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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E
NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL.
04 a 07 de setembro de 2012
UFPI, Teresina-PI
Grupo de Trabalho: GT11 – Trabalho de campo e as
interfaces entre as Ciências Sociais e outros saberes
Título do artigo: “Ensaio sobre a cegueira”: em que a
pesquisa de campo pode contribuir com o Direito?
Autora:
Luciana Nogueira Nóbrega
(Fundação Nacional do Índio)
Co-autora:
Martha Priscylla Monteiro Joca Martins
(Faculdade Christus)
“ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA”1: EM QUE A PESQUISA DE CAMPO PODE
CONTRIBUIR COM O DIREITO?
Luciana Nogueira Nóbrega∗∗∗∗
Priscylla Joca∗∗∗∗∗∗∗∗
1 INTRODUÇÃO
Um dos principais ensinamentos aprendidos durante o nosso mestrado foi a
importância de um pesquisador das ciências humanas apresentar o lugar de onde fala e
os caminhos que percorreu na construção do seu objeto de estudo. Nessa área do
conhecimento, não há aspiração por verdade absoluta. O que se busca construir são
investigações e análises que só foram possíveis porque o pesquisador tem uma história
de encontros e desencontros com o objeto (ou com os sujeitos que são os seus
interlocutores), o que chamamos de lugar de fala, e também porque fez escolhas entre
caminhos, dentre infinitas possibilidades, que o levaram a reencontrar e a reconstruir o
objeto de análise.
É a conjugação entre esse lugar da fala e dos caminhos percorridos que torna o
estudo, muitas vezes, único, sendo a descrição desses elementos imprescindível para
possibilitar as críticas e questionamentos, além de revisões posteriores.
Embora tal perspectiva possa parecer estranha aos estudos jurídicos, que tem,
assim como as leis, uma pretensão de universalidade, entendemos que ela é
plenamente aplicável a esses estudos. Talvez tenha sido a interpretação ao extremo do
Direito como uma ciência autônoma e, portanto, não sujeita às influências dos demais
ramos do conhecimento, que levaram à compreensão de uma desnecessidade de
apresentação do lugar de fala e dos caminhos percorridos pelos pesquisadores do
Direito, consolidando, assim, a percepção de que esses elementos seriam
dispensáveis, já que o conhecimento construído era universal porque baseado em leis,
1 Título inspirado na obra de José Saramago (1995). ∗ Autora. Mestra em Direito pela Universidade Federal do Ceará, tendo defendido, em 2011, dissertação com o título: “Anna Pata, Anna Yan – Nossa terra, nossa Mãe: a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os direitos territoriais indígenas no Brasil em julgamento”. ∗∗ Coautora. Mestra em Direito pela Universidade Federal do Ceará, tendo defendido dissertação com o título: “Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno do Direito à Terra e ao Território em Meio Rural no Ceará” (2009-2011).
em decisões judiciais e em estudos e teorias construídos por outros juristas, limitando-
se, muitas vezes, a uma mera revisão bibliográfica.
Compreendendo que uma pesquisa tece-se em diversos encontros, desde os
primeiros momentos da apresentação inicial do objeto à fase de execução, a história
que narramos neste artigo fala de (re)encontros e descobertas que permearam a
realização das pesquisas de dissertação de mestrado intituladas “Direito(s) e(m)
Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em
torno do Direito à Terra e ao Território em Meio Rural no Ceará” (2009-2011) e “Anna
Pata, Anna Yan – Nossa terra, nossa Mãe: a demarcação da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol e os direitos territoriais indígenas no Brasil em julgamento”, vinculadas ao
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará, realizadas
pelas autoras do presente artigo.
Partindo de um esforço de realizar uma reflexão sobre nossas próprias
escolhas metodológicas, que buscavam superar a lógica técnico-formal do Direito,
tomando-as como objeto de estudo, discutimos, no presente artigo, a produção do
conhecimento no Direito, tendo como pano de fundo os múltiplos sentidos e
possibilidades do chamado “trabalho de campo”.
2 CONSTRUINDO UM OLHAR SOBRE A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR E OS
MOVIMENTOS SOCIAIS2; 3
As histórias aqui contadas falam de experiências vividas e conhecimentos
apreendidos. Compreender os passos percorridos por outros(as) pesquisadores(as),
longe de constituir o traçado de um mapa a ser percorrido, pode levar a reflexões e
percepções que compõem percursos de nossos próprios caminhos.
No primeiro semestre da graduação (1998), ao ouvir uma professora falar em
“Direito Humanitário”, a pesquisadora perguntou, daquele jeito que só um(a) iniciante é
capaz: “como faço para trabalhar com esse Direito?”. Confessando que não foi 2 Relato de pesquisa tecido por Priscylla Joca, com base na pesquisa de dissertação de mestrado “Direito(s) e(m) Movimento(s): Assessoria Jurídica Popular a Movimentos Populares Organizados em torno do Direito à Terra e ao Território em Meio Rural no Ceará” (2009-2011). 3 As ideias esboçadas neste capítulo encontram-se também registradas em JOCA, Priscylla. “Ensaio sobre a cegueira”: em que a pesquisa de campo pode contribuir com o Direito? In: MAIA, Gretha Leite; TEIXEIRA, Zaneir Gonçalves (orgs.). Ensino Jurídico: os desafios da compreensão do Direito. Fortaleza: Faculdade Christus, 2012, p. 391-404.
apreendido parte dos conceitos apresentados na resposta da professora, à época; uma
palavra ficou gravada: CAJU. E esse foi apenas o início da busca pelo encontro.
No segundo semestre (1999), a pesquisadora cursou a capacitação em Direitos
Humanos e Assessoria Jurídica Popular realizada pelo Centro de Assessoria Jurídica
Popular Universitária (CAJU4). Após a capacitação, incorporou-se ao CAJU (1999-
2002). E a poesia do encontro se deu5.
A identidade no Direito da pesquisadora fez-se nas malhas da Assessoria
Jurídica Popular (AJP) e a busca por vias de concretização de direitos humanos foi o
que ocupou seus esforços de diálogo(s) crítico(s) com a teoria e a prática jurídica.
No decurso da graduação, a pesquisadora envolveu-se em alguns estágios6,
cujas experiências fizeram-lhe vivenciar outras formas de atuação jurídica, as quais se
utilizavam da via judicial como apenas mais um meio de concretização de direitos,
compreendendo a educação em direitos e a atuação jurídico-política como outros
caminhos possíveis e necessários na busca por essa concretização.
Após graduar-se, diversas experiências profissionais de assessoria jurídica
ligada a Direitos Humanos levaram-lhe a perceber que ainda buscava a resposta às
perguntas teimosas e renitentes em suas ideias/ideais: “o que concebemos como
Direito pode ser um campo fértil a real concretização de Direitos Humanos e
Fundamentais?”. Aproximava-se o reencontro.
Dúvidas em mente, no primeiro semestre do mestrado, o objeto desta pesquisa
começou a ser esboçado. Inseriu-se no Grupo de Estudos e Pesquisas sobre o
4 Projeto de Extensão formalmente vinculado à Universidade Federal do Ceará, desde o ano de 1998, hoje sob a orientação do Prof. Marcio Pereira, cujo propósito é o de buscar, por meio da Assessoria Jurídica Popular Universitária, atuar na educação em direitos humanos junto a movimentos sociais, utilizando-se da Educação Popular com aporte teórico em Paulo Freire. 5 “Porque sou humano e creio no divino da palavra, pra mim é um oráculo a poesia! É meu tarô, meu baralho, meu tricot, meu i ching, meu dicionário, meu cristal clarividente, meus búzios, meu copo d'água, meu conselho, meu colo de avô, a explicação ambulante para tudo o que pulsa e arde. A poesia é síntese filosófica, fonte de sabedoria, e bíblia dos que, como eu, creem na eternidade do verbo, na ressurreição da tarde e na vida bela” (LUCINDA, Elisa. A Fúria da Beleza. In: LUCINDA, Elisa; ALVES, Rubem. A Poesia do Encontro. Campina: Papirus 7 Mares, 2008). 6 Na Organização não Governamental (ONG) Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE) (2000-2003), como educadora em Direitos Humanos na ONG Comunicação e Cultura (2000) e no Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA) (2001).
pensamento de Boaventura de Sousa Santos no Ceará7 (2009), onde encontrou aporte
teórico inicial para delinear o objeto de investigação de pesquisa de dissertação.
Este autor elabora chaves analítico-conceituais com base em estudos empíricos
acerca das práticas e das demandas sociais sobre temas diversos. Além da riqueza
conceitual do pensamento de Santos, sua permanente (re)significação, sua tessitura
não encastelada e a perene (re)definição de seus conceitos com base em suas
pesquisas permitem a esse autor constituir suas reflexões conectadas a múltipla(s)
experiência(s) humana(s). Em relação ao campo do Direito, formula uma “sociologia
jurídica das emancipações”8, ao tecer uma rede de percepções políticas, jurídicas e
sociais diversas que se interligam, formando uma teia de conceitos fundantes de seu
pensamento jurídico crítico9.
Suas ideias impeliram-lhe a realizar pesquisa bibliográfica e de campo no
Direito, a fim de tornar presentes e emergentes práxis10 jurídicas e significados de
Direito(s) gestados em lutas sociais contra hegemônicos ao Direito Moderno Estatal e
constituíram lentes com as quais a pesquisadora passou a olhar a pesquisa de
dissertação, no decorrer de todo o seu desenvolvimento.
Eis que, em meados de 2009, a pesquisadora procurou a Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Populares (RENAP-CE), apresentando-lhes as ideias iniciais
do que viria a ser esta pesquisa. “Tornei a achar-te quando te encontrei”11. E o
reencontro se fez. No decurso das primeiras investigações bibliográficas e vivências
de campo o objeto foi, assim, aclarando-se, apresentando-se como a investigação
7 Sob a coordenação da Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho, da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará. 8 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 60-66. 9 Para maior aprofundamento vide: SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000; e SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 97-119. 10 A nossa compreensão sobre o significado de práxis inspira-se nas seguintes elaborações teóricas: “[...] a práxis [é compreendida] como atividade material humana, transformadora do mundo e do próprio homem. Essa atividade real, objetiva, é, ao mesmo tempo, ideal, subjetiva e consciente. Por isso insistimos na unidade entre teoria e prática, unidade que implica também em certa distinção e relativa autonomia. A práxis não tem para nós um âmbito tão amplo que possa inclusive englobar a atividade teórica em si, nem tão limitada que se reduza a uma atividade meramente material”. (VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. CARDOSO, Luiz Fernando (Trad.). Filosofia da Práxis. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 405).. 11 Trecho do poema “Quando te vi amei-te já muito antes”, de Fernando Pessoa. Disponível em <http://caleidoscopicamente-cleo.blogspot.com/2008/07/quando-te-vi-amei-te-j-muito-antes.html>. Acesso em 13 mar. 2011.
sobre a práxis de advogados(as) populares ligados a RENAP-CE junto a movimentos
populares organizados em torno do direito a terra e ao território, tal qual o borrão de
uma ideia em seu início.
Esses movimentos, em suas demandas, pedem aplicações e interpretações
contra- hegemônicas ao Direito Estatal, emergem direitos insurgentes, ressignificam
direitos e resistem em torno de necessidades e interesses constituídos e reconhecidos
nesses grupos, levando ao reconhecimento de novos direitos estatais ou do pluralismo
jurídico. Esse quadro espelha a pluralidade étnica12, a multiculturalidade13 e as
desigualdades sociais e econômicas brasileiras que tencionam por uma equidade
social-ambiental-territorial.
Outras forças sociais organizam-se pela manutenção da propriedade
exclusivista, cartorária, individualizada e insustentável em sua produção e na extração
de recursos naturais. Nessa diversidade de demandas, tensões e espaços agem
os(as) advogados(as) populares que assessoram esses movimentos, constituindo
práxis jurídicas que possam viabilizar e concretizar as demandas desses movimentos.
Investigar, pois, a práxis da Assessoria Jurídica Popular junto a esses
movimentos passa por compreender: o que os movimentos populares significam como
direito(s), em suas resistências e reivindicações, em torno da luta pela terra e pelo
território; como os(as) advogados(as) percebem essas direitos e com estes dialogam;
12 Na compreensão de etnicidade inspiramo-nos em João Pacheco de Oliveira, para quem “a etnicidade supõe necessariamente uma trajetória (histórica e determinada por múltiplos fatores) e uma origem (uma experiência primária, individual, mas que também está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem se acoplar). O que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade”. (OLIVEIRA, João Pacheco de (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2. ed. Rio de Janeiro: Contra Capa/LACED, 2004, p.32; 33).. 13 O termo “multicultural” pretende caracterizar a multiplicidade de populações, em sua diversidade cultural, que estão organizadas pelo direito à terra e ao território no Ceará e no Brasil. Não para apenas reconhecer essa multiplicidade e corrermos, talvez, o risco de olhá-las como isoladas em suas lutas e localidades, reafirmando a cultura etnocêntrica hegemônica como única generalizante. E sim para reafirmá-las como diversos modos de existência humana, cada qual em permanente ressignificação em sua historicidade e em contatos com múltiplas culturas em determinados contextos sócio-políticos. Essa multiplicidade pode adquirir sentidos contra hegemônicos na construção de modos de se contrapor (e propor alternativas) ao sistema do capital hibridizado às dimensões colonial/patriarcal/racista/antropocêntrica das violências humanas. Para tanto, uma cultura não pode ser tornada como a única referência sobre as demais. Nasce, assim, o desafio de se pensar, dentre outras possibilidades, em se constituir concepções interculturais de direitos humanos para aprender a conviver com a diversidade e a construir em meio à diversidade. (Aqui, inspiramo-nos em SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 137-163; e SANTOS, Boaventura de Sousa. AÑÓN, Carlos Lema (Trad.). Sociología Jurídica Crítica: Para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: TROTTA, 2009, p. 509-541).
como se constituem as demandas jurídicas por meio do(s) encontro(s) entre
movimentos e advogados(as); e como a Assessoria Jurídica Popular, em meio a essas
tessituras de resistências, reivindicações, demandas e lutas se faz como práxis para, ao
final, refletir sobre suas potencialidades, limites e contradições no contexto de lutas pelo
direito à terra e ao território.
Tal delimitação, nascida de pré-compreensões e experiências acadêmicas e
profissionais, bem como de reflexões e estudos teóricos, ocorreu também em incursões
em campo vividas entre 2009 e 2010. Desse modo, a pesquisa de dissertação de
mestrado foi sendo gestada por muitos anos. As inquietações e reflexões que nela
aportaram vêm de espaços acadêmicos e não acadêmicos, e de grupos diversos, ainda
que interconectados14.
No decorrer dos primeiros estudos realizados para a feitura do projeto de
pesquisa de dissertação de Mestrado, inspirada, conforme o já explicitado, no
pensamento de Boaventura de Sousa Santos, a pesquisadora apercebeu-se da
necessidade de realizar tal investigação em campo, aliando-os à pesquisa bibliográfica.
Pressupôs, pela sua própria experiência na AJP, que a atuação desses(as)
advogados(as) constitui suas experiências cotidianas de assessoria aos movimentos
em uma permanente ressignificação teórica e prática. Portanto, a fim de melhor
compreender essa práxis na contemporaneidade, buscou vivenciá-la como
pesquisadora15, optando por acompanhar, entre março de 2010 e abril de 2011, quatro
assessores jurídicos populares da RENAP-CE ligados a movimentos organizados em
torno da luta pela terra e pelo território em meio rural no Ceará.
Os(as) advogados(as) foram escolhidos atentando-se para os critérios
seguintes: respeitando a paridade de gênero, optou por escolher dois homens e duas
14 “É melhor começar, creio, lembrando aos principiantes que os pensadores mais admiráveis dentro da comunidade intelectual [...] não separam seu trabalho de suas vidas. Encaram a ambos demasiado a sério para permitir tal dissociação, e desejam usar cada uma dessas coisas para o enriquecimento da outra”. (MILLS, C. Wright. DUTRA, Walstensir (trad.). A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 211-212). 15 A pesquisadora destaca, ainda, que se constituiu em um ponto de longas reflexões o questionamento sobre se se encontrava apta a realizar essa pesquisa, haja vista a sua identificação com a Assessoria Jurídica Popular. A consciência, no entanto, de que se apresentava a ela uma nova realidade na práxis jurídica dos(as) advogados(as) e a busca por determinados caminhos investigativos transmutaram essa identificação em obstáculo transponível na pesquisa, de um lado, e, de outro lado, em experiência valiosa na apreensão do objeto a ser pesquisado.
mulheres, todos(as) advindos(as) de projetos de extensão em AJP Universitária ligados
a REAJU16.
E, com o objetivo de compreender os fluxos comuns das lutas de resistências e
reivindicações em torno da terra e do território, escolheu esses(as) advogados(as)
também pela diversidade de movimentos assessorados por esses(as) em meio rural:
MST, Indígenas e Comunidades Tradicionais. Desde as primeiras incursões em campo,
realizou: entrevistas (não estruturadas, estruturadas e semi estruturadas, a depender
do contexto), observação participante, diálogos e escutas de histórias, poemas e
canções. Como pesquisadora, buscou não “falar sobre” ou encaixar o que viu e viveu
em pré-concepções acadêmicas, e sim “falar com” e praticar um encontro de saberes e
conhecimentos, acadêmicos e não acadêmicos17.
Utilizou diversos meios de registro: áudio (gravador), anotações (de entrevistas
e diário), filmagens e fotografias. Realizou também estudos por meio de sites e redes
de e-mails ligados aos movimentos populares, aos(às) advogados(as) populares, e à
temática apresentada nesta pesquisa, a fim de acessar informações comunicadas com
base no ponto de vista desses movimentos e advogados(as).
A busca por outros aportes nesta pesquisa tornaram-se ainda mais tangíveis
para a pesquisadora em consonância com o esforço por aprender a constituir um
racionalismo aberto e crítico, teorizado por Carvalho, o qual
[...] concebe a ciência como uma criação da razão crítica, em articulação com a imaginação e a sensibilidade, em resposta às interpelações da realidade, nas suas infinitas conexões de espaço e tempo. É a afirmação da ciência como realização criativa do racional, em sintonia vigilante às provocações do real, em sua diversidade e complexidade de experiências. Em verdade, é esta [perspectiva do Racionalismo Aberto e Crítico] uma produção epistemológica que afirma a natureza política da ciência, como uma prática que se institui e se
16 A REAJU é composta, hoje, pelos seguintes projetos: Centro de Assessoria Jurídica Universitária (CAJU) e Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária (NAJUC), ambos ligados à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC); Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU), ligado à Universidade de Fortaleza (UNIFOR); e o Programa de Assessoria Jurídica Estudantil (PAJE), ligado à Universidade Regional do Cariri (URCA). A REAJU é ligada à Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (RENAJU), fundada em 1996, e que conta hoje com vinte e três projetos de Assessoria Jurídica Universitária em todo o país. (Informação disponível em: <http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2010/01/noticias-da-renaju.html>. Acesso em 29 mai. 2010). 17 Durante a pesquisa, cada artigo escrito sobre o tema era publiscizado para os(as) advogados(as) pesquisados(as), e, em algumas ocasiões, eles(as) procuravam a pesquisadora e dialogavam sobre o que esta havia escrito, refletindo e problematizando acerca de algumas questões relativas à temática em estudo.
desenvolve na teia das relações sociais de um dado espaço, em um tempo histórico específico18.
Em seus percursos no campo investigativo, diversas experiências foram lhe
levando à compreensão da riqueza do fazer pesquisa. Caminhando por Curral Velho19,
ao ver de um lado o litoral e o mangue, do outro um grupo de mulheres fazendo renda
sentadas na calçada, as seguintes palavras de Alba Carvalho fizeram-se presentes:
[...] à semelhança da rendeira, o(a) pesquisador/pesquisadora joga ‘bilros’, portando, em uma mão, os da teoria e, na outra, os da empiria. E na perícia do saber e na arte do ofício, entrecruza teoria e empiria, em um movimento incessante da razão, da imaginação e da sensibilidade20.
Estas e outras vivências foram registradas no diário de pesquisa e ficaram
guardadas em sua memória. Na pesquisa, aprendeu a manter um diário, o qual,
transcendendo o relato dos dados observados, se assemelha mais ao arquivo proposto
por Wright Mills:
Nesse arquivo o estudioso, como artesão intelectual, tentará juntar o que está fazendo intelectualmente e o que está fazendo como pessoa. Não terá medo de usar sua experiência e relacioná-lo diretamente com os vários trabalhos em desenvolvimento. [...]. Mantendo um arquivo adequado, e com isso desenvolvendo hábitos de autorreflexão, aprendemos a manter nosso mundo interior desperto.21
Em toda a pesquisa, se dispôs, assim, a rendá22, compreendendo que o
conhecimento tecido perpassa quem conhece e que/quem se pretende conhecer.
Diversos fios entrelaçam-se entre o sujeito e o objeto em dinâmicas ressignificações
nas mútuas implicações entre os campos da teoria e da prática em meio a pré-
compreensões, tecendo conhecimentos.
18 CARVALHO, Alba Maria Pinho de. O exercício do ofício da pesquisa e desafio da construção metodológica. In: BAPTISTA, Maria Manuel (Edição). Cultura: metodologias e investigações. Lisboa: Ver O Verso, 2009, p. 125-129. 19 Comunidade de pescadores(as) e marisqueiras localizada na Praia de Arpoeiras, em Acaraú-Ceará, a qual vivencia conflitos socioambientais causados por fazendas de carcinicultura e é, por essa circunstância, assessorada juridicamente por um dos advogados populares partícipe da pesquisa de dissertação em análise. 20 CARVALHO, Alba Maria Pinho de. O exercício do ofício da pesquisa e desafio da construção metodológica. In: BAPTISTA, Maria Manuel (Edição). Cultura: metodologias e investigações. Lisboa: Ver O Verso. 2009, p. 133. 21 MILLS, C. Wright. DUTRA, Walstensir (trad.). A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 212-213. 22 “... Eu me considero rendeira, numa outra visão. [...] Ser rendeira para mim [...] é saber tecer, essa coisa do tecer é ter uma visão geral dos pontos [...] tem uma coisa de sentimento, [...] ser rendeira pra mim é isso, é tu aprender a tecer e tu ter essa história, esse continuar na história”. (Fala de uma rendeira em ZANELLA, Andréia Vieira; BALBINOT, Gabriela; PEREIRA, Renata Susan. A renda que enreda: Analisando o processo de constituir-se rendeira, p. 9; 14. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/es/v21n71/a11v2171.pdf>. Acesso em 21 abr. de 2011).
As pesquisas ínsitas ao Direito Moderno Estatal geralmente não buscam
dialogar com outros ramos do conhecimento, fazer problematizações conectadas a
questões sociais pulsantes, investigar acerca de objetos demandados pelas dinâmicas
e práticas sociais, e são constituídas com origem na normatização jurídica estatal, em
pensamentos pretensamente hegemônicos e na jurisprudência dita “dominante”23.
O pensamento hegemônico se apresenta como o único universalmente válido e
verdadeiro; e fundamenta/gera, em planos (in)conscientes e (i)materiais, relações
coloniais/capitalistas/racistas/patriarcais; convenientemente ignorando, subordinando e
inferiorizando as diversidades humanas. Quando utilizamos o termo contra hegemonia
atentamo-nos para os saberes, conhecimentos, práticas, experiências, linguagens,
expressões, práxis e movimentos contestatórios e transformadores (e, em alguns
casos, revolucionários) do hegemônico24.
Por isto, buscar um objeto de pesquisa além dos códigos e doutrina jurídicos
hegemonicamente aceitos tem-se revelado singularmente árduo e potencialmente fértil,
uma vez que está ancorada na busca de compreender sua práxis tomada como uma
dimensão instigante e necessária ao campo do Direito contemporâneo.
No decurso do processo de pesquisa a pesquisadora foi percebendo que as
experiências, reflexões e os diálogos fluídos nas atividades de campo e buscar
aprender, como pesquisadora, a deixar-se afetar25 constituíram conhecimentos e
visibilizaram-lhe saberes, experiências e práticas, os quais nenhuma palavra escrita
podia, por si, fazer-lhe conhecer... 23 O artigo 557 do Código de Processo Civil Brasileiro diz que: “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”. Interpreta-se este artigo no sentido de que as decisões reiteradas, a fim de serem consideradas como “dominantes”, devem advir do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. 24 Para ler sobre hegemonia e contra-hegemonia, ver em GRAMSCI, Antonio. COUTINHO, Carlos Nelson (edição e tradução); NOGUEIRA, Marco Aurélio e HENRIQUES, Luiz Sérgio (coedição.). Cadernos do cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; e GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989. 25 A dicção é utilizada, inspirada em Jeanne Favret-Saada, a qual diz: “meu trabalho sobre a feitiçaria no Bocage francês levou-me a reconsiderar a noção de afeto [...] primeiro, para apreender uma dimensão central do trabalho de campo (a modalidade de ser afetado) [...]. [...]. Afirmo [...] que ocupar tal lugar no sistema de feitiçaria não me informa nada sobre os afetos do outro; ocupar tal lugar afeta-me, quer dizer, mobiliza ou modifica meu próprio estoque de imagens, sem contudo instruir-me sobre aquele dos meus parceiros. Mas [...] o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada por ele abre uma comunicação específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de intencionalidade, e que pode ser verbal ou não”. (FAVRET-SAADA, Jeanne. SIQUEIRA, Paula (Trad). “Ser afetado”. Cadernos de Campo n°°°°13. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, 2005, p. 155,159).
Povos do Mangue, Povos Indígenas, Povos do Mar, Povos do Campo e outros
tantos dialogam com o Direito Moderno Estatal e com o discurso dos Direitos Humanos
da ordem internacional, provocando-lhes releituras e ressignificações com suporte em
realidades por essas populações vivenciadas, bem como constituem em suas relações
expressões que podem ser percebidas como relações de direito, e significados
atribuídos a Direito(s).
O ordenamento jurídico estatal se apresenta como um emaranhado de normas
jurídicas positivadas originadas em diversos grupos de interesse. Mesmo na
significância de Direito Moderno Estatal hegemonicamente posta, há também
contradições e conflitos por sentidos de interpretação e por instituição de normas
estatais. As disputas ocorrentes no campo do Direito hegemônico conectam-se às
disputas pelo que se significa como Direito(s). Daí a importância de se atentar não
apenas para as possibilidades que há no Direito Estatal de instrumentalização para
transformação social, mas também de se refletir sobre significados de Direito(s)
silenciados, a fim de, atentamente, ouvi-los falar, cantar e contar suas histórias.
Não se pode pretender falar pelo outro, pois toda visão sobre outrem parte de
uma perspectiva de alguém com a própria historicidade e pré-conceitos. Falar com em
vez de falar sobre, buscar ouvir e conhecer a realidade dessas populações a partir
delas pode ser uma chave essencial na busca da compreensão de outros significados
de direitos.
O Direito, com seu cunho generalista, busca sempre constituir normas gerais
que possam subsumir a realidade. Esta, contudo, é sempre mais rica do que qualquer
pré-compreensão e normatização específica. Reconhecer o Brasil como um país
pluriétnico e multicultural, onde há vários sentidos gestados em torno do Direito e de
direitos, nos incita à elaboração de culturas jurídicas que privilegiem essa pluralidade e,
nessa busca, o campo, como meio de compreensão da e diálogo com essas plurais
realidades, pode ser um espaço onde se teça um ensaio sobre o vislumbrar de Direitos
Humanos pluriétnicos e interculturais.
3 O QUE NÃO ESTÁ NOS AUTOS E ESTÁ NO MUNDO26: ANALISANDO OS
DISCURSOS E OS SABERES EM UM PROCESSO27
A dissertação intitulada “Anna Pata, Anna Yan” inicia com a preocupação de
apresentar o interesse da pesquisadora em escrever sobre a temática indígena e o
Direito, partindo da descrição da sua experiência pessoal de relação com os povos
indígenas, desde os primeiros anos do curso de graduação em Direito.
Ao circunscrever o lugar de fala, que vem apresentado e entretecido com
reflexões doutrinárias sobre o tema, houve a preocupação de deixar claro “as marcas
do encontro” entre a pesquisadora e as populações indígenas, marcas essas que
influenciariam sua produção científica. De modo a ilustrar esse encontro, citamos o
seguinte trecho da dissertação:
Devido ao trabalho desenvolvido no Observatório [de Direitos Indígenas], tive a oportunidade de conhecer a diversidade dos povos indígenas no Ceará (Tapeba, Pitaguary, Jenipapo-kanindé, Tremembé, Anacé, Tubiba-tapuia, Gavião, Kalabaça, Potiguara, Tabajara, Kanindé de Canindé, Kanindé de Aratuba e outros), suas principais reivindicações, o modo como se organizam, suas associações e instâncias representativas. Acompanhei reuniões, manifestações, rituais de toré. Bebi mocororó28 e balancei a maraca, dividi alegrias e lágrimas, fiz amigos e amigas, companheiros para uma vida. Ao som das músicas entoadas no toré, encantei-me29. A intensidade da vivência com os povos indígenas no Ceará e o partilhar de experiências me fizeram perceber que o movimento indígena tinha algo de novo
26 Reelaboração do brocardo jurídico: “o que não está nos autos, não está no mundo”. Embora esse brocardo esteja completamente superado, ele ainda informa o pensamento de muitos magistrados, advogados e outros sujeitos que atuam nos processos jurídicos. 27 Relato tecido por Luciana Nogueira Nóbrega, com base na pesquisa de dissertação de mestrado “Anna Pata, Anna Yan – Nossa terra, nossa Mãe: a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e os direitos territoriais indígenas no Brasil em julgamento” (2009-2011). 28 Mocororó é uma bebida feita a partir da fermentação do caju, servida durante os rituais de toré. 29 A pesquisadora esclarece que “o uso do termo ‘encantei-me’ tem um cunho proposital, pois retrata, além do sentido descrito no dicionário, a perpectiva de ter sido tocada pela compreensão cosmológica de muitos povos do Nordeste sobre a existência de encantados, que seriam entidades espirituais encontradas na natureza ou, ainda, antepassados que morreram na luta pela terra ou mesmo que não passaram pela experiência da morte. Estudando os Kiriri, na Bahia, Nascimento expõe a concepção deles, segundo a qual ‘Os encantos, encantados, mestres encantados, gentios ou caboquinhos são entidades sobre-naturais em princípio benéficas, que auxiliam os índios de diversos modos. Enfatiza-se sobremodo seu caráter de entidades ‘vivas’, isto é, que já são da natureza ou que, tendo sido humanos, não passaram pela experiência da morte, isto é, não são ‘espírito de morto’, que é ‘coisa de gente branco’, numa alusão ao espiritismo, umbanda, ou outros ‘trabalhos’ que não são ‘coisa de índio’, mas que eles conhecem ou têm notícia. Assim, alguns deles tiveram existência humana, foram antepassados que se teriam encantado, ido para o ‘reino dos encantados’, ou ‘juremá’, mas sem que tenham morrido.’ (NASCIMENTO, Marco Tromboni de S. Toré Kiriri: o sagrado e o étnico na reorganização coletiva de um povo. In: GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo (org.). Toré: regime encantado do índio do Nordeste. Recife: Fundaj, Editora Massangana, 2005, p. 43-44)”. Sobre a compreensão dos encantados para um povo indígena no Ceará, ler BRISSAC, Sérgio Góes Telles; NÓBREGA, Luciana Nogueira. Benzedeiras Anacé: a relevância dos ritos de cura na emergência étnica de um povo indígena do Ceará. In: 27a. Reunião Brasileira de Antropologia, 2010, Belém do Pará. Anais da 27a. Reunião Brasileira de Antropologia. Brasília, DF: Associação Brasileira de Antropologia, 2010.
para o Direito estatal. Algo de incomensurável, de intangível, não compreendido em um primeiro contato. Foram necessários alguns anos para que eu começasse a captar o sentido de suas demandas, o que significava para eles o direito à terra, o que significava direito ao desenvolvimento. Vivi situações que exemplificavam as teorias do pluralismo jurídico (reconhecimento de diversas fontes produtoras do Direito para além do Estado). Mas, além disso, como advogada do movimento indígena, deparei-me algumas vezes com a necessidade de realizar um exercício de tradução entre a demanda do povo indígena assessorado e as normas estatais e de direito internacional. Um exercício que exigia conhecer minimamente a complexidade cultural dos povos com os quais eu estava trabalhando. Os povos indígenas, na sua diversidade, propunham outra racionalidade, a qual chamo de jurídica, embora eles não a classifiquem desse modo nem distingam esse saber de outros necessários à vida concreta, como fazer a roça ou o toré. Tal racionalidade é fundada em um sentimento de pertença com o território; de co-responsabilização como outro e com que chamamos de meio ambiente, o que denota um continuum entre cultura e natureza; fundada em uma dignidade partilhada entre seres humanos e não humanos; em que todos são conhecedores das normas que regem a convivência. Mas como colocar essa outra racionalidade em uma petição, se a própria noção de um direito escrito, de uma sociedade de papéis, é exógena à maioria das sociedades indígenas?
No ano de 2009, a ação popular que tramitava no Supremo Tribunal Federal
(STF), sob o n. 338830, proposta por um senador da República para questionar a
demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, localizada no Estado de Roraima,
ganhou grande destaque na mídia, ante a decisão final da Corte Máxima brasileira,
chamando a atenção de muitos pesquisadores e apoiadores da luta dos povos
indígenas. O julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena pelo STF, que ocorreu
em março de 2009, embora tenha reconhecido a constitucionalidade da demarcação,
culminou com a edição de 19 (dezenove) condicionantes ao exercício dos direitos
indígenas reconhecidos na Constituição Federal de 1988. Ou seja, o Supremo Tribunal
Federal estabeleceu condições e parâmetros à demarcação de terras indígenas, as
quais valeriam não só para a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, criando, na
expressão do Ministro Menezes Direito, um “estatuto jurídico das terras indígenas no
Brasil”.
Diante disso, a ação passou a se constituir como objeto de estudo para a
pesquisadora, no desenvolvimento de sua dissertação de mestrado, questionando a
construção da decisão e suas implicações jurídicas para a demarcação de outras terras
30 Usaremos indistintamente os termos Ação Popular e Petição para referir-me ao processo que tramitou no STF acerca da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, sob o n. 3388, seguindo assim o que consta na dissertação em comento.
indígenas no Brasil. Para tanto, foi elaborado um plano de trabalho que envolvia ter
acesso ao Processo n. 3388/STF; fazer levantamento de outros processos judiciais e
administrativos que tratavam de demarcações de terras indígenas em que as
condicionantes haviam sido determinantes para implicar em decisões
favoráveis/desfavoráveis aos índios; realizar uma análise crítica dessas condicionantes,
a partir das suas implicações, na concretização dos direitos territoriais indígenas.
Durante o caminhar na execução desse plano de trabalho, a pesquisadora
percebeu que, para os povos indígenas, a ação era vista como uma vitória deles frente
ao agronegócio, a um modelo de desenvolvimento predatório, a uma negação da
identidade e dos direitos territoriais que a Constituição lhes havia reconhecido. Havia
um tom celebratório do julgamento, sentindo-se ela a única a questionar.
No entanto, seguiu em frente, viajando à Brasília para ter acesso aos mais de
cinquenta e sete volumes da ação (mais de dezessete mil páginas), oportunidade em
que constatou ser a questão muito mais complexa do que imaginava:
(...) a ação era o cume de uma pirâmide de outros processos que envolviam a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, estando assentada em uma pilha de papéis, em laudos e contra laudos periciais, e, acima de tudo, em mais de trinta anos de luta dos povos indígenas da Raposa Serra do Sol (Ingarikó, Patamona, Wapixana, Macuki, Taurepang) pela demarcação de um território contínuo. Diante disso, qualquer meia vitória, já seria uma vitória.
As angústias foram acirradas com a reflexão sobre o seu papel político como
pesquisadora: “como questionar as condicionantes e suas implicações sem deslegitimar
ou sem diminuir a vitória que esse julgamento representou para os povos indígenas da
Raposa Serra do Sol?”. Foi necessário uma imersão no campo de vivência dos sujeitos
dos quais o processo falava para orientar esse caminho de reflexão sobre o processo.
Assim, durante as comemorações de um ano do julgamento da Ação Popular n.
3388 (festa31 da “Vitória dos Netos de Makunaimî32”, Aldeia Maturuca, município de
Uiramutã), a pesquisadora esteve em Roraima, quando pode sentir que, embora o
julgamento tivesse ocorrido há um ano, os conflitos ainda permaneciam inscritos em 31 Para além das festas, conforme constava no convite, elaborado pelo Conselho Indígena de Roraima – CIR, e entregue aos participantes: “[...] o evento tem um significado importante, pois não se trata apenas de uma festa de comemoração, mas sim de um momento para relembrar e gravar na memória dos nossos povos a luta que tivemos para fazer valer os nossos direitos garantidos por Lei e, ainda, planejar o futuro dos povos indígenas que ali habitam”. 32 Makunaimî é uma figura central nas cosmologias e mitologias dos povos que habitam a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. É o herói criador, responsável pela vida no mundo. Suas peripécias deram origem, entre outras coisas, à paisagem, às formações rochosas na região e ao majestoso Monte Roraima, o berço da vida da humanidade.
muros e outdoors. Essa imersão no plano da vida e da vivência dos povos indígenas da
Raposa Serra do Sol, influenciando, mas superando o que era narrado nas páginas do
processo, permitiram à pesquisadora compreender melhor o seu campo de análise,
levando-a a crer na possibilidade de discutir o tema das condicionantes impostas na
Petição n. 3388, sem que isso implicasse em uma deslegitimação da luta dos povos da
Raposa Serra do Sol. Como afirma na dissertação:
após conhecer um pouquinho da realidade dos povos da Raposa Serra do Sol, uma coisa ficou clara: problematizar o processo e o julgamento não implica em diminuir a luta dos povos indígenas no Brasil. Não era para eles que eu tinha de olhar, mas para nós, os não índios. Era para o modo como nós decidimos a vida deles que era o problema.
Definido o estudo acerca das compreensões manifestadas em um processo que
tramitou na principal corte do país sobre o universo dos povos indígenas, a
pesquisadora buscou não só discutir o modo como os direitos indígenas eram
interpretados, mas também as visões de índios, os conceitos de terra e de
territorialidade, os diversos interesses em confronto e, principalmente, de que modo os
não índios decidem os direitos dos povos indígenas, havendo, não raras vezes,
distâncias simbólicas profundas entre esses mundos (o dos indígenas e o dos
“brancos”).
Esses questionamentos formulados precisavam de instrumentais metodológicos
que dessem conta de investigar esses múltiplos elementos contidos na decisão e no
processo, mas que, a um primeiro olhar, pareciam encobertos. As ferramentas típicas
das pesquisas jurídicas, baseadas em revisões bibliográficas e na mera apresentação
da legislação aplicável, sem nenhuma contextualização, utilizando as decisões judiciais
ora para confirmar ora para infirmar os resultados dessas revisões bibliográficas, não
davam conta de desvelar esses múltiplos elementos.
Para tanto, fez-se necessário percorrer outros caminhos, os quais começaram a
se delinear com o aporte teórico baseado nas obras de Boaventura de Sousa Santos e
na sua compreensão sobre a modernidade ocidental e sobre o colonialismo. As chaves
analíticas de Boaventura foram essenciais para compreender os tribunais e suas
decisões sobre direitos indígenas, a partir de uma sociologia das ausências e das
emergências e do não desperdício da experiência33. A partir delas, tornou-se visível aos
olhares acostumados com a lógica técnico-formal do Direito uma prática científica
alternativa, passível de ser explorada e de ser articulada com saberes jurídicos,
revelando uma multiplicidade de conhecimentos disponíveis, ampliando o campo das
pistas ou sinais.34
Nesse flanco aberto, foi possível, conforme afirma a pesquisadora,
conhecer autores, no marco das abordagens pós-coloniais/descoloniais, que investigavam o modo como a nossa racionalidade ocidental é míope e produz sua própria miopia, pois não enxerga outras racionalidades no mundo, tornando-as invisíveis, ou quando muito, taxando-as como experiência, subordinadas ao conhecimento científico (ocidental), esse sim o conhecimento verdadeiro.
Os estudos pós-coloniais/descoloniais, como “um conjunto de práticas
(predominantemente performativas) e discursos que desconstroem a narrativa colonial,
escrita pelo colonizador, e procuram substituí-la por narrativas escritas do ponto de
vista do colonizado”35, foram tomados como lentes para refletir sobre o lugar em que a
modernidade e seus cânones, o direito e a ciência, atribuiu ao não-ocidental: um lugar
de negação e invisibilidade; um lugar do não possível, do não existente, do inferior. Não
se limitando a discutir o lugar, os estudos pós-coloniais propugnam outras formas de
conhecimento, outros modos de ser, fazer e produzir. 33 Boaventura de Sousa Santos identifica que a racionalidade moderna ocidental produz ou legitima socialmente diversas ausências ou não existências, que são formas sociais desqualificadas de existir e consideradas apenas como obstáculos em relação às realidades que contam como importantes, sejam elas realidades cientificas, avançadas, superiores, globais ou produtivas. “A produção social destas ausências resulta na subtração do mundo e na contracção do presente e, portanto, no desperdício da experiência. A sociologia das ausências visa identificar o âmbito dessa subtração e dessa contracção de modo a que as experiências produzidas como ausentes sejam libertadas dessas relações de produção e, por essa via, se tornem presentes” (SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 104). Já a sociologia das emergências “consiste em proceder a uma ampliação simbólica dos saberes, praticas e agentes de modo a identificar neles as tendências de futuro (o Ainda-Não) sobre as quais é possível actuar para maximizar a probabilidades de esperança em relação à probabilidade de frustração”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit., 2006, p. 118). Ambas as sociologias seriam úteis para evitar o desperdício da experiência no mundo que, muitas vezes é negada e invisibilizada pela racionalidade que funda a modernidade ocidental. Assim, “enquanto a sociologia das ausências expande o domínio das experiências sociais já disponíveis, a sociologia das emergências expande o domínio das experiências sociais possíveis. As duas sociologias estão estreitamente associadas, visto que quanto mais experiências estiverem hoje disponíveis no mundo mais experiências são possíveis no futuro”. (SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit., 2006, p. 120). 34 A modernidade Ocidental e os seus cânones, o direito e a ciência, constituíram-se sob a negação de várias outras formas de existência, conhecimentos e normatividades, tornando-se, a partir dessa negação, universal. No âmbito da crítica a esse paradigma, o pensamento de Boaventura de Sousa Santos tem se destacado nos últimos anos não só por contestar os cânones da modernidade ocidental, mas por propor um paradigma outro, conectado com as experiências dos povos e nações que foram colocados à margem da modernidade, que vivenciaram a violência, a exclusão e a discriminação que a modernidade/colonialidade lhes impôs. 35 SANTOS, Boaventura de Sousa. op. cit., 2006, p. 233.
O cabedal teórico que servia de lente para analisar e interpretar a decisão
estava constituído, faltava apenas descobrir o caminho para se chegar até ela, ou seja,
faltava definir os mecanismos pelos quais se tornava possível “tocar” os múltiplos
interesses, olhares, definições de ser índio e de territorialidade que estavam no
processo, mas que, ao olhar tacanho e acostumado do campo jurídico36, não estavam
no mundo.
Era preciso reinventar os passos ou resignificar os instrumentos disponíveis a
outras ciências para interpretar o fenômeno proposto. Entendendo que a pesquisa
oferecia bases para generalizações, até porque o próprio julgamento se construiu nesse
sentido, a modalidade de pesquisa “estudos de caso” não parecia suficiente para
qualificar a abordagem, partindo, então, a pesquisadora para implementar o que
chamou de “exercício etnográfico do processo”. Considerando o processo como um
produto da sociedade, tão passível de ser analisado quanto um ritual, a dissertação
buscou descrever, com densidade, os acontecimentos, concentrando o foco nas
estratégias discursivas e de ação engendradas pelos sujeitos processuais (autor, réu,
assistentes, Ministério Público, Ministros e outros).
O exercício proposto não era interpretar as culturas dos povos que
reivindicavam a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Macuxi,
Taurepang, Wapixana, Patamona e Ingarikó), a partir de uma descrição densa, na
escola das etnografias propostas por Clifford Geertz. Mas sim interpretar a nossa
própria cultura, manifestada no espaço judicial, naquilo que lhe é mais característico: “a
papelização da realidade”, ou seja, transformar os conflitos em papéis, denominados
processos. Como escreve a pesquisadora: “(...) tal exercício me fez virar-me ao avesso,
deslocando o lugar do exótico, para a nossa própria sociedade e para o meu próprio
36 Acerca do campo jurídico, Boudieu o conceitua como “o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito direto entre partes diretamente interessadas no debate juridicamente relatado entre profissionais que atuam por procuração e que tem de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as leis escritas e não escritas do campo – mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei (em Kafka, o advogado é tão inquietante como o juiz)”. Em outra passagem: “[...] é o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social”. (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 13. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 229).
ofício (enquanto advogada), estranhando o que me era familiar, para, em um segundo
momento, retornar à posição original completamente mudada”.
Nesse sentido, valeu-se das análises de Roberto Kant de Lima sobre a
Antropologia do Direito no Brasil. De acordo com o autor, a utilização do método
etnográfico pode exercer-se “não só sobre fenômenos sociais de que participa
diretamente o observador como também sobre quaisquer produtos culturais de uma
dada sociedade, o que inclui tanto discursos orais como escritos”. Assim, “a reflexão
etnográfica sobre textos também tem seu lugar no saber antropológico”. Para tanto,
deve o pesquisador utilizar-se do familiar para estabelecer diferenças e dele descobrir
significados insuspeitados, que aparecem por contraste onde haviam sido confundidos
pelo olhar opaco da familiaridade cotidiana.37
Sendo um saber “ancorado em uma experiência específica, na qual se
descobrem aspectos inusitados dos significados que se quer interpretar”38, a
pesquisadora consignou sua compreensão de que a Antropologia, em especial a
Antropologia do Direito, teria muito a auxiliar na investigação da Petição n. 3388,
podendo contribuir para tornar “conscientes processos que se ocultam atrás de
formalismo que apenas podem servir ao reforço do arbítrio”39. Entende, assim, o
processo como o “campo” a ser trabalhado para desvelar, pelo método etnográfico, o
imaginário social, envolvendo os pontos de vista e opiniões dos múltiplos sujeitos que
atuaram nessa ação. Com isso, objetivava captar a potência/força do discurso dito e
não dito, os silêncios eloqüentes e os jogos de palavras utilizados como estratégias
discursivas para pensar as representações sociais de indígenas e dos direitos a eles
inerentes.
No campo judicial, lugar onde o processo encontra razão de existir, sobreleva-
se o valor do discurso, principal ferramenta de trabalho daqueles que prestam serviços
jurídicos. Daí porque o exercício etnográfico proposto se baseou não só em métodos
comparativos e em uma descrição densa dos acontecimentos e das relações entre os
sujeitos processuais, mas principalmente de uma análise crítica dos discursos contidos
37 LIMA, Roberto Kant de. Por uma Antropologia do Direito, no Brasil. In: CERQUEIRA, Daniel Torres; FRAGALE FILHO, Roberto (Orgs.). O ensino jurídico em debate: o papel das disciplinas propedêuticas na formação jurídica. Millenium, 2007, p. 97. 38 KANT DE LIMA, Roberto. op. cit., 2007, p. 99. 39 Idem, 2007 p. 101.
nos diversos pronunciamentos realizados, principalmente, pelos Ministros do Supremo
Tribunal Federal, a quem compete “dizer o direito”, em última instância, cravando nesse
dito a marca da definitividade, operando-se, a partir daí, os efeitos da neutralização e
da universalização.
Embora todos os discursos emanados por juízes integrem uma categoria
especial de discursos que, como enunciou Foucault, “estão na origem de certo número
de atos novos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles, ou seja, os
discursos que, indefinidamente, para além de sua formulação, são ditos, permanecem
ditos e estão ainda por dizer”40, o discurso proferido pelos Ministros do Supremo
Tribunal Federal tem uma força reverberante maior, ou, para usar termos bourdianos,
são dotados de maior eficácia simbólica. Talvez porque a própria Constituição os tenha
dotado de um poder-dever de guardar e zelar pelas suas normas (art. 102, Constituição
Federal de 1988), ou talvez, porque os Ministros tenham nos últimos anos se arvorado
cada vez mais do poder de dizer o direito em última instância e grau de jurisdição, o
que acaba fazendo, não raras vezes, com que o discurso do Supremo Tribunal Federal
(aqui entendido como aquele obtido a partir de um consenso entre os Ministros) ganhe
mais importância que o texto constitucional per si.
Independentemente de uma maior eficácia simbólica das decisões do STF, é
sempre possível colocá-las à prova, tomando-as como objeto de estudo. É essa a
tarefa que a pesquisa, valendo-se do método etnográfico, se dispôs a fazer,
mergulhando em dezessete mil páginas de papéis que tratam de existências, de
conflitos, de incompreensão, de saberes subalternizados, de resistências, de formas de
ser, fazer e produzir distintas, de esperança e de perspectivas de futuro.
Esse exercício etnográfico permitiu à pesquisadora perceber que o modo como
se construiu a decisão na Petição nº 3388, em especial a definição de um estatuto
jurídico das terras indígenas, ao restringirem o exercício dos direitos territoriais
indígenas, retiraram toda a força pulsante da Constituição, neutralizando, pela via
judicial, supostamente democrática, os avanços que a Constituição de 1988 consagrou
sobre o tema, reduzindo seu potencial emancipatório.
40 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 18. ed. São Paulo: Loyola. 2009, p. 22.
O Supremo Tribunal Federal, analisado a fundo no julgamento que foi objeto da
dissertação, parece ser um lugar por excelência de manifestação de uma racionalidade
hierarquizante e inviabilizadora de outras racionalidades, produzindo e reforçando, no
seu discurso, uma miopia que certamente reverberará nos degraus abaixo do sistema
judicial.
4. REFLETINDO SOBRE O “TRABALHO DE CAMPO” NO DIREITO
Os caminhos metodológicos expressos nas dissertações analisadas permitem
alargar a noção de “trabalho de campo” no Direito, apontando para pesquisas que ora
partem do campo judicial, como é o caso da dissertação “Anna Pata, Anna Yan”, ora
partem dos direitos gestados na luta dos movimentos sociais, que, na maioria das
vezes não encontram eco no direito estatal. As dissertações se complementam na
medida em que uma reflete sobre o espaço fora do que comumente chamamos de
campo judicial e outra atinge esse alvo, trazendo para a proximidade do trabalho dos
juristas a reflexão sobre os limites das instituições estatais na defesa e garantia de
direitos já positivados.
Há pontos em comum nas duas propostas metodológicas que devem ser
destacados. Em ambas as dissertações há:
• uma preocupação em discorrer sobre a vivência pessoal do(a) pesquisador(a) e
sua relação com o objeto estudado e os interlocutores da pesquisa, escrevendo
o texto da dissertação em primeira pessoa;
• um esforço para propiciar uma abertura na ciência jurídica para métodos
vivenciados por outras ciências;
• uma busca por tornar visível outros saberes e práticas, invisibilizados pela
modernidade ocidental, “traduzindo” esses saberes e práticas para o campo
normativo e vice-versa, criando um espaço de inteligibilidade e possibilidade de
diálogo;
• uma profunda e densa imersão no campo, seja ele identificado como um
processo ou espaço de vivência dos sujeitos;
• uma clareza sobre a necessidade de superar o fetichismo jurídico, entendido
como a conversão do direito e da legalidade estatal no único mecanismo de
emancipação social.
As dissertações propiciam uma discussão sobre a própria pesquisa no direito,
tomando esta também como seu objeto e demonstrando a existência de caminhos
investigativos impensados pela racionalidade moderna (da qual o Direito é fruto) que
estão sendo construídos à luz do dia, buscando desvelar o nosso olhar para o além do
tateado na cegueira. “Costuma-se até dizer que não há cegueiras, mas cegos, quando
a experiência dos tempos não tem feito outra coisa que dizer-nos que não há cegos,
mas cegueiras”41.
“Por que foi que cegámos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a
razão, queres que te diga o que penso, diz, penso que não cegámos, penso que
estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem”42. Na busca por novas
percepções veladas aos nossos olhares, reconhecermo-nos como cegos imersos na
cegueira pode vislumbrar-se como um caminho para começarmos a enxergar toda a
riqueza e fertilidade que pode haver na compreensão de Direito(s) significados em
campos pluriétnicos e interculturais.
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41 Trecho da obra de José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira”. 42 Trecho da obra de José Saramago, “Ensaio sobre a Cegueira”.
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