zan & nobre_a morte e a morte da canção (revista trópico)

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Assine 0800 703 3000 SAC Bate-papo E-mail E-mail Grátis Shopping BUSCAR versão para impressão e leitura direita a.r.t.e. audiovisual cosmópolis dossiê em obras ensaio entrevista estante livros novo mundo política prosa.poesia três palavras busca nos arquivos a.r.t.e. MÚSICA BRASILEIRA A morte e a morte da canção Por Coletivo MPB É preciso compreender a segmentação do mercado para pensar o futuro da música popular brasileira Há títulos que são muito maiores do que os textos que encabeçam. Quando isso acontece, em geral coloca-se nele a palavra “Manifesto”. Com isso, quer se dizer que o texto não se basta, que ele precisa da ação para ganhar seu verdadeiro sentido. Este é um texto cujo título o excede de muito. Mas não tem a força e o ímpeto de um manifesto. Tem unicamente a motivação de quem se encheu do papo de ficar procurando substituta para a Elis, da ladainha de que o Chico acabou como compositor e não tem herdeiro e por aí vai. Vamos falar sério então: a canção acabou? Como o Quincas Berro D’Água de Jorge Amado, a canção morreu duas vezes. E com um intervalo de 40 anos. A primeira morte foi política. A ditadura militar deixou bem claro em 1964 que o suave sonho bossa-novista tinha acabado e que a canção engajada do Centro Popular de Cultura, o CPC, não tinha mais lugar. Que fizeram naquele momento? Já em 1964, no famoso “Show Opinião”, a “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas” ganhava um sentido inteiramente novo ao entoar: “E, no entanto, é preciso cantar”. Logo no ano seguinte, em 1965, a saudosa “Revista da Civilização Brasileira” chamou vários músicos, compositores e estudiosos para um debate sobre alternativas. Estavam presentes, entre outros, Caetano, Capinam, Tinhorão e Nara Leão. Diante do fechamento do CPC e da repressão política em geral, os participantes do debate viram como alternativa mais promissora para a sobrevivência da canção a ocupação de espaços na indústria cultural. E o momento era mais que propício: o surgimento da vitrola portátil provocou uma expansão acelerada do mercado de discos e a TV era uma novidade cheia de brechas para a invenção e a intervenção. Aquela decisão política de intervenção em um momento de rearticulação da indústria cultural brasileira foi decisiva e cheia de conseqüências. Como observou argutamente Roberto Schwarz em um texto de 1970, o Brasil viveu naquela segunda metade da década de 1960 a situação curiosa de uma hegemonia política da direita armada e de uma hegemonia cultural da esquerda. E muito dessa hegemonia cultural se deve justamente à decisão de participar do processo de moldagem da nova fase da indústria cultural brasileira. Aqueles artistas que participaram desse processo conseguiram o que nenhum outro depois deles: fazer a canção falar para todo mundo. A herança mais positiva desse momento é uma lição para nós hoje: Chico, Caetano, Gil e Jobim -para permanecer no cânone- criavam praticamente “de dentro” da indústria cultural, mostrando que o 1 Trópico - A morte e a morte da canção http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2691,1.shl 1 de 3 28/12/2014 10:00

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A morte e a morte da canção. (Sobre a discussão do fim da canção).

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    verso para impressoe leitura direita

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    livros

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    poltica

    prosa.poesia

    trs palavras

    busca

    nos arquivos

    a.r.t.e.MSICA BRASILEIRA

    A morte e a morte da canoPor Coletivo MPB

    preciso compreender a segmentao do mercado para pensar o futuroda msica popular brasileira

    H ttulos que so muito maiores do que os textos que encabeam.Quando isso acontece, em geral coloca-se nele a palavra Manifesto.Com isso, quer se dizer que o texto no se basta, que ele precisa daao para ganhar seu verdadeiro sentido.

    Este um texto cujo ttulo o excede de muito. Mas no tem a forae o mpeto de um manifesto. Tem unicamente a motivao de quemse encheu do papo de ficar procurando substituta para a Elis, daladainha de que o Chico acabou como compositor e no tem herdeiroe por a vai. Vamos falar srio ento: a cano acabou?

    Como o Quincas Berro Dgua de Jorge Amado, a cano morreuduas vezes. E com um intervalo de 40 anos. A primeira morte foipoltica. A ditadura militar deixou bem claro em 1964 que o suavesonho bossa-novista tinha acabado e que a cano engajada doCentro Popular de Cultura, o CPC, no tinha mais lugar.

    Que fizeram naquele momento? J em 1964, no famoso ShowOpinio, a Marcha da Quarta-Feira de Cinzas ganhava um sentidointeiramente novo ao entoar: E, no entanto, preciso cantar. Logono ano seguinte, em 1965, a saudosa Revista da Civil izaoBrasileira chamou vrios msicos, compositores e estudiosos paraum debate sobre alternativas. Estavam presentes, entre outros,Caetano, Capinam, Tinhoro e Nara Leo.

    Diante do fechamento do CPC e da represso poltica em geral, osparticipantes do debate viram como alternativa mais promissora paraa sobrevivncia da cano a ocupao de espaos na indstriacultural. E o momento era mais que propcio: o surgimento da vitrolaporttil provocou uma expanso acelerada do mercado de discos e aTV era uma novidade cheia de brechas para a inveno e ainterveno.

    Aquela deciso poltica de interveno em um momento derearticulao da indstria cultural brasileira foi decisiva e cheia deconseqncias. Como observou argutamente Roberto Schwarz em umtexto de 1970, o Brasil viveu naquela segunda metade da dcada de1960 a situao curiosa de uma hegemonia poltica da direita armadae de uma hegemonia cultural da esquerda. E muito dessa hegemoniacultural se deve justamente deciso de participar do processo demoldagem da nova fase da indstria cultural brasileira.

    Aqueles artistas que participaram desse processo conseguiram o quenenhum outro depois deles: fazer a cano falar para todo mundo.

    A herana mais positiva desse momento uma lio para ns hoje:Chico, Caetano, Gil e Jobim -para permanecer no cnone- criavampraticamente de dentro da indstria cultural, mostrando que o

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  • Luz nas trevas

    Paisagens crticas

    Saudades do serto

    Ianommis pem a

    Amaznia na pera

    A fascinao dos castrati

    est de volta

    O lugar de Gilberto Gil

    Bossa dissonante

    Humor sem humilhao

    O tempo do design

    A matria dos sonhos

    Um crtico no transatlntico

    Nonsense para crianas

    O violo popular sem

    nostalgia

    A discpula argentina de

    Scorsese

    Na trilha da histria

    Minha casa, meu teatro

    Entre o serto e o abismo

    Roberto Carlos, o redentor

    As rugas malditas

    O estranho jogo jogado

    com os ps

    A operista multimdia

    O lugar do tecnobrega

    Yeah, we have Broadway

    Crtica musical da melancolia

    Voz e vida de Lotte Lenya

    Corpo presente

    A MPB esquecida

    A irrelevncia da msica

    Contra o relativismo

    Novos ricos da msica

    prxima

    elevado padro brasileiro de elaborao de canes no eraincompatvel com os meios de comunicao de massa. Essa uniojamais se refez.

    A segunda morte da cano aconteceu quarenta anos depois e foi,aparentemente, de morte morrida. O legista a dar o laudo -ou aquesto para pensar- foi nada menos que Chico Buarque, em umaentrevista Folha de S. Paulo, de dezembro de 2004. verdadeque seu laudo foi menos peremptrio do que o de Tinhoro, que jhavia dito coisa semelhante em uma entrevista tambm Folha deS. Paulo, de agosto do mesmo ano. Mas morte morte.

    Entre as duas mortes est justamente a consolidao da indstriacultural brasileira, como sistema integrado de indstria fonogrfica,rdio, TV e jornal. Contudo, poesia cantada passou a no combinarmais com a face cada vez mais banal da indstria das mdias. O quese valorizou de um certo momento em diante era a anttese do quehavia at ento: se veicularia principalmente canes feitas para oesquecimento. O resultado foi devastador.

    A pergunta ento inevitvel: ser que o que morreu no foi acano tal como inventada nos ltimos 40 anos? Mesmo umhistoriador amador pode constatar as reaes violentas s estripuliasda gerao de Nara, reaes que vinham sempre acompanhadasjustamente de um a cano acabou ou algo semelhante.

    No se trata de maneira alguma de minimizar a importncia dessanova morte da cano. Basta lembrar que um dos seus sentidos maisimportantes justamente a perda da referncia de um ideal coletivode transformao do pas.

    Se entendermos a segunda morte nesse quadro, talvez o destaquedado por Chico ao rap na entrevista j mencionada surja sob novaluz. O que Chico poderia estar querendo dizer que o rap -enquantocrtica sociomusical e nova forma da cano, talvez sua substituta,como ele parece acreditar- seria capaz de responder de tal modo aosdesafios da atual realidade social a ponto de fazer com que mesmosuas msicas mais crticas compostas na poca da represso polticasoem ingnuas hoje.

    Entretanto, ao contrrio do que se passa atualmente com o rap, afigura da cano agora em crise estava orientada -entre muitasoutras coisas, certamente- tambm por uma espcie de grandeconsenso de fundo que se costumou chamar de nacional-desenvolvimentismo, o projeto de promover um desenvolvimentoeconmico o quanto possvel autnomo, fundado na criao de ummercado interno de importncia, capaz de mitigar e eventualmentesuperar a condio de completa dependncia que caracteriza um pascuja economia est fundada simplesmente na exportao de bensprimrios. Com isso, tambm seria possvel alcanar a independnciacultural que permitiria fazer emergir um pas autntico.

    Esse projeto se esgotou e fazer poltica transformadora hoje exigeoutros e novos caminhos e projetos. No fundo, muito do discursosobre a morte da cano est l igado a isso. Mas no s.

    preciso ver que tambm a indstria cultural brasileira mudou, queo mercado fonogrfico mudou. E a cano continua sendo uma formamuito importante de expressar essas duas novas situaes: a perdade um referencial coletivo de transformao; e a prpriatransformao do que se entende por cultura no Brasil.

    Uma coisa pelo menos certa: a cano deixou de falar para todomundo. Esse padro estabelecido pela gerao de Chico hojeinalcanvel. Mas o curioso no isso. O curioso que no sepercebe nem considera que a cano fala para muita gente.

    Por um lado, no preciso lembrar iniciativas de ordens e

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    propores to diversas como o Clube Caiubi em So Paulo, oSongbook no Rio e o prprio prmio Visa. No preciso dizer queindependente deixou de ser sinnimo de precariedade eimprovisao, como lembrou Lobo em uma entrevista recente revista Bravo.

    Por outro lado, contudo, uma poro considervel da canoproduzida e apresentada sobrevive em funo de iniciativas quepermanecem individuais. Compositores e intrpretes constroem seusprprios circuitos, desde a gravao e distribuio de CDs at asapresentaes e a consolidao de um pblico. Evitando a lgica dagrande indstria fonogrfica, mas sem uma organizao propriamentedita, muitas dessas iniciativas esgotam suas energias devido aoisolamento.

    O que preciso lembrar que a consolidao da indstria culturalbrasileira trouxe com ela uma segmentao do mercado que nopode ser evitada. Ainda mais, essa segmentao levou a umasegregao por parte dos setores dominantes da indstria daquelaparcela da MPB comprometida com a conservao e renovao datradio da cano.

    De modo que o problema hoje no de atestado de bito, mas decompreender o que significa essa segmentao e como possvelencontrar, na sua lgica, as brechas para intervir. E, como em 1965,essa uma deciso poltica, que exige muita conversa e organizao.O melhor comeo para isso talvez seja mesmo convidar osinteressados para um debate. Este artigo este convite.

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    Coletivo MPB

    um ajuntamento para ver no que vai dar. Atualmente, composto por JosRoberto Zan (professor de sociologia da msica industrializada na Unicamp),Marcos Nobre (professor de f ilosofia na Unicamp), Henry Burnett (compositore ps-doutorando na USP) e Rrion Soares Melo (msico, compositor edoutorando em f ilosofia na USP).

    Trpico - A morte e a morte da cano http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2691,1.shl

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