zine baixacultura nº1
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Zine BaixaCultura nº1: Pequenos Grandes Momentos da História da Recombinação: Deturnamento. Apresentação + guia para os usuários do deturnamento, de Guy Debord e Gil Wolman. Tradução do Guia de Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia, publicada pela primeira vez no Rizoma.net (já não mais disponível).TRANSCRIPT
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PEQUENOS GRANDES
MOMENTOS DA
HISTRIADA
RECOMBINAO:
DETURNAMENTO
Como voc pode supor (ou no), muito se tem
conversado sobre as mudanas que a rede e o
compartilhamento de arquivos trazem para a
sociedade, mas muito pouco tem se tratado das
prticas criativas ligadas ao roubo que a internet
potencializa demais, ao colocar a dois toques do
mouse um mundo de material prontinho para ser
baixado, visto e usado como bem se quiser.
natural que o debate mantenha o foco na
recepo, pois as novas prticas de distribuio e
consumo de cultura dizem respeito a toda a
sociedade, enquanto que as prticas criativas
dizem respeito a um grupo (ainda) seleto de
pessoas.
Pensando nisso que ns comeamos esta srie,
Pequenos Grandes Momentos Ilustrados da
Histria da Recombinao, com o objetivo de
resgatar algumas prticas (momentos, charadas,
causos) criativas do sculo XX ligadas ao uso e
roubo de outras criaes. Existiram diversas
formas e ocasies de apropriao de obras de
outros artistas neste sculo passado, e, ademais
de algumas prticas e causos serem popularmente
conhecidas hoje (remix, mashup, memes) existem
outras tantas que pouco saram dos guetos
artsticos.
Nosso resgate inicia com uma dessas prticas
pouco conhecidas, o chamado dtournement,
apresentado no guia para os usurios do
deturnamento, texto seminal feito por Guy
Debord e Gil J. Wolman e publicado pela primeira
vez na revista surrealista belga chamada Les
Lvres Nues #8, de 1956.
Nesse guia, os autores introduziam, conceituavam
e abusavam da prtica sempre com muito
sarcasmo e ironia, talvez a fim de que ningum
levasse totalmente a srio aquilo que eles diziam.
As duas leis fundamentais do deturnamento
apontadas inicialmente seriam: 1) a perda de
importncia de cada elemento detunado, que
pode ir to longe a ponto de perder
completamente seu sentido original; e, ao mesmo
tempo, a 2) reorganizao em outro conjunto de
significados que confere a cada elemento um
novo alcance e efeito. So apresentados dois tipos
principais: os menores, onde feito um desvio
de um elemento que no tem importncia
prpria, e que portanto toma todo seu significado
do novo contexto onde foi colocado; e os
enganadores, onde feito o desvio de um
elemento intrinsecamente significativo, o qual
toma um dimenso diferente a partir do novo
contexto. Na sequncia, o guia cita diversos
exemplos de deturnamento; falam da prtica na
literatura, melhor usada no processo da escrita do
que no resultado final: No h muito futuro no
deturnamento de romances inteiros, mas durante
a fase transitiva poderia haver um certo nmero
de empreendimentos deste tipo". Na poesia, citam
a metagrafia uma tcnica de colagem grfica
inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada
pelo movimento do letrismo, que inspirou os
situacionistas. E tratam o cinema como a rea
onde a prtica se pode atingir maior efetividade e
beleza, j que os poderes do filme so to
extensos, e a ausncia de coordenao desses
poderes to evidente, que virtualmente
qualquer filme que esteja acima da miservel
mediocridade prov tema para infinitas polmicas
entre espectadores ou crticos profissionais.
Ao contrrio do plgio praticado por pura falta de
talento, a ideia do deturnamento funciona mais
para revelar do que para ocultar suas origens.
Talvez seja uma forma de entrar diretamente no
longo dilogo do conhecimento, de expor
referncias e mostrar todos o que se quer
absorver destas e da unio do que se aproveita
de um lado com o que se aproveita de outro que
nasce algo diferente. Parece sempre ter sido assim
a criao, e barrar o uso dessas referncias , em
todos os sentidos, limitar a criatividade.
No fim de sua vida, Debord passou a desistir do
deturnamento, por acreditar que esse tipo de
tcnica seria adequada apenas a sociedades que
fossem capazes de reconhec-la. Ser que hoje,
com o advento da internet e toda a cultura que ali
est disponvel, ele faria o mesmo?
O guia para os usurios do deturnamento foi
traduzido para o portugus por Railton Sousa
Guedes, do Arquivo Situacionista
Brasileiro/Projeto Periferia, e publicado pela
primeira vez no site Rizoma, que abrigou um
acervo significativo de artigos, tradues,
entrevistas sobre hackativismo, contracultura e
interveno urbana entre 2002 e 2009. Ricardo
Rosas, o editor do site, formou uma gerao de
recriadores e entusiastas da contracultura digital
justamente no perodo em que a ideia de uma
cultura digital brasileira foi sendo gestada para
hoje ser dissipada na onipresena das redes e
ruas. Ricardo nos deixou cedo, em 2007, mas seu
legado rizomtico continuam relevantes, o que
atestam os diversos e-books que disponibilizamos
na biblioteca do BaixaCultura
(http://baixacultura.org/biblioteca).
Publicamos no Baixa o primeiro texto sobre o
deturnamento em maio de 2010. Dois anos
depois, em agosto de 2012, publicamos este guia
em duas partes, edio a qual reproduzimos aqui
com alguns ajustes e revises. A ideia de lanar
este texto em papel nasceu mais ou menos por
esta poca, no contexto de criao de nosso
pequeno selo editorial de cultura livre e (contra)
cultura digital. Trs longos anos depois, c est.
Porto Alegre, junho de 2015
UM GUIAPARA
USURIOS DO
DETURNAMENTO
i
Toda pessoa razoavelmente atenta em nossos dias
est alerta ao bvio fato de que a arte j no pode
mais ser considerada como uma atividade
superior, ou nem mesmo como uma atividade
compensatria qual algum honradamente
poderia dedicar-se. A razo para esta deteriorao
o claro aparecimento de foras produtivas que
necessitam de outras relaes de produo e de
uma nova prtica de vida. Na atual fase da guerra
civil em que estamos engajados, e em ntima
conexo com a orientao que estamos
descobrindo para certas atividades superiores por
vir, acreditamos que todos os meios conhecidos
de expresso iro convergir para um movimento
geral de propaganda que ter que abarcar todos os
aspectos eternamente inter-relacionados da
realidade social.
H vrias opinies contraditrias sobre as formas
e at mesmo sobre a verdadeira natureza da
propaganda educativa, essas opinies geralmente
refletem uma ou outra variedade do reformismo
poltico da moda. Basta-nos dizer que, em nossa
viso, as premissas para revoluo, tanto no
aspecto cultural como no estritamente poltico,
no apenas esto maduras como comearam a
apodrecer.
No se trata aqui de voltar ao passado, o que
reacionrio; at mesmo os modernos objetivos
culturais so em ltima anlise reacionrios na
medida em que dependem de formulaes
ideolgicas de uma sociedade passada que
prolongou sua agonia de morte at o presente. A
nica ttica historicamente justificada inovao
extremista. A herana literria e artstica da
humanidade usada para propsitos de
propaganda partidria. claro que necessrio ir
alm de qualquer ideia meramente escandalosa. A
oposio noo burguesa da arte e do gnio
artstico tornou-se um chapu roto. O bigode que
Duchamp rabiscou na Mona Lisa no mais
interessante que a verso original daquela
pintura. Temos agora que empurrar este processo
ao ponto de negar a negao.
Bertolt Brecht revelou em uma recente entrevista
no Frane-Observateur que ele fez cortes em
clssicos do teatro de forma a torn-los mais
educativos nesse aspecto ele est mais prximo
que Duchamp da orientao revolucionria que
proclamamos. necessrio destacar, contudo,
que no caso de Brecht tais salutares alteraes so
estreitamente limitadas por seu infeliz respeito
cultura definida pelos parmetros da classe
governante aquele mesmo respeito, ensinado
tanto nos jornais dos partidos operrios como
tambm nas escolas primrias da burguesia, que
induz at mesmo os distritos operrios mais
vermelhos de Paris a sempre preferir El Cid
Me Coragem [de Brecht] .
Na realidade, necessrio eliminar todos
resqucios da noo de propriedade pessoal nesta
rea. O aparecimento das j ultrapassadas novas
necessidades por obras inspiradas. Elas se
tornam obstculos, hbitos perigosos. No se trata
de gostar ou no delas. Temos que super-las.
Pode-se usar qualquer elemento, no importa de
onde eles so tirados, para fazer novas
combinaes.
As descobertas de poesia moderna relativas
estrutura analgica das imagens demonstram
que quando so reunidos dois objetos, no
importa quo distantes possam estar de seus
contextos originais, sempre formada uma
relao. Restringir-se a um arranjo pessoal de
palavras mera conveno. A interferncia
mtua de dois mundos de sensaes, ou a
reunio de duas expresses independentes,
substitui os elementos originais e produz uma
organizao sinttica de maior eficcia.
Pode-se usar qualquer coisa.
Desnecessrio dizer que ningum fica limitado
a corrigir uma obra ou a integrar diversos
fragmentos de velhas obras em uma nova; a
pessoa pode tambm alterar o significado
desses fragmentos do modo que achar mais
apropriado, deixando os imbecis com suas
servis referncias s citaes. Tais mtodos
pardicos foram frequentemente usados para
obter efeitos cmicos. Mas tal humor o
resultado das contradies dentro de uma
condio cuja existncia tida como certa.
Como o mundo da literatura quase sempre nos
parece to distante quanto o da Idade da Pedra,
tais contradies no nos fazem rir. ento
necessrio conceber uma fase pardica-sria
onde a acumulao de elementos deturnados,
longe de contribuir para provocar indignao
ou riso em sua aluso a algum trabalho
original, expresse nossa indiferena para com
um inexpressivo e desprezvel original, e se
interesse em fazer uma certa sublimao.
Lautramont foi to longe nesta direo que
ele ainda parcialmente mal compreendido at
mesmo pelos seus mais declarados
admiradores. A despeito de suas bvias
aplicaes deste mtodo na linguagem terica
de Poiesies onde Lautramont (utilizando as
mximas de Pascal e Vauvenargues,
particularmente) se esfora por reduzir o
argumento, atravs de sucessivas
concentraes, to somente a mximas um
certo Viroux, trs ou quatro anos atrs, causou
considervel espanto ao demonstrar
conclusivamente que Os Cantos de Maldoror
um grande deturnamento de Buffon e de
outras obras de histria natural, entre outras
coisas.
O fato dos proslitos do Figaro, como o prprio
Viroux, serem capazes de ver nisto uma
justificao para desacreditar Lautramont, e
de outros acreditarem que tinham que
defend-lo elogiando sua insolncia, apenas
testifica a senilidade destes dois agrupamentos
de parvos em elegante combate. Um lema
como o plgio necessrio, o progresso o
implica ainda pobremente compreendido, e
pelas mesmas razes que a famosa frase sobre
a poesia, que deve ser feita por todos.
Aparte da obra de Lautramont que bem
frente de seu tempo foi em grande parte uma
crtica precisa as tendncias para o
deturnamento que podem ser observadas na
expresso contempornea so em sua maior
parte inconscientes ou acidentais. na indstria
da propaganda, mais do que na decadente
produo esttica, onde esto os melhores
n1
Expediente
Leonardo Foletto (edio)
Calixto Bento (diagramao)
Sheila Uberti (capa sobre mosaico criado
durante a oficina da artista Silvia
Marcon - Vila Flores - Porto) Alegre/RS
Licena CC Share A Like
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exemplos. Podemos em primeiro lugar definir
duas categorias principais de elementos
deturnados, levando em considerao se o
ajuntamento vem ou no acompanhado por
correes inseridas nos originais. Temos
aqui deturnamentos secundrios e
deturnamentos enganosos.
O deturnamento secundrio
ii
o deturnamento
de um elemento que no tem nenhuma
importncia em si mesmo e que tira todo seu
significado do novo contexto em que foi colocado.
Por exemplo, um recorte de jornal, uma frase
neutra, uma fotografia comum.
O deturnamento enganoso, tambm chamado
deturnamento de proposio-premonitria,
em contraste o deturnamento de um
elemento intrinsecamente significante que
deriva de um diferente escopo de um novo
contexto. Por exemplo, um slogan de Saint-Just
ou um trecho de um filme de Eisenstein.
Obras extensamente deturnadas so
usualmente compostas por
uma ou mais sries de deturnamentos
enganosos e secundrios.
Agora pode-se formular vrias leis
no uso do deturnamento.
O mais distante elemento deturnado aquele
que contribui mais nitidamente impresso
global, e no os elementos que diretamente
determinam a natureza desta impresso. Por
exemplo, em uma metagrafia [poema-colagem
iii
]
relativa Guerra Civil Espanhola, a frase que
mais destaca o sentido revolucionrio o
fragmento de um anncio de batom:
Belos lbios so vermelhos. Em outra
metagrafia (AMorte de J.H.) 125 anncios
classificados expressam um suicdio mais
notvel que os artigos do jornal que o narram.
As distores introduzidas nos elementos
deturnados devem ser to simples quanto
possvel, pois o impacto principal de um
deturnamento tem relao direta com a
lembrana consciente ou semiconsciente dos
contextos originais dos elementos. Isto bem
conhecido. Basta simplesmente notar que se esta
dependncia da memria insinua a necessidade
de determinar o pblico alvo antes de inventar
um deturnamento, este apenas um caso
particular de uma lei geral que governa no
apenas o deturnamento mas tambm qualquer
outra forma de ao no mundo.
A ideia da expresso pura, absoluta, est morta;
sobrevive apenas temporariamente na forma
pardica na medida em que nossos outros
inimigos sobrevivem. Quanto mais prximo de
uma resposta racional menos efetivo o
deturnamento. Este o caso de um nmero bem
grande de mximas alteradas por Lautramont.
Quanto mais aparente for o carter racional da
resposta, mais indistinguvel se torna do esprito
ordinrio da rplica, que semelhantemente usa as
palavras opostas contra ele. Isto naturalmente
no se limita linguagem falada. Foi nesse
sentido que contestamos o projeto de alguns de
nossos camaradas que propuseram deturnar um
cartaz antissovitico da organizao fascista Paz
e Liberdade que proclamava, em meio a
imagens de bandeiras sobrepostas dos poderes
Ocidentais, a unio faz fora acrescentando
por cima em uma folha menor a frase e coalizes
fazem a guerra.
II
O deturnamento atravs da simples reverso
sempre o mais direto e o menos efetivo. Assim, a
Missa Negra reage contra a construo de um
ambiente baseado em determinada metafsica
construindo outro ambiente na mesma base, que
apenas inverte mas ao mesmo tempo conserva
os valores de tal metafsica. No obstante, tais
reverses podem ter um certo aspecto
progressivo. Por exemplo, Clemenceau chamado
o Tigre poderia ser chamado o Tigre chamado
Clemenceau.
Das quatro leis fixadas, a primeira essencial e se
aplica universalmente. As outras trs, na prtica,
aplicam-se apenas a elementos deturnados
enganosos. As primeiras conseqncias visveis
da difuso do uso do deturnamento, fora seu
intrnseco poder de propaganda, foram a
revivificao de uma multido de livros ruins, e a
extensa (no intencional) participao de seus
desconhecidos autores; uma transformao cada
vez maior de frases ou obras plsticas produzidas
para estar na moda; e acima de tudo uma
facilidade de produo que supera em muito, em
quantidade, variedade e qualidade, a escrita
automtica que tanto nos chateia.
O deturnamento no conduz apenas descoberta
de novos aspectos do talento; tambm colide
frontalmente com todas as convenes sociais e
legais, e pode ser uma arma cultural poderosa a
servio de uma verdadeira luta de classes. A
barateza de seus produtos a artilharia pesada
que derruba todas as muralhas da China do
entendimento
iv
. um verdadeiro meio de
educao artstica proletria, o primeiro passo
para um comunismo literrio. No reino do
deturnamento se pode multiplicar ideias e
criaes vontade. No momento nos limitaremos
a mostrar algumas possibilidades concretas em
vrios setores atuais da comunicao estes
setores separados so significantes apenas em
relao s tecnologias atuais, com tudo tendendo
a fundir-se em snteses superiores com o avano
destas tecnologias.
Aparte dos vrios usos diretos de frases
deturnadas em cartazes, registros e radiodifuso,
as duas aplicaes principais de prosa deturnada
esto em escritos metagrficos e, em menor grau,
na hbil perverso da moderna forma clssica.
No h muito futuro no deturnamento de
romances inteiros, mas durante a fase transitiva
poderia haver um certo nmero de
empreendimentos deste tipo. Se um
deturnamento fica mais rico quando associado a
imagens, tais relaes para com textos no so
imediatamente bvias. Apesar das inegveis
dificuldades, acreditamos que seria possvel
produzir um instrutivo deturnamento
psicogeogrfico da "Consuelo" de George Sand,
que poderia ser relanada no mercado literrio
disfarada sob algum ttulo incuo como Vida
nos Subrbios, ou at mesmo sob um ttulo
deturnado, como A Patrulha Perdida. (seria uma
boa ideia reutilizar deste modo muitos ttulos de
velhos filmes deteriorados dos quais nada mais
permanece, ou de filmes que continuam
enfraquecendo as mentes dos jovens nos clubes
de cinema).
A escrita metagrfica, no importa quo
antiquada possa ser sua base plstica, apresenta
oportunidades bem mais ricas para a prosa
deturnada, como outros objetos
apropriados ou imagens. Pode-se obter uma ideia
do significado disso pelo projeto, concebido em
fabricar uma mquina de fliperama arranjada de
tal forma que o jogo de luzes e trajetrias mais
previsveis das bolas formaria uma composio
metagrfica-espacial intitulada "Sensaes
Trmicas e Desejos de Pessoas que Passam pelos
Portes do Museu do Cluny Cerca de uma Hora
depois do Poente em Novembro". Percebemos
desde ento que um empreendimento
situacionista-analtico no pode avanar
cientificamente por meio de tais obras. No
obstante, os meios permanecem satisfatrios para
metas menos ambiciosas.
obviamente no reino do cinema que o
deturnamento pode atingir sua maior efetividade
e, para os que se interessam por este aspecto, sua
maior beleza. Os poderes do filme so to
extensos, e a ausncia de coordenao desses
poderes to evidente, que virtualmente
qualquer filme que esteja
acima da miservel mediocridade prov tema
para infinitas polmicas entre espectadores ou
crticos profissionais. Apenas o conformismo
dessas pessoas lhes impede descobrir tanto a
atrao apelativa como as falhas berrantes dos
piores filmes.
Para ilustrar esta absurda confuso de valores,
podemos observar que O Nascimento de uma
Nao de Griffith um dos filmes mais
importantes na histria do cinema por causa de
sua riqueza de inovaes. Por outro lado, um
filme racista e portanto no merece
absolutamente ser mostrado em sua presente
forma. Mas sua proibio total poderia ser vista
como lamentvel do ponto de vista do
secundrio, mas potencialmente meritrio,
domnio do cinema. Seria melhor deturn-lo em
sua totalidade, sem a necessidade de sequer
alterar a montagem, adicionando uma trilha
sonora que faa uma poderosa denncia dos
horrores da guerra imperialista e das atividades
da Ku Klux Klan que at hoje continua atuando
nos Estados Unidos.
Tal deturnamento um tanto moderado em
ltima anlise nada mais que um equivalente
moral da restaurao de velhas pinturas em
museus. Mas a maioria dos filmes merece apenas
serem cortados para compor outras obras. Esta
reconverso de sequncias preexistentes sero
obviamente acompanhadas de outros elementos,
musicais ou pictricos como tambm histricos.
Enquanto a reproduo cinematogrfica da
histria permanecer em grande parte semelhante
reproduo burlesca de Sacha Guitry, algum
poder ouvir Robespierre dizer, antes de sua
execuo: Apesar de tantos julgamentos, a minha
experincia e a grandeza de minha tarefa me
convence que tudo est bem. Se neste caso uma
apropriada reutilizao de uma tragdia grega nos
permite exaltar Robespierre, podemos imaginar
uma sequncia tipo neorrealista, no balco de um
bar de beira de estrada para caminhoneiros, por
exemplo, com um motorista de caminho dizendo
seriamente para outro: Antigamente a tica se
restringia formalmente aos livros dos filsofos;
ns a introduzimos no governo das naes.
Percebe-se que esta justaposio elucida
a ideia de Maximilien, a ideia de uma
ditadura do proletariado
v
.
A luz do deturnamento propaga-se em linha reta.
medida que a nova arquitetura parece ter
comeado com uma fase barroca experimental, o
complexo arquitetnico que concebemos como
a construo de um ambiente dinmico
relacionado a estilos de comportamento
provavelmente deturnar as formas
arquitetnicas existentes, e em todo caso far um
uso plstico e emocional de todos os tipos de
objetos deturnados: arranjos cuidadosos de
coisas como guindastes ou andaimes de metal
substituiro uma tradio escultural defunta. Isto
choca apenas os mais fanticos admiradores dos
jardins estilo francs.
Comenta-se que em sua velhice DAnnunzio,
aquele suno pr-fascista, mantinha a proa de um
barco torpedeiro em seu parque. Sem considerar
seus motivos patriticos, a ideia de tal
monumento no est isenta de um certo charme.
Se o deturnamento fosse estendido a realizaes
urbansticas, no seriam poucas as pessoas que
seriam afetadas pela exata reconstruo em uma
cidade de um bairro inteiro em outro. A vida
nunca pode estar demasiado desorientada: o
deturnamento neste nvel realmente a faria bela.
Os prprios ttulos, como vimos anteriormente,
so um elemento bsico no deturnamento. Isto
resulta de duas observaes gerais: que todos os
ttulos so intercambiveis e que eles tm uma
importncia decisiva em vrios gneros.
Todas as histrias de detetive Srie Noir
so extremamente semelhantes, contudo
basta simplesmente mudar continuamente
os ttulos para garantir uma considervel
audincia. Na msica um ttulo sempre exerce
uma grande influncia, contudo a escolha
bem arbitrria. Assim no seria uma m
ideia fazer uma correo final ao nome
Sinfonia Heroica mudando-a, por exemplo,
para Sinfonia Lnin
vi
.
O ttulo contribui fortemente no deturnamento de
uma obra, mas h uma inevitvel ao contrria
obra no ttulo. Assim pode-se fazer extenso uso
de ttulos especficos retirados de publicaes
cientficas (Biologia Litoral dos Mares
Temperados) ou militares (Combate Noturno de
Pequenas Unidades de Infantaria), ou at ou at
mesmo de muitas frases encontradas nos livros
ilustrados infantis (Paisagens Maravilhosas
Cumprimentam os Passageiros).
Para encerrar, mencionaremos rapidamente
alguns aspectos do que chamamos de
ultradeturnamento, quer dizer, as tendncias para
um deturnamento que atue na vida social
cotidiana. Pode-se dar outros significados a gestos
e palavras, e isto tem sido feito ao longo da
histria por vrias razes prticas. As sociedades
secretas de China antiga fizeram uso de tcnicas
bem sutis de sinalizao que abrangiam a maior
parte do comportamento social (a maneira de
organizar xcaras; de beber; de declamar poemas
interrompendo-os em determinados pontos).
A necessidade de um idioma secreto, de
contrassenhas, inseparvel de qualquer
tendncia em jogo. No final das contas,
qualquer sinalizao ou palavra suscetvel
de ser convertida em qualquer outra coisa,
at mesmo em seu contrrio.
Os insurgentes monarquistas do Vende, por
conduzirem a asquerosa imagem do Sagrado
Corao de Jesus, foram chamados de Exrcito
Vermelho. No domnio limitado do vocabulrio
poltico de guerra esta expresso foi
completamente deturnada durante um sculo.
Fora da linguagem, possvel usar os mesmos
mtodos para deturnar roupas, com todas
suas fortes conotaes emocionais. Aqui
novamente encontramos a noo de disfarce
que inerente ao jogo.
Finalmente, quando alcanamos fase de
construir situaes a meta ltima de toda nossa
atividade todo mundo ser livre para deturnar
situaes inteiras mudando deliberadamente esta
ou aquela condio que as determina.
No apresentamos estes mtodos brevemente
expostos aqui como algo inventado por ns, mas
como uma prtica geralmente difundida a qual
nos propomos sistematizar.
Em si mesma, a teoria do deturnamento bem
pouco nos interessa. Contudo achamos que ela
est ligada quase todos os aspectos construtivos
do perodo pr-situacionista da transio. Assim
seu enriquecimento, pela prtica, parece
necessrio. Futuramente prosseguiremos no
desenvolvimento dessas teses.
GUYDEBORD E GILWOLMAN, 1956
Notas
i A traduo para o portugus desse texto foi feita por Railton Sousa Guedes, do Arquivo Situacionista Brasileiro/Projeto Periferia, publicada pela primeira vez no Rizoma.net (j no mais disponvel) e revisada por ns. A traduo a partir do texto em
ingls de Ken Knabb, que, por sua vez, traduziu do francs original. Ou seja, estamos falando mais de uma outra edio do que propriamente de uma traduo.
ii A palavra francesa dtournement significa desvio, diverso, reencaminhamento, distoro, abuso, malversao, sequestro, ou virar ao contrrio do curso ou propsito normal. s vezes traduzida como diverso, mas esta palavra gera confuso por
causa de seu significado mais comum como entretenimento inativo. Como a maioria das outras pessoas que de fato pratica o deturnamento, eu simplesmente preferi aportuguesar a palavra francesa. (Nota do Tradutor). Nota do BaixaCultura:
Optamos pelo uso de deturnamento em vez de deturnao.
iiiAmetagrafia foi uma tcnica de colagem grfica inventada pelo romeno Isidore Isou e adotada pelo movimento do letrismo, que inspirou os situacionistas como uma prtica adequada a aplicao do deturnamento. Debord e Wolman tratam o cinema
como a rea onde o deturnamento pode atingir sua maior efetividade e beleza, j que os poderes do filme so to extensos, e a ausncia de coordenao desses poderes to evidente, que virtualmente qualquer filme que esteja acima da miservel
mediocridade prov tema para infinitas polmicas entre espectadores ou crticos profissionais (Nota do Rizoma).
iv Os autores esto deturnando uma sentena do Manifesto Comunista: O baixo preo das mercadorias da burguesia foi a artilharia pesada que derrubou todas as muralhas da China, que forou a capitulao do intenso, obstinado e brbaro dio aos
estrangeiros (NT).
vNa primeira cena imagina-se uma frase de uma tragdia grega (Oedipus em Colonus de Sfocles) sendo colocada na boca de Maximilien Robespierre, lder da Revoluo francesa. Na segunda, uma frase de Robespierre sendo colocada na boca de um
motorista de caminho (NT).
vi Beethoven originalmente nomeou sua terceira sinfonia em homenagem a Napoleo (tido como defensor da Revoluo Francesa), mas quando Napoleo coroou a si mesmo como imperador o compositor rasgou furiosamente tal dedicatria
renomeando-a como Heroica. A aluso a Lenin nesta passagem (como eventualmente mencionado em estados operrios no Relatrio na Construo de Situaes de Debord) um vestgio de um vago anarco-trotskyismo nos primitivos letristas,
em um perodo politicamente menos sofisticado (NT).