu alguém dizer.As pontas dos dedos de Hertha sangravam. O chão tinha pequenas pedras e ela se

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lanhava ao tentar arrancá-las. Como não parasse, o homem às suas costas a abraçou,travando os seus braços. E ficaram ali, em silêncio. A respiração de Hertha foi se acalmando.O seu choro virou apenas um resmungo.

— Vamos entrar — Onkel Karl falou.E só nesse instante ela o olhou.— Eu ia sair — ela disse.— Pode sair depois, agora é preciso cuidar desses dedos.— Por que jogaram os ossos dele aqui?— Você sabe que não são dele.— Sim, são.— São de um adulto.— Será que ele está grande?— Grande e forte.— O senhor tem certeza?— Tenho — ele respondeu, levantando-se com ela, sem deixar de abraçá-la.Foram para dentro, e Karl a levou até o banheiro.— Agora se lave.— Devo tirar este vestido?— Só se quiser.Ela o retirou enquanto o tio olhava para a parede. Em seguida o entregou a ele.— Seria bom lavar — ela disse.— Eu lavo.Hertha tomou um banho demorado, Karl lavou cuidadosamente o vestido que ela usara

nos últimos meses, deixando-o no varal. Era como se estivesse pendurando a própriasobrinha, que aparecia ali como uma enforcada por ter engravidado solteira. Ele sentiu umasaudade profunda do sobrinho-neto que nem conhecera. Vira apenas a barriga meio salientede Hertha. Ela partiu e ao retornar sua barriga estava do tamanho de sempre, nem mesmoengordara um pouco, apenas seus seios ficaram mais volumosos. Agora eles tambémvoltaram ao normal. E Karl nunca viu a criança, não sabia nem o nome dela. Esse era umassunto proibido.

Ao entrar na cozinha, encontrou Hertha com uma camisola, sentada à mesa. Tentavafazer um curativo nos próprios dedos.

— Deixe-me ajudar — pediu Karl.E se sentou a seu lado para cuidar dos ferimentos. Na época em que ela era criança, ele

gostava de pentear seus cabelos, de arrumar o laço de seus vestidos, de amarrar o cadarçode seus sapatos. Eram formas de amar a sobrinha. Isso tudo ficou impossível; ela cresceurapidamente e se afastou dele. Fez-se mulher muito cedo, e ele sempre tivera receio de sermal interpretado em algum carinho inocente. Agora, era a menina de dez anos esperando aajuda do tio.

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Preparou o curativo em silêncio, com atenção aos machucados.— Será que vai ser rápido?— Demora um pouco para cicatrizar.— Estou falando do vestido. Será que seca rápido?Karl não entendia a dedicação doentia a essa peça de roupa, que já estava gasta e

desbotada. Enquanto a lavava, com cuidado para não rasgar, sentiu o desejo de dar um fimàquela estranha veste, porém sabia que a sobrinha nunca o perdoaria por isso. Era comumuma criança se apegar a um travesseiro, a uma manta ou a qualquer outra parte do seuenxoval, agora um adulto agir assim?

— Está fazendo bastante sol — ele respondeu.— Vou ficar aqui, esperando.— Fico com você.— Sabe o que eu queria entender?— Diga.— Por que jogaram o esqueleto do meu filho no jardim?O que ele poderia responder? Ela sabia que eram apenas ossos indesejados que estavam

sendo banidos do cemitério. E acabaram ali como uma afronta àqueles que já nãomarchavam com os nazistas. Karl fora simpatizante do nazismo, depois, quando começaramos primeiros desmandos, ele perdeu todo o entusiasmo e veio a repulsa. Não podia mais veresses homens uniformizados, o ódio que estampavam nos olhos. Resolveu então se recolher.Talvez tenha sido essa a razão daquela provocação. Como eles eram alemães e não ajudavama limpar a cidade dos elementos com sangue estranho, tornaram-se um alvo. Era uma formade dizer: vocês aprovam esses negros, fiquem com eles. Com certeza, mais ossos apareceramem outros jardins.

— Você quer que eu enterre os ossos?— Debaixo da aroeira-brava…Nos galhos dessa aroeira, havia ainda o balanço que Karl mandara fazer para a menina

Hertha. Era uma árvore imensa, com sua copa aberta, tomando conta de toda a área dosfundos. Nas tardes de calor, gostavam de se sentar à sua sombra. De toda a infância de -Hertha sobrara apenas aquele balanço velho, a tábua do assento meio podre, as cordasestragadas. Ninguém o usava nem tinham coragem de tirá-lo dali.

— Vou fazer isso agora — Karl disse, levantando-se.Era urgente enterrar aquela criança. Enterrar a criança que Hertha havia sido. Enterrar a

lembrança do filho que ela perdera.O tio pegou um saco e uma pá na garagem, agora vazia, pois tinham vendido o Chevrolet

ao arrendar a loja, e seguiu para o jardim. Colocou os poucos ossos no saco, usando a pá, efoi até a aroeira. O vento mexia o balanço. Karl cavou um buraco pequeno e fundo, jogou ládentro o saco com os ossos velhos e viu que ainda sobrava espaço. Com a lâmina da pá,cortou a corda amarrada no tronco da aroeira e o balanço caiu. Ele jogou aquilo também no

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buraco e cobriu tudo com terra, pisando sobre o local com força para deixar as marcas dasola de seus sapatos. Olhava sempre na direção da janela da cozinha para ver se Herthaestava acompanhando o enterro pela vidraça, e não a viu em nenhum momento.

Ao voltar, constatou que o vestido já podia ser recolhido. Estava tão fino que o sol e ovento deixaram suas fibras secas. Tirou-o do varal e o levou para dentro. Hertha não estavana cozinha nem na sala. Ele a encontrou no quarto, dormindo com a janela fechada. Oquarto se fizera escuro naquela manhã de sol. Devia sonhar com o filho.

Karl colocou o vestido na parte da cama que ela não ocupava com seu corpo magro e seretirou. Antes de fechar a porta, teve a impressão de que aquela peça de roupa enfimdescansava.

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Quatro.Onkel Karl tentava se lembrar do início da mudança. Em alguns momentos, pensava quetudo acontecera com a gravidez, que colocara a mãe deprimida no lugar da mulherexuberante, fazendo de sua sobrinha uma figura aluada, nessa demência de não saber paraonde ir. As senhoras falavam que Hertha contraíra sífilis de seus casos amorosos e que seucomportamento era próprio da doença não curada. Ao ouvir isso, Karl não a julgou nem seindignou, pedindo a um amigo médico que fizesse um exame nela para saber a verdade. Oresultado fora negativo. Ela não tinha a moléstia e suas atitudes eram, provavelmente,decorrência de algum choque, confidenciou o médico. Foi assim que o tio passou a pensarna doação irrefletida do filho, numa crise logo após o parto, um parto não acompanhadopelo pai. Uma mãe, mesmo uma mãe solteira numa cidadezinha interiorana, devia ter odireito de criar com orgulho o seu filho. Karl queria uma criança vagando pela casa, umacriança que fosse a presença de Deus entre eles. Por não ser pai, sentia a necessidade de umneto. Ela não consultara o tio, afastando-se da cidade para dar à luz, sem sequer pedirdinheiro, pois ainda guardava as sobras do seu pagamento. Na volta da longa viagem, aviagem mais longa que fiz na vida, foi o que ela lhe dissera, viera envelhecida uns anos epronta para a melancolia. Chorava pela casa, às escondidas para não preocupar demais o tio,que ainda assim percebia tudo.

Em certas horas, ele tinha certeza de que a gravidez e a renúncia ao filho haviamdestruído a vida da sobrinha, que fora se isolando até se transformar na quase mendiga dehoje, que percorre um caminho com sentido apenas para ela. Foi ficando tão relaxada que sóusava aquela peça de vestuário. No armário, descansavam os outros vestidos, os chapéus, ossapatos todos, como se de alguém morto. Hertha nem abria as portas desse móvel, quepertencera a seus pais.

Talvez tudo tenha começado com a viagem a Porto Alegre. No seu retorno, época em queainda saía exibindo-se na cidade, o tio notara uma mudança. Durante o dia, ela se dedicava àrotina, numa alegria que parecia inalterada, e a novidade era que vários rapazes aconvidavam para passeios, uma coisa até respeitosa, porque procuravam Karl, falavamaonde iam e a traziam de volta. Se não mudassem tanto, se não fossem um a cada lua, Karlaté saberia os seus nomes e aprovaria a popularidade da sobrinha. Nunca a reprovou, nãodeixando de ficar preocupado com a facilidade com que ela arrumava amigos, quedesapareciam rapidamente. Nesse tempo, não havia outras preocupações, até começarem ospesadelos.

No meio da noite, Hertha o acordava com gritos, pedindo que não a matassem, ela nuncacontaria a ninguém, nunca saberiam. Na primeira vez, pensando em algum ladrão, o tio

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pegou sua Luger do tempo em que servira na Grande Guerra. Nunca se separava dessapistola, que, junto com Hertha, era toda a sua família. Correu para o quarto com a arma namão. Ao abrir a porta, a sobrinha estava se levantando da cama:

— Não me mate — ela gritou.Ele acendeu a luz.— Ah, é o senhor.E voltou desconsolada para a cama, chorando tanto que o colchão se mexia. O seu sonho

a deixara assim durante toda a noite, sem querer falar nele, talvez o simples fato de contaralgo a colocasse em perigo. Pela manhã, cuidou da vida como se não tivesse havido nada. Apartir daquele dia, ocorreriam muitos pesadelos. Karl já não se levantava e só conseguiadormir ao vê-la calma de novo. Sabia então que voltara ao sono, que não se atormentavamais com o que acontecia apenas em sua cabeça, e isso o punha minimamente em paz paradescansar nas últimas horas da madrugada.

Num café da manhã, depois de mais um pesadelo, conversou com Hertha:— Com o que você sonha?— O senhor escuta?— Algumas vezes — ele mentiu.— Coisas sem sentido.— Quem quer matar você?— No sonho?— Por quê? Tem gente querendo matar você na vida real?— Não, não tem.— E nos sonhos?— Eu não sei quem é. Uma mão. Um homem bem-vestido, com terno. Vejo os seus

sapatos, brilhantes. Eu não tiro os olhos dos sapatos. E não tenho coragem de olhar o rostodele.

— Ele se esconde?— Não. Não olho por medo.— Da próxima vez olhe.— Vou tentar.Karl nunca soube se ela olhou ou não, pois Hertha passou a se irritar toda vez que ele

abordava o assunto.— É só um sonho! — respondia.Para o tio, era um sonho muito verdadeiro, e cada vez ela se desesperava mais. Se já não

chorava tanto, ainda gritava dormindo, como se estivesse apanhando.Talvez tenha sido aí o começo da mudança de Hertha. Deixou de ser a mulher bonita que

se encantava com o seu poder de seduzir as pessoas para sofrer sozinha. Um sofrimento quesó crescia.

Karl também se lembrou de um jovem que ela trouxera para conhecê-lo. O último antes

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da partida para o Rio. Seu nome, Julius Meister. O que mais desagradou a Karl foi apresunção desse jovem nazista, que tinha chegado da Alemanha com fama de herói nainvasão da Polônia. Era um oficial fanático da tropa paramilitar e sempre humilhava todomundo. Não entendia por que Hertha aceitara a corte desse rapaz, a quem Karl receberacom educação e frieza.

Ele diria para Hertha:— Seu tio não gosta dos nazistas.— É um de vocês.E Julius Meister rira, fazendo com que ela percebesse o erro.— Um de nós — ela logo se corrigira.

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Cinco.Julius a procurou indicada por Bruno Fricke. Estivera em Porto Alegre antes de seguir paraBlumenau, e o seu amigo da Gestapo lhe falou que devia conhecer a mais linda alemã queele vira no Brasil, alguém para casar. Movido pela curiosidade, assim que chegou aBlumenau se apresentou como enviado do cônsul alemão Friedrich Ried. E naquela tardesaíram para um chá na Padaria e Confeitaria Socher, na rua XV, a antiga rua do Comércio,onde tudo acontecia.

Hertha foi ao encontro com algum temor, por imaginar que os nazistas precisassemnovamente dela. Colocou um vestido novo e chegou à confeitaria de carro, para mostrarindependência. Julius ajudou-a a sair do Chevrolet dando-lhe cavalheirescamente a mão; eassim os dois seguiram para uma mesa nos fundos. Tinham se conhecido na loja deferragens do tio. Hertha ainda ia lá algumas vezes por semana, antes do arrendamento.Julius a aguardava na loja ao lado, de um nazista amigo. Foi quando combinaram o encontrona confeitaria.

— Aqui está bom para você? — ele perguntou.Não estava. Nem ali nem em lugar nenhum. Os últimos meses revelaram a ânsia

destruidora dos nazistas. E Hertha se sentia culpada por ter colaborado. Havia desenvolvidouma teoria na qual acreditava de forma absoluta. A história pode ser modificada com umpequeno gesto pessoal. Pode ser alterada ao se dormir ou não com alguém. Se você saiu comum homem bondoso, dando a ele uma alegria nova, a de poder ter como companhia umamulher jovem e bela, esse homem tomará decisões acertadas e essas decisões desencadearãooutras com energia semelhante. Tudo começara com uma noite de sexo, e essa força fora sealastrando entre as pessoas, contaminando-as. Lá na frente, em algum lugar que nemimaginamos existir, seu corpo estará ainda despertando o que há de melhor nas pessoas.Outros passarão, sem saber, por sua cama, entrarão carinhosamente em seu sexo, sentirão amaciez de seus lábios, ouvirão, sem ouvir, os seus sussurros doces, e você será responsávelpelo que acontecer. Por outro lado, se você dorme com um assassino, se você deixa que elesuba sobre seu corpo com a raiva com que ele passa sobre o cadáver dos inimigos, entãovocê se faz responsável por todas essas atrocidades. Acuada, você não dirá palavras dedesejo nem sentirá um estremecimento verdadeiro, jamais gostará de ter ficado aquelesmomentos com ele, e seu sentimento de repulsa vai continuar se multiplicando por meiodesse homem.

Como havia se entregado a Hitler, tudo que ele fazia, a cada novo ataque, quando eleinvadia um país, matando gente, era responsabilidade dela. Devia fazer coisas que anulassemminimamente esse seu ato errôneo. Existiam centenas de milhares de responsáveis pelas

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barbáries do Führer, todos aqueles que tinham gritado Heil Hitler, que o tinham elogiadocomo líder. Ao ouvir os programas nazistas na Reichs-Rundfunk, principalmente na hora emque havia gente em casa para demonstrar que, sim, eram partidários, ela também se sentiaresponsável. Só escutar a propaganda deles era uma forma de contribuir com o extermíniode judeus na Europa e a perseguir negros aqui.

Sair com Julius era matar pessoas. Aceitar a sua mão para descer do carro era aprisionarinocentes. Na presença deles, ela não se sentia bem em nenhum lugar. Mas seu pretendenteestava ali por recomendação da Gestapo.

Os dois se sentaram à mesa e logo fizeram os pedidos. Julius, entusiasmado; Hertha,como se pedisse a sua última refeição.

— Sabe por que procurei você? — ele perguntou assim que o garçom se afastou.— Espero que não seja para tocar piano.— Você toca piano? — ele perguntou, inocente.Não sabia, portanto, dos arranjos que Bruno fizera para levar a filha da colônia a uma

noite de luxúria.— Parei de tocar.— Que pena.— Por que me procurou?Ele buscou a mão dela sobre a mesa, dizendo:— Porque me sinto extremamente só.Pela primeira vez ele fora humilde, deixando a pose de herói. Só andava com o uniforme.

Hitler tinha criado a crença no uniforme. Era a pele social. Não deixar de dizer a todos quesomos arianos, que temos orgulho, um desmedido e imorredouro orgulho de formar umgrupo à parte. Não bastam a pele branca e os olhos claros, é preciso exibir a farda. É comouma mulher com joias caras, ainda quando é tão exuberante que as pessoas não podem veroutra coisa além de sua beleza. É que as joias são o resumo dessa beleza. E o uniforme, aimagem da distinção nazista. A última frase de Julius foi uma tentativa de se despir. Queriaser visto apenas como um homem solitário.

Chegaram os pedidos, eles beberam o chá, provando os pedacinhos de apfelstrudel.Um pouco por esse ato de humildade, um pouco por medo da Gestapo, Hertha acabou

saindo com Julius, não naquela tarde, e sim num outro encontro, à noite, no dia em que elea foi buscar com um carro de praça. Jantaram no hotel Holetz, na rua XV de Novembro coma alameda Rio Branco, e mais tarde ela foi ao quarto que Julius Meister estava ocupando. Elequeria mostrar as fotos da campanha na Polônia. Ela sentiu náuseas ao vê-lo em pé entrecadáveres.

— Todos judeus — ele falou, orgulhoso.Seus corpos se uniram em seguida, ela consciente de que estava colaborando com

aquelas atrocidades ao curar a solidão de Julius, essa solidão extrema que se chama falta desexo.

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Tornou-se assíduo em sua casa e Onkel Karl reclamou que não entendia por que Herthaestava há tanto tempo com Julius.

— Você gosta dele?— Não. Mas ele me domina.— Domina como, querida? Pela força?— Pelos olhos.Karl sorriu. Ela estava apaixonada pelo nazistinha detestável. Teria que suportar a

presença dele, talvez até resolvessem se casar. Poderia escolher outros homens, alguns ricos,no entanto acabaria com esse soldado presunçoso.

Hertha saía sozinha algumas vezes, talvez tivesse outro amigo. Era a esperança de seu tio.Esperança cada vez mais remota, pois logo Julius os informou:

— O partido vai me ceder uma das casas dos brasileiros assim que eu me casar.Hertha ficou em silêncio. Percebeu que ele não a pediria em casamento, não faria

nenhum tipo de reverência ao seu tio nem a ela. Anunciaria o casamento, definindo a data etudo sem consultá-la, sem consultar ninguém. O sangue é algo mais poderoso do que tudo,tal como está nas adagas nazistas: sangue e força. Sexo e força seria uma variante.

A proximidade de Julius foi revelando que Karl e Hertha, antes mais nazistas, agora eramcríticos em relação ao partido. Não aprovavam as perseguições que estavam sendo feitas nacidade.

Hertha acabaria sendo sua mulher se não descobrisse a gravidez. Ela já desconfiava dissohavia algumas semanas, tentando acreditar que o atraso de suas regras estivesse dentro danormalidade. Não se lembrava direito há quanto tempo estava sem o incômodo mensal. Aosentir os bicos dos seios doendo, teve certeza: engravidara. Só com uma pessoa não secuidava durante o sexo tão enlouquecido, feito até entre os túmulos do cemitério, emcontato com a noite vasta, com os ventos que vinham de longe, com o orvalho que a ungia.Só podia ter ficado grávida naquela noite em que chovera e eles se uniram sob os raios, oscorpos molhados, indiferentes ao clima. Por mais de uma hora ficaram assim sob a chuva enão sentiam frio mesmo após vestirem as roupas encharcadas, os sapatos mal entrando nospés, para irem embora. Ela tivera a impressão de que algo queimava em seu útero,aquecendo-a. E agora descobria que o que a habitava como um fogo, como uma brasa, comoum pequeno sol, era um filho. Um filho que só poderia ser dos dois, de ninguém mais.

Foi ainda com esse calor antigo, o rosto queimando de emoção, que ela revelou agravidez a Julius, quando ele a procurou em casa. Não batia palmas, tinha o horário deaparecer e entrava contando com a porta apenas encostada. E sempre estava.

— Trouxe geleia — ele falou.Todos os dias trazia algo, algo barato, como se fosse o provedor. Depois de namorar uns

minutos, tentava convencê-la a um passeio, que acabaria no seu quarto no hotel Holetz.— É melhor levar de volta — ela disse.Para ele, essa frase era impossível. Não se recusa um presente. Não imaginava que

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alguma coisa que ele decidisse pudesse ser contrariada. Ficou com a geleia na mão, sem sesentar à mesa da cozinha, tal como sempre fazia, aguardando algo para comer.

— O que você disse?— Estou grávida de outro homem.Era sempre melhor dizer tudo de uma vez, jogar as palavras como bombas contra o

inimigo.E a resposta de Julius foi um tapa com a mão esquerda, pois a direita estava segurando a

geleia. E no mesmo impulso do tapa ele saiu da casa, sem fechar a porta, sem dizer nada.Começava a guerra. E ela não estava mais do lado dos nazistas.

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Seis.Foi um de seus empregados quem recebeu, passadas algumas semanas, o comunicado daPrefeitura. O funcionário chegou em horário de muito movimento na loja e disse em vozalta que trazia uma intimação para Karl Sheiffer, que devia comparecer ao setor de Obraspara regularizar a sua residência, e entregou o envelope fechado. Essa forma de anúnciopúblico, as palavras escolhidas (intimação, regularizar) e o simples fato de sofrer umaconvocação serviam para tornar a pessoa suspeita. A partir daquele momento, todossaberiam que Karl tinha problemas com os nazistas e isso começaria a isolá-lo dentro dacomunidade. Ao começar a perder o comando de sua loja, ele concluiria que fora ali, naquelamanhã de sábado, quando havia gente de toda a cidade e das fazendas da região fazendocompras, que se iniciara o processo de difamação. Os próprios funcionários devem terespalhado que o patrão estava com dificuldades na Prefeitura.

Toda manhã, nos últimos vinte anos, Karl levantara cedo, preparara o seu café, e emseguida o de sua sobrinha, antes da chegada da empregada. Embora tivesse carro, preferiaseguir a pé para a loja na velha rua do Comércio, que acompanhava o rio Itajaí. O dia malcomeçava. Nesse seu caminho, sempre o mesmo, ele se encontrava com trabalhadores e comum ou outro boêmio, nunca com patrões, que saíam de casa mais tarde. Do tempo em queserviu na Marinha alemã, guardou esses hábitos madrugadores. Então, gostava de seantecipar aos empregados e ser o primeiro a chegar à loja. Abria a porta dos fundos, tirandoo imenso cadeado que segurava uma trava de ferro, e entrava no prédio. O cheiro dasferragens, dos óleos usados para lubrificar máquinas, das tintas, tudo isso fechado porhoras, dava ao ar uma fragrância diferente. Ele se sentia como dentro de um submarino deguerra, em plena batalha. Gostava de respirar aquele ar. Se não se encontrasse no Brasil,talvez já estivesse morto, talvez continuasse sendo um nazista como tantos de seus amigos.O novo país o afastara daquele mundo, e ele não conseguia entender por que perseguirnegros e mestiços. Não tinha nada contra a mistura das raças e até adotara alguns doshábitos locais, como o do mate. No início, achava estranho sorver aquela infusão amarga deum canudo que passava de boca em boca. Agora, esperava sempre as primeiras horas do diacomercial para se dedicar ao chimarrão, indo até o limite do enjoo. Um germano que tomavachimarrão todos os dias deixara de ser alguém puro. Pertencia um pouco a outra raça.

Ao entrar no prédio que lhe lembrava um submarino, ele sabia que não era mais ocombatente da Marinha, e sim um vendedor de objetos que ajudava a melhorar a vida daspessoas. Cruzava todo o salão sem acender uma lâmpada e ia até as portas da frente, de duasfolhas cada uma. Abria a primeira, também tirando a barra de ferro de proteção. Era omomento especial de seu dia, ver a luz da manhã entrando na loja, banhando tudo de um sol

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distante. Ele então escancarava a outra porta, guardando as duas barras de ferro. Ficaria poralgum tempo com o cheiro de metal em suas mãos, intensificando o perfume de ferragens.

Aberta a loja, buscaria uma vassoura e começaria a varrer, dos fundos para a frente,recolhendo resíduos do dia anterior e principalmente a poeira acumulada. Usava uma formalocal de limpar o chão, à qual aderira como ao mate amargo. Jogava serragem no piso,borrifava água de um balde e ia levando essa matéria úmida que não deixava o pó selevantar. Por mais sujeira que houvesse, o ar ficava livre das partículas de terra. Nesseestágio, no lugar do odor de ferro surgia o da serragem. Se fosse de pinheiro, ela iaescurecendo rapidamente ao ser empurrada. Se de madeira escura, como a imbuia, haviauma intensificação da cor. Em vinte minutos, Karl varria todo o piso. No final, ele tinha umbalde cheio de serragem suja, que era jogado no fundo do quintal, num monte que cresciapacientemente.

Ao aparecerem, os funcionários encontravam tudo em ordem; Karl já preparara o mate.Ali no balcão, antes dos primeiros clientes, eles sorviam o líquido amargo. Nãoconversavam, cada um fazia pequenas tarefas, parando na vez de esvaziar a cuia. Concluídoo ritual, Karl se recolhia ao escritório para cuidar da escrituração da loja, dos pedidos e dospagamentos. Só na hora do almoço voltava ao balcão. Foi ali que recebeu a intimação. Nãodeu valor a ela, trabalhou junto com os funcionários e, no fim do expediente, foi a pé paracasa, sob o sol quente do meio-dia.

Após almoçar com Hertha, ela sentindo enjoos de sua gravidez oculta, abriu o envelope.Um funcionário exigia que comparecesse ao setor de Obras às oito da manhã de segunda-feira. Havia certa crueldade nesse comunicado feito numa manhã de sábado. Ele não teriacomo se informar sobre o assunto até o início da semana e sofreria com a espera, sem saberexatamente o que a Prefeitura desejava. Seus impostos estavam em dia, não praticava nadailegal, não vendia o que não podia. Talvez desconfiassem que comercializava armas semautorização, como muitos que atendiam as tropas nazistas e seus simpatizantes, mas nuncafizera isso. Sua única arma era a velha Luger, fabricada em 1909. Uma lembrança daMarinha, relíquia de um ex-combatente. Há quem guarde fotos, roupas e condecorações, elereteve apenas a sua pistola. Diversos soldados apareciam com armas pela rua, a guerrachegaria em breve a essa parte esquecida do mundo, e ele sabia das entradas ilegais dearmamentos pela fronteira com a Argentina. Quem estava no comando eram os nazistas,aqueles que agora dominavam a Prefeitura. Talvez perseguissem um ex-combatente que nãofrequentava as reuniões do partido. Não, todos esses temores eram imaginários. Não serianada disso. Não seria nada.

Naquele fim de semana, levou a sobrinha a um passeio de carro pela colônia.Participariam de uma festa. Era uma forma de esquecer o problema que teria na segunda-feira. Ela aceitou meio sem vontade; queria poder esclarecer as coisas para o tio. Saíram bemcedo, depois do café preparado pelos dois, o que era raro, já que Hertha acordava tarde. Karlpediu que ela fosse dirigindo o Chevrolet, não só porque não apreciava guiar, mas também

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por gostar de ver a sobrinha dominando o automóvel. Era uma mulher moderna. Ele podiater errado ao criá-la solta, porém sempre se orgulharia de vê-la com o carro, principalmentequando dirigia nas estradas rurais, cruzando com bois, cavalos e carroças. Estavam à frentede todos.

Ao chegarem a Itoupava, pediu que ela parasse um pouco numa venda com comida,bebida e instrumentos agrícolas. Os dois desceram do carro, estacionado ao lado de cavalosamarrados a um tronco. Entraram cumprimentando os roceiros, que já bebiam cerveja aobalcão. Hertha se vestia de forma esvoaçante, com os cabelos agressivamente livres, umhábito nascido após sua viagem a Porto Alegre. Aqueles homens estavam acostumados amulheres de coque e não gostaram de vê-la.

Em pé, diante do balcão, Karl pediu uma cerveja e dois copos. O dono os serviu meiocontrariado. Sobrinha e tio ignoraram a má vontade, enchendo o copo até a espumatransbordar no balcão. Fizeram um brinde e beberam um primeiro gole.

— Eu me viciaria em cerveja se todos os goles tivessem o sabor do primeiro — ela disse.Riram, logo secando os copos. Havia ainda cerveja na garrafa, mas eles não queriam

mais. Karl pagou a bebida e se despediram dos clientes, ainda mais incomodados com asaída brusca do que com a presença daquela mulher moderna. Do balcão, aqueles lavradorescom uniformes dominicais olharam Hertha entrar no carro, no lugar do motorista.

— Estão por tudo, em todos os lugares — Karl falou.— Já fomos um deles.— Não era tão vergonhoso.Meia hora depois, pararam num mirante, de onde dava para ver toda a região. O vento

era intenso, as roupas de Hertha se moviam como num varal. Eles viram bandos de pardaispelo chão.

— Parece que agora há mais pardais — disse Hertha. — Não me lembro de tantos assimna minha infância.

— E nada impede que eles aumentem.— Vejo cada vez menos sabiás, menos canários-da-terra, menos pica-paus. Será que os

pardais espantam as outras aves?— Não sei, filha.Ao tratá-la como filha, Karl criou a oportunidade esperada. Olhando para a distância,

para os vales longínquos, sentindo o vento que arrepiava os bicos doloridos de seus seios,ela disse, com a maior naturalidade que conseguiu:

— Terei que ir ao Rio para ter meu filho.Karl se virou para ela; Hertha continuava fitando o nada. Quando se cria uma mulher

livremente, nada deve nos surpreender. Não pode haver cobranças, tudo tem que unir.— Eu já tinha percebido o seu estado, só que você não precisa ir ao Rio — ele falou, num

tom carinhoso.— Preciso! — ela retrucou com força.

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E essa palavra era como um grito silenciado, um grito tão forte que os pardais ao redorvoaram ao ouvi-lo.

Ficaram um tempo longo em silêncio, cada um dialogando com os próprios fantasmas.— Vamos? Não quero chegar atrasado para a festa — propôs Karl ao final dessas

meditações.Entraram no carro, e agora não eram apenas dois. Karl seguiu falando de inúmeras

coisas, da infância na Alemanha, da Marinha, dos primeiros anos no Brasil. Emendava umahistória na outra para não ter que conversar sobre a gravidez da sobrinha. Temia magoá-lacom alguma opinião inadequada. Hertha se concentrava na direção, mal ouvindo o tio. Eleteve que dizer duas vezes a frase, para que ela entendesse:

— Pare o carro antes desta curva.No instante em que ouviu, parou de uma vez, produzindo uma nuvem de poeira na

estrada, que os cobriu, entrando pelos vidros abertos.— O que foi? — ela perguntou, tossindo.— Nada, só queria mostrar uma coisa.Saíram do carro enquanto a poeira se dispersava, seguindo para uma cerca. Do outro

lado, ficava uma imensa plantação de eucaliptos.— Está vendo isso?— Um reflorestamento.— Na minha chegada, ainda havia bastante mata. Várias regiões eram verdadeiras

florestas. Eu não me conformava.— Com o quê?— A desordem. Árvores grossas ao lado de árvores finas e de arbustos. Várias espécies.

Algumas com flores, outras com copas largas. Para andar no meio era um sacrifício.— Vocês tinham que andar no meio?— Vistoria das áreas para tirar a madeira. Foi meu primeiro trabalho aqui.— Não sabia.— Os cipós, os galhos tortos, tantas espécies, os pássaros, muitos pássaros, os animais.

Tudo me revoltava e me fascinava.Karl ergueu o arame da cerca para Hertha e também passou pela fresta. Andaram no

meio dos eucaliptos eretos, plantados em linha reta, com espaçamento fixo. O chão estavasem mato. Era fresco ali, e tudo tinha um cheiro forte de produto químico, liberado pelasfolhas e cascas das árvores.

— Para mim, as florestas deviam ser todas assim, iguais, regulares. Demorei a meacostumar com as florestas tropicais, com a fartura, o excesso, a confusão. A gente olhavauma árvore e via o galho florido da outra dentro de sua copa.

Após um breve silêncio, Karl disse:— Promiscuidade.— O quê? — Hertha achou que ele a acusava.

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— Uma floresta promíscua, mas muito rica, muito viva. Eu queria uma floresta militar.E eles olharam os eucaliptos.— Muita gente tem plantado eucalipto — Hertha falou.— Muita gente. Quando são adultos, embaixo deles não nasce nada. Nem aves a gente vê.E voltaram em silêncio para o carro.

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Sete.Todos dançavam na festa do Rei do Tiro, quando se comemorava o melhor atirador de todosos clubes de tiro e de caça na região. O deste ano era desta localidade rural. As pessoas quenão se arriscavam no salão marcavam o passo com a batida do caneco de cerveja no balcão enas mesas de madeira rústica, madeira vinda das florestas derrubadas para o plantio ecortadas sem maiores cuidados, tal como sempre acontece onde há fartura. A animação erageral, a orquestra tocava valsas, mazurcas, canções regionais. Os pares rodopiavam compessoas solitárias dançando ao redor deles, de caneco na mão. As músicas alemãs animavamaté os garçons que serviam bebida em abundância. E quando os músicos ameaçavam parar,surgiam vaias pelo salão e eles tinham que continuar.

Preparavam espetos com churrasco, marreco assado e carne de porco. Eram servidoschope e cerveja em tudo que era canto. Um cheiro azedo de produtos fermentados tomavaconta do salão em tumulto. Algumas mulheres tinham chapéus velhos, que um diaestiveram na moda, mas dançavam descalças, com seus pés acostumados com o chão rústicoda casa e do quintal. Outras portavam vestidos compridos, com rendas, e exibiam sapatosbrancos de bico fino, os pés com meias rosadas, e não era raro encontrar quem ostentasseum guarda-chuva de cabo de ferro. Esses requintes colonos lembravam figurinos decinquenta anos atrás, as moças se vestindo como no tempo da juventude das avós, numgrande ontem paralisado. Era uma colônia que estava longe dos problemascontemporâneos. Sem deixar de fazer parte deles.

E o barulho dos canecos se misturava ao dos sapatos no assoa lho de madeira suspensosobre molas, fazendo-se mais fortes do que o dos instrumentos. Os músicos davam mostrasde que não aguentavam mais; uma nova orquestra súbito apareceu e, sem que a músicaparasse, foi tocando até o palco. Todos aplaudiram, teriam mais uma hora de agitação.

Hertha estava sentada a uma mesa, vendo o tio beber num caneco pesado de cerveja,quando um dos músicos, que acabara de deixar o trabalho no palco, a tirou para dançar. Eraum alemão bonito, com as roupas típicas, e ela não teve como não aceitar o convite. Seriauma ofensa. Dançaram no meio do salão, rindo bastante e despertando a admiração geral.Não gostava dessas danças regionais, mas sabia entregar seu corpo ao ritmo que o parceiroseguia com grande conhecimento. Formavam um casal que espelhava o orgulho de seralemão, de ter canções próprias, de expressar essa alegria. Em outra época, recordava-seKarl, poderiam encontrar alguma moça morena, de cabelos encaracolados, algum rapaznegro, dos que trabalhavam na região. Agora eles eram hostilizados pelos nazistas eevitavam participar das confraternizações. Talvez esta fosse, ali na colônia, a primeira festagenuinamente alemã, apenas com arianos comemorando a raça.

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O músico, de nome Herbert, disse que Hertha dançava bem, devia ter uma alma artística,pois afirmara não frequentar essas danças, e ela reforçou que de fato preferia outro tipo demúsica, porém estava se divertindo. Do centro do salão, via seu tio bebendo sozinho à mesae imaginava os pensamentos que o embalavam. Não tinham motivo para comemorar, a vidadeles virara só preocupação, e Karl agora não sabia como lidar com a gravidez da sobrinhasolteira, ela nem tinha um namorado fixo, acabara de terminar com Julius Meister. Parapiorar, ele compareceria à Prefeitura, no começo da semana, para dar explicações sobrealguma acusação. Diante da música, da alegria geral e da bebida, não restava a opção datristeza, nenhum de seus remorsos prosperava, ela só podia se fazer alegre, não se achavafeliz, porque felicidade era algo bem mais complexo, mas a expansão de alma podia serexperimentada na sua condição.

Em certo momento, seu tio a roubou de Herbert, e os dois começaram a dançar comrapidez. Agora era ele quem a conduzia.

— Não sabia que o senhor dançava.— Também não sabia que ainda dançava.— Ela dançava bem?Esse era um assunto que sempre evitaram. Karl fora apaixonado por uma empregada da

casa, uma mulher de origem açoriana que absorvera os hábitos alemães. Poderia ter secasado com ela se tivesse tido coragem de desafiar a cidade. Como um homem nascido naAlemanha se uniria a uma empregada brasileira? Hertha sempre achou que o tio, por suasisudez, era uma pessoa inadequada para o casamento. Agora o descobria entregue àmúsica. A sua antiga amada devia se fechar com ele em casa para ouvir algum disco novelho gramofone. Dançariam sozinhos na sala escura, em noites clandestinas, quando opatrão podia desfrutar sua empregada. Como esse namoro não se efetivara, Karl ficousozinho. Nunca souberam dela, que partira, acusando-o de covarde. E para confirmar aacusação, dando assim, cavalheirescamente, a razão para a amada, ele se fez cada vez maiscovarde.

— Ela dançava muito bem. E dançar com você é reviver tudo. Obrigado.E não houve naquela festa nenhum casal que os superasse.Ao final das músicas, as duas orquestras já exaustas, os garçons começaram a servir o

almoço. Era perto das três horas da tarde.— Você não se sentiu mal? — perguntou o tio.— Acho que a dança faz bem para a criança.— Deve ter se virado muito com toda essa movimentação.— Ah, isso deve ter ocorrido.E os dois riram, esquecidos dos problemas.— Como ela era, tio? — Nunca ninguém lhe perguntara sobre esse amor perdido.— Uma mulher alegre. Naquela época, eu achava que também podia ser.— E não podia?

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— Sempre espalhei tristeza ao meu redor.— Sou feliz com o senhor.— Não, não é.— Nem nunca vou ser?— Só quando se livrar de mim.— Então serei infeliz para sempre.— Cuidado, essas pragas pegam.Nessa hora chegou o prato tão longamente buscado e esperado. Não se comia isso a não

ser nas colônias, em dias especiais. O Kraut im Teig era uma receita regional, que sepopularizou entre os alemães imigrados. Costela de porco fresca cozida sob uma grandequantidade de chucrute, com a panela lacrada por bolotas de pão, que assavam no vapor.Pão, repolho e carne. Karl pediu mais uma cerveja, obrigando-se a tomá-la toda, pois Herthanão queria abusar.

— Tem horas que acho um privilégio ser alemã — ela disse.— Os nossos motivos de orgulho são outros, não é?E eles comeram aquela comida que pertencia mais à colônia do que à Nova Alemanha.— Hitler nunca experimentou um Kraut im Teig.— É vegetariano.— E tão sanguinário.Hertha pensou se devia contar tudo ao tio; certos segredos, contudo, não podiam ser

revelados nem ao espelho. Havia coisas na experiência de cada um que, se comunicadas,criariam confusão. Jurou a si própria, ali, depois da confissão amorosa de Onkel Karl, quejamais falaria da noite de sexo com o Führer.

— Você esteve em Porto Alegre quando Hitler veio comprar o Getúlio — ele disse, comose lesse os pensamentos da sobrinha.

— Veja a coincidência. Se tivesse vindo embora dois dias antes, não poderia dizer queestive em Porto Alegre na época em que Hitler nos visitou.

— Você me contou que foi vê-lo no anfiteatro…— Todos que souberam de sua chegada foram vê-lo.— Sabe o que me pergunto?— O que ele tem que cativa as pessoas?— Não, isso eu sei. Ele diz mentiras. Todos desejam pertencer a uma raça imponente. Ele

diz que a nossa é a mais nobre. E aí é fácil acreditar nele. Sabendo que não há essa bobagemtoda, ainda querem ser os melhores. Daí creem nele. O que me pergunto é algo maisterrível.

— O quê?— Se alguém pode suportar viver com ele.Hertha parou de mastigar a comida e sentiu ânsia de vômito, porém fez um esforço para

engolir aquela massa triturada por uma boca para sempre corrompida.

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— Tudo que ele toca vira farrapo, ruínas, ambição, intrigas.— Ele deve também fazer algum bem — Hertha falou para se convencer de algo no qual

não acreditava.— Não, veja — e ele apontou para as pessoas bêbadas, alguns casais que dançavam sem

música, a maioria comendo com vontade aquela comida rústica. — Nós seríamos assim otempo todo se não fosse ele. Hitler nos contaminou vindo ao Brasil, transferindo seu ódio.Podíamos ser apenas dança e festa.

— Talvez sejamos.— Não acredito.E Hertha e Karl ficaram tristes, empurrando para o centro da mesa os pratos.

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Oito.Não varreria a loja esta manhã para chegar bem-arrumado à Prefeitura. Colocou um ternonovo, procurou seu melhor chapéu e decidiu ir de carro. Pediu a Hertha que o levasse. Asobrinha não pretendia revelar quem era o pai da criança, e ele não a forçaria. O pai nãoimporta, ele pensou. Um filho precisa da mãe, era assim desde o princípio dos tempos. Osmachos se saciavam, deixando algumas fêmeas prenhes, e depois partiam. Nada mudaranem mudaria. A humanidade só crescera porque os machos tinham sempre agido dessaforma. O filho sofreria por não conhecer o pai, e essa dor ele teria que enfrentar sozinho.Crianças sem pai, no entanto, melhoravam o mundo. Os órfãos tendem a ser mais solidáriosquando crescem, quando chegam à vida adulta. Ajudam mais as pessoas porque sabem oque é a desproteção.

— Você não quer falar sobre a gravidez? — Karl perguntou naquela manhã enquantoHertha tomava café.

— Não há o que falar.Desde pequena sempre fora independente, enfrentava seus problemas sozinha, e isso era

louvável. Nessa situação de agora não culparia ninguém, não reclamaria da vida, não sedesesperaria. Falar sobre a gravidez não tinha sentido. Ela precisava fazer algo e o tio aconhecia tanto que imaginava que tudo estava definido em sua cabeça.

— Você está feliz?— Nessa época vai ser mais difícil criar meu filho.Esse possessivo, que tornava tudo vital, daria coragem a quem não tinha nada de seu

além do tio, nem um marido, amigos íntimos, um cão. Um filho seu.Foram ao compromisso em paz. Eram uma família, uma família oculta, porque a gravidez

seria secreta. Deixaram o carro estacionado na frente do prédio e andaram até a entrada,Hertha dando o braço ao tio, vestida elegantemente.

Na seção de Obras, à procura do chefe, Hertha viu o engenheiro, isolado em sua mesa. Osdois se olharam de uma maneira intensa. A caça aos negros estava apenas começando.Perseguiam somente os que não tinham emprego, as crianças órfãs que vagavam pelas ruas,pois o importante nesse momento era ter um inimigo imediato. Como eram poucos osjudeus, mais os judeus médicos e comerciantes, e eles estavam principalmente nas grandescidades, todo o rancor recaía sobre os descendentes de africanos. Adolpho Ventura eratolerado ali e já dava para notar o vazio que se criara ao seu redor. Ninguém se expandia aofalar com ele, tratando-o com superioridade, mesmo o funcionário mais simples.

Hertha mudou o rumo e foi até a mesa de Adolpho, que se levantou para recebê-la.— Prazer em vê-lo — ela disse bem alto para que todos ouvissem.

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Karl a seguiu e cumprimentou o engenheiro com um aperto de mão.— Fomos convocados — Karl acrescentou e mostrou a carta.— É naquela outra sala — Adolpho falou, apontando-a.O tio e a sobrinha se despediram e foram ao local indicado, onde um homem pequeno e

bem-vestido os aguardava. Cumprimentaram-se friamente. Era quase um crime ter paradoantes na mesa de um negro.

— O senhor é dono deste imóvel?Havia um processo na mão do funcionário, com uma foto da casa onde eles moravam.— Sim.— Como o senhor deve ter notado, a maioria das casas da cidade tem características

alemãs.A deles não tinha. Era uma casa mais próxima do estilo colonial português. Comprara-a

assim e nunca pensara que isso poderia vir a ser um problema. Mas estava percebendo asintenções daquela convocação. Não bastava ser alemão, tinha que demonstrar isso.

— Já comprei desse jeito.— Sabemos quem construiu a casa, não era dos nossos. Já o senhor…— Bem, o que devo fazer?— Pela nova regulamentação municipal, todas as casas precisam enaltecer a arquitetura

alemã.— Uma reforma, é isso que o senhor está sugerindo?— No mínimo trocar o telhado, inspirando-se nas casas de nosso país.Não gostava dos telhados inclinados demais que via no Brasil. Eram exageradamente

falsos. Nenhuma daquelas casas precisava daqueles telhados, só serviam para devolver aspessoas a um passado que nem era o delas. Muitos dos que moravam hoje nessas casasimitavam estilos de outras regiões, e não das regiões de sua origem. Por isso o estiloenxaimel, com as colunas de madeira, era tão comum. Reproduziam mais um imaginário doque a experiência real desses colonos pobres que só ganharam dinheiro ao chegar ao Brasil.

— Será um grande transtorno.— Temos a obrigação de expandir a Alemanha.E o funcionário entregou uma folha para ele assinar. Havia um longo texto, e Karl

começou a ler.— É um termo de ciência. Caso não faça a reforma, a Prefeitura vai desapropriar a casa e

fazer as modificações.Hertha tinha ficado quieta. Em pé ao lado do tio, ela acompanhava tudo com uma

indignação silenciosa. Esses nazistas queriam era erguer rapidamente uma Alemanha noBrasil. As mudanças arquitetônicas uniformizariam também a cidade. Viviam a era douniforme. O funcionário exibia o traje militar.

— Caso o senhor não queira demonstrar o seu amor por nosso país, arrumamos umcomprador.

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— Obrigado, verei o que faço.Karl se levantou e estendeu a mão ao funcionário, que nem o olhou. Continuava

mexendo nos papéis, ignorando a presença dos dois. Ao sair da sala, ele se despediu detodos, educadamente. No carro, extravasou:

— Nazistinha filho da puta. — Era raro vê-lo tão irritado.— O senhor vai reformar a casa?— Não sei. Não queria mudar nada. Comprei assim e com ela veio a empregada.

Reformar seria perder Ângela de novo. Ela trabalhava com os antigos proprietários e,quando fiquei com a casa e os móveis, eles me perguntaram se não queria também a moça.Eu disse claro. Já vínhamos nos entendendo silenciosamente. Foi ela quem me mostrou oscômodos, numa visita em que os donos estavam fora. Ao entrar no quarto de casal, a camaonde depois dormiríamos, nós nos olhamos constrangidos. Tenho vivido nesta casa com aslembranças dela e agora querem acabar até com isso.

— Uma casa mestiça.— O quê?— Os nazistas não aceitam nem construções mestiças.Ela ligou o motor, arrancando com o carro. Passaram por uma residência que estava em

obras, já no estilo alemão, e por outras duas que começavam a perder os telhados antigos.

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Nove.Na volta do Rio de Janeiro, triste com o destino que se obrigara a dar ao filho, Hertha teveum momento de vacilação para identificar a casa onde morava. Ela seguiu de carro de praçaaté o endereço e, ao chegar, falou para o chofer:

— Não, não é aqui.O homem já ia arrancando, quando ela percebeu seu equívoco.— Desculpe, é aqui.Ele estacionou melhor o automóvel, desceu para tirar as malas. Não havia roupas de

criança, nada que lembrasse que fora mãe um mês atrás. Não chegara nem a ter leite pormuito tempo; antes de se afastar do filho os seios secaram. O seu corpo aceitara ainterrupção do papel de mãe mais rapidamente do que ela. Não produziria algodesnecessário.

Ao abrir o portão, olhou para a casa e fez de tudo para não chorar. Karl a recebeu comum beijo:

— Fez boa viagem?Sem esperar resposta, foi pegar a bagagem e pagar ao chofer. A sobrinha se aproximou

da casa e entrou imediatamente pela porta da sala. Sentou-se no sofá. Tudo estava meiosujo, bagunçado. O tio passava os dias sozinho, não tinha mais condições de manterempregada. O seu primeiro impulso foi começar uma grande faxina. Mas não encontravaforças para se levantar. As malas foram levadas ao quarto. Quando o tio voltou, Herthadisse:

— Como ficou feia!— Foi proposital — ele falou.E contou que, vendo-se na obrigação de trocar o telhado, pegou os piores carpinteiros da

cidade e fez um telhado tosco, todo torto, com beirais estreitos e janelas minúsculas nosótão. Para que janelas se não queria aumentar a casa?

E Hertha deixou todo o seu choro transbordar. Não ampliara a casa porque ela não ficaracom o filho, não necessitavam de um quarto adicional. Karl percebeu a inconveniência desuas palavras e se arrependeu no mesmo momento.

— Desculpe. Não pense mais nisso.Ela falava chorando.— Quando vi a casa, sabe, senti que não era mais minha. Era a casa para outra família,

para uma família. Nós não somos uma família.— Somos, sim.— O senhor vive sonhando com o amor perdido. Eu não pude ficar com meu filho. Esta

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casa não é nossa. O senhor entende?— Não, não sei o que você quer dizer.— Não vivemos a nossa vida. Vivemos uma vida errada. Numa casa errada.— Fomos obrigados a trocar o telhado.— Querem que a gente viva entre os antepassados.— Você tem que se acalmar, querida.— Eu tinha esquecido que o senhor estava reformando a casa. Queria voltar para o lugar

onde passei a juventude. Então, eles me tiraram também isto. Agora o senhor entende?— Entendo.— E este telhado alto só aumenta o vazio da casa. Mais espaços desabitados ao nosso

redor.E ela chorou longamente, em silêncio, apertando os braços contra o ventre. Quando

conseguiu parar, disse:— Queria que ele crescesse na mesma casa, que tivesse a mesma infância que tive. Sei

que seria impossível, nunca poderia criar meu filho. Só ao ver as modificações é que meconvenci disso, que meu filho não era mais meu, que a casa também não era minha.

— Não fale assim.Hertha se levantou e foi até a janela. Olhou para a tarde que morria.— O que mais eles vão nos tirar? — perguntou-se Hertha.— Logo o governo do Brasil acaba com essa farra nazista.— Lá no Rio, muitos se indignam sem fazer nada.— Vão fazer.— Não vão. Os interesses. Nunca o país ganhou tanto vendendo seus produtos. E agora

sonha com indústrias. Deram brinquedo para a criança pobre. As indústrias alemãs estãoprincipalmente aqui no Sul. Não importa o que acontece com as pessoas.

— Para tudo há um limite.— Menos para o sofrimento.E os dois se perderam em suas dores íntimas, fechando-se para o mundo exterior.

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Dez.— Não pensei que voltássemos a nos encontrar tão cedo — ele disse assim que Hertha abriua porta daquela casa malcuidada.

Ela o olhou com medo, não com espanto. Aguardava essa visita desde a despedida.— Estava saindo — ela mentiu.— Você não tem pressa, tem? — ele perguntou isso avançando um passo.Ela olhou para a rua e viu um carro novo, de um preto reluzente, estacionado na frente

de seu portão.— Prefere conversar durante um passeio?— Não, pode entrar.E abriu a porta toda, afastando-se para que Bruno Fricke pudesse passar.— Quase não reconheci você nesse uniforme — ela comentou, tentando ser natural.— Quase não reconheci a casa de vocês. Tinha outra lembrança dela.— Minhas lembranças dela também são outras.— Pouco mais de dois anos e já envelhecemos tanto.Hertha olhou o próprio ventre. Quando outra vida passa por nosso corpo, nós nos

fazemos imemoriais. Voltamos a um tempo ancestral. Tornamo-nos rapidamente moradoresde um longo passado.

— Sempre achei que estava demorando para amadurecer. Daí amadureci de uma vez.— Continua muito bonita.— Não foi para dizer isso que você veio aqui.— Não, não foi. Mas é claro que poderia fazer essa viagem apenas para rever você.A anfitriã indicou o sofá e os dois se sentaram; ela, na poltrona usual do tio. Suas mãos,

colocadas sobre as pernas, tremiam. Sentia um cheiro improvável de bolor, de terra. E selembrou de tudo.

— Bem, aqui estou.— Soubemos da gravidez.— Meister?— E que o pai da criança…— Acho que este assunto é apenas meu.— Que o pai da criança é desconhecido.— Desconhecido para quem?— É por isso que estamos aqui.Ele viera com mais gente, talvez estivessem no carro, prontos para levá-la à força. Hertha

se levantou, irritada.

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— O senhor não pode… — e não terminou a frase.Impassível, Bruno continuaria aquela conversa no mesmo tom, indiferente aos

sentimentos dela. Os fanáticos nunca acham que estão errados. Basta que algo justifique aação deles para agirem violentamente e pacificados. Tinha sido necessário tomar esta ouaquela medida. Ele não pararia com seu interrogatório.

— Sabemos de sua vida sexual.— Vocês sabiam, não sabem mais.— E ela não nos interessa.— Ótimo. Nesse caso podemos concluir esta conversa.— Não nos interessa como um todo. Apenas um episódio nos diz respeito.— Estão aqui por causa de Julius Meister? Por que ele se sente no direito…— Não foram as dores de amor de Herr Meister que motivaram esta visita.— Não estou entendendo.— Fräulein — ele disse isso com desprezo, como se ela fosse uma menina ignorante.— O que eu fiz de errado?— Pensei que entendesse…— Por favor, fale de uma vez.— Estou tentando. Você é que não me deixa concluir as frases.Ela se sentou de novo na esperança de se acalmar. Seu gesto indicava uma disposição

involuntária de ouvir.— Há coisas que acontecem a uma pessoa e que modificam tudo. Pelo menos deveriam

modificar. Quando estive aqui para convencer a senhorita a ir a Porto Alegre, imaginávamosque seria muito bom para a nossa causa que o Führer conhecesse o povo dele que vivialonge da Alemanha. Qual era a melhor maneira de mostrar essa hospitalidade? Entregandouma bela companhia.

— Disso tudo já sei.— Tem certeza? Em que cama a senhorita esteve só nós sabemos. E não deveríamos

esquecer. Depois do encontro, o melhor teria sido a senhorita se casar com alguém da nossaraça.

— Meister?— Sim, induzi Julius, um nazista tão dedicado, a procurar a senhorita. Tudo teria

terminado aí. Mais alguns anos e talvez vocês pudessem levar os filhos para Hitler conhecer.Como a senhorita sabe, ele adora crianças. Crianças e animais. Não pode ter filho.

— É estéril?— Um homem igual a ele não pode ter filho. Já é o pai de uma nação que está muito além

das suas fronteiras. E se algo desse errado, ele teria que eliminar a prole.Ela ficou em silêncio, perdida em seus pensamentos.— Meister cometeu um erro — Bruno continuava. — Ele não nos avisou imediatamente

da gravidez. Só soubemos há umas semanas, e a senhorita estava em viagem.

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— A criança morreu — ela disse.— Precisamos de algumas certezas.Ela ficou com vontade de abrir a blusa e mostrar a Bruno os seus seios secos. Se seu filho

estivesse com ela, eles produziriam leite. Só que não era esse tipo de prova que ele desejava.— Nem eu sei onde está enterrado.— Fräulein Hertha, não precisamos ir até ele. Queremos, sim, saber tudo o que aconteceu

naquela noite.Ao usar a primeira pessoa do plural, ameaçava Hertha. O oficial da Gestapo era uma

legião. E todos desejavam entrar no quarto em que ela estivera com Hitler.— O que buscam?— É estranho o que vou falar. Seria importante saber se ele atuou como homem.— A primeira impressão que tive é que ele era uma estátua que se movia.— Uma estátua?— Estava tão dentro de si… Ele não se deixava ver por dentro. Como se não tivesse o lado

interior. Até seus olhos eram de pedra.— Então não aconteceu nada?— Não disse isso. Fomos até a cama, ele me segurava o braço com força, era como se me

levasse presa. Caminhava inflexível, quase em silêncio. Ele me deixou na frente da cama.Não houve nenhum carinho.

— Não beijou?— Até esse momento não. Ficou me olhando distante. Talvez porque eu estivesse com

medo. Ainda em pé, diante da cama, me abraçou com força. Quando me soltou, disse que erapara eu ficar à vontade. Eu não sabia o que isso significava para ele.

— Então tirou a roupa.— Não foi tão rápido. Eu me sentei, deixei que uma nesga da minha perna aparecesse.

Ele olhou com desejo. Ergui mais a saia, mostrando as duas pernas.— Ele continuava em pé?— Sim, parado na minha frente. Aí falou: o vestido todo. E o tirei. Ele abaixou as calças de

uma vez, só vi o movimento de seu sexo subindo, apontando para o meu lado, e emsegundos ele estava sobre meu corpo, beijando meu pescoço.

— Somente o pescoço?— O pescoço, o queixo, os seios, os ombros.— Nunca a boca?— Não. Em um dos movimentos, ao levar a boca do meu seio ao pescoço, disse: me

chame de Wolf. Eu fiquei quieta, pensando que era para tratá-lo assim quando me dirigissea ele. Daí pediu de novo e entendi que ser chamado dessa maneira na intimidade era umaforma de prazer para ele, e repeti a expressão, meu lobo, meu lobo, meu lobinho. Tudo issodurou apenas uns minutos. Ele não tinha nem tirado a bota. As calças haviam parado abaixodo joelho. Na hora de gozar, ficou em silêncio, olhando para meus olhos. Travou os dentes,

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respirando pelo nariz. Já tinha acontecido, e ele ali, paralisado mais uns segundos, paradepois ir tombando de lado, lentamente.

— Fräulein Hertha, é embaraçoso o que vou perguntar. O sexo dele, em tal circunstância,se destaca?

Hertha olhou bem para o seu interlocutor. Qual sentido poderia ter o tamanho domembro de Hitler? Estava aproveitando aquela situação para uma fantasia de pederasta como Führer? Ela desceu os olhos até a calça de Bruno para ver se ele tinha tido uma ereção.Não dava para ter certeza, porém algo parecia acontecer ali. Talvez não estivesse usando aoportunidade para imaginar-se na cama com ele e fosse apenas aquela curiosidademasculina, o desejo de saber qual dos machos tem um sexo maior. Uma competição demeninos.

— Um tamanho normal. Por quê? — ela falou, brusca, interrompendo o clima erótico.— Nada. Ficam fantasiando que a sua dificuldade com mulheres é porque tem um pênis

muito grande ou muito pequeno. Para nós, seria bom que…Hertha riu, e riu de forma descontraída, único momento em que se soltou nessa longa

conversa.— Do que está rindo?Não podia dizer a verdade. Uma das marcas da raça ariana: homens de pênis grande,

maior do que o dos africanos. Não chegariam a esse grau de defesa da liderança biológicaporque seria ridículo. Entretanto, a lógica era essa.

— Deste assunto — ela respondeu.— O que nos move é um interesse maior — ele disse, constrangido, mudando o rumo de

seu interrogatório. — Tomada de assalto, você teve como se proteger?Ele a via como uma cidade, como um país invadido pelo Führer. Ele a conquistara. Ela se

lembrou de uma passagem de História, de Heródoto. O rei Sesóstris, na conquista de umanação orgulhosa de seu valor, construía no país colunas e mandava gravar uma inscriçãocom seu nome, o de sua pátria e a informação de que havia vencido aquele povo com a forçade suas armas. Se o país fosse facilmente dominado, ele mandava gravar uma vagina, comosímbolo da covardia daquela gente. Se era um povo que se rendia sem lutar, ele gravava umpênis ereto nessas colunas. Ela receberia este último tipo de coluna.

— Não, eu não tive como me cuidar.— Então o filho pode ser dele?— Não, não era.— Como a senhorita tem tanta certeza?— Uma mãe sabe dessas coisas.Bruno ficou com o mesmo ar preocupado do começo da entrevista. Enquanto ela falava

do encontro, ele foi relaxando, embalado pela narrativa daquela aventura. No final, a dúvida.Hertha poderia ser mãe de um filho de Hitler e estaria escondendo a criança de todos pormedo.

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— Ao cair ao meu lado…— Não precisa mais contar os detalhes, Fräulein. Só se tiver alguma coisa importante.Ela pensou uns segundos e em seguida continuou:— Ao final de nosso encontro, que demorou bastante tempo, ele me procurou mais duas

vezes, e aí fez tudo com mais calma, ainda que sem muitas palavras…— Com a vida que leva, tem pouca oportunidade de se divertir.— Tendo se divertido três vezes comigo, pediu que eu saísse do quarto e eu fiquei uns

minutos esperando numa sala contígua, até a porta do corredor ser aberta.— E o que aconteceu?— Ouvi barulhos no quarto. Barulhos seguidos e altos. Aguentara até quanto pudera, por

isso me pedira que saísse. Uma crise de flatulência.— Francamente, todos sabem que o Führer tem problemas gástricos.Bruno se levantara para dizer isso. E no mesmo ímpeto se encaminhou para a porta.— Desculpe, não quis zombar.— Saberemos a verdade.Hertha ouviu essa ameaça, a batida da porta e o barulho do motor do carro sendo

acionado. Não se mexeu na poltrona, imaginando como seria a sua vida agora.

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Onze.Ao contar a Bruno que Hitler pedira que ela o chamasse de Wolf, lembrara-se da sua viagemà Alemanha, na companhia do doutor Hans Neubert e dos colegas da Juventude Teuto-Brasileira. Em suas pregações políticas, Neubert gostava de falar na eugenia, em como oscasamentos podiam melhorar ou piorar a raça. Ele contava a história do surgimento do cão,esse descendente do lobo. Todos imaginam o cão ligado ao homem. E ele já foi um inimigo.A domesticação de animais selvagens serviu para conformar os revoltados ao sistema. Oporco é um javali de cativeiro, ele falava, com o objetivo de despertar naqueles jovens osentimento de revolta. Queremos ser um javali altivo na floresta ou um porco no chiqueiro?Um lobo dominando as montanhas ou um cão deitado aos pés de um senhor qualquer?

Ao longo da história da humanidade, os lobos mansos, que gostavam de viver em paz nobando, sendo alimentados por outros, foram se unindo. Eles se afastaram dos selvagens equando algum de suas ninhadas saía com sangue belicoso era isolado e acabava partindopara uma vida solitária até encontrar seus iguais. Os mansos procriavam mais, pois viviamem bandos, enquanto os agressivos se perdiam pelas matas, acasalando menos. Com isso, oslobos domésticos foram se modificando até serem transformados nos cães de hoje, essa raçaque, mesmo podendo ser feroz, no geral se destaca pela mansidão.

Da maneira como o doutor Hans Neubert falava, as pessoas iam sentindo raiva dos cães,pelo menos dos cães dóceis. Sua teoria era apaixonada; ele contava casos em que o bicho,abandonado numa cidade distante, andava quilômetros até encontrar a casa de onde foraexpulso só para prostrar-se diante de seu dono. Poderia ter caçado outros animais nocaminho, invadido os galinheiros das propriedades vizinhas, ativando o seu instintoselvagem, mas preferia ser, em todo o seu organismo, em todas as suas reações, um cão, umcão que gostava de descansar diante de uma lareira acesa, esperando comida, carinho edesprezo. Ele tem prazer de ser ignorado e de mostrar alegria por qualquer gesto humano.

— Eis a forma errada de eugenia, a que enfraquece a raça — Neubert dizia. — Os nazistasusam a eugenia para encontrar no cão de hoje o lobo ancestral, que não quer paz nemsociabilidade. Vocês, que agora são chamados pimpfe (cachorro), logo chegarão a lobo.

Ele resumiu para o grupo a história de O chamado selvagem, de Jack London. DepoisHertha foi ler esse livro de aventura, a história de um husky chamado Buck que seguia para oAlasca junto com os garimpeiros e, passando por muita provação num contato com a vidabruta, se fazia líder dos lobos. O final do livro era arrepiante. Buck comandava a alcateia delobos selvagens, assustando os moradores. Uivava, entoando a canção do mundorejuvenescido.

Neubert explicava o desfecho.

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— Rejuvenescer é voltar aos valores da selva, seguindo o seu chamado.E citava o poema “Atavismo”, de John Myers O’Hara, que Jack London usara como

epígrafe:

Instintos errantes podem parecer acostumadosAo aperto dilacerante de velhas correntes.De repente, despertam esfaimadosA raça, a fera, tão selvagens como antigamente.

— O nazismo — resumia o doutor — veio para despertar esta fera numa nação de cãesdomésticos.

Quando Hitler pediu que fosse chamado de Wolf, Hertha não pensou nessa lição queouvira ao ser preparada como a nazista mais bela do Brasil. Só agora compreendia o sentidode tudo e sofria temores pretéritos por ter se deitado com a fera.

Lembrou-se também de uma matéria que lera em algum jornal contra Hitler, em quefalavam que mesmo gostando de seus pastores-alemães ele os tratava com muita violência,surrando-os com o seu inseparável chicote. Em uma das crises, deixara o relho de lado echutara o cachorro, incapaz de reagir. Estaria assim convocando os cães a assumirem o seuchamado selvagem?

Era exatamente isso o nazismo, uma reação à derrota na Grande Guerra, um pedido paraque todo alemão voltasse a ser lobo, a fim de formar a grande alcateia liderada pelo maisselvagem de todos. Eles se uniam pela ferocidade. Era uma forma de reunir em uma geraçãoos instintos errantes.

Por isso Hitler desvaloriza tanto os intelectuais, pensou Hertha. Não quer uma nação dehomens e mulheres que racionalizem suas decisões, e sim de seres instintivamenteagressivos. Eis o caminho do fanatismo. Ele lê em nós a tendência para a atrocidade e nosquer como assassinos impulsivos, tendo como única justificativa os nossos pretensosprivilégios de sangue.

Ela se lembrou de um pronunciamento do Führer no rádio, um longo discurso dirigido àjuventude que só agora compreendia em toda a sua dolorosa verdade. Vinham-lhe àmemória trechos dessa exortação ao crime:

— É através da juventude que começarei a minha grande obra educacional. Nós, osvelhos, nós estamos gastos. Nós estamos deteriorados até a medula. Não temos maisinstintos selvagens. Não somos selvagens, somos sentimentais. Carregamos o peso de umahistória humilhante e a lembrança de uma época de escravidão e de humilhação.

— Minha pedagogia é dura. Trabalho com o martelo e arranco tudo que é fraco. Atravésde minhas ordens surgirá uma juventude diante da qual o mundo tremerá. Uma juventudeviolenta, imperiosa, intrépida e cruel. É como a vejo. Ela saberá suportar a dor. Não vejo nelanada de fraco, nem de terno. Vejo que ela possui a força e a beleza das jovens feras.

Hertha deixara de ser dessa forma, se degenerara na avaliação dos nazistas e talvez

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tivesse se transformado em presa. Se aqueles que se vangloriavam de ser os mais civilizadosenalteciam a selvageria, então estava certa ao buscar, entre os acusados de animais, aproteção. Sempre ouvira falar nos brasileiros, esse povo de negros e mestiços, comomakaken. E talvez fossem a civilização. Os brasileiros no poder queriam o branqueamento dopaís, por isso eram tão tolerantes com os nazistas. Tinha mesmo que se unir aos fracos.

Depois da visita de Herr Bruno, ela sabia que a qualquer momento seria atacada. Emalguns de seus sonhos, sempre se imaginava devorada por lobos que uivavam ao seu redor,ou que se aproximavam dela com as orelhas em pé e as presas para fora. Começava a gritarquando sentia as presas em suas pernas e braços. Via seu corpo sendo estraçalhado, umlobo fugindo com nacos de seu ventre, enquanto outro subia sobre ela e entrava em suavagina, machucando-a. Nesse momento, ele pedia: me chame de Wolf. Ela, porém, nãoconseguia mais falar. Outro animal prendera a sua garganta com uma mandíbula imensa.Impedida de falar, acordava gritando.

Ao se acalmar, ficava um longo tempo ouvindo o silêncio da noite. Em algum quintaldistante, um cachorro latia.

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As críticas contra as medidas de saneamento de sangue que estão sendo adotadas no Sul do país querematrapalhar o desenvolvimento da região. Qualquer um que queira o triunfo germânico sabe que negros,índios, mestiços e judeus são figuras traiçoeiras, que se infiltram em nossas famílias para destruir tudoaquilo que, ao longo de séculos, foi sendo purificado. Defensores desses desclassificados, e existem pessoasassim mesmo entre nós, devem ser expostos publicamente. Mesmo se for uma mulher que os defenda, queseus familiares raspem sua cabeça, para que todos saibam de sua cooperação vergonhosa. O PartidoNazista do Brasil recebe denúncias de comportamentos contra a pureza da raça e imediatamente convocamembros da Uschla para julgar os seus crimes. Não deixe de ajudar a construir uma grande área branca.Aos que reclamam da reeducação pelo trabalho a que estamos destinando principalmente os negros emestiços em geral, é preciso perguntar: tirando o alemão e o italiano do Sul, restaria o quê? Apenas umamísera carcaça. É contra essa carcaça que lutamos.

Este foi o Momento Alemão, um serviço da PRC-4.

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Doze.Saía de casa no começo da manhã. Andar a pé é a única forma de amar uma cidade. Nãopode ter nada (nem uma bicicleta, nem um cavalo) que modifique a relação entre o corpo e adistância. Gastava duas horas para ir da rua do Cemitério à extremidade mais afastada. Nocaminho, olhava os quintais, nos quais podia ver alguma mulher loira cuidando do jardimnum maiô provocante, a quase totalidade de casas germânicas, crianças brincando na rua.Nesses momentos, voltava a se lembrar de seu filho. Não caminhava com pressa nemvagarosamente. O seu ritmo era o das demais pessoas que iam para o trabalho, que saíampara fazer compras, que buscavam o bar para um chope já pela manhã. Andando, todos seirmanavam pelo movimento, não importava o propósito da viagem cotidiana pela cidade.Alguns homens mexiam com Hertha, com elogios ou obscenidades, fazendo propostasjocosas de casamento ou convites diretos para sexo, recebendo uma indiferença que elaaprendera a expressar pelos passos decididos. Andava como se a cidade não a atingisse mais.Só havia ela e seu itinerário.

— O que você tanto faz na rua? — perguntava no início o tio.— Ando.E essa era a melhor resposta. Hertha andava. Não parava em nenhum lugar, não seguia

as pessoas, não desejava comprar algo, envolvida nessa tarefa. Karl não perguntou maisnada. Sabia que a sobrinha era impulsiva e tinha manias que mudavam de tempos emtempos. Perdera a mania dos homens, dos amigos que sempre a cortejavam. Tambémesquecera, felizmente, a mania nazista de participar de inúmeras reuniões. As pessoasprecisavam se ocupar, e ela já se dedicara à política do nacional-socialismo, aos namoros, aospasseios de carro; agora era uma nova fase. Andar pela cidade. Assim nos enganamos até anossa morte. Karl se dedicava ao silêncio. Gostava de ficar ouvindo o nada, encontrandonotas dissonantes. O silêncio era a criança que corria pelos cômodos, alegrando-o.

O que figurava apenas como uma mania para o tio tinha um sentido oculto. Ir a tantoslugares, a tantas ruas, sair rumo às chácaras, contornar o rio, passando pela ponte de ferroque lhe trazia tantas lembranças, tudo isso era para ela ir a nenhum lugar. Ao deixar a casa,olhava para os lados, à procura de alguém que a estivesse perseguindo, e só então tomavaum rumo diferente da caminhada do dia anterior, mudando sempre de rua, chutando pedrassoltas com seus sapatos masculinos. Sabia que de alguma forma estava sendo seguida eprocurava as regiões mais desertas para identificar aquela sombra humana que não adeixava nunca. Não chegou a reconhecer ninguém e passou a pensar que todas as pessoasda cidade a observavam, por isso não olhava para elas. Logo depois da visita de Bruno,mandou um bilhete pela mulher que entregava verduras em casa, uma senhora analfabeta.

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"Não podemos mais nos ver."Colocou o papel dobrado na mão da senhora, orientando-a a quem entregar. Ela o enfiou

na combinação, no aconchego de um seio grande e murcho. Hertha viu uma parte dele.— Entregue apenas a ele — recomendou.Embora não morassem longe, não poderiam mais se ver. Nem se falar por telefone.

Temia que a Gestapo estivesse gravando as suas ligações. Bruno estivera ali em uma missãoe não desistiria até chegar ao final dela.

Por isso Hertha andava para todos os lados, apreciando a rua e despistando os seusperseguidores. Eram homens invisíveis que conseguiam esconder seus corpos, não revelarsuas faces, embora ela sentisse a presença deles até dormindo. Em algum lugar próximoeles velavam seu sono. Poderiam estar no sótão desabitado da casa, em alguma residênciavizinha, alugada clandestinamente para acompanhar os movimentos da perigosa traidora donazismo. Não sabia onde eles se escondiam, e isso era apenas um detalhe, porque elesestavam a poucos metros, prontos para confiscar a criança, morta ou viva.

Nas primeiras semanas, ela buscara reconhecer a cidade, num ato amoroso novo. Ver aságuas sujas do rio e achar que elas eram lindas, as casas de estilo regional e imaginar ládentro uma família feliz, que não precisava odiar outras pessoas para se sentir bem, umarua cheia de buracos e com uma beleza suburbana. Hertha amou a cidade com seus passos,com seus olhos compassivos, em suas caminhadas gratuitas. Depois, o cansaço e o medoforam se impondo. Se seus perseguidores não apareciam era por serem muito perigosos, eisso a deixou em pânico. Em casa talvez fosse mais seguro. E ela se lembrou de um episódiode alguns anos atrás.

Um marido estava suspeitando da esposa. Ela não queria mais dormir com ele, faziamamor apenas se inevitável, e ela cada vez mais alegre, mais jovial, com um corpo querevelava, na sua disposição para tudo, um bem-estar sensual. O marido não era má pessoa egostava da esposa, ocorria apenas que seus corpos falavam línguas diferentes. Ele sentiaciúmes, principalmente porque percebia a aura sexual que a distinguia. Ela vivia cantando,fazia comidas ótimas e cuidava generosamente do jardim. E ele melancólico, com ar cansado.Se chegava perto da esposa, ela escapulia. E só com muito custo é que o recebiapassivamente na cama, sem nenhum movimento, sem o menor desejo. Ele a beijava deforma apaixonada, ela apenas se entregava, indiferente. O marido resolveu arrumar umaamante, voltava com o cheiro ardido do sexo feminino, e a procurava; ela não sentia nada efazia de tudo para fugir. Se se entregava, era ainda a mesma mulher fria.

O marido contratou um detetive, que ficou um mês observando a esposa. Ela passava otempo inteiro em casa, saindo rapidamente apenas para comprar mantimentos e fazerpequenas tarefas, mas era visível que voltava com o olhar ansioso, depois de ter partidotriste como se se afastasse de alguém querido. O marido permanecia no trabalho até tarde eela não reclamava. Só se irritava se viesse cedo, porque teria que passar mais tempo com ele.

Nunca ninguém conheceu a verdade. Ela acabou acusada pelo marido, com base nas

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deduções do detetive, de ser amante do cachorro, um pastor-alemão. Não queria sair de casapor causa dele. Se o marido ou o detetive a flagrou com o animal, ninguém soube, porém aesposa ganhou fama como a amante do melhor amigo do homem. Teve que ir emboraporque as pessoas latiam para ela. O marido também acabou partindo. Alguns dizem quevoltaram a morar juntos.

Hertha riu dessa história na época. Agora ela servia como lição. Não ficaria em casa comOnkel Karl, os dois perdidos em seus problemas, pois logo seriam tidos como incestuosos.Se descobrissem que tivera um filho clandestino, iriam culpar o tio. Ela sempre gostou dehomens mais velhos, alguém diria. E o espião da Gestapo começaria a procurar os ossosinfantis no quintal, torturaria Karl para que revelasse onde estava seu filho, se estava aindavivo. Hertha devia se afastar de casa para que nunca encontrassem o pai da criança. Quefossem todos os homens ativos da cidade. Que cada infante pudesse ser seu filho. Que ostúmulos de anjinhos recentes o guardassem. Ela se dispersaria, diariamente, até que elesdesistissem.

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Treze.Dias depois, estava passando por um armazém antigo perto da estação ferroviária. Nostempos de menina, fugia para aqueles lados com as amigas para fazer piqueniques nasmargens do rio, protegida por árvores ou por alguma construção, e se divertiam. Sobqualquer pretexto, um vento frio, por exemplo, elas se abraçavam, colando os corpos, comoalgumas espécies de inseto, e formavam um cacho humano. Era bom esse contato intenso,Hertha se mexia procurando se encaixar melhor entre outras pernas, nádegas e vaginas, eesses foram os seus primeiros momentos de prazer. Quatro ou cinco meninas grudadasumas nas outras. Não sabiam o que faziam; estavam aproveitando o calor que os corposguardavam.

Naquela sua excursão sem rumo, sentiu um impulso incontrolável de se aproximar dorio, de contornar o barracão e procurar o lugar de outrora. Em suas andanças, evitava pararmesmo que fosse por breves momentos, indo sempre em frente, transformando a cidadenum labirinto. E agora vinha esse desejo de rever o vazio onde seu corpo começara a usar alinguagem do amor.

Não gritou ao sentir uma mão em seu braço. E logo já não podia mais gritar. Outra mãotapou sua boca. Com a cabeça paralisada por uma força masculina, não podia se virar paraver quem a tinha capturado. Com o corpo colado ao de Hertha, alguém forçava seus passos.O volume do membro desse desconhecido cresceu ao ter contato com a bunda dela. Ele faziaquestão de ficar muito próximo. Entraram no barracão, totalmente escuro. Caminharam emmeio a sacarias, caixas e peças de máquina. Adiante dela, havia uma porta dando para umcômodo meio iluminado. Lá estava Frederico, um dos Sombras, sentado em uma cadeiravelha, diante de uma mesa de trabalho. Bruno os tinha colocado em seu encalço. Pelo tio,soubera que o oficial da Gestapo voltara para Porto Alegre logo depois do encontro comHertha, o que o livrava de qualquer responsabilidade pelo que viesse a acontecer com ela.

— Pode soltar, Max — ele ordenou.Hertha se virou e reconheceu o rosto de seu antigo vigia. Ele se constrangeu com o olhar

dela, pois ambos sabiam que tinha se excitado enquanto a conduzia para o barracão. Poderiater feito isso no hotel Majestic, tudo que ela desejara naquele momento era um homem. Eele nunca se aproximara. Agora, a situação permitia que se esfregasse nela. O que tinhamudado? A sua condição; agora era a inimiga.

— Não quer se sentar? — Frederico perguntou, falsamente educado.Em vez de responder, ela se sentou, olhando para ele, mas em silêncio.Não devia ter parado. O movimento contínuo era a sua segurança. Nem dormia mais no

mesmo quarto. Mudava de lugar, deitando-se na despensa, na cozinha, no banheiro. Onkel

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Karl achava que ela de fato havia enlouquecido ao encontrá-la embrulhada em umacolchoado no chão do banheiro, toda encolhida porque o espaço era pequeno. Na cozinha,gostava de dormir sob a mesa. Em qualquer desses lugares, acordava cedo, levantando-se aoouvir o menor barulho.

— O que está acontecendo, querida? — o tio quis saber.Ela passou a não responder. Apenas o olhava com um jeito assustado. Era esse mesmo

olhar que dirigia a Frederico.— Não achou que ficaríamos atrás de você? — ele sorria, demonstrando superioridade.Em seu vestido velho, pouco lembrava a mulher de outrora. Hertha envelhecera. O ar

abafado do barracão a devolvia ao túnel onde estivera para uma noite de amor. Tinha sidoqueimada por aquele encontro, nunca mais poderia apenas se divertir.

— Não quer saber por que só agora pegamos você? Sim, quer, desde que não preciseperguntar.

— Não quero — Hertha falou.— Justamente por isso vou contar. Há duas maneiras de caçar. Uma é perseguindo o

animal, indo ao seu encalço, verificando as pegadas, os ramos de plantas quebrados no seudeslocamento. Se o animal for rápido e ágil, o caçador se cansa. Ele tem que encontrar quemconhece a mata melhor do que ninguém, depois se posicionar e acertar o tiro. É um métodomuito desgastante e arriscado. Você já caçou assim, Max?

— Nunca.— Prefiro o outro método. Você escolhe um lugar e fica esperando. Um lugar importante

para a presa. Um lugar onde ela geralmente bebe água, ou dorme, ou come. Uma hora vaiaparecer. Aí, é só laçá-la.

Ela olhou o barracão e percebeu que havia sinais de que estava sendo habitado haviapouco tempo. Uma parte se encontrava organizada, dispondo até de um radiotransmissor.Identificou um cheiro de comida, de pão fresco. E também de café. Tinham ficado o tempotodo ali.

— Como ela não quer saber de nada, Max, vou explicar para você o nosso plano. Sente-seaqui.

Max saiu da posição de retaguarda, entre a porta e a cadeira de Hertha, e se sentou a seulado, olhando para ela.

— Não se preocupe, ela não vai fugir — Frederico disse, tirando a pistola da cinta eficando com ela na mão.

— Você lembra que Bruno voltou a Porto Alegre e após receber instruções de Berlim, quedemoraram, nos enviou para descobrir a verdade?

Max concordou, com uma expressão de palerma. O amigo prosseguiu:— Faz uma semana que chegamos, não é? E no primeiro dia já localizamos uns amigos

dela, alguns dos muitos homens com quem fazia sexo. Todos estão agora com a gente,querem mudar este país, torcem para a Alemanha. E homem gosta de falar de suas

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conquistas. Perguntamos como ela era na cama. Cama? Do que ela menos gosta é de cama,um deles disse.

E Max e Frederico riram.— Tinha mesmo se acaboclado. Era um animal. Gostava de fazer sexo no mato, em

terrenos desertos, na beira do rio. Fomos perguntando quais eram seus lugares preferidos.E aqui estamos.

De fato, ela voltara já adulta àquela região da cidade várias vezes, acompanhada por umou outro homem. O barracão era discreto e estava meio abandonado havia anos. Umaempresa que falira.

— O que vocês querem? — ela perguntou.— Meu Deus, ela não sabe. Queremos fazer sexo. Como todos os homens. Queremos

entrar nos seus buracos — ele dizia isso erguendo a mão com a pistola e fazendomovimentos eróticos com ela.

Hertha se levantou lentamente, Max também. Tirou o vestido, a combinação e por fim acalcinha. Sentou-se na mesa como que dizendo: podem fazer o que quiserem. Ela realmentesabia ficar pelada na frente dos homens.

— Quer facilitar?Frederico puxou sua cadeira para mais perto dela. Hertha via o volume pulsante na calça

de Max. O outro permanecia frio.— Abra as pernas — Frederico falou, ainda sentado.Ela abriu, mostrando os pelos loiros em volta da vagina. Era um campo de trigo, um

pequeno campo de trigo. Frederico se aproximou e enfiou o cano da pistola. Hertha sentiu ometal frio entrando em seu corpo. Depois ele tirou a pistola e pôs na boca dela, obrigando-aa sentir o gosto ardido da própria urina, tirando-a em seguida sem afastá-la de seu rosto. Odedo no gatilho.

— Onde está a criança?— Morta.— Não está morta.E ele deu um tiro, deslocando rapidamente a pistola para o alto e acertando o teto do

barracão. Pedaços de telha e sujeira caíram sobre eles. Hertha começou a chorar. Fredericose levantou.

— Não temos pressa. Nenhuma pressa. Numa guerra, o tempo de espera é muito maiordo que o tempo de combate.

Ele pegou a roupa que estava no chão e jogou-a sobre a mesa. Hertha se vestiulentamente na frente de Max, cujo coração pulsava entre as pernas, produzindo pequenosmovimentos no tecido do uniforme.

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Quatorze.Não sabia mais se era dia ou noite nem quanto tempo passara ali. Recebia regularmente umprato de comida, uma caneca de água e mais nada. Para dormir, havia uns sacos de estopa,onde ela se aninhava como um animal. Fazia suas necessidades num balde velho e não podiatirá-lo de seu quarto sem janelas, o que tornava o ar nauseante. Ficar sujeito aos odores docorpo era também uma forma de tortura que não deixava marcas na pele. Não sabia por quenão a torturavam de fato, talvez por uns resquícios de respeito de quando a protegeram emPorto Alegre. Talvez tivessem recebido ordens para cuidar bem da puta brasileira de Hitler.

Eram capazes de fazer qualquer coisa. Em uma noite, agora tudo era noite, ouvira osgritos de um homem. Estava sendo surrado, o que indicava que usavam o lugar paraprender outros inimigos. Ela entrara nessa categoria. Fora tão bem tratada e agorarepresentava uma ameaça, mínima, era verdade, mas para os fanáticos todo perigo é imenso.Havia uma distância enorme entre seu quarto luxuoso no hotel Majestic e as atuaiscondições. E continuava tendo os piores pesadelos. Em um deles, era enforcada. Os nazistastinham montado uma forca no túnel e levavam pessoas para lá. Elas seguiam em fila peloscorredores estreitos para serem, uma após outra, erguidas pela corda. A vítima não eraconduzida ao cadafalso; ficava no chão, a corda no pescoço, enquanto Hitler a puxava comraiva, erguendo os olhos impiedosos na direção do rosto dela. Hertha também os observava,em pânico; as pessoas riam. Não podia ser desse jeito. Deviam chorar. Daí chegava sua vez eela dizia para si mesma que iria gritar. Enquanto o carrasco amarrava a corda, Hitler passavaa mão em suas pernas. E ela ficava esperando o momento de ser alçada. E isso nãoacontecia. Então acordou com o choro de um homem torturado ali ao lado. Ouviu o barulhode um golpe de faca contra a madeira e os gritos: minha mão, minha mão! Depois outrogolpe, e aí ele quase não gritava. Tinham cravado as facas nas duas mãos dele contra amesa? Max e Frederico se divertiam. Talvez quisessem uma informação desimportantedaquele outro preso, algo que ele nem tinha, e a tortura fosse apenas uma forma de passaro tempo, o longo tempo de espera.

Assim que chegassem ao seu filho, ela talvez fosse assassinada. Não usariam a forca, eramuito sem graça. Escolheriam uma morte que permitisse algum espetáculo, algumadiversão. Passadas umas poucas horas dos gritos, veio o estampido de um tiro. O disparo dearma de fogo era um método de morte mais humano. Apenas o tiro seco e o som do corpotombando. Em seguida, ela pensou ouvir algo sendo arrastado. Jogariam no rio, e o corposeguiria para o fundo ou para longe?

Decidiu que não falaria nada. Ninguém saberia de seu filho. Nunca chegariam a ele.Dormindo por algumas horas e passando outras com os olhos fechados na escuridão,

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Hertha tentava contar os dias pelos pratos de comida. Quem, no entanto, se lembra dequantos pratos de comida engoliu, ainda mais se é o mesmo e mal preparado alimento? Jánão estava ali, vivia à deriva, distante da realidade.

Num de seus sonhos, ao dormir após a refeição, imaginava ouvir barulho de aviões.Pensou que estava ainda no hotel, com os Junkers sobrevoando festivamente a cidade. Osmotores passavam mais longe e ela esperava que se aproximassem, fazendo tremer osmóveis. Eles logo chegaram e ela ouvia disparos de metralhadoras, uma ou outra bomba.Alguma coisa acontecia, era enfim a guerra. Não haveria apenas perseguição aos negros ejudeus, tinha chegado o momento do confronto. Se pudesse se ver em seu sono, descobririao seu sorriso, estava contente com o ataque. Era melhor o combate do que a espera. Elapegava uma metralhadora. Via os nazistas passando pela rua da Praia, com seus uniformes esuas suásticas, e do seu quarto atirava neles. Alguns caíam; o resto continuava marchando.Para onde iriam? O barulho dos motores foi ficando mais intenso. E ela sentiu todo o prédioestremecer, telhas e madeiras caírem num dos cantos de seu quarto.

Uma bomba atingira o teto. A guerra era ali? Havia a claridade de uma madrugada queapenas se iniciava. Ela viu o avião em novo voo rasante, rajadas de metralhadora tentavamderrubá-lo. Ele voltava, disparando contra as paredes, as balas produzindo um barulhochocho no reboco mole.

Terminado esse ataque, os aviões se afastaram. Ela ainda os ouvia, só que não tão perto.Ficou em silêncio, as costas contra a parede, em um dos cantos. Uma viga imensa caíra dotelhado, com uma ponta no chão e outra encostada no alto da parede. O sol nascia, ouviam-se tiros, bombas. Esperou que Max ou Frederico viesse buscá-la. Com certeza eles amatariam, pois não podiam mais ficar naquele esconderijo. Esperou em vão por um longoperíodo, arranjando coragem para sair.

Subiu pela viga até o teto do barracão meio destruído e andou pelo telhado, com medo decair ao pisar em alguma parte podre ou atingida pelo bombardeio. Do ponto em que estava,via fumaça e fogo na cidade. Pessoas vagavam pela rua, a pouca distância, fugindo emdesespero. Era isso que ela teria que fazer. Desceu do telhado pelos galhos de uma árvore aolado da parede. Logo viu os corpos de Max e Frederico no chão. Estavam ensanguentadosem seus uniformes. Tinham tentado derrubar um dos aviões e isso fizera com que obarracão isolado se transformasse em alvo.

Hertha sentia fome. Entrou de novo no cativeiro pela porta que ficara aberta e foi até acozinha. Encontrou um garrafão de vinho pelo meio. Bebeu um longo gole no gargalo.Comeu uma grossa fatia de pão que achou na mesa. Estavam tomando café quando ouviramos aviões. Também comeu um pedaço de linguiça defumada, guardando o resto em umabolsa. Lavou a boca com o vinho e ganhou o quintal.

Junto aos corpos, as duas metralhadoras. Ela não sabia usá-las. Pegou as pistolas, aindana cinta deles. Também apanhou munição e dinheiro. Na carteira de Frederico havia umafoto dele com a mulher e o filho. Parecia um pai atencioso, preocupado com a família.

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Hertha se recordou dos gritos do homem que eles torturaram e isso a deixou nauseada.Com a sacola, onde também colocou as armas e a munição, ela saiu rumo ao Centro.

Parecia uma mulher a caminho de um piquenique. Estava suja, fedia pela falta de banho, depapel para se limpar, do bolor do quarto em que ficara trancada, no entanto nada disso aincomodava agora.

Tinha uma manhã de sol. Estradas e ruas. A população vagava pela cidade. Ela era apenasuma pessoa a mais. A desorientação geral os igualava.

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Kanibalen, 1941—

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Um.Todos tinham recebido um jogo de roupa limpa e ninguém trabalharia naquela manhã dedomingo na fazenda Vita Nova. Assim que nasceu o sol, alguns caminhões chegaram aolocal e homens uniformizados e armados entraram no pátio em composições militares,posicionando-se como extenso pelotão de fuzilamento. Os cães, sentados nas patas traseiras,esperavam as ordens que seriam dadas em alemão caso acontecesse algum motim ou umsimples indício de subversão.

O capataz Wriede fez todos os negros se acomodarem na terra vermelha do centro dopátio e explicou o porquê da reunião, o que esperavam deles, os internos mais bem tratadosde todo o país.

— Uma competição. Os melhores de vocês vão para um ótimo serviço na cidade, paraatuar em uma fábrica.

Trajano sabia que, nas fábricas, os negros eram destinados apenas aos trabalhos braçais eque, portanto, não havia ótimos serviços nesse mundo que os nazistas estavam criando no Sul.Ouvira de um deles, quando estava empregado na Prefeitura, pouco antes de ser demitido:

— O trabalho mecânico nas fábricas pode ser confiado aos negros e mulatos, já o quedemanda inteligência só pode ser executado por alemães.

Não confiavam nos ex-escravos para serviços técnicos, empregando-os para a limpeza,para o carregamento de produtos, para a construção e reforma, tal como sempre, desde queas primeiras levas de escravos chegaram ao país. As ocupações de maior prestígio serestringiam a alemães, italianos ou brasileiros que não tivessem misturado seu sangue. Eleseram, nessa lógica, mais preparados intelectualmente.

Após fazer essa reflexão, Trajano decidiu que não entraria na disputa. E avisou, falandocomo um ventríloquo, sem mexer os lábios, aos que estavam a seu lado:

— Não participem.Feita a explicação, o capataz disse que a primeira prova era pegar um boizinho arisco.

Após alguns preparos, um animal foi solto no curral ao lado do pátio e se ouviu uma voz decomando, exortando os voluntários a se posicionarem sobre a cerca. Vários se empoleiraramali; alguém fez disparos no ar, assustando aqueles homens e enfezando o boi, que correupara uma das laterais. Sem ter tempo para pensar, e era essa a função dos tiros, algunsjovens pularam na arena e começaram a perseguir o animal. Um deles, por ter pernascompridas, alcançou-o em trinta segundos e, puxando-o pelos chifres pequenos, fez com quetombasse, ofegante, na terra. Bem atrás, vinham outros três perseguidores, que não tiveramtempo de nada. O animal estava imobilizado por aqueles pulsos fortes.

— Pode soltar — falou o capataz, que acompanhava tudo do lado de fora, com um grupo

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de soldados.O vencedor era um jovem de uns vinte anos, corpo esbelto, musculatura de felino,

homem alto e de mãos imensas. Seu nome: Gahiji; vinha de uma tribo africana de caçadores.Gahiji soltou o boi que não conseguia se levantar, embora tentasse. Tinha quebrado uma

das patas dianteiras. Daí o ajudou a se erguer; ele caiu de novo, sem poder se equilibrar.Com a ordem de Wriede, um dos guardas pulou o cercado e deu um tiro na cabeça doanimal, que estrebuchou por uns segundos até morrer. Os negros que correram atrás deleforam encarregados de levá-lo para longe dali. Seria carneado.

— Você vai com a gente — disse a Gahiji um oficial que tinha chegado com os caminhões.Trajano e alguns trabalhadores continuavam sentados no pátio, não tinham se erguido

nem para tentar acompanhar a perseguição, que exaltou o ânimo de muitos. Queriampassar por indolentes, pouco ágeis. Nem mesmo os tiros fizeram com que manifestassemmedo. Há um instinto de ataque. E outro, mais forte, de proteção.

— Todos voltem a se sentar no pátio — ordenou o capataz aos que haviam se levantado.Na frente deles, prontos para a reação, os militares armados, com seus cães, impassíveis

diante do espetáculo.Nesse momento foi levada até perto do grupo de presos uma armação em forma de tripé,

alta, em cujo topo havia uma caixa grande de madeira fina. Quando os soldados seafastaram, o próprio capataz atirou na caixa com a metralhadora, produzindo uma chuva demoedas pequenas, de baixo valor, e ordenou que catassem o máximo delas.

Começou uma luta entre aqueles homens, que não teriam no que usar o dinheiro,colhido agressivamente no chão. Na tentativa de pegar mais moedas, deixavam cair as que játinham conseguido pegar. Ou alguém ao lado pisava na mão cheia, obrigando a pessoa aliberar a pequena safra. Os espertos tiraram a parte de cima do uniforme e foramguardando ali as moedas, empurrando os fracos, afastando-os do centro onde havia maiorquantidade de níqueis. Em poucos minutos, restou apenas um grupo de uns dez homensque disputavam as últimas peças, agachados no chão, dando cabeçadas nos outros parachegar ao ponto em que reluzia na poeira um daqueles metais.

Ao redor deles, o grupo maior olhava — uns rindo, outros tristes. Pareciam animaisesfomeados disputando comida. Havia um impulso competitivo que levava alguns a querergrandes quantias de qualquer coisa que lhes fosse atirada.

Um tiro interrompeu a caça às moedas. E quem tinha mais delas, um paletó do pijamacom um conteúdo maior do que uma bola, ainda empurrou um amigo do lado para pegaruma última. Não fariam a contagem. Três deles eram os vencedores, os outros tiveram queentregar tudo aos nazistas, que as repartiriam com os escolhidos.

Eles e Gahiji foram levados até o capataz, que os apresentou pelo alto-falante como osmais ligeiros membros da fazenda Vita Nova. Na hora de trabalhar, prevalecia o movimentoconjunto, os grupos faziam as coisas no mesmo ritmo, por isso não era possível selecionaros melhores entre eles. O espírito de grupo gera indolência, falou Wriede. Porém, os

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esportes — e ninguém tinha pensado que aquilo fosse esporte — revelavam os indivíduos.— Temos orgulho de dizer que aqui estão os melhores homens que possuímos.Todos ouviam o discurso, dirigido principalmente ao oficial nazista que viera em busca de

bons negros, ágeis e fortes, que fossem antes de tudo obstinados. O método de seleção forabaseado nas qualidades biológicas, na predisposição para a sobrevivência, na vontade comoforma de superação dos obstáculos.

Era uma pregação sobre eugenia. Mesmo entre os negros, havia os de elite. Estavamatrás deles.

— Irão para uma fábrica.Não precisaram nem voltar ao barracão para pegar os pertences, pois não havia nada

deles além das roupas que acabavam de ganhar. Tinham se sujado na competição. Erapróprio dessas raças primitivas viver em contato promíscuo com o chão, pensou o capatazvendo os seus melhores escravos emporcalhados logo depois de terem recebido roupalimpa. Sujavam-se tão facilmente porque era de sua índole sujar-se.

Wriede se lembrou de uma viagem que fizera com o pai, anos atrás, a uma regiãodistante. Seu pai trabalhou até morrer como vendedor de equipamentos agrícolas e eraobrigado a percorrer povoados quase selvagens. Havia muitos alemães naquelas paragens,nas quais se falava ainda o idioma dos ancestrais, aprendido em bons livros e cultivadocarinhosamente. Essa viagem, para o jovem que ele era, significava a certeza de que anacionalidade vem não do lugar em que você está e sim daquilo que corre nas veias. Comoaqueles alemães podiam continuar falando o seu idioma materno, educando os filhos,construindo rigorosamente suas casas, mantendo os hábitos de civilização mesmo ao lado debugres e caboclos analfabetos? Havia uma força maior unindo todos ali, havia algotransportado no sangue por séculos e que insistia em ser assim.

O capataz tinha conhecido, no entanto, uma exceção. A lição que eles recebiam era danecessidade de a raça ser maior do que o meio, de vencer a natureza, de suportar a solidão,porque mais solitário ainda era quem se afastava do passado.

O pai estava levando num carroção várias peças agrícolas para uma das fazendasremotas, e a morte de um dos cavalos (o carroção era puxado por quatro animais)interrompera a viagem. Iam em três homens: o pai, o filho e um ajudante. Deixaram oempregado cuidando da carga, desatrelaram dois cavalos, colocando os arreios neles, epartiram para comprar de algum fazendeiro uma alimária. No sentido em que seguiam nãohavia moradias por uma boa distância, o pai passara por ali outras vezes. Tiveram que tomaruma estradinha apertada, quase uma trilha na mata, que os levaria com certeza a algumafazenda. Aproveitavam a viagem para ir conversando.

— Em poucos anos, tudo aqui será um terreno alemão. Não haverá estas matas, nemestas distâncias imensas entre as casas.

— O senhor acredita mesmo nisso?— Acredito. Aumentou muito a vinda de alemães, porém ela não é hoje tão importante.

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— Por quê?— A maior parte nasce das famílias estabelecidas. Eu tive apenas dois filhos, a sua mãe

sofreu no parto e abortou três vezes; a maioria das famílias tem muito mais.Pura verdade. Em todas as casas alemãs no meio rural a quantidade de filhos era

generosa.— Qual a maior irmandade que o senhor conheceu?— Uma família com 22 irmãos, de duas mães. A primeira havia morrido no parto, o velho

casou com uma jovem não tão jovem quando passei por lá, e se esta morresse ele ainda secasaria de novo.

— Será que eles têm uma compreensão de que a Alemanha precisa deles?— Não creio. É uma coisa natural. Veem tantos lugares desabitados que querem que tudo

se encha de gente. Vão fazendo filhos como quem derruba árvores para plantar sua lavoura.Quando estava anoitecendo, e depois de terem falado de tantos assuntos, chegaram a

uma casa meio destruída, que guardava a lembrança de ter sido uma bela construção nopassado. Os porcos andavam pela varanda. Galinhas se empoleiravam na soleira das janelase deviam dormir ali. E o gado e alguns cavalos ficavam em volta, num convívio promíscuocom a família.

Eles chamaram os donos e uma mulher negra apareceu, com algumas crianças tão sujasque se não fossem realmente negras passariam por essa raça. Será que dormiam nas cinzasdo fogão?

Apearam e disseram do que precisavam.— Meu marido chega daqui a pouco, os senhores entrem para um café.Eles entraram e as crianças correram para dentro, com medo ou apenas por timidez. A

casa era escura, o chão tinha restos de palha de milho, sujeira; sentia-se, ao andar, a terra noassoalho de madeira. A senhora fez um café muito doce e serviu em canecas de lata. O gostode metal e o do café se misturavam, causando náuseas. Beberam enojados. Ela ainda serviutoucinho e charque esquentados na chapa suja do fogão. Pequenas erupções na carnepareciam ser de bicho, no entanto não quiseram comprovar essa hipótese e mastigaramrapidamente os nacos que lhes foram destinados.

Quando ela precisou acender a vela feita de sebo colocado em um bambu grosso, o quetornou mais irritante a fumaceira dentro da casa, os dois viajantes viram uma toalhadecorativa, dessas com dizeres bordados, pregada na parede, ao lado do lugar da vela. Estavaescrito: Reinlichkeite ist das halbe Leben! E eles riram. “A limpeza é a meta da vida.”

— Foi minha sogra que bordou, era do enxoval dela. Nunca usava as coisas. Quandomorreu, tudo ficou comigo. Não tinha outros filhos, só meu marido.

— Seu marido é alemão?— Brasileiro, mas os pais dele vieram da Alemanha.O jovem Wriede percebeu o contraste entre a casa de alemães puros e a dos mestiços. A

sujeira como algo normal. Dormiram aquela noite no barracão, sobre suas selas, colocadas

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no chão. Muitas pulgas atacaram os dois. No dia seguinte, o corpo marcado, negociaram umdos cavalos da propriedade e partiram, lembrando-se com asco do lavrador alemão, queandava de tamancos, roupa suja e rasgada, e feliz.

Sem perceber que aquele era antes um caso de falta total de recursos, o rapaz jurou quejamais se casaria com quem não fosse da sua raça e que faria de tudo para que aquela regiãopertencesse só a eles.

Wriede não tinha a menor piedade daqueles homens mantidos na fazenda Vita Nova emregime de escravidão. Nem se importava também com o destino desses quatro que agoraseguiam para um dos caminhões e seriam levados a um trabalho bestial. Acreditava estarempagando por algo.

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Dois.Os carros foram parados no portão da fazenda e alguns soldados conferiram os passageiros:um grupo de seis caçadores, distribuídos em dois modelos Chevy Special Deluxe, quatroportas, pretos, que tinham enfrentado estradas ruins para chegar ali. O para-lama de umdeles estava amassado e o motorista desceu para avaliar o estrago. Tinham batido numapedra que deslizara do barranco e atrapalhava a passagem. Mas o acidente não comprometiaa roda, apenas entortara a lataria arredondada e bojuda, como se tivesse afundado a caixacraniana de uma pessoa com uma paulada. O dono do carro nem perguntara sobre oestrago. Estavam todos muito excitados naquela tarde. Vieram bebendo uísque.

Em poucos minutos, foram autorizados a entrar na propriedade, toda cercada com fios dearame farpado em curta distância entre si e elevados até mais de dois metros de altura. Pelolado de fora, havia uma estrada que circundava a fazenda, e por ela passava um Mercedes-Benz 340, com soldados armados com metralhadora. Pelo lado de dentro, uma mata espessa,escura e alta. Era cortada somente por uma estrada estreita, de terra vermelha, que levava àsede.

O portão foi aberto, mas antes um dos soldados recomendou que ficassem com as janelasfechadas e as portas travadas por se tratar de uma área perigosa.

Os visitantes do primeiro carro riram. Tinham caçado antes na África, eram experientesno uso das armas, que estavam ali ao alcance das mãos. Um comentou isso e o outro selembrou de que na África havia os descampados, e eles estavam agora num grande labirintode árvores e mato.

— Está com medo?— Não. É a lembrança da época de criança, quando nos contavam lendas de terror na

selva — ele disse, rindo.Nesse momento, os carros entravam no túnel verde. Não se via mais o sol. A escuridão

era fresca e invadia o carro pelas ventarolas um cheiro de folhas maceradas. Eles seguiramem silêncio, talvez entregues a memórias do tempo de criança, quando uma empregadacontava a história de alguém perdido na mata. Todos tinham sido criados ouvindo essasvelhas narrativas. Estudaram em boas faculdades, conheciam a Europa e a África, erampessoas de dinheiro, com uma vida urbana, donos de fábricas, alguns de origem europeia,outros brasileiros. E tinham viajado centenas de quilômetros até ali.

A fazenda era um endereço secreto. Unicamente os homens mais ricos do clube de caçasabiam dela. Eles inaugurariam as excursões em que poderiam exercitar a habilidade com asarmas. Se tudo desse certo, viriam outros, sempre grupos seletos, pois tudo devia acontecerem sigilo. O valor pago pelo fim de semana era alto, contudo a promessa de uma grande

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emoção tornava o investimento compensador. Não poderiam praticar esse esporte emnenhum outro lugar.

Uns poucos quilômetros além do portão, encontraram uma clareira e uma nova cerca.Era a sede. Os portões foram abertos rapidamente e os carros avançaram. Por rádio, aprimeira portaria havia avisado da chegada dos caçadores. Assim que entraram, o portão sefechou. Os carros pararam um ao lado do outro, empoeirados e ainda brilhantes. As portasse abriram para os homens descerem esticando as pernas e olhando para a casa, uma casaem estilo colonial, em forma de ferradura, com várias janelas. Cada um teria um quartoamplo. Havia uma escadaria para levar à porta principal. Os soldados tiravam a bagagem,com os estojos das armas.

— Estão aí fora? — perguntou um dos caçadores, indicando com um erguer de cabeça amata.

— Estão — respondeu o soldado que levava sua mala.— Há quanto tempo?— Mais de duas semanas.— Foram alimentados?— Não.E o caçador que fez as perguntas sentiu um arrepio de emoção. A proposta que recebera

estava correta. Só o fato de estar ali, no centro de algo, como se todos lá fora os vigiassem,tinha uma intensidade emocional maior do que qualquer caçada na África. Seuspensamentos foram interrompidos pelo gerente da fazenda, que abriu a porta principal e oschamou para dentro.

— Vocês terão muito tempo para apreciar a natureza, entrem — Sanches falou, rindo.Miguel Sanches não exibia os trajes de caçador africano e sim o velho uniforme nazista.

Filho de pais espanhóis que chegaram ao porto de Santos para trabalhar nas lavouras decafé, em substituição à mão de obra escrava, Sanches, assim que se tornara adulto, se fizeraadepto do integralismo e, depois, com a nazificação total do Sul, um hitlerista. Fora essaoportunidade de trabalhar com os partidários que tirara sua família de um período depobreza e servidão que se arrastava por séculos. Na sua sala de trabalho, exibia a árvoregenealógica dos reis de Espanha, orgulhoso de ver seu sobrenome entre os principais ramosda casa real. O nazismo o despertara para uma grandeza ancestral, tornando-o convicto deque sua família fora injustamente destinada a cargos subalternos que negavam as origensnobres. Vergava, por isso, o uniforme como uma vestimenta real. E ali na selva ele tinha arespalacianos que agradavam aos visitantes.

O jantar fora preparado com muita fartura de carne e havia bons vinhos na mesa,talheres de prata, taças de cristal e toalhas de linho. O encontro de um grupo de caçadores,no entanto, mesmo numa casa com todo o conforto, era sempre uma reunião ao redor dafogueira. E eles sentiam o cheiro que liberava a carne rústica dos acampamentos. Era comose suas mãos guardassem o sangue do animal abatido. Aproximavam-se assim dos lobos que

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saboreiam a presa que havia pouco estava viva e que sofrera uma morte sacrificial. Tudoisso era uma lembrança atávica, pois a comida fora preparada na cozinha e o candelabrosobre a mesa, com suas velas, remetia apenas fracamente à chama da fogueira.

Todos foram dormir cedo, tomados pelo cansaço da viagem, pela comida, pela bebidafarta e pelo desejo de que o dia seguinte começasse logo.

Pela manhã, a alimentação foi frugal, algumas frutas e uma xícara de café. Os caçadoresestavam com suas roupas de safári, os rifles Karabiner 98, na sua versão de cano mais curto,o Karabiner 98K, com mira telescópica. Era uma das armas preferidas do exército alemão,que a usava desde a Grande Guerra. Tinha sofrido modificações sem deixar de ser confiável.Cada um também levaria uma faca de combate Fairbairn-Sykes, recém-criada pelos inglesese que era a nova sensação dos ataques em que havia lutas corporais. A lâmina longa epontiaguda permitia que se atingissem os órgãos vitais da presa. Um cantil para água eoutro para uísque, uma pequena mochila com comida e munição.

Duplas de caçadores saíram para pontos estratégicos e combinaram se encontrar no finalda tarde na sede da fazenda. Uma delas tomou o lado norte da mata. A primeira dificuldadeera se mover em meio a tantos cipós, a galhos que obstruíam o caminho e se prendiam naroupa. Não sabiam o nome daquelas plantas e seguiam com dificuldade. Deviam ter trazidoum facão comum para abrir a picada, sugeririam isso aos organizadores na volta. Assim, acaminhada era feita movendo as plantas, anunciando a sua chegada. Seria difícilsurpreender a presa. Essa foi a constatação dos caçadores. Por mais que tomassem cuidado,sempre avançavam com barulho. Os rifles, embora de cano curto, eram inadequados parauma mata tão densa. Meia hora caminhando e já estavam no meio da selva. A claridade erapouca e havia regiões com árvores e plantas espessas.

— Devíamos ter trazido lanternas — falou um dos caçadores.— Não ia adiantar.Uma cobra-coral passou por eles e sentiram o impulso de atirar. Mas os caçadores

interromperam o movimento, pois não estavam ali para isso. Era muito difícil ver uminimigo, mesmo um inimigo pequeno como a cobrinha colorida, e deixá-lo solto. Deviamfazer um exercício de contenção das forças mais espontâneas para não esmagar a cobra como salto das botas. Por isso deixaram-na seguir em paz. Que outros animais encontrariam?

Logo viram uma pequena clareira, banhada por raios solares que brincavam nas folhasmovidas por uma leve brisa. Eles foram para essa área desmatada e se sentiram mal.

— Parece que estamos sendo vigiados.Olharam para os lados, porém não havia nada além de alguns pássaros. Abriram o cantil

e beberam uísque, seguido de um gole de água. Começaram a andar na divisa entre aclareira e a mata, verificando vestígios.

— Olhe — disse um dos caçadores.E os dois se aproximaram de uma moita de bambus que crescia livre da opressão das

árvores altas. Ao redor e no chão, brotos comidos até a parte mais dura. Estiveram ali

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recentemente. Os brotos ainda não haviam murchado. Talvez tenham dormido nessa região.Entraram um pouco na mata, os rifles apontando para todos os lados, esbarrando nasplantas, e viram excremento fresco, com uma coloração esverdeada.

— Ali — sussurrou um deles.E encontraram galhos e arbustos quebrados. Tinham ido por aquela direção ou chegado

por ela? Consultaram a bússola e viram que estavam no lado oposto da sede. Era naturalque se afastassem dela, sem chegar ao outro lado, onde os soldados faziam a ronda noMercedes conversível.

A fazenda pequena era tomada pela vegetação nativa. A princípio, a casa fora construídano centro para funcionar como um refúgio dos proprietários. Posteriormente, surgiu a ideiade transformá-la em clube de caça. Só precisaram fazer as cercas. Havia manchas da matacom a copa aberta das araucárias, sempre em consórcio com todo tipo de árvore. Nenhumrio cortava a propriedade, que era muito plana.

Eles seguiram a trilha aberta entre as folhas e os galhos. Alguns metros adiante virampegadas. Um de costas para o outro, as suas nádegas se tocando, eles avançavam, atentos atudo. Então perderam a pista e escolheram um lugar para continuar caminhando.Alarmados por um som estranho, os dois atiraram para o alto de uma imbuia, vendo emseguida um gavião levantar voo.

— Agora sabem onde estamos.— Devemos voltar para a clareira.— Viemos para caçar. Dê outro tiro para o alto e vamos esperar que se aproximem.O tiro da Karabiner ecoou como um grito. Alguns pássaros pousados em outras árvores

ganharam o céu, entretanto os caçadores não conseguiam vê-los, tantas as árvores. Elesesperariam. Ficaram uma hora procurando algum sinal na mata e não identificaram nada.Um lagarto passou indiferente a eles. As formigas carregavam folhas para um lugardesconhecido. Tudo parecia rotina.

— Devemos avançar rumo à cerca? Era esse o plano.E, sem que o outro respondesse, começaram a nova marcha.Andar no meio de um emaranhado de plantas cria a sensação de que se está em combate

contra um exército parado. Haviam se cansado e faltavam horas para o fim do dia. Seguiramsuados, com a roupa rasgada pelos espinhos e galhos secos.

Tinham perdido a pista. E deviam caminhar olhando para os lados e para cima.Encostaram-se em um velho coqueiro, um de cada lado do tronco, para descansar. Desdeque começaram a procura, os corações desses caçadores estavam acelerados. Pequenos golesde uísque tentavam relaxar a musculatura, mesmo assim eles sentiam dores no corpo. Eramum exército em luta. Uma luta de fim de semana. Um deles pensou o que estaria fazendonesse horário, às duas horas da tarde, se estivesse em casa, em São Paulo. Saindo de algumbom restaurante, ele concluiu.

Então aquele vulto. E ele já não conseguia engolir a saliva. Só vira algo escuro voando em

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sua direção e se sentiu preso no coqueiro. Ouviu um tiro. E perdeu os sentidos. Apenas avontade de engolir qualquer coisa, e isso era impossível.

O primeiro caçador pendia do coqueiro pendurado pelo pescoço. Uma lança de madeira,de uma madeira escura e muito dura, que tinha sido pacientemente apontada em algumapedra, fora jogada contra ele, acertando o seu gogó. O pescoço, sob o peso do corpo, esticaraalguns centímetros, mudando a fisionomia do caçador. Parecia um animal em um gancho deaçougue. O rifle restara no chão.

O outro fez dois disparos para o local de onde viera a lança, sem enxergar o ponto exato.À sua direita e à sua esquerda, vultos passavam rapidamente de uma árvore a outra. Eleatirou em um ponto e no outro.

Por causa dos ventos e do silêncio da região, na fazenda ouviam-se os tiros. MiguelSanches ficou feliz com o seu empreendimento. Essa primeira caçada ia bem. Depois dessesindustriais, viriam muitos outros e ele poderia manter contínuas as atividades. A fazendaatendia aos desejos mais inconfessáveis do ser humano. E aquele era o momento depermitir que eles fizessem o que sempre sonharam.

Na mata, o caçador solitário pegara o rifle do companheiro, que provavelmente deviaestar morto, escondendo-se atrás de um tronco, sem deixar de vigiar toda a região. Os vultosagora não se mexiam, ele olhou a bússola e viu que teria de passar por onde estavam osadversários. Saiu de uma vez e atirou. Foi quando percebeu com muita nitidez o corpo nu deum homem negro, que aparecia provocativamente para ele. Disparou, acertando o ombro doinimigo, que caiu. O caçador correu até lá, com a arma sendo apontada para todos os lados,virando-se continuamente.

De cima da árvore, cujo tronco se bifurcava, formando um esconderijo, saltou Gahiji,também nu, e com um golpe de pé, antes de tocar o chão, tirou o rifle do caçador e roubou aFairbairn-Sykes de sua cinta, rolando no chão com seu perseguidor preso pelo pescoço, porum de seus braços, e com a adaga na outra mão. Ainda no chão, ele enfiou a lâminacomprida na região da axila do caçador, que tinha os braços levantados para se livrar do queo sufocava. A faca atingiu rapidamente o seu coração, ele a tirou e a enfiou de novo. Osangue começou a esguichar, atingindo os lábios de Gahiji, que os limpou com a língua,experimentando aquele líquido humano, não muito diferente do que sorvia dos animaismortos.

Os outros dois negros apareceram e foram direto resgatar o amigo ferido. Abriram amochila dos caçadores e encontraram comida. Só vinham se alimentando com frutinhassilvestres, raízes e brotos de plantas, além da carne crua de animais silvestres. Sem água,mastigavam brotos brandos e assim enganavam a sede. Comeram e beberam, sentados nochão, dando porções de comida e goles de uísque ao companheiro baleado.

Depois de fazerem um curativo no ferimento com uísque e uma pasta de folhas colhidasna mata, eles se vestiram com as roupas retiradas dos mortos, dois com as partes de baixo edois com as partes de cima, pegaram as mochilas e as armas, além dos rifles, facas e pistolas.

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Não precisaram da bússola para saber que rumo tomar.

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Três.O tumulto na fazenda Vita Nova foi tão grande que os escravos acabaram retirados de seuspostos de trabalho com um nervosismo por parte dos nazistas que era traduzido emempurrões, xingamentos e ameaças. Todos deviam voltar ao barracão mesmo no meio dodia, e não haveria almoço. Os que estavam distantes foram buscados de caminhão comgrade para gado, só que mais resistente e adaptada ao transporte humano. Atrás ia umKrauftfahrzeug 15 com soldados e uma metralhadora instalada na parte traseira.

— Será que começou a guerra? — um dos presos perguntou a Trajano.Ele não respondeu. Sabia que só seria aceito se não falasse no tempo em que convivera

intensamente com os alemães, em que fora um deles, e também se não se mostrasse maisinteligente do que os outros trabalhadores. Agora, suas mãos ásperas, rachadas pelotrabalho e pela terra vermelha que encarde tudo, não apresentavam diferença nenhuma emrelação às dos outros cativos. Todos faziam as tarefas com a mesma força bruta, pensando efalando pouco, porque falar e saber são coisas impróprias num campo de isolamento.Estamos sempre voltando para a selva, ele pensou. Na verdade, nunca saímos dela. Não hásaída. Todos os caminhos nos devolvem ao início.

O caminhão ia em uma velocidade maior do que a normal, e os buracos empurravam oshomens uns sobre os outros. Trajano bateu a cabeça no peito de um dos colegas e selembrou de que havia tempo não tinha um corpo colado ao seu. Quase não pensava emmulheres, porém ali, naquela manobra inesperada e tensa, sendo jogado de um lado paraoutro, pernas se encaixando em outras pernas, sentiu um desejo inadequado. Se nuncapensara em dormir com homens, agora precisava dormir com alguém.

Controlando os seus sentimentos, mesmo tendo gostado de esfregar seu corpo no de umjovem que não fizera objeção, sentiu-se aliviado ao chegar à sede. Desceram sob os latidosameaçadores dos cães. O que estaria irritando tanto os nazistas? Fez de tudo para ficar comos últimos que pulavam da carroceria e levou um empurrão com o cano do rifle.

— Mais rápido.Seguiram até o barracão escoltados, enquanto ele acompanhava a conversa em alemão.

Gahiji e os demais negros tinham fugido de algum lugar, assassinado vários soldados paraabrir os corpos deles num ritual antropofágico. Eram uns selvagens, indignava-se um dossoldados, e haviam fugido com as nossas armas. Todos tinham sido convocados paracapturar esses kanibalen. E, ao dizer essa palavra, os soldados se arrepiaram.

— Eles acham que a caçada terminou.Trajano não sabia de que caçada falavam. A sua compreensão da conversa era facilitada

por sua mente afeita à leitura literária. Com poucas palavras ele formava a ideia geral,

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intuindo o que não era possível ouvir. Os negros se rebelaram lá onde estavam, fugindoapós devorar (era isso mesmo?) dois brancos. Não representavam perigo, pois o que podiamquatro homens, mesmo armados, contra os nazistas? O que os revoltava era o fato de teremfalhado, de terem sido vencidos por seres inferiores.

— Esses desgraçados.E o soldado que disse isso ergueu a metralhadora na direção dos homens que

caminhavam à sua frente. Trajano sentiu uma friagem na espinha, como se balasimaginárias entrassem em seu corpo. Poderiam ser mortos ali. Atirar em um grupo paravingar a vergonha de uma nação. Quando se matava um nacional-socialista era o nazismointeiro que sofria.

O soldado não disparou, mas na sua mente ele estava mandando para a vala comum todaessa raça fedorenta, todos esses animais ingratos. Matou-os sem dó. Não deixou nenhumvivo.

Os trabalhadores foram recolhidos ao grande barracão que servia de dormitório, comsuas janelas altas. Quando o grupo de Trajano chegou, a maioria já estava lá. A ordem eraque se recolhesse cada um em seu canto, evitando aglomeração. Com a proximidade entreeles, o simples fato de se deitarem criava um aglomerado humano.

Ao fecharem as portas, gerando uma escuridão pontuada pelos furos no telhado e pelasfrestas na parede, eles ficaram em completo silêncio por um tempo.

Então começou a correr de uma esteira para outra uma frase.— Vai ser esta noite.Veio uma segunda frase, sussurrada entre os vizinhos, numa grande rede comunicativa.— Poucos soldados na fazenda.As informações saíam do meio do barracão, que tinha três esteiras dispostas no chão. A

frase circulava pela coluna do meio, para a direita e para a esquerda, tornando agoraurgente a fuga que vinha sendo planejada à noite. Se ficassem ali, com a primeira derrotados nazistas no Brasil, eles seriam mortos. E a forma como foram recolhidos hojeconfirmava que algo estava para acontecer. Não poderiam continuar sendo escravos semque o resto do país tomasse alguma atitude. Até quando o presidente Vargas ia protegeresses assassinos?

Trajano, do grupo das esteiras do meio, deu a informação, não falando da acusação decanibalismo.

— Gahiji matou os guardas e fugiu.Isso foi repassado alegremente entre os trabalhadores.— Estão armados.Servia também para melhorar o ânimo de todos.De tempos em tempos, um vigia olhava para dentro do barracão, onde os homens

estavam deitados, embora o sol estivesse alto lá fora. Mantinham-se em silêncio, numasubmissão esperada em servos. Assim deviam avaliar os nazistas. Deitados sem conseguir

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dormir, cada um pensava em algo que os tirasse dali.Trajano se lembrou de uma passagem de História, de Heródoto, que teve um impacto

muito grande sobre ele. Este era um livro lido como se fosse uma bíblia. Procurava fatos naAntiguidade que pudessem iluminar a sua compreensão do mundo. Encantava-o aindistinção entre a realidade e a imaginação nesses relatos. Tinha grifado no volumeroubado por seus inimigos a passagem do retorno dos citas. Podiam ter tomado todas assuas coisas, mas ninguém roubava a memória das obras lidas. E ali, deitado, com o cheiro desuor de outros homens condenados a serviços cansativos, ele retirou os dois volumes deHeródoto de Halicarnasso de sua estante, sentou-se numa poltrona que já não lhe pertenciae abriu no começo da parte IV.

Todos os homens dos citas tinham deixado a sua pátria para invadir a Ásia, que eramuito rica. Ficaram lá por 28 anos, até serem expulsos, quando tiveram que voltar para casa.

Nessa ausência, suas mulheres, tomadas pela longa solidão, acabaram se entregando aosescravos e tendo muitos filhos com eles. Esses escravos, contava Heródoto, cuidavam dosrebanhos, ordenhando os animais de acordo com um método estranho. Eles enfiavamcanudos grossos como flautas na vagina das fêmeas e assopravam por ali para que elastivessem as veias intumescidas e dessem mais leite. Mestres em enfiar a flauta e assoprar nointerior feminino, eles deviam ter sido grandes amantes, e também por isso, não apenas portédio, as patroas passaram a viver com eles. Com a volta dos antigos maridos, com quem elasdeviam ficar?

Não havia dúvidas. A família principal era a mais recente. E as mulheres e seus novosfilhos enfrentaram os citas como inimigos, agora prontos para retomar o país que já foradeles. Houve lutas em que os dois povos se enfrentaram não tão agressivamente. Os citasfaziam um raciocínio de proprietários. Se matassem os ex-escravos e seus filhos, poderiamvencer, só que perderiam os trabalhadores responsáveis pelos serviços. Vencer seria destruiro patrimônio de um país que lhes pertencia por direito.

Um dos combatentes se levantou e disse: o erro deles, nessa luta, era que estavamusando arcos e dardos para enfrentar os usurpadores, tratando-os como iguais. Conclamou,pois, os companheiros para que largassem as armas e pegassem o chicote, marchandocontra eles não como soldados e sim como patrões. O chicote faria com que se lembrassemde que eram escravos, de que tinham origem baixa, e assim não resistiriam à memória degerações dominadas e se entregariam pacificamente.

Heródoto conclui essa passagem dizendo que a estratégia teve sucesso. Vendo-se diantedos antigos donos, que empunhavam aquele símbolo de domínio, os escravos abandonaramas armas, assumindo o seu antigo papel. Muitos dos jovens cativos seriam parentes dospatrões, assunto de que o livro não trata. Nem de como os maridos voltaram a conviver comas mulheres traidoras. Esse povo seria um dia um só, concluiu Trajano.

Vinha do lado de fora do barracão o barulho dos caminhões e carros partindo para a caçaaos fugitivos.

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Alô, brasileiros. Uma onda de pequenas mentiras está correndo o país e é obrigação da Rádio Nacional doRio de Janeiro alertar os seus ouvintes. A última acusação infundada que o presidente do Brasil, o senhorGetúlio Dornelles Vargas, recebe é a de que o Estado Novo persegue os negros do Sul. Essa bobagem partiudo comunista Abdias do Nascimento, que se encontra detido na penitenciária do Carandiru pormanifestações políticas contrárias à ordem nacional, com o pretexto de defender os de sua cor. Abdias éum grande arruaceiro e, condenado em 1937 pelo Tribunal de Segurança Nacional, esteve preso na Casa deCorrecção.

O presidente do Brasil informa que os negros do Sul, sua região de origem, estão sendo muito bemtratados por instituições de ensino e de caridade, que os retiram das ruas e da vida viciosa, levando-os aatividades saudáveis. O que os difamadores como o senhor Abdias chamam de perseguição aos negros é umgrande projeto de educação pelo trabalho que se inicia no Sul e deve chegar a todo o país.

Ouvindo a Rádio Nacional, prefixo PRE-8, o senhor, cidadão que trabalha para o progresso do Brasil,se mantém informado. Não deixe de denunciar os baderneiros.

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Quatro.Com a morte do cozinheiro José, outro negro dócil fora escolhido para ajudar a preparar asrefeições dos trabalhadores. Além de fazer o serviço pesado (carregar sacarias commantimentos, levar os caldeirões e panelas ao pátio, onde eles se alimentavam nos dias desol, e ao barracão-dormitório quando chovia), o novo cozinheiro, Manoel Albino, de tez claraembora de pais negros, daí talvez o apelido, cuidava da comida dos cães da fazenda,preparada com tanto ou mais cuidado do que a dos negros. Manoel Albino nascera emPonta Grossa e, servindo em casa de alemães distintos, falava um pouco da língua, sabiacozinhar e fazer pequenos serviços. Diversas vezes Trajano o ouvira pronunciar algumasfrases de desespero em alemão, como se não entendesse o que estava fazendo ali. Emboraurbano, Manoel Albino chegou a trabalhar na lavoura, ali na fazenda Vita Nova, no períodoem que José cuidava da cozinha. Nesse tempo, ele foi bem próximo do velho Abuu, tratadocom grande reverência por todos. Abuu conhecia as ervas, sabia histórias ancestrais etomava conta de cada um dos homens como se fossem seus filhos. Cuidara, no início, dosferimentos nas mãos e nos pés de Trajano. Manoel Albino andava pelas plantações comAbuu e, curioso, logo aprendeu a utilidade das plantas. Quando, meses após a internaçãoforçada na fazenda, Abuu morreu de velhice e do cansaço gerado por um trabalho para oqual não tinha forças, Manoel Albino passou a ser consultado sobre qual planta usar paraesta ou aquela doença. Como ele estava de serviço na cozinha, providenciava escondido umchá, macerava alguma folha para unguento ou colocava plantas na comida dos amigos, amesma que ele comia, para melhorar a digestão, para dar mais substância.

Aos poucos, foi pegando os trejeitos de Abuu e falando no mesmo tom de voz, baixo ecompassado. Naquele dia em que houve a ordem para que todos se recolhessem, os homenstrancados sem almoço, Manoel Albino foi o único que continuou em suas obrigações. Eleprimeiro foi levado ao barracão com os outros, permanecendo uns instantes ali, e soube oque estava para acontecer. Acabou chamado para preparar a comida dos cachorros, que nãopodiam ficar sem uma boa refeição, e o soldado que disse isso riu, para lembrar que,naquele dia, por terem gerado selvagens como Gahiji e os seus, eles não teriam nada paramatar a fome.

Manoel Albino seguiu para a cozinha com um passo leve. Sentia-se sempre um traidorque ia para uma ocupação feminina, sabendo que os amigos teriam de enfrentar tarefasdifíceis, que trabalhariam de forma contínua sob um sol terrível, e que ele passaria o diaprotegido por um teto, cuidando de panelas, mexendo com fogo e com água. Não podia dizerque preferia estar com os outros. Não, não fora feito para a faina bruta e quase sempreestivera em ambientes agradáveis. Não, não cozinhava contra a vontade. Por isso seguia para

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o refeitório, pela manhã, com um peso nas pernas, envergonhado da função amena que lhederam. Agora, após ter estado no galpão — fora um dos primeiros a ser enviado para lá, poistrabalhava perto —, ele se sentia pacificado. Tinha algo a fazer.

Depois de preparar a comida dos pastores-alemães, acontecia de ser obrigado a provar damesma panela. Tirava um prato do mingau com carne e comia na frente de um dos guardas.E tinha que fazer isso com entusiasmo, num sinal de que, sim, aquilo estava delicioso. E elese esmerava para que a comida contentasse os cães, para que nada sobrasse nas vasilhas.Lavava bem esses potes, que ia deixando nos lugares em que eles se alimentavam. Saía comum carrinho de mão, o caldeirão bem acomodado, reluzindo de limpo, um pano branco soba tampa e com os potes para os cães. Algum soldado, para zombar de Manoel Albino,ordenava que se servisse sem talher de um pouco do mingau. Ele enfiava a cara na vasilhacom a gula dos bichos.

Agora, no tumulto gerado pelos últimos fatos, estava livre na cozinha. Preparara fubácom carne, acrescentando alguns legumes, cenoura e abóboras cozidas até quase sedesmancharem, adicionando um pó de caules e folhas de comigo-ninguém-pode que elehavia pacientemente macerado. Esperava não ter que experimentar a comida, porém, sefosse preciso, provaria e sairia dali para devolver tudo na privada e já tomar um chá paralimpar o estômago. Fora apresentado a essa planta pelo velho Abuu, que lhe explicara osseus poderes destruidores não como quem alerta para um perigo, e sim como quem dá umareceita salvadora.

— Você deve primeiro deixar as folhas e os caules secarem ao sol, daí moa tudo comcuidado, até que virem uma poeirinha. Essa poeira, se colocada sobre a comida ou se entrarno nariz da pessoa, vai ferir a boca e a garganta e a pessoa vai começar a inchar e terinflamações até morrer.

Abuu sorria ao descrever os sintomas da erva, num prazer que não era próprio em quemanuncia os efeitos de uma droga. Ma noel Albino seguiu a receita e fez a comida. Saiu dacozinha com o caldeirão, procurando os cães. Tinha dó desses bichos, pois convivera comeles nos últimos meses, dividira o pote de comida algumas vezes, então era natural queamasse essas feras que acossavam e atacavam os seus irmãos. Era, todavia, um amigo dosanimais em geral, não desses cães em especial. E ele agora tinha que lhes levar até a boca oveneno.

Serviu o primeiro grupo, uma tigela para cada um, temendo que fosse obrigado a comercom eles. Todos estavam muito agitados, pois, com a partida do grosso do contingente, ossoldados que ficaram se sabiam em perigo. Queriam é que os pastores-alemães comessemem paz, sem se preocupar em zombar do negro desbotado que trazia a comida. Os cães nemcheiravam o mingau, engolindo tudo com gula. Não deixaram nada nas tigelas, rapidamenterecolhidas por Manoel Albino. Ele foi alimentando os animais enquanto, secretamente, lhesdizia adeus.

As primeiras reações aconteceram no meio da tarde — os cachorros se sentiam

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sufocados e suas bocas espumavam. Isso, no entanto, não causou maiores preocupações nossoldados que vigiavam a fazenda. Em pouco tempo, os bichos começaram a ficar sem ar. Dosquase trinta cães, somente dez tinham saído no encalço dos fugitivos. Os demais ficarampara vigiar os trabalhadores, porque o número de soldados era pequeno, menos de umadúzia.

Imitando Hitler, o oficial andava com seu chicote, usado para dar comando aos pastores,que obedeciam tanto às ordens verbais quanto aos estalos do couro, e também para açoitaralgum negro que se mostrasse insolente ou indolente. Percorria o pátio com a metralhadorano ombro, a guia do cachorro em uma das mãos e o chicote na outra. A confusão começouquando os cães pararam, caindo no chão, em espasmos, os soldados tendo que cuidar deles.Pediam ajuda uns aos outros, entretanto quase todos estavam com igual problema com seucachorro e os que ficaram no canil, uns poucos, também morriam. Cuidaram dos animaispor algum tempo no local em que eles haviam tombado, tendo que ou deixá-los ali, paramorrer, ou levá-los para o canil, onde talvez se recuperassem. Dois soldados arrastavampelas patas o corpo já meio inerte de seus pastores-alemães. Um levava o cão no colo, comouma criança doente. E alguns os abandonaram à própria sorte, intuindo o responsável.

— Aquele negro branquelo — disse o oficial.E seguiu, na companhia de quatro homens, para o barracão no qual Manoel Albino fora

recolhido com os demais depois de ter lavado as panelas e as louças do almoço. Antes deentrar pela porta principal, os soldados subiram até o ponto de observação, na parte maisalta da parede, e abriram uma fresta da janela. A luz do entardecer era pouca e iluminavamal o interior escuro. Viram só os homens deitados nos colchões. Estavam ali parados, semcoragem para uma reação.

Os soldados desceram do mirante e abriram uma das folhas da porta principal, deixandouma luz avermelhada entrar no barracão. O oficial responsável pela guarda tinha o chicotenas mãos e bateu três vezes na própria perna, enquanto os outros soldados estavam com asmetralhadoras e os rifles apontados para os colchões.

— Onde está…Foi tudo que o oficial teve tempo de dizer. Do alto do barracão, das vigas que sustentavam

o telhado, onde ficaram escondidos, esperando o momento, despencaram vários homenssobre os nazistas, imobilizando-os. Eles foram estrangulados por braços musculosos,acostumados a trabalhos brutos, enquanto disparavam rajadas cegas de metralhadora. Balasatingiam o chão e as paredes. Um único escravo morreu por se encontrar na esteira. Nahora em que se levantou para ajudar os companheiros, foi colhido pelas balas. E a porta foientão trancada.

Trajano estava entre os que haviam pulado do telhado. Para ele, quem ajudava a planejaralgo perigoso devia correr o risco, executando o plano. Ao cair sobre um dos soldados,machucou o tornozelo, conseguindo apesar disso tomar uma metralhadora. Havia sido omesmo ataque do grupo de Gahiji na mata, embora não soubessem disso. Só lhes restava o

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corpo como arma; despencar sobre o inimigo era uma das poucas formas de lutar naqueleambiente fechado.

Agora, com as duas submetralhadoras Maschinenpistole 40 e os dois rifles Kar 98K, alémdas pistolas Luger dos soldados, eles possuíam um verdadeiro arsenal. Trajano pegou ochicote de cão do oficial.

A porta principal ficou com uma pequena fresta, onde se postou um vigia. Quando osoutros soldados se aproximassem, ao perceberem o que tinha ocorrido, seriamsurpreendidos. Não demorou nem dois minutos para que os últimos nazistas, agora semseus cães, se arrastassem, formando uma linha que varria o pátio, avançando na direção dobarracão. Passariam pelos cães já mortos. O sol se punha do outro lado do barracão, o queprotegia os rebelados e iluminava os soldados. A menos de cinquenta metros, as portas dobarracão foram abertas e houve uma troca de tiros, que resultou em soldados mortos ealguns trabalhadores feridos. Os negros, contando com a vantagem numérica, invadiram opátio, marchando contra os sobreviventes. Cinco deles fugiram atirando, mas foramderrubados e mortos por uma leva de cativos. Mancando, Trajano corria com o chicote emuma das mãos.

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Cinco.Não queriam simplesmente fugir do cativeiro, mas também cobrar pelos serviços forçadosdurante aqueles meses. Primeiro se apropriaram das armas, pegando todo o equipamentode guerra que havia — granadas que não foram usadas contra eles, pois os nazistas nãoqueriam destruir a propriedade em que trabalhavam, munição, rifles e também roupas.Teriam que sair dali com a farda nazista. No alojamento, vasculhavam os armários em buscade peças que servissem. Eram mais musculosos do que os soldados, então tinham que pegarnúmeros maiores. Não havia uniformes para todos, no entanto a maioria conseguiu o trajecompleto. Outros exibiam a parte de cima e a calça comum de algum soldado. Uns aindaficaram com o pijama de algodão rústico que sempre usavam, e isso os fazia se sentiremdiferentes dos demais.

Embora vestissem as roupas que tinham achado, com calças que não abotoavam direito eeram amarradas com barbante, jaquetas abertas, com mangas curtas, todos invariavelmentecontinuavam descalços. De muito trabalhar no campo, seus pés haviam se esparramado enão entravam em nenhuma das botas que encontravam. Eles tentavam enfiar os dedosalargados no cano dos coturnos, mas era impossível.

E foi assim, com os uniformes mal assentados, descalços, que seguiram para o refeitório.Em festa, atacaram os pães, as linguiças, os charques e tudo que podiam comer semcozinhar, pois não havia tempo para isso. Encontraram vinho e bebiam longos goles nogargalo, passando os garrafões de mão em mão. Os nazistas também lhes deviam essarefeição. E eles devoraram os alimentos em grandes quantidades, pelo muito tempo sempoder fartar-se.

Alguém levantou Manoel Albino nos ombros e o passaram por cima da multidão, de umcanto para outro.

— O nosso cozinheiro, o nosso cozinheiro — gritavam.Meninos num piquenique, todos se divertiam, sabendo que em breve começaria a difícil

jornada. Para onde iriam? Esperavam que alguém os comandasse.Com dor no tornozelo, depois de ter comido bastante e bebido muito vinho, Trajano se

recolhera a um canto. Os ex-escravos tinham se tornado um batalhão. Não sabiam o queestava acontecendo no mundo. Tinham ficado meses isolados nessa selva de terra vermelhae todas as informações que recebiam eram boatos, conversas ouvidas dos nazistas. Para eles,Getúlio Vargas estava transformando o Sul do Brasil num protetorado alemão a que daria onome de Germânia, conseguindo assim o tão desejado Lebensraum, o espaço vital. Hitler tinhase tornado o grande protetor do país e mandava carros, tanques, canhões, equipamentos. Aindústria Krupp se instalara aqui e produzia armas para os nazistas brasileiros e para os

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alemães. Os judeus vindos irregularmente ao Brasil estavam sendo deportados para aAlemanha, para serem tratados como os demais. Alguns que chegaram antes da ascensão deHitler retornavam como prisioneiros. Eram essas as informações en treou vidas por Trajano.

Gostaria de ter podido acompanhar agora as transmissões das rádios nazistas, o que eraimpossível. Ao entrar na sede da fazenda, a multidão foi se entusiasmando. E os revoltadosquebraram os móveis, rasgaram as fotos de Hitler e Vargas, derrubaram portas abertas,atirando tudo ao chão. Entre os objetos danificados estava o único rádio, que ficava noescritório principal. Fora pisoteado. Trajano não tentou se opor a essa reação primitiva;entendia aqueles atos, ele mesmo tinha prazer em ver a destruição. Destruímos não afazenda e sim o nazismo. Quebramos móveis como se matássemos nossos inimigos. É já aguerra que presenciamos aqui. A guerra na sua anarquia. Não há guerra sem a suspensãode toda a lógica. Um combate pode começar planejado, mas o momento da luta, e às vezes avitória, é sempre caótico. Estavam na primeira batalha, os homens tinham sofrido tanto quesó essa fúria poderia saciá-los.

Quando o barulho começou a diminuir, Trajano subiu em uma das mesas e pediusilêncio.

— Agora temos que partir.— Muito bem, capitão.Ele estava com a roupa de um soldado, porém, foi a sua sobriedade que o colocou no

comando do grupo.— Vamos andar de noite e dormir de dia. Por sorte, há muitas matas na região.— Para onde vamos?Essa era a pergunta que ele também se fazia. Não podia afirmar com certeza em que

parte do Sul do Brasil estavam. Não sabia o nome da cidade. As placas dos carros quechegavam à fazenda eram principalmente de Londrina, Maringá e Ponta Grossa. Deviamestar no Paraná. Na vinda, viajaram de caminhão muitas horas, poderiam ter sido levados aointerior tanto do Paraná quanto de São Paulo. Se desconheciam o nome da região, comopoderiam planejar a fuga? Devia tentar uma resposta. Os companheiros queriam a definiçãode um destino.

— Vamos para junto dos nossos — ele respondeu, num tom bíblico.E ninguém perguntou onde estavam os outros que eles bus cariam.— Levem o máximo de comida e água.E agora eles se moviam com calma, estudando maneiras de carregar um pedaço de

linguiça, um garrafão com água, fatias de pão, bolachas.Aqueles com ferimentos leves receberam curativos. Dois deles, tão machucados que não

podiam se levantar, entenderam que não havia como fugir. O mais lúcido falou:— Aquela comida de cachorro deve ser boa.Não sobrara nada do mingau. Os amigos compreenderam o seu desejo. E sem que os dois

pudessem sequer perceber, receberam uma rajada de metralhadora. Isso deixou todos

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quietos, assustados e tristes.— Se ficassem, sofreriam na mão dos nazistas — disse o autor dos disparos.O silêncio parece que se fez ainda maior, como se todos pensassem que, a qualquer

momento, eles também seriam sacrificados.— Não poderiam seguir com a gente — alguém ainda tentou animar os demais.E se ouviu então um vômito rouco, profundo. Ao lado dos mortos, um jovem, talvez por

ter comido e bebido em excesso, talvez por ver os corpos dos amigos ensanguentados ali norefeitório, vomitava um líquido escuro. O barulho da comida voltando do estômago, numcaminho antinatural, forçado, lembrava o uivo de um monstro. Aqueles homens que haviamdividido o mesmo teto por meses eram agora um único corpo, eliminando as partesimprestáveis.

Era isto a guerra: o sangue, o vômito azedo, a monstruosidade. Eles não escolheram estarali. Foram levados àquela situação. Sem o entusiasmo inicial, começaram a se mover.

Quando estavam saindo da fazenda, olharam para trás e viram labaredas. Alguém haviacolocado fogo no alojamento, no refeitório e no escritório. Ninguém deu muita atenção aoincêndio. O passado era sempre algo que se queimava rapidamente. Eles estavamabandonando a escravidão. Não queriam olhar para aquela parte das próprias vidas. Quedesaparecesse logo. E que tudo que sobrasse fossem coisas carbonizadas, da mesma cordaqueles homens que se perdiam na noite que os absorvia.

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Seis.Apenas no início de seu novo trabalho Gregório Fortunato se sentira completamente àvontade. Saíra das lutas revolucionárias, um dos poucos lugares em que um filho de ex-escravos poderia conhecer alguma glória, e das disputas sanguinolentas de São Borja parase tornar responsável pela segurança pessoal de Getúlio Vargas. O presidente e ele tinhamsido criados na fazenda Santos Reis, e isso os unia de maneira estranha. Mesmo sendodezoito anos mais novo do que o chefe da nação, eles guardavam lembranças comuns.Gostavam de andar a cavalo, conheciam os pampas, o cheiro do gado no curral, as lutaspolíticas de província — e o que era o Brasil senão uma vasta, uma imensa província? Agora,morando no Rio de Janeiro, retinham desse passado recordações que, apesar da diferença detempo, eram muito assemelhadas.

Primeiro ele trabalhara para o irmão caçula do presidente, Benjamim Vargas (o Beijo), naRevolução de 1930, destacando-se pelo destemor e por seu porte de herói, o corpo imenso, aelegância no andar a cavalo, no vestir, no portar-se em público. Por onde passava, Gregóriodespertava a atenção, fosse a admiração dos que viam nele um protetor do presidente, fossea revolta dos que não entendiam que um país com tantos homens brancos destacados pelabravura pudesse colocar um negro nessa posição.

Getúlio entendia o grau de servidão de um guarda-costas que estava sempre a seu lado,com o corpo musculoso entre ele e a multidão, pronto para receber a bala destinada aooutro, para barrar algum braço desgovernado que se levantasse na turba. Em qualquer caso,Gregório estaria ali como anteparo, e isso confortava o amigo poderoso. Na intimidade, noseu quarto no Catete ou em algum hotel, nas viagens, Gregório cuidava da roupa, daaparência do chefe, arrumando seu cabelo, amarrando seus sapatos na hora de se trocar.

Um homem na posição de Getúlio tende a conviver com tanta gente que aos poucos setorna um especialista em silêncio. Fala para todas as pessoas e ouve o que elas falam paraele, raramente falando com pessoas. Sente a necessidade de algum diálogo com seres sólidosnos momentos de intimidade. Ele e Gregório recordavam a vida na estância, as brincadeirasno campo, as cavalgadas, pois partilharam a mesma infância e nada une de maneira tãodefinitiva dois homens como a memória do tempo e do lugar em que deixaram de serinocentes.

Os primeiros meses de trabalho de Gregório foram os mais agradáveis de sua vida.Continuava na Revolução, só que agora a luta era para proteger o chefe, repleto de inimigosem todos os cantos. Quando podiam passar uns dias na fazenda Santos Reis, em São Borja,eles andavam a cavalo em silêncio por uma paisagem que dispensava as palavras. Estavamno território matinal, não precisavam de nenhum assunto. De vez em quando, Getúlio

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apenas dizia: veja. E apontava para algo. Um pássaro. Uma árvore. Um animal silvestre. Elesreviam um mundo que lhes pertencia.

Mas desde a vinda do embaixador alemão Kurt Max Prüfer ao Brasil, em setembro de1939, Gregório passou a não ser aceito em solenidades com o presidente. Ele continuavaprotegendo Getúlio, porém sempre a certa distância, tendo desaparecido por completo dasfotos. No começo não entendeu essa mudança e reclamou para Beijo.

— O presidente me evita em público.— Não é por causa dele — explicou vagamente o chefe imediato.Seria por causa de quem? E se deu conta de quando fora afastado de seu amigo. Não sabia

que entre patrão e empregado raramente há amizade profunda.No dia em que Kurt Prüfer foi fazer uma visita oficial a Getúlio, no Catete, e estando

todos os jornalistas curiosos para divulgar o encontro, houve um momento em que elesapareceram no salão para a foto. O embaixador já estava incomodado com a presença deGregório na sala da Presidência. Ele ficara a uma distância respeitosa, em postura serviçal,mesmo assim o embaixador não podia entender que um líder que apoiava o Terceiro Reichpudesse não perceber a inconveniência de tal guarda-costas. Devia haver mais homens fiéisno país, era inacreditável que ele tivesse permitido que um negro participasse do encontro,ainda que fosse como uma sombra silenciosa. Kurt nem olhava para o canto da sala em queGregório se encontrava, ignorando a sua presença. Conversaram sobre as novas fábricasalemãs que estavam sendo transferidas para Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, acompra de produtos brasileiros (arroz, algodão, café, carne, couro, laranja e tabaco) e osdireitos dos alemães no Brasil.

— A nossa grande missão, maior do que a missão industrial e comercial, é preservar aintegridade alemã.

Nesse instante, Kurt Prüfer olhou para o local onde Gregório Fortunato estava, numterno muito bem-cortado, paletó aberto, mal escondendo a arma pronta para uma reaçãodefensiva. Nesses tempos iniciais, Gregório se mataria para defender o chefe. Getúlio nãoprecisava ordenar nada, qualquer risco à sua vida teria despertado nele movimentos rápidos.

A conversa com o embaixador ocorreu em clima tenso. Havia muita coisa sendo acertadae Kurt, apesar da repugnância, não falou de seu desagrado de dividir a sala com um negro.Ao saírem do gabinete para a foto que todos os jornais divulgariam na edição seguinte, etendo uma pequena multidão se aglomerado para entrevistar o presidente e o embaixador,Gregório imediatamente se colocou ao lado de Getúlio. Foi assim que apareceu em todos osjornais ao lado de Kurt Prüfer e do anfitrião, para vergonha de todos os nacional-socialistas.

No mesmo dia em que tão comprometedora imagem ganhou as primeiras páginas dosjornais, a embaixada alemã procurou Benjamim Vargas e falou da inconveniência, para oBrasil, de ter um chefe negro para a guarda pessoal do presidente. E Gregório acabouconfinado à área doméstica do Catete, onde já passava a maior parte de seu tempo, nosalojamentos criados para os homens de confiança, depois que o presidente sofrera um

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atentado no palácio Guanabara. A partir daí ele devia ser uma espécie de mordomoparticular. Getúlio não foi informado imediatamente dessa mudança, e quando sentiu a faltado amigo disseram que ele não poderia mais aparecer em público, nada perdendo portrabalhar nos cômodos íntimos. Continuaria viajando com o presidente, desde que não seapresentassem publicamente juntos. O que nunca ocorreu.

— Não há como aproveitar homens de cor na Presidência — falou Beijo ao irmão.— Vou sentir falta dele.Foi o único comentário de Getúlio, que passou a ter como chefe da guarda um rapaz

loiro, tão grande quanto Gregório, todavia com ele o presidente não podia dividir nenhumarecordação. O rapaz, Eric Strauber, também tinha lutado na Revolução, vinha de uma dascolônias e não mostrava nenhuma cumplicidade com o mundo perdido de Vargas.

À noite ou nos momentos iniciais do dia, quando Gregório ajudava na toalete de Getúliono Catete, após cruzar o pátio interno que separava o palácio dos alojamentos, eles falavamdas coisas de sempre.

— Sonhei esta noite com o canto do urutau — dizia Getúlio.Em criança, ao dormir na fazenda, ele temia o canto desse pássaro fantasma, que se

lamentava tristemente para a lua. O urutau é da cor de uma árvore seca e se camufla, ereto,bico para o alto, nos troncos velhos. Por isso é difícil ser encontrado, o que torna o seu cantomais assustador.

— Faz tempo que não ouço um urutau — comentava Gregório.Além de proteger o presidente daqueles que queriam assassiná-lo, Gregório o protegia

agora das saudades de sua terra natal, tal como um umbuzeiro no descampado do pampa,com uma sombra extensa e maternalmente acolhedora.

Por alguns meses, mesmo sem entender por que fora destinado àquele trabalho,continuou servindo sem maiores mágoas, sem apreensões, contente com seu papel secreto.Bastava estar ali ao lado do homem mais importante do país.

Aos poucos, soube como sofriam os negros do Sul. Já não viajava com Getúlio, porém osseguranças que o seguiam, colegas de trabalho, lhe contavam.

— Voltaram à senzala, levam relho no lombo, só faltam os ferros nos pés, braços epescoços.

Os pais de Gregório haviam sido escravos. Essa era uma memória que nunca poderiapartilhar com o presidente. A servidão garantida pela violência, pela crueldade. Não seimportava de servir, nesse seu cativeiro doméstico. Gostava do ar agradecido de Getúlioquando lhe fazia pequenos trabalhos. Ou quando, ao acordar, abria a porta do aposento e oencontrava ali, de guarda, as abas do paletó cuidadosamente abertas.

No início, Gregório dormia só no Catete, até que sua mulher e filhos chegaram de SãoBorja e ele os instalou numa casa confortável na Glória, contratando inclusive umaempregada. O seu novo posto também atraiu um problema. Uma ex-companheira lheentregou o filho que tiveram antes de ter constituído família e esse menino morava com ele

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no alojamento, pois os seus não o aceitavam. Por isso Gregório se dividia entre a Glória e oCatete.

Quando dormia nos fundos do palácio, levantava-se bem cedo para cuidar de seu chefe.Embora em uma circunstância mais serviçal do que no começo, não era um homemcondenado a trabalhos terríveis que sofresse castigos por qualquer coisa.

E surgiam notícias.— Os negros não podem viver no Sul. Estão vindo para o Rio.Com certeza, seus parentes também eram perseguidos. E Getúlio não fazia nada. Ele

gostava de Gregório. Via isso nos seus olhos. Gostar de Gregório, entretanto, não era omesmo que gostar dos de sua origem. Assim funcionavam as coisas. Pode-se gostar de umnegro. Já gostar dos negros era complicado.

Ele estava informado dos muitos judeus que Getúlio estava mandando de volta para aAlemanha, cumprindo o acordo com o Terceiro Reich. Quando Gregório soube da visita deHitler a Porto Alegre, e estando ele ainda a serviço dos Vargas em São Borja, sentiu-sepreterido por não ser chamado para acompanhar o presidente. Hoje, achava uma sorte nãoter ido e via que não poderia ter conhecido o líder germânico. Era um negro, palavra quetinha assumido uma significação mais forte nos últimos anos. Nem todos no Sul eramalemães; mas a maioria sonhava com um Brasil que não existia.

Por essa época, quando crescia o seu desconforto por trabalhar com o presidente,recebeu em casa a visita de um amigo de infância, também de sua cor, recém-chegado dopampa.

— Consegui escapar, Gregório, fugindo a pé. Tive a sorte de ser acolhido. Na casa de unsalemães que não seguem Hitler fiquei escondido uma semana, até que eles deram um jeitode me colocar no trem. Vim pensando que nos roubaram a nossa cidade, o nosso pampa.Logo, não haverá nenhum negro por lá. Depois, vão matar também os índios que estãoconfinados nas aldeias.

O amigo tinha os olhos vermelhos. Havia sido criado como um gaúcho, como umbrasileiro, só que a sua terra já não era sua. Bastara uma oportunidade para que fosseexpulso. Era sempre assim com os povos outrora escravizados, nunca os perigosdesapareciam completamente.

— Getúlio está nos ensinando o que é ser negro no Brasil — comentou com Gregório.Esse amigo agora trabalhava como estivador. E bebia. Morava em uma pensão perto do

porto e disse que Gregório devia falar com Getúlio, ele ouve tanto você, para não deixar quematem nossos irmãos.

Diante da palavra irmão, Gregório sentiu um estremecimento. Ele tinha sido mais irmãode brancos do que dos seus. Defendia aquele que os deixava serem destruídos. Era naverdade um traidor.

Durante semanas, ficou com aquela palavra rondando os seus pensamentos. Via os filhosem casa e se sentia mal. Belinha e Adalberto estavam ali, com a mãe; Abel, com ele no

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Catete, protegido. Se ainda morassem nos pampas e não fossem próximos de Getúlio, tantoele quanto as crianças estariam em um dos campos de isolamento. Os jornais falavam deprojetos de genocídio. Os brasileiros defensores do arianismo confinavam a populaçãonegra para explorar de forma desumana sua força produtiva. Enquanto não morriam, quetrabalhassem. Os jornais não mostravam fotos. Também afirmavam que os nazistas tinhamum exército que ultrapassava 100 mil homens no Sul, armados com equipamentosmoderníssimos. Tudo isso era dito sem grande alarde. E Gregório via os anúncios defábricas e casas comerciais alemãs nos mesmos jornais que levantavam a suspeita daexploração dos negros.

Ele teria ficado daquele jeito, entre o remorso por não fazer nada e a devoção ao homemque o tirara da vida de jagunço, não fosse o doutor Oswaldo Aranha. Eles se conheciamdesde a Revolução de 1930 e tinham estado juntos em vários episódios. Nos últimos anos,Oswaldo Aranha se afastara de Getúlio, continuando, sem força no governo, como ministrode Relações Exteriores. Num encontro no Catete, quando o presidente não estava na capital,ele disse a Gregório:

— Proteger o presidente nem sempre é proteger o país.— Ele sempre foi nosso amigo — disse Gregório.— Você falou de forma certa, ele foi nosso amigo.E ficaram uns minutos em silêncio, ali sentados num sofá que geralmente era ocupado

por Gregório, na parte privativa do palácio. Tinham convivido no Rio Grande. O que os uniaera esse passado. Mas esse passado já não existia.

— Ele se lembra sempre dos tempos de São Borja — afirmou Gregório, como que paraneutralizar os pensamentos que o atormentavam.

— Em São Borja, havia negros livres. Hoje, não há mais.— Sou de São Borja e sou livre.— Porque você não ficou lá. E você não é tão livre. Por que não está com os outros

guardas de Getúlio? Por que fica aqui sem fazer nada? Por que não aparece em público como presidente?

As perguntas eram muitas e a resposta uma só. Ele a conhecia, e não queria pensar nela.— Não sei o que fazer — concluiu Gregório.— Você sabe.E os dois terminaram esse diálogo, que ficou ressoando na cabeça de Gregório Fortunato.

Ele pensou muito no assunto e resolveu contar tudo a Getúlio. Não importava se elepermitia que os outros perseguissem negros e judeus. Era o seu patrão. Gostava deGregório como um irmão. Falavam sobre as coxilhas, sobre outros tempos. Tinham umpassado tão bonito. Contaria que o ministro Oswaldo Aranha pedira que assassinasse opresidente.

Tomado por essa decisão, começou uma conversa banal com Getúlio dois dias depois doencontro com o ministro, referindo-se vagamente a ele.

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— O doutor Oswaldo Aranha gosta tanto do senhor.— Já foi de fato meu amigo.Novamente esse verbo no passado. Algo realmente tinha mudado. O que unira aqueles

destinos se desfizera.— Ele segue as ordens do senhor. — Tinha que saber a opinião de Getúlio sobre o seu

ministro.— Já não concordamos em muitas coisas.— Como sobre os alemães.— Você poderia levar este documento para a secretária?E dessa forma Getúlio concluía a conversa, afastando Gregório de uma questão

incômoda.Com o tempo, Gregório ficou em dúvida. Talvez Oswaldo Aranha não tivesse pedido

nada. Ele é que misturara aquela conversa aos sentimentos de culpa. Melhor esquecer tudoe continuar a ser uma sombra protetora. Getúlio cuidava de todos os brasileiros. Semprecuidara.

Nos meses seguintes, não tornou a conversar com o ministro, que esteve fora do país.Encontrou-se com ele no Catete uma única vez, brevemente, e apenas trocaram olhares decumplicidade, sem nenhuma palavra.

As coisas se complicavam para Getúlio. Muita gente se insurgindo contra o apoio a Hitler.Quando passavam a cavalo por algum vilarejo dos pampas, os cachorros latiam para oscavaleiros e não adiantava querer afastá-los com o chicote ou mesmo com um tiro. Elesficavam ao redor do animal, latindo em desespero. Os políticos e os jornalistas eram essescães. Ladravam contra o cavaleiro montado, temendo a sua superioridade.

As notícias de perseguição aos negros só aumentavam. Gregório se sentia mais sozinhoem seu serviço, como um simples funcionário, indo de casa para o Catete, retirando-sequando havia a presença de políticos estrangeiros. Isolava-se na cozinha, servia-se de umcafé e ficava esperando a hora em que o presidente o chamasse para alguma providênciacotidiana.

— Eu me tornei uma mucama — ele reclamou para Juraci, sua esposa.Que não fez nenhum comentário. O marido continuava se vestindo bem, andava sempre

com um carro do governo e moravam em uma boa casa. Era um homem forte edeterminado. Essas crises duravam pouco, logo estava novamente defendendo Getúlio,lembrando-se da Revolução sob o comando de Benjamim, esperando que fosse convocadopor algum dos Vargas.

Com tempo vago, ele se perdia em seus pensamentos. Por que prender os negros? Porque mandar de volta os judeus? O Brasil era tão grande, havia lugar para todos. A Europaestava em guerra. Pelo que falavam, lá faltava terra para as pessoas e não havia trabalho,então ele entendia as disputas. Aqui, no entanto, não precisavam disso.

Depois do dia 7 de dezembro de 1941, com a notícia de que os japoneses haviam

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bombardeado a base naval dos Estados Unidos, em Pearl Harbor, Oswaldo Aranha deu umaentrevista polêmica na Rádio Nacional, dizendo que o Brasil agora herdara um inimigo naAmérica e que teríamos que nos preparar para a guerra contra ele. Getúlio não aprovou ocomentário de seu ministro e ficou furioso.

Gregório o ajudava a se trocar na noite da irradiação dessa entrevista. O guarda-costastinha recebido, à tarde, um envelope confidencial com fotos de negros espancados noscampos de trabalho do Sul, alguns haviam apanhado até morrer. Eram fotos que só umapessoa poderosa poderia ter conseguido. Gregório olhou para elas uns segundos eimediatamente sentiu uma vertigem. Ele ajudara a matar aqueles irmãos. Essa palavra nãolhe saía da cabeça. Eram, sim, seus irmãos.

Em seguida recebera o telefonema de Oswaldo Aranha:— Faça!O que ele queria dizer com essa ordem? Apenas uma palavra. Mais nada.E agora estava ali, no quarto do presidente no Catete, ajudando-o a tirar a roupa para

vestir o pijama. A pele flácida e branca, de uma gordura obscena. Ele olhava o corpo deGetúlio e se lembrava dos trabalhadores mortos. Continuaria obedecendo às ordens dequem exterminava os negros? Eram somente dois homens no quarto, a família Vargas ficavano palácio Guanabara. O presidente dormiria irritado essa noite e no dia seguinte, bem cedo,demitiria o ministro ou o desmentiria publicamente.

Getúlio se deitou já de pijama e disse que agora Gregório podia se retirar.— Vou arrumar o travesseiro para o senhor.Getúlio ergueu o pescoço, Gregório pegou o travesseiro e o apertou firmemente sobre a

sua cara, com as duas mãos, sufocando sua respiração. Foram uns poucos minutos. Nocomeço, Getúlio esperneou, em seguida foi relaxando a musculatura. Gregório continuouprendendo o travesseiro, fazendo cada vez menos força, até que sentiu inerte o corpo.Descobriu o rosto dele e fechou seus olhos. Arrumou a sua boca e colocou de volta otravesseiro sob a cabeça, verificando se não tinha deixado nenhuma marca no corpo. Sóentão saiu do quarto, com cuidado, em passos leves, para não acordá-lo. O presidente estavamuito nervoso esse dia, precisava descansar.

Ao ser encontrado morto na manhã seguinte, o país ficou pasmo com o ar pacificado dopresidente, que morreu dormindo, segundo a versão oficial, em decorrência de um enfarte.Oswaldo Aranha, tal como fizera no Rio Grande do Sul, durante a Revolução de 1930,assumiu o lugar de Vargas e fez de Gregório o chefe de sua guarda pessoal. Sob suspeita deassassinato, mas sem nenhuma prova, o enterro de Getúlio aconteceu no início da guerracivil.

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Sete.Nem todos seguiram juntos, sob o comando de Trajano. Separando-se do grupo, algunspreferiram tomar outro rumo, movidos por algum instinto individualista. Tinham vivido embando por tantos meses e agora surgia a oportunidade de andar sozinho, de encontraracolhida em alguma casa familiar, ver o nascer do sol sem ninguém ao lado. Essas pequenaspossibilidades de ser um depois de ter sido grupo encantavam os de alma solitária.Invariavelmente, os desertores queriam era voltar para casa. Não sabiam o que tinhaacontecido nos lugares em que moravam, se ainda encontrariam conhecidos ou parentes,nem sequer podiam imaginar a quantos quilômetros estavam do ponto de partida. Nadadisso os impedia de imaginar que, em breve, talvez na manhã seguinte, estariam entre osseus e seriam recebidos com festa, com expressões de espanto, e os amigos e parentesperguntariam, inocentemente, por onde eles tinham andado, obrigando-os a contar tudo quepassaram nos meses de cativeiro. Quase morreram, tinham sido tratados como bichos.Sofriam muito e trabalhavam mais ainda. Essas coisas todas.

Iam embalados pelas inúmeras narrativas de retorno que ouviram ao longo da vida.Voltar era uma energia forte em quase todas as culturas, menos na dos nômades, que sabemque não existem caminhos de regresso, todos são sempre de afastamento; ainda quando, poracaso, se passa por um lugar de outrora, esse lugar é outro, uma localidade estrangeira,totalmente inóspita. E cada um dos desertores se perdeu em uma direção. Caminhariammuito antes de descobrir que já não havia o seu antigo lugar. Uns poucos talvez criassemraízes em algum destino novo; os demais ficariam andando de um canto a outro, formigasque tiveram seu ninho destruído e se movem para lá e para cá, tontas.

Apesar dessas deserções, o batalhão seguia adiante. Fazer com que um batalhãoimprovisado se mova junto e incógnito, mesmo à noite, é tarefa complexa. A primeiradecisão de Trajano foi sobre como formar os homens para a marcha. Se não queriam servistos, o melhor era andar em fila. E pela beirada, prontos para desaparecerem, porque sesurgisse algum carro poderiam deixar a estrada e ganhar a margem. Num encontro com osnazistas, seria mais fácil a fuga nessa composição. Trajano deu o comando, um atrás dooutro, com um metro de distância. E a imensa anaconda humana começou a se mexer.Andavam encobertos pela noite de lua minguante, com passos mais silenciosos do que os deum exército, pois seguiam descalços, conhecendo com a sola do pé cada pedra solta.

Nas primeiras horas de marcha, quando alguns abandonaram o grupo ao ver uma trilhaque levava para outra direção ou se embrenharam na mata, o batalhão já tinha um ritmo.Haviam descansado de dia e fazia tempo que não comiam tanto, então não faltava energiapara andar. Os corpos sentiam um torpor próprio da muita comida e do horário; ainda

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assim, se alguém diminuía o passo, o de trás o forçava a se apressar. Caso não quisesseandar naquele ritmo, que ficasse dormindo pela margem, para ser assassinado por algumatropa de assalto. Diante de tal argumento, os que estavam exaustos sempre encontravamrazões para não desistir.

Caminharam sem contratempos na estrada deserta. Nos últimos meses, os moradoresevitavam sair de casa, com medo dos desmandos dos soldados. Os fugitivos não sabiamdesse fato, por isso temiam, a qualquer instante, o confronto com gente que os denunciaria.Nada aconteceu e puderam avançar bastante.

Um pouco antes do amanhecer, os pássaros se desesperaram nas árvores recônditas. Umou outro galo, distante, afinava seu canto. Uma luz tímida ia tomando conta de tudo,desmanchando o breu que dominava o céu. Os homens tinham as pernas amortecidas porcausa da longa caminhada. Era preciso descansar com urgência. Não sabiam se estavam emuma região segura. Não, não era. Para eles, não havia nenhum lugar dessa espécie no Sul. Aqualquer momento poderiam ser descobertos e levados de novo a um campo de isolamento.Se haviam destruído a fazenda Vita Nova, quantas iguais a ela existiriam?

Não era hora de pensar nisso, o futuro de quem está em fuga é algo sempre imediato.Deviam apenas parar para descansar. Trajano enxergou um pasto à direita que começava aficar nítido. Uma neblina leve fazia com que aquele lugar plano se tornasse protetor.Dormiriam em meio às nuvens, distantes da terra e dos animais predadores. Era uma visãode sonho, e ele de fato estava mais nos domínios do sono do que nos da vigília. Imaginou amaciez daquelas nuvens ao alcance das mãos.

Com a ajuda dos homens logo atrás dele, derrubaram um pedaço de cerca, colocando ospalanques abaixo e seguindo adiante, em busca daquele centro. Todos os seguiram envoltospela neblina daquela região baixa, meio como autômatos, sem pensar no que estavamfazendo, até uma grande área aberta e com o chão forrado de grama. Novamente o grupo sereunia, como um enxame de abelhas nômades que se recolhem a um galho de árvore,formando um cacho de seres vivos. No chão, nunca antes tão macio e acolhedor, um sedeitava ao lado do outro. Não havia a menor energia para prosseguir; os homens quechegavam àquele ponto se deixavam desmoronar e imediatamente dormiam. Em poucosminutos, todos estavam aglomerados. Uns se abraçavam, tentando vencer o friozinho damadrugada. Outros se encolhiam como fetos. Muitos roncavam. Ninguém teve insônia.

As pernas estavam tão cansadas da longa marcha que logo Trajano já não sentia o chão.Esse era o segredo da levitação? Andar, andar tanto, e numa situação tensa, andar em fuga,abandonando o que nos atormenta, num movimento contínuo, acelerado, num mover-semecânico, com o desejo de ir para a frente, sempre para a frente, de forma cega. Era essa atécnica para se desprender do chão? Estar assim, flutuando, talvez tenha sido a melhorsensação de sua vida. Como pôde viver até ali sem se sentir livre no ar? Enquanto nossospés nos convocavam para a terra, algo (seria a alma?) nos levava para cima. Era bom ter seelevado. Ao subir não sentia a pressão da gravidade, nada o empurrava para o solo, era só

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ascensão. Com uma das mãos, procurou nas costas as asas. Não havia asas. Ele não era umanjo, não estava seguindo para o céu. Era um corpo a levitar. E não precisava de nenhummovimento para se mover. Bastava pensar em ir para um lado. Queria parar agora e olhar ochão. Lá embaixo, identificou a casa em que morara durante a melhor parte de sua vida. Aliconhecera tudo que sempre lhe fora negado. Ali amara uma mulher. Ele a via no jardim.Estava com o filho deles no colo e os dois acenavam. Ele os chamava, venham, vocês tambémpodem levitar. Ela se erguia na ponta dos pés, tentando se desprender do chão, sem sucesso.A terra a puxava, violentamente. Em uma das tentativas, caiu com o filho no colo. Caiusentada, sem soltar a criança, protegendo-a. A mãe chorava, um choro sem lágrimas, dedesesperos contidos, porque sabia que não poderia seguir o homem que tanto amava.Estavam se separando. Ele decidiu voltar ao chão, renunciaria ao poder de flutuar. Queriater pernas de novo, mesmo que sofresse nas estradas, mesmo que tivesse de subir ladeiras.Exigia suas pernas de volta. Olhou para o próprio corpo e não viu as pernas. Onde elastinham ficado? Ele era o quê? Perdera os membros inferiores. Quem cortara suas pernas?Por quê? Uma bomba havia explodido, destruindo partes de seu corpo? Suas pernas, porcausa de um ferimento, gangrenaram e os médicos tiveram que amputá-las? Ele precisavade pernas. Queria andar. Poder chutar pedras como fazia na infância, quando ia para asaulas na escola alemã. Queria correr. A imagem da mulher amada e de seu filho estava seapagando. Ele se distanciava do chão. Subia para algum lugar distante. Queria descer, só quenão era possível. Trajano começou a chorar.

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Oito.Após aqueles dias presa no barracão, Hertha tinha enfim a cidade de volta, podia caminharpara todos os lugares que não levassem à casa do pai de seu filho. Mas a cidade tinha setransformado, o bombardeio devastara prédios, casas, ruas. Ela ouvira as bombasexplodindo, as rajadas das metralhadoras dos aviões, e parecia ouvir gritos longínquos. Alionde esteve, à margem do rio, tudo tinha sido mais silencioso. Os aviões, os disparos e afuga.

Quando tomou o caminho do Centro, passava por famílias indo para o campo a pé ou emcarroças. Numa das carroças, viu uma criança ferida, a mãe chorando a seu lado, e isso tiroua alegria que ela experimentava por estar livre. Num ataque, o sofrimento era geral, eaquela não era uma guerra entre alemães e brasileiros; era uma guerra civil. Pela primeiravez, ela sentiu que todos ali, falassem ou não a língua, pertenciam a uma grande irmandade.Estava em meio a uma briga de família. Os nazistas se afirmavam diferentes e na aparênciaaté podiam ser, mas havia coisas maiores do que as diferenças físicas, havia umaidentificação entre as pessoas, mesmo entre os que se odiavam, ou que achavam que seodiavam, e isso desfazia as distâncias. Ver a criança loira machucada no ataque — quantasnão teriam morrido? — era sofrer com o destino obscuro de seu filho.

— A cidade está destruída — falou um senhor que caminhava com uma pernamachucada. — Vá para o campo.

Ela não podia ir para nenhum outro lugar. Fugira tanto daquele endereço que agoradevia procurá-lo, seguindo um caminho reto. Sabia exatamente quais ruas tomar parachegar àquela casa e fazia o seu caminho com a mesma urgência dos que abandonavam acidade bombardeada. Em seu rosto não havia desespero, somente amor.

Não encontraria Adolpho Ventura na casa da rua da Ginástica, que havia muito não eramais dele. Se fosse libertado, poderia querer voltar para lá. Aprendera com seus raptores,Fred e Max, que a melhor forma de procurar é esperar num lugar que seja o centro de algo.

Desde o dia em que, na saída da Neue Deutsche Schule, na Palmerallee, ainda mocinhasem seios, distante da primeira mens truação, quando usava vestidos de menina, Herthasentira o toque suado da mão do único menino negro da escola, que estava ali por favor dealgum homem rico, ela sabia que aquele amor seria trágico.

Os olhos de Adolpho, que não se desgrudavam dela, nada tinham de mendicantes, eramaltivos, de quem sabia que aquela mulher, loira e inacessível, estaria para sempre ligada aseu destino. Ele a procurava, na hora da saída, sabendo-a uma das raras meninas que iaembora sozinha, pois a casa era perto e ela não tinha pais. Adolpho andava um pouco atrásdela, vigiando o trajeto, e retardava o passo para vê-la entrar no quintal, fechar o portão,

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quando os dois podiam se olhar demoradamente.Em uma dessas perseguições, Hertha sentiu que não conseguiria fechar o portão. Nas

primeiras vezes, ela o batia com força, como que ansiosa para estar do outro lado,minimamente protegida por um muro baixo, quando via de relance o colega negro que aseguia. Com o passar dos dias, foi fechando o portão de maneira mais lânguida, com umolhar que ia da trava para a rua, para os pés de Adolpho e, após uns segundos, subia por seucorpo e terminava em seus olhos, em seus imensos olhos negros. A fase seguinte só podiaser deixar o portão aberto e insinuar-se pelo jardim. Foi o que teve coragem de fazer depoisde semanas desse jogo sedutor.

Corajoso e subitamente apressado, Adolpho a seguiu, alcançando-a perto de um arbusto,atrás do qual se esconderam. E a beijou. Eram duas crianças, mas aqueles lábios ousados, oabraço que a recebeu, a proximidade do corpo, tudo isso despertou uma sensação proibidaem Hertha. Ela não se lembrava dos detalhes da primeira vez com um homem, queaconteceria alguns anos adiante, no armazém de seu tio — era um dos funcionários, um deseus homens de confiança, casado. Ela só se lembrava do cheiro forte do aço, de metais quese enferrujavam naquele cômodo escuro. Guardava, no entanto, cada detalhe do longo beijoque recebeu de Adolpho, momento em que, pela primeira vez, se percebeu mulher. Haviabeijos tão profundos quanto uma penetração sexual.

Ela se soltou do abraço e saiu correndo para casa, onde a empregada a aguardava,sorrindo. Teria visto algo? O tio passava o dia todo na loja. O sentimento de Hertha era detransgressão, o mais forte de todos. Beijara um menino negro, contra tudo o que as suasamigas, seus familiares (mesmo o seu tio, sempre tão bondoso) falavam sobre a obrigação denão se misturar. Quando conhecesse o sexo, ainda muito jovem, e experimentasse outrasvias sexuais ou dormisse com alguma moça, nada disso teria o peso daquele beijo no jardim,à sombra de um arbusto tímido.

Ela florescera com aquele beijo, que não se repetiu. Não lembrava se começara a fugir deAdolpho, ou se passara a trancar o portão, ou ainda se mudara de lugar na sala de aula,procurando uma carteira distante da dele, que era na última fila. Sabia apenas que surgirauma distância entre eles, o que não a impedia de sofrer uma pequena falta de ar sempre queo tinha por perto. Os olhos de Adolpho nunca se afastavam dela. Não podia se apaixonar poralguém que os seus julgavam inferior. Ela devia resistir.

Foi quando começaram os seus namoros com os meninos da escola. Ela beijava essesmeninos e nunca sentia nada parecido. Aquela sensação de pecado. De que com seu corpodesejava o fruto proibido. Se os meninos não despertavam nela aqueles distúrbios todos,procurou rapazes mais velhos e em seguida se entregou ao seu primeiro homem. Nem notúnel com o Führer ela conheceu algo tão perigoso quanto o beijo de Adolpho Ventura.

O seu companheiro de sala — não eram de fato colegas, pois nem conversavam — nãodeve ter entendido a mudança. Ele a via com os outros meninos, de cabelos loiros e finoscomo paina, e continuava olhando-a com uma altivez que a desconcertava. Alguns anos

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ficaram nesse jogo, ele cuidando amorosamente dela. Já adolescentes, ele ainda a seguia,sem nunca encontrar aberto o portão.

Na manhã em que, terminada a aula, ela foi para a loja do tio e não para casa sabendoque lá encontraria o funcionário sozinho, pois ele almoçava cedo para ficar cuidando dascoisas enquanto os outros iam para casa, Hertha foi seguida de longe por Adolpho, comseus ternos invertidos, recosturados pelo avesso. Ela entrou na loja, que ficava apenas comuma das folhas da porta aberta, e a fechou. No interior, o funcionário, que a olhava comcobiça, entendeu o que ela procurava. Fez dois elogios para seu vestido avançando sobre seucorpo. Ela pediu que trancasse a porta. Ele atendeu. Os dois buscaram o estoque, um lugarreservado, e tudo aconteceu rapidamente, sobre uma mesa em que se separavam osprodutos. Ela sangrou um pouco. Ele tirou o sexo momentos antes do fim e concluiu seesfregando nela. Era um homem experiente. Se não fosse a dor, ela talvez tivesse tido o seuprimeiro orgasmo, não pelo que fizera o seu parceiro, e sim por saber que lá fora, diante daporta fechada, Adolpho a aguardava.

Quando saiu, não viu o companheiro de turma. Ele devia ter percebido o que acontecia ládentro, pois Hertha, para não deixar dúvida, soltou gritinhos, obrigando o funcionário atapar sua boca com uma das mãos. Essa cena serviria para afastar Adolpho Venturadefinitivamente.

Continuaram se vendo a distância até que ele partiu para o Rio, para cursar engenharia.Nesse tempo, Hertha conhecera muitos homens, aprendendo a se cuidar para nãoengravidar. Também participava agora ativamente da Juventude Teuto-Brasileira, cul tuan dosua raça, outra forma de reação ao encanto inicial por aquele rapaz quieto e inteligente.

Tudo não teria passado de uma aventura infantil se ele não tivesse voltado a Blumenau,movido não se sabia por qual projeto. Quando ela o encontrou na rua, um terno de boaqualidade, o porte atlético, ele a cumprimentou com os mesmos olhos de outrora. Haviapessoas, ela descobriria ali, que mantinham intacto o olhar da infância, evitando que a luzque os iluminava se apagasse. Qual era o segredo desse olhar? Ela devolveu o cumprimentoe logo se acostumou a encontrar-se com ele.

Tendo passado por tantos homens, não havia mais razão para resistir aos encantosdaquela paixão. Quem ama alguém proibido na infância nunca consegue se satisfazer comoutras pessoas. Precisa ter em seus braços algum resquício daquele corpo pelo qual sentiucoisas tão fortes. E ela encontrava o menino nos olhos do engenheiro Adolpho Ventura,olhos que nunca se deixariam sepultar.

Uma noite, ao chegar de um passeio, ela sentiu que alguém estava do outro lado da rua.Esperou o namorado ir embora e voltou para o portão. Viu Adolpho. Pressentia-o em umaárea escura da rua. Era como anos atrás, ele a seguira até ali. Ela deixou o portão encostado.Entrou lentamente, percebendo que um vulto se aproximava. Daí abriu a porta da sala, Karljá dormia a essa hora, e Adolpho a acompanhou. Ao fechar a porta, sentiu o toque de suamão na nuca e teve um estremecimento que era maior do que tudo que conhecera na cama

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com qualquer outro homem ou mulher.Não se falaram, ela foi na frente e o levou até o quarto. Fazia frio, eles tiraram

silenciosamente a roupa, deixando as peças subitamente esvaziadas sobre a cômoda. A luzestava apagada, mas as mãos reconheciam os corpos um do outro, corpos que aguardaramtantos anos por esse encontro. Tudo era calmo e intenso. Deitaram-se na cama de solteira deHertha, cobriram-se e se encaixaram, fazendo pequenos movimentos, um amor controlado,lento, cheio de crispações. Quando Hertha sentiu que Adolpho estava numa crise dearrepios mais demorada, soube que não interromperiam. Poderia ter afastado o amante dedentro de si, porém não quis fazer o que sempre fizera com outros. Muitas vezes iriam até ofim sem se desligar e sem nenhum tipo de proteção.

Aquela sensação valia um filho, que só seria gerado após vários encontros. Nãodiscutiram isso. Não falaram da dificuldade de ter uma criança naquele lugar. Se ospartidários soubessem da gravidez, Hertha seria tratada como uma mulher brancaestuprada por um negro. Só à força uma alemã poderia ser engravidada pelos perversosafricanos, era o que pensavam. Havia muitos casos narrados pelos nazistas de mulheresobrigadas a fazer sexo com negros e que mais tarde davam à luz filhos bastardos. Ela sabiadessa impossibilidade social de criar um filho ali. Adolpho também. E seguidamente nãofizeram nada para evitar a criança, até que em uma noite de tempestade, no cemitério,aconteceu.

No mês seguinte àquele encontro desvairado, Hertha falou para Adolpho, quando seviam escondidos, agora na casa dele.

— O amor nos aumentou.E mostrou os seios levemente inchados, preparando-se para um leite que seria pouco e

não teria como servir ao menino que, tão logo nascesse, ficaria só com o pai.Ela pensava em tudo isso enquanto ia para a casa que fora de Adolpho, pela primeira vez

sem precisar se esconder, sem fingir que não tinha nenhum interesse especial naqueleendereço.

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Nove.Não dava para saber a hora. Trajano acordou com o próprio choro, um choro interior e porisso exageradamente sofrido. O pesadelo é o momento em que se vive com extremaintensidade o real. E pouco importa a descoberta de que nada daquilo aconteceu. Para quemtem esses sonhos maus, eles estão mais presentes do que qualquer outra coisa. Logo quevoltou à realidade, Trajano se sentou. A neblina ainda cobria tudo, escondendo o sol daprimeira manhã de liberdade. Tinha em sua mente as imagens sonhadas, que a paisagemnublada só ajudava a reforçar. Voara para longe de Hertha e do filho. Na vida real, planejavao contrário. Conduziria o grupo até algum lugar seguro e em seguida voltaria para casa.

Já não tinha uma casa, os pais deviam ter partido havia muito com o neto, só Hertha comcerteza ainda morava em Blumenau. E não há casa que desejemos mais do que o corpo damulher amada. Ele tinha que rever esse endereço após tantos meses de exílio. Perdera oshábitos civilizados nesse período de trabalho escravo; Hertha, no entanto, ainda oreconheceria.

Levantou-se com cuidado para não acordar os amigos que dormiam. Desaparecendo aneblina, seria preciso arrumar um esconderijo para passar o dia. Por enquanto, não podiafazer nada, nem sair de onde estava, pois pisaria em corpos, criando tumulto. Mesmo assim,ficou em pé um tempo, sentindo as pernas, apenas momentaneamente impossibilitadas deandar. Possuía ainda pernas. Não havia obstáculos. Ele podia voltar ao corpo de Hertha,depois se juntariam ao filho e morariam num lugar em que não despertassem tanto ódio.Com a ponta dos dedos do pé, furou a grama e sentiu o aconchego da terra. Ficou minutosnessa ocupação, pensando na amada.

Por que nunca se esquecera dela? Era o que se perguntava. Porque haviam se conhecidona escola. Mais do que uma paixão, ela era o mundo onde ele queria viver. As primeirasdescobertas marcam para sempre. Quando estava trabalhando na fazenda e via um amigoapanhando ou sendo humilhado, ou ouvia o sofrimento de doentes no barracão em quedormiam, quando algum preso era ofendido, ele se sentia o grande culpado. Estão sofrendodessa forma porque provei do corpo e do amor de Hertha. Os nazistas punem todos porminha causa. Nunca aceitarão que ela me ama, que o toque de minha pele faz com que ela searrepie. Eles castigam todos os meus irmãos para mostrar que ninguém deve tocar o corpoloiro das mulheres deles. Racionalmente, ele sabia que a culpa não era sua. Nos momentosde insegurança, no entanto, tinha absoluta certeza de que tudo não passava de um castigopelo amor entre ele e Hertha. Por isso não reclamava de seu destino. De ter perdido tudo, detrabalhar numa fazenda apesar de tanto estudo, de dormir no chão quando se habituara aosconfortos da civilização. O amor que ele sentia valia tudo isso. Pensando em Hertha, seu pé

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afundara na terra fofa.Ele se deitou para esperar que a neblina sumisse. E dormiu um pouco, agora sem sonhar

com nada, a mente tão vazia quanto aquele céu matinal.Acordou com o sol alto. Alguns homens tinham se levantado e urinavam ao lado, em

moitas de capim. A maioria estava dormindo. Trajano ouviu de longe um barulho queparecia de motor. Fixou-se nesse som, sem saber de onde vinha. Talvez de alguma cachoeira,era uma região com serras, eles tinham enfrentado ladeiras durante a noite e adiante seviam montanhas. Uma queda-d’água podia estar produzindo essa música distante. Seria bomencontrá-la para que todos tomassem um banho de rio, que os reanimaria. Começou aperceber que não podia ser uma queda, pois o som estava ficando intenso. Era algo que seaproximava. Estavam a uma distância segura da estrada, e como a maioria ainda não selevantara, se fosse algum caminhão com os soldados nazistas não poderiam ser vistos.Porém o som não era de um caminhão, talvez fosse de muitos. Todo um batalhãoprocurando os negros fugidos. Esse barulho vinha de onde? Trajano olhou para um doslados e viu a montanha. Olhou para o outro e divisou uma planície. O barulho pareciacrescer de todos os lados. Aí entendeu: eram aviões. E deviam estar atrás da montanha, porisso não podiam ser vistos.

Em segundos, surgiram dois aparelhos no céu. Surpreendentemente, eram norte-americanos. Trajano gritou para que os demais se levantassem. Não sabia o que estavaacontecendo, mas tinham vindo para resgatá-los. O Brasil estava sendo invadido? Comogostaria de poder ouvir as notícias internacionais em algum rádio.

Um homem foi acordando o outro e em segundos eles estavam em pé, olhando para océu. As poucas armas tinham sido empunhadas, pois não sabiam se os aviões eram amigosou inimigos. Eles abaixaram o voo, e Trajano gritou:

— Não atirem.Antes que qualquer homem disparasse as metralhadoras contra os aviões, de seu bico

começaram a sair balas que foram varrendo o chão, jogando terra, torrões, pedras e gramasno ar, obrigando as pessoas a fechar os olhos. Assim que passaram sobre a clareira, osaviões fizeram a volta, cada um abrindo para um lado, e retornaram. Agora, foram recebidostambém debaixo de fogo, embora estivessem bem mais alto. Passaram novamente sobre obatalhão e um deles soltou uma bomba, que explodiu abrindo uma grande cratera bem nocentro da formação assustada daqueles fugitivos, jogando corpos inteiros e membrosdecepados para os lados. Sem ter como se proteger, e sem experiência nenhuma de guerra,os trabalhadores se aglomeraram, tornando-se um alvo fácil. Quando os aviões fizeram umnovo mergulho, atiraram em corpos inertes, para ter certeza de que ninguém sobreviveria.No ataque, o gado que estava a poucos metros dos homens correu na mesma direção, numinstinto errado. Eram principalmente vacas, algumas com o ventre bojudo, e também foramatingidas pela bomba. Só se ouviam os sons desesperados desses animais após a explosão eos tiros. Muitas continuavam vivas e mutiladas no chão. Umas poucas fugiram feridas,

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berrando como imensas crianças.Os dois aviões continuaram sua missão de ataque aos núcleos nazistas, e só no final da

tarde os negros fugitivos, vestidos com os uniformes dos soldados de Hitler, foramencontrados em meio às carcaças de gado, numa mistura de sangue e partes de corpos.Poucos permaneciam inteiros, tanto pela ação das bombas quanto pelo trabalho de urubus egaviões, que se alimentavam daquela abundância de carne. Estavam próximos de Rolândia,que também fora bombardeada. Um fotógrafo do exército brasileiro fez imagens dessesnegros que tinham aderido ao nazismo. Anos depois, quando Hitler e seus seguidorestinham sido destruídos, essas fotos seriam usadas para mostrar, numa tentativa de inocentá-los, que o nazismo não era nada daquilo que imaginavam, que no Brasil havia inclusive umbatalhão de negros que lutava para defender o Führer e suas ideias. Nunca se apurou aidentidade daqueles homens nem o que eles faziam ali, acampados numa região poucopovoada, se tinham ou não intenção de invadir a cidade.

Os norte-americanos, em conjunto com as forças armadas brasileiras, continuaramatacando as colônias dominadas pelos nazistas, e em menos de dois meses os mais de 100mil soldados nazistas (alemães, brasileiros e descendentes de outras etnias) foram mortos oupresos. Os negros iam sendo libertados dos campos de isolamento. Em vários lugares, eramdetidos alemães e outros estrangeiros, mesmo mulheres e crianças, que ficariam ali até quenão representassem perigo.

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Dez.O portão da casa estava aberto, mostrando um quintal que antes fora bem cuidado. Haviaagora destroços de madeira e de tijolo espalhados por tudo, num sinal de desolação. Em tãopouco tempo o que era uma casa, uma cidade, um mundo funcionando em suas pequenasrotinas se transformara em ruínas. O ser humano é muito eficiente em espalhar destruição.Hertha entrou no quintal desviando dos detritos vindos do telhado, cujas madeiras aindaestavam queimando, depois que uma bomba caíra sobre ele.

Aproximou-se da casa e forçou a porta principal. Estava trancada. E isso a deixou maistranquila. Os donos tinham saído a tempo, fechando tudo. A explosão, portanto, não chegaraa atingir os moradores. Eles tinham ocupado a casa de Adolpho, expulsando-o de lá,obrigando-o a levar o filho para os pais dele. Hertha ficou aliviada ao saber que a família donazista que morava ali não tinha sido morta no bombardeio.

Pegou a chave que continuava escondida sobre uma travessa da varanda, abriu a portaentrando pela sala e, trancando novamente a porta, foi direto ao escritório de Adolpho. Eraonde, após se saciarem, os dois ficavam, ele lendo para ela trechos anotados de seus livros.

O cômodo era o mesmo, alguns móveis permaneciam ali, em outros lugares e cobertosde poeira. Quando o mundo sofria um envelhecimento dessa natureza, tudo ao seu redor,ainda que sobrevivesse, também se desfazia. Hertha queria voltar àquela casa para rever olugar no qual seu corpo fora feliz, desdobrando-se em um filho agora perdido. Voltava alipara ver as coisas que conviveram com a sua família secreta. As tábuas do chão talvezguardassem a lembrança de pés descalços. Ela não podia ver os sinais, porém a essência dareligião, de qualquer religião, era crer no que não se vê. Ela cria na presença de seu filhonaquela casa. Sua fé era tão forte que podia imaginá-lo engatinhando no assoalho. Fora umamãe ausente, sem poder se encontrar publicamente com a criança, apenas nos rarosmomentos de intimidade, mesmo assim Adolpho não queria que elas se apegassem paraevitar sofrimentos. Mais tarde, até esse contato lhe foi negado. Agora, precisava dessaaproximação simbólica.

O teto da casa estava destruído, enquanto a maioria das paredes continuava em pé. Elatambém resistia. Abriu a porta do escritório e tomou o corredor que dava para o quarto emque experimentara tantos momentos de prazer, antes do nascimento do filho. Ali, levou umchoque: uma viga de madeira caíra sobre um triciclo, destruindo o brinquedo. Se obrinquedo estava ali, destruído, talvez a criança… Ela não queria pensar nisso. Poderia saircorrendo, ir para a rua, procurar algum homem a quem pudesse se entregar, esquecendo-sede tudo. Não se lembrar da gravidez. Era isso que devia fazer. O problema é que ela nuncafez o que esperavam dela, nem o que ela própria esperava de si. E avançou pelo corredor,

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como um soldado invadindo o terreno inimigo. Passou sobre o brinquedo quebrado,empurrou a porta com cuidado. Não tinha arma; se tivesse estaria com ela na mão.

E quando a porta se abriu totalmente, viu o que já sabia. Uma mãe ensanguentada nacama coberta de sujeira, e a menina de uns dois anos, de camisola, abraçada a ela, tambémsuja de sangue. Ao lado, no chão, um menino maior caíra morto. Estilhaços da bomba ou asmadeiras do telhado ou as balas dos aviões tinham matado os três. Hertha começou achorar, deixando cair no chão a sacola com as armas.

— Filhos, meus filhos…O pai dessas crianças devia estar com as tropas nazistas e, se ainda vivo, sofreria com o

risco que sua família estava correndo. Hertha podia ter sido essa mulher morta na cama, etalvez fosse. Casara-se com um nazista, tivera dois filhos, e temendo o bombardeio da cidade,recolhera-se ao quarto, abraçara-se a eles enquanto ouvia os disparos, as bombas, o barulhodos aviões, então tudo desabou. Hertha gostaria que tivessem morrido instantaneamente, ouque os filhos tivessem morrido antes. Não queria imaginar o choro das crianças vendo amãe morta, banhada em sangue. Os minutos de sofrimento antes de serem mortos. A mãe esua prole deviam morrer juntas, como se possuíssem um único coração.

Vendo-se naquela mulher, ela começou a fazer o caminho de volta para saber o queacontecera com Onkel Karl. Tinha a calma dos anestesiados. Nenhuma urgência nem omenor desespero. Tudo havia terminado. Ela ficara morta naquele quarto. Adolpho voltariae a encontraria com o filho. Aos cadáveres só restava partir. Era isso que ela fazia.

Ouviu de repente um barulho de homens se aproximando. Derrubaram a porta principal,que ela trancara cuidadosamente depois de entrar, e encontraram a casa destruída.

Eram do exército brasileiro, ela os vira nos meses anteriores pelas ruas. Tinham sidoindiferentes todo esse tempo e agora lutavam contra os nazistas. Ela não entendia o quemudara; alguma coisa com certeza acontecera no Rio.

Estavam já dentro da casa e apontavam suas armas para ela.— O nome da senhora?Ela disse o nome completo.— Nacionalidade?— Alemã.— A senhora é nazista?— Fui.— Morava aqui?— De certa forma.Eles estavam passando por todas as casas em que residiam os líderes do nacional-

socialismo. Sabiam quem eram, poderiam ter vindo antes, poderiam ter evitado esseenlouquecimento geral, mas esperaram que tudo se transformasse em guerra primeiro.

— Há mais alguém aqui?— Não — Hertha disse.

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Nesse momento, um soldado gritou:— Sargento, tem uma mulher e duas crianças mortas no quarto.E parte dos soldados foi para lá.— A senhora será detida — disse o sargento.Ela não disse nada. Tinha estado detida todos esses anos. O amor é também um cativeiro.

Desde o último encontro, meses atrás, com seu amado — contrariando o afastamento emque viviam por medo da Gestapo —, quando ele dissera que levaria o filho para os avós, elanão vira mais Adolpho. Fizeram sexo rapidamente, ele erguendo o vestido dela, derrubando-a na cama, na cama onde a mulher e a criança estavam agora mortas. Desde essa noite serecusara a trocar de vestido, tirando-o de tempos em tempos somente para lavá-lo.

Ele era o testemunho de seu amor.Enquanto andasse com ele, enquanto o tecido resistisse, enquanto as costuras não se

soltassem, ela não se sentiria sozinha. Tudo o que restara daquele amor era o vestido detecido gasto e desbotado. Sonhara todos esses meses reencontrar-se com Adolpho Ventura,que se lembraria da última noite de amor, quando ela estava com aquela roupa. Imaginava-orasgando o pano, fazendo com que seu corpo branco aflorasse, e depois de visitarem-se umao outro, de percorrerem as casas vazias em que se transformaram aqueles corpos, elavestiria outra roupa a cada dia, porque trocar de roupa era acreditar no futuro.

— Pegue as suas coisas — ordenou o sargento.— Não precisa — Hertha falou.E foi empurrada para fora, rumo ao caminhão no qual outras pessoas — mulheres,

crianças e velhos — já estavam confinadas. Subiu na carroceria e se sentou no assoalho.— Não se preocupe — falou uma senhora que ela conhecia de vista. — O Führer vai nos

soltar.Hertha sentiu uma vontade imensa de morrer. Ela não tinha mais a beleza do corpo que a

tornara especial, nem o homem por quem sempre fora apaixonada e seu filho. Não tinhasequer um país.

O caminhão passou em outras casas, recolhendo mais gente. E depois foi para a NeueDeutsche Schule, onde ela conhecera o menino inteligente que a conquistara com a suabeleza, a sua força e o seu silêncio.

O exército brasileiro tinha requisitado o prédio e o transformara em prisão provisória.Cada um dos detidos passava por um cadastramento. Meia hora depois, tempo em que elaficara em pé, sob o sol, no pátio em que brincara na infância, apresentou-se a um soldado,segundo o procedimento de sempre.

— Nome?— Hertha Sheiffer.— Casada?— Amasiada. — O soldado ergueu os olhos para aquela mulher insolente e resolveu

aceitar o jogo.

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— Nome de seu amante?— Adolpho.— Sobrenome?— Hitler.Ele se levantou e olhou com raiva para Hertha.— Sua vadia — gritou.Ficaria presa com os nazistas perigosos, sem comer nem beber nada até que resolvesse

contar tudo sobre as ações nazistas no Brasil.Sentindo-se um fantasma, foi levada por um soldado que segurava seu braço com dedos

fortes, latejantes.Ela se virou para o mulato de belos olhos castanhos, que a olhava mais assustado do que

qualquer outro homem que conhecera. Ele apenas apertou os dedos contra o braço deHertha, distanciando-se.

Foi trancada naquilo que até dias antes era uma sala de aula. Nunca consegui sair destaescola, ela pensou, enquanto a porta se fechava.

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Onze.Saindo do largo da Carioca, João Ventura e Erendina subiam de bonde até Santa Teresa.Ainda não haviam se familiarizado com a paisagem do Rio de Janeiro. Jamais vou meacostumar, ela confessou ao marido. Não é para se acostumar mesmo, ele respondeu, comuma ameaça de sorriso, a gente não é daqui. E no entanto não se sentiam isolados. Estavamnum país que era deles, na terra de um colorido exuberante, na qual eles não destoavam.

— Não é estranho? — Erendina perguntou ao marido, passando sobre os Arcos da Lapa,o bondinho elétrico enfrentando a subida.

— O quê?— É como se estivéssemos continuando a vida dele.Os dois ficaram uns segundos em silêncio, pensando no filho que, anos atrás, viera ao

Rio para cursar engenharia e que depois de se destacar na faculdade, e depois dasdificuldades para estudar, resolvera voltar à colônia. Era para João e Erendina terem sidopresos e mortos pelos nazistas, e eles escaparam. Era para o filho ter ficado a salvo no Rio, eacabara desaparecido. Nunca mais tiveram notícias. Quando o exército brasileiro sufocou,com a ajuda dos norte-americanos, o movimento nazista, esperaram por ele.

Moravam agora na pensão em que ele vivera. A mãe sabia de cor o endereço e assim quechegou à capital, descendo na estação ferroviária, com o cheiro tão diferente de mar, peixe,coisas estragadas, ela se informou do lugar para onde iriam e a dona da pensão recebeu avô,avó e neto como se fossem da família.

— Gostava tanto de Adolpho — ela disse.Será que nunca mais veria seu filho? Ele pertencia a um outro tempo? Havia coisas que

não podiam ser pronunciadas. Bastava dizê-las para que se fizessem verdade. As palavraseram cheias de bruxarias. Erendina tinha medo delas.

Com o dinheiro que traziam, puderam se acomodar e logo ajudavam nos serviços dapensão, ganhando um pequeno salário. Demoraram muitos meses para fazer o que jádeviam ter feito: batizar a criança. Esperavam pelo pai, que nunca aparecia. Esperaramtambém pela mãe, que eles nem conheciam. Depois do fim dos núcleos nazistas, e ninguémsurgindo para cuidar do filho, João Ventura, numa manhã ensolarada de segunda-feira, dissepara a mulher:

— Vamos batizar o nosso Trajano Ventura.Ele já vinha sendo chamado de Trajano. Então, registrariam o menino como deles, dando

o primeiro nome do filho. Era como se começassem tudo de novo.— Não — disse Erendina.— O quê?

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— O nome dele vai ser completo: Adolpho Trajano Ventura.E o avô não disse nada. Entendeu o sentido dessa decisão. Não se apaga o que ficou

inscrito em carne, dor, sofrimento, em divisões que ainda demorariam muito para seremesquecidas. Aquele menino teria um nome duplo, mas que não se alternaria como o do pai.

E enquanto eles subiam de bonde para Santa Teresa, Erendina olhava para o lado do mare continuava a imaginar que um dia o filho ou a nora chegariam por ali, e quando issoacontecesse o menino mulato de olhos claros que ia a seu lado, no banco de madeira, talvezjá fosse um homem e talvez quisesse falar com os pais em português e alemão, e esta seriaapenas uma segunda língua.

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AgradecimentosSe tudo aqui é invenção, essa invenção nasceu de um material bibliográfico que situahistórica e criticamente o tema. No plano da ficção, este romance dialoga com: Um rio imita oReno, de Vianna Moog; Longe do Reno, de Bayard Toledo Mercio (um romance-resposta aVianna Moog); e O guarda-roupa alemão, de Lausimar Laus. Para vivenciar a existência sob oregime nazista, vali-me da leitura de dois dolorosos depoimentos: Os diários de VictorKlemperer: testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista, uma obra fundamental paraentender o cotidiano dos que eram perseguidos; e Destined to Witness: Growing up Black in NaziGermany, de Hans J. Massaquoi. Sobre o ditador alemão, dois livros foram fundamentais:Hitler, de Ian Kershaw, e Todas as mulheres de Hitler, de Erich Schaake.

No campo dos documentos de época, gerados principalmente no bojo das acusaçõespoliciais, e por isso propensos a exageros, serviram-me como fontes: O nazismo no Rio Grandedo Sul, 2o Relatório, do major Aurélio Py; O punhal nazista no coração do Brasil, organizado pelocapitão Antonio Carlos Mourão Ratton, com textos do capitão Antônio de Lara Ribas e docomissário de polícia João Kuehne; e Hitler guerreia o Brasil há dez anos, do jornalista MárioMartins. Foi também importante a leitura de Crônica de uma guerra secreta: nazismo na América,a conexão argentina, de Sérgio Corrêa da Costa.

Entre os trabalhos universitários, destaco: Caça às suásticas: o Partido Nazista em São Paulo soba mira da Polícia Política e Nazismo tropical? O Partido Nazista no Brasil, ambos de Ana MariaDietrich; Educação, autoritarismo e eugenia: exploração do trabalho e violência à infância desamparadano Brasil (1930–1945), tese de doutorado de Sidney Aguilar Filho; Os soldados brasileiros de Hitler,de Dennison de Oliveira; Pangermanismo e nazismo: a trajetória alemã rumo ao Brasil, deMarionilde Brepohl de Magalhães; Batalha sonora: o rádio na Segunda Guerra Mundial, coletâneade artigos organizada por Cida Golin e João Batista de Abreu. Destaco aqui dois painéis doperíodo: Getúlio, volumes I e II, de Lira Neto, e O anjo da fidelidade: a história sincera de GregórioFortunato, de José Louzeiro.

Todo livro é essencialmente uma viagem ao redor de uma biblioteca, é uma obra coletiva,portanto. A segunda pátria deve muito a estes e outros livros, mas também a duas pessoas emespecial: ao editor Bruno Porto, que me propôs o desafio de contar uma história que sepassasse nesse período, e depois leu tudo e me ajudou a corrigir falhas, e à minha agente,Luciana Villas- Boas, que sempre se entusiasma com meus textos e com quem discutilongamente tudo o que aqui ficou escrito. Agradeço, ainda, a leitura crítica de Dennison deOliveira e Jair Ferreira dos Santos.

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1. Os vários começos.De como o romancista é contratado para escrever uma nova obra e isso faz com que ele interrompa o seutrabalho como colunista de um jornal.

1º. de março de 2012 – quinta-feiraA editora Intrínseca me procurou. Quer me contratar para que eu escreva um romance quese passe na Era Vargas. Seria o começo de seu catálogo nacional.

7 de março de 2012 – quarta-feiraEstive hoje na Intrínseca, numa reunião que foi muito boa. Adiantamos bem a negociaçãodo projeto.

17 de maio de 2012 – quinta-feiraO novo romance começa a andar. Lentamente ainda, embora eu goste de começosacelerados, com muito entusiasmo. Os compromissos consomem as minhas energias e eutendo a me render às tarefas.

Um romance é sempre uma afronta ao mundo tributável. Impõe-se contra as obrigações.

28 de maio de 2012 – segunda-feiraChegaram os primeiros documentos sobre os nazistas no sul do Brasil. Uma pressão a mais– ver os livros que devo ler para escrever o romance justo quando menos tempo tenho.

6 de junho de 2012 – quarta-feiraDedico-me à leitura do material sobre os nazistas. Estes episódios reais conduzirão minhaimaginação à história que quer ser escrita. Acredito que tudo que escrevemos já existia nocampo das virtualidades. Desejo chegar logo a este romance que me espera. Tomo nota, listocenas, imagino enredos.

Ler livros sobre um período é uma forma de se fazer pertencer a ele.

7 de junho de 2012 – quinta-feiraTerminei a tese de Ana Maria Dietrich sobre o Partido Nazista no Brasil. E comecei outrotrabalho dela – Caça às suásticas. Também iniciei a leitura de Os diários de Victor Klemperer.Conhecer melhor o nazismo a partir de um observador culto e sensível que conviveudiretamente com os nazistas permite uma experiência profunda.

A escrita de um romance histórico é uma oportunidade de ler obras que não leríamos emoutras circunstâncias.

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11 de junho de 2012 – segunda-feiraOs diários de Klemperer são muito envolventes, pela dolorosa verdade que há neles.Sentimos os nazistas ao nosso lado. É necessária esta intimidade para não se escrever umahistória que soe falsa.

13 de agosto de 2012 – segunda-feiraTomei a decisão de parar de fazer crítica literária na Gazeta do Povo (Curitiba), depois de 19anos de trabalho. Escrevi hoje a carta de despedida para a editora do jornal, explicando:“Desde a contratação do novo romance, passei a não ter mais tempo. Estou hoje numasituação difícil: ou faço a crítica semanal ou faço o romance”. Fim de uma fase.

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2. Sonhando o romance.Dedicando-se a documentos e livros de ficção, o romancista começa a ter a sua mente povoada porepisódios de uma história que nasce do nada.

14 de outubro de 2012 – domingoLeio, entre outras coisas, o único romance brasileiro contemporâneo do nazismo que faz asua crítica – Um rio imita o Reno (1939), de Vianna Moog. Livro, portanto, importante, apesarde convencional.

24 de outubro de 2012 – quarta-feiraUm rio imita o Reno é literariamente fraco, com pouca percepção da vida alemã nos anos 1930.É mais dissertativo do que narrativo, verdadeiro crime de lesa-ficção. Mas ajudou um poucoa perceber aquele ambiente. O romance que devo escrever sobre os nazistas está sedelineando. Já começo a sonhá-lo. Este é um processo interessante: aos poucos, a história vaise desprendendo do nada, ganhando contornos.

15 de dezembro de 2012 – sábadoTenho enfim me dedicado intensamente ao romance, com muitas leituras sobre o período.Concluí agora Longe do Reno (1940), de Bayard de Toledo Mercio, caso único na literaturabrasileira, um romance-resposta a outro – ao de Vianna Moog. Literariamente, é um livropéssimo, que tenta provar que não havia manifestação racista no Brasil. Valeu o tempo gastopor me apresentar um pouco do cotidiano das colônias.

18 de dezembro de 2012 – terça-feiraTenho a cena inicial resolvida na cabeça e começo a tomar algumas notas. O primeirocapítulo deve criar no leitor um interesse imorredouro pela história.

25 de dezembro de 2012 – terça-feiraLeio sem entusiasmo O guarda-roupa alemão (1975), de Lausimar Laus. Conheci este relato nosanos 1990 e foi a partir das lembranças desta leitura matinal que comecei a construir atrama de meu romance. Agora, ao voltar ao livro de Lausimar, vejo que ele é bem menor doque minha recordação dele. A memória de um ficcionista é procriativa, não deixa os fatoscomo eles são. Este livro não influenciará o meu porque só somos verdadeiramenteinfluenciados por nós mesmos.

28 de dezembro de 2012 – sexta-feiraEstudei o relatório do Major Aurélio da Silva Py (1940) sobre o nazismo no Rio Grande doSul. Em meio a tantas informações irrelevantes, encontro material para deflagrar minha

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narrativa. O romance vai tomando forma em minha imaginação.

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3. Não parar mais!O romancista decide não esperar mais e se entrega à tarefa de colocar uma palavra depois da outra,parágrafo após parágrafo.

1º. de janeiro de 2013 – terça-feiraLeio a excelente biografia de Getúlio escrita por Lira Neto e trechos dos diários de Vargas. Émais para compreender o contexto, mas sempre encontro uma ou outra questão que podeser aproveitada no romance. A pesquisa do escritor é diferente da pesquisa do historiador.Preciso localizar episódios que rendam ficcionalmente.

9 de janeiro de 2013 – quarta-feiraAs leituras para o novo romance se avolumam. Há um momento em que temos de começara escrever mesmo sem ter lido tudo que queríamos ler.

13 de janeiro de 2013 – domingoEnquanto não começamos a escrever um livro, ele se multiplica em muitas variantes emnossa imaginação. Suas possibilidades ficam em aberto. Ele cresce para todos os lados.Escrever é restringir. Criar fronteiras. Cercar a história.

31 de janeiro de 2013 – quinta-feiraEm Porto Alegre, o romancista Luiz Antônio de Assis Brasil me levou ao Palácio Piratini (umdos cenários do romance). Visitei todos os cômodos, a ala administrativa e a residencial –não mais usada para este fim. Mostrou-me as passagens dos túneis sob o palácio – sãodiscretas e talvez servissem para fugas. Mas vou ampliá-las no romance.

2 de fevereiro de 2013 – sábadoÀ tarde, percorri o Centro de Porto Alegre, tomando nota de alguns detalhes para umamelhor compreensão do cenário em que os personagens se moverão. Descobri pequenascoisas que servirão muito.

Comecei hoje, no Chalé da Praça XV, o primeiro capítulo do romance. Não parar mais!

5 de fevereiro de 2013 – terça-feiraGastei a madrugada com o primeiro capítulo, que ficou com 2.500 palavras. A previsão é quea história toda tenha 80 mil. Não vou correr com a escrita. Quero revisar mais ao longo doprocesso para diminuir o trabalho de finalização.

Estava com medo de não conseguir dar conta deste romance. Mas a própria escrita vaiabrindo caminhos narrativos. Não tenho grandes anotações e esta situação mais livre é,inicialmente, assustadora. Mas basta me entregar ao livro, exatamente o que estou fazendo

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agora, e pedir para que ele se faça.

6 de fevereiro de 2013 – quarta-feiraFiz mil palavras hoje. Ao final de cada bloco, passo um tempo imaginando o próximo,totalmente às escuras.

7 de fevereiro de 2013 – quinta-feiraDesde a madrugada trabalhando no romance. Está com 5 mil palavras. Vamos ver para ondeos meus nazistas me levam. Não se pode ter medo de um assunto nem podar asramificações espontâneas de uma história.

9 de fevereiro de 2013 – sábadoOntem o romance avançou pouco. Uma cena na Alemanha. Hoje, não escrevi nada, maspensei o próximo episódio. Neste final de semana, uma grande incerteza.

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4. O romance se alastra.O romancista tem que ignorar todos os pequenos problemas da vida cotidiana para entrar no ritmo dolivro que quer ser escrito por ele.

14 de fevereiro de 2013 – quinta-feiraDedicação total ao romance, que avança num ritmo regular. As cenas do dia seguinte sãoimaginadas na tarde anterior. Já são 15 mil palavras. Penso terminar a primeira parte atédomingo, chegando a 20 mil palavras.

Meu desktop estragou e estou tentando me acostumar ao laptop. Nada, nem osproblemas de casa, atrapalham a escrita – sempre nas primeiras horas matinais. A escrita deum romance diminui minha libido.

19 de fevereiro de 2013 – terça-feiraTrabalhando todos os dias no novo romance – apenas ontem não consegui fazer nada. Hoje,numa madrugada de insônia, adiantei a última cena da primeira parte. Agora, às 11 damanhã, concluí o copião do primeiro bloco. Um quarto do livro.

Vou me dedicar à versão impressa, empreendendo uma limpeza geral da coisa. Tereientão uma noção do que escrevi. A segunda parte está sendo esboçada na minha cabeça.Começo amanhã.

2 de março de 2013 – sábadoTrabalhei pouco no romance – 500 palavras. Mas achei um possível título para ele: “Amulher que dormiu com o demônio”.

4 de março de 2013 – segunda-feiraDei meu dia ao romance – com interrupções para as atividades de internet. Fiz 2.500palavras – a maior colheita até agora. Apesar da presença de muita gente em casa –pedreiros, pintores, marceneiros –, sigo escrevendo.

Um escritor só desiste de um livro depois de morto. E acho que ainda estou vivo. O bomé que escrevo o que não consigo prever, a história se desvelando sozinha.

8 de março de 2013 – sexta-feiraHoje foi um dos dias que o romance mais rendeu. Fiz três cenas, criando o clima deperseguição aos negros, transpondo para o Brasil a mesma situação vivida pelos judeus naAlemanha. Quando incentivados, deixamos aflorar toda a nossa maldade. Parece esta afórmula nazista – liberar os demônios interiores da população.

11 de março de 2013 – segunda-feira

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Quando estou num processo longo de escrita, tento não pensar muito lá na frente. Tudo quepreciso é resolver a próxima cena. Isso torna menos assustadora a tarefa.

13 de março de 2013 – quarta-feiraFiz a segunda cena da parte dois – 1.300 palavras. Foi difícil, eu adoecido numa manhã dechuva e a cena era muito triste – os nazistas açoitando um negro.

23 de março de 2013 – sábadoDormi bem. Escrevi 1.300 palavras do romance, retomado hoje. Poderia ter escrito mais, maso importante é a regularidade, criando espaços vazios entre a produção de uma cena e a deoutra. Escrever tudo que sabemos de um livro de uma vez é um risco. Esgota-serapidamente o reservatório de imaginação.

28 de março de 2013 – quarta-feiraAcordado desde cedo, escrevi duas cenas, quase 3 mil palavras. O romance se alastra em umritmo bom. Não volto a ele, não releio nada. Agora é chegar ao final quanto antes. Penso queum mês mais e terei a primeira versão. Uma versão muito suja, cheia de lacunas, que medará muito trabalho ainda. Mas aí o livro já terá um rosto.

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5. O romance se sedimenta.Entre tensões e distensões no ato da escrita, o romancista vai dando um rosto provisório ao livro.

30 de março de 2013 – sábadoO romance segue me comandando. Não posso recuar diante de nenhuma cena. Devo serdigno de cada uma delas e torcer para que formem um todo. A rapidez e a escrita irrefletidapossibilitam uma unidade para as partes. O espaçamento de tempo nos afasta da sintoniasubterrânea que amarra o livro.

Não tenho feito quase nada além de escrever. Se tivesse mantido minha coluna de críticaeu teria sabotado este romance. Quando vamos envelhecendo, a literatura fica mais exigenteconosco, adquirindo novos direitos.

2 de abril de 2013 – terça-feiraFiz 1.800 palavras do romance – uma passagem difícil em que a personagem descreve umanoite de amor com uma grande figura histórica. Levei quase o dia inteiro para concluir unspoucos parágrafos. Mas já arquitetei o próxima episódio, esperando que saia maisespontaneamente.

O editor me escreveu dizendo que está gostando da primeira parte do romance, queacertei o tom da narrativa. Espero que não sejam palavras protocolares. Este pequeno elogiome deu um novo alento. É tão difícil não ter com quem dialogar. Por outro lado, é bom.Posso continuar cego no meu propósito.

Não saio quase de casa, preso ao romance.

5 de abril de 2013 – sexta-feiraO romance vai absorvendo tudo que tem algum impacto sobre minha sensibilidade, e cresceno passado (período da Segunda Guerra) e no presente, incorporando percepções. É um serque se desdobra em duas temporalidades. Não luto contra esta tendência.

12 de abril de 2013 – sexta-feiraEstou na quarta parte, da qual já fiz 5 mil palavras. Faltam apenas 15 mil para concluir ocopião. Nesta última fase, tudo deve se encaixar para que o leitor se sinta dentro de umaengrenagem narrativa em funcionamento.

Leio As agruras do verdadeiro tira, de Roberto Bolaño. No começo, há uma força ficcionalimensa. Parece que estamos diante de um material humano muito denso, mas a certa alturao livro vira cenas soltas. E isso frustra o leitor. Em outros livros, o autor consegue mantermelhor delimitadas as fronteiras do romance, apesar de seu estilo centrífugo. Mas aqui tudoderiva para notas marginais.

O romance que estou escrevendo busca o sentido contrário. Não desejo fazer com que o

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leitor se perca na narrativa. Quero levá-lo pela mão para conhecer o cenário e depoisconduzi-lo até a porta de saída.

28 de abril de 2013 – domingoOntem e hoje não produzi nada. Embora sem acrescentar uma linha, resolvi algunsproblemas narrativos. Mesmo não escrevendo, estamos sempre escrevendo o romance.

29 de abril de 2013 – segunda-feiraTrês mil e duzentas palavras. Quando paramos de escrever por um tempo, sem deixar dealimentar a imaginação em torno da história, acontece um processo de transbordamento daescrita.

O copião que vai se sedimentando é apenas o esboço do romance que um dia ficarápronto. Se eu morresse agora, na primeira versão, ele estaria perdido.

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6. O romance está escrito.Como é vasto o material sobre o nazismo, o romancista se vê tentado a continuar pesquisando mesmodepois de ter concluído a escrita.

4 de maio de 2013 – sábadoTenho trabalhado no romance sem a menor pressa. Faltam duas mil palavras para euconcluir o copião. Este é o momento de consolidar o enredo, de construir a narrativa. Depoisvoltarei acrescentando elementos, levando o leitor à época da Segunda Guerra. É ummétodo novo para mim.

6 de maio de 2013 – segunda-feiraLevantei às quatro (são 20h) e não parei mais. Terminei hoje a primeira redação do copiãode Os meus nazistas ou de A segunda língua – são os títulos possíveis.

15 de maio de 2013 – quarta-feiraO romance agora voltou a ser uma virtualidade, como no início. Tomo notas para possíveiscenas, pois ele vai ser escrito novamente. O que farei não será apenas uma revisão. Nasnovas leituras sobre a Segunda Guerra, descubro outras conexões simbólicas. É assim quese amarra uma estrutura narrativa, fortalecendo esses nós semânticos.

16 de junho de 2013 – domingoNa segunda, viajei a Blumenau para fazer as últimas pesquisas para o romance. Fui muitobem recebido por Maicon Tenfen, que me levou ao Arquivo Histórico da cidade. Li algunslivros, entre eles O punhal nazista no coração do Brasil, de Antônio de Lara Ribas. Pesquiseitambém material nazista que pertencera aos alemães, como um álbum de figurinhas deHitler, tudo muito bem impresso, o que mostra o grau de disseminação do nazismo entre osjovens.

Os descendentes preferem estudar as agressões sofridas com a nacionalização impostapor Getúlio Vargas, apagando o período de militância hitlerista. O papel do ficcionista épotencializar as ações nazistas no Brasil.

Andei pela cidade, identificando os lugares onde os meus personagens moraram. Épreciso conhecer o endereço desses seres imaginários.

6 de julho de 2013 – sábadoRevisei passagens do romance. Achei que seria necessário reescrever tudo, mas bastasanear o texto. O romance está escrito. É o que poderia render este tema. Tudo que resta afazer é melhorar a linguagem. Por mais que eu leia sobre o assunto, o livro continuarásendo o mesmo. Há um limite inventivo para cada história.

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9 de julho de 2013 – terça-feiraDecidi trocar o lugar da primeira parte com o da segunda. Isso dará mais agilidade à leitura.O leitor entra já no meio da perseguição aos negros. Depois ele saberá o que criou estepesadelo nazista.

17 de julho de 2013 – quarta-feiraTrabalho lentamente na revisão do romance. Verifico anotações de leituras e acrescentopassagens, episódios mínimos, palavras. Depois deste processo, que espero concluir hoje,vou imprimir uma cópia e começar a leitura em voz alta.

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7. Reescrever o romance todo.Embora a cabeça do romancista já esteja no próximo livro, é preciso voltar a se encantar várias vezes pelolivro que ele ainda está revisando.

27 de julho de 2013 – sábadoDesde a madrugada revisando o romance. Agora é passar as mudanças feitas no papel parao computador. Acredito que gaste um dia nisso. Eu me surpreendo mais uma vez com ofinal do romance. É como se eu estivesse lendo o livro de outra pessoa.

29 de julho de 2013 – segunda-feiraPassei as correções para o arquivo do computador. Na hora da substituição, é comum surgiruma terceira possibilidade de dizer a coisa. Então esta não é uma tarefa tão mecânica assim.

7 de janeiro de 2014 – terça-feiraOntem adiantei bastante a nova revisão do romance. Este é o segundo tratamento do livro.Haverá mais um nos próximos meses.

Quando um livro fica pronto, o escritor já está meio saturado dele.

8 de janeiro de 2014 – quarta-feiraO segundo tratamento do texto gera muita tensão, pois o livro ainda possui falhasnarrativas, descontinuidades. Hoje, resolvi problemas graves, acredito que depois será maisfácil.

6 de julho de 2014 – domingoPreparo-me para começar uma nova revisão do romance – terceiro tratamento autoral. Esteé um momento muito gratificante. Organizei a vida pessoal e profissional para que pudesseme dedicar a uma história com a qual convivo há quase três anos. É como se preparar paraver a namorada. Um sentimento de plenitude, uma ansiedade. A cópia impressa está namesa. Amanhã cedinho começarei.

12 de julho de 2014 – sábadoTerminei de revisar a terceira parte do romance. São pequenas alterações agora, mas amudança de uma palavra representa muito para o escritor. É como se ele reescrevesse olivro inteiro.

20 de novembro de 2014 – quinta-feiraLivia de Almeida, da Intrínseca, me sugere um novo título para o romance – A segunda pátria.Eu tinha pensado em Uma segunda língua, mas não era adequado. Muito vago; e o livro iria

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parar na estante de linguística. Aceitei o novo título.

7 de janeiro de 2015 – quarta-feiraSuspendi a escrita de um novo romance para me dedicar à revisão das provas diagramadasde A segunda pátria – quarto tratamento autoral. Fui até a página 117. Hoje foi um dia muitotumultuado, creio que amanhã avanço mais. Na primeira parte, encontrei ainda muitascoisas que precisavam ser mexidas. Já na segunda, que é mais antiga, são mínimas asalterações. É preciso me dedicar a este romance, embora a minha cabeça esteja no outro quecomecei. Há sempre este descompasso para o escritor.

13 de janeiro de 2015 – terça-feiraConcluí a revisão de A segunda pátria e novamente me emocionei com o final, como se eunão soubesse como a história iria terminar.

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Sobre o autor

Miguel Sanches Neto — Nascido em Bela Vista do Paraíso, no interior do Paraná, é autorde seis romances, além de livros infantojuvenis, contos e ensaios. Foi finalista dos principaisprêmios literários do país, tendo recebido, entre outros, o Prêmio Cruz e Souza (2002) eBinacional das Artes e da Cultura Brasil-Argentina (2005). Doutor em Teoria Literária pelaUnicamp, exerceu a crítica literária nas principais publicações brasileiras, atuando nomomento como professor do curso de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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