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BIBLIOTECA ALFA OMEGA DE CULTURA UNIVERSAL A“Í°“¡° Cams W°"““°" Série 2* - Volume 52 AÍÂÉÍÊÍÊA PLURALISMO JURÍDICO Fundamentos de uma nova cultura no Direito Direção Fernando Mangarielo _ editor 3* edlçao Revista e atualizada EDITORA ALFA OMEGA São Paulo 2001

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BIBLIOTECA ALFA OMEGA DE CULTURA UNIVERSAL A“Í°“¡° Cams W°"““°"Série 2* - Volume 52

AÍÂÉÍÊÍÊA PLURALISMO JURÍDICOFundamentos de uma nova cultura no Direito

DireçãoFernando Mangarielo _

editor 3* edlçaoRevista e atualizada

EDITORA ALFA OMEGASão Paulo

2001

Page 2: Wolkmer_pluralismo==Livro=Estado de Direito

© EDITORA ALFA OMEGA LTDA, 1994, 1998, 2001

Planejamento gráfico e produçãoAlexandre Rehm

Preparação do originalLia Rosa Leal

ComposiçãoEstúdio Alfa Omega (l 1) 3062.6400

Editoração EletrônicaSandro das Neves Maciel

RevisãoAlexandre Rehm

CapaMarco Vogt

Direitos reservadosEDITORA ALFA OMEGA LTDA.05413-000 - Rua Lisboa, 489 - Tel.: (1 1) 3062.6400Fax.: (1 l) 3083.0746 ~ São Paulo - [email protected]

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Tábua geral da matéria

Sobre 0 Autor: ........................................................................ ..IXAgradecimentos............................................................. ..XINota do Autor à 3" Edição.......................................... ..XIIIIntrodução............................................................................ ..XV

Questões preliminares.................................................. ..XVIQuestões metodológicas............................................... ..XXI

Capítulo IORIGEM, EVOLUÇÃO E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL....25

1.lOmor1iSmooomopIojetodamodeIrIidadeburguês-capitalista..... ..251.1.1 Capitalismo, Sociedade burguesa e Estado

modemo............................................................... ..271.1.2 Direito Estatal: formação, ciclos históricos e

caracterização........................................................ ..461.2 Crise de hegemonia e disfunções do paradigmajurídico....66

Capítulo IIO ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÂNEA - A JUSTIÇA NoCAPITALISMO PERIPÉRICO BRASILEIRO......................................... ..79

Introdução........................................................................... ..792.1 Trajetória da Cultura jurídica no Brasil ............................ ..842.2 Necessidades, direitos e a questão dos conflitos............... ..902.3 O Poder Judiciário e sua ineficácia instrumental .............. ..96

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VI Tábua geral da matéria

2.4 Conflitos coletivos no Brasil: práticas sociais comomarco histórico-politico ............................................ .. 104

Capítulo IIIAs FONTES DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA.................. ..1 19

Introdução........................................................................ .. l 193.1 Os movimentos sociais como novos sujeitos

coletivos...................................................................... .. 12 13.2 Representação, Estado e identidade dos atores

coletivos...................................................................... . . 1393.3 Os movimentos sociais como fonte de produção

jurídica......................................................................... .. 1513.4 Necessidades como fator de validade de “novos

direitos”..................................................................... .. 15 8

Capítulo IVPLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DEALTERIDADE................................................................................. .. 169

Introdução......................................................................... .. 1694.1 Natureza e especificidade: o pluralismo em

questão......................................................................... .. 1714.2 Pluralismojurídico: revisão histórica do problema......... .. 183

4.2.1 Pluralismojurídico na tradição européia.............. .. 1 834.2.2 Pluralismojuridico na América Latina................ ..203

4.3 Pluralismojurídico: possibilidades e limites................... ..2164.4 Fundamentos do pluralismo jurídico como novo

paradigma.................................................................. ..2324.4.1 Os novos sujeitos coletivos de

juridicidade........................................................ ..235Ç 4.4.2 Sistema das necessidades humanas

fundamentais....................................................... ..24l4.4.3 Reordenação política do espaço público:

democracia, descentralização e participação...... ..2484.4.4 Etica concreta da alteridade................................ ..2614.4.5 Racionalidade enquanto necessidade e

emancipação..................................................... ..273

Tábua geral da matéria VII

Capítulo VPLURALISMO .JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATWA.... . .285

Introdução......................................................................... ..2855.1 Pluralidade altemativa no interior do Direito oficial ....286

5.1.1 Convenções coletivas do trabalho..................... ..2925.1 .2 Ações propostas por sujeitos coletivos................. ..2945.1.3 Conciliação, mediação, arbitragem e juizados

especiais............................................................... ..2975.1.4 “Prática” e “uso” alternativos do Direito............. ..302

5.2 Pluralidade altemativa no espaço do Direitonão-oficial ................................................................... ..3065.2.1 Resolução dos conflitos por via

não-institucionalizada........................................ ..3095.2.2 Fontes de produção legislativa

não-institucionalizadas...................................... ..3 145.2.2. l Convenções coletivas de novo tipo........... ..3 155.2.2.2 Acordos setoriais de interesse.................. ..317

5.3 Cultura jurídica informal: formas periféricas delegitimação................................................................ ..321

5.4 Pluralismo, movimentos sociais e os horizontes daO justiça participativa.................................................... ..335

CONCLUSÃO...................................................................... ..349

Bibliografia................................................................... ..363Indice onomástico........................................................... ..395Indice analítico..................................................................... ..40l

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Sobre o autor

O autor é professor titular de “História do Direito ” e “Histó-ria das Instituições Jurídicas ” no curso de Direito da Universi-dade Federal de Santa Catarina, onde leciona também no Pro-grama de Pós-Graduação em Direito (“Teoria Política “Fun-damentos de Direito Politico “Estados Contemporâneos“Pluralismo Jurídico ”).

Adquiriu, em seus estudos depós-graduação, o título de Espe-cialista em Metodologia do Ensino Superior (1979), Mestre emCiência Políticapela UFRGS (1983) e de Doutor em Filosofia doDireito e da Política pela UFSC (1992).

Foi pesquisador e lecionou na faculdade de Direito daUNISINOS-RS, de 1978 a 1991, onde exerceu, ainda de 1984 a1991, as funções de Coordenador do Curso de Pós-Graduaçãoem Direito Político. Igualmente foi professor visitante de“Hermenêutica Jurídica ” na Escola Superior do Ministério Pú-blico do RS, no período 1984-1987.

E pesquisador do CNPq, bem como sócio efetivo do Institutodos Advogados Brasileiros (Rio de Janeiro), do Instituto dos Advo-gados do RGS, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitu-cional e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Professor visitante dos cursos: Mestrado e Doutorado em His-tória Ibero-Americana (UNISINOS-RS); Pós-Graduação em Di-reito do Centro de Ciências Jurídicas da UNISINOS-RS; Mestradoem Criminologia, Direito e Processo Penal da Universidade

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X Sobre o autor

Cândido Mendes (Rio de Janeiro); Mestrado em Direito daUN[SUL-SC; Mestrado em Direito do Convênio UFSC/IESA (San-to Angelo-RS) e UFSC/Universidade de Ifzla Velha'(Espírito San-to); Pós-Graduação em Direito Público da UNIJUI-RS; Pós-Gra-duação em Direito Processual do IBEJ (Curitiba-PR); ProfessorConvidado, em 1995, do Mestrado em “Derecho y Democraciaen Iberoamêrica ” na UniversidadInternacional de Andalucía (LaRábida) e do atual Programa de Doutorado em Derechos Huma-nos y Desarrollo da Universidad PABLO DE OLA VIDE de Sevi-lha (Espanha).

Colaborador de revistas especializadas do país e do exterior:com mais de meia centena de artigos publicados. Autor dos li-vros: “Constitucionalismo e Direitos Sociais no Brasil” (SãoPaulo: Acadêmica, 1989); “Elementospara uma Crítica do Esta-do ” (Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 1990); “O Terceiro Mundoe a Nova Ordem Internacional ” (2“ ed., São Paulo: Ática, 1994);“Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico ” (3 “ ed., São Pau-lo: Saraiva, 2001); “Fundamentos de História do Direito Org.e co-autor (Belo Horizonte: Del Rey, 1996); “Direito e Justiçana América Indígena: Da Conquista ã Colonização Org. e co-autor (Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998),' “Históriado Direito no Brasil” (2“ ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999);“Ideologia, Estado e Direito.” (3 “ ed., São Paulo: Revista dosTribunais, 2000).

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Ç Agradecimentos

Originariamente, e deforma bem mais extensa, esta obrafoiapresentada ao Centro de Ciências Jurídicas da UniversidadeFederal de Santa Catarina, em abril de 1992, como tese deDoutoramento em Filosofia do Direito e da Politica. O intento depublica-la levou-nos a inúmeras modificações e supressões, quederam maior clareza ao texto, sem, contudo, destituir seu estilocompactamente acadêmico. Na elaboração inicial recebemos oapoio e a contribuição de múltiplas pessoas, para as quais nãopoderíamos deixar de assinalar o profundo reconhecimento:

ao professor Cesar Luiz Pasold (UFSC), exemplo de compe-tência e seriedade, que, como orientador; contribuiu com inúme-ras sugestões e transmitiu sua experiência nas questõesmetodológicas;

à professora Luiza Helena M. Moll (UFRGS), que, pela suaamizade, dedicação e apoio decisivo, foi inestimável estimuladora,com seus esclarecimentos valiosos e suas observações sempreoportunas e atuais, quer aos rumos doprojeto inicial, quer à pró-pria redaçãofinal da obra,'

aos professores Ruy Ruben Ruschel (UNISINOS-RS), JoséRibas Vieira (PUC/RJ), Osvaldo Ferreira de Melo (UFSC) e OlgaM. de Aguiar (UFSC), membros da banca examinadora, que con-tribuíram com comentários e críticas construtivas;

ao professor Herbert E. Wetzel, pró-reitor de Pós-Graduaçãoe Pesquisa da UNISINOS-RS, pelo apoiofinanceiro, bem como àdireção do Centro de Ciências Jurídicas, na pessoa de seus

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XII Agradecimentos

professores Antonio P. Cachapuz de Medeiros e Bruno J. Hammes,pelo apoio acadêmico;

a uma dezena de outros pesquisadores e colegas-professores,com os quais mantivemos contato, entre 1990 e 1991, recebendoidéias e indicações bibliográficas sobre alguns dos tópicos de-senvolvidos no trabalho, devendo ser lembrados, dentre tantos:Celso F. Campilongo, Eduardo K. Carrion, Joaquim de A. Fal-cao, Jacques Távora Alfonsin, Paulo J. Krischke, SelvinoAssmann, Claudio Souto, José M. Gomez, José Geraldo de SouzaJr., Antonio Sidelcun e Edmundo de L. Arruda Jr:

ao professor Lauro Dick (UNISINOS-RS), pela atenção, auxi-lio e orientação nas correções; e

enfim, a Fátima Wolkmer, companheira de todas as horas, pe-las reiteradas leituras, oportunas sugestões, imensurável com-preensao e que, apesar do tempo e da atenção que lhe foramsubtraidos, premiou-nos, quando estávamos na redaçãofinal daobra, com o pequeno Stefan Gabriele.

Nota do autor à 3” edição

Não obstante a presente edição manter a estrutura originaldas anteriores, deve-se assinalar que a obra passou por atentoexame no estilo da forma e na apreciação de certos conceitospolítico-jurídicos. Após decorrido quase uma década do textoinicial, o livro encontrava-se defasado no que tange a propos-tas legislativas, principalmente no Capítulo V, em quejá seplei-teava, no início dos anos 90, a efetivação dojuizo arbitral e dosjuizados de pequenas causas. Com o advento da Lei n° 9.099/1995 (regulamenta os Juizados Especiais Cíveis e Criminais) eda Lei n° 9. 307/1996 (rege a arbitragem no país), tornou-se obri-gatório revisar a redação, fazendo os devidos ajustes relativosà crescente valorização dos mecanismos extra-oficiais de reso-lução dos conflitos.

A revisão geral implementada alcançou, assim, não apenas aampliação e a recomendação de bibliografia específica, mas tam-bém empreendeu o desdobramento do ítem 4.2 (Pluralismo Juri-dico: Revisão Histórica do Problema) em '-'Pluralismo juridicona tradição européia ” e “Pluralismo jurídico na América Lati-na Neste largoperíodo da primeirapara a terceira edição (nãohouve mudanças na 2” edição), a experiênciajurídica interna (noBrasil) tem comprovado, a cada ano, a importância dos novossujeitos sociais (movimentos sociais dos sem-terra, por exemplo),enquanto a prática externa do Direito vem sentindo o forte im-pacto defenómenos como o neoliberalismo e a globalização.

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XIV Nota do autor à 3" edição

Ao vir a lume esta 3” edição, importa expressar o reconheci-mento do autor ao meio acadêmico (alunos e mestres) pela acei-taçao da obra, bem como as correções lingüísticas realizadasporLia Rosa Leal e as sugestões sobre temas tratados no Capítu-lo lí dadas pelos professores Paulo de Tarso Brandão (UFSC) eClerilei Bier (UDESC).

Florianópolis (SC), 20 dejunho de 2000.

Introduçao

A temática do pluralismo atravessa diferentes momentosda história ocidental - mundos medieval, moderno e contem-poráneo -, inserindo-se numa rica e complexa multiplicidadede interpretações, possibilitando enfoques marcadospela exis-tência de mais de uma realidade, de amplas formas de ação eda diversidade de campossociais com particularidade pró-pria. Se inumeras doutrinas podem ser identificadas nopluralismo de teor filosófico, sociólogo ou político, opluralismo jurídico não deixa por menos, pois compreendemuitas tendências com origens diferenciadas e caracteriza-ções singulares, envolvendo o conjunto defenómenos autôno-mos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si.Não é fácil consignar uma certa uniformidade de principiosessenciais, em razão da diversidade de modelos e de autores,aglutinando em sua defesa desde matizes conservadores, libe-rais, moderados e radicais até espiritualistas, sindicalistas,corporativistas, institucionalistas, socialistas etc.

Esta situação de complexidade não impossibilita admitir queo principal núcleopara o qual converge o pluralismojuridico é anegação de que o Estado seja o centro único dopoderpolitico e afonte exclusiva de todaprodução do Direito. Na verdade, trata-sede uma perspectiva descentralizadora e antidogmática que plei-teia a supremacia defundamentos ético-político-sociológicos so-bre critérios tecno-formais positivistas.

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XVI INTRODUÇÃO

Todavia, ainda que se descortine um amplo horizonte, cujoespaço abriga uma gama de controvérsias teóricas que serãomuitas vezes excluídas ou minimizadas, há que optar; obrigatori-amente, por uma variante interpretativa de pluralismo, fixandoum recorte específico, capaz de imprimir; dentro de certos limi-tes, um mínimo de objetividade, comprovação ejustificação.

Assim, a retomada dopluralismo como referencial de estudo efundamentação implica, de um lado, superar as modalidades decultura sócio-politica identificadas ao convencionalismo dospluralismos “orgânico-corporativista ” e “neoliberal-capitalis-ta e de outro, em avançar na determinação de um novopluralismo, gerado pelas contradições de um modelo de produ-ção da riqueza e pelo processo dialético de necessidades ineren-tes aos agentes históricos recentes. Essas considerações permi-tem designar a expressão “pluralismo jurídico ” como amultiplicidade de manifestações ou práticas normativas nummesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou con-sensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nasnecessidades existenciais, materiais e culturais.

Questões Preliminares

Primeiramente, importa mencionar a formulação do proble-ma quefoi levantado e examinado. Parte-se dapercepção de cri-se e de esgotamento do modelo jurídico liberal-individualista,que não oferece respostas satisfatórias (eficazes) aos reclamospolítico-sociais de segurança e certeza no atual estágio de evolu-ção das sociedades complexas e conflítivas de massa. Impõe-se,como condição básica, ia demarcação de um novofiindamento devalidade para o mundo juridico, um paradigma que incida,inexoravelmente, no reconhecimento de novas formas de açõesparticipativas, razão por que a problematização do tema centraldo livro assim se coloca: como se estrutura, se instrumentaliza,se operacionaliza e se efetiva a contínua recriação do processodas práticas jurídicas informais/diferenciadas num amplo espa-ço público de democratização, descentralização e participação?Até que ponto, e em que medida, uma nova formulação prático-

Questões Preliminares XVII

teórica do Direito, em sociedades instáveis e conflituosas doCapitalismo periférico, perpassa, presentemente, pela legitimi-dade especifica de um pluralismo jurídico calcado nas priva-ções cotidianas de novos sujeitos coletivos? Certamente, o de-senvolvimento do conteúdo contemplará a especificidade destaresposta.

Em termos de identificação no tempo e no espaço, a temáticaproblematizada, ainda que possa ser captada difusamente namaioria dos sistemas jurídicos estatais do Ocidente, levará emconsideração a particularidade da estrutura sócio-política doCapitalismoperiférico latino-americano e os indícios da crise dacultura legal tradicional no Brasil (na legislação positiva e noJudiciário), retratada nas últimas décadas do século XX

Igualmente oportuno, é assinalar a relevância e as razões daescolha do pluralismo juridico como o principal marco teóricodesta obra. A importância da discussão sobre “o pluralismojuri-di`co enquanto expressão de um “novo” Direito é plenamentejustificada, porquanto o modelo de cientificidade que sustenta oaparato de regulamentação estatal liberal-positivista e a culturanormativista lógico-formaljá não desempenha a suafunçãopri-mordial, qual seja a de recuperar institucionalmente os conflitosdo sistema, dando-lhes respostas que restaurem a estabilidade daordem estabelecida. Na medida em que o aparato de modelosinstitucionais desta ordem apresenta-se insuficientepara dar contade suasfunções, tornando as relações sociais previsíveis e regu-lares, a série de sintomas disfuncionais deflagra a crise desseaparato, daí emergindoformas alternativas que todavia carecemde um conhecimento adequado. As atuais exigências ético-políti-cas colocam a obrigatoriedade da busca de novos padrõesnormativos, que possam melhor solucionar as demandas especí-ficas advindas daprodução e concentração do capitalglobalizado,das profundas contradições sociais, das permanentes crisesinstitucionais e das ineficazes modalidades de controle e de apli-cação tradicional dajustiça. Daía relevância do tema abordado,tendo em vista a prioridade, hoje, de se questionar; repensar ereconhecer as mais diversas e crescentes manifestaçõesnormativas não-estatais/informais, reflexos de umfenômeno mai-oi; que é o pluralismojurídico.

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XVIII INTRODUÇÃO

Ora, enquanto o pluralismo clássico da modernidade nasceuda contenda com opoder absoluto soberano e da negação radicala toda e qualquerforma de arbítrio ou monopólio estatal, torna-sesignificativo repensar; atualmente, tais proposições, em face dasemergentes condições de vida associativa e das novas necessida-des humanas criadaspelopresente estágio alcançadopelo Capita-lismo e seus influxos sobre as estruturas dependentes.

Evidentemente, o pluralismo desejadoparafins do século XXepara o início do novo milênio não poderá ser o pluralismo neo-liberal das elites económicas e do livre mercado defendido na pri-meira metade do século zU(, o qualfoi rearticulado, entre os anos80 e 90, como nova estratégia global de dominação dos paisescentrais avançados. Logo, a discussão revela-se imperativa, prin-cipalmente, quando sepensa em novo pluralismopolitico ejuridi-co, adaptado às contingências históricas periféricas como a lati-no-americana, dominada por uma tradição centralizadora, auto-ritária e dependente. Idealizar epropor uma alternativapluralista,especificamente para a sociedade latino-americana e brasileira,obriga ao enfrentamento de uma cultura politica fortemente im-pregnada do Estado. Nesse contexto, qualquerparadigma dopoli-tico e dojuridico deve contemplar a “questão Estado ”, suas trans-formações e desdobramentos mais recentes eprincipalmente opro-cesso de organização da sociedade civil, num movimento queirrompe da base para o topo. Desta feita, a proposição de umacultura juridica pluralista para nossa historicidade deve serretrabalhada, tendo presente a adequação entre determinados ar-quétipos ou padrões arraigados àforma de ser do latino-america-no e novos valores assimilados e cultivados como democracia,descentralização eparticipação. Tais concepções, sustentadasporuma pluralidade de corpos societários conscientes e autônomos,vêm coexistir e conviver com o Estado transformado, controlado eordenadopela sociedade democrática. Certamente que tal dinâmi-ca possibilitaprojetar um paradigma depluralismo que retrate asespecificidades da reproduçãojuridica no Brasil - Estado do Ca-pitalismo Periférico -, marcado por estruturas de igualdades pre-cárias e compostopor espaços sociais conflituosos, querpor lutasde matiz classista e interclassista, quer por contradições de teorsócio-econômico e politico-cultural.

Questões Preliminares X I X

Naturalmente, essas asserções levam à imediata constataçãodos objetivos principais da proposta “prático-teórica ” que seapresenta como novo paradigma. O objetivo geral consiste emdelinear: mediante uma apreciação indutivo-critica, a existênciade um pluralismojuridicofundado no espaço de práticas sociaisparticipativas, capaz de reconhecer e legitimar novas formasnormativas extra-estatais/informais (institucionalizadas ou não),produzidas por novos atores titulares de carências e necessida-des desejadas. Tais reivindicações são originadas das contradi-çõespostas entre o que éprometido no Direito objetivo do Estadoe o que é possivel pelas condições objetivas. Há um desencontroradical entre a racionalidade formal oficial e a racionalidadematerial, esta que éfruto ou resultado da correlação deforças deuma sociedade desigual, dividida com profundas diferenças deexpectativas, dando margem a que, o que é segurança para pou-cos, seja violência para muitos etc. Os objetivos especificosaglutinam-se no sentido de reafirmar que a insuficiência doreferencial lógico-formal da moderna cultura liberal-burguesapropicia condições para um certo tipo de pluralismo politico ejuridico - de base comunitário-participativa - que absorverá asprivações e exigências de estruturas societárias do Capitalismoperiférico na virada do século XXpara o novo milênio.

Pretende-se assim demonstrar; tanto no nivel teórico quantoprático, que é logicamente possivel, para além dos meios de re-gulamentação instituidos e até agora dominantes (normas costu-meiras, judiciais e legais), a existência concorrente eparalela deexpressões normativas não-estatais, não derivadas dos canaisoficiais e formalizadas, mas emergentes das interações e dasflutuações de um processo de auto-regulação em constante recri-ação.

Tal proposta imperiosa acentua que a solução/resposta paraa crise e a ineficácia da legalidade monista em contexto de de-pendência passa, obrigatoriamente, pela ruptura com esse apa-rato hegemônico, incidindo na constituição gradual e alternativade um novo paradigma societário deprodução normativa. A con-dição básica para a realização concreta desse intento implica aretomada e construção de um pluralismo juridico que se reveleaberto, descentralizada e democrático, bem como contemple a

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X X INTRODUÇÃO

transformação de carências e necessidades na positivação denovos direitos. A opçãopor este novopluralismo se distancia dosrumos das antigasformulaçõesplurais, pois não está mais vincu-lado à representação individualista do mundo social, mas ci sín-tese de todos os interesses cotidianos individuais e coletivos. Tra-ta-se de umaproposta contrária e distinta do pluralismoproduzi-do pela democracia liberal-burguesa, tradicionalmente elitista,conservadora e selvagem, que sempre privilegiou os intentos desetores exclusivistas e de minorias com poder de decisão em de-trimento de prioridades da vida comunitária.

Outrossim, a configuração do pluralismo presente nos proce-dimentos instituintes de um Direito Comunitário nãoprioriza maisas regras técnico-formais e as ordenações genérico-abstratas, masinspira-se na práxis da vida cotidiana e na auto-regulação com-prometida com a dignidade do outro injustiçado. Uma culturajurídica - pluralista, descentralizada e solidária - constrói-se,não apartir da razão metafísica ou do sujeito enquanto essênciaem si, mas de um “sujeito histórico-em-relação ” e de uma outraforma de ver o mundo e os valores: parte-se de um espaço marca-do não só pela exigência de direitos e pela justa satisfação deinteresses desejados, como, sobretudo, pela superação dos con-flitos de classes e grupos, pela erradicação dasformas de opres-são, espoliação, sofrimento e injustiça.

Contrariamente ao insuficiente paradigma estatal predomi-nante, representado pelo dogmatismo jurídico convencional, oDireito Comunitário, por estar inserido nas práticas sociaisplu-rais, das quais é produto, transcende aos órgãos estatais, emer-gindo de vários e diversos centros de produção normativa e ad-quirindo um caráter múltiplo e heterogêneo. As revelações depluralismo jurídico comunitário-participativo que não se sujei-tam ao formalismo a-histórico das fontes convencionais estãoassentadas no espaço conflituoso e de confronto social, causadaspor privações, exclusões e necessidades de forças societáriasagregadoras de reivindicações, mas, dado o processo, eficazes elegítimas.

Na verdade, .o novo pluralismojurídico, como referencial cul-tural de ordenação compartilhada, constrói-se por meio de con-dições “materiais ” e 'formais ” que englobam a legitimidade de

Questões Metodológicas XXI

novos sujeitos coletivos, a implementação de um sistemajusto desatisfação das necessidades, a democratização e descentralizaçãode um espaço público participativo, o desenvolvimento pedagó-gico para uma ética concreta da alteridade e a consolidação deprocessos conducentes a uma racionalidade emancipatória.

Questões Metodológicas

Os pressupostos e as categorias quepermitem a transposiçãogradual do velho paradigma jurídico (monismo estatalcentralizador) para o novo modelo jurídico de fundamentação“prático-teórica ” Qvluralismo comunitário participativo), proje-tando uma cultura alternativa do Direito, são atravessados porum viés metodológico de cunho indutivo-crítico.

No detalhamento técnico, cabe esclarecer que se utilizou ométodo de abordagem indutivo, pois parte-se de experiênciascotidianas, crises paradigmáticas, conflitos sociais (no campo ena periferia urbana), e de necessidades especificas (realidadegeradapelo modelo económico em países do Capitalismoperifé-rico, como o Brasil), para se chegar à generalização teórico-prática dos fundamentos “materiais” e “formais” do novoparadigma.

Por outro lado, a amplitude das questões aventadas e a dinâ-mica de sua interação determinam o direcionamentopor um pro-cedimento que prioriza o enfoque crítico-interdisciplinar:

O significado da crítica no âmbito do Direito nada mais é doque a tentativa de se buscar outra direção ou outro referencialepistemológico comprometido com as mudanças e com a cons-trução de um novopoder de auto-regulação societária. Depreende-se, então, que a perspectiva da crítica torna-se extremamente re-levante, pois, no contexto hegemónico de um discurso e de umprocedimento dogmático, formal e excludente, redimensiona ofe-nómenojurídico não só colocando-o a serviço dos reais interes-ses das formas da vida cotidiana e das práticas sociais plurais,como, sobretudo, constituindo-o instrumento normativo deimplementação das transformaçõesparadigmáticas, erigidas nasrupturas. N

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XXII INTRODUÇÃO

Quanto à preocupação por um enfoque interdisciplinar de-corre da percepção de que: primeiramente, o pluralismo é umacategoria interdisciplinar; pois expressa dimensões históricas,sociológicas, políticas, filosóficas, econômicas etc. Em segundolugar; porque a interdisciplinaridade impede a delimitação es-tanque e rígida dos diferentes saberes na análise do referencialteórico nuclear. Ou seja, com a interação e a articulaçãointerdisciplinar; evita-se o monopólio ou a apropriação unilate-ral do tema estudado por qualquer uma das áreas do conheci-mento. Exemplificação disto é a constatação de que nem todopluralismo se reduz a uma manifestação legal (o pluralismo nãoé propriedade exclusiva do Direito), pois subsistem outraspráti-cas pluralistas no âmbito da política, da economia, do social, dareligião etc. Idêntica situação aplica-se ao campo da Teoria Po-li'tica: nem todo pluralismo deve ser confundido com o liberal-democrático.

Por conseguinte, a preocupação técnica transposta na obraestá relacionada com uma investigação indutivo-cri'tica de cará-ter interdisciplinar; pois resulta de suaforma de articulação en-quanto processo de efetivação prático-teórico nos horizontesinterativos do Direito Qvluralidade defontes informais da produ-ção social normativa), da Política (aumento do poder societárioe seu controle sobre o Estado, tendência progressiva para adescentralização e participação de base), da Sociologia (espa-ços de lutas e de práticas conflitivas interagidas por sujeitos so-ciais com o novo fluxo do poder) e da Filosofia (interpretaçãodos valores éticosda alteridade com as ações de racionalidadeemancipatória).

Porfim, assinala-se que a estruturação do livro compreende-rá a sistematização de um roteiro que seguirá cinco capítulos.

O primeiro contempla, especificamente, a formação, evolu-ção e traços característicos do modelo jurídico na modernidadeburguês-capitalista. Trata-se do esforço em descrever e delimitaros principais postulados epistemológicas fundadores da “enge-nharia ” institucionalizada do monismojurídico estatal clássico.Avançando, pôs-se em evidência a ideologia tecno-formal do“centralismo legal ” que encontra sua dinâmica históricaentrelaçada numa visão racional do mundo, permanentemente

Questões Metodológicas XXIII

traduzida por processos de “estatalidade “unicidade“positivação ” e “sistematização ”. No segundo capítulo, buscou-se situar a crise da legalidade liberal-burguesa e os limites doDireito Estatal no espaço territorial conflitivo de um país do Ca-pitalismo periférico latino-americano (Brasil). Tal comprovaçãoe' constatada em dois níveis de atuação: na legislação positiva(Códigos Civil e de Processo Civil) e na resolução dos conflitos(Poder Judiciário). Privilegiando-se, nesta conjuntura, o direitoà terra e à moradia, arrolaram-se algumas experiências empíricasque demonstram conflitos coletivos, reivindicações e privaçõesbásicas.

O capítulo terceiro procurou explicitar que, diante da insufi-ciência das fontes clássicas do monismo juridico (assentado nadinâmica dos três poderes da democracia representativa), os no-vos movimentos sociais tornam-se autênticos titulares de umparadigma pluralista que nasce das lutas em tomo de carênciase necessidades por direitos. Deste modo, os movimentos sociais,enquanto sujeitos coletivos dejuridicidade, são capazes de criarnão só uma legitimidade diferenciada ao “instituído como, so-bretudo, outros procedimentos de produçãojurídica informais eextra-estatais. Ao apontar os novos movimentos sociais comoagentes privilegiados da nova culturapolítico-jurídica, atribuiu-se-lhes um conjunto de características relacionadas a “conteú-do “valores “formas de ação ” e “atores sociais

Configurou-se, no capítulo seguinte, a construção do espaçopúblico e do saber cultural que ordenam o novo referencial gera-dor de um Direito Comunitário. Desta feita, tentou-se contraporà cultura legal-estatal, um projeto depluralismopolítico ejurídi-co comunitário-participativo, composto por elementos deefetividade material (sujeitos coletivos, satisfação das neces-sidades, participação e reordenação descentralizadora do espa-ço público) e efetividade formal (ética da alteridade eracionalidade emancipatória).

No último capítulo, examinam-se, concretamente, algumasexpressões normativas informais de cunho legislativo ejurisdicional “dentro ” (admitidas inclusivepelaprópria legisla-ção oficial) e “fora ” do sistema estatal, consagrando aobrigatoriedade de se reconhecer; de uma vez por todas, a

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XXIV INTRODUÇÃO

materialidade e a institucionalização do já existente pluralismolegal “subjacente ”. Disso, advêm as implicações da culturajurí-dica informal com temas essenciais, como legitimidade,redefinição da sanção, transformação do Estado, pedagogialibertária, integração e interdisciplinaridade.

Eis, portanto, os intentos desta obra: a proposta histórico-social de um pluralismo comunitário-participativo como novomodelopolítico ejurídico de legitimidade, caracterizadoporfor-mas múltiplas de produção de juridicidade e por modalidadesdemocráticas e emancipatórias de práticas sociais.

Capítulo IOrigem, evolução e declínioda cultura jurídica estatal

1.1 O Monismo como Projeto da Modernidade Burguês-Capi-talista

A real compreensão do processo de conhecimento, das cons-truções e das ordenações valorativas não se fundamenta em es-quemas interpretativos ideais a priori e em proposições técnicaslógico-formais, mas, essencialmente, na práxis cotidiana interativade um todo concreto que se organiza para produzir a vida social.A totalidade das estruturas de uma dada organização social refle-tirá sempre a globalidade das relações de forças, o grau de desen-volvimento de sua riqueza material e os interesses e necessidadeshumanas fimdamentais. Não se pode captar a plena dimensão deum sistema, de uma sociedade e de uma cultura, sem a constataçãomúltipla de fatores causais inerentes à historicidade humana. Pri-vilegiar, na análise, uma dada instância ou elemento fenomênico(Estado, Direito etc.) como expressões da vida produtiva organi-zada implica refletir sobre a especificidade da formação social(sociedade corporativo-estamental, organização representativabur-guesa etc.), o modo de produção da riqueza (sistema econômicofeudal, capitalista etc.), a ideologia como doutrina/crençaunificadora e justificadora de mundo (liberalismo, individualis-mo) e finalmente, sobre a configuração do modelo de organiza-ção político-institucional, ou seja, a instância maior de poder(pluralidade de centros de poder, descentralização administrativae/ou centralização estatal etc.).

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26 Ú-tucana, Evomcao E. oacitroo na cU|.Tt1R.~. n;aiolc.a Estatai

Parece claro, assim, que não se pode ter urna visão ampla deuma determinada fomia positivada de Direito (o caso particular.aqui, do Direito Estatal ocidental) se não for identificado a que tipode organização social está vinculado c que espécie de relações es-truturais de poder, de valores e de interesses reproduz. Cada con-texto cultural de epoca que abrange a integração dos fatores soci-ais, econõmicos, politicos e jurídicos envolve, igualmente, um pro-cesso cíclico de emergência, desenvolvimento, crise e rupturas. Osmodelos culturais, que constituem paradigmas no tempo e no espa-ço, permeados pela experiência humana na historicidade e sistema-tizados por processos de racionalização, refletem concepções, sig-nificados e valores específicos de mundo. Esta percepção que abar-ca realidades momentãneas evolutivas É corretamente identificadaquando se examina a transposição do Feudalismo para o modelocultural representado pela sociedade moderna.

Em face dessas premissas liminares, pretende-se assinalar, nes-te primeiro capítulo, que O fenõmeno jurídico que florescerá namoderna cultura européia ocidental, apartir do seculo XVII e XVIII,corresponderá ã visão de mundo predominante no ãmbito da for-mação social burguesa, do modo de produção capitalista, da ideo-logia liberal-individualista e da centralização política, atraves dafigura de um Estado Nacional Soberano. Ao se conceber o Direitocomo produto da vida humana organizada e como expressão dasrelações sociais provenientes de necessidades, constatar-se-á que,em cada período historico da civilização ocidental, domina um cer-to tipo de ordenação juridica. Nessa perspectiva, buscar-se-á, inici-almente, descrever e caracterizar, em linhas gerais, o Direito dasociedade moderna, realçando sua adequação com o tipo de socie-dade emergente (sociedade burguesa), com o modo de produçãomaterial (economia capitalista), com a hegemonia ideológica (libe-ral-individualista) e com a forma de organização institucional depoder (Estado Soberano) que passa a ser configurada na domina-ção racional-legal (burocracia). Há que se constatar, assim, numprimeiro momento, como essas diferentes estruturascompatibilizaram-se na constituição de um paradigma juridico,marcado pelos princípios do monismo (univocidade), daestatalidade, da racionalidade formal, da certeza e da segurançajuridica. Posteriormente, tentar-se-á demonstrar de que forma, em

l. 1.! Capitalisozo. sociedorie burguesa e estairlo moderno 27

fins do seculo XX, essa cultura juridica entra em compasso de es-gotamento e de crise estrutural, não suportando as profilndas trans-formações econõmicas e políticas geradas pela complexidade dosconflitos coletivos, as demandas sociais e as novas necessidadescriadas pela globalização do Capitalismo e sua inserção determinantenas estruturas sócio-políticas dependentes c periféricas.

Í. i.l Capitalismo, .sociedade burguesa e estudo moderno

O Feudalismo surgiu como resultado da combinação de doissignificativos eventos: a decadência da sociedade escravista ro-mana e a fragmentação da sociedade gentilica dominante entrepovos nõrdi da Enropal.

Tratava sociedade estamental, fundada na posse daterra e na econõmica agrária, profundamente marcadapor relações tais de servidão (laços de subordinação pessoalentre suserania e vassalagem) e por uma hierarquia de privilégi-os. Os limites da politica c da juridicidade se definem tendo porbase a propriedade da terra, a forte relação de dependência e osestreitos vínculos comunitários. Já no que tange á organização dopoder senhorial, o sistema feudal compreende tanto umadescentralização administrativa, quanto uma fragmentação epluralismo de centros de decisões. O pluralismo político medie-val se dá mediante a infinita multiplicidade de centros internos depoder politico, distribuídos a nobres, bispos, tmiversidades, rei-nos, entidades intermediárias, estamentos, organizações ecorporações de oficio. Distintamente da sociedade moderna,centrada no interesse do espaço privado e na etica da racionalidadeliberal-individualista, o pensamento ideológico medieval e calca-do na concepção “corporativa” da vida social, valorizando os fe-nõmenos coletivos e os múltiplos corpos sociais, cada qual comsua autonomia interna para as funções políticas e jiuidicas, masdispostos a colaborar com o conjunto e dele participar solidaria-

' Ef. CONTE. Giuliano. De crísc do ƒcudoiismo eo nascimento do capüaüsmo.Lisboa: Editorial Presença, 1979. p. T-40; Dl-ILWEILER. Otto Alcides. Materialismohistórico c crise contemporânea. 2. cd., Porto Alegre: Mercado Jltberto, E985. p. 93-l2l.

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28 Dtuoem, svotuc.-to E nsctnvto oa cutrutta Juslmc.-\ Esrmvu.

mente. Entretanto, o corporativismo social e a descentralizaçãopolitica não eram apenas os traços gerais do espectro politicoinstitucional, pois deve-se reconhecer a presença e a prática deum sistema juridico múltiplo e consuetudinário, embasado na hi-erarquia de privilégios e nas regalias nobiliárquicas. Ainda que seconceba o Direito Medieval como uma estrutura difusa,assistemática e pluralista, pois cada reino e cada feudo regia-sepor um “Direito proprio, baseado nos usos locais, nos preceden-tes dos juizes da terra, nas cartas de privilégio concedidas pelosenhor”, não se pode minimizar o caráter supletivo e doutrináriodo Direito Canõnico, do Direito Visigõtico e, essencialmente, doDireito Romano. Trata-se de um Direito que, por reconhecer a de-sigualdade e os interesses estarnentais, define-se como estatuto ju-ridico não abrangente, pois é produzido legitimar aespecificidade de uma hierarquia social cla da nasdistinções entre clero, nobreza e campesinato. dúvida deque se deve reconhecer, quanto ã produção jurí primeiromomento, a existência do pluralismo nonnativo das corporaçõesem cujos marcos ocorre urna justiça administrada em tribunais cri-ados pelo senhor feudal e pelo proprietário nominal da tena. Poste-riormente, em face das exigências de regulamentação e controle danova ordem econõmica mercantilista e de proteção aos intentosimediatos da nascente burguesia comercial, a antiga estrutura des-centralizada de produçãojuridica é suced.ida pela consolidação maisgenética sistemática e unitária de um Direito Mercantil.

Sem a pretensão de oferecer aqui uma síntese exaustiva domodelo feudal, dir-se-á, tão somente, que entre os séculos XI eXV começa na Europa Ocidental a lenta desagregação do Fcuda-lismo, motivada por sucessivas crises na esfera da formação soci-al, do modo de produção da riqueza e da organização politico-institucional. Tais manifestações são predominantes na transiçãoda economia agrário-senhorial para uma economia mercantil-as-salariada. A crise da economia agrário-senhorial implica o despo-voamento dos campos, a queda da produção agricola, a desinte-

Z HESPAI~lHA,'.3mtonio Manuel. História das instituições. Épocas medieval e nm-dernu. Coimbra: Almedina. 1982. p. 179; WGLKMER, Antonio Carlos. Eienlemospurauma critica do Estudo. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris. 1990. p. 24.

J. Li Capitalismo, sociedade burguesa e estado modemo 29

gração das comunidades de pequenos produtores autõnomos e aemergencia de um setor social organizado que sobrepõe a nobre-za decadente, através dos lucros e do enriquecimento mediante ocomércio mercantil. Neste periodo de transformação, como ensi-na Maurice Dobb, são decisivos, na passagem para o novo modode produção, o processo da crise e a ruptura do feudalismo, oesfacelamento social da comunidade dos pequenos produtoreslocais, o desenvolvimento de uma economia de mercado urbano,a acumulaçao de um pequeno capital e o crescimento das trocasde mercadorias em base monetáriai. Uma das conseqüências re-fere-se aos pequenos produtores, subordinados parcial e/ou total-mente ao senhorio, que não se conseguem a emancipação dessasobrigações feudais, mas também e sobretudo acabam,gradativamente, por depender, para sua subsistência, de tuna ou-tra forma de sttbordinação, qual seja, do trabalho assalariado.

A medida que se esgota o Feudalismo, instaura-se o Capitalis-mo como novb modelo de desenvolvimento econõmico e social emque o capital é o instrumento fundamental da produção material. Oavanço dessas transfomiações dá-sc, principalmente, nos horizon-tes de modificações originadas pelo grande impulso das atividadescomerciais de algumas cidades européias com o Oriente (principal-mente apés as grandes Cruzadas), pela substituição das relaçõessociais servis e da produção artesanal dos pequenos trabalhadoresindependentes (donos de suas ferramentas, matéria-prima e ofici-na), pela força de trabalho assalariada, pela passagem das peque-nas oficinas autõnomas para as manufaturas, e, finalmente, pelaconstante busca do lucro, pela irnplementação da produtividadeeconõrnica de mercado livre e pela sistematização do comércio atra-vés das trocas monetárias. assim, o Capitalismo irá constituir-sepaulatinamente, durante o fmal da Idade Média e alcançará quasetoda a Europa depois dos séculos XVI e XVII.

Em face desses novos fatores fundantes representados pelo modode produção capitalista, pela sociedade burguesa, pela ideologia

3 Cl". DÚBB, Maurice. A evoiuçãfl do cqpiluiisnm. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar,19??-'. p. 54 c segs.: CATANI, Afrânio Mendes. O que é capilulllrme. T. ed.. São Paulo:Brasiliense. 1981 . p. 49-50. Observar ainda: MACFARLANE, Alan. Lu culture dci capi-rniísino. México: Fondo Economico de Cultura, 1993.

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30 ORJGEM, svoLuÇÃo s oscrnuo DA c'u1;runÀ JURÍDICA ESTATAL

liberal-individualista e pelo modemo Estado Soberano, qual é opadrão de juridicidade a ser produzido e que atingirá a hegemonia?Ora, a resposta a essa indagação será dada gradativamente median-te a racionalidade lógico-formal centralizadora do Direito produzi-do unicamente pelo Estado e seus órgãos (doutrina do monismojurídico), enquanto referencial normativo da moderna sociedadeocidental, a partir dos séculos XVII e XVIII. Mas, como se deuessa relação e qual é a razão de a legalidade estatal se tomar oprojeto da modemidade capitalista burguesa? Para responder a isso,impõe-se consignar, primeiramente, o significado do Capitalismo,a legitimação dos interesses burgueses e a necessidade de um po-der centralizado e burocrático.

Por não se tratar, aqui, de uma análise sistematicamente rigo-rosa e acabada sob o prisma econômico, mas tão-somente daconstatação de alguns traços genéricos que são importantes paracompreender a ordem jurídica, não se contemplará a evolução, acaracterização e a classificação dos diversos níveis e estágios doCapitalismo. Descarta-se, assim, a periodização que ora consagraa linearidade de um Capitalismo comercial, industrial e financei-ro, ora define a dinâmica que atravessa o Capitalismo mercantil,o concorrencial e o monopolista. Acima de sua compreensão, quercomo modo de produção, quer como especificidade de uma for-ma histórica de ação econômica, o Capitalismo enquanto “(...)conjunto de comportamentos individuais e coletivos, atinentes àprodução, distribuição e consumo de bens”4, deve ser diferencia-do de outros modelos históricos de produção da riqueza. Algunsdesses pressupostos são, no entender de Gian R. Rusconi, essen-ciais, como: “a) propriedade privada dos meios de produção, paracuja ativação é necessária a presença do trabalho assalariado for-malmente livre; b) sistema de mercado, baseado na iniciativa e naempresa privada, não necessariamente pessoal; c) processos deracionalização dos meios e métodos diretos e indiretos para a va-lorização do capital e a exploração das oportunidades de mercadopara efeito de lucro”5.

4 RUSCONI, Gian R. Capitalismo. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de polí-tica. Brasília: UnB, 1986. p. 141.

5 RUSCONI, Gian R. op. ciz., p. 141.

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1.1.1 Capitalismo, sociedade burguesa e estado moderno 31

Ainda traços específicos do primeiro período do sistema eco-nômico capitalista, predominantes entre os séculos XVII e XVIII,são também apontados por Erich Fromm: “1) a existência de ho-mens políticos e juridicamente livres; 2) o fato de os homens li-vres (...) venderem o seu trabalho ao proprietário de capital nomercado de trabalho, mediante um contrato; 3) a existência domercado de bens como mecanismo determinante dos preços e re-gulador da alteração na produção social; e 4) o princípio de quecada indivíduo atua com o objetivo de conseguir uma utilidadepara si mesmo, supondo-se, contudo, que, por causa da ação com-petitiva de muitos, resulte a maior vantagem possível para todos”°.

Não se pode, no entanto, desprezar 0 fato de que não existe,nas discussões clássicas, uma unifonnidade do que seja o Capita-lismo. Assim, toma-se relevante destacar duas interpretações quemarcaram, indiscutivelmente, a maior parte dos trabalhos escri-tos sobre o tema: a de Karl Marx e a de Max Weber.

A análise crítica de teor histórico-econômico do Capitalismo,feita por Karl Marx na sua obra O Capital, tem presente o estágio eas condições em que se encontrava o Capitalismo em fins do séculoXIX. Para Marx, o Capitalismo é concebido como detenninadomodo de produção de mercadorias, constituído no princípio da EraModema e chegando á plenitude com o advento da Revolução In-dustrial, principalmente na Inglaterra. Como explicita MauriceDobb, o modo de produção implica, para Marx, um conjunto defatores que abrangem tanto o estado das forças produtivas e as for-mas de apropriação dos meios de produção quanto as relações soci-ais que se estabelecem entre os homens, resultantes de suas media-ções com o processo de produção. Nesta linha de raciocínio, o Ca-pitalismo não corporifica somente um sistema de produção de mer-cadorias, mas engloba um sistema social no qual a força de traba-lho se transfonna em mercadoria e se toma objeto de troca comoqualquer outro que se vende e se compra no mercadoi.

6 FROMM, Erich. Psicanálise da sociedade contemporânea. 9. ed., Rio de Janeiro:Zahar, 1979. p. 91.

i Cf. DOBB, Maurice. op. cit., p. 18-19; CATANI, Afrânio M. op. cit., p. 8-9 e I9-48;MANDEL, Emest. Introdução ao marxismo. 4. ed., Porto Alegre: Movimento, l982. p.27-42. Constatar: MARX, Karl. O CapitaL Edição resumida por Julian Borchardt. 7. ed.,Rio de Janeiro: Zahar, l982. p. 24-41, 138-151 e l90-192.

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32 ORIGEM, EVOLUÇÃO E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

À viaâa dialética a lúatói-iaa-aaaaômiaa da Maia, aaaaaiizaâana relação “capital-trabalho”, contrapõe-se a interpretação“fáustica e empresarial”, “psico-religiosa” e “culturalista” de au-tores como Wemer Sombart e Max Weber. A essência do Capita-lismo, para Wemer Sombart, transcende os meros fatores econô-micos, pois suas raizes se prendem ao “estado de espírito”, ao“comportamento humano”, enfim, ao conjunto de “atitudes psi-cológicas e culturais” que subsistem na sociedade moderna. Naesteira idealista de Sombart, mas com enfoques próprios, MaxWeber, tratando desta questão em A Ética Protestante e o Espíri-to do Capitalismo, vem acentuar que o Capitalismo é produtohistórico do modo racional de pensar as relações sociais no con-texto do mundo moderno ocidental, forma particular edeterminante de racionalidade que não se faz presente nas demaiscivilizações. Conferindo relevância aos fatores culturais, Weberbuscou priorizar a “racionalidade” como expressão fundamentaldo mundo moderno europeu. Todo esse processo de racionaliza-ção da vida ocidental teria, no Capitalismo, o momento econômi-co por excelência. Esta racionalização seria o fio condutor de umnexo interativo entre a crença religiosa (salvação pela criação dariqueza), a coerência ética da existência (valorização individualdo trabalho) e a atividade econômica disciplinada. Para Weber,os fundamentos deste tipo racional de “mentalidade”, ou seja, desseethos do Capitalismo modemo, provinham de certas convicções,crenças e valores, propiciados pela Reforma Protestante (séculoXVI), mais especificamente das condições histórico-culturaisadvindas da ética calvinista. Ao contrário da concepção católicamedieval, que condenava toda espécie de lucro e apelava para odesprendimento dos bens materiais mundanos, os princípios éti-co-teológicos do Protestantismo ascético atribuiu todo mérito ànatural vocação hurnana para o trabalho e para um esforço fisicocapaz de levar à riqueza e à conquista da salvação individuals.

3 Cf. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo. 4. ed., SãoPaulo: Pioneira, 1985. p. 19-51, 65-90 e 110-132; FREUND, Julien. Sociologia de MaxWeber. Rio de Janeiró: Forense Universitária, [s.d.]. p. 148-158; RUSCONI, Gian R. op.cit., p. 142-144; CATANI, Afrânio M. op. cit., p. 12-19; DOBB, Maurice. op. cit. Consul-tar também: SOMBART, Wemer. Lujo y capitalismo. Buenos Aires: G. Davalos, 1958.

1.1.1 Capitalismo, sociedade bwguesa e estado moderno

Tais configurações permitem assinalar que Weber buscou com-preender o Capitalismo, tanto como culminância de mn processode racionalidade da vida organizada, quanto como ethoscivilizatório da moderna sociedade ocidental européia”.

Mesmo sendo inegáveis e amplamente reconhecidas as contri-buições de Karl Marx e Max Weber ao Capitalismo, não se deveomitir algumas observações criticas. Em meio a um amplo deba-te, cabe razão a Gian R. Rusconi, quando assinala que a interpre-tação crítica efetivada por Marx tem “(...) um valor exemplar pelaperspicácia com que são anunciados os elementos constitutivose, ao mesmo tempo, contraditórios do Capitalismo (contradiçõesacerca do trabalho, mercadoria e dinheiro). Todavia, essa perspi-cácia critica não se traduz imediatamente em prognose da efetivadinâmica da evolução do Capitalismo”'°. Ainda que subsista “umhiato entre a força da análise crítica e a incapacidade preditiva”dos avanços do Capitalismo, não se pode minimizar asdesmitificações que Marx realizou sobre um modelo econômicoeficiente na exploração e na alienação do homem trabalhador. NosManuscritos econômicos-filosóficos, Marx aponta, com nitidez,não só as condições em que, no sistema econômico capitalista, otrabalho humano é direcionado para circunstâncias alienantes ecoisificantes, como também aquelas em que a atividade criadorado homem acaba transformando-se num processo de automação ede desumanização“. Por outro lado, além de destacar aspectosvitais da economia racional capitalista, Weber tem o mérito deassinalar que o aspecto primordial da “crise intema ao capitalis-mo não consiste em uma presumida contraditoriedade de seus ele-mentos, mas na virtual extinção de sua dinâmica por obra de umpoder burocrático. Weber não almeja a abolição do mercado, que

° Cf. BENDIX, Reinhard. Max Weber; um perfil intelectual. Brasilia: UnB, 1986. p.66-99; LOEWITH, Karl. Racionalização e liberdade: o sentido da ação social. ln:FORACCHI, M. M. & MARTINS, J. S. [Orgs.]. Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro:LTC, 1977. p. 145-162; WEBER, Max. Ensaios de sociologia. H. Gerth e C. WrightNills. [Orgs.]. 5 ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p. 84-89. _ .

'° RUSCONI, Gian R. op. cit., p. 143.“ Cf. AVINERI, Shlomo. O pensamento político e social de Karl Marx. Coimbra:

Coimbra Ed., 1978. p. 190; FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. 8. ed., Riode Janeiro: Zahar, 1979. p. 50-61 e 8.9-102.

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34 ORIGEM, evoLUÇÃo E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA EsrArAr

para ele é garantia de cálculo racional e de autonomia dos sujei-tos: à extinção do mercado sucederia somente o despostismo puroe simples do poder burocrático”*2. Certamente assiste razão a ana-listas, como Harold Laski, para os quais o triunfo da filosofiaeconômica capitalista só pode realmente ser explicado quando sepercebe que as crescentes potencialidades de produção realmentenão podiam continuar sendo exploradas dentro dos estreitos limi-tes da velha cultura medieval”.

O florescimento do Capitalismo, como ápice de toda estruturaeconômica da sociedade modema -- resultante, como já foi visto,da perda de autonomia por parte dos pequenos produtores e daseparação de seus instrumentos de produção e de subsistência, eda transformação da força de trabalho em mercadoria -, criarápossibilidades para a concomitante formação de uma nova classesocial proprietária que monopolizará os meios de produção. Es-tes novos agentes, edificadores da chamada sociedade burguesa,vão forjar seus direitos com uma plena participação no controledas novas formas de organização do poder. A conseqüência dessedeslocamento nas relações sociais aponta para um quadro em queo controle politico-econômico, assentado na autoridade de umaaristocracia proprietária da terra, passa a ser compartilhado por“homens cuja influência provinha unicamente da propriedade debens móveis. O banqueiro, o mercador, o fabricante começaramsubstituindo o latifundiário, o eclesiástico e o guerreiro como ostipos de influência social predominante”“.

No que tange a esses novos atores para a época (os “burgue-ses”), cabe sublinhar, preliminarmente, que o conceito de burgue-sia, quer como classe social, quer como categoria ético-espiritu-al, está ampla e estreitamente identificado com a modernidade dacultura econômico-capitalista. Desse modo, toma-se adequado ca-racterizar a formação social burguesa pelo estágio de evolução

'2 RUSCONI, Gian R. op. cit., p. 144.'3 Cf. LASKI, Harold. O liberalismo europeu. São Paulo: Mestre Jou, 1973. p. 17

(El liberalismo europeo. 2 ed., México - Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,1953); RUGIERO, .Guido de. Historia del liberalismo europeo. Trad.: C. G. Posada.Madrid, 194-4; MANDEL, Ernest. op. cit., p. 33.

“ LASK1, Harold. op. cit., p. 9. Consultar sobre o “pensamento burguês”: CUEVA,Mario de la. La Idea del Estado. México: UNAM, 1980. p. 116-124.

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1.1.1 Capitalismo, sociedade burguesa e estado modemo 3 5

em que se encontra o modo de produção assentado na proprieda-de privada, na divisão social do trabalho e na competição lucrati-va. Em cada momento do sistema capitalista ocidental firma-seuma visão social de época e uma concepção comum de vida, mol-dadas por interesses específicos do segmento burguês ou setorprodutivo, que atravessam o espaço econômico, político, religio-so, filosófico etc. Outrossim, nas formas de organizações produ-tivas centralizadas nas relações “capital-trabalho”, os agentes so-ciais dominantes revestem-se de características peculiares, trans-postas desde a pequena burguesia e a burguesia mercantil até aburguesia industrial e financeira. Examinar a burguesia no inícioda Idade Moderna pressupõe admiti-la como segmento insurgen-te, dinâmico e implementador de mudanças das estruturas feudaisem crise, bem como compreendê-la como parcela social interme-diária, entre a nobreza e o clero - detentores do poder e da rique-za - e o campesinato e as classes populares. Já na sociedade defins do século XIX e meados do século XX, a burguesia represen-taria o setor social proprietário dos meios de produção, depositá-ria da riqueza e do poder político, edificadora da cultura oficial,que nem sempre é a das massas urbanas assalariadas.

De acordo com autores como W. Sombart e M. Weber, a bur-guesia deve ser visualizada como camada social historicamentecoesa e racionalmente interligada por “formas de agir” ou “modode ser” que matizam identidades culturais comuns. Além de serum “modo de vida” ou de um “comportamento econômico-soci-al”, trata-se, como descreve G. M. Bravo, de “(...) um detennina-do tipo de mentalidade religiosa, de fé em alguns “valores” típi-cos, tais como a parcimônia, o espírito de grupo, mesmo na defe-sa de um sólido individualismo, o rígido puritanismo e o estritocumprimento de normas éticas e comerciais, não tanto por esta-rem escritas e sim por terem entrado nas convenções”'5.

Na verdade, de todas as apreciações sobre a burguesia, a que tal-vez tenha sido mais discutida foi aquela desenvolvida por Marx eEngels. Situando a luta de classe como núcleo essencial de todo o

'5 BRAVO, Gian M. In: BOBBIO, Norberto et al., op. cit., p. 119-120. Para umaprofundamento, vide: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. op. cit., p. 211-228;SOMBART, Wemer. Le Bourgeois. Paris: Petite Bibliothèque Payot, 1966.

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36 Onioaivr, EvoruÇÃo E DECLÍNIO DA CULTURA JURiD1cA EsrArAL

processo histórico produtivo, Marx apresenta a burguesia como averdadeira classe capitalista, possuidora que é da propriedade priva-da dos meios de produção na modema civilização industrial. Ao lon-go de seu Manifesto do Partido Comunista (1848), Marx deixa claroo papel, inicialmente revolucionário, que a burguesia desempenhouna história, pois, impulsionada pela busca de novos mercados, a bur-guesia invade e explora o mercado intemacional, impondo em todosos países um ritmo cosmopolita de produção e de constuno. A bur-guesia como novo sujeito histórico que emergiu no início damodernidade seria resultado de run “longo processo de desenvolvi-mento, de uma série de revoluções no modo de produção e de troca(...). Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses livres dasprimeiras cidades; desta população municipal, sairam os primeiroselementos da burguesia”. Mas a modema organização burguesa, “quebrotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismosde classe. Não fez senão substituir novas classes, novas condições deopressão, novas formas de luta às que existiram no passado”1°. Aindaque reconheça na sociedade burguesa a organização histórico-produ-tiva mais desenvolvida e diferenciada, Marx não deixa de criticar opreço desse progresso, suas incoerências e seus intentos imediatos.Significa dizer que a burguesia dilacerou, sem compaixão, “todos oscomplexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seussuperiores naturais (...), para só deixar subsistir, de homem para ho-mem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento àvista”. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusias-mo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águasgeladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples va-lor de troca; substituiu as inúmeras liberdades, conquistadas com tantoesforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em umapalavra, em lugar de exploração velada por ilusões religiosas e polí-ticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta ebrutal”". Por fim, Marx alerta para o fato de que, em sua época (se-gunda metade do século XIX), a sociedade caminhava para umaestratificação cada vez mais nítida entre dois vastos campos antagô-

2*° MARX, Karl; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In: FERNANDES,

Florestan! [Org.]. Marx/Engels: história. 2. ed., São Paulo: Ática, 1984. p. 366.“ MARX, Karl; ENGELS, F. op. cit., p. 366-367 e 414.

1.1.1 Capitalismo, sociedade burguesa e estado moderno 37

nicos, ou seja, em duas classes sistematicamente contrárias: a bur-guesia e o proletariado. Ademais, nessa fase, somente o proletariadoé uma classe autenticamente revolucionária, pois as outras classes,com o desenvolvimento da grande indústria, ao enfientarem a bur-guesia, acabam degenerando e perecendo. E natural, portanto, que,com o crescimento e a organização do proletariado, a classe burgue-sa tome-se incapaz de “continuar desempenhando o papel de classedominante e de impor à sociedade, como lei suprema, as condiçõesde existência de sua classe”18.

Atinente ao amplo processo de racionalização ético-filosófico etécnico-produtivo que contextualiza a modernidade capitalista e bur-guesa, emerge, concomitante, uma cultura liberal-individualista. Umacultura que define a íntima relação entre o sistema econômico capita-lista, a nova classe social burguesa e os princípios diretivos da doutrinaliberal. Essa filosofia, caracterizada como Liberalismo e surgida comas condições materiais emergentes e as novas relações sociais, tomou-se, no dizer de Harold Laski, urna visão ideológica “para ajustar-se àsnecessidades de um novo mundo. (_ ..) Eram necessárias novas concep-ções que legitimassem as novas potencialidades de riqueza que os ho-mens haviam descoberto, pouco a pouco, nas eras precedentes. (...) e,em função disso, desenvolveu-se uma nova filosofia para pemntir umajustificação racional do novo mundo que assim nascera”l9.

O aparecimento histórico do Liberalismo deu-se a partir dodesenvolvimento do comércio, do favorecimento de uma classemédia individualista e produtiva e, em particular, do clima de to-lerância que varreu a Inglaterra e a Holanda, após os conflitosreligiosos gerados pela Reformazo. Ao contrário da doutrina pre-dominante, autores como Nicola Matteucci buscam encontrar asraízes do Liberalismo não na burguesia propriamente dita, mas nareivindicação de liberdade política advinda da aristocracia (casoinglês) em sua luta contra o poder absoluto do príncipe”.

'3 MARX, Karl; ENGELS, F. op. cit., p. 366, 373-375.1° LASKI, Harold. op. cit., p. 9, 14-15.2° Cf. RUSSEL, Bertrand. História daƒilosofa ocidental. 3. ed., São Paulo: Cia. Ed.

Nacional, 1977, v. 3. p. 125.2' MATTEUCCI, Nicola. In: BOBBIO, Norberto et al op. cit., p. 699-700. Observar

igualmente sobre a caracterização do “liberalismo” e sua trajetória na experiência históri-

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3 8 ORIGEM, EvoLuÇÃo E mzcrínio DA cu1:ruR.›\ JURÍDICA ESTATAL

Longe de uma constatação mais pormenorizada, fica mencio-nado, como já se examinou em outro momento”, que o Liberalis-mo surgiu como nova visão global do mundo, constituída pelosvalores, crenças e interesses de uma classe social burguesa na sualuta histórica contra a dominação do Feudalismo aristocrático-fundiário, entre os séculos XVII e XVIII, no continente europeu.Assim, o Liberalismo toma-se a expressão de uma ética individu-alista voltada basicamente para a noção de liberdade total queestá presente em todos os aspectos da realidade, desde o filosofi-co até o social, o econômico, o politico, o religioso etc. Em seusprincípios, o Liberalismo se constituiu na bandeira revolucioná-ria que a burguesia capitalista (apoiada pelos camponeses e pelascamadas sociais exploradas) utiliza contra o Antigo Regime Ab-solutista. Acontece que, no inicio, o Liberalismo assumiu umaforma revolucionária, marcada pela “liberdade, igualdade efraternidade”, que favorecia tanto os interesses individuais daburguesia enriquecida quanto os de seus aliados economicamentemenos favorecidos. Mais tarde, contudo, quando o Capitalismocomeça a passar à fase industrial, a burguesia (a elite burguesa),assumindo o poder politico e consolidando seu controle econô-mico, começa a “aplicar na prática somente os aspectos da teorialiberal” que mais lhe interessam, denegando a distribuição socialda riqueza e excluindo o povo do acesso ao govemo”.

Ademais, como menciona Lanzoni, o Liberalismo oferece “si-tuações ambíguas, em quase todos os seus aspectos. Se, de um lado,ele prega a liberdade, como bem supremo do homem, de outro,limita a ação daqueles que não possuem dinheiro. Se se apresentacomo revolucionário e progressista, em relação ao Antigo Regime,(...), é no entanto, conservador em relação às reivindicações popu-lares. Portanto, (...) é revolucionário e ao mesmo tempo conserva-

ca de diversos países da Europa: VERDU, Pablo Lucas. Curso de Derecho Politico. 2.ed., Madrid: Tecnos, 1976, v. l. p. 221-230; BELLAMY, Richard. Liberalismo e Socie-dade Moderna. São Paulo: EDUSP, 1994; RAWLS, John. Liberalismo Político. México:Fondo de Cultura Económica. 1995.

22 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. São Paulo: Revistados Tribunais, p. 92-93, I989.

23 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. 93; LANZONI, Augusto. Iniciaçãoàs ideologias políticas. São Paulo: Ícone, 1986. p. 17 e 19; LASKI, Harold. op. cit.

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1.1.1 Capitalismo, sociedade burguesa e estado moderno 39

dor”. Enquanto que, no século XIX, “luta contra a monarquia abso-luta e, no século XX, contra as ditaduras e regimes totalitários”, emambos os momentos volta-se contra “as autoridades populares esobretudo contra a democracia e o socialismo”24.

O exame de seu conteúdo conduz ao reconhecimento neces-sário de alguns traços essenciais que passam pelo “núcleo econô-mico” (livre iniciativa empresarial, propriedade privada, econo-mia de mercado), pelo “núcleo político-jurídico” (Estado de Di-reito, soberania popular, supremacia constitucional, separação dospoderes, representação política, direitos civis e políticos) e pelo“núcleo ético-ñlosófico” (liberdade pessoal, tolerância, crença eotimismo na vida, individualismo)25.

De todas as expressões valorativas, a que mais direta ecomumente se integra ao Liberalismo é o individualismo. Ain-da que se admitam outras experiências de cunho individualis-ta, como o individualismo cristão, naturalista, racionalista ouanarquista, nenhuma tem um alcance tão rico e coerente quan-to o individualismo liberal que faz do ser individual um “valorem si” e um “valor absoluto”26. A defesa extrema do indivíduonão se dá somente contra o Estado, mas também em relação atoda e qualquer organização institucional. A construção da or-dem não é fruto da autoridade extema, ou de uma imposiçãoespecial, pois a sociedade é a soma das vontades individuais,vontade coletiva soberanamente livre e autônoma. Destarte,pressupondo a associação espontânea de individuos iguais cominteresses comuns, a sociedade possibilita a constituição deum espaço público, cujas particularidades pessoais são eleva-das como categorias-padrões que coexistem como intentos ge-rais. O individualismo, enquanto aspecto nuclear da modemaideologia liberal e enquanto expressão da moralidade socialburguesa, prioriza o homem como centro autônomo de deci-sões econômicas, políticas e racionais. A ação justifica-se nãopela afirmação interativa com o social, mas por uma subjetivi-

2* Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. 93; LANZONI, Augusto. op. cit., p. 20.25 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. 93-94; MAGRIDIS, Roy C. Ideologi-

as politicas contemporâneas. Brasilia: UnB, 1982. p. 38 e 41.2° Cf. BURDEAU, Georges. O liberalismo. Póvoa de Varzim: Publicações Europa-

América, s/d. p. 81-84.

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40 ORIGEM, Evor.UÇÃo E DECLÍNIO DA CULTURÀ JURIDICA ESTATAI.

dade em que o sujeito racional “se conhece e se afirma comoindividualidade°””.

Uma vez configurados os primórdios da sociedade modema eu-ropéia no contexto da economia capitalista, da hegemonia socialburguesa e dos fundamentos ideológico-filosóficos 1iberal-indivi-dualistas, ver-se-á que tipo de estrutura político-institucional re-produziu e assegurou a especificidade desses novos interesses. Trata-se da moderna organização estatal de poder, revestida pelo mono-pólio da força soberana, da centralização, da secularização e daburocracia administrativa. Nesse aspecto, assiste inteira razão a Marxquando pondera que a nascente burguesia necessitava de forte au-toridade central que protegesse seus bens, favorecesse seu progres-so material e resguardasse sua sobrevivência como classe domi-nante, reconhecendo o caráter imperioso dessa autoridade. Para tan-to, ensina Marx, a burguesia “(...) suprime cada vez mais a disper-são dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglo-merou as populações, centralizou os meios de produção e concen-trou a propriedade em poucas mãos. A conseqüência necessáriadessas transfonnações foi a centralização política. Províncias inde-pendentes, apenas ligadas por débeis laços federativos, possuindointeresses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reu-nidas em uma só nação, com um só govemo, uma só lei, um sóinteresse nacional de classe, uma só barreira a1fandegária”28.

E necessário destacar, na passagem da estrutura pluralista,policêntrica e complexa “dos senhorios de origem feudal” para umainstância “tenitorial concentrada, unitária e exclusiva”, todo um pro-cesso de racionalização da gestão do poder, decorrente das “condi-ções históricas materiais” e da secularização utilitária que desloca ocontrole sócio-político da Igreja para a autoridade laica soberana.Naturalmente, essa transposição evidencia, para a nova cultura polí-tica, que o Estado corporifica o “projeto “racional” da humanidadeem tomo do próprio destino terreno: o contrato social, que assinalasimbolicamente a passagem do Estado de natureza ao Estado civil,não é mais do que a tomada de consciência por parte do homem dos

27 GUTIÉRREZ, Gustavo. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1984. p.253-255.

2” MARX, Karl; ENGELS, F. op. cit., p. 368; LASKI, Harold. op. cit., p. 59-61.

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1.1.] Capitalismo, sociedade burguesa e estado moderno 41

condicionamentos naturais a que está sujeita sua vida em sociedade edas capacidades de que dispõe para controlar, organizar, gerir e utili-zar esses condicionamentos para sua sobrevivência (...)”29.

Os fundamentos teóricos de teor político-filosófico dessa es-trutura unitária e centralizada de poder podem ser encontradosem doutrinadores do absolutismo da época, como Maquiavel,Bodin e Hobbes. Sem deixar de reconhecer em Maquiavel o fun-dador da modema ciência política e precursor da unidade estatalitaliana, particularmente interessa, aqui, assinalar a relevância daobra de Bodin por ter introduzido e vinculado, pela primeira vez,o conceito de “soberania política” ao Estado absoluto. Assim, aautoridade do Estado absoluto era caracterizada pelo “mais alto,absoluto e perpétuo poder sobre os súditos e cidadãos numa co-munidade°”°. Ficava patenteada, em sua República, a referência auma ordem estatal secularizada, com autoridade suprema e comvontade ilimitada, habilitada a promulgar leis para todos e nãopodendo ter seu poder dividido e/ou restringido, como no dualismomedieval entre papado e império. Ainda há que se mencionar quea doutrina da soberania, fundada no Direito divino dos reis e umadas mais fortes referências do Estado absolutista, foi, no começo,uma contestação contrária às “(...) tentativas de limitar os pode-res desses Estados, um protesto contra as pretensões do Império econtra as pretensões políticas da Igreja Católica Romana. (...) Talcomo surgiu, a teoria era admiravelmente adequada à realidadedo Estado absolutista e à sua suposição fundamental da autorida-de do rei. (...) Quando, porém, o absolutismo deixou de ser acei-tável, os homens conservaram a linguagem da doutrina de sobe-rania e falaram da soberania do Estado ou da Nação, trocando umsoberano pessoal por outro impessoal”3'. Entretanto, para alémde Bodin, ninguém mais do que Hobbes contribuiu para a justifi-cação e a sistematização da modema comunidade política absolu-ta, alicerçada na “soberania ilimitada” e na “total obediência do

2° SCI-IIERA, Pierangelo. In: BOBBIO, Norberto et al. , op. cit., p. 426 e 428.3° NISBET, Robert. Osfilósofos sociais. Brasilia: UnB, 1982. p. 144; LASKI, Harold.

op. cit., p. 34; BODIN, Jean. Los Seis Libros de la Republica. Trad.: Pedro Bravo. Madrid:Aguilar, 1973. p. 46; MAQUIAVEL, Niccoló. Opríncipe. São Paulo: Cultrix, 1976.

3* LINDSAY, A. D. O Estado democrático moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1964. p.124

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42 ORIGEM, EvoLUÇÃo E DECLÍNIO DA CULTURA JURIDICA ESTATAI.

indivíduo ao soberano”. Numa ordem estável não se concebia amultiplicidade, a divisão intema e o pluralismo social dos gruposintennediários, pois toda a autoridade estaria concentrada no Es-tado unitário e soberano. Neste sentido, como percebeu Nisbet,não houve outro autor que colaborasse mais do que Hobbes parao aperfeiçoamento da teoria do modemo Estado centralizado oci-dental”. Esta conceituação da comunidade política absolutahobbesiana aparecerá, na Inglaterra do século XVII, idealizadana obra o Leviatã. É neste célebre texto político que Hobbes pro-clama que a essência do Estado está concentrada numa só pessoaque possui o poder soberano e que é capaz de “usar a força e osrecursos de todos, da maneira que considere conveniente paraassegurar a paz e a defesa comum”. Há duas modalidades de ad-quirir este poder soberano que se constitui no Estado: “Estadopor aquisição” e “Estado por instituição”. O “Estado por aquisi-ção” é aquele em que o poder soberano foi adquirido pela forçanatural, originada da coação, do medo, e da subordinação. Já o“Estado por instituição”, ou o chamado “Estado Político” é aque-le em que os homens pactuarn e “concordam entre si em se sub-meterem a um homem, ou a uma assembléia de homens”33.

Parece claro, por conseguinte, que ao lado das concepções teó-ricas de Maquiavel, Bodin e, sobretudo, Hobbes - de inegável in-fluência na formulação do modemo Estado ocidental -, há sempreque reconhecer as condições históricas materiais e as mudançasestruturais favoráveis à solidificação do “novo ethos Somente apartir desta abrangência é que corretamente se configura a dinâmi-ca da formação de uma instância unitária, soberana e centralizada,processo que, na verdade, começou entre os séculos XIII e XIV ese estendeu até fms do século XVIII, expressando a combinação defatores intemos e extemos das fonnações sociais ocidentais, bemcomo o impacto de profundas transformações estruturais, de natu-reza sócio-econômica, político-jurídica e ético-cultura134.

32 Cf. NISBET, Robert. op. cit., p. 146, 148-149.33 HOBBES, Thomas. Leviatã. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 105-107 e 122.3° Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. 1990. p. 24-25. Ver ainda: ELIAS, Norbert. O

processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. v. 2 [Formação do Estado e Civiliza-ção]; ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. Porto: Afrontamento, 1984;POGGI, Gianfranco. A evolução do Estado moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

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1.1.1 Capitalismo, sociedade burguesa e estado modemo 43

Para tal efeito e almejando melhorar a exemplificação do modeloemergente, recorre-se, uma vez mais, a Max Weber para apontar aconjugação de detemijnados fatores simultâneos como pré-condi-ções para o Estado modemo ocidental, ou seja: a existência de umacomunidade humana que em detemiinado tenitório advoga para si o“monopólio da coação fisica legítima”; a materialização de um direi-to laicizado, produto da generalidade e da racionalização burguesa; acriação de uma força militar perrnanente e dirigida por autoridadecentral; a organização de um corpo administrativo racional, central-mente conduzida, baseada em regulamentos e padrões explícitos; eenfim, a monopolização dos meios de dominação administrativa e oestabelecimento de um sistema continuo de taxação”.

A necessária vinculação da estrutura político-institucional comos ciclos do modo de produção capitalista (mercantil,concorrencial/industrial, monopolista) permite certa periodizaçãodo modemo Estado burguês ocidental. Explicitando melhor, veri-fica-se que a organização política que surge sob a fonna de umEstado absolutista - soberana, monárquica e secularizada -temsua base de sustentação na produção econômica mercantilista,evoluindo, posteriormente, para um tipo de Estado que priorizaráas leis do mercado e o liberalismo econômico, tendo como “tra-ços” político-jurídicos a soberania nacional, separação dos pode-res, supremacia constitucional, democracia representativa formal,direitos civis e políticos etc. Ora, se o Estado liberal clássico (sé-culo XVIII e XIX) se identifica com a etapa concorrencial e in-dustrial do Capitalismo, a emergência do Estado intervencionista,que acompanha a passagem para a “reprodução ampliada” e “im-perialista” do sistema produtivo, nas primeiras décadas do séculoXX, coincidirá com a etapa “organizada” do Capitalismomonopolista/financeiro. Tal delineamento tecnocrático do Esta-do burguês contemporâneo desenvolve-se no crescente espaço deinserção e acumulação do capital, da existência de novas neces-sidades específicas geradas pela sociedade industrial de massa,da progressiva burocratização da administração pública e do per-

” Cf. WEBER, Max. Economia y sociedad México: Fondo de Cultura Económica,1984. p. 1047-1060; BENDIX, Reinhard. op. cit., p. 298-299; FREUND, Julien. op. cit., p.159. `

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44 ORIGEM, EvorUÇÃo E DEcI.iNIo DA CULTURÀ JURIDICA ESTATAI.

JWmanente “assistencialismo” estatal nao só na regulação dos con-flitos entre capital e trabalho, como ainda na institucionalizaçãodas politicas previdenciária e sindical”. Entretanto, este primeiromomento monopolista do Capitalismo é marcado pela constitui-ção, evolução e crise do Estado do Bem-Estar, cujo escopomediatiza maior conciliação entre os interesses do capital e asdemandas sociais. Segue-se que, entre os anos 70/90, o Capitalis-mo monopolista alcança nova etapa de complexidade e avanço,caracterizado por um processo de desorganização, reordenação eflexibilização global do capital intemacional. E a fase da grandeconcentração de corporações intemacionais, da fonnação de blo-cos econômicos e da integração dos mercados (Capitalismomonopolista globalizado). Tendo em conta esta trajetória maisrecente é que cabe visualizar também as transformações que atra-vessaram o Estado Capitalista, as formas de descentralização dopoder, a crescente presença de novos sujeitos participantes e aespecificidade de pólos normativos insurgentes e informais queexpressam a retomada de certas práticas pluralistas. Preocupa-ções estas que serão examinadas mais adiante.

Por outra parte, sem deixar de raciocinar em cima da perspec-tiva central da proposta deste capítulo, importa chamar a atençãopara o fato de que a estrutura econômica, social e política da soci-edade unitária burguês-capitalista se fundamenta num processode racionalização formal, burocrática e individualista,minimizando detemiinados valores que foram realçados na IdadeMédia, como a descentralização, os corpos intermediários, ocorporativismo associativo e o pluralismo, que serão retomados erepesados ao longo do século XX (numa perspectiva secular eprogressista), por grupos sociais marginais, liderançascontestatórias e movimentos utópicos radicais.

Uma vez exposto o quadro da cultura européia, trata-se de com-por, agora, o tipo de estatuto jurídico que dele dimana e que re-produz as condições daquelas relações histórico-sociais. Daí arelevância de se apontar para a íntima relação e as implicaçõespolítico-ideológicas de um sistema juridico que não existe por sisó, como instâricia autônoma e acabada, mas que realiza, num

3° Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. 1990, op. cit., p. 25-26.

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1.1.1 Capitalismo, sociedade burguesa e estado modemo 45

FH! 1%! Qu'alto grau de racionalizaçao, as condiçoes de produçao econômicacapitalista, da sociedade liberal-individualista e da estrutura esta-tal burocrática centralizada. Levando em consideração as origenshistóricas, as tradições específicas nacionais e a incorporação ounão do Direito Romano, o fenômeno juridico na sociedade mo-dema ocidental expressou-se mediante dois grandes sistemas ju-diciais, representados pela Civil Law (Direito escrito produzidodiretamente pelo Estado) e pela Commom Law (Direito dos Juízes,expressão indireta da vontade estatal). Tanto o “Direito Estatal”legislado diretamente por um poder unitário e soberano, quanto o“Direito dos Juízes”, resultante dos precedentes e práticas costu-meiras institucionalizadas, reconhecidas pela ordem estatal, irãogerar as bases racionais de uma tradiçãojurídica lógico-formalista.Das diferentes expressões instrumentais de produção nonnativa(leis, precedentes, jurisprudência, doutrina etc.) que tem reveladoe sustentado o principio do monismo jurídico na modemidadeburguês-capitalista, doravante há de se privilegiar e se ater tão-somente à mais significativa formalização normativa da organi-zação política modema: o Direito Estatal. Entretanto, ainda quese admita a hegemonia do projeto jurídico unitário, particular-mente do Direito Estatal, não se pode deixar de reconhecer a exis-tência, concomitante, do pluralismo jurídico e de uma tradiçãobem mais antiga de formulações jurídicas comunitárias. Destarte,a indiscutível prevalência do monismojurídico não consegue evitara força e a manutenção de ordenamentos jurídicos independentesdo Estado e de seus órgãos institucionais (Parlamento e Judiciá-rio), dentre os quais merecem destaque o Direito Eclesiástico e oDireito Internacional”.

Feitas as delimitações históricas, toma-se indispensável rea-firmar que o projeto de legalidade que acaba se impondo, é aque-le criado, validado e aplicado pelo próprio Estado, centralizadono exercício de sua soberania nacional. A asserção de que a cons-trução do modemo Direito ocidental está indissoluvelmente vin-

37 WECKMANN, Luis. Elpensamientopolítico medievaly los orrfgenes del derechointernacional México: Fondo de Cultura Económica, 1993. Sobre o Direito como con-dição da realidade estatal, observar também: HELLER, Hermann. Teoria do Estado. SãoPaulo: Mestre Jou, 1961. p. 221-239.

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46 ORIGEM, EvoLuÇÃo E nr-:cristo DA CULTURA Junjmcâ Esrzàrâr

culada a uma organização burocrática, a uma legitimidade juridi-co-racional e a determinadas condições sócio-econômicas espe-cíficas, permite configurar que os pressupostos da nova dogmáticajurídica, enquanto estatuto de representação burguês-capitalista,estarão assentados nos princípios da estatalidade, unicidade,positivação e racionalização.

Certamente é por essa razão que se hão de mencionar, primei-ramente, as causas que propiciaram a constituição e a evoluçãodo Direito na sociedade modema, o alcance de sua supremaciaformal com as codificações e, posteriormente, os surtos de inefi-cácia e esgotamento do monismo normativista no final do séculoXX. Para facilitar a correta apreensão da juridicidade estatal comoparadigma nuclear da presente modemidade, destacar-se-á aglobalidade de um processo que passa: a) pela formação do prin-cípio unitário no Direito; b) pelos principais momentos ou etapasdo monismo jurídico; e, fmalmente, c) pelos pressupostos e ca-racterização da dogmática jurídica centralizadora.

1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracteri-zação

Iniciando, dir-se-ia que a íntima conexão entre a suprema raci-onalização do poder soberano e a positividade formal do Direitoconduz à coesa e predominante doutrina do monismo. Tal con-cepção atribui ao Estado Modemo o monopólio exclusivo da pro-dução das normas jurídicas, ou seja, o Estado é o único agentelegitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas derelações sociais que se vão impondo. Esta asserção indica que, nadinâmica histórica, o “princípio da estatalidade do Direito desen-volveu-se concomitantemente com a doutrina política da sobera-nia, elevada esta à condição de característica essencial do Estado.Com efeito, o Estado Moderno define-se em função de sua com-petência de produzir o Direito e a ele submeter-se, ao mesmo tempoem que subméte as ordens normativas setoriais da vida social”3f*.

38 COELHO, Luiz Femando. Teoria crítica do Direito. Curitiba: HDV, 1986. p. 258.

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1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 47

Na verdade, a burguesia mercantil, ao suplantar a nobreza e oclero como nova classe social detentora dos meios de produção,busca adequar aos seus interesses uma ordem estatal fortalecida,apta a legitimar um sistema de normatividade. Esta ordenação,firmada na logicidade de regras genéricas, abstratas e racionali-zadas, disciplina, com segurança e coerência, questões do comér-cio, da propriedade privada, da herança, dos contratos etc. Nãosem razão, inúmeros pesquisadores insistem em proclamar que aprimeira manifestação do modemo Direito burguês deve ser as-sociada ao Direito Comercial em fins da Idade Média, preceden-do ao Direito Civil e ao Direito Público”.

Neste sentido, Harold Laski pondera que o século XVI foi umtempo “em que se foijaram novos princípios jurídicos para satis-fazer às necessidades de uma nova sociedade”4°. Para Laski, es-ses princípios jurídicos emergentes, interligados às acepções dopoder nacional soberano, além de ampliarem os espaços do Direi-to Público, possibilitam, igualmente, o florescimento de um Di-reito Intemacional que regulará a especificidade das relações po-litico-comerciais entre as novas Nações-Estados. Na perspectivade contextualização da Reforma e do processo de secularização,efetiva-se gradualmente o declínio do Direito Canônico e o aco-lhimento, ainda maior, de um corpo de princípios extraídos doDireito Romano que se incorpora não só nas instituições legais detradição latina, mas também e sobretudo, nas práticas judiciaisdos Países Baixos, marcados por seculares experiências consue-tudinárias. O avanço crescente e o amplo reconhecimento do le-gado jurídico romano demonstram que suas preceituações, maisdo que as difusas e múltiplas práticas legais medievais, eram maisadequadas para um período que se instaurava sob o prisma dacentralização politica, da administração burocrática e da raciona-lização do poder. Antes de tudo, é preciso admitir que o perfil

3° Consultar, a respeito: TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. O direito e u ascen-são do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 60-61 e 67-69; BERMAN, Harold J. Laformación de Ia tradicián jurídica del occidente. México: Fondo de Cultura Económica,1996. p. 355-373; BARCELLONA, Pietro. Diritro privato e societâ modema. Napoli:Jovene Editore, 1996; MOREIRA, Vital. A ordemjurídica do capitalismo. Coimbra: Cen-telha, 1978.

4° LASKI, Harold. op. cit., p. 39-40.

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48 ORIGEM, EvoLUÇÃo E osctmio DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

irrecusável e imperioso não se explicava tão-somente pelo suces-so e respeitabilidade de suas instituições, mas também pelo modocomo seus estatutos consagravam a inconteste autoridade legaldo poder governante, identificado, agora, com a própria encamaçãodo Estado absolutista”.

Em semelhante contexto, o Direito moderno não só se revelacomo produção de uma dada formação social e econômica, como,principalmente, edifica-se na dinâmica da junção histórica entre alegalidade estatal e a centralização burocrática. O Estado Modernoatribui a seus órgãos, legalmente constituídos, a decisão de legislar(Poder Legislativo) e de julgar (Poder Judiciário) através de leisgerais e abstratas, sistematizadas formalmente num corpo denomi-nado Direito Positivo. A validade dessas normas se dá não pelaeficácia e aceitação espontâneas da comunidade de indivíduos, maspor terem sido produzidas em conformidade com os mecanismosprocessuais oficiais, revestidos de coação punitiva, provenientesdo poder público. Distintamente das formas pré-modemas e pré-capitalistas, dominadas pela legitimidade tradicional e legitimida-de carismática, o Estado Modemo consagra agora a legitimidadejurídico-racional, calcada na despersonalização do poder, na racio-nalização dos procedimentos normativos e na convicção de uma“obediência moralmente motivada”, associada a uma conduta cor-reta”. Neste processo de legitimação, a ordemjurídica, além de seucaráter de generalização e abstração, adquire representação formalmediante a legalidade escrita. A lei projeta-se como o limite de umespaço privilegiado, onde se materializa o controle, a defesa dosinteresses e os acordos entre os segmentos sociais hegemônicos.Ocorre que, ao criar as leis, o Estado obriga-se, diante da comuni-dade, a aplicar e a resguardar tais preceituações. Ao respeitar cer-tos direitos dos individuos e ao limitar-se à sua própria legislação,o Estado Modemo oficializa uma de suas retóricas mais aclama-

`“ Cf. LASKI, Harold. op. cit., p. 41. A propósito, consultar: WIEACKER, Franz.História do direito privado moderno. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1980. p. 15-95;CAENEGEM, R. C. Van. Uma introdução histórica do direitoprivado. São Paulo: MartinsFontes, 1995. p. 17-73.

'2 Cf. POGGI, Gianfranco. A evolução do Estado Moderno. Rio de Janeiro: Zahar,1981. p. 110-115 e 139-140; GLEIZAL, Jean-Jacques. Le droitpolitique de I'Etat. Paris:PUF, 1980. p. 17.

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1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 49

das: o “Estado de Direito”. A permanente condição do “Estado deDireito” permite e justifica uma certa administração, fundada napretensa neutralidade de legalidade. O Estado que se legitima nasituação de “Estado de Direito” garante-se como um poder sobera-no máximo, controlado e regulado pelo Direito. Naturalmente, omodemo Direito Capitalista, enquanto produção nonnativa de umaestrutura política unitária, tende a ocultar o comprometimento e osinteresses econômicos da burguesia enriquecida, através de suascaracteristicas de generalização, abstração e impessoalidade. Suaestrutura fonnalista e suas regras técnicas dissimulam as contradi-ções sociais e as condições materiais concretas. Em consonânciacom tais premissas, De la Torre Rangel adverte que esse DireitoModemo, “pretendendo ser um Direito igual e supondo a igualda-de dos homens sem ter em conta os condicionamentos sociais con-cretos, produz uma lei abstrata, geral e impessoal. “Ao estabeleceruma norma igual e mn igual tratamento para uns e outros, o DireitoPositivo Capitalista, em nome da igualdade abstrata de todos oshomens, consagra na realidade as desigualdades concretas””3.

Uma vez definidos os traços específicos da formação históricado modemo Direito Estatal e a conseqüente supremacia doutriná-ria do centralismo jurídico, passa-se a examinar os principais mo-mentos desse processo no Ocidente. Essa evolução do monismojurídico ocidental compreenderá “etapas” ou “fases”,consubstanciadas em quatro grandes “ciclos”, correspondentes àformação, sistematização, apogeu e crise do paradigma. Cada gran-de “ciclo monístico” será inter-relacionado com as condições queperfazem a estrutura de poder político e o modo de produção só-cio-econômico.

O primeiro grande “ciclo”, que representa a própria formaçãodo monismo jurídico, irrompe ao longo de uma confluência histó-rica associada ao Estado absolutista, ao Capitalismo mercantil,ao fortalecimento do poder aristocrático e ao declínio da Igreja edo pluralismo corporativista medieval. Entre os séculos XVI eXVII, os soberanos absolutistas não só procuram fundamentar oexercício de sua irrestrita dominação em critérios racionais

43 DELLA TORRE RANGEL, Jesus Antonio. EI derecho que nace delpueblo. Mé-xico: CIRA, 1986. p. 26-34. '

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50 ORIGEM, EvoI.UÇÃo E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

embasados na doutrina do Jusnaturalismo, como, simultaneamente,subordinam as fontes de produção jurídica à vontade daquele quedetém o poder político”. Dá-se, com isso, o processo de conver-gência de que fala Norberto Bobbio: o poder político e as estrutu-ras jurídicas reduzem o Direito ao Direito Estatal, protegido pelacoação. Para Bobbio, o ápice dessa convergência entre oordenamento jurídico e o poder estatal, inaugurando a passagemdo Estado de natureza para o Estado civil, se concretiza com afilosofia política de Thomas Hobbes”.

A mesma preocupação encontra-se em Miguel Reale, para quem“é em Hobbes que se devem procurar os primeiros elementos dadoutrina que reduziu o Direito ao Direito Positivo e, mais ainda, oDireito a uma criação do Estado”“. Ora, enquanto Maquiavel dis-tinguiu a política da moral e da religião, Hobbes põe a política aci-ma da moral, redefinindo o exercício da autoridade através do prin-cípio do absolutismo. Pode-se afinnar que Hobbes não só é um dosfundadores do moderno Estado absolutista, como, sobretudo, o prin-cipal teórico da formação do monismo jurídico ocidental, ou seja,um dos primeiros a identificar o Direito com o Direito do soberanoe, igualmente, o Direito Estatal com o Direito Legislativo. Essetema fica claramente expresso no Leviatã, no capítulo dedicado àsleis civis, em cujo texto define que toda lei “consiste na declaraçãoou manifestação da vontade de quem ordena”. Toda lei é uma or-dem que não pode ser contrária à razão. Ao distinguir a lei civil,que é escrita, da lei natural, que não é escrita, Hobbes proclama,entretanto, que “todas as leis, escritas ou não, recebem toda suaforça e autoridade da vontade do Estado”. De outra parte, Hobbesdesvaloriza os preceitos consuetudinários e o Direito dos Juizes,procurando maximizar a relevância das leis civis estatais, definidaspela imposição e vontade de um soberano, que não se encontrasujeito a essas mesmas leis escritas, tendo o poder de fazê-las e

'" Ver: HESPANHA, Antonio M. Panorama histórico da cultarajuridica européia.Mira-Sintra: Publicações Europa - América, 1997. p. 66- 165; TARELLO, Giovanni. Storiadella cultura giaridica moderna. Bologna: Mulino, 1976. p. 15-41.

45 Cf. BOBBIO, .Norberto et al. op. cit., p. 350-351. Verificar igualmente: ZARKA,Ives Charles. Hobbes y el pensamiento politico moderno. Barcelona: Herder, 1997.

4° REALE, Miguel. Teoria do Direito e do Estado. 4. ed., São Paulo: s.ed., 1984. p.208-209.

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1.1.2 Direito estatal.: formação, ciclos históricos e caracterização 51

revogá-las. Em todos os Estados, segtmdo Hobbes, o “legislador éunicamente o soberano. (...) o legislador é aquele que faz a lei. E sóo Estado prescreve e ordena a observância daquelas regras a quechamamos leis. (...) o Estado, ou seja, o soberano é o único legisla-dor. Pela mesma razão, ninguém pode revogar uma lei já feita a nãoser o soberano. (...) E iguahnente (...) ninguém pode fazer leis a nãoser o Estado, pois nossa sujeição é unicamente para com o Estado.As leis da natureza (...) não são propriamente leis. (...) Só depois deinstituído o Estado elas efetivamente se tomam leis, nunca antes,pois passam então a ser ordens do Estado, portanto, também leiscivis, pois é o poder soberano que obriga os homens a obedecer(...)47 a elas.

Esses delineamentos indicam que, em seus primórdios, a dou-trina do monismo juridico está fortemente associada ao declíniodo Feudalismo, aos interesses absolutistas da monarquiafortalecida e às novas necessidades de regulamentaçãocentralizadora das práticas mercantis prevalecentes.

Não é difícil projetar o segundo grande “ciclo” do monismojurídico no contexto do periodo que vai da Revolução Francesa atéo final das principais codificações do século XIX. Trata-se de umaetapa fundamental para a estruturação e solidificação da legalidadeestatal burguês-capitalista no Ocidente. O Direito Estatal não serámais reflexo da vontade exclusiva de soberanos absolutistas, masproduto da rearticulação das novas condições advindas do Capita-lismo concorrencial, da crescente produção industrial, da ascensãosocial da classe burguesa enriquecida e do liberalismo econômico,condições essas movidas pela lei do mercado, com a mínima inter-venção estatal possível. O pensamento jurídico desse período é,num primeiro momento (do Antigo Regime à Revolução France-sa), marcado, basicamente, pelo jusnaturalismo racionalista deGrócio e Puffendorf, igualmente também pelas idéias iluministasde enciclopedistas como Voltaire e Diderot, pelo contratualismopolítico de Locke, Rousseau e Montesquieu e, finalmente, pelasconcepções filosóficas da eticidade crítico-formal de Kant e do ide-alismo dialético de Hegel. A influência no domínio político da teo-ria da separação dos poderes e do princípio da soberania nacional

'" HOBBES, Thomas. op. cit., p. 161-164.

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52 ORIGEM, EvoLUÇÃo E DECI.iNIo DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

tende a privilegiar a lei escrita como fonte de Direito, agora, nãomais como emanação do Estado incorporado pelo soberano abso-lutista, mas como expressão do Estado enquanto vontade da naçãosoberana”. Materializa-se plenamente, com a Revolução Francesa,a idéia de Estado-Nação enquanto categoria histórico-política damodernidade burguês-capitalista. Objetivando legitimar o funcio-namento dos novos mercados, a realidade emergente proclama queé a Nação soberana e não mais o Principe o verdadeiro sujeito deDireito”. Ao contrário do Estado absolutista, que toma a pessoa domonarca a única fonte legitimadora, no Estado-Nação liberal privi-legia-se um órgão político legislativo com independência paraimplementar a vontade geral de toda a Nação. Posteriormente, oprocesso de ascensão da burguesia ao poder, concomitante com asistematização racional das novas legislações mediante ascodificações e a definitiva consolidação do reducionismo de todo oDireito à lei estatal, impelem o pensamento juridico para o plenodominio da dogmática juridica positivista. Ainda que se tenhampresentes as diferenciações históricas e as matrizes procedimentais,o monismo jurídico, em fms do século XIX, será notoriamente re-presentado no continente europeu pelo positivismo histórico-teleológico de Rudolf von Jhering e, de outra parte, na tradição daCommon Law, pelo utilitarismo positivista de John Austin”.

Contextualizando o espaço dessa dinâmica histórica, consta-ta-se que, após a Revolução Francesa, a burguesia, ao instalar-seno poder, não só coíbe as formas herdadas de organizaçõescorporativas, como, sobretudo, cria uma modema instituição bu-rocrática centralizadora (Conselho de Estado) e implementa, me-diante o controle do poder estatal, um corpo orgânico de normasabstratas, genéricas e sistematizadoras, visando a constituir umDireito nacional unificado. Ao efetivar a íntima conexão entre aunicidade política revolucionária (vontade geral) e o “Estado de

43 Cf. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian,1986. p. 15-16; HESPANHA, Antonio M., 1997. p. 130-168; TARELLO, Giovamii. op.cit., p. 15-41; CAENEGEM, R. C. Van. op. cit., p. 117-147.

4° Cf. GARAUDY, Roger. Apelo aos vivos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p.399-401.

5° Vide: BOBBIO, Norberto. Il positivismo giuridico. Torino: Giappichelli, 1979. p.113-136 e 140-147.

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1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 53

Direito”, configurado na representatividade de um “mandato na-cional”, a Revolução Francesa acaba atribuindo uma nova dire-triz e um novo conteúdo à instância administrativa, ao mesmotempo que propicia novas relações de poder imbricados com for-mas de legalismo centralizado”.

A dinâmica de unificação legal que se instaura com o períodorevolucionário, somada aos influxos de ordenação do espíritoiluminista e de fundamentação racional do jusnaturalismo, contri-buíram para o processo de avanço em direção às codificações. Semdúvida, as codificações responderam às necessidades posterioresde segurança e estabilidade da burguesia quando passam a vivenciarmais diretamente a etapa do Capitalismo concorrencial.” Comolembra René David, em outra interpretação oportuna, foi somentena época das codificações burguesas que “se teria estabelecido umelo estreito entre o Direito e o Estado, o qual teria sido ilegitima-mente tomado absoluto, nomeadamente pelo positivismo (...)”53.

Seja como for, ainda que o positivismo legal comece a aparecercom a codificação francesa e com a larga ressonância teórica daEscola da Exegese, em princípios do século XIX, é inegável que,neste segundo grande “ciclo” do Direito Estatal, a doutrina domonismojurídico está intimamente relacionada, em sua maior par-te, ao imaginário jusnaturalista. Naturalmente, a filosofia jurídicado século XVIII refletiu as condições sociais e econômicas da bur-guesia capitalista ascendente. A sociedade aristocrática que se ca-racterizava por uma concepção de mundo demarcada pelo absolu-tismo político e pela doutrina do Direito divino dos reis, agora,com a nova organização social burguesa se embasa numa ideologiajuridica do liberal-contratualismo. A proposição hegemônica doDireito Natural denota os impasses e as contradições que a burgue-sia vitoriosa teve para suplantar o sistema de privilégios do AntigoRegime. Ora, os princípios teóricos do jusnaturalismo consagram a

5' Cf. GLEIZAL, Jean-Jacques. op. cit., p. 33 e segs. Igualmente verificar: ENTERRÍA,Eduardo Garcia de. La Iengua de los derechos. La formación del derecho públicoeuropeo. Tras la revolución francesa. Madrid: Alianza Editorial, 1994.

52 Cf. FASSÕ, Guido. História de laƒilosofia del derecho. Siglos XIX y XX. Madrid:Pirâmide, 1981. t. 3, p. 17-27.

53 DAVID, René apud TUMANOV, Vladimir. O pensamento jarúiico burguês con-temporâneo. Lisboa: Caminho, 1985, p. 99.

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54 ORIGEM, EvoruÇÃo E Decriwio DA CULTURA Junínrcx ESTATAL

anárquica rebeldia contra a ordem discricionária anterior, bem comoa via revolucionária para a conquista do poder. Mas, na essência,como questiona Michel Miaille, o “Direito racional da RevoluçãoFrancesa é o direito do homem egoísta, da sociedade burguesa fe-chada sobre os seus interesses. Esquecendo os homens concretos,ele (o Direito) limita-se a proclamar princípios que não têm, excetopara a burguesia, qualquer espécie de realidade”54.

Como já se mencionou noutro contexto”, o positivismo jurídi-co, que prosperou a partir das grandes codificações e acabou im-pondo-se como principal doutrina jurídica contemporânea, consti-tuiu-se na mais vigorosa reação às correntes definidas comojusnaturalistas, que buscavam definir a origem, a essência e o fimdo Direito na natureza, ou mesmo na razão humana. A ideologiapositivista procurou banir todas as considerações de teor metafisico-racionalista do Direito, reduzindo tudo à análise de categoriasempíricas na funcionalidade de estruturas legais em vigor. Contra-pondo-se à concepção metafísica, na dogmática positivista, o Di-reito é explicado pela sua própria materialidade coercitiva e puniti-va. Toda a sua validade e imputação fundamentam-se na própriaexistência de uma administração política burocrática e hierarquizada.A concepção jurídico-normativa tipificada pelo caráter abstrato,genérico e institucionalizado tende a harmonizar os diversos inte-resses conflitantes no bojo da produção social burguês-capitalista,bem como direcionar e manter as diversas ftmções do aparelho es-tatal a serviço de setores hegemônicos do bloco no poder. Essecaráter ideológico, passível de ser detectado na doutrina positivista,não é de fonna alguma “reconhecido”, mas “ocultado” pelodogmatismojurídico oficializado. Não será inoportuno lembrar queo monismojurídico, enquanto expressão do formalismo dogmáticopositivista, é “o fruto da sociedade burguesa já formada, ou, pelomenos, da sociedade em que a burguesia já reforçou suficiente-mente as suas posições econômicas e politicas”5°.

5* MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao direito. Lisboa: Moraes, 1979. p.264; WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. l25-l26.

55 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. 127-128.5° TUMANOV, Vladimir. op. cit., p. 137; WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p.

127-128.

1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 5 5

Deveras, neste segundo “ciclo”, correspondente à sistematiza-ção dogmática do monismo jurídico, é perceptível a gradativapostulação e redução do Direito Estatal ao Direito Positivo; con-sagra-se a exegese de que todo o Direito não só é Direito enquan-to produção do Estado, mas, sobretudo, de que somente o DireitoPositivo é verdadeiramente Direito. É nesta direção da positividadedo Direito Estatal que se pode inserir a contribuição de determi-nados juristas, como John Austin e Rudolf von Jhering.

Seguindo uma tradição teórica aberta por Hobbes, John Austinencara o Direito como um mandato positivo fixado pela autorida-de do soberano, única fonte suprema do poder com competênciapara aplicar a ordem legal. Muito próximo de Hobbes, mas bus-cando conciliar os princípios utilitaristas com a dogmáticapositivista, Austin incorre num rigoroso formalismo lógico-estatista. Claro está que o conceito de Soberania, enquanto poderabsoluto de aplicar nonnas positivas, é identificado como Direitoemanado e permitido pelo Estado, porquanto a Soberania perten-ce e é expressão do Estado. Ainda que seu argumento básico incidano fato de que o Direito é o Direito Positivo do soberano, Austin,levando em conta a trajetória da realidade jurídica inglesa, nãonega o caráter de Direito ao Direito Judicial, pois o Direito “cria-do pelos juízes não deixa de ser Direito Estatal”, ou sej a, trata-seda atribuição concedida aos juízes pelo próprio Estado”.

De todas as elaborações teóricas que prestaram fundamenta-ção ao monismo jurídico, em fins do século XIX, a doutrina deRudolf von Jhering foi a que pareceu melhor corresponder aoshorizontes histórico-sociais do seu tempo. Jhering sustenta a tesede que o Direito é um sistema de norrnas imperativas caracteriza-das pela “coação” e garantida pela força organizada do Estado.Sendo o Estado o soberano detentor desta coação, toma-se a fon-te única do Direito. Jhering delimita a validade do Direito às pres-crições revestidas de sanção estatal. Isso permite assinalar que,na sua concepção teleológica, “a coação exercida pelo Estado cons-titui o critério absoluto do Direito; uma regra de Direito desprovi-da de coação jurídica éum contra-senso; é um fogo que não quei-ma, uma tocha que não ilumina. Pouco importa que esta coação

51 cf. F.-isso, Guido. op. cit., p. 37-38; REA1.E,Migu¢1. op. cit., p. 220-222.

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56 ORIGEM, EVOLUÇÃO E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

seja exercida pelo juiz (civil ou criminal) ou pela autoridade ad-ministrativa. São direitos, todas as normas realizadas desse modo;todas as demais, ainda que universalmente obedecidas, não o são.Só chegam a sê-lo quando se lhes agrega o elemento exterior dacoação pública”58.

Mas, para além de sua redução do Direito à coação, que moldao Direito, de certo modo, com a “política da força” ou a “forçaregulada”, .Ihering avança na ordenação conceitual da estatalidadedo Direito na medida em que privilegia o Estado como instrumentomáximo da “força” para qualificar juridicamente a norrnatividadesocial”. Essas premissas são reveladas, ainda que brevemente, emdeterminadas passagens de sua obra, O Fim no Direito (Der Zweckim Recht), particularmente quando assinala que o “Direito de coa-ção social acha-se somente nas mãos do Estado; é o seu monopólioabsoluto. Toda associação que queira fazer valer os seus direitoscontra os seus membros, mediante a força, deve recorrer ao Estado,e este fixa as condições segundo as quais presta o seu concurso. Emoutros tempos, o Estado é a fonte única do Direito, porque as nor-mas que não podem ser impostas por ele não constituem “regras dedireito”. Não há, pois, direito de associação fora da autoridade doEstado, mas apenas direito de associação derivado do Estado. Estepossui, como é exigido pelo princípio do poder soberano, a supre-macia sobre todas as associações de seu tenitório, e isto se aplicatambém à Igreja”°°.

Umavez reconhecido que o Capitalismo concorrencial/indus-trial e o liberalismo politico burguês forjaram um projeto jurídicocentralizador que t se define no século XVIII e se consolida noséculo XIX, nada mais natural do que, concomitante com a novafase “monopolista” da produção capitalista e com o crescenteintervencionismo sócio-econômico do Poder Público, fossem en-gendradas as necessárias condições para que se impusesse umaadequada estrutura normativa lógico-formal. Certamente, a de-corrência desse projeto, modelado no século XVIII e codificado

58 JHERING, Rudolf von. Elfin en el derecho. Buenos Aires: Atalaya, 1946. p. 150-160; REALE, Miguel. op. cit., p. 218.

5° cf. 1=Asso, Guido. op. cit., p. 164.°° JI-IERING, Rudolf von. op. cit., p. 157; REALE, Miguel. op. cit., p. 218-219.

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1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 57

no século XIX, encaminha-se para um terceiro “ciclo” monistico,identificado, agora, a uma legalidade dogmática com rígidas pre-tensões de cientificidade e que alcança seu apogeu dos anos 20/30 aos anos 50/60 deste século.

Determinados fatores, como a expansão do intervencionismoestatal na esfera da produção e do trabalho, a passagem de umCapitalismo industrial para um Capitalismo monopolista “orga-nizado”, sustentado por oligopólios e corporações transnacionais,bem como a implementação, a partir dos anos 30, de políticassociais públicas no contexto de práticas keynesianas distributivas,favorecem a construção técnico-formal de uma ciência do Direi-to. O terceiro grande momento do estatismo jurídico ocidentalalcança a culminância no formalismo dogmático da Escola deViena, representada basicamente pela “teoria pura do Direito”,de Hans Kelsen. A concepção kelseniana da “entidade jurídicaestatal” reflete um “mundo monista formado por uma série deordenamentos subordinados a uma hierarquia de graus sucessi-vos (...) de extensão e eficácia decrescentes, desde o ordenamentointemacional até ao Estado, às entidades autárquicas, às pessoasjurídicas públicas, às fundações etc.”°'. Para lá da simples coa-ção, a identidade do Estado e do Direito pennite considerar oEstado essencialmente como a ordem jurídica politicamente cen-tralizada”. A proposta “científica” de Kelsen descarta o dualismoEstado-Direito, fundindo-os, de tal modo que o Direito é o Esta-do, e o Estado é o Direito Positivo.

Em verdade, a representação do centralismojurídico, embasadono extremismo lógico-formalista da dogmática norrnativista, ten-de a eliminar o dualismo jurídico estatal, na perspectiva de que oEstado é identificado com a ordem jurídica, ou seja, o Estadoencarna o próprio Direito em determinado nível de ordenação,constituindo um todo único.

Para Kelsen, o Estado é um Estado de Direito pennanente, por-quanto a personalidade jurídica do Estado é a expressão da unidadede urna normatividade jurídica, um ponto de imputação “(. . .) que o

°' REALE, Miguel. op. cit., p. 229.62 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Annênio Amado, 1979. p.

385.

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5 8 ORIGEM, EVOLUÇÃO E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA EsrA¬rAL

espírito do homem cognoscente, premido pela intuição, está dema-siadamente inclinado a hipostasiar, (...), para representar-se, atrásda ordem jurídica, o Estado como um ser diferente daquela”6¡".

O Estado configura-se como organização de caráter político-jurídico que visa não só à manutenção e coesão, mas à regula-mentação da força em urna formação social determinada. Tal for-ça está alicerçada, por sua vez, em uma ordem coercitiva, munidada sanção especificamente jurídica. O Estado legitima seu poderpela eficácia e pela validade oferecida pelo Direito, que, por suavez, adquire força no respaldo proporcionado pelo Estado°4.

A proposta norrnativista de Kelsen, expoente máximo doformalismo jurídico contemporâneo no Ocidente, coincide comum período entre as duas grandes guerras, marcado por depressãoeconômica, crise e renovação do Capitalismo, bem como pelosurto das implementações tecnocráticas e pelo crescimento orga-nizado das forças produtivas sob o intervencionismo estatal. Noadvento do Estado do Bem-Estar Social, as formas politico-jurí-dicas intervencionistas, atinentes à produção monopolística, apon-tam para o reconhecimento daqueles direitos estatais denomina-dos por T. H. Marshall de “direitos sociais”, urna vez que o Capi-talismo do século XVIII havia favorecido o desenvolvimento dasliberdades e dos direitos civis individuais, enquanto que a indus-trialização capitalista do século XIX promoveu a expansão dosdireitos politicos da cidadania e do sufrágio”.

Por fim, o quarto grande “ciclo” do monismo jurídico deve sersituado a partir dos anos 60/70. Correlaciona-se ele com as novasnecessidades de reordenação e de globalização do capital monopolista(Capitalismo de acumulação flexível) e com o enfiaquecimento pro-dutivo do Welfare State (crise fiscal e ingovernabilidade do Estadodo Bem-Estar). Os princípios e os objetivos que sedimentaram o es-tatuto epistemológico da legalidade ocidental, instaurados entre osséculos XVII e XVIII, e predominantes nos séculos XIX e XX, co-

” CAMPOS BATALHA, Wilson de Souza. Introdução ao direito. São Paulo: Revis-ta dos Tribunais, v. 2,_p. 783, 1968; KELSEN, Hans. op. cit., p. 390.

64 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. 67; KELSEN, Hans. op. cit., p. 385.65 Cf. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar,

1967. p. 75, 87-88.

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1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 59

meçam a não mais responder eficazmente às novas demandas políti-co-econômicas, ao aumento dos conflitos entre grupos e classes soci-ais, e ao surgimento de complexas contradições culturais e materiaisde vida inerentes à sociedade de massa.

Chega-se, nessa quarta etapa do processo, ao esgotamento doparadigma de legalidade que sustentou, por mais de três séculos, amodernidade burguês-capitalista. Entretanto, a despeito do declíniodessa concepção jurídica do mundo, a variante estatal nonnativistaresiste a qualquer tentativa de perder sua hegemonia, persistindo,dogmaticamente, na rígida estrutura lógico-fonnal de múltiplas for-mas institucionalizadas. Isso fica demonstrado nas diferentes ten-dências formalistas que o neopositivismo legal assumiu no períodoque sucedeu a Segunda Guerra Mundial. O projeto juridicopositivista, descartando as análises de domínio da prática política edas relações sociais, encastelou-se em construções meramente des-critivo-abstratas e em metodologias mecanicistas, assentadas emprocedimentos lógico-lingüísticosóó. Isso significa que, embora adogmáticajurídica estatal se revele, teoricamente, resguardada peloinvólucro da cientificidade, competência, certeza e segurança, naprática intensifica-se a gradual perda de sua ftmcionalidade e desua eficácia. É por essa razão que se coloca a inevitável questão dacrise desse modelo de legalidade. Por assim dizer, a crise domonismo jurídico estatal vem refletindo o constante “(...)desajustamento entre as estruturas sócio-econômicas e as institui-ções jurídico-políticas”°7. Nesta propalada crise do modelo jurídi-co vigente, há que se destacar, como quer José E. Faria, sobretudo“(...) o colapso do individualismo jurídico, o esvaziamento de umDireito burguês edificado em tomo da concepção de Direito subje-tivo e a crescente dificuldade de se definir, em contextos sociaisestratificados e estruturalmente diferenciados, combinatóriasexeqüíveis entre legitirnidade politica e eficácia normativa”68. Sejacomo for, por ter consciência de sua relevância, esta questão da

6° Cf. TUMANOV, Vladimir. op. cit. p. 151-154 e 179. Para uma crítica ao mito dopositivismo jurídico, ver também: HÕFFE, Otfried. Justiça Politica. p. 93 e segs.

°"" FARIA, José Eduardo. Eƒicáciajuridica e violência simbólica. São Paulo: EDUSP,1988. p. 18.

68 FARIA, José Eduardo. op. cit., p. 18.

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60 ORIGEM, EvoLUÇÃo E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

crise e das disfunções do paradigmajuridico hegemônico será reto-mada e aprofundada no tópico seguinte.

Situada a formação do monismo jurídico e os principais “ci-clos” constitutivos de sua trajetória na cultura ocidental, resta,por último, caracterizar os pressupostos de sua dogmática jurídi-ca enquanto estatuto epistemológico.

Toma-se imprescindível reconhecer historicamente determi-nados pressupostos ideológicos estreitamente vinculados einterdependentes que moldam o corpo da modema doutrina domonismo jurídico, tais como a estatalidade, a unicidade, apositivação e a racionalização.

Primeiramente, há que se considerar o chamado “princípio daestatalidade”, ou seja, o Direito que emergiu com a modema socie-dade burguês-capitalista instrumentalizou-se como coerção legiti-mada por um poder soberano nacional, tendo como caracteristicasa centralização, burocratização e secularização. Assim, a primeirae essencial especificidade do Direito modemo é a natureza de suaestatalidade, ou seja, “só o sistema legal posto pelos órgãos estataisdeve ser considerado Direito Positivo, não existindo positividadefora do Estado e sem o Estado'°69. Tal procedimento de que o Esta-do soberano detém o monopólio da produção das nonnas jurídicaspennite aferir a função instrumental da modema organização buro-crático-centralizadora, no sentido de não só unificar nacionahnen-te o Direito, mas igualmente tomar viável a supremacia da lei doEstado sobre as práticas normativas pluralistas, sobre a legislaçãocanônica e sobre os pactos corporativos medievais. Neste particu-lar, assiste inteira razão a Miguel Reale, quando distingue duas ten-dências na apreciação da “estatalidade” do Direito. Aclarando me-lhor, assinala o jusfilósofo brasileiro que uma primeira maneira decaracterizar o monismo jurídico é a de estabelecer uma identidadeentre o Estado e o Direito, “apresentando o Estado como personifi-cação do Direito ou como criador do Direito, excluindo toda e qual-quer idéia de garantia juridica fora do Estado. Esta doutrina podeser de monismo absoluto (Estado = Direito), de estatalismo geral(o Estado cria of Direito) ou de estatalismo parcial (o Estado sóproduz o Direito positivo). A tese da estatalidade apresenta, num

6° REALE, Miguel. op. cit., p. 231.

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1.1.2 Direito estatal: formação, cicios históricos e caracterização 61

segundo prisma, urna feição especial, relativista e pragmática, quan-do não vai além da verificação de que não é possível ordem e segu-rança sem o primado de um sistema de Direito, apresentando oEstado não como idêntico ao Direito ou criador do Direito, mascomo “lugar geométrico da positividade jurídica””°.

Distintamente da ordemjtuidica feudal, pluralista e consuetudi-nária, o Direito da sociedade modema, além de encontrar no Esta-do sua fonte nuclear, constitui-se num sistema único de normasjurídicas integradas (“p1incípio da unicidade”), produzidas pararegular, em determinado espaço e tempo, os interesses de uma co-murridade nacionalmente organizada. Ainda que se adrnitam outrasfontes jtuidicas, consagra-se, peremptoriamente, a lei estatal comoexpressão máxima da vontade predominante do Estado-Nação. Ten-do presente a consolidação do modo de produção capitalista e adefinição da burguesia como segmento social hegemônico, impõe-se, a partir de uma arquitetura lógico-formal unitária, o princípio deque toda sociedade tem apenas um único Direito, e que este “verda-deiro” Direito, instrumentalizado por regras neutras positivamentepostas, só pode ser produzido através de órgãos e de instituiçõesreconhecidos e/ou oficializados pelo Estado. Constrói-se, assim, asegurança, a hierarquia e a certeza de um arcabouço denormatividade dogmática fundado no plano lógico da completudee de que só existe um Direito, o Direito Positivo do Estado. Porconseguinte, o “princípio da unicidade” encontra sua legitimidadena justificação de tuna concepção social e econômica integrada eharmônica de mundo. Esta projeção ideológica sedimenta os inten-tos da burguesia dominante no que se refere à composição de umpoder nacional soberano, “(...) organizado burocraticamente paraservir seus próprios interesses de proprietários, e, sendo assim, asnormas de conduta, elaboradas e garantidas através dessa organiza-ção, deveriam impor-se a todos os grupos microssociais, absorven-do as normas de outra gênese e, valendo como o único direito, odireito em si. (...) o direito dimanado do poder soberano é o únicoválido c legítimo, porque o único que tem na coerção sua caracte-rística ontológica fundamental”".

7° REALE, Miguel. op. cit., p. 232.7' COELHO, Luiz Femando. op. cit., p. 262-263.

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62 ORIGEM, EvoLUCÃo E DECLINIO DA CULTURA JURiDICA EsrArAL

Outro elemento caracterizador do Direito Estatal, inter-relacio-nado com a própria “estatalidade” e “unicidade”, é o problema da“positividade” do Direito. Esta questão para Miguel Reale consis-te, inicialmente, em constatar que “todo Direito se reduz ao DireitoPositivo e que se equivalem todas as expressões da positividadejurídica”72. Ora, é preciso convir que o Direito Positivo é a repre-sentação do Direito posto oficialmente, composto por um conjuntode regras formais e coercitivas, destinadas às condições históricasde um espaço público particular e autônomo. Pressupõe-se, napositividade jurídica, a existência de um ordenamento sistemático,rigidamente fechado e completo, a organização centralizada do podere o funcionamento de órgãos aptos a assegurar o cumprimento dasregras pressupostamente neutras e tmiversais”.

Na verdade, a fonnalização da Dogmática Jurídica, resultante dedados lógicos e padrões de controle hierarquizados, imunizados deproposições e juízos axiológicos, reduz o Direito à ordem vigente. Ainstrumentalidade do Direito enquanto técnica coativa, marcada pelasanção organizada, repousa na autoridade estatal e nos mecanismosfonnais que diluem os influxos condicionantes das formas ideológi-cas. Ademais, toda a validade e a eficácia da ordem jurídicaembasam-se prioritariamente na positividade sustentada e garantidapelo Estado. Ainda que se faça uma diferenciação entre a positividadee o processo de dogmatização, os critérios de validez da positivaçãoque envolvem as fomias discursivas do morrismo jurídico tendem ase associar nos marcos de urna circunstancialidade privilegiada. Nesteaspecto, deixa bastante claro Luiz Femando Coelho que, mesmo nãose confundindo a instância da dogmática legal com o positivismojurídico, há de se perceber “(...) como este é o lugar privilegiado desua reprodução. A positividade conota a episteme característica daconcepção dogmática, que, coerentemente com a noção positiva deciência, busca assegurar certo grau de controle de seus enunciados,ao mesmo tempo que busca assegurar as condições de legitirnidadedo monopólio da violência pelo Estado`”4.

72 REALE, Miguel. op. cit., p. 205.73 Vide: BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e società moderna. op. cit., p. 01-

52.7* COELHO, Luiz Femando. op. cit., p. 271.

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1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 63

Nessa perspectiva de dogmatização do Direito modemo é quese pode retomar as preocupações de Reale no que tange a ser, apositividade jurídica sem Estado, possível ou não. Ora, aproblematização no que diz respeito se há ou não “Direito sempositividade” e/ou se a “positividade só resulta do Estado”, encon-tra resposta diferente em duas tendências tradicionalmente antagô-nicas: o monismo e o pluralismo jurídico. Não obstante algumasinterpretações mais atenuantes, a rigor o monismo jurídico consa-gra que todo Direito é a criação do Estado e, por conseguinte, todoDireito Estatal é Direito Positivo. A positividade, enquanto proces-so de formulação, generalidade e validade objetiva, é o traço essen-cial do Direito Estatal. Por outro lado, o pluralismo jurídico não sódeixa de associar o Direito com o Direito Positivo, como, sobretu-do, admite a existência do Direito sem o Estado e, mais ainda, “quepode existir até Direito Positivo sem Estado e equivalente ao doEstado. A soberania, destarte, não é una, mas múltipla, sendo asoberania do Estado, quando muito, um superlativo relativo”75.

Por fim, importa descrever o fenômeno da “racionalização” comopressuposto essencial para a correta compreensão dos aspectosnormativos, institucionais e decisionais do modemo Direito Oci-dental. Foi Max Weber quem melhor tratou a racionalidade não sócomo “expressão problemática do mundo modemo”, mas, sobretu-do, como “fio condutor” particular à civilização ocidental”. O pro-cesso de racionalização enquanto desenvolvimento de um modo devida, por vezes associado ao conceito de intelectualização, deve servisualizado como “o resultado da especialização científica e da di-ferenciação técnica peculiar à civilização ocidental. Consiste naorganização da vida, por divisão e coordenação das diversas ativi-dades, com base em um estudo preciso das relações entre os ho-mens, com seus instrumentos e seu meio, com vistas à maior eficá-cia e rendimento. Trata-se, pois, de um puro desenvolvimento prá-tico operado pelo gênio técnico do homem”". Esse conjunto únicode condições constituidoras de um certo tipo de racionalização, re-

” REALE, Miguel. op. cit., p. 206.If' Cf. LOEWITH, Karl. op. cit., p. 151-154; COELHO, Luiz Femando. op. cit., p.

308; WEBER, Max. Economia y sociedad. op. cit., p. 6-7.77 FREUND, Julien. op. cit., p. 21.

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64 ORIGEM, EvoLUÇÃo E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

velado, para Weber, no “espírito” do Capitalismo e do protestantis-mo burguês, “desencantaram” os poderes mágicos do sagrado e doreligioso, impondo ao mundo as necessidades calcadas no progres-so da ciência e da técnica. É natural, pois, que a racionalidade, namedida em que se transforma num dos elementos nucleares da ló-gica do desenvolvimento capitalista, apareça estreitamente vincu-lada à estatalidade, à organização burocrática e ao formalismo le-gal. Ao delimitar o espaço da ação racional ntun encadeamento de“meios e fins”, Weber distingue uma racionalidade material de umaracionalidade fonnal. A racionalidade material ou absoluta, queestá relacionada aos valores, à ética da convicção e à razão substan-cial, é aquela que prioriza a subordinação dos meios aos fins a se-rem atingidos, ou seja, “os meios quase sempre costumam ser esco-lhidos após a determinação dos fins desejados. (...) a racionalidadematerial traduz a subordinação das normas individuais às normasgerais, basicamente em razão de seu conteúdo”. Por sua vez, aracionalidade formal implica o desenvolvimento intelectualizadode um modo de vida, identificado com a razão instrumental e comprocedimentos técnico-formais que ordenam sistematicamente asestruturas materiais que são sua base objetiva. Na racionalidadefonnal, identificada com a ética da responsabilidade e com a razãoinstrumental, os “fins são determinados em fruição de procedimen-tos previamente definidos, conhecidos e regulados por urna ordemlegal”. Na racionalidade formal, a consecução dos fins pressupõe asubordinação e o enquadramento dos meios às regras de comporta-mento legalmente oficializadas por autoridades competentes. A essepropósito, esclarece José Eduardo Faria, a “experiência históricado Estado Liberal (...) procurou privilegiar a racionalidade formal.Nesse sentido, as nonnas são identificadas e qualificadas como ju-rídicas pela maneira como são decididas - e não por seu conteúdo.Logo, nem os fins justificam os meios, nem as regras do jogoinstitucional podem ser alteradas facilmente conforme pressõesconjtmturais°”9. Nessa dinâmica de procedimentos formais que iden-tifica a legitimidade com a legalidade, o exercício do poder com

7* FARIA, José Eduardo. op. cit., p. 72; COELHO, Luiz Femando. op. cit., p. 298-299; WEBER, Max. op. cit., p. 64-65.

7° FARIA, José Eduardo. op. cit., p. 72.

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1.1.2 Direito estatal: formação, ciclos históricos e caracterização 65

um estatuto legal-racional, a estatização das fontes jurídicas com asegurança, a impessoalidade com um sistema de dominação bur-guesa acabado, nada mais lógico do que a racionalização juridicaalcance sua culminância nos movimentos de codificação do séculoXIX”. Ora, o Estado modemo, com seu aparato burocrático, temum papel instrumental para a defmição da validez formal dos crité-rios de legalidade e para a legitimidade do processo de racionalidadeda vida social. Evidentemente, o normativo propiciado pelo EstadoLiberal e o contratualismo político gerado pela ordem burguesafavorecem uma racionalização jurídica, uma racionalizaçãopositivista fundada na presunção de universalidade e neutralidadedas regrasjurídicas estatais. Esta racionalização jurídica que se ins-taura numa “ordem institucional crescentemente utilitária” com-preende complexas atividades diferenciadas e intercomplementaresnum amplo espaço que abrange os níveis de natureza política, eco-nômica e social. Para José Eduardo Faria, são esses processos queirão “acentuar o caráter altamente fonnalizante do Estado Liberal,uma vez que a validade do sistema político toma-se condicionada àexistência de um ordenamento jurídico cujas leis são necessaria-mente obrigadas a se enquadrar na rigidez hierárquica de um esta-tuto legal-racional”8'. Isso põe em evidência a ideologia tecnofonnaldo “centralismo legal” que encontra sua dinâmica histórico-interativa entrelaçada numa visão racional de mtmdo, pennanente-mente traduzida por processos de “estata1idade”, “unicidade”,“positivação” e “racionalidade”. De qualquer modo, esse foi o es-forço para captar e delimitar os principais pressupostosepistemológicos simbolizadores da modema concepção do monismojurídico ocidental. Fica clara a tentativa de descrever, até o presen-te momento, a trajetória da modema cultura jurídica estatal e suainteração no modo de produção capitalista, na estrutura social bur-guesa e no contexto da filosofia liberal-individualista.

Avançando na exposição, explicitaram-se os elementos for-madores, os grandes “ciclos” históricos e os princípios

8° Cf. FARIA, José Eduardo. op. cit., p. 75; COELHO, Luiz Femando. op. cit., p.306-307; CAENEGEM, R. C. von. op. cit., p. 117-147; GALGANO, Francesco. II dirittoprivato fra codice e costituzione. Bologna: Zanichelli, 1983. p. 01-35.

8' FARIA, José Eduardo. op. cit., p. 74.

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66 Oruoam, EVOLUÇÃO E DEcr.iN1o DA CULTURA rorttorcâ ESTATAL

caracterizadores do Direito Estatal como paradigma jurídicohegemônico. Veja-se, agora, como este paradigma de legalidadeincorre na disfuncionalidade, deixando de dar respostas às neces-sidades humanas fundamentais e aos conflitos sociais emergentesde sociedades específicas de fins do século XX, sobretudo, dedeterminadas estruturas políticas existentes no espaço social doCapitalismo de tipo periférico.

1.2 Crise de Hegemonia e Disfunções do Paradigma Jurídico

Constatou-se que na evolução histórico-política do Ocidenteprevaleceu uma cultura jurídica unitária que reproduziuidealizações normativas, montagens e representações míticas,reveladoras de certo tipo de racionalização fonnal e de legalidadeestatal, próprias de um modo particular de produção econômico-social. Por sua vez, tanto o racionalismo filosófico quanto oiluminismo político favoreceram os horizontes específicos doEstado Liberal de base burguês-capitalista que, como fonte únicade validade, foi capaz de exprimir em normas jurídicas, as idéias,os objetivos, as necessidades e as relações sociais de segmentosdominantes da sociedade.

No percurso dos grandes “ciclos” do modemo Direito Estatal,representados pela formação, sistematização e apogeu, pode-sevisualizar dois paradigmas político-ideológicos hegemônicos: pri-meiramente, o jusnaturalismo - fundado no racionalismometafísico-natural - e, posteriormente, o positivismo juridicodogmático, alicerçado no racionalismo lógico-instrumental.

A concepção jusnaturalista, produto do liberal-contratualismoe do racionalismo do século XVIII, refletiu, como já foi descrito,as condições sociais e econômicas da burguesia capitalista ascen-dente. A função ideológica do jusnaturalismo, enquanto proposi-ção defensora de um ideal etemo e universal, nada mais fez doque esconder seu' real objetivo, ou seja, possibilitar a transposi-ção para um outfo tipo de relação política, social e econômica,sem revelar os verdadeiros atores beneficiados. Os princípios enun-ciados por este jusnaturalismo mostraram-se extremamente fal-

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1.2 Crise de Hegemonia e Disfunções do Paradigma Juridico 67

sos, ao clamarem por uma retórica fomralista da igualdade, daliberdade e da fratemidade de todos os cidadãos.

O processo desencadeado pela Revolução Industrial (séculoXIX) e suas conseqüências na modemidade tecno-científica, bemcomo os vastos movimentos de codificação e consolidação sócio-política da burguesia acabaram propiciando a expressão máximado racionalismo formal modemo, ou seja, o positivismo. Opositivismo não só se toma a verdadeira ciência das sociedadesindustriais avançadas, como também acaba convertendo-se numaconduta e numa fonna de vida em que os valores essenciais são: acompetição, a materialidade, a ordem, a segurança, o progresso, aliberdade e o pragmatismo utilitário. O desenvolvimento do Capi-talismo desencadeou a racionalidade positivista como fenômenogeneralizado e complexo que, se por um lado, liberta, por outroreprime. Em sua critica ao positivismo, Jürgen Habermas asseguraque o tecnicismo nada mais é do que uma ideologia que tenta pôrem prática, sob qualquer preço, o conhecimento técnico e a ilusãoobjetivista das ciências. Alusão semelhante mereceu apreço deAdorno e Horkheimer, para os quais, no fluxo da racionalidadepositivista e de sua inserção numa cultura de massas que automatiza,aliena e manipula, a ideologia tecnicista da indústria cultural acabapossibilitando que o “conformismo substitua a consciência. Jamaisa ordem por ela transmitida é confrontada com o que ela pretendeser ou com os reais interesses dos homens”82.

A representação dogmática do positivismo jurídico que se ma-nifesta através de um rigoroso formalismo normativista com pre-tensões de “ciência” torna-se o autêntico produto de uma socie-dade burguesa solidamente edifrcada no progresso industrial, téc-nico e cientifico. Esse forrnalismo legal esconde as origens soci-ais e econômicas da estrutura de poder, harmonizando as relaçõesentre capital e trabalho, e etemizando através das regras de con-trole, a cultura liberal-individualista dominante.

82 CARDOSO, Onésimo de Oliveira. Diferentes conceitos e concepções de ideolo-gias. In: NEOTTI, Clarêncio [Org.]. Comunicação e ideologia. São Paulo: Loyola, 1980.p. 43; ADORNO, Theodor er al. Teoria da cultura de massa. 3. ed., Rio de Janeiro: Paze Terra, 1982. p. 159-205; HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência enquanto “ideolo-gia”. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

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68 ORIGEM, EvoLUÇÃo E r›Ecr.tr~uo DA CULTURA JURiorcA ESTATAL

Embora não se confundem, importa notar pontos similares quepodem aproximar teleologicamente o jusnaturalismo das múlti-plas tendências do positivismo jurídico. Por sua importância, atemática merece a atenção de Tigar e Levy, para os quais “os teó-ricos do direito natural do ocidente modemo, da mesma fonnaque os positivistas, trabalham com o mesmo material - a ideolo-gia jurídica da burguesia triunfante. Enquanto os positivistas sali-entam o sistema de coerção que aplica a ideologia, os defensoresdo direito natural focalizam as premissas da liberdade humanaque a ideologia inevitavelmente formula. Abordam ambos o mes-mo problema, ainda que de direções diferentes. Situarn-se dentro,e não fora, dos sistemas que examinam”83.

Não será demais ressaltar que o projeto da modema legalida-de estatal resultante do iluminismo político, enquanto pretensãode forrnar um Direito justo e igualitário, teve sempre como exi-gência a universalidade dos direitos humanos, a defesa em tomodo sujeito individual de Direito, a divisão e equilibrio dos pode-res constituídos, o arranjo democrático através de um sistema re-presentativo e, por último, a plena libertação sócio-política dohomem. Entretanto, o iluminismo tecno-científico, que possibili-tou o domínio da natureza, Íracassou em não ter conseguido arealização do homem e o pleno domínio de suas instituições soci-ais, estatais, morais e jurídicas. Da mesma forma que o iluminismotecno-científico serviu como instrumental racional utilizado paraa alienação, repressão e desumanização, o estatuto da legalidadeestatal liberal, incrustado na lógica de postulações empíricas, fun-cionais e mecanicistas, não foi capaz de realizar a justiça plena, aemancipação e a libertaçãodo homem.

Na modemidade da cultura positivista, “nenhum Direito estáde fato à altura desta reivindicação universalista, todo Direito éparticularizado, não realiza o verdadeiro interesse geral, mas ape-nas o interesse médio de uma elite minoritária; todo Direito étemporário: apenas transitoriarnente constitui a expressão legíti-ma das condições adequadas de desenvolvimento da sociedade”84.

83 TIGAR, Michel¡E.; LEVY, Madeleine R. O direito e a ascensão do capitalismo. p.284; MIAILLE, Michel. op. cit., p. 231-284.

8' FETSCHER, Iring. Direito e justiça no marxismo soviético. In: Karl Marx e osmarxistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. p. 231.

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1.2 Crise de Hegemonia e Disfunções do Paradigma Juridico 69

O Direito, enquanto nonnatividade disciplinar produzida pela forçae pela imposição do Estado burocratizado (seja capitalista, sejasocialista), procura excluir de sua dinâmica histórica interação efundamentação mais íntima com o social, o econômico, o políticoe o filosófico.

O Direito escrito e fomralizado da modema sociedade burguês-capitalista alcança o apogeu com sua sistematização científica, re-presentada pela Dogmática Jurídica85. O paradigma da DogmáticaJuridica forja-se sobre proposições legais abstratas, impessoais ecoercitivas, fonnuladas pelo monopólio de um poder público cen-tralizado (o Estado), interpretadas e aplicadas por órgãos (Judiciá-rio) e por funcionários estatais (os juízes). Por elaborar sua cons-trução sistemática sobre um Direito escrito identificado com a lei eproduzido unicamente pelos órgãos estatais, minimizam-se, na tra-dição de suas fontes formais, as múltiplas manifestações deexteriorização nonnativa (direito espontâneo, informal, extra-esta-tal etc.), representadas pelos corpos sociais autônomos (sindicatos,assembléias, corporações, comunas, associações profissionais, gru-pos sociais de toda espécie etc.).

Em verdade, numa análise mais atenta, há que se reconhecer cer-tos avanços e conquistas históricas incorporados na cultura político-jurídica ocidental deste projeto de legalidade liberal-burguês, nasci-do no século XVIII e consolidado para garantir os interesses sociais,econômicos e politicos de uma estrutura de poder em detenninada“época”. Entretanto, esta supremacia representada pelo estatismojurídico moderno, que funcionou corretamente com suaracionalidade formal e serviu adequadamente às prioridadesinstitucionais por mais de dois séculos, começa, com a crise doCapitalismo monopolista e a conseqüente globalização e concen-tração do capital atual, bem como com o colapso da cultura liberal-individualista, a não mais atender o rmiverso complexo dos siste-mas organizacionais e dos novos sujeitos sociais. Evidencia-se odescompasso de urna estrutura normativista, gerada em função de

85 Para uma análise histórica e estrutural da dogmática juridica, ver: HESPANI-IA,Antonio M. “Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma”. In: Justiça elitigiosidade. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. p. 7-58; NINO, Carlos Santiago.Consideraciones sobre la dogmática juridica. México: UNAM, 1974; PUCEIRO, Enri-que Zuleta. Paradigma dogmático y ciencia del derecho. Madrid: Edersa, 1981.

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70 ORJGEM, Evor.UÇÃo E oacríwro DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

valores e de interesses, que sofre incisivas modificaçõesparadigmáticas e não mais retrata os inteiros objetivos das condi-ções de vida presentes. As atuais sociedades de massa integrantesdo centro e da periferia capitalista passam por novas e flexiveismodalidades de produção do capital, por radicais contradições so-ciais e por instabilidades continuadas que refletem crises, tanto emnível de legitimidade, quanto de produção e aplicação da justiça.Ademais, importa enfatizar que o esgotamento do modelo jurídicotradicional não é a causa, mas o efeito de um processo maisabrangente que, tanto reproduz a transfonnação estrutural por quepassa o sistema produtivo do Capitalismo global, quanto expressaa crise cultural valorativa que atravessa as fonnas de fundamenta-ção dos diferentes setores das ciências humanas. De fato, urge iden-tificar os fatores explicativos que levam à gradativa dissociaçãoentre o racionalismo fonnal enquanto processo lógico-justificadorde mundo e a racionalidade material enquanto prática social marcadapor novas fonnas de corrflitos e demandas. Daí que, na busca deuma saída e de uma “nova ordem” (também desejada pelo novociclo do Capitalismo), irnpõe-se a obrigatoriedade de se propor adiscussão sobre a “crise dos paradigmas”, porquanto não se podemais desconsiderar a incapacidade das ciências humanas de tratareficazmente a totalidade da situação do homem em face dasdistorções das fonnas de “verdades” tradicionais e dos obstáculosepistemológicos ao saber vigente.

Isso conduz a delimitar o espaço de entendimento da crise, querno âmbito abrangente das ciências humanas, quer na esfera especi-fica do fenômeno jurídico. Examirrarrdo os problemas resultantesdo desenvolvirnento do Capitalismo avançado, Habennas distin-gue quatro fonnas de “crise”: crise de legitimação, crise de motiva-ção, crise econômica e crise de racionalidade. As duas primeirassão reflexos de urna crise de identidade, enquanto as demais mani-festam uma crise sistêmica. Em regra, as crises são concebidas como“perturbações” mais duradouras que não são resolvidas e fogem docontrole e da integração de um dado sistema sócio-culturalsó.

8° Cf. HABERNÍAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1980. p. 62-68; FREITAG, Bárbara. A teoria critica: ontem ehoje. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 99-100.

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1.2 Crise de Hegemonia e Disfunções do Paradigma Juridico 71

O prolongamento dessa questão, na perspectiva dialético-soci-al, clama que toda “crise” representa a agudização das contradi-ções de classes e dos conflitos sociais em um dado processo histó-rico. Cabe, iguahnente, a esse respeito, a posição de Marilena Chauí,segundo a qual a “crise” está associada a divisões, submissões econflitos no interior da sociedade e da politica”. Também é interes-sarrte sublinhar que a idéia de crise pode estar simplesmente articu-lada ao conceito de “ruptura”, enquanto “desconfonnidade estrutu-ral entre um processo e seu princípio regulador”88. Esta formulaçãode crise é aplicada por H. Jaguaribe “no que diz respeito às condu-tas referiveis a valores, condutas éticas e normativas”, mais preci-samente, quando o “comportamento entra em conflito com a nor-ma”, criando-se, assim, urna situação de desconformidade e con-tradições entre a ordenação reguladora e o procedimento que aque-la supostamente condiciona. Além de chamar a atenção de que ascrises não são isoladas, mas sempre contextuais e relacionais,Roberto A. R. de Aguiar assinala que a crise é “o prenúncio de urnaquebra de ordem, de um desfecho fora de controle, de uma reaçãodestruidora. A crise pode estar ligada a aspectos estruturais ouoperacionais de uma dada ordem ou sistema. (...). A caracteristicamais marcante de uma crise é sua transitoriedade. Nada pode ficarindefmidamente em quebra ou ruptura. A própria dinâmica dos ele-mentos levará a urna superação das contradições, seja mantendo aestrutura, seja rompendo-a, seja corrigindo as disfunções (...)”. Sobessa óptica, discorrer sobre crise, “significa procurar caminhos, re-levando os aspectos exógenos e endógenos da mistura estrutural oufuncional”89. Já admitindo a Sociedade como sistema moldado pormúltiplas instituições racionais e direcionando a discussão para ocampo do Direito, José E. Faria assinala que a “idéia de crise apa-rece quando as racionalidades parciais não mais se articulam urnascom as outras, gerando graves disfunções estruturais para a conse-

87 Cf. C1-IAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outrasfalas. 3. ed., São Paulo: Modema. 1984. p. 36-37; SANTOS, Boaventura de Souza. Umdiscurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987.

33 JAGUARIBE, Hélio. In: KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A crise do século XXsão Paulo Ática, 1983. p. 63-64.

8° AGUIAR, Roberto A. R. de. A crise da advocacia no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1991. p. 17-18 e 22.

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72 ORJGEM, EvoLUÇAo E DECUN10 DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

cução do equilíbrio social. (...) a crise representa a Sociedade (...)invadida por contradições. Assim considerada, a crise é uma noçãoque serve para opor Luna ordem ideal a urna desordem real, na quala ordemjuridica é contrariada por acontecimentos para os quais elanão sabe dar respostas eficazes”9°. É ainda José E. Faria quem re-corda que a noção de crise no Direito começou a ser destacada, nosúltimos cinqüenta anos, pela literatura juridica incorporada porcivilistas franceses, como Gaston Morin, René Savatier, GeorgeRipert e Jean Cruet. Ora, a crise do Direito não é urna crise setorialisolada, mas está diretamente relacionada com a crise dos funda-mentos e dos paradigrnas que norteiam a modemidade. Em todocaso, ao se aludir a urna crise no Direito, tem-se presente que o queestá em crise é o paradigrna da Dogmática Jurídica estatal, consoli-dada nos séculos XVIII e XIX. Anote-se, ademais, para o mesmoautor, a necessária distinção entre “crise subjetiva” e “crise real”.A “crise subjetiva” envolve uma visão individualizada em nívelpolítico, sociológico e ideológico. Esta pode ser interpretada, con-servadoramente, no sentido da “restauração de urna ordem que estásendo violada e que começa a ficar ineficaz”, ou, criticamente, nosentido de “liberalização de energias”, do desmascaramento do velhoparadigma da Dogmática Juridica e da “eclosão do novo”. A “crisereal” implica urna “crise substantiva de urna dirnensão da realidade(...) trata-se de um sistemajuridico que não funciona, ou que come-ça a ter dificuldade em manifestar sua vontade”`”. Por conseguinte,a significaçäo de “crise” ao longo de toda essa obra, quer alusivaespecificamente ao Direito, quer associada ao Estado, à sociedadede capitalismo periférico e aos valores hegemônicos de época, de-nota sempre a disfrmcionalidade, a falta de eficácia ou o esgota-mento do modelo ou situação histórica, aceitos e tradicionalmentevigentes.

A noção de “crise” alcança maior amplitude quando se inserenos limites de validação do conhecimento cientifico e nos pres-

°° FARIA, José Eduardo. op. cit., p. 20.9' Cf. FARIA, José Eduardo. O direito e a politica. Conferência proferida no curso

sobre Hermenêutica Jurídica, realizada na Escola Superior da Magistratura, Porto Alegre,em 01 de dezembro de 1989; . O direito na economia globalizada. São Paulo:Malheiros, 1999. p. 40-41. Nesta direção consultar: RIPERT, Georges et al. La crisis delDerecho. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1961.

1.2 Crise de Hegemonia e Disfunções do Paradigma Juridico 73

supostos de fundamentação da verdade. É pensando nesse enten-dimento que se faz oportuno introduzir a noção de “crise” com oñoncerto de “paradigma” Ora, como se sabe, o conceito-chave deparadigma” for desenvolvido por Thomas Kuhn para retratar uma

estrutura absoluta de pressupostos que fundamentam urna “co-munidade científica”, sendo um modelo de cientificidade dife-rente da concepção técnico-positivista predominante. Por conse-guinte, a formulação de “paradigrna”, num sentido kuhniano, in-d1ca.“(...) toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc.,partilhados pelos membros de urna comurridade determinada””.

Contrapondo-se ao positivismo clássico que visualiza os mo-delos de fundamentação mediante uma evolução histórica linear,ctunulativa e contínua, Thomas Kuhn assevera que as “práticascrentíficas compartilhadas” implicam avanços descontinuados,saltos qualrficativos e rupturas epistemológicas. Todo paradigmacientifico não está livre de anomalias causadoras de possíveis “cri-ses” estruturais, entretanto, só será posto de lado quando não formais capaz de resolver inteiramente os problemas. Deste modo,na assertivade Thomas Kuhn, o processo de substituição de umvelho patadrgma por outro novo, além de ser aceito pela “comu-nidade científica”, depende, não obstante, “de que ele mostre serum modelo de procedimento efetivo na resolução de pelo menosalguns dos problemas que o paradigma anterior não conseguiaresolver'”3._A resolução das crises e o processo de substituiçãodos paradigmas resultam. de uma “revolução científica”consensualizada. Nessas circunstâncias, ,uma “revolução científi-ca” se instaura “quando um segmento da comunidade científicaentende que o paradigrna adotado é incapaz de explicar um as-pecto da natureza considerado irnportante. Essa consciência do

É” Cf. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções cientificas. São Paulo: Pers-P¢C|f1Vfl. 1975. p. 218; ___ . La ƒunción del dogma en la investigación cientifica.Madrid: Alianza, 1980. Consultar também: LAKATOS, I e MUSGRAVE A. [Orgs.]. Acritica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix 1979. p. 285-343'SANTOS, Boaventura de Souza. [tm Discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento,937, ___ . A crítica da razao tndolente. Contra o desperdício da eaqteriência. São

Paulo: Cortez, 2000. p. 41-117 e 329-383.93 CUPANI, Alberto. A critica do positivismo e oƒuturo daƒlosofia. Florianópolis:

UFSC, 1985. p. 58-59.

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74 ORIGEM, EvoLuÇÃo E DEcLlNio DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

fracasso é um pré-requisito para a instauração de uma situação decrise. Generalizando-se essa consciência, surgem paradigmas al-ternativos em competição, objetivando cada um deles a reorgani-zação da ciência nos seus termos”94.

A postura epistemológica kuhniana partilha, assim, de umaconcepção relativista de ciência, cuja trajetória é pontuada porrupturas não-cumulativas e por processos contraditórios marca-dos por superações revolucionárias. Segue-se daí que, ao seremexaminadas as condições para uma nova proposta paradigmáticado Direito, assume significação repensar as questões da “crisedos paradigmas” dominantes e as rupturas dos modelos de funda-mentação, pois, como na correta assertiva antipositivista de Kuhn,as crises são uma pré-condição necessária para a emergência denovas teorias e de novos paradigmas”.

E possível, a partir dos pressupostos epistemológicos abertospor autores como Thomas Kuhn, fazer uma transposição e_ umaadequação de formulações trabalhadas nas ciências fisicas e bio-lógicas para as ciências sociais, definindo o campo da DogmáticaJurídica estatal como um autêntico paradigma científico, revesti-do da exigência básica de uniformização, sistematização euniversalização mediante o consenso positivado da comunidadecientífica dos juristas. Nesse contexto, ao tentar aplicar as princi-pais teses kuhnianas no âmbito do Direito, Enrique Zuleta Puceiroreforça a proposição de que, na tradição do Direito Ocidental, aconstituição» de um conhecimento legal racionalizado, tipificadocomo paradigma científico, só pode ser reconhecido com asolidificação da Dogmática Jurídica, porquanto tão-somente esteparadigma técnico hegemônico apresenta certos elementosqualificadores para esse propósito, como a suposta neutralidadecientífico-metodológica, a hierarquia sistematizada, a universali-dade dos principios, crença em valores gerais, redução aos limi-tes da descriçãoempirica e a racionalidade lógico-formalgö. Ora,

°* SANTOS, Irineu Ribeiro dos. Os fundamentos sociais das ciências. São Paulo:Polis, 1979. p. 61. . '

” Cf. KUHN, Thomas. op. cit., p. 107.9° Cf. PUCEIRO, Enrique Zuleta. Panadigma dogmáticoy evolucíón ciennfica. Anales

dela cátedra Francisco Suárez, Granada, n. 22, p. 282, 1982; .Paradigma dogmáticoy ciencia del derecho. Madrid: Editoriales de Derecho Reunidos, 1981. p. ll-42.

1.2 Crise de Hegemonia e Disfunções do Paradigma Juridico 75

a principal contribuição científica da Dogmática Juridica foi ofato deste paradigma ter oferecido respostas “previsíveis” e “re-gulares” para os tipos de conflitos tradicionais, o que pemiitia ofuncionamento do sistema de forma eficaz: mantinha a “certeza”e a “segurança” das relações porque garantia as expectativas.Agora, no entanto, a Dogmática Jurídica concebida enquanto sa-ber começa a vivenciar uma profunda crise, por permanecer rigo-rosamente presa à legalidade formal escrita, ao tecnicismo de umconhecimento abstrato e estático e ao monopólio da produçãononnativa estatal, afastando-se das práticas sociais cotidianas,desconsiderando a pluralidade de novos conflitos coletivos de mas-sas, desprezando as emergentes manifestações extralegislativas,revelando-se desajustada às novas e flexíveis fonnas do sistemaprodutivo representado pelo Capitalismo globalizado, dando poucaatenção às contradições das sociedades liberal-burguesas (princi-palmente aquelas provenientes de necessidades materiais dos pó-los periféricos) e, finalmente, sendo omissa e, descompromissadacom as mais recentes investigações interdisciplinares”.

A crise epistemológica engendrada pela Dogmática Juridicaenquanto paradigma científico hegemônico reside no fato de quesuas regras vigentes não só deixam de resolver os problemas, comoainda “não conseguem mais fornecer orientações, diretrizes e nor-mas capazes de nortear” a convivência social. Ora, não tendo maiscondições de oferecer soluções funcionais, o modelo técnico depositivismo jurídico dominante revela-se a própria fonte privile-giada da crise, das incongruências e das incertezas”.

O reconhecimento de que os pressupostos essenciais do proje-to jurídico estatal (enquanto saber e técnica) de inspiração libe-ral-individualista estão se tomando cada vez mais inadequados epouco eficazes, vem comprovar que se está vivendo tuna fase detransição paradigmática, pois, como salienta Celso F. Campilongo,não se consegue mais harmonizar po “(...) individualismo caracte-

°7 Cf. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Representação política e ordemjuridica:os dilemas da democracia liberal. São Paulo: USP, 1987. p. 12-13. Dissertação [Mestradoem Direito], Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 1987. I

°8 FARIA, José Eduardo. op. cit., p. 30-31. Consultar ainda: RUSSO, Eduardo Angel.Teoria general de! derecho. En la modernidad y en Ia posmodernidad. 2. ed., BuenosAires; Abeteóo-Parrot, 1997. p. 311-352. 2

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76 ORIGEM, Evor.uÇÃo E nscrmlo os CULTURA JURÍDICA ESTATAL

rístico do paradigma dogmático -~ trivializador, generalizador eatornizador dos conflitos sociais - com a natureza coletiva dosconflitos grupais e classistas°'99. Ora, o efeito cumulativo desseprocesso de crise reflete o conflito entre o velho paradigmadogrnático e o novo estatuto altemativo. Ainda que não se tenha operfil acabado e amadurecido de outro paradigma, é possível vrs-lumbrar o consenso comunitário em tomo de principios comunsde orientação que levam a tal superação. O que se deve ter muitoclaro, como alerta Celso F. Campilongo, é que, enquanto “oparadigma positivista - herdeiro das fórmulas jurídicas e políti-cas do século passado - ainda possui um enfoque estrutural,forrnalista e estático do Estado e do Direito, os paradigmas alter-nativos assumem uma perspectiva que transcende os limitesnormativos da dogmática, procurando captar os antagonismossociais e conferindo dinamismo e flexibilidade aos mecanismosjurídicos legais e extralegais, estatais e extra-estatais”'°°. Nadamais natural, diante da crise do projeto juridico estatal enquantoparadigma hegemônico, que se articule toda uma preocupaçãoepistemológica na busca de novo referencial para o Direito. Evi-dentemente que a substituição do clássico modelo juridico técni-co-dogmático por um novo paradigma aponta, no dizer deCampilongo, para um amplo processo de “flexibi1idade,abrangência e racionalidade substantiva” que leva à superação da“rígida identificação formal do Direito com a lei” e à revisão do“princípio do monopólio estatal da produção normativa”. Acres-centa o jusfilósofo brasileiro que já existem significativos indíci-os dessa orientação, ainda que o paradigma alternativo não tenhasido construido. Um conjunto de vestígios confirmam aimplementação crescente de novos mecanismos de auto-regulaçãodos conflitos e de resolução dos interesses emergentes. O alarga-mento de fórmulas jurídicas mais flexíveis e eficazes permite,segundo Celso Campilongo, deixar de lado “uma concepção me-ramente legalista da justiça” que identifica Direito com lei, pos-sibilitando que a solução dos conflitos se efetive “através de fór-mulas inteiramente novas de negociação, mediação e arbitramento.

9° CAMPILONGO, Celso Fernandes. op. cit., p. 14.'°° lbidem, p. 13.

...___

1.2 Crise de Hegemonia e Disfunções do Paradigma Juridico 77

Valendo-se de mecanismos informais, essas técnicas abandonam,de um lado, a racionalidade formal dos ordenamentos de inspira-ção liberal, e, de outro, recuperam uma práxis orientada pelaracionalidade material dos interesses e valores em jogo”'°'.

E no âmbito dessas preocupações que se inserem a proposta e odesenvolvimento deste livro. A clara indicação de um novoparadigma de validade para o Direito alicerçado num certo tipoparticular de pluralismo, capaz de reconhecer e legitimarnormatividades extra e infra-estatais (institucionalizadas ou não),engendradas por carências e necessidades próprias das contingên-cias de sujeitos coletivos recentes, e de apreender as especificidadesdas representações formadas juridicamente no contexto de socie-dades do Capitalismo periférico, marcadas por estruturas de igual-dades precárias e pulverizadas por espaços de conflitos intermiten-tes. Cabe advertir, entretanto, que essa opção é por um pluralismoprogressista, de base democrático-participativa. Exclui-se, assim,qualquer aproximação com a tendência de pluralismo político ejurídico, advogada pela proposta neoliberal ou neocorporativista,muito adequada aos objetivos e às condições criadas e impostaspelo Capitalismo monopolista globalizado, engendrado pelos paí-ses ricos do “centro” e exportado técnica, econômica e cultural-mente para a periferia. Interessa aos blocos hegemônicos defendere propagar tal pluralismo de teor conservador, pois a liberalização,privatização e livre mercado, em contextos periféricos dominadospor elites selvagens e egocêntricas (que estão a serviço do capitalinternacional), é o sintoma trágico do desajuste, do conflitoglobalizado e da crise permanente”.

"Í" lbidem, p. 14.'02 Para examinar mais atentamente esta experiência elitista de pluralismo como pro-

jeto de um mundo globalizado, examinar: HESPAN1-IA, Antonio M. Panorama históricoda cultura jurídica européia. op. cit., p. 255-259; FARIA, José Eduardo. O direito naeconomia globalizada. op. cit., p. 150-217; SANTOS, Boaventura de Souza. Laglobalización del derecho: los nuevos caminos de la regulación y la emancipación.Bogotá: ILSA, 1998; PALACIO, Germán. Pluralismo jurídico. Bogotá: UniversidadNacional de Colombia, 1993. p. 17-61; ARNAUD, André-Jean; DULCE , Maria José F.Sistemasjurídicos: elementospara un análisis sociológico. Madrid: Universidad Carlos111 de Madrid, 1996. p. 271-317; RODRÍGUEZ, Eduardo M. “Pluralismojurídíco. Elderecho del capitalismo actual?” In: Nueva sociedad. Caracas, marzo/abril 1991, n. 12.p. 91-101.

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78 ORIGEM, EVOLUÇÃO E DECLÍNIO DA CULTURA JURÍDICA ESTATAL

Afirrna-se, deste modo, a proposta de um novo pluralismoju-rídico (designado de comunitário-participativo) configurado atra-vés de um espaço público aberto e compartilhado democratica-mente, privilegiando a participação direta de agentes sociais naregulação das instituições-chave da Sociedade e possibilitandoque 0 processo histórico se encaminhe por vontade e sob controledas bases comunitárias. Reitera-se nessa tendência, antes de maisnada, a propensão segura de se visualizar o Direito como fenôme-no resultante de relações sociais e valorações desejadas, de seinstaurar outra legalidade a partir da multiplicidade de fontesnormativas não obrigatoriamente estatais, de uma legitimidadeembasada nas “justas” exigências fundamentais de sujeitos soci-ais e, finalmente, de encarar a instituição da Sociedade como es-trutura descentralizada, pluralista e participativa.

Por conseguinte, antes de fazer a releitura de conceitos, cate-gorias e institutos, e de desenvolver uma proposta diferenciadade pluralismo juridico, impõe-se tratar, primeiramente, da crise edas possíveis rupturas ao modelo de legalidade tradicional. Taldirecionamento obriga a avançar na explicitação de suas causas econseqüências considerando a singularidade histórica temporal eespacial. Como se verificará em seguida, isso remete ao examedos fatores que tomam os procedimentos formais gradualmenteinjustos e ineficazes para satisfazer os intentos desejados e pararesolver os crescentes conflitos coletivos, articulados por agentesde urna nova cidadania.

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Capítulo IIO espaço da crise contemporânea - A justiçano capitalismo periférico brasileiro

Introdução

Tendo consciência da amplitude e da complexidade que en-volvem uma discussão epistemológica sobre a crise da DogmáticaJurídica estatal no contexto da cultura ocidental contemporânea,a análise inclina-se, presentemente, por deslocar todo oquestionamento para a realidade latino-americana e para os limi-tes de um espaço territorial conflituoso do Capitalismo periféri-co. Por reconhecer que o esgotamento do paradigma dominanteafeta a sociedade ocidental como um todo, independentemente deseu estágio de desenvolvimento industrial, avanço tecno-científi-co e nível de modernização das -instituições, não se discutirá olargo espectro das insuficiências da concepção monista-estatal doDireito nas sociedades avançadas ou pós-industriais (Europa Oci-dental e EUA), cabendo examinar, por tocar mais de perto eexemplificar a nossa vivência cotidiana, tão-somente a realidadede um país latino-americano, em particular, no caso o Brasil. Comisso, empiricamente, parte-se de uma experiência de normatividadehistórico-concreta geradora de subsídios que melhor retratam osintoma do problema apontado. Depreende-se dessa constataçãoum maior acesso à discussão e interpretação da problemática acer-ca do fenômeno da legalidade estatal, quando projetado para umhorizonte teórico-crítico de ilações mais abrangentes. Daí, igual-mente, a relevância de se explicitar, antes de mais nada, o sentidoreal para a categoria “capitalismo periférico”. Para os propósitos

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80 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÂNEA - A JUsT1ÇA No CAPITALISMO...

desta incursão e tendo em conta a especificidade brasileira, “Ca-pitalismo periférico” passa a significar um modelo de desenvol-vimento que estabelece a dependência, submissão e controle dasestruturas sócio-econõmicas e político-culturais locais e/ou naci-onais aos interesses das transnacionais e das economias dos cen-tros hegemônicos.

Refletindo um pouco mais sobre essas asserções, dir-se-ia queos países periféricos da América Latina (caso particular do Bra-sil) possuem economias de dependência por serem controlados epor reproduzirem as condições e o jogo de interesses do capitalcentral dominante. A internacionalização da economia capitalis-ta, através da exportação de capitais, tem pleno curso pela dinâ-mica que se abre aos países dominantes, diante da fácil acumula-ção de lucros, da disponibilidade de mão-de-obra, dos baixos sa-lários e do monopólio das fontes de matéria-prima barata.

A expansão da economia capitalista intensifica a sangria dosmercados dos paises pobres e amplia as desigualdades de inter-câmbio do comércio mtmdial, restringindo à América Latina amera função de exportadora de produtos primários e importadorade capital e tecnologia. Constantemente, a conjuntura do capitalimperialista central se recompõe e articula novas formas de inter-venção (os “ciclos” do Capitalismo) no espaço de dependênciados países periféricos. Assim, as nações ricas e industrializadasimpõem uma estratégia de dominação que aparece sob a forma deuma moeda-padrão (o dólar), de uma detenninada política “pro-tecionista” do comércio e do mercado (os Acordos de BrettonWoods, 1944, e a criação do GATT, 1947), de uma industrializa-ção da periferia com a formação de corporações transnacionais,bem como da constituição de organizações financeiras, como oBanco Mundial e o Fundo Monetário lntemacionall.

A condição político-econômica de dependência dos países peri-féricos evidencia cada vez mais a complexidade e as contradiçõesentre o Centro e a Periferia, entre o Norte e o Sul. Neste contexto, omarco essencial está no processo °“dependente-associado”, defini-do pelas inter-relações entre os setores externos (empresas e capi-

J

' Cf. transcrição de subsídios extraídos de: WOLKMER, Antonio Carlos. O terceiromundo e a nova ordem internacional. São Paulo: Ática, 1989. p. 20-21.

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Introdução 8 1

tais estrangeiros) e os setores intemos (Estado e elite local domi-nante). Ora, a dinâmica da dependência periférica não pode serexplicitada como situação imposta exclusivamente pelas condiçõesextemas, nem como mero produto das “relações intemas de classesdos países dependentes”. Há que se considerar que todo o fenôme-no histórico está vinculado à peculiaridade de interesses associa-dos tanto em nível nacional quanto intemacional.

Parece claro, por conseguinte, que os sintomas das contradi-ções dos países periféricos latino-americanos devem ser busca-dos na conjugação dos fatores intemos e externos, pois a depen-dência é produto tanto das condições criadas pelo sistema de do-minação político-econômico mundial quanto das relações de clas-ses e da ação ético-cultural dos agentes e dos grupos na esfera decada nação e de cada Estado? Nesse rumo de indagação, pautadapela dialética de um processo global (somatório dos condicionantesexógenos e endógenos), toma-se essencial, para compreender o“periférico” e a “dependência” numa sociedade como a brasilei-ra, ter muito claro o papel intemo das relações sociais e das con-tradições de classes?

Isso posto, e retomando a linha de condução do primeiro capí-tulo, há de se deixar evidenciado que o paradigma jurídico tradi-cional- Direito identificado com a lei e como produção exclusi-va do Estado - é o modelo normativo que vem dominando ofici-

2 WOLKMER, Antonio Carlos. op. cit., p. 23 e 25.3 Para maior aprofundamento sobre a questão do “Capitalismo periférico” consultar:

AMIN, Samir. O desenvolvimento desigual Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1976;GONZALEZ, Norberto. Vigencia actual del concepto de centro-periferia. Pensamientolberoamericano. Madrid: Revista de Economia Politica, n. 11, p. 17-29. ene./jun. 1987;SOUZA SANTOS, Boaventura de. O Estado e a sociedade em Portugal (1974-1988).Porto: Afrontamento, 1990. p. 105 e segs. No que se refere a “dependência”, recomenda-se constatar: CARDOSO, Femando H.; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvi-mento na América Latina. 4. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1977; GUNDER FRANK, Andre.Acumulação dependente e subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1980;JAGUARIBE, Helio et al. A dependência politico-econômica da América Latina. SãoPaulo: Loyola, 1976; MARIN1. Ruy Mauro. Dialética da dependência. Coimbra: Cente-lha, 1976; BENAKOUCHE, Rabah. Acumulação mundial e dependência. Petrópolis:Vozes, 1980. p. 171-243; TRASPADTNI, Roberta. A teoria da (inter) dependência. Riode Janeiro: Topbooks, 1999; SANTOS, Theotônio dos. A Teoria da Dependência: Ba-Ianços e Perspectivas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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82 O ESPAÇO DA cmsr. CONTEMPORÃNEA - A JUSTIÇA No CAPITALISMO...

almente, em fins do século XX, os países industriais avançadosdo chamado Primeiro Mundo (Europa central) e os paises em de-senvolvimento da periferia (América Latina), independentemen-te do enquadramento dessas sociedades em estruturas sócio-polí-ticas capitalistas de livre mercado ou de planificação econômicaestatal. Entretanto, há que se fazer certas diferenciações estrutu-rais e conjunturais, ainda que, em linhas gerais, o sistemanormativo, no que se refere a fontes de produção, seja o mesmo,pois na formação da Sociedade e do Estado modernos, as naçõeseuropéias exportaram e impuseram sua cultura jurídica às colôni-as. Faz-se necessária tal distinção, fundamentalmente, porque osproblemas, as necessidades e os interesses não são iguais quandose examinam as sociedades ricas e avançadas do Capitalismo cen-tral (nações do Norte) e as sociedades pobres da periferia do Ca-pitalismo (nações do Sul), imersas em contradições quase insolú-veis. Esse raciocínio não exclui, por outro lado, quer em socieda-des políticas avançadas, quer em organizações sociais atrasadase/ou em vias de desenvolvimento, a existência de interesses jurí-dicos comuns a toda a humanidade, como o respeito aos DireitosHumanos, Direito das minorias, a proteção ao meio ambiente, opacifismo, o combate à ameaça nuclear etc.

Parece correto, no entanto, que se o Direito, enquanto instru-mental técnico de regulação e de controle, adquire formato uni-versal que pode ser compartilhado por múltiplas organizaçõessociais, independente de seu estágio de riqueza e de cultura, dis-tintamente, pelo ângulo de seu conteúdo (ou seja, enquanto fenô-meno social), impõe-se precisar as particularidades que separamum sistema jurídico de outro. Isso está claro quando se prioriza oDireito não apenas como estrutura normativa, mas como relaçãosocial, reflexo cultural da confluência de uma determinada pro-dução econômica com as necessidades da formação social e daestrutura de poder predominante. Ora, nas sociedades industriaisavançadas, ocorre uma preocupação maior com direitos sociais,com direitos às diferenças étnicas, com direitos das minorias, coma regulação de certos tipos de conflitos relacionados à ecologia eao consumo, com a crescente socialização de direitos e acesso àJustiça e, por fim, com uma ordem normativa caracterizada porfunções distributivistas, persuasivas, promocionais e premiais. Já

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Introdução

nas sociedades industriais periféricas e dependentes, as priorida-des são por direitos civis, direitos políticos e direitos sócio-eco-nômicos, pelo controle de conflitos latentes relacionados às ca-rências materiais e às necessidades de sobrevivência, tudo issopautado por uma ordem normativa caracterizada pelas funçõescoercitivas, repressivas e penais.

Diante dessas singularidades, toma-se muito mais fácil per-ceber a falência e as incongruências do modelo da legalidadeliberal-burguesa - produzido para as condições da sociedade eu-ropéia dos séculos XVIII e XIX - quando aplicado às dimen-sões específicas das estruturas sócio-políticas do Capitalismoperiférico, em fins do século XX e em princípios do novo milê-nio. Vej a-se, portanto, como se consubstancia a crise do modelojuridico estatal e a decorrência de sua tênue efetividade em res-ponder às demandas por “novos” direitos e em resolver latentesconflitos coletivos nas sociedades periféricas como as da Amé-rica Latina.

Neste contexto, tratar-se-á de examinar a tradição da culturajurídica monista no Brasil, a pouca eficácia de seus procedimen-tos formais para solucionar problemas recentes, a emergência denovas exigências que se revestem de demandas por direitos, aprivação de direitos que acaba gerando a tipicidade de conflitoscoletivos e, por fim, a reduzida competência dos tradicionais ór-gãos estatais ligados à produção nonnativa (Legislativo) e à apli-cação da justiça (Judiciário), bem como as possibilidades de su-peração da crise de legalidade mediante os canais alternativos,institucionalizados ou não, capazes de contemplar e desafogar asnovas condições, interesses e necessidades de regulação social.

Preliminarmente, há que se relembrar a trajetória nacional docentralismo legal e sua natural convivência não só com oautoritarismo estatal intervencionista, como, basicamente, comuma sociedade marcada por instituições frágeis e submissas, umacultura de importação e reprodução, uma ideologia de liberalis-mo conservador, uma democracia formal e elitista, uma econo-mia historicamente dependente etc.

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84 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÃNEA - A JUSTIÇA No cAPIrALIsMo...

2.1 Trajetória da Cultura Juridica no Brasil

A partir da compreensão de que toda criação jurídica reproduzdeterminado tipo de relações sociais envolvendo necessidades, pro-dução e distribuição, toma-se natural perceber a cultura jurídicabrasileira como materialização das condições histórico-políticas edas contradições sócio-econômicas, traduzidas, sobretudo, pelahegemonia das oligarquias agroexpoitadoras ligadas aos interessesextemos e adeptas do individualismo liberal, do elitismo coloniza-dor e da legalidade lógico-formal. Constata-se que em momentosdistintos de sua evolução - Colônia, Império e República - a cultu-ra jurídica nacional foi sempre marcada pela ampla supremacia dooficialismo estatal sobre as diversas fomias de pluralidade de fon-tes normativas que já existiam, até mesmo antes do longo processode colonização e da incorporação do Direito da Metrópole. A con-dição de superioridade de um Direito Estatal que sempre foi pro-fundamente influenciado pelos princípios e pelas diretrizes do Di-reito colonizador alienígena - segregador e discricionário com re-lação à população nativa - revela mais do que nunca a imposição,as intenções e o comprometimento da estrutura elitista de poder.Desde o inicio da colonização, além da marginalizaçäo e do desca-so pelas práticas costumeiras de um Direito nativo e informal, umaordem normativa gradativamente implementa as condições e asnecessidades essenciais do projeto colonizador dominante. Aedificação desse imaginário juridico estatal, formalista e dogmáticoestá calcada doutrinariamente, quer no idealismojusnaturalista, querno tecnicismo positivista. Cumpre assinalar, no entanto, que os tra-ços reais de uma tradição subjacente de pluralismo jurídico podemser encontrados nas antigas comunidades socializadas de índios enegros do Brasil colonial. Em pesquisa inovadora sobre osprimórdios de um Direito popular informal, Jacques T. Alfonsinobserva, com razão, que as práticas jurídicas comunitárias nos an-tigos “quilombos” de negros e nas “reduções” indígenas, algumassob a orientação jesuítica, constituem-se nas fonnas mais remotasde um “direito insurgente, eficaz, não-estatal”4.

" ALFONSIN, Jacques Távora et al. Negros e índios no cativeiro da terra. Rio deJaneiro: AJUP/FASE, 1989. p. 20; SOUZA JUNIOR, José Geraldo de et al. Cidadania ecultura afro-brasileira. ln: Estado, cidadania e movimentos sociais. Brasília: UnB, 1986;

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2.1 Traje!0'ria da Cultura Juridica no Brasil 85

O Brasil colonial não chega a se constituir numa Nação coesa,tampouco numa sociedade organizada politicamente, pois as elitesagrárias proprietárias das terras e das grandes fazendas, senhorasda economia de monocultura (cana-de-açúcar) e detentoras da mão-de-obra escrava (índios e negros), construíram um Estado comple-tamente desvinculado das necessidades da maioria de sua popula-ção, montado para servir tanto aos seus próprios interesses quantoaos do govemo real da Metrópole. Distintamente do processo deformação do modemo Estado europeu, resultante do amadureci-mento da Nação independente, no Brasil o Estado surgiu antes daidéia de Sociedade civil e/ou de Nação soberana, instaurado poruma estrutura herdada de Portugal, fundamentahnente semifeudal,panimonialista e burocrática. Nesse contexto, os colonizares e aaristocracia rural desconsideram as práticas jurídicas mais antigasde um direito comunitário, nativo e consuetudinário, impondo Lunacultura legal proveniente da Europa e da Coroa Portuguesas. Estaestrutura jurídica formal ftmdada nas Ordenações portuguesas vi-sava, unicamente, “garantir que os impostos e os direitos aduanei-ros fossem pagos, e na formação de um cruel (...) código penal parase prevenir de ameaças diretas ao poder do Estado. (...) A maiorparte da população não tinha voz no govemo nem direitos pessoais.Eram escravos, objetos de comércio”6.

Não houve grandes modificações nessa tradição colonial elitistae segregadora, mesmo depois da independência do país e da cria-ção, por D. Pedro I, das duas Faculdades de Direito - a de Olinda(depois Recife) e a de São Pauloi. Durante a experiência monárquicae hereditária do Império, sob o influxo hegemônico da doutrinajusnaturalista e da estrutura sócio-econômica ainda assentada nolatifúndio e na escravidão, as questões de direitos civis e de direitosà cidadania não mereceram interesse maior, pois a elaboração de

WOLKMER, Antonio Carlos [Org.]. Direito e justiça na América indigena: da con-quista à colonização. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1998.

5 Vide: WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. 2. ed., Rio deJaneiro: Forense, 1999. p. 46; SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasilcolonial. São Paulo: Perspectiva, 1979.

° SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologiajurúiica. São Paulo: Saraiva, I987. p. 80-81.7 Cf. WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao pensamentojuridico critico. São

Paulo: Acadêmica, 1991. p. 106; . História do direito no Brasil. op. cit., p. 80-84.

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86 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÃNEA - A JUSTIÇA No CAPITALISMO...

um código civil estatal se daria somente nas primeiras duas déca-das do século XX. Entretanto, refletindo bem a preocupação quepredominava no bojo de um Estado agrário e escravocrata, “(...)somente o Código Penal e o Código de Processo Penal foram real-mente concluídos no Império”3. Ora, no periodo da colonização, oDireito Estatal predominante foi basicamente o Direito oficial daautoridade instituída, que, com as devidas adaptações, era extraídoe elaborado a partir da legislação portuguesa, completamente dis-tanciado das práticas jurídicas comunitárias e inibidor das fonnasde pluralismo da justiça informal.

Com o estabelecimento do Império, mesmo havendo uma es-trutura jurídica oficializada, unitária e formal, o Direito Estatalda Monarquia tomou-se mais flexível e manteve, até o adventoda República, uma amena convivência com a legislação canônica.Na medida em que o Império reconhecia a religião católica comoreligião oficial do Estado, concomitantemente admitia a existên-cia de um certo tipo de pluralismo jurídico, pois em detemrinadasregulamentações (a celebração do casamento no religioso, porexemplo, tinha mais sigrrificado e importância do que no civil)consagrava-se a supremacia do Direito paralelo da Igreja (o Di-reito Canônico) sobre o Direito oficial do Estado (o Direito doImpério). Em nenhum outro momento da história da cultura jurí-dica nacional viveu-se tão nítida, espontânea e sensivelmente aprática do pluralismo ideológico e da pluralidade de direitos. Opluralismo jurídico do Império que foi reconhecido e igualmentepermitido limitadamente pela estrutura oficial do podermonárquico, entretanto, não refletiu qualquer avanço de práticasextralegais ou informais de cunho comunitário ou popular. Trata-va-se de um pluralismo juridico ideologicamente conservador eelitista que reproduzia tão-somente a convivência das forças do-minantes, ou seja, entre o Direito do Estado e o Direito da Igreja.

As mudanças, na virada do Século XIX para o início do séculoXX, decorrentes da alteração do sistema monárquico (surgimentoda República em 1889) e do deslocamento da correlação de for-ças (domínio das oligarquias cafeeiras agroexportadoras), acaba-ram afetando afonnação social brasileira que, com a instauração

8 SHIRLEY, Robert Weaver, op. cit., p. 81.

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2.1 Trajetória da Cultura Jurídica no Brasil 87

de uma ordem claramente liberal-burguesa, propiciou aSolidificação definitiva de uma cultura jurídica positivista. Opositivismo jurídico nacional, essencialmente monista, estatal edogmático, constrói-se no contexto progressivo de umaideologização representada e promovida pelos dois maiores pó-los de ensino e saber juridico criados na primeira metade do sécu-lo XIX: a Escola do Recife e a Faculdade de Direito do Largo deSão Francisco (São Paulo)9.

O advento da República (inspirado nos ideais doconstitucionalismo norte-americano e no positivismo filosóficocomtiano), que consagra a democracia representativa, a separaçãodos poderes e o federalismo presidencialista, em nada diminui asprofundas desigualdades entre as oligarquias cafeeiras exportado-ras (agora concentradas entre São Paulo e Minas Gerais) e a imen-sa maioria pobre da população, alijada da participação política edesprovida dos direitos básicos de cidadania. Nesse quadro, o Di-reito Estatal vem regulamentar, através de suas codificações, osintentos dos proprietários de terras e da burguesia detentora do ca-pital, ocultando, sob a transparência da retórica liberal e doformalismo das preceituações procedimentais, uma sociedade declasse virulentamente estratificada. Num espaço público atraves-sado pelo discurso político do ecletismo conciliador e pela práticasocial do autoritarismo modernizante, o Estado, no Brasil, defmepermanentemente o papel da Sociedade Civil e exercita, com ex-clusividade, seu monopólio da produção jurídica.

Todos esses aspectos possibilitam ter uma compreensão maisadequada do modelo de legalidade que se implantou no país, in-dependentemente de suas condições histórico-culturais e das re-ais necessidades de sua população.

Ainda que se corporifique oficialmente a montagem de umprojeto juridico estatal, adaptado às contingências de um capita-lismo periférico, importa assinalar a subsistência subjacente eparalela de padrões plurais de legalidade. Na verdade, mesmoautores representativos da velha elite republicana (anos 20 e 30),como Oliveira Vianna, já reconheciam, na análise das “institui-

° Examinar: ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1988.

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88 O ESPAÇO DA CRISE Cor~rrEMPoRÃI~IEA - A JusrIÇA No CAPITALISMO...

ções políticas brasileiras”, o fenômeno freqüente e quase normalda existência do “Direito elaborado pelas elites, consubstanciadona lei e nos códigos”, diferentemente do “Direito elaborado pelaSociedade, na sua atividade criadora de normas e regras de con-duta (...), o Direito criado pela massa (...), de criação popular,mas que é obedecido como se fosse um Direito codificado e san-cionado pelo Estado”'°. Esta é também a menção ilustrativa doantropólogo Robert W. Shirley, para quem, num país de “contra-dições jurídicas dramáticas”, dominado historicamente por “umaaristocracia estritamente ligada a interesses extemos”, a ordena-ção legal fonnal, sem muita eficácia e destinada a uma minoria(feita, muitas vezes, para “inglês ver”), distancia-se do Direitoreal informal praticado pela população. Analisando a estruturaformal e informal presente no Direito Brasileiro, Robert W. Shirleydistingue três padrões de legalidade no país: “l°) As leis formaisdas escolas de Direito e do govemo - as leis da elite urbana”.Cabe lembrar, aqui, no âmbito do Direito oficial, que através daconhecida “instituição” brasileira, o “jeitinho”, a classe dominantemonopolizadora do Estado esteve quase sempre acima de qual-quer lei fonnal. “2°) As leis dos coronéis, os grandes proprietári-os de terra e a elite comercialmente ativa, que São muitas vezes ossoberanos absolutos de suas propriedades”. 3°) Por fim, a legisla-ção comunitária, ou seja, “a lei popular, as leis consuetudináriasdos pequenos agricultores, agregados, camponeses, caipiras e dospobres das zonas urbanas”“.

À parte esses traços de manifestações informais, ao privilegiaro monopólio da produção nonnativa estatal, cabe precisar que aparticularidade dessa legalidade não só foi significativa para a for-mação dogmática integrada no ensino e na aplicação do Direito,como na prolongada influência fonnalista sobre gerações de advo-gados, juristas e professores. Até a primeira metade do século XX,uma plêiade de legalistas perfila-se na direção extremada do

'° OLIVEIRA VIANNA, F. Instituiçõespoliticas brasileiras. Rio de Janeiro: Record,1974. p. 22. .-

“ SHIRLEY, Robert Weaver. op. cit., p. 79, 83, 89 e 90. Observar igualmente:ROSENN, Keith S. Ojeito na culturajurídica brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998;LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 2. ed., São Paulo: Alfa-Omega, 1975.

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2.1 Trajetória da Caltura Juridica no Brasil

monismo jurídico, particularmente entre os cultores da doutrinapenal brasileira. Deveras, a doutrina da Dogmática Jurídica calca-da no mito do “princípio da legalidade” encontra nos crirninalistaspátrios o mais alto grau de positivação e de apuro técnico. Umaexemplificação de tal fato pode ser encontrada nas enfáticasassertivas de Nelson Hungria, quando, em seus comentários aoCódigo Penal de 1940, conclama que “não há outro Direito senão oque se encerra na lei do Estado. A fórmula de Kelsen é incontestá-vel: “o Estado é o Direito”. Não há Direito errando fora das leis.Não é Direito, mas simples aspiração a Direito, com maior ou me-nor probabilidade de êxito, o que não se insere no mandamentocoativo do Estado. (...) Se não há poder algum acima da soberaniado Estado, a vontade deste é a lei e a única matriz do Direito”.

Enfim, repensar criticamente o paradigma da juridicidade es-tatal, no Brasil, impõe-nos a tarefa de desmitificar toda a tradiçãohegemônica de uma cultura marcada, como lembra José EduardoFaria, por “(...) uma visão formalista do Direito, destinada a ga-rantir valores burgueses e insistindo em categorias formuladasdesde a Revolução Francesa (como, por exemplo, a univocidadeda lei, a racionalidade e a coerência lógica dos ordenamentos, anatureza neutra, descritiva e científica da dogmática etc.), repro-duz um saber juridico retórico, cuja superação é de difícil conse-cução, pois é justificadora e mantenedora do sistema político,entreabrindo a visão do Direito apenas como um instrumento depoder. Daí, por extensão, seus princípios fundamentais se identi-ficarem com um dogmatismo que pressupõe verdades perenes eimutáveis, capazes de exercer o controle social sem sacrificio desua segurança e aparente neutralidade”“.

Esses posicionamentos fortalecem o argumento de que na evo-lução do ordenamento jurídico nacional coexistiu, desde as ori-gens de nossa colonização, um dualismo normativo corporificado,de um lado, pelo Direito do Estado e pelas leis oficiais, produçãodas elites e dos setores sociais dominantes, e, de outro, pelo Di-

'2 HUNGRIA, Nelson et al. Comentarios ao Código Penal. 6. ed., Rio de Janeiro:Forense, 1980. v. I. p. 34-37.

'3 FARIA, José Eduardo. Sociologia juridica: crise do direito e práxis politica. Riode Janeiro: Forense, 1984. p. 182.

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90 O ESPAÇO DA ciusn CONTEMPORÃNEA - A JUSTIÇA No cAP1TAusMo...

reito Comunitário não-estatal, obstaculizado pelo monopólio dopoder oficial mas gerado e utilizado por grandes parcelas da po-pulação, por setores discriminados e excluídos da vida política.Entrementes, cumpre asseverar que, embora prevaleça na tradi-ção brasileira uma “aparente” hegemonia das formas jurídicasestatais, na verdade, cabe resgatar o significado subjacente e sem-pre presente do pluralismo enquanto revelação cotidiana de açõesextralegais insurgentes e informais.

2.2 Necessidades, Direitos e a Questão dos Conflitos

Quando se faz uma análise mais demorada das origens, dosprincipios e implementações de nosso Direito Estatal ~ quase sem-pre identificado com a estrutura de poder e desvinculado das prá-ticas sociais comunitárias - compreende-se com mais facilidadeas raízes de seu exaurimento. Essa estrutura periférica e depen-dente é profundamente atingida por violentas contradições eincontidos conflitos de natureza social, econômica e política. Trata-se da falência de uma ordem jurídica herdada do século XVIII,por demais ritualizada, dogmática e desatualizada, que, em suasraízes, nunca traduziu as verdadeiras condições e intentos do todosocial. Não é diñcil constatar, hoje, o colapso dessa ordenaçãoliberal-burguesa presa às abstrações normativas acerca de um “su-jeito de Direito” ou de um “Estado de Direito” e que, escorada noconvencionalismo de sua lógica individualista e de suaracionalidade fonnal, não consegue acompanhar o ritmo crescen-te de novas formas de reivindicações e transformações aceleradaspor que passa a Sociedade. Essa crise que atinge a legalidade es-tatal ultrapassa o próprio aparato procedimental com todos os seusmecanismos institucionais, pois o cerne da questão engloba prin-cípios, fundamentos, valores e objetivos.

Tentando delimitar o foco de atenção, há que se priorizar umcerto número de carências e necessidades fundamentais que setraduzem em demandas por “novos” direitos e que, na medida emque são frustradas, desencadeiam uma dinâmica interminável deconflitos coletivos. Na verdade, o conjunto das “necessidades

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2.2 Necessidades, Direitos e a Questão dos Conflitos 91

humanas fundamentais” - quer primárias c secundárias, quer pes-soais e sociais, ou reais e aparentes - implica falta, ausência ouprivação, tanto “objetivamente” de bens materiais e não-materi-ais inerentes à produção humana em sociedade, quanto “subjeti-vamente” de valores, interesses, desejos, sentimentos e fonnas devida. O desenvolvimento da própria sociedade cria constantes ecrescentes necessidades que nem sempre poderão ser completa-mente satisfeitas. A não-realização ou negação, total ou parcial,dessas necessidades essenciais, principalmente quando geradaspelo modemo “desenvolvimento da produção e da divisão socialdo trabalho”“, acabam gerando contradições, conflitos e lutas.Nesse processo histórico de mudanças nas condições de vidamarcado pela insatisfação de necessidades e pela eclosão resul-tante de conflitos, interpõe-se a reivindicação de “vontades cole-tivas” em defesa dos direitos adquiridos e pela criação ininterruptade “novos” direitos. Ora, como assinala Eunice R. Durham, a pas-sagem do reconhecimento das necessidades humanas para a “for-mulação da reivindicação é mediada pela afirmação de um direi-to”*5. Com efeito, as múltiplas manifestações da cidadania indivi-dual e coletiva estão direcionadas objetivando conquistar e legiti-mar direitos que a própria comunidade se outorga, independente-mente da produção e distribuição legal, institucionalizada peloscanais oficiais do aparelho estatal. A demanda e a implementaçãodesses “novos” direitos ainda não contemplados - ou, quando re-conhecidos, só formalmente, em nível de normas programáticassem efetividade prática - pela legislação e pelos códigos positi-vos, na maioria das vezes só são conseguidos ou assegurados atra-vés de um processo de lutas comunitárias e conflitos coletivos.

Há que se compreender que a reinvenção permanente de “no-vos” direitos, que assumem dimensão individual, política e social,está diretamente relacionada com o grau de eficácia de uma respos-ta à situação ou condição de privação, negação ou ausência de “ne-cessidades” ftmdamentais, “necessidades” configuradas como bensque servem para a satisfação e realização da vida humana.

'4 Cf. NUNES, Edison. Carências urbanas, reivindicações sociais e valores democrá-ticos. São Paulo: Lua nova, v. I7, p. 74, Jun./1989.

'5 DURHAM, Eunice R. Movimentos sociais - a construção da cidadania. SãoPaulo: Novos Estudos, Cebrap, v. 10, p. 29. Out./1984.

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92 O EsPAÇo DA ciusr CONTEMPQRÀNEA - A 1Usr1ÇA No CAPITALISMO...

Na dinâmica do espaço público cotidiano, matizado por con-tradições, rupturas e mutações, o processo histórico interage cons-tantemente com o núcleo representativo das necessidades, direi-tos e conflitos.

O lastro de abrangência desses direitos está sedimentado emnovos critérios de legitimação e de eficácia social, tendo sua ra-zão de ser na ação de sujeitos coletivos que, conscientes e mobi-lizados num espaço cotidiano de conflituosidade, reivindicam,através de fonnas múltiplas de pressão e lutas, a satisfação desuas necessidades humanas fundamentais. Assim, toma-se umprocesso natural que a consciência das carências e necessidadesacabem concretizando reivindicações por direitos. Trata-se dedireitos que, no âmbito das instituições periféricas latino-ameri-canas (caso do Brasil), afirmam-se como básicos para a própriasobrevivência de grandes parcelas da população. As demandaspor direitos cobrem largo espectro de necessidades e privações,exigências que alcançam o direito à água, saúde, saneamento, as-sistência médica; o direito de igualdade para a mulher, o direito àcreches para as mães que trabalham, bem como o direito dos índi-os às suas terras, o direito das minorias étnicas, o direito de prote-ção às crianças exterminadas nas ruas e os direitos da populaçãopor proteção e segurança contra as diversas fonnas de violência.A luta por esses “novos” direitos por parte dos setores comunitá-rios intermediários representados, sobretudo, pelos movimentossociais organizados, efetiva-se em duas frentes:

a) a exigência para tomar eficazes os direitos já alcançados eproclamados formalmente pela legislação oficial estatal;

b) a reivindicação e o reconhecimento dos direitos que emer-gem de novas necessidades que a própria população cria e se auto-atribui. Na verdade, toda a causalidade da interação coletiva deedificação desses “novos” direitos comunitários deve-se à inefi-cácia de uma legislação estatal importada da Metrópole coloniza-dora e inteiramente desvinculada dos reais interesses dos segmen-tos majoritários de nossa Sociedade. Daí verificar-se, como as-sinala Eunice R. Durham, a “ocorrência, entre nós, de um proces-so de construção coletiva de um conjunto de direitos que está

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2.2 Necessidades, Direitos e a Questão dos Conflitos 93

sendo realizado pelos movimentos sociais. E isso não através deuma codificação completa e acabada de uma realidade existente,mas como o reverso de tuna definição cumulativa de carênciasque são definidas como inaceitáveis”'°. Conseqüentemente, vive-se um “processo de construção coletiva de uma nova cidadania”,pressuposto básico para implementar uma nova legitimidade depoder.

Uma vez realçada a problematização de “direitos” que nascema partir das carências e necessidades fundamentais, cabe situar,mais detalhadamente, em face de sua importância para este capí-tulo, a questão dos conflitos.

Na medida em que a vida social é concebida como evolução,rupturas e mudanças, os conflitos são componentes essenciais detoda e qualquer sociedade humana. Os conflitos nascem de açõessociais conscientes expressadas pela limitação, colisão e disputaentre interesses opostos e divergentes, envolvendo indivíduos,grupos, organizações e coletividades. Como querem alguns auto-res, J . G. March, H. A. Simon e Aurélio W. Bastos, podem seridentificados três tipos principais de conflito: “a) conflito indivi-dual; b) conflito entre indivíduos ou grupos dentro de urna orga-nização; c) conflito interorganizacional: conflitos entre organiza-ções ou g1upos””. Existem, portanto, diversos níveis de conflitosque vão desde as formas mais genéricas, como os conflitos soci-ais, até as mais específicas, como os conflitos políticos, os confli-tos de interesses, os conflitos de classe, os conflitos étnicos etc.No entender de G. Pasquino, uma distinção entre os diferentesmodos de conflitos deve levar em consideração algumas caracte-rísticas, como “dimensão”, “intensidade” e “objetivos”. A ques-tão da “dimensão” refere-se ao número de participantes; a “inten-sidade”, ao grau de atuação dos atores envolvidos; e, por fim, os“objetivos” relacionam-se diretamente aos fins perseguidos, quersejam refonnas, quer sejam mudanças “no ou do sistema”. Con-trariamente a outros teóricos, G. Pasquino não considera que aviolência seja um traço essencial da “intensidade”, pois, ainda

'° DURI-IAM, Eunice R., op. cit., p. 29.'7 CHAVES BASTOS, Aurélio W. Conflitos sociais e limites do poder judiciário.

Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, 1975. p. 48.

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94 O ESPAÇO DA cursa CONTEMPORÃNEA - A JusrrÇA No CAPITALISMO...

que relevante para avaliar o conflito social ou político, a violên-cia não deve ser encarada como o “único e nem necessariamenteo mais eficaz” instrumento de utilização”.

Pela importância que acabou adquirindo, o estudo dos confli-tos sociais propiciou algumas interpretações, dentre as quais valelembrar: a) a “teoria sociológica do consenso”, de orientaçãofuncionalista, que visualiza o conflito como desequilíbrio, per-turbação da ordem e uma patologia social, concepção defendidapor teóricos, como V. Pareto, E. Durkheim e T. Parsons; b) a “te-oria sociológica da coação”, que admite o conflito como elemen-to nuclear e impulsionador da sociedade, fator de criatividade,dinamismo e mudanças. No rol dessa segunda interpretação en-contram-se autores das mais diferentes posturas, como K. Marx,G. Sorel, G. Simmel, A. Touraine, R. Dahrendorf e outros”.

Certamente que, quando se procura a origem das primeirasanálises sobre os conflitos sociais de natureza econômica no âm-bito da sociedade industrial, hão de se considerar obrigatoriamenteas contribuições de Karl Marx. Neste sentido, o sociólogo ale-mão Ralf Dahrendorf, ao empreender uma minuciosa análise dasclasses sociais na sociedade industrial, avança na construção deum modelo teórico dos conflitos e das mudanças, tendo em contaos principais pressupostos da sociologia marxista. ParaDahrendorf, podem ser identificadas, nos escritos de Marx, qua-tro contribuições básicas para uma sociologia dos conflitos: osconflitos estão sempre presentes em qualquer sociedade; o con-flito é o motor principal da história; os conflitos sociais enquantoconflitos de interesses envolvem necessariamente o antagonismode duas partes; e, por último, os conflitos de classes são fatoresestruturais da mudança social. Por outro lado, entre as criticasfeitas por Dahrendorf constam as de que Marx, além de vincularos conflitos ao processo produtivo, reduziu os conflitos sociais

'Z PASQUINO, Gianfranco. Conflitos. In: BOBBIO, Norberto et ai. Dicionário depolítica. Brasilia: UnB, 1986. p. 226; DAHRENDORF, Ralf. Sociedade e liberdade.Brasília: UnB, 1981. p. 142-148; . As classes e seus conflitos na sociedade indus-trial. Brasíliaz UnB, 1.982. p. 190.

'° Cf. PASQUINO, Gianfranco. In: BOBBIO, Norberto et al. op. cit., p. 226;DAHRENDORF, Ralf, 1981. p. 142 e 152-154; DEMO, Pedro. Sociologia: uma intro-dução crítica. São Paulo: Atlas, 1987. p. 39-41 e 66-68.

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2.2 Necessidades, Direitos e a Questão dos Conflitos 95

aos de classes e prescreveu, enfaticamente, que esses mesmosconflitos de classes conduziriam inexoravelmente à revolução”.

Um dado oportuno que vem realçar a temática em questão éque Guy Rocher, comentando a significativa relevância da obrade Marx e de Dahrendorf para a construção de uma sociologiados conflitos, descreve que é possível aproximá-los, pois, paraambos, o conflito revela-se o “principal fator estrutural dahistoricidade das sociedades. Inscrito na própria natureza da or-ganização social, provoca constantemente a mudança e a evolu-ção, ou mesmo a revolução, na organização social””'. Entretanto,a distinção entre os dois está em que Marx limitou-se a priorizarunicamente o “caso das revoluções, isto é, das mudanças bruscase radicais que têm como conseqüência a substituição total daspessoas e dos grupos que exercem a autoridade e o controle”. Jána perspectiva liberal de Dahrendorf, as “verdadeiras revoluçõessão raras na história; esta é feita sobretudo de mudanças de estru-tura progressiva, o que não implica necessariamente ou de manei-ra brusca a substituição das pessoas e grupos dominantes””.

Uma discussão teórica que trata das origens, características einterpretações dos conflitos sociais permanecerá inconclusa senão aludir à questão de sua regulamentação e solução. Tentandodar urna resposta, Dahrendorf não só adverte que a repressão éum método imoral e ineficiente para dirimir conflitos, como pon-dera que o controle positivo dos conflitos exige uma série de “re-gras de procedimento” (podendo ser formais ou informais), quevão desde os contratos coletivos, leis, estatutos até certas fórmu-las admitidas dentro das “regras do jogo”, como a “discussão”, a“mediação”, a “conciliação” e a “arbitragem”23.

Visualizando algumas asserções sobre o fenômeno dos confli-tos, trata-se agora, de articular um sentido de “conflito social” quemelhor se ajuste aos propósitos deste objetivo teórico. Há que seter consciência de que a categoria “conflito”, aqui, insere-se nocontexto de uma ordem capitalista periférica e dependente, simbo-

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2" Cf. ROCHER, Guy. Sociologia geral. Lisboa: Presença, 1971. p. 236-241.1* ROCHER, Guy. op. cit., p. 252.22 Ibidem, p. 252-253.23 Cf. DAHRENDORF, Ralf, 1981, op. cit., p. 150-152.

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96 O ESPAÇO DA CRISE ÇONTEMPORÃNEA - A JUSTIÇA No CAPITALISMO...

lizando lutas históricas de sujeitos sociais que reivindicam neces-sidades fundamentais capazes de erradicar a condição de explora-ção econômica, dorninação política e exclusão cultural24. Com efeito,os conflitos sociais ou conflitos coletivos, como também se há deos designar, são fatores inegáveis de mudança na sociedade, noaparelho estatal e no sistema de legalidade. Como Marx já haviacompreendido, mas sem ater-se exclusivamente aos conflitos declasse inerentes ao Capitalismo, genericamente os conflitos coleti-vos referem-se ao confronto ou antagonismo irreconciliável “entreaqueles que têm interesses em que se mantenha e perpetue umasituação de que se beneficiam e aqueles que têm interesses (...) emque a situação mude”25 radicalmente. O direcionamento estratégi-co de transposição dos conflitos coletivos está, pois, em discernirentre o que manter e o que mudar no status quo.

De modo particular, nas economias dependentes e nas conjun-turas políticas periféricas, como o Brasil, o processo de mudançase impõe com maior fieqüência, na medida em que parcelas dosconflitos coletivos irão refletir manifestações de grupos de inte-resses ou movimentos sociais em tomo de exigências e demandasnão atendidas ou não satisfeitas pelos canais legais institucionais.Neste contexto, o direcionamento desta pesquisa deixa de dar aten-ção às ações reformistas e altamente forrnalizadas que operamcom a “manutenção” da “ordem”, encaminhando-se nitidamentepara a prática social cotidiana de “rupturas” e “mudanças”,introjetoras das bases de um novo ajuste de convivência (o quenão exclui novas modalidades de organização e deinstitucionalização) político-jurídica pluralista.

2.3 O Poder Judiciário e sua Ineficácia Instrumental

Explicitou-se que a cultura jurídica brasileira é marcada poruma tradição monista de forte influxo kelseniano, ordenada num

24 Cf. CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outrasfalas. 3. ed., São Paulo: Modema, 1982; GOHN, Maria da Glória M. A força da perife-ria. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 37 e 42.

25 ROCHER, Guy. op. cit., p. 236-237.

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2.3 O Poder Judiciário e sua Ineficácía Instrumental 97

sistema lógico-formal de raiz liberal-burguesa, cuja produçãotransforma o Direito e a Justiça em manifestações estatais ex-clusivas. Esta mesma legalidade, quer enquanto fundamento evalor normativo hegemônico, quer enquanto aparato técnico ofi-cial de controle e regulamentação, vive uma profunda criseparadigmática, pois vê-se diante de novos e contraditórios pro-blemas, não conseguindo absorver determinados conflitos cole-tivos específicos do final do século XX. Assim, o centralismojurídico estatal montado para administrar conflitos de naturezaindividual e civil toma-se incapaz de apreciar devidamente osconflitos coletivos de dimensão social, ou seja, conflitos confi-gurados por mais de um indivíduo, grupos ou camadas sociais.A estrutura legal tem procurado historicamente minimizar edesqualificar a relevância de toda e qualquer manifestaçãonormativa não-estatal, consagradoras da resolução de conflitospor meio de instâncias não-oficiais ou não reconhecidasinstitucionalmente. Mormente, essa ineficiência do modelo ju-rídico dominante para o equacionamento dos conflitos coleti-vos manifesta-se em dois níveis de atuação:

a) no âmbito do órgão singular ou aparato interpretativo ofici-al, representado pelo chamado Poder Judiciário; e

b) no contexto da própria legislação positiva estatal, traduzidaespecificamente pelo Código Civil e pelo Código de Processo Ci-vil.

Pode-se perfeitamente verificar que tanto o Poder Judiciárioquanto a legislação civil refletem, tendo presente a especificidadebrasileira, as condições materiais e os interesses político-ideoló-gicos de uma estrutura de poder consolidada, no início do séculoXX, no contexto de uma sociedade burguesa agrário-mercantil,defensora de uma ordenação positivista e de um saber jurídicoinserido na melhor tradição liberal-individualista.

Em todo caso, avançando por incursões mais genéricas, pri-meiramente importa detalhar aspectos da discussão sobre a criseque perpassa a administração da Justiça, essencialmente no quese refere ao desajuste estrutural e à pouca eficácia do Poder Judi-

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98 O ESPAÇO OA cursa CONTEMPORÂNEA - A JusTrÇA No CAPITALISMO...

ciário enquanto tradicional instância burocrático-estatal encarre-gada do controle e da resolução dos conflitos sociais.

Reconhece-se que as condições do atual estágio da ordem po-lítico-econômica mundial - caracterizada por um Capitalismomonopolista globalizado, por contradições sociais e crises espe-cíficas de legitimidade inerentes à sociedade burguesa, peloexaurimento do modelo clássico liberal da tripartição dos pode-res e pela descrença nos mecanismos tradicionais de representa-ção política -têm afetado profundamente O Poder Judiciário.

Em maior ou menor grau, tanto nos países do Capitalismo avan-çado pós-industrial, quanto nas sociedades industriais periféricasda América Latina, a administração da Justiça reproduz a crisevivenciada pelo modelo clássico de Estado-Nação e pela estrutu-ra sócio-cultural da sociedade de massa frente aos novos desafiostrazidos pela globalização. Para urna melhor explicitação dessaproblemática, usam-se aqui as interpretações do jurista Celso F.Campilongo, para quem O Judiciário corporifica conco-mitantemente um subsistema dependente e independente que fun-ciona conforme as necessidades do sistema político vigente.

Diante disso, a crise do Judiciário é, antes de mais nada, crisepolítica dos canais de representação dos interesses coletivos pre-sentes nas democracias burguesas representativas. Ora, a rupturacom as fonnas tradicionais de representação política, a dinâmicade expansão da cidadania coletiva e a implementação de políticasreformistas vêm detenninando, nos EUA e na Europa, a rearticulaçãodas funções do Judiciário, tornando-O um “novo centro de produ-ção de Direitos”26. Este modo de visualizar O papel do Judiciárionos países avançados parte da constatação de que a instânciajurisdicional entra em crise quando fica presa às suas antigas e li-mitadas funções dogmáticas de resolução dos conflitos individuaise patrimoniais. Ainda que exista certa crise de legalidade eredefmição dos papéis normalmente atribuídos à magistratura, nassociedades democráticas avançadas O Judiciário vem sendo cha-mado a assumir atividades cada vez maiores, quer como instância

2° CAMPILONGO, Celso F. Magistratura, sistema jurídico e sistema político. In:José Eduardo Faria [Org.]. Direito e justiça. A função social do judiciário. São Paulo:Atica, 1989. p. 118-119.

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2.3 O Poder Judiciário e sua ineficácia Instrumental

de decisões de conflitos político-sociais de massa, quer como espa-ço central de “reconhecimento ou negação de reivindicações soci-ais””. Esta situação, que reflete mudanças, avanços e restruturaçãonas instâncias jurisdicionais dos países da Europa e dos EUA, nãocorresponde ao mesmo tipo de crise que atravessam os Estadosdependentes do Capitalismo periférico. Vê-se, assim, na relaçãoentre países centrais pós-industriais e sociedades atrasadas em pro-cesso de modernização, formas distintas de crise da legalidademonista e níveis diversos de ineficácia no âmbito da administraçãoda Justiça. Uma exemplificação de tal realidade pode ser aqui de-monstrada: os tribunais europeus são competentes quando chama-dos para efetivar ou reconhecer novos direitos provenientes dosmovimentos sociais vinculados às minorias, ao desarmamento e aomeio ambiente”, enquanto na América Latina (particularmente noBrasil) O Judiciário como instância burocrático-estatal, dependentee inoperante, não só é entravado pela mesma crise que atravessa OEstado e as instituições sociais, como, sobretudo, é acionado cons-tantemente a responder, sem eficácia, por conflitos de massas denatureza social e patrimonial.

O alcance dessa crise de identidade do Judiciário condiz comas próprias contradições da cultura juridica nacional, construídasobre uma racionalidade técnico-dogmática e calcada em proce-dimentos lógico-forrnais, e que, na retórica de sua “neutralida-de”, é incapaz de acompanhar O ritmo das transformações sociaise a especificidade cotidiana dos novos conflitos coletivos. Trata-se de uma instância de decisão não só submissa e dependente daestrutura de poder dominante, como, sobretudo, de um órgão bu-rocrático do Estado, desatualizado e inerte, de perfil fortementeconservador e de pouca eficácia na solução rápida e global dequestões emergenciais vinculadas, quer às reivindicações dosmúltiplos movimentos sociais, quer aos interesses das maioriascarentes de justiça e da população privada de seus direitos. Acrise vivenciada pela Justiça oficial, refletida na suainoperacionalidade, lentidão, ritualização burocrática, comprome-timento com os “donos do poder” e falta de meios materiais e

2* Ibidem. p. 118.28 CAMPILONGO, Celso F. op. cit., p. 118.

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100 O ESPAÇO DA Ciuse CONTEMPORÂNEA - A JUSTIÇA No CAPITALISMO...

humanos, não deixa de ser sintoma indiscutível de um fenômenomais abrangente, que é a própria falência da ordem jurídica esta-tal. De qualquer forma, numa análise mais acurada há que se con-siderar, como fazem J _ E. Faria e J. R. Lima Lopes, que o cerneproblemático do Judiciário não é, necessária e exclusivamente, afalta de verbas e o desaparelhamento, pois essa situação se cons-tituiria em mera disfunção dentro de uma escala maior de proble-mas institucionais e estruturais. O que importa é ter consciênciade que “a grande questão (...) é aquilo que muitos parecem nãover: o estar formado numa cultura jurídica incapaz de entender asociedade e seus conflitos e a má vontade em discutir a democra-tização efetiva deste ramo do Estado”29.

O certo é que, nos horizontes da cultura jurídica positivista edogmática, predominante nas instituições políticas brasileiras, oPoder Judiciário, historicamente, não tem sido a instância marcadapor uma postura independente, criativa e avançada, em relaçãoaos graves problemas de ordem politica e social”. Pelo contrário,trata-se de um órgão elitista que, quase sempre ocultado pelo“pseudoneutralismo” e pelo formalismo pomposo, age com de-masiada submissão aos ditames da ordem dominante e move-seatravés de mecanismos burocrático-procedimentais onerosos,inviabilizando, pelos próprios custos, seu acesso à imensa maio-ria da população de baixa renda.

Ainda que seja um locus tradicional de controle e de resoluçãodos conflitos, na verdade, por ser de dificil acesso, moroso e ex-tremamente caro, torna-se cada vez mais inviável para controlar ereprimir conflitos, favorecendo, paradoxalmente, a emergênciade outras agências altemativas ““não-institucionalizadas” ou ins-

” FARIA, José Eduardo; LIMA LOPES, José Reinaldo de. Pela democratização dojudiciário. In: Direito ejustiça. A função social do judiciário. op. cit., p. 163. Também:FARIA, José Eduardo [Org.]. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. São Paulo:Malheiros. 1994.

3° Cf. FALCÃO, Joaquim de A. Democratização e serviços legais. ln: Direito ejusti-ça. A função social do judiciário. op. cit., p. 149-150. Sobre a tradição republicana dojudiciário brasileiro, alheio a uma prática mais democrática, ver: VIEIRA, José Ribas. Opoder judiciário e a república: a democratização adiada. Revista de Teoria Juridica ePráticas Sociais. Rio de Janeiro: NIDS/UFRJ, n. 1, p. 105-1 15, 1989; KOERNER, Andrei.Judiciário e cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec/USP, 1998.

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2.3 O Poder Judiciário e sua Ineficácia Instrumental 10]

táncias judiciais “informais” (juizados ou tribunais de concilia-ção ou arbitragem “extrajudiciais”) que conseguem, com maioreficiência e rapidez, substituir com vantagens o Poder Judiciário.Na sociedade periférica brasileira de estrutura burguês-capitalis-ta, as dificuldades de acesso à justiça oficial e a impossibilidadede pagar advogados e despesas judiciais fazem com que crescen-tes movimentos sociais insurgentes e grande parte das camadaspopulares marginalizadas tendam a utilizar mecanismos “não-ofi-ciais” de negociação nonnativa (“convenções coletivas”, “acor-dos” ou “arranjos” setoriais de interesses etc.) e a recorrer aosserviços legais alternativos. A expansão dessas práticas e mani-festações normativas informais tem levado alguns pesquisadoresempíricos do Direito a reconhecer, nesse fenômeno, uma respostanatural à incapacidade da Justiça oficial do Estado de absorver ascrescentes demandas sociais geradoras de conflitos coletivos e dedecisões judiciais. Um desses autores, Joaquim de A. Falcão, pro-cura demonstrar, em pesquisa sobre invasões de propriedade rea-lizada no perímetro urbano da cidade do Recife, que detennina-dos litígios de natureza coletiva e classista não tem merecido ointeresse mais atento e efetivo dos intérpretes da dogmática jurí-dica estatal. Outrossim, no enfrentamento de questões de maiorsignificado social, o Judiciário tende a retroceder numa não-deci-são, ou seja, “não aplica simplesmente a lei, ou muitas vezes nãodecide, porque em diversos casos a aplicação da lei ou a decisãolevariam ao alastramento dos conflitos”3'. Nesse caso, atendo-seà técnica de decisão isolada, de “caso a caso”, e combinando aordem legal com a ordem normativa informal, a instânciajurisdicional procura evitar, diante da opinião pública, a perda desua legitimidade e de sua autoridade institucional. Para isso, afas-tando-se de uma aplicação rigidamente legalista e assumindo umpapel conciliador que visa impedir a generalização do conflito, oJudiciário acaba por tomar-se um “lugar onde se obtêm não-deci-sões”32. Na realidade, quando o juiz decide não aplicar a legisla-

31 Lll\/IA LOPES, José Reinaldo de. A fiinção do poder judiciário. ln: Direito ejusti-ça. A função social do judiciário. op. cit., p. I33; FALCÃO, Joaquim de A. Conflito edireito de propriedade - Invasões urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 93-94.

32 FALCÃO, Joaquim de A., 1984, op. cit., p. 98-99.

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102 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÂNEA - A JUSTIÇA NO CAPITALISMO...

JÔçao para evitar um agravamento do confronto, segundo JoaquimA. Falcão, “não se trata de interpretar a lei de acordo com seusfins sociais. E mais do que isto. Trata-se simplesmente de nãoaplicar a lei em nome dos fins sociais. Ou seja, o Judiciário hoje éo local onde se buscam tanto decisões incertas toleráveis, quantonão-decisões””.

A comprovação de que, em determinados casos, a instânciajurisdicional deixa de decidir para não agravar os conflitos revelatão-somente um espectro da crise de eficácia que permeia o Judi-ciário, num contexto mais amplo de crise geral que atravessa opróprio paradigma de legalidade estatal monista.

O efeito normal dessa crise na administração da Justiça, crisecomprovada pela desatualização e incapacidade de responder aconflitos que materializam manifestações de prementes mudançassociais, induz, hoje, no dizer de Oliveira e Pereira, a duas altemati-vas possiveis em sociedades periféricas como a brasileira:

a) a ampliação qualitativa dos canais institucionalizados de aces-so à justiça, objetivando propiciar, de um lado, uma aproximaçãomais efetiva e democrática “do aparato legal-estatal com o cotidia-no dos cidadãos”; de outro, solidificar estratégias mais “eficazes decontrole social sobre a atuação do aparato legal-estatal”34;

b) o reconhecimento e o incentivo de outras instânciasnormativas informais, representadas, quer por um certo tipo dejustiça implementada pelo próprio Estado, quer por manifesta-ções comunitárias não-oficiais, ambas capazes de substituir comvantagens o envelhecido e pouco eficaz órgão convencional dejurisdição estatal.

Investigadores empíricos do Direito, como Luciano Oliveira eAffonso C. Pereira, chegaram à conclusão de que, diante da criseestrutural do Judiciário Brasileiro, uma das saídas é o reconheci-mento e a ampliação de uma Justiça feita pelo Estado-Adminis-

33 Ibidem, p. 94.34 OLIVEIRA, Luciano; PEREIRA, Affonso C. Conflitos coletivos e acesso àjasti-

ça. Recife: FJN/Massangana, 1988. p. 26-31.

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2.3 O Poder Judiciário e sua lneficácia Instrumental 103

tração. De fato, no Brasil, ainda que se questione a natureza e alegitimidade dessa instância de decisão oficial, representada pe-los órgãos e agências do Poder Executivo, desde há um largo tem-po, “vem absorvendo, cada vez com maior freqüência, não só osconflitos sociais que constituem demandas tipicamente políticas,como também um número crescente de demandas jurídicas”35.

Entretanto, enfatizar a proposição de que o Judiciário comolocus de negociação e resolução dos conflitos está defasado noBrasil contemporâneo não implica sua rejeição como instânciafutura de absorção dos conflitos coletivos, desde que descentrali-zada e controlada democraticamente pelo poder da sociedade ci-vil e de seus corpos comunitários intennediários36. O que parececorreto, além de apontar seus reais limites e situar o grau contidoda extensão de sua eficácia, é admitir, igualmente, suas possibili-dades, que ainda não foram devidamente exploradas ou correta-mente usadas a serviço de grandes parcelas da população carente,marginalizada e injustiçada.

Os dilemas de legitimidade e eficácia vividos pela administra-ção da Justiça e as agudas crises institucionais que atravessa oJudiciário impõem a necessária tarefa da democratização e dadescentralização da Justiça. O grau de consciência da crise doaparelho convencional de jurisdição estatal e a urgência por no-vas formas participativas de resolução dos confrontos incidemnuma tomada de posição jusfilosófica, comprometida com a rea-lidade social e com estratégias político-ideológicas que resultamem amplas e profundas mudanças. Daí a relevância em distinguir,nos países altamente desenvolvidos da Europa e dos EUA, bemcomo no espaço periférico brasileiro e latino-americano, as medi-das nucleares que conduzem a reforma e/ou a revolução (no sen-tido de substituição e transfonnação das estruturas) das instânci-as jurisdicionais.

Cabe diferenciar as experiências cotidianas regionalizadas eos múltiplos níveis de especificidade das crises de legalidade, pois,

35 OLIVEIRA, Luciano; PEREIRA, Affonso C. op. cit., p. 36.3° Ibidem, p. 86, 92-93. A propósito, consultar: DALLARI, Dalmo de Abreu. Opoder

dos juizes. São Paulo: Saraiva, 1996; VIANNA, Luiz Wemeck er al ii. Corpo e alma damagistratura brasileira. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ, 1997.

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104 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÂNEA - A JusTIÇA No CAPITALISMO...

como apropriadamente aponta Joaquim A. Falcão, “nos paísesmais desenvolvidos, busca-se aperfeiçoar O funcionamento da atualestrutura - ideológica, administrativa e econômica - do PoderJudiciário. Na América Latina, com as devidas exceções, trata-sequase sempre de mudar a atual estrutura do Poder Judiciário. En-quanto não muda, trata-se de reorientar ou até mesmo dificultar ofuncionamento nos casos onde prevalece a legislação (...)”” con-servadora. Disso resulta, para nossa situação periférica, a urgên-cia de uma sólida transformação em toda a instância estatal dejurisdição, de tal modo que esta venha a se constituir, sob a parti-cipação e o controle do poder comunitário, num espaço privilegi-ado de funcionamento, favorável e não contrário às reivindica-ções da imensa maioria da população excluída e injustiçada”.

A par dessas considerações sobre a prioridade de umaconsubstancial, descentralizada e democrática mudança no apa-relho tradicional de jurisdição do Estado, impõe-se, mais do quenunca, desenvolver procedimentos efetivos de acesso e controleda população à administração da Justiça, incrementando a lutanão só para que os órgãos clássicos de jurisdição (juízes, tribu-nais etc.) reconheçam e saibam aplicar fonnas flexíveis ou alter-nativas de Direito, como, igualmente, que haja uma aceitação cadavez maior, por parte dos canais institucionalizados do Estado, daspráticas de negociação e de resolução dos conflitos, mediantemecanismos não-oficiais, paralegais, informais etc.

2. 4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais como MarcoHistórico-Politico

Procurou-se, com certo destaque, descrever que o aparelhojurisdicional e a composição de seus agentes (advogados, promo-tores ejuízes), fonnados no bojo de uma culturajuridica fonnalista,

3” FALCÃO, Joaguim de A. Democratização e serviços legais. In: Direito ejustiça. Afunção social do judiciário. op. cit. p. 151.

3* Idem, p. 151. Observar: SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: osocial e 0 politico na pás-modernidade. 3. ed., Porto: Afrontamento, 1994. p. 141-161.

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2.4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais... 105

dogmática e liberal-individualista, não conseguem acompanhar in-teiramente as complexas condições de mudanças das estruturassocietárias, as freqüentes demandas por Direitos gerados por ne-cessidades humanas fundamentais e a emergência de novos tiposde conflitos de massa. A apreciação de algumas das insuficiênciasvivenciadas pela administração da Justiça leva aperquirir os fun-damentos e as diretrizes que sustentam a legislação positiva oficial.Na realidade, quando se examinam atentamente as sociedadescentralizadoras e dependentes do Capitalismo periférico, como arealidade brasileira, sacudida por virulentas desigualdades sociais,exploração econômica e dominação política, percebe-se ampla gamade conflitos coletivos, muitos dos quais originados por reivindica-ções que refletem, basicamente, carências materiais e necessidadespor direitos essenciais. Mesmo que se reconheça que uma das cau-sas dos conflitos coletivos pode ser encontrada, como foi mencio-nado anteriormente, na negação ou na ausência de Direitos aos meiospara satisfazer necessidades vitais, sócio-políticas e culturais, pre-sentemente, privilegiar-se-ão os confrontos relacionados às neces-sidades materiais, corporificadas no direito à posse, à moradia, aosolo urbano e à propriedade agrícola. Deste modo, ainda que sejacrescente na Sociedade Brasileira a confluência de conflitos denatureza essencial (saúde, saneamento básico, transporte etc.), deteor trabalhista, ecológico e de consumo, nenhum alcança o graude extensão, intensidade e violência dos conflitos coletivos do campoe dos centros urbanos, relativamente à propriedade da terra.

Ressalta-se, por conseguinte, a falência de um modelo jurídi-co estatal que, através de seu ordenamento positivo (Código Civile Código de Processo Civil) e de seu órgão jurisdicional de deci-são (Poder Judiciário), está limitado tão-somente a regulamentarconflitos interindividuais/patrimoniais e não sociais de massas,ou seja, não consegue garantir uma correta regulamentação detensões coletivas que abrangem O acesso à terra (invasão de terraspúblicas e privadas improdutivas) e o conseqüente processo deocupação nas áreas rurais e urbanas. De fato, a legislação privadae as políticas legais impostas pelo Estado não conseguiram, atéhoje, enfrentar e solucionar adequadamente as agudas questõesestruturais da Sociedade Brasileira, como a concentração da ri-queza nas mãos de poucos, as abissais desigualdades sociais e a

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106 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÂNEA - A IOSTICA No CAPITALIsMo...

crescente exclusão para milhões de pessoas da moradia e da pos-se da terra.

É paradoxal e inconcebível que um dos países de maior exten-são territorial do mundo possua como um dos seus cruciais e qua-se insolúveis problemas os conflitos coletivos de naturezafundiária, causadores de choques violentos entre a minoria lati-fundiária, proprietária de grandes parcelas em desuso do territó-rio nacional, e uma grande massa constituída por milhões dedespossuídos, necessitados e pobres não-proprietários (é O casodos movimentos sociais dos “sem-terra” e dos “sem-teto”). Esseconfronto, que envolve disputa pela posse, uso e distribuição daterra, desenrola-se no contexto de urna estrutura agrária de privi-légios e injustiças, assentada na dominação politica autoritária eclientelística, nos intentos capitalistas especulativos ediscriminadores e na produção do legal comprometimento comos interesses das tradicionais elites agrárias. Tem-se assim todatuna legislação positivo-dogrnática, marcada pela tradição de pro-teção e de conservação do Direito de Propriedade (expressa no art.524, do Código Civil Brasileiro), que acaba colocando em planoindireto, suplementar e secundário, o Direito da Posse (art. 485, doCódigo Civil Brasileiro). Esse caráter vinculante e subordinado daposse à propriedade pennite inferir que, mesmo não exercendo ODireito da posse, o proprietário instituído pela legislação estatal ésempre, obrigatoriamente, O possuidor, podendo reaver a coisa quan-do for privado de sua posse mediante ações de reintegração, previs-tas no próprio art. 524 do Código Civil Brasileiro.

Vê-se, desta fonna, que a posse, de natureza dinâmica e soci-almente evolutiva, é restringida e colocada como decorrência deum patrimônio configurado por uma abstração legal de naturezaestática. Isso significa que o Direito à posse está disciplinado,“partindo de uma distribuição dos bens que a posse já encontra eque a imobiliza”39. Ora, se todo o fundamento desse arcabouçojurídico de teor lógico-formal e liberal-burguês, montado em 1916para assegurar as condições da aristocracia rural, veio privilegiar,de modo exclusivo, inatacável e absoluto, O Direito individual depropriedade, tíido induz a crer que a solução da presente

3° Cf. ALFONSIN, Jacques Távora et al. op. cit., p. 30-31.

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2.4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais... 10']

agudização político-social desloca-se para a relevância de um“novo” Direito, o Direito social da posse”.

O aspecto obsoleto, estático e excludente das instituiçõesnormativas oficiais (tanto no âmbito da legislação positiva quan-to do Poder Judiciário), que acarreta precária eficácia da legali-dade dominante e profunda crise de legitimidade, abre espaço paraos movimentos sociais de marginalizados e despossuídos ~ os“sem-teto” e os “sem-terra” - que, sem acesso à Justiça oficial(via de regra lenta e onerosa), utilizarn-se de práticas jurídicasparalelas e altemativas consideradas “ilegais”. Essas práticas co-tidianas dos movimentos sociais definem, nos horizontes do quea ordem legal vigente chama de “ilegalidade”, novo espaçoinstituinte de cujas relações e rupturas, calcadas no binômio “le-gal/ilegal”, emergem direitos igualmente reconhecidos que aca-bam não só legitimando a “ilegalidade”, mas edificando “outroDireito” sob novas fonnas de legitimação4'.

Cabe demonstrar, presentemente, a existência de conflitos co-letivos internalizados por sujeitos sociais que são apreciados àluz da legislação convencional, cuja decisão judicial, entretanto,não chega a dar urna resposta adequada, acabando por gerar, comoproclama Joaquim Falcão, um agravamento maior do conflito.Exemplificação disso concretiza-se na resistência com mortes porparte dos invasores de terra a uma sentença de reintegração deposse concedida aos proprietários. Por outro lado, os impassespodem também ser resolvidos pelo próprio Estado (desapropria-ção, indenização, assentamentos etc.), em face da crônica inefici-ência operacional das instâncias jurisdicionais do aparelho legal-oficial, representado pelo Poder Judiciário.

Tal preocupação demonstra que a singularidade de certos con-flitos coletivos em sociedades do Capitalismo periférico não sóreflete a crise de legalidade e a insuficiência dos canais jurídicos

'*° Cf. MARQUES, Nilson. A luta de classes na questão fundiária. Rio de Janeiro:AJUPlFASE, 1988. p. 8-12. Examinar ainda: ALFONSIN, Jacques Távora. “Invasões” deáreas urbanas. Favelas. Alternativas de soluções para a constituinte. In: MEDEIROS,Antonio Paulo Cachapuz de [Org.]. Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul;sessenta anos de existência Porto Alegre: IARGS, 1986. p. 418-429.

41 Ct`. PANIZZI, Wrana Maria. Entre cidade e estado, a propriedade e seus direitos.Espaço & Debates. São Paulo, n. 26, p. 89, 1989.

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108 O ESPAÇO DA cRisE CONTEMPORÃNEA - A JUSTIÇA No cAP1rAL1sMo...

tradicionais para a resolução de confronto de interesses, como,sobretudo, reforça a tendência constante para que os novos sujei-tos sociais utilizem procedimentos extrajudiciais e práticas infor-mais não-oficiais. Outrossim, a constatação de alguns casos espe-cíficos desencadeados pela ação emancipatória dos movimentossociais permite traçar um recorte histórico-temporal de situaçõesque evidenciam a evolução para um espaço pluralista, descentra-lizado e participativo, edificador de uma cultura político-jurídicainsurgente, marcada pela “convivência das diferenças” entre aslimitações do “Direito estatal” e a expansão do “Direito Comuni-tário não-estatal”42.

Deste modo, há que situar a reflexão em dois níveis. Primeira-mente a referência e descrição de alguns estudos de casos, envol-vendo a participação de novos sujeitos sociais e a ação de suasreivindicações geradoras de conflitos coletivos em diversos cen-tros urbanos do país, resultando na gradativa produção de pesqui-sas empíricas coletadas nas áreas rurais e no campo, nas últimasdécadas. Enfatiza-se a relevância dos confrontos patrimoniais, apouca eficácia funcional da dogmática positiva oficial e o alarga-mento das práticas jurídicas informais como forma damaterialização de Direitos à terra e ao solo urbano. A constitui-ção da identidade desses novos atores sociais, representados pe-los movimentos dos “sem-terra” e dos “sem-teto”, está intima-mente relacionada à afirmação de direitos instituídos ou não; talafirmação lhes garante a subsistência e a integração no processode produção”.

Num segundo nível, ao explicitar os referenciais empíricos,tenta-se sublinhar o modo como o órgão jurisdicional de interpre-tação e decisão, comurnente preso a uma visão liberal-individua-lista e aos rigores fomiais de uma legislação pré-definida, abstra-ta e genérica, conduz-se frente a determinados conflitospatrimoniais de massa, engendrados por movimentos sociais queestão em luta para transformar “necessidades” em “direitos”. Emsua grande maioria, tais direitos ainda não foram regulamentados

42 Cf. FALCÃO, Joaquim. op. cit., p. 80.43 Cf. GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais

no campo. Petrópolis: Vozes/FASE, l990. p. 56-S7.

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2.4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais... 109

ou nem sequer reconhecidos. Dentro dessas considerações, per-ceber-se-ão três atitudes do Poder Judiciário.

a) atuação tradicional em nível predominante: nos conflitoscoletivos patrimoniais, o Poder Judiciário, através de seus magis-trados, atém-se pura e simplesmente à aplicação da legislaçãoestatal oficial, determinando, quando acionado, a concessão daação de reintegração de posse ao proprietário e prescrevendo aexpulsão dos invasores, utilizando-se, na maioria das vezes, doaparato da polícia militar.

b) atuação inoperante em nível crescente: quando da ausênciae da pouca eficácia do Judiciário, nos casos de conflitos por rei-vindicações de Direitos à terra e ao solo urbano, o equacionainentoda ocupação ou desocupação se dá através de negociações viamáquina administrativa. Diante da incapacidade do Judiciário, aresolução dos conflitos se efetiva pelo Estado-Administrativo, ouseja, pela Justiça Administrativa que, na intermediação entre aspartes, define os parâmetros reais da desapropriação, indeniza-ção, assentamento ou transferênciaêí.

c) atuação alternativa em nivel de exceção: por razões de rele-vância pública e justiça social, o Judiciário opta por negar ou nãoconceder a liminar de reintegração de posse, decidindo favora-velmente aos invasores despossuídos, reconhecendo direitos emface das carências e necessidades fundamentais. Nas três situa-ções previstas, independentemente do resultado (expulsão, assen-tamento ou transferência para outra área), define-se, claramente,o quadro de conflitos coletivos cotidianos articulados por movi-mentos sociais recentes que, excluídos e marginalizados do pro-cesso sócio-político, pressionam, lutam e resistem por seus direi-tos à terra e à moradia. Tais identidades emergentes consolidam,a partir da transgressão e do rompimento com o legal instituído,os primeiros indícios de uma ação legitimadora para procedimen-tos de juridicidade insurgente não-estatais.

4* Cf. OLIVEIRA, Luciano; PEREIRA, Affonso Cezar. op. cit., p. 96-l0l.

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1 10 O ESPAÇO DA ciuss CONTEMPORÃNEA - A JUsTrÇA No cAPrTAusMo...

Sendo assim, impõe-se registrar, sucintamente, algumas situa-ções efetivadas ao longo das últimas décadas (anos 70, 80 e 90),que servirão como dados extraídos da realidade social, capazesde comprovar a proposta articulada nesta obra. Certamente, a des-crição dos episódios levará em consideração aspectos inter-rela-cionados com os níveis de constatação aqui mencionados, ou seja,a caracterização do conflito enquanto conflito por solo urbano econflito pela propriedade da terra, o tipo de resposta do PoderJudiciário aos movimentos sociais e o procedimento adequadoque permitem a solução do confronto. Constatam-se, portanto, osseguintes casos:

I “situação: conflitos coletivos por solo urbano e por posse nomeio rural, decididos pelo Poder Judiciário mediante aplicaçãoda legislação oficial em vigor. Ex.: a) Caso de Diadema (SP),

2“situação: conflitos coletivos por solo urbano e por posse nomeio rural, decididos pelo Estado (Poder Executivo) e sua JustiçaAdministrativa, mediante negociação, desapropriação, assenta-mento etc. Ex.: a) Caso de habitação irregular na Grande PortoAlegre (RS); b) Casos das invasões de propriedade na RegiãoMetropolitana do Recife (PE); c) Caso do Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem-Terra no Oeste Catarinense (SC);

3“ situação: conflito coletivo por solo urbano, decidido porinstância jurisdicional através de interpretação alternativa. Ex. a)Caso de Alvorada (RS).

¡\l'

la SITUAÇAO

a) Caso de Diadema (Grande São Paulo)

O primeiro caso envolve a invasão de um terreno particular noJardim Inamar, em Diadema (Grande São Paulo), cobrindo umaárea de 240 mil metros quadrados. Cerca de 2000 pessoas se ins-talaram no mês de setembro/90, construíram barracos e denomi-naram a área de Vila Socialista. Depois de algumas negociações

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2.4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais... 1 1 1

entre o advogado do proprietário e as autoridades públicas, nãose chegou a um acordo sobre a desapropriação, pois a Prefeiturade Diadema alegou não ter condições para desapropriar o terreno,e o govemo estadual, não obstante promessa feita pelo novo go-vemador quando em campanha, recusou-se a comprar a área emconflito. Diante do impasse, o dono do espaço invadido conse-guiu com muita rapidez que o Juiz da 3” Vara Civil da Comarca deDiadema, Antonio da Silveira, expedisse, em 7 de dezembro/90,liminar de ação de reintegração de posse. O Juiz, mesmo sabendoda situação extremamente tensa do local, da resistência que have-ria por parte dos ocupantes e das irnplicações sócio-econômicasdo caso, pura e simplesmente aplicou e sentenciou o cumprimen-to da legislação convencional vigente. O não-acatamento da deci-são judicial dentro do prazo legal implicou o cerco e a ação de400 policiais militares. Dessa feita, na terça-feira, ll de dezem-bro de 1990, os ocupantes tentaram rechaçar a ação policial compedradas, rojões, facões e tacapes com pregos, enquanto o apara-to militar, fortemente armado, respondeu com bombas de gás la-crimogêneo, cassetetes e tiros. O conflito, que se generalizou edurou por meia hora, resultou em 80 pessoas feridas e 2 mortos.Os ocupantes foram removidos para escolas próximas ao local doconflito e, na manhã seguinte, tratores, enviados pelo dono doterreno, começaram a demibada dos barracos e fizeram a limpezageral do terreno”.

2* SITUAÇÃOa) Caso de Habitação Irregular na Grande Porto Alegre

Um episódio que se tomou por demais conhecido na GrandePorto Alegre foi o conjunto habitacional da Cohab-RS, localiza-do em Canoas, numa área de 230 hectares e designado deGuajuviras. Iniciada em 1978, a construção de Guajuviras levoumuitos anos, durante os quais as obras foram assumidas e refeitas

45 Cf. CONFLITO entre policia e invasores de terreno causa 2 mortes em Diadema.São Paulo: Folha de S. Paulo, 12 e 13 dez. 1990. C-1.

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1 12 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÂNEA - A JUSTIÇA No CAPITALISMO...

por inúmeras empreiteiras. Pelo fato de estar pronta e não ter sidorapidamente comercializada, acabou por ser invadida e aglutinou,de uma hora para outra, cerca de 30 mil pessoas. Ainda que OJudiciário tivesse concedido liminar de reintegração de posse paraa Cohab-RS, e a Brigada Militar se houvesse plantado na frenteda entrada de Guajuviras, O govemo do Estado não permitiu aexpulsão das famílias e tomou a iniciativa de intermediar a nego-ciação entre a Comissão de Representantes e a Companhia deHabitação. Definiu-se, por fim, O acordo de comercialização dosimóveis, conforme as necessidades básicas e a média da rendafamiliar de cada morador”.

b) Casos das Invasões de Propriedades na Região Metropoli-tana do Recife (PE)

Trata-se de conflitos coletivos envolvendo nove casos de invasãode propriedades urbanas ociosas por populações de baixa renda, naGrande Recife, investigados em fins dos anos 70 e princípio dos anos80, por integrantes da UFPE e da Fundação Joaquim Nabuco, e coor-denados pelo prof. Joaquim A. Falcão. A pesquisa procurou demons-trar que as duas principais fonnas de resolução dos conflitos coleti-vos originados por invasões urbanas, no Brasil, eram representadaspelo aparelho judicial tradicional, de pouca eficácia, e pela presençacrescente das instâncias estatais administrativas. Somente no 1° casohouve uma resposta imediata do Judiciário, incidindo nos rigores dalegislação estatal em vigor. Isso pareceu riitido quando, após a inva-são de um terreno particular por 300 fainílias de baixa renda, o Judi-ciário decidiu pela reintegração de posse e autorizou a expulsão porforça policial. Os outros oito casos de invasão de propriedade urbananão-produtiva - pública e privada-mobilizaram centenas de famíli-as e delinearam, de um lado, conflitos coletivos interpostos jurito aoJudiciário mas sem que este fosse capaz de absorvê-los; e, de outro,litígios equacionados por negociação entre a população marginaliza-da, proprietários e as autoridades govemamentais, sem a interferên-

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4° Cf. GALEAZZI, Vinicius. Uma cidade chamada Guajuviras. Porto Alegre: ZeroHora, 15 abr. l989. p. 4.

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2.4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais... 1 13

cia do Judiciário. Na realidade, a ocupação e/ou a desocupação ne-gociada, bem como as respostas de desapropriação, indenização, re-moção e instalação evidenciam não só a ampliação de atuação doEstado como uma nova instância de decisão dos conflitos, mas tam-bém comprova a força da crescente prática de pressão de segmentossociais por reivindicação de direitos à moradia. Por sua vez, exameatento dos diversos conflitos sociais na periferia do Recife revela queo Judiciário está despreparado para resolver disputas de teor classistae coletivo como, igualmente, na maioria dos casos, quando enfrentaproblemas notoriamente políticos, esconde-se atrás de umapseudoneutralidade e se omite de tomar decisões até mesmo paraevitar, como ressalta Joaquim A. Falcão, um agravamento maior dosconflitos”.

Ora, as ações conflitivas geradas pela recusa de pagamento deimóveis deteriorados, pela invasão das unidades urbanas abando-nadas, ou mesmo, diante da ocupação de terrenos urbanos emespaço metropolitano, implicam práticas sociais contrárias àque-las previstas na legislação oficial estatal e criam, claramente, comolembra Wrana M. Panizzi, no contexto dessas áreas em atrito,novas fonnas de “relações jurídicas”. Definem-se, assim, na apa-rente “ilegalidade” da ordem normativa oficial, as premissas deuma nova “legalidade”, fundada na legitimidade de interesses dospróprios agentes sociais”.

c) Caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terrano Oeste Catarinense (SC)

O estudo realizado por Teresa Kleba Lisboa, entre 1985 e 1987,refere-se à ocupação de terras no Oeste Catarinense por parte de

4? Cf. FALCÃO, Joaquim de A. l984, op. cit., p. 85-87. Sobre outras pesquisasempíricas envolvendo invasões de propriedade pública e privada na região metropolitanado Recife, observar: MOURA, Alexandrina Sobreira de. O Estado, legalização da posseurbana e mudanças legais. Manuscrito baseado na Tese de Doutorado, apresentado no XIEncontro Anual da ANPOCS, São Paulo. 20 a 23 out. 1987.

48 Cf. PANIZZI, Wrana M. op. cit., p. 88-89. Esta temática é comprovada ainda emHOLSTON, James. Legalizando O ilegal: propriedade e usurpação no Brasil. Revista Bra-sileira de Ciências Sociais, São Paulo: ANPOCS, n. 21, p. 68-89. Fev./1993.

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2.000 farnílias de trabalhadores rurais. No dia 25 de maio de 1985,um grande contingente de agricultores “sem-terra” invadiram 18propriedades espalhadas em diversos municípios, numa ação con-junta e organizada, permanecendo por quase dois anos até conse-guirem, em sua maioria, O assentamento provisório. A união, pres-são e luta desses movimentos de trabalhadores rurais “Sem-ter-ra”, concentrados principalmente nas localidades de São Migueldo Oeste,AbelardO Luz e Faxinal dos Guedes, determinaram queas autoridades estaduais e Os agentes federais do INCRA firmas-Sem um acordo envolvendo a compra de milhares de hectares deterra, a desapropriação aos proprietários, a operação de assenta-mento ou de remoção para áreas adquiridas pelo Estado e, fmal-mente, a posse definitiva.

Um dado significativo na trajetória histórica do movimentodos agricultores “sem-terra” no Oeste de Santa Catarina foi seucaráter ordeiro e pacífico, bem como sua força de organização ede unidade no sentido de pressionar as autoridades para Obter eassegurar seus direitos reivindicados”.

3” SITUAÇÃO

a) Caso de Alvorada (RS)

Trata-se de um dos casos em que a justiça oficial se pronunciafavoravelmente à população carente “sem-teto”, deixando de seraplicada a legislação positiva convencional que, via de regra, de-termina a expulsão dos invasores. Em maio de 1988, O Juiz VictorSant°Anna de Souza Filho, da Comarca de Alvorada, na GrandePorto Alegre, valendo-se de uma interpretação baseada na Decla-ração dos direitos do Homem e do Cidadão (art. XXXV: “Quan-do O govemo viola Os direitos do povo, a insurreição é, para O

4° Cf. LISBOA, Teresa Kleba. A luta dos sem-terra no oeste catarinense.Florianópolis: UFSCÍMTRST, 1988. p. 13-15, 71-86 e 164-165. Outra experiência deconflitos coletivos e lutas sociais reivindicatórias por direitos em Santa Catarina pode serencontrada em: SCHIOCHET, Valmor. Esta terra é minha terra. Movimentos dos desa-propriados de Papanduva. Florianópolis: UFSC, 1988. p. 235. Dissertação (Mestradoem Sociologia Política) - Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal de SantaCatarina, 1988.

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2.4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais... 115

povo, O mais sagrado dos Direitos e O mais indispensável dosdeveres”.), negou O pedido de liminar de reintegração de possefeito pelas empresas proprietárias das 44 unidades dos conjuntoshabitacionais de Vila São Carlos e Jardim Porto Alegre. No seubem-fundado despacho, O Juiz de Alvorada assinalou que “(...)milhões de desgraçados brasileiros passam fome, vivendo, uns,na mais degradante miséria, Os trabalhadores com seus ganhoscada vez mais defasados, sem ter Onde morar dignamente, en-quanto os conjuntos habitacionais, construídos com recursos desuas contribuições para O FGTS, permanecem desabitados,inconclusos, se deteriorandO”5°. Em conseqüência, entendendo quenão houve esbulho possessório, O magistrado indefere a liminarargumentando que “(...) O Poder Judiciário nesta hora tem que tersensibilidade, evitando medidas de força que O arsenal da Ordemlegal rejeitada lhe põem, à disposição, para que esteja à altura domomento históricO”5'. Por fim, remata O magistrado que O “(...)povo, em nome do qual se exerce O poder, não se submete aoordenamento legal, tal O descompasso entre suas aspirações e ODireito”52.

A descrição dessas situações conflitivas envolvendo reivindica-ções por direitos, particulannente direitos à posse e à propriedadeem sociedades marcadas por contradições e desigualdades sociais,impregnadas e dominadas pela legalidade estatal positivo-dogmática, pennite compreender que a luta dos excluídos e dosdespossuídos é a luta de um novo sujeito coletivo que tem consci-ência de suas carências e possibilidades históricas. Um sujeito co-letivo que busca firmar sua identidade, construindo sua própria ci-dadania participativa, condição que se contrapõe a urna Ordem le-gal arcaica e a uma estrutura de poder elitista. Na verdade, as lutassociais dos “sem-teto” e dos “sem-terra” transcendem os merosconflitos por Direito à propriedade, pois abrangem um amplo es-pectro reivindicatório de direitos à vida, à vida digna com seguran-

5° Cf. CENTENO, Ayrton. Juiz de Alvorada defende direito do povo se insurgir. Por-to Alegre: Diário do Sul. 23 abr. 1988.

5* Cf. CENTENO, Ayrton. op. cit. Ver, igualmente: CARVALHO, Amilton Bueno de.Magistratura e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992. p. 33-40.

52 Cf. CENTENO, Ayrton. Op. cit.

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1 16 O ESPAÇO DA CRISE CONTEMPORÂNEA - A JUSTIÇA No CAPITALISMO...

ça e com garantia de subsistência. É indiscutível que O Direito àvida digna precede ao Direito de propriedade”. Ora, vida dignapara Os “sem-teto”, na periferia das grandes cidades, é O Direito deter com segurança urna moradia, e vida digna para os agricultores“sem-terra”, alijados do processo de produção, é O Direito de pos-suir e assegurar urna porção de tena, almejando produzir alimentospara sua sobrevivência. A compreensão do fenômeno social e políti-co das invasões de propriedade urbana e rural, geradoras dos maisvirulentos conflitos de massas em sociedades periféricas, deve serapreciada à luz da privação de necessidades materiais essenciais e danegação absoluta da vida com dignidade. Esta problemática não pas-sa despercebida para alguns “juristas orgânicos”, como Dalmo de A.Dallari, para quem “(...) milhões de brasileiros (...) vivem com suasfamílias em terras irivadidas, nos campos e nas cidades. Seu funda-mento é O mais antigo dos direitos (...). E O Direito que nasce danecessidade de ter urna família e um abrigo para ela, da necessidadede ter alimento para a sobrevivência do corpo e um minimo de digni-dade na convivência para preservação da condição humana. (. . .) Existeum direito acima da lei formal e O Brasil já está vivendo situações emque a necessidade faz prevalecer esse direitO”54.

O avanço na discussão e na implementação de medidas quevisem processar respostas provisórias ou definitivas conduz aoslimites de duas formas de resolução dos conflitos coletivos:

a) aplicação do atual Direito estatal conservador, que, ou éinoperante para apreciar detenninadas espécies de litígio de mas-sas, Ou, quando regula, a decisão final acaba por vezes agravandoO conflito, definindo Os horizontes para a especificidade daquiloque Joaquim A. Falcão entende ser marcada por uma “crise delegitimidade”55;

53 Cf. GÕRGEN, Frei Sérgio A. 0 massacre da fazenda Santa Elmira. 2. ed.,Petrópolis: Vozes, 1989. p. 118. Sobre alguns aspectos da luta do Movimento dos Traba-lhadores Rurais Sem-Terra no Rio Grande do Sul, particularmente do conhecido caso daFazenda Annoni, verificar: WAGNER, Carlos. A saga do João Sem-Terra. 2. ed.,Petrópolis: Vozes, 1989. p. 97 e segs.

5* DALLARI, Qalmo de Abreu. O Brasil formal contra O Brasil justo. São Paulo:Folha de S. Paulo, 30 dez. C A-3. Igualmente, ver: CARVALHO, Amilton Bueno de. op.cit., p. 36-39.

55 cf. FALCÃO, Joaquim de A. 1984, op. cit., p. sz-ss.

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2.4 Conflitos Coletivos no Brasil: Práticas Sociais... 1 17

b) abandono do Direito oficial e a intensificação de práticasnormativas não-estatais de teor informal e consensual, articula-das por meio da pressão e da luta dos novos agentes agregadoresde interesses. Igualmente, a reflexão que se pode extrair, tendoem conta as inúmeras experiências histórico-concretas inerentesà realidade brasileira, é a de que a legalidade estatal liberal-indi-vidualista não consegue absorver satisfatoriamente os novos con-flitos sociais de massa. Por conseqüência, urge pensar numreferencial de normatividade compatível com as condições dassociedades periféricas nos primórdios de um novo milênio. Issorepresenta a decisiva opção e O estabelecimento de novos concei-tos e princípios, de um “Outro” paradigma do Direito que nãomais leve em consideração a regra abstrata, O título e O registro,mas O fato emergencial, as necessidades e as carências cotidia-nas. Trata-se, por conseguinte, de definir uma nova legalidadeque tenha seu núcleo central não na concepção abstrata do que seconvencionou chamar de “função social da propriedade”, mas naprática real do que seja “função social da pOsse”5°.

Em síntese, a incidência dos influxos ideológicos, dos princípi-os e valores que fundamentam a legislação positiva privada apare-ce, de forma muito clara, na interpretação de detemiinados artigosdo Código Civil e do Código de Processo Civil que resguardain ebeneficiam O Direito da propriedade individual, minimizando a fun-ção social da posse. Tal delineamento favorece tão-somente a reso-lução de impasses patrimoniais particulares, deixando de contem-plar os crescentes conflitos sociais de massa. Os limites e a poucaeficácia do sistema normativo vigente propiciam as condições fa-voráveis para a emergência da multiplicidade de confrontos coleti-vos inerentes ao acesso à terra nas áreas rurais e urbarias.

Assim, a escolha de alguns casos litigiosos num espaço atraves-sado por uma dezena de Outros conflitos apenas vem corroborar aurgência de se definir um novo quadro de auto-regulamentaçãoemanado da própria Sociedade e por ela Orientado. Daí a significa-ção que se impõe de discutir, na etapa seguinte, a legitimidade daação dos sujeitos coletivos enquanto “nova” fonte de juridicidade.

5° Cf. MARQUES, Nilson. op. cit., p. 8-12.

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Capítulo IIIAs fontes de produçãona nova cultura jurídica

Introdução

Afirmou-se, anteriormente, que, na contextualização de espa-ços políticos do Capitalismo periférico, avultam tensões sociaisnascidas da exclusão e da privação de meios para satisfazer ne-cessidades materiais, relacionadas diretamente a bens patrimoniais,como posse, moradia, solo urbano e propriedade agricola. Em talcenário, importa aclarar quais são os novos agentes que partici-pam do processo histórico e que, a partir de suas aspirações, ca-rências e exigências, vêm afirmando-se como fatores potenciaisde produção jurídica. Trata-se de extrair a constituição danorrnatividade não mais e apenas das fontes ou canais habituaisclássicos representados pelo processo legislativo e jurisdicionaldo Estado, mas captar o conteúdo e a fonna do fenômeno jurídicomediante a informalidade de ações concretas de atores coletivos,consensualizados pela identidade e autonomia de interesses dotodo comunitário, num locus político, independentemente dos ri-tuais formais de institucionalização. Quer-se com isso evidenciarque, num espaço público descentralizado, marcado pelapluralidade de interesses e pela efetivação real das necessidadeshumanas, a juridicidade emerge das diversas formas do agir co-munitário, mediante processos sociais auto-reguláveis advindosde grupos voluntários, comunidades locais, associações profissi-onais, corpos intennediários', organizações sociais etc. Para não

' Os corpos intermediários devem ser entendidos como grupos sociais ou voluntári-

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120 As FONTES DE PRODUÇÃO NA Nova CULTURA runioiczi

cair na vaguedade e na fragmentação teórica das múltiplas for-mas societárias, toma-se relevante privilegiar certo tipo de agru-pamento comunitário agregador de interesses. Sendo assim, a re-flexão fixa a prioridade nos movimentos sociais como símbolomaior e principalmente o mais significativo de um novo sujeitohistórico, personagem nuclear da ordem pluralista, fundada emoutro modelo de cultura político-jurídica.

Para tanto, esta análise ficará circunscrita a quatro momentos.No primeiro, cabe explicitar que esses sujeitos ou atores coleti-vos recentes devem ser identificados, neste capítulo com a cate-goria político-sociológica dos “novos movimentos sociais”. Adescrição e o recorte dos “novos movimentos sociais” como agen-tes responsáveis por uma cultura política diferenciada exigirão amontagem de seus traços caracterizadores, como: fatoresconstituidores de sua origem, conteúdo de seus objetivos, valorese princípios fundamentais, fonnas de ação e base social de seusatores. No segundo momento, verifica-se a relação dos “novosmovimentos sociais” com os processos tradicionais de“institucionalização” e de “representação” num espaço públicocompartilhado, bem como a articulação conflitiva dessas identi-dades coletivas, com “autonomia relativa” e “baixo grau” deinstitucionalização, frente aos mecanismos partidários de agrega-ção de interesses e aos intentos “cooptativos” do Estado. Numterceiro nivel de discussão, sublinham-se a insuficiência das fon-tes clássicas da legalidade estatal ocidental e o alargamento doscentros geradores de produção jurídica através de outros meiosnão-convencionais, privilegiando, sobretudo, a auto-regulamen-tação emanada desses “novos movimentos sociais”, portadoresdos elementos constitutivos para a edificação de Lunajuridicidadealtemativa. Por fim, levantam-se algumas ponderações sobre adinâmica do processo de afirmação de “novos” direitos, tendopresentes as práticas reivindicatórias dos novos sujeitos coletivosem tomo de carências e necessidades materiais e culturais. As-sim, apontar-se-ão a abrangência, funcionalidade e efetividade

- ' o z › ¡ o 1 _,os com interesses comuns, localizados entre o Estado e o individuo, com atribuiçoes pararepresentar diferentes setores da comunidade e atuar num espaço democrático, caracteri-zado pela descentralização e participação popular.

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3.] Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 121

desses “novos” direitos, acentuando os parâmetros reais de sualegitimidade e eficácia. Em suma, o alcance positivo, mediato eimediato, dos “novos movimentos sociais” na construçãoparadigmática da nova cultura político-jurídica pluralista?

3.] Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos

O surgimento, nas sociedades capitalistas (tanto centrais quantoperiféricas), das múltiplas modalidades de ações coletivas demassa, bem como as inúmeras interpretações e a ampla literaturasócio-política dos anos 70 e 80 sobre a significação dos chama-dos “novos movimentos sociais” obriga, de início, a fixar umparâmetro demarcador que permita uma real apreensão daespecificidade do objeto analisado. Deste modo, para uma me-lhor precisão técnica, não se examinarão todas as manifestaçõesagregadoras de interesses que possam ser qualificadas de movi-mentos sociais. Por conseqüência, opta-se por um certo tipo espe-cífico de movimentos sociais ctmhados pelos ƒmodelos teóricosmais recentes de “novos movimentos sociais”. E sobre esses “no-vos movimentos sociais” (doravante designados simplesmentecomo movimentos sociais) que se reconhecerá a capacidade de se

2 Para analisar mais atentamente a problematização histórica e a naturezaparadigmática dos novos movimentos sociais na Europa e na América Latina, consultar:SCI-IERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo [Org.]. Uma revolução no cotidiano?Os novos movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987; _____ .Cidadania sem fronteiras. Ações coletivas na era da globalização. São Paulo: Hucitec,1999; GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos econtemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997; ,___ _ Os sem-terra, ONG 'S e cidadania.São Paulo: Cortez, 1997. Na bibliografia espanhola merece atenção alguns trabalhos como:DALTON, Russel J .; KUECHNER, Manfred [Comps.]. Los nuevos movimientos sociales:un reto al orden politico. Valencia: Ediciones Alfons el Magnañim. 1992; CALDERON,Femando. Movimientos sociales ypolítica: un reto al orden político. Valencia: EdicionesAlfons el Magnañim, 1992; CALDERON, Femando. Movimientos sociales y política.La década de los ochenta en Latinoamerica. Madrid: Siglo Veintiuno, 1995; TARROW,Sidney. El poder en movimiento. Los movimientos sociales, la acción colectiva y lapolítica. Madrid: Alianza Editorial, 1997; IBARRA, Pedro; TEJERINA, Benjamin [Edi-tores]. Los movimientos sociales. Transformaciones políticas y cambio cultural. Madrid:Trotta, 1998; RIECHMANN, Jorge y BUEY, Francisco Femández. Redes que dan libertad.Introducción a los nuevos movimientos sociales. 2. ed., Barcelona: Paidós, 1999.

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122 As Formas os PRODUÇÃO NA Nova CULTURA JURIDICA

tomarem novos sujeitos históricos legitimados para a produçãolegal não-estatal. Em meio às possibilidades entreabertas, impõeesboçar uma conceituação desses movimentos sociais enquantocategoria operacional. Assim sendo, “os novos movimentos soci-ais” devem ser entendidos como sujeitos coletivos transformado-res, advindos de diversos estratos sociais e integrantes de umaprá-tica politica cotidiana com certo grau de “institucionalizaçãoimbuídos de princípios valorativos comuns e objetivando a reali-zação de necessidades humanasfi1ndamentais3.

A singularidade de um recorte implica o estabelecimento obje-tivo e sistemático de características comuns e ideais. Um conjimtode características sobre os movimentos sociais, enquanto paradigmade nova cultura político-jurídica, deve necessariamente passar, comoassinala Claus Offe, pela apreciação de vários requisitos, como o“conteúdo”, “valores”, “fonnas de ação” e “atores sociais”"*.

Ampliando os critérios de Claus Offe, compete aludir, preli-minarmente, aos fatores reais determinantes quanto à sua origeme quanto ao seu desenvolvimento histórico.

Antes de mais nada, convém sublinhar que, no contexto damodema cultura política ocidental, é possível perceber a existên-cia, em épocas distintas, de uma ampla gama de corpos interme-diários e de agrupamentos sociais de interesse. Entretanto, foi coma sociedade industrial burguês-capitalista que tiveram grande im-pulso aqueles movimentos sociais constituídos em grande partepela classe operária e fortemente influenciados pelos principiosdo socialismo, do marxismo e do anarco-sindicalismo. Esses “an-tigos” movimentos sociais que predominaram até o final da déca-da de 60 eram de segmentos populares urbanos, camponeses ecamadas médias. Tais movimentos sociais vão privilegiar objeti-vos de teor material e econômico, calcados em relações instru-mentais imediatas, agindo sob formas tradicionais de atuação(clientelísticas, assistenciais e autoritárias) e mantendo relações

3 Conceito elaborado e inspirado em categorias extraídas da obra de Agnes Heller,fundamentalmente: Teoria de las necesidades en Marx (Barcelona: Península, 1985) eSociologia de la vida cotidiana (Barcelona: Península, 1977). Foi esclarecedor tambéma leitura de Ilse Scherer-Warren (Redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1993).

4 OFFE, Claus. Partidos políticos y nuevos movimentos sociales. Madrid: EditorialSistema, 1988. p. 177.

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3.1 Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 123

de subordinação aos órgãos institucionalizados (Estado, partidopolítico e sindicato)5.

Já aos movimentos sociais que emergem ao longo das décadasde 70, 80 e 90 é-lhes reconhecida a possibilidade de construíremum novo paradigma de cultura política e de uma organização socialemancipatória. Na verdade, uma correta compreensão dos movi-mentos sociais deve ser visualizada no contexto de rupturas cultu-rais e crise de valores que atravessam a sociedade ocidental a partirda metade do século XX. Hão de se situar macro e microanálisesrelacionadas aos fatores gerais em “nivel de estrutura” mundial efatores específicos em “nível de conjuntura” periférica brasileira.Ora, percorrendo algumas das contribuições teóricas sobre osfato-res estruturais no âmbito geral, verifica-se certa consensualidadeentre alguns autores. Entendem Gunder Frank e Fuentes que osmovimentos sociais não só não são novos, como são respostas na-turais à mutabilidade de circunstâncias históricas. Os movimentossociais como tais, envolvendo seus membros e sua organização,revelam-se como autênticos produtos de “ciclos” culturais/ideoló-gicos e “flutuações” políticas, econômicas e sociais. Só se podeentender a força e o papel dos movimentos sociais contemporâneosquando contextualizados na historicidade cíclica do presente,marcada por profunda crise político-econômica em nível mundial.A insegurança das populações diante da impotência das institui-ções políticas clássicas (debilidade do sistema representativo, fa-lência do Estado do Bem-Estar Social e deterioramento da qualida-de de vida) impelem o crescimento dos movimentos sociais e/oudas organizações não-estatais que “buscam reorganizar a vida soci-al e redefinir a vida política”6.

Por outro lado, Rafael De La Cruz situa o surgimento dos movi-mentos sociais no ápice de três grandes rupturas oconidas entre1945 e 1960. A primeira ruptura se efetiva por uma crise culturaloriginada pelo progresso do capital, pela industrialização e urbani-

5 SCHERER-WARREN, llse. O caráter dos novos movimentos sociais. p. 41; VIO-LA, Eduardo; MAINWARING, Scott. Novos movimentos sociais: cultura, política e de-mocracia - Brasil e Argentina. p. 110. In: Uma revolução no cotidiano? Os novos movi-mentos sociais na América Latina. São Pauloz Brasiliense, 1987.

6 GUNDER FRANK, André; FUENTES, Maria. Dez teses acerca dos movimentossociais. Lua Nova. São Paulo, n. 17, p. 26-29, Jun./1989.

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124 As Fontes DE PRODUÇÃO NA Nova CULTURA JURÍDICA

zação que acabaram desintegrando as antigas verdades, levando àindividualização da Sociedade e à desestabilização das relaçoeshumanas. A segunda ruptura é representada pelo esgotamento domodelo de Estado, seja na versão intervencionista keynesiana, sejana versão do populismo-desenvolvimentista. Para De La Cruz, acrise do modelo estatal reflete três aspectos: a ineficiência admi-nistrativa, a incapacidade de prestar serviços e a deteriorização dalegitimidade. A terceira ruptura se dá no modelo de desenvolvi-mento do bem-estar material idealizado a partir do século XVIII eque acaba não se realizando plenamente diante da crise econômica,recessão, desemprego, poluição ambiental, escassez dos recursosnaturais, aumento das enfennidades, ameaça nuclear etcl.

Por sua vez, Theotônio dos Santos identifica o aparecimentodos movimentos sociais com as carências materiais, amarginalização social e a crise econômica que sacode o desenvol-vimento da produção capitalista em sua etapa de monopolizaçãomundials. De outra fonna, deixando à parte a problematizaçãoestrutural e a crise cultural valorativa, teóricos com propostas di-ferenciadas, como Alain Touraine e André Gorz, procuram acen-tuar em suas abordagens que, nas sociedades pós-industriais ouprogramadas, as classes sociais, principalmente a classe operária,estão em processo de decadência e desaparecimento, sendo suce-didas por uma “não-classe”, ou seja, por movimentos sociais, au-tênticos atores coletivos ou “sujeitos históricos revolucionários”que podem “desempenhar numa sociedade programada, o lugarcentral que foi do movimento operário na sociedade industrial”.Essas assertivas, ainda que possam valer para os países de indus-trialização avançada, parecem não ser inteiramente corretas paraos países de Capitalismo dependente, em cuja realidade sobrevi-vem os interesses de classes no jogo das contradições sociais.Muito mais certo está Fernando Calderón ao relacionar o

7 Cf. DE LA CRUZ, Rafael. Os novos movimentos sociais: encontros e desencontroscom a democracia. In: SCHERER-WARREN, llse; KRISCHKE, Paulo [Orgs.]. Uma re-volução na cotidiano? São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 88-94.

8 Cf. SANTOS; Theotônio dos. A crise e os movimentos sociais do Brasil. Política eAdministração. Rio de Janeiro, n. 1, p. 157-160, Mar./1985.

9 TOURAINE, Alain. Opós-socialismo. Porto: Afrontamento, 1981. p. 117; GORZ,André. Adeus ao proletariado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 85-95.

3.1 Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 125

surgimento dos movimentos sociais com a crise de racionalidadeque envolve a sociedade burguês-capitalista e a crise das estrutu-ras de poder dos sistemas periféricos como o latino-americano. Asolução para o amplo processo de conflitos e de crise das estrutu-ras está na prática participativa e transformadora dos movimen-tos sociais, portadores de nova ordem social emancipadoram.

No que se refere a apreciação defatores conjunturais que elucidamo fenômeno dos movimentos sociais nos limites brasileiros, cabe aten-tar para algumas inteipretações que os situam, quer como reivindica-ção de interesses compaitilhados dentro de um esforço comum, quercomo contestação da estruttna autoritária de poder e como participa-ção na reordenação democrática da vida social.

A causa motivadora dos movimentos sociais de particularida-de urbana no Capitalismo avançado não é, como adverte com ra-zão Pedro Jacobi, a mesma dos países dependentes do Capitalis-mo periférico. Nas nações centrais os movimentos sociais são,predominantemente, de caráter policlassista e advêm dos fatoresconjunturais não necessariamente econômicos no contexto da ra-cionalização do espaço e da vida urbana em crise. Evidentemen-te, a crise urbana dos países de industrialização avançada não éadequada para explicitar claramente o espaço latino-americano,pois a maioria dos movimentos sociais, particularmente os doBrasil, refletem a dinâmica de lutas “pela redistribuição dos mei-os de consumo coletivo. Tendo como base social uma populaçãoproletária ou proletarizada, estes movimentos têm como horizon-te de ação reivindicações vinculadas à melhoria das condições devida”“. Na mesma direção encontram-se José Alvaro Moisés eEdison Nunes, para os quais os movimentos sociais urbanos noBrasil surgiram como expressão das demandas sociais e das con-tradições geradas pelo próprio desenvolvimento de nossa socie-dade capitalista”. O desenvolvimento das forças produtivas e o

*° Cf. CALDERÓN GUTIÉRREZ, Femando. Os movimentos sociais fi'ente à crise.ln: SCI-IERER-WARREN, llse; K.RISCl-IKE, Paulo [Orgs.]. op. cit., p. 192-199.

“ JACOBI, Pedro Roberto. Movimentos sociais: teoria e prática em questão. In:SCHERER-WARREN, llse; KRISCHKE, Paulo [Orgs.]. 1987, op. cit., p. 250-254.

'Z Cf. NUNES, Edison. Carências urbanas, reivindicações sociais e valores democrá-ticos. Lua Nova, São Paulo, n. l7, p. 74-75, Jun./ 1989; MOÍSES, José Álvaro et al. OEstado, as contradições urbanas e os movimentos sociais. In: Cidade, povo e poder: 2.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra/Cedec, 1985, v. 2, p. 14-29.

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l126 As tomas DE PRODUÇÃO NA Novx CULTURA JURÍDICA

aprofimdamento da divisão social do trabalho acabam provocan-do novas e sempre crescentes necessidades por parte da popula-ção, necessidades que o poder público não consegue equacionar.Diante das carências materiais e do aumento das demandas pordireitos, os movimentos reivindicatórios se colocam como res-posta para uma nova organização da sociedade.

Na verdade, as práticas associativas e os movimentos popula-res, de teor espontâneo e autônomo, tomaram impulso nos anos70, articulando-se em tomo de “interesses imediatos referentes àscondições de vida e moradia e desvinculadas de instituições doEstado e partidos oñciais”13. Tratava-se de altemativas que parti-am da sociedade civil, independentemente dos parâmetrosinstitucionais oferecidos pelos canais de representação tradicio-nal. Isso representou a ruptura com toda uma herança politicacalcada num espectro elitista, antipopular, autoritário ecorporativista. Sobretudo, as condições criadas pelo nosso mode-lo de desenvolvimento capitalista e as crises que sacudiram nos-sas instituições político-jurídicas favoreceram, no final da déca-da de 70, o aparecimento, no Brasil, de movimentos coletivos,seja como possibilidade de novas fonnas de organização de resis-tência e contestação ao autoritarismo do regime burocrático-mili-tar, seja como segmentos conscientes e setorizados de reivindica-ções imediatas junto ao Estado, ou ainda como “reflexo da preca-riedade ou falta de condições dos canais de representação”.

Por tudo isso é que se deve reconhecer que as contradiçõesurbanas não explicam corretamente o porquê dos movimentossociais, uma vez que tais manifestações estão envoltas na com-plexidade e na totalidade mais abrangente das interações sociaisda sociedade burguesa e do modo de produção capitalista. Nesteparticular, ampliando a real compreensão dos fatores detenninantesda origem dos movimentos sociais no espaço do Capitalismo pe-

*3 TELLES, Vera da S. Movimentos sociais: reflexões sobre a experiência dos anos70. In: SCI-IERER-WARREN, llse; KRISCHKE, Paulo [Orgs.]. op. cit., p. 56.

“ Cf. VIGEVANI, Tullo. Movimentos sociais na transição brasileira: a dificuldade de ela-boração do projeto. Lya Nova, São Paulo, n. 17, p. 98-99, Jun./ 1989; JACOBI, Pedro. Atoressociais e o Estado. Espaw & Debates, São Paulo, n. 26, p. 10, l989a. Sobre a formação, conso-lidação e institucionalização dos Movimentos Sem Tena, no periodo de 1979-1999, consultar.FERNANDES, Bernardo M. A Formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.

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3.1 Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 127

riférico brasileiro, pode-se perfeitamente encontrar uma respostano encadeamento de dois planos diferenciados mas complemen-tares: critérios de “natureza estrutural” e de “natureza conjuntural”.Os fatores de ordem estrutural estão diretamente vinculados àscontradições, imposições e rearranjos do sistema de produçãocapitalista como um todo, seja no nível de dominação das fonna-ções societárias avançadas, seja na esfera da inserção de organi-zações políticas periféricas. Em contrapartida, na perspectivaconjuntural trata-se de realçar a particularidade das crises gera-das pelo próprio desenvolvimento interno das nossas estruturassócio-econômicas dependentes e pelas necessidades cíclicas com-partilhadas e sempre crescentes da população em tomo da melhoriadas condições de vida”.

No tocante a caracterização do que Claus Otfe designa por “con-teúdo” e que se entende serem, aqui, os “objetivos”, mediatizadospelos sujeitos coletivos recentes, há de se reconhecer que tais crité-rios resultam essencialmente na satisfação das necessidades huma-nas fimdamentais. A concretização dessas necessidades enquantoexigências existenciais, materiais e culturais constitui-se no cemeexplicativo das finalidades dos movimentos sociais. Tais exigênci-as cotidianas estão inseridas num processo histórico-social marca-do por contradições, rupturas e mutações, em cuja dinâmicainterativa é possível desdobrarem-se, para além das necessidadesfundamentais, reivindicações, direitos e conflitos.

Tentando definir alguns parâmetros que permitam maior pre-cisão, autores como Claus Offe admitem que a globalização dasnecessidades afeta os interesses por “um espaço fisico e um nú-cleo de atividades vitais, como o corpo, a saúde e a identidadesexual, bem como o direito à cidade e à boa vizinhança; à herançae à identidade cultural, étnica, nacional e lingüística; às condi-ções fisicas de vida e à sobrevivência da humanidade em geral”'6.

Ainda que se possa, num primeiro momento, relacionar as ne-cessidades fundamentais como manifestações dos desejos natu-rais de uma subjetividade individualista, como reflexo consumista

'5 Cf. GOHN, Maria da Glória M. A força da penferia. Petrópolis: Vozes, 1985. p.51 e 57; NUNES, Edison. op. cit., p. 74-75; MOISES, José Alvaro et al. op. cit., p. 14-29.

'° OFFE, Claus, 1988, op. cit., p. 177.

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128 As roNTEs DE PRODUÇÃQ NA Nova CULTURA JUru'r›1cA

de condicionamentos retórico-comunicativos da sociedade demassa ou como expressão exclusiva e imediata das condiçõesgeradas por determinado modo de produção econômica, deve-seavançar na busca de fatores que contextualizam, ao lado do “ma-terial”, a concomitância do “existencial” e do “cultural”. Entre-tanto, uma visão mais universalizada da questão não impede deprivilegiar as necessidades “existenciais” e/ou “culturais” nosintentos dos movimentos sociais das sociedades burguês-capita-listas avançadas. Por conseqüência, nada mais imperioso do quereconhecer a prioridade de necessidades “materiais” (qualidadede vida) sobre as necessidades “culturais”, nas pretensões dosmovimentos sociais das sociedades periféricas latino-americanas,marcadas pela dominação política autoritária, pela exploraçãoeconômica e pela exclusão social da maior parte da população.

Nessa constatação, além de se conceber as necessidades cons-tantes e crescentes como exigência e criação do próprio desenvol-vimento da vida social, toma-se imperioso reconhecer, quando dodetalhamento das condições espacial e temporal em formações his-tórico-sociais como a brasileira, que a reprodução de necessidadesdefine-se como resposta ao desenvolvimento de um capitalismodependente, associado e excludente, estreitamente pactualizado comuma tradição cultural monista, liberal-individualista e autoritário-positivista. Se assim é, mais facilmente se compreende que, em talsociedade, os intentos das forças produtivas não são a satisfaçãodas necessidades htunanas fundamentais, mas pura e simplesmentea valorização dos padrões de acumulação do capital. As condiçõesgeradas pelo desenvolvimento capitalista acabam propiciando de-terminadas formas alienadas que não podem ser satisfeitas nos li-mites institucionalizados desta mesma modalidade de produção ede organização social. Daí a exigência de um alargamento da esferado “social” e do “politico” através dos movimentos sociais,projetados como atores de ação coletiva que rompem com as fron-teiras e as possibilidades do sistema”. Destarte, a implementaçãodas necessidades humanas fundamentais, afirmadas através de di-

” Cf. HELLER, Agnes. Teoria de las necesidades en Mam Barcelona: Península,1985. p. 24-25; MELUCC1, Alberto. Um objetivo para os movimentos sociais? Lua Nova,São Paulo, n. 17, p. 50-S7, Jun./1989.

3.1 Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 129

reitos e reivindicadas por esses agentes históricos, constituem-seem fatores possiveis de transpor as condições desurnanizadoras deuma sociedade do tipo capitalista.

Essencialmente, os “objetivos”, tanto gerais quanto específicos,mediatizados pelos movimentos sociais e reproduzidos no fluxo deprocessos sociais simbolizados por contradições, carências, exclu-sões, reivindicações, conflitos e lutas, passam obrigatoriamente pelasatisfação das necessidades humanas ftmdamentais.

Prosseguindo na exposição, há que se atentar para os “valo-res” e “princípios” que distinguem os novos sujeitos coletivos deoutros grupos associativos e organizações comunitárias tradicio-nais, procurando detectar os elementos caracterizadores de suaforma especifica de ser.

Mesmo que na heterogeneidade dos movimentos sociais se pos-sa enfatizar aspectos peculiares (autenticidade, independência eemancipação) de uns para outros - movimentos rurais e urbanos,movimentos das classes populares e das classes médias, movimen-tos classistas e pluriclassistas -, subsistem determinados valorescompartilhados que são encontrados na maior parte desses novosmovimentos, principalmente: identidade e autonomia”.

Além de serem sempre movidos contra urna força extema quelhes resiste e os bloqueia (“princípio da oposição”), e agirem emnome de tuna ideologia, de grandes ideais e certos valores superi-ores aceitos pelos membros da coletividade (“princípio da totali-dade”), os movimentos sociais, segundo Touraine, têm de setor-nar defensores, representantes e promotores de certos interessesde parcelas significativas da sociedade global (“princípio da iden-tidade”)'9.

Por sua vez, Scherer--Warren reconhece, antes de mais nada, queos atuais movimentos sociais estão contribuindo e impulsionando

“* Ver, a esse propósito: OFFE, Claus, 1988, op. cit., p. 177; SCHERER-WARREN,llse, 1987, op. cit., p. 39; GOHN, Maria da Glória. op. cit., p. 40-41 e 56-57; SANTOS,Theotônio dos, op. cit., p. 157-160; SADER, Eder. Quando novos personagens entra-ram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 42-44; LISBOA, Teresa K. A luta dossem-terra no oeste catarinense. Florianópolis: UFSC/MTRST, 1988. p. 21 e 26.

*° Cf. TOURAINE, Alain. Os movimentos sociais. In: FORACCHI, M. M.; MARTINS,J. S. [Orgs.]. Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 1977. p. 344-347; ___”, .Production dela société. Paris: Seuil, 1973. p. 347-389.

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130 As Formas DE PRODUÇÃO NA Nova CULTURA JURÍDICA

urna nova cultura politica participativa, calcados em princípios ins-pirados no ideário anarquista, onde fica explícita a “democracia debase, autogestão, livre organização, direito à diversidade e respeitoà individualidade, à identidade local e regional, e noção de liberda-de individual associada à liberdade coletiva'”°. Avançando nestalinha de raciocinio, Scherer-Warren assinala que a “identidade” dosmovimentos sociais é materializada a partir de um fato estrutural ede um fato cultural. Primeiramente, a identidade emerge estrutural-mente quando os sujeitos coletivos (“povo”) reconhecem as “con-dições materiais do capitalismo contemporâneo e de suas variadase sobrepostas fonnas de opressão”2*. Já, culturalmente, a identida-de aparece enquanto expressão de uma globalização crítica que re-vela a insatisfação diante da dominação e do autoritarismo, tantono âmbito do capitalismo quanto do socialismo real.

O fato é que a “identidade” deve ser compreendida como oreconhecimento de subjetividades libertadas e como recuperaçãode experiências compartilhadas por coletividades políticas, sujei-tos coletivos e movimentos sociais. Nessa direção, a noção de“identidade” deve igualmente ser concebida como um processode ruptura que pennite que movimentos sociais se tomem sujei-tos de sua própria história. A luta para afirmar sua identidadeimplica contrapor-se a todas as fonnas de alienação que tendem atransformar o homem de sujeito em objeto. Os múltiplos aspectosdessa coisificação do homem refere-se, como querem Kämen eEvers, à alienação do homem “em relação a si mesmo, ao produtodo seu trabalho, a outros seres htunanos e à natureza”22. Aindaque se captem diversos processos causadores da alienação, toma-se mais apropriado ressaltar aquela espécie derivada das condi-ções materiais inerentes ao desenvolvimento da modema socie-dade tecno-industrial, burguês-capitalista. Na verdade, a

2° SCHERER-WARREN, llse. In: SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo[Orgs.]. op. cit., p. 9 e 39-40.

2' Idem, ibidem. p. 39-40.22 KÃRNEN, Hartmut. Movimentos sociais: revolução no cotidiano. In: SCHERER-

WARREN, llse; KRLSCHKE, Paulo [Orgs.]. op. cit., p. 22-23; EVERS, Tilman. Identida-de: a face oculta dos novos movimentos sociais. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v.2, n. 4, p. 18. Out./ 1984; FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. Rio de Janeiro:Zahar, 1979. p. 50-61.

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3.1 Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 131

reafirmação da “identidade” tanto em nível individual quanto co-letivo, resgata, como assinala Tilman Evers, a própria dignidadehumana em face da experiência cotidiana marcada pela misériaeconômica, escravidão social, opressão politica e devastação cul-tural. Assim, o valor “identidade” está diretamente vinculado àsupressão das múltiplas formas de alienação e à comunhão deinteresses, advindas de experiências vividas no interregno de lu-tas conscientes e autodeterminadas que instituem as bases parauma sociedade libertária, igualitária e pluralista”.

O valor “autonomia”, incorporado à dinâmica intema dosmovimentos sociais, é percebido como processo, de avanços erecuos, embasado na responsabilidade por uma práxis cotidiana.Como bem destaca M. G. Golm, a “autonomia” dessas comunida-des políticas não é urna forma de ser, tampouco algo imposto ouatribuído, pois trata-se de algo a ser conquistado, manifestando-se na constituição de novas formas de ação, organização e consci-ência”. Ora, a racionalidade interativa que permeia as relaçõesexistenciais e as formas de produção material, compondo as cir-cunstâncias sociais concretas, não condiciona inteiramente asações individuais e as coletivas, pois estas ações agem e se situamrelativamente nos limites e nas possibilidades da responsabilida-de dos próprios atores operantes. Nem o determinismo social,tampouco a condição de liberdade são absolutos. Nesse aspecto,a “autonomia” significa que os sujeitos sociais são responsáveispor suas próprias ações, na medida em que elas decorrem de suasaspirações, de seus interesses e de suas experiências cotidianas”.

Outro dado a ponderar quando se discute a noção de “autono-mia” dos movimentos sociais é que tal processo advém como res-posta imediata às imposições restritivas da estrutura política eeconômica; mais especificamente, a “autonomia” simboliza a açãoautônoma e independente desses atores coletivos quando seus in-

” Cf. EVERS, Tilman. op. cit., p. 18; KÃRNEN, Hartmut. op. cit., p. 22; SADER,Eder. op. cit. , p. 44-45. Observar ainda: VÁSQUEZ, Adolfo Sanchez. Filosofa dapráxis.3. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 433-454.

2* Cf. GO1-lN, Maria da Glória. op. cit., p. 41.25 Cf. HELLER, Agnes. Para mudar a vida. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 151;

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1982. p. 122-139. -

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132 As rorrras DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

teresses não são satisfeitos ou reconhecidos pelas instâncias ofi-ciais do Estado. Parece claro, entretanto, que há de se evitar acorrelação da “autonomia” com as estratégias do espontaneismoe voluntarismo que preconizarn uma desvinculação total entre osnovos sujeitos coletivos e os demais agentes institucionais da so-ciedade civil e do próprio poder estatal”.

Impensável, por conseqüência, o exercício da “autonomia” seminteração histórico-social de sujeitos coletivos, que se expressamatravés de uma identidade que se constitui e de uma responsabili-dade conscientemente assumida. Sob este ângulo, tem razão EderSader, ao alertar que o sujeito autônomo “não é aquele que serialivre de todas as determinações extemas, mas aquele que é capazde reelaborá-las em frmção daquilo que define como sua vontade.Se a noção de sujeito está associada à possibilidade de autono-mia, é pela dimensão do imaginário como capacidade de dar-sealgo além daquilo que está dado”27.

Pennanecendo dentro do roteiro de Offe, importa ater-se aoexame do problema a que chama de “formas de ação” dos movi-mentos sociais. Neste particular, os novos movimentos sociaisrepresentam um paradigma altemativo de cultura política na me-dida em que rompem com as antigas fonnas de organização erepresentação da sociedade (classes sociais, partidos políticos esindicatos). Na atuação dos novos atores coletivos há que se “pen-sar a sociedade e a politica não mais como objetivação das estru-turas ou da ação do Estado, mas como cenário criado e recriadopelas práticas de sujeitos em conflitos”28. No esforço de urna cons-tante e crescente politização da vida social, cuja pluralidade denecessidades e exigências concretas conduzem a “tuna prolifera-ção de espaços politicos”, os intentos estratégicos não são maispela tomada ou destruição do poder estabelecido (Estado), maspela efetivação de pequenas transformações e de microrrevoluçõescotidianas. Parece clara uma distinção: enquanto os antigos mo-vimentos projetam intentos essencialmente materiais, “relaçõesinstrumentais, orientações para com o Estado e organização ver-

” Cf. GOHN, Maria da Glória. op. cit., p. 40.27 SADER, Eder. op. cit., p. 56.28 TELLES, Vera da S. op. cit., p. 65.

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3.! Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 133

tical”, os novos movimentos buscam conduzir-se por “critériosde afetividade, relações de expressividade, orientações comuni-tárias e organização horizontal”2°.

Vale salientar que a estrutura organizativa poderá encaminhar-se tanto para condutas marcadas por fomiulações abrangentes epermanentes, quanto por postulações imediatas e particulariza-das. De qualquer modo, sua pennanência e durabilidade depen-dem de vários fatores, fatores que pela dispersão e fragrnentaçãodos interesses não conseguem com rigor explicitar suficientementea constante setorização e localização das ações coletivas. Certa-mente que estas ações insurgentes assumem contomos predomi-nantemente infonnais e de pouca eficácia institucional. Tal cará-ter permite aferir que os movimentos sociais não possuem, obri-gatoriamente, “a mesma estrutura organizativa de um partido, ouseja, não reconhecem militância formal nem capacidadehierarquizada de decisão. Podem, no entanto, no curso de seu for-talecimento, desenvolver uma institucionalização mínima e dele-gar a tomada de decisões a um comitê, sem que cheguem, porisso, a ter uma instituição formal”3°.

Não só as novas diretrizes desses sujeitos coletivos pactualizarncom experiências cotidianas centradas na autogestão, na solidari-edade e na democracia participativa, como, sobretudo, suas “for-mas de ação” acabam redefinindo, sob os liames de um pluralismopolítico e juridico comunitário, um espaço que minimiza ainstitucionalização e exige uma participação constante do corposocial, seja na tomada de decisões, seja na concretização das exe-cuções. No próprio processo de autodefinição da legitimidade,emanada da consensualidade dos objetivos e dos interesses parti-lhados, as formas de mobilização podem apresentar posturas di-ferenciadas. As linhas de ação que correspondem às perspectivaspolítico-estratégicas dos movimentos sociais refletem, para Ve-rás e Bonduki, três nítidas posturas:

2° VIOLA, Eduardo; MAINWARING, Scott. op. cit., p. 109-110; LACLAU, Emesto.Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. Revista Brasileira de CiênciasSociais. São Paulo, n. 2, p. 47, Our./1986. Ver, a esse propósito: GUATTARI, Felix. Re-volução molecular: pulsações politicas do desejo. 3. ed., São Paulo: Brasiliense, 1985.

3° KÃRNEN, Hartmut. op. cit., p. 24.

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134 As roNTEs DE PRoDUCÃo NA NovA CULTURA JURÍDICA

1. Postura reivindicatória - Visa pressionar o Estado à obten-ção de melhores condições de vida e de direitos básicos que nãosão atendidos. Tal proposta tem alcance lirnitado no que tange aoferecer soluções criativas para superar os impasses. Atendo-se àpriorização de lutas segmentadas, acaba caindo no corporativismoou em práticas clientelistas e populistas.

2. Postura contestatória - Trata-se daquela opção que utilizaas carências e privações materiais como fonna de mobilizar asgrandes massas para realizar uma oposição sistemática ao poderestatal instituído. Nesse caso, o movimento se atém a denunciar aausência de respostas concretas govemamentais para a resoluçãodos problemas, deixando de aproveitar o espaço institucional paraintroduzir propostas altemativas e criar mecanismos de participa-ção popular.

3. Postura participativa - É aquela que aponta nova perspecti-va para os movimentos sociais, pois, sem deixar de lutar pormelhorias da qualidade de vida, avança não só na redefinição daprópria cidadania, como contribui positivamente para redefiniresses novos sujeitos coletivos como “instrumento essencial naconstrução de uma democracia capaz de assegurar aos cidadãosformas de controle do Estado e canais de participação populardescentralizadores do poder”31.

Por último, tentando encadear com certa lógica as principaiscaracterizações dos movimentos sociais, importa descrever maisde perto a “base social” dos atores centrais da ação coletiva. Tor-na-se significativo examinar a “base social” dos movimentos parase ter urna idéia das dimensões particulares e ideológicas de suaorganização, de sua relação não-formal com o processo de mu-danças político-sociais e sua definição na opção por um projetoconservador ou progressista (enquanto desafio político)32.

3' Cf`. VÉRAS, Maura P. B.; BONDUKI, Nabil G. Política habitacional e a luta pelodireito à habitação,,In: COVRE, Maria de Lourdes M. [Org.]. A cidadania que nãotemos. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 67-69.

32 Cf. LOJKINE, Jean. O Estado capitalista e a questão urbana. São Paulo: MartinsFontes, 1981. p. 296-298.

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3.1 Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 135

Tais preocupações abrem urna discussão sobre a validade e osignificado da qualificação de “classe social” para os novos su-jeitos coletivos. E neste propósito que alguns teóricos procuramdistinguir os novos movimentos sociais dos países centrais comomobilização dos setores médios e os do Terceiro Mundo, comomovimentos advindos das camadas populares. Ao se referir aosmovimentos sociais como portadores de um paradigma de políti-ca alternativa, Offe os identifica com uma nova classe média. Umaclasse média em que as exigências carecem em grande parte datipicidade de classe, pois suas metas são dispersas e universalistas,como aquelas pretensões envolvendo o pacifismo, a proteção domeio ambiente e a defesa dos direitos humanos. Mesmohegemônica, a nova classe média compõe alianças estáveis comoutros segmentos sociais, como os grupos “periféricos” e parce-las da velha classe média. Os grupos “periféricos” ou“desmercantilizados” são as categorias sociais cuja situação nasociedade não se define necessariamente pelo mercado de traba-lho, como estudantes, universitários, professores, mulheres, apo-sentados, assistentes sociais etc. Por outro lado, a velha classemédia que vem gradativamente associando seus interesses eco-nômicos a toda uma política atual de protestos, na maioria dasvezes é representada por setores autônomos e independentes, comocamponeses, lojistas e artesãos”. Distintamente do quadro deli-neado por Offe, que toma em conta o Capitalismo avançado desociedades como a Alemanha, teóricos como André Gunder Franke Daniel Camacho entendem que, no Terceiro Mundo, os movi-mentos sociais são predominantemente de classe popular, articu-lados no espaço de contínuas e intensas “lutas de classes”. Taismovimentos de massas organizados que emergem diante da fragi-lidade e da inoperância das instituições oficiais buscam defendera subsistência e a identidade de seus membros, promovendo amobilização contra a exploração, a opressão e a exclusão. Aindaque no espaço latino-arnericano haja tendência em identificar osmovimentos sociais com movimentos populares, cabe, no dizerde Daniel Camacho, distinguir duas espécies de movimentos so-ciais:

33 Cf. OFFE, Claus, 1988, op. cit., p. 195-197.

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136 As FoNTas DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

a. os que expressam interesses dos grupos hegemônicos e quese beneficiam com a manutenção do sistema, assumindo caráterconservador;

b. os que reproduzem os interesses do povo e daqueles setoresda sociedade que sofrem dominação e exploração, donde seu teorprogressista e sua busca pela transfonnação das estruturas domi-nantes. Nesse contexto, a configuração da categoria “povo”, comobase social dos novos movimentos, tem, presentemente, sentidomais abrangente do que classe operária, e permite melhor captar acomplexidade das novas práticas sociais que transcendem as fron-teiras das classes, frações e categorias sociais”.

Alargando o enfoque, convém ressaltar que a literatura existen-te pennite conferir urna gama de interpretações sobre a naturezaclassista ou interclassista dos movimentos sociais. Sem entrar nomérito de uma questão que parece não ter ainda resposta satisfatória,o que se toma transparente, momentaneamente, é que, de fato, oparadigma do recorte econômico que reduz toda análise dos agen-tes sociais a relações de produção e a contradições de classe, nãoconsegue mais captar a complexidade dos conflitos da sociedadede massa e a pluralidade de novos espaços político-sociais. Apesarde não se poder negar totalmente a dimensão ou as relações declasse na sociedade periférica em que se vive, há de se considerar aevolução de outras fonnas de relações fundamentais para compre-ender a ação e a consciência de comunidades sobre interesses en-volvendo prioridades étnicas, ecológicas, religiosas, juvenis etc.

Na medida em que os movimentos sociais não se restringemmais a uma base homogênea, exclusivamente operária, toma-seobrigatório aventar que, no novo paradigma pluralista de culturapolítico-jurídica, são atribuídas inúmeras posturas aos novos su-jeitos coletivos, “correspondentes a diferentes camadas sociais,que se ordenam e hierarquizam conforme os conflitos e lutas so-ciais, culturais e étnicas vividas”35. Percebe corretamente Teresa

14 Cf. GUNDER FRANK, A., FUENTES, Mam.. op. cit., p. 31-33; CAMACHO,Daniel. op. cit., p. 217-218; JACOBI, Pedro. op. cit., 1987. p. 260.

35 CALDERON GUTIERREZ, Femando. op. cit., p. 194.

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3.1 Os Movimentos Sociais como novos Sujeitos Coletivos 13'/

Lisboa que é necessário redefinir os marcos conceituaisexplicativos para se compreender a realidade social “como urnatotalidade composta de diferentes niveis e momentos comespecificidades próprias e que se inter-relacionam”36. Daí o por-quê da crescente tendência de se reconhecer o caráter pluriclassistados novos movimentos sociais, instituídos a partir de interessescomuns que ligam sujeitos coletivos ou comunidades de indiví-duos capazes de compartilhar condições possiveis em diferentesespaços públicos. Uma exemplificação disso pode ser vista nomovimento estudantil, formado por elementos de origem operá-ria, camponesa e burguesa”.

Fica assinalada, portanto, a necessidade de se ter consciên-cia de que, paradoxalmente, não se poderá mais nem reduzir osnovos sujeitos coletivos a simples sujeitos de classe, tampoucodesconsiderar totalmente que, no âmbito da América Latina, osmovimentos sociais estão em grande parte ainda identificadoscom as classes populares, principalmente com o operariado ur-bano inserido numa instância conflitiva de forças produtivas,relações de trabalho e subsistência material. Igualmente nãoparece adequado vincular a emergência dos movimentos sociaiscom a substituição ou desaparecimento eventual das classes so-ciais, pois, quer nas sociedades capitalistas avançadas, quer nassociedades periféricas como a brasileira, a busca pela satisfaçãodas necessidades fundamentais está sempre associada a reivin-dicações, conflitos e lutas que partem dos mais diferentes seto-res da sociedade, que podem refletir tanto interesses classistasquanto pluriclassistas.

O certo é que, no alargamento do quadro teórico-analítico,percebe-se, concomitantemente com a profunda transformação dospadrões conflitivos e da fonna de ser das classes sociais, o adven-to de novas identidades culturais coletivas, definidas por proces-sos complexos de interação, funcionando com suas próprias leisautônomas, e não podendo mais resultar parcialmente das rela-ções de produção”.

3° LISBOA, Teresa K. op. cit., p. 18-19.3? Cf. CAMACHO, Daniel. op. cit., p. 236-237.3* Cf. LISBOA, Teresa K. op. cit., p. 19.

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138 As roNrEs DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA TURIDTCA

Portanto, os novos sujeitos coletivos aqui tratados não sãoquaisquer movimentos sociais momentâneos e pouco estruturados,de reivindicação ou de protesto, mas aquelas estruturas sociaismais permanentes e estáveis que corporificam Luna nova formade fazer política. Trata-se de “novos movimentos sociais” quereúnem um conjunto de características comuns, unidas por umalógica organizacional ““democrático-coletivista”3° composta pelaidentidade de “objetivos”, “valores”, “fonnas de ação” e “atoressociais”. Critérios que permitem qualificá-los como “novos” paradistingui-los das antigas práticas reivindicatórias imediatistas deação coletiva. O “novo” refere-se à ação consciente e responsávelposta em movimento, representada por grupos associativos e co-munitários, como os movimentos dos “sem-terra” (rural e urba-no), dos negros, das mulheres, dos direitos humanos, dos ecólogos,dos pacifistas e dos religiosos (Comunidades Eclesiais de Base).O “novo” está no fato de se tratar de manifestações com capaci-dade de surgir “fora” da cena política institucional, fundadasemrazões que não só transcendem os estreitos interesses de produ-ção e consumo, mas, sobretudo, compõem nova identidade cole-tiva, capaz de romper com a lógica do paradigma social dominan-te e se libertar das formas opressoras de manipulação e cooptação,criando altemativas implementadoras de práticas democráticasparticipativas.

Por conseguinte, na medida em que esses atores coletivos con-figuram outro paradigma de cultura político-juridica, há que re-fletir sobre como se efetiva sua relação, diferenciação e inovaçãocom os mecanismos clássicos de “institucionalização” e “repre-sentação política”. É o que se propõe para o próximo segmento daobra, ou seja: como ocorre a dinâmica entre “identidade/autono-mia” dos movimentos sociais recentes e os processos convencio-nais de “institucionalização” e de “representação” num espaçopúblico pluralista, descentralizado e participativo? É possívelconciliar práticas emancipatórias com baixo grau de mediaçõesinstitucionais? Como situar as novas relações e organização dosmovimentos sociais frente aos canais tradicionais de representa-

.J

3° Cf. BOSCHI, Renato Raul. A arte da associação: politica de base e democraciano Brasil. São Paulo: Vértice/IUPERJ, 1987. p. 27.

3.2 Representação. Estado e Identidade dos Atores Coletivos 139

ção (partidos politicos) e cooptação política (Estado)? Como sedá a representação dos interesses sociais e das reivindicações pordireitos sem as regras formais da “institucionalização” convenci-onal?

3.2 Representação, Estado e Identidade dos Atores Coletivos

Um exame dos movimentos sociais pennite constatar que seualcance não se restringe apenas a uma resposta às privações e àscarências dos excluídos das forças produtivas e das relaçõeshegemônicas. Mas, da dialética de sua historicidade, que constróinova identidade coletiva, emerge também uma “vontade comuni-tária” participativa que não mais perpassa, obrigatoriamente, ospadrões comuns de “representatividade” e de “institucionalidade”.Na verdade, a dinâmica social interativa passa por fonnas novas emais amplas de participação política de base, integrada por “to-dos a todo momento” e instituindo, em face da falência dos canaistradicionais, o espaço altemativo de uma cidadania individual ecoletiva.

A medida que, gradativamente, as regras formais clássicas delegitimidade e os arranjos institucionais liberal-burgueses tomam-se inapropriados para canalizar e processar uma grande diversi-dade de demandas inerentes às sociedades de massa, os movi-mentos sociais inauguram um estilo de política pluralista assenta-do em práticas não-institucionais e auto-sustentáveis, e nele avan-çam, buscando afirmar identidades coletivas e promovendo umlocus democrático, descentralizado e participativo”. De fato, aorganização, mobilização e autodeterminação desses novos ato-res coletivos tendem a concretizar-se extema e independentementedos procedimentos representativos das instituições oficiais, estassimbolizadas particularmente por partidos políticos, organizaçõessindicais e agências burocráticas estatais. Cada vez mais tais ins-tâncias convencionais tomam-se canais inadequados para quesubsistemas setorizados de agregação alcancem suas metas e

4° Cf. BOSCHI, Renato Raul. op. cit., p. 16 e 25; VIGEVANI, Tullo. op. cit., p. 106.

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140 As FONTES DE PRODUÇÃO NA NOVA CULTURA JURÍDICA

integralizem satisfatoriamente seus interesses. Dessa fonna, acapacidade transformadora da “vontade coletiva” comunitária,evadindo-se dos arranjos parlamentares representativos e dos in-fluxos cooptativos do Estado, desloca os critérios de legitimidadeda representação formal (delegação/mandato) para modalidadesplurais que medeiam entre a participação autônoma e a represen-tação popular de interesses. E nesse quadro institucional domi-nante que se solidifica um fenômeno mais abrangente, que é aprópria crise da representação política, vivenciada na cultura de-mocrática liberal-burguesa contemporânea.

Constatando-se O amplo processo de crise paradigmática queenvolve as formas de racionalidade formal e os pressupostos delegitimidade do Estado e do Direito Ocidental, os sintomas alcan-çam também, nas sociedades de Capitalismo periférico, as rela-ções institucionalizadas da representação política. A revelaçãode que a representação política é uma instituição em crise encon-tra explicação em inúmeras distorções que, no dizer de Celso F.Campilongo, compreendem desde as razões de “congruência”(distância e/ou aproximação entre os eleitores e seus representan-tes, a burocratização das agremiações partidárias, a ausência decontrole dos mandatários) até O desajuste estrutural entre “for-mas políticas e fonnas econômicas”, ou seja, a crise das institui-ções políticas inter-relaciona-se com a crise do trabalho, do capi-tal, da organização econômica empresarial e com as funções dopróprio Estado no sistema produtivo*“.

Essa problemática da “crise da representação política” e dasuperação do paradigma monista liberal-individualista na esferado Estado e do Direito se agrava ainda mais em contextos frag-mentários, tensos e explosivos como os dos países latino-ameri-canos, marcados por acentuada tradição autoritário-patrimonialista. Parece claro que ampla gama de decisões assu-midas e implementadas no âmbito dos quadros institucionais aca-bam escapando do controle específico da atividade parlamentar,

4' Cf. CAMPILONGO, Celso F. Representação política e ordem jurídica: os dile-mas da democracia liberal. São Paulo: USP, 1987. p. 96 e 132. Dissertação [Mestradoem Direito] - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, l987. Consultar ainda:OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Bra-sileiro, 1984, v. 79. p. 363-367.

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3.2 Representação, Estado e Identidade dos Atores Coletivos I4l

tanto por desajuste estrutural entre a democracia representativa eO Estado intervencionista (porque, naquela, a legitimidade se medepela legalidade e neste, pela efetividade das demandas), quantoporque O sistema de govemo (presidencialista) retira da represen-tação partidária a chance de decisão por escolha de acordo com avontade do eleitorado”. Nesse contexto, assinala Campilongo,projeta-se uma situação de envelhecimento das instituições re-presentativas e dos padrões convencionais de interpretação polí-tico-jurídica. Na prática, “os processos decisórios e a naturezadas regulações jurídicas tendem a uma informalidade que rompeconstantemente a lógica do dogmatismo-nonnativista. (...) A re-presentação política vai se revelando pouco habilitada para O exer-cício das funções de integração social, de produção de identida-des coletivas e de socialização politica”. Distanciando-se das es-truturas de representação parlamentar, limitadas para enfrentarsituações cada vez mais complexas, cresce a presença de corposintermediários e de movimentos participativos “orientados poruma racionalidade diversa do fonnal”“'.

A constituição de identidades coletivas espontâneas, informaise descentralizadas tende, de um lado, a rejeitar procedimentosformalizados e padrões hierarquizados representados pelos me-canismos de delegação mandatária, e, de outro, a superar O qua-dro institucional vigente, marcado classicamente pelo poderordenador do Estado. Ao transcender os mecanismos de repre-sentação política, as ações mediatizadas por “vontades coletivas”44,alargam o espaço de interação pública, definem novas fontes delegitimidade, politizam progressivamente a vida social e impri-mem novas formas de relações e de organização social queindependem dos padrões ritualizados da “institucionalização”convencional. Na medida em que a representação expressagradativamente um artificialismo mis-en-scène desvirtuado edeslegitimado, embasado na manipulação perversa e na aliena-ção das maiorias silenciosas, obviamente que as estratégias que

42 Cf. MOLL, Luíza Helena M. Conferência “Estado e Administração Política”,proferida na UNISINOS-RS, em IO/08/9l.

43 CAMPILONGO, Celso F. op. cit., p. 96-98.44 Cf. VIGEVANI, Tullo. op. cit., p. 108.

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142 As FONTES DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

rá!permitem a construçao de “vontades coletivas” participativas nãoincidem nos procedimentos tradicionais de “institucionalização”.

Ainda que O ponto essencial da efetividade dos movimentossociais não esteja na sua institucionalização, a rigor há que redefinirO que seja a própria “instituciona1ização”. Evitam-se, assim, pos-turas teórico-antinômicas que, ora enquadram a ação dos novossujeitos sociais num espaço de politica absolutamente não-institucional, caracterizada por práticas auto-sustentáveis por simesmas, excluídas de toda dimensão coercitiva, ora situam a di-mensão institucional como parte integrante da própria lógica daação coletiva, atribuindo a institucionalização à capacidade ins-trumental de produzir o “ritmo de fluxos e refluxos na formaçãode sujeitos coletivos”. Com a hierarquização, estratificação e con-trole, este processo formalizador traz as condições necessáriaspara organizar a “experiência diária dos indivíduos, dando formaaos ressentimentos e definindo a extensão das demandas e metasde ação”45.

Quer-se com isso admitir a existência de procedimentos plurais,descentralizados e não-formais com um “mínimo” deinstitucionalização na esfera interativa de toda e qualquer ação hu-mana coletiva, diferenciando-se da chamada institucionalizaçãomodema que está assentada na racionalidade instrumental, na lega-lidade formal e na representação politica. A “institucionalização”inerente ao velho paradigma de cultura política está associada, comoassinala Claus Offe, a uma “estrutura social composta de coletivi-dades relativamente duradouras e relativamente diferenciadas, taiscomo classes, agrupamentos segundo O status social, profissão, in-teresses econômicos, comunidades culturais e familiares”46.

Assim, a “institucionalizaçãO”, enquanto ritualização nonnativaque intemaliza critérios de legitimidade, busca, na sociedademodema, consagrar certos padrões oficiais de implementação dedecisões coletivas, como negociações, compromissos, represen-tação, regras da maioria, organismos burocráticos, regulação-integração social etc”. E a partir da “institucionalização” des-

” BOSCHI, Renato Raul. op. cit., p. 19, 25, 36-37.4° OFFE, Claus, 1988, Op. cit., p. 182.47' Cf. OFFE, Claus, 1988, op. cit., p. 180; SOUTO, Claudio; SOUTO, Solange. A

explicação sociológica: uma introdução à sociologia. São Paulo: EPU, 1985. p. 211.

3.2 Representação, Estado e Identidade dos Atores Coletivos 143

virtuada, significando tanto a rotina estabilizante e O fonrralismonão-criador, quanto O regime artificial de acomodamento das re-lações sociais e das formas de organização, que se pode contraporà contingência e autenticidade dos movimentos sociais,instauradoras de um novo código de exigências, orientações eexperiências concretas que contextualizam a pluralidade de umespaço de política não-institucional. Sob este aspecto não só épossivel falar na “minimização” dos critérios tradicionais de“institucionalização”, como é admissível, igualmente, na práticaoriginal e específica dos movimentos sociais, a partir daredefinição do que seja “institucionalização”, impedir a padroni-zação burocrática, neutralizar O processo de dominação formalque leva à perda da autenticidade e autonomia, bem como lutarpara a democratização das próprias relações oficiais vigentes.

Na pluralidade das experiências cotidianas, O ponto essencialdos movimentos sociais e das demais organizações comunitáriasnão-estatais não está na problemática de serem ou nãoinstitucionalizadas, mas na capacidade de romperem com a pa-dronização opressora e de construírem nova identidade coletiva,de base participativa, apta a responder às necessidades hturranasfundamentais. Na medida em que Os movimentos sociais consti-tuem segmentos transformadores, matizados tanto por urna “mí-nima” padronização institucional quanto por um perfil flexível,adaptativo e não-autoritário, não implicam eles, os movimentos,necessariamente a institucionalização, “que limita e restringe Opoder social desses movimentos”48.

A institucionalização não precisa ser absolutamente erradicada,desde que respeite a natureza, a autonomia, a identidade e a dinâ-mica dos grupos coletivos e comunidades altemativas. Por outrolado, O que importa reter é que, embora os movimentos se contra-ponham às diversas fonnas de institucionalização (partidos polí-ticos, organizações sindicais e agências ou órgãos estatais), não

Sobre “institucionalização”, ver ainda: WEFFORT, Francisco C. Dilemas da legitimida-de politica. p. 25 e REIS, Fábio W. Direitos humanos e sociologia do poder. Lua Nova.São Paulo, n. 15, p. 125-126, Out./ 1988; FERREIRA NETO, Lino. Instituição. In: SIL-VA, Benedicto da [Coord.]. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: FGV/MEC,1986. p. 613.

*ff GUNDER FRANK, A., FUENTES, M. op. cit., p. 26.

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144 As FoNrEs DE PRODUÇÃO NA NOVA CULTURA rURio1cA

se pode deixar de reconhecer que intrinsecamente eles enfrentamcontradições e ambigüidades inerentes à sua própria condição quehá de ser tipificada como de “baixo nível ou grau deinstitucionalização”49. O que permite afirmar que uma “certa” ou“mínima” institucionalização presente em processos históricos epermanentes, mediatizados pelos novos movimentos sociais, nãodescaracteriza a natureza de sua identidade autônoma eemancipatória.

Para além do politico-social, pode-se mencionar, também, quealguns autores, dentre Os quais Boaventura de Souza Santos, têmdemonstrado que O paradigma do monismo jurídico estatal-capi-talista atinge elevado grau de “institucionalização” através de umformalismo processual e de urna rígida sistematização das fun-ções jurisdicionais. A delimitação da legalidade oficial positivistapropicia que O autor português reconheça graus diversos de“institucionalização”, podendo ser “mais ou menos rígida ahierarquização, de atuação mais ou menos padronizada e impes-soal. Quando plenamente institucionalizado, O exercício da fun-ção juridica constitui um aparelho burocrático (...) com tarefasrigidamente definidas e hierarquizadas”5°.

Impõe-se, assim, admitir um certo tipo “mínimo” deinstitucionalização que contemple tanto arranjos político-parti-dários auto-sustentáveis com “autonomia relativa” quantoformalizações normativas escalonadas em níveis ou graus diver-sos de “instituciOnalização”.

Uma vez definidos os marcos de ação dos movimentos soci-ais, no que tange à “representatividade” e à “institucionalização”,torna-se necessário avaliar, mais especificamente, nos horizontesde nações do Capitalismo periférico, as cruciais relações entre osmovimentos sociais e algumas das mais significativas instânciaspolitico-institucionais. Para isso é fundamental reconhecer, preli-minarmente, que O impacto maior ocorre com referência à estru-tura de poder estatal. Por ser O principal núcleo burocrático-ins-

'*° Sobre esta questão, observar: KÃRNEN, Hartmut. op. cit., p. 24; CAMPILONGO,Celso F. op. cit., p. -104; VIGEVANI, Tullo. Op. cit., p. 99; GOHN, Maria da Glória. op.cit., p. 35-37.

5" SANTOS, Boaventura de Souza. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologiada retórica juridica. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1988. p. 50-51.

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3.2 Representação, Estado e Identidade dos Atores Coletivos 145

trumental de controle e dominação social, O Estado projeta-se comoa meta privilegiada para O processamento de demandas e confli-tos, bem como O locus natural para a contestação e O confrontopor parte dos movimentos sociais. Esta incompatibilidade entremovimento social e poder estatal pode ser explicada pela próprialógica' dos tipos de especificidades racionais que ordena essasorganizações, que, de um lado, traduz a descentralização,informalidade, autonomia, voluntarismo, participação eracionalidade material; de outro, a centralização burocrática,hrerarqurzação dos poderes, integração, representação eracionalidade formal. Em outras palavras, grande parcela dosmovimentos socrars se articula, se mobiliza e se socializa à mar-gem dos mecanismos representativos tradicionais e independen-temente do Estado, pois não consideram essas instituições intei-ramente adequadas para processar suas demandas e atender suasnecessidades”.

Indubitavelmente, diante da pluralidade de exigências cotidi-anas e de experiências concretas, a produção coletiva procura rom-per com O “rmaginário totalizante”52 estatal, deslocando a arenadas decisões para a consensualidade argumentativa de espaçospoliticos múltiplos.

Mesmo evitando a polarização “coletivismo autonomista”versus “institucionalismo estatal”53, não se poderá minimizar que,tanto na América Latina como especificamente no Brasil, existe afigura do patemalismo assistencialista e a constante presença doautoritarismo gerenciador do Estado, ainda que se considere aparticularidade da crise ou reordenação de suas funções e das suastransfonnações mais recentes. Deste modo, mesmo que os movi-mentos sociais representem um novo paradigma de se fazer polí-

5_* Cf. GUNDER FRANK, A.; FUENTES, M. op. cit. p. 34-36; BOSCHI, Renato R.,op. cit., p. 25.

52 Cf. LACLAU, Emesto. op. cit., p. 47.53 .Com respeito a.esta discussão ver: a) autores que enfatizam O papel e as

potencialidades dos movimentos sociais como sujeitos de uma nova cultura política: TilmanEvers, 1-lartmut Kamen, llse Scherer-Warren, F. Calderón Gutiérrez, Paulo Krischke,Emestolaclau (perspectiva das “mudanças paradigmáticas”), Daniel Camacho, Mariada Gloria M. Gohn, Manuel Cartells, Jean Lojkine (perspectiva de “classe”). b) autoresque realçam O papel do Estado e do processo “institucional” na dinâmica da ação coleti-va: Renato R. Boschr, Lícia P. Valladares, Ruth Cardoso, Pedro Jacobi etc.

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146 As FONTES DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

tica - gênese da “estratégia de contrapoder”54 e eqüidistante rela-tivamente da dominação estatal -, há de se ter consciência de que,na sociedade brasileira, significativo número de reivindicaçõesirnplicam alguma espécie de interferência do Estado como únicomodo de negociação e solução. Mencionam-se, nesse sentido, ascrescentes medidas de legitimação dos direitos, ou seja, aquelassituações em que, diante da omissão da legislação vigente, O pró-prio Estado reconhece e concede direitos”.

As complexas e tensas relações entre os movimentos sociais eo Estado são discutidos por Viola e Mainwaring, para os quais OEstado pode assumir três posturas diferenciadas frente aos movi-mentos sociais.

“Primeiro, pode responder e apoiar relativamente as deman-das dos movimentos, sem destruir sua autonomia. Tal possibili-dade encoraja a expansão dos movimentos. Segundo, O Estadopode cooptar, marginalizar ou isolar os movimentos, mesmo aoincorporar algumas de suas demandas ao sistema político. Nestecenário, Os movimentos tendem a uma história mais cíclica, desurgimento e declínio, conforme as dinâmicas internas e conjun-turas particulares. Finalmente, O Estado pode reprimir os movi-mentos sociais, em cujo caso estes tendem a declinar, ao menostemporariamente”5'*.

Não há dúvidas que, levando em conta a especificidade histó-rica e as condições materiais de cada sociedade política, deve-seatentar para a evolução de duas modalidades de comportamentopolítico:

5* JACOBI, Pedro, 1989, op. cit., p. 12.55 Cf. JACOBI, Pedro, 1987, op. cit., p. 255 e 272; . l989a, op. cit., p. 12;

CARDOSO, Ruth C. L. Movimentos sociais na América Latina. Revista Brasileira deCiências Sociais. São Paulo, n. 3, p. 32-33,1987; . Movimentos sociais urbanos:balanço crítico. In: SORJ, Bemard; ALMEIDA, Maria I-lerminia T. de. Sociedade epoli-tica no Brasil Pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 228-230; TOURAINE, Alain.Palavra e sangue. Política e sociedade na América Latina. São Paulo: Trajetória Cultu-ral/UEC, 1989. p. 182-183.

5° VIOLA, Eduardo; MAINWARING, Scott. op. cit., p. 116. Observar, também:BOSCHI, Renato RÍ; VALLADARES, Lícia do Prado. Problemas teóricos na análise demovimentos sociais: comunidade, ação coletiva e O papel do Estado. Espaço & Debates,São Paulo, n. 8, p. 75, Jan./Abr. 1983.

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3.2 Representação, Estado e Identidade dos Atores Coletivos 147

a. Os novos movimentos sociais, autônomos e inteiramenteindependentes do Estado, agem para responder às necessidadeshumanas existenciais e culturais, como ecologia, pacifismo, fe-minismo, anti-racismo e direitos difusos;

b. Os novos movimentos sociais, detentores de uma “autono-mia relativa”, mantendo relações que envolvem algum grau dedependência (não se caracterizando como submissão), agem mo-tivados por necessidades e conflitos vinculados à produção/dis-tribuição de recursos e bens materiais. Tais movimentos coletivosvivenciam experiências contraditórias demonstradas, ora no es-forço de se tentar escapar do controle do Estado, ora de se mol-dar, por vezes estrategicamente, à direção estatal para obter re-cursos e os bens necessários”.

Destaca-se, igualmente, que a “autonomia” e a “identidade”dessas novas fonnações coletivas e comunitárias, geradoras depráticas pluralistas, não são confrontadas apenas com a estruturado poder estatal. Em verdade, O distanciamento dessas organiza-ções participativas de base se efetiva também com relação a ou-tras tradicionais organizações institucionais representativas deinteresse, como os partidos políticos.

Sem sombra de dúvida que a relação problemática entre asmanifestações coletivas autônomas e a estrutura partidária deveser compreendida no contexto mais abrangente da própria crisecontemporânea da representação política. A experiência históricavem demonstrando que a estrutura partidária enquanto engenha-ria político-liberal está desgastada e decadente”, não sintonizan-do mais com os anseios autênticos das massas populares oprimi-das e das grandes maiorias excluídas do jogo político.

A crise dos partidos políticos não só reflete, de acordo com CelsoCampilongo, sua “incapacidade de filtrar as demandas sociais etransformá-las em decisões políticas”, como, sobretudo, expressanitidamente que a estrutura partidária não se constitui “mais no

57 Cf. BOSCHI, Renato R., op. cit., p. 24; VIGEVANI, Tullo. op. cit., p. 100.5” Cf. BOSCHI, Renato R.. op. cit., p. 20, 26 e 29. Igualmente, ver: BOSCHI, Renato

R.; vAI.I.ADAREs, Lícia do Prado. op. cit., p. 65; OFFE, Claus, 1984, op. cit., p. 367-372.

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148 As FONTES DE PRODUÇÃO NA NOVA CULTURA JURÍDICA

único nem no principal leito institucional onde deságuam as reivin-dicações populares”59. Certamente, O fiucasso das organizações par-tidárias, como locus de representação de interesses, pode ser en-contrado na perda de suas reais ftmções de agregação social e noscrescentes lirnites em intermediar novos padrões de conflituosidade.Diante da “fragmentação dos interesses sociais” e da ampliação deconflitos de natureza não-econômica, as estruturas sociais passama vivenciar urna pluralidade de lutas que escapam aos trâmites ofi-ciais e ensejam a multiplicidade de arenas decisórias6°. Daí que ainsuficiência dos partidos políticos, como instância de representa-ção oficial, conduz à necessidade de superar O quadro institucionalvigente através da multiplicação de canais legítirnos e altemativos.Sob este aspecto, acrescenta Celso F. Campilongo, as “novas ne-cessidades, a produção da identidade social e a natureza originaldos conflitos fazem com que - além da fábrica, do sindicato e dopartido - as lutas políticas ocupem espaços que não se reduzem àsinstituições tradicionais”. Definitivamente, há de se abandonar a idéiahegemônica de que “os partidos exercem O monopólio da represen-tação política”6'. Anota-se, ademais, que, para canalizar Os conflitose operacionalizar as demandas, toma-se imprescindível instituir su-portes extrapartidários de participação mais pluralistas e democráti-cos. De todos Os novos canais que rompem com O monopólio dospartidos políticos e que desafiarn as formas institucionais de acessoao Estado, são os novos movimentos sociais62 os agentes mais efica-zes para a afirmação da cidadania coletiva e para a sedimentação deum pluralismo comunitário de base participativa. Esta dinâmicainterativa que passa a fluir de vias inovadoras instaura condiçõespara edificar uma nova legitimidade, sedimentada mais autentica-mente na eficácia material de “vontades comunitárias” cidadãs.

Entretanto, essas premissas não devem induzir à abolição dosistema representativo, muito menos das organizações convencio-nais que agregam interesses gerais e específicos, como Os partidose os sindicatos. Na medida em que as máquinas partidárias

5° CAMPILONGO, Celso F. op. cit., p. 37.5° Ibidem, p. 96-97; OFFE, Claus, 1984, op. cit., p. 367-371.5' Ibidem, p. 98.62 OFFE, Claus, 1984, ap. cit., p. 303, 367-»3ós.

3.2 Representação, Estado e Identidade dos Atores Coletivos 149

esclerosadas e clientelísticas se redefinirem radicalmente e se apro-ximarem democraticamente das bases comunitárias, poderão, ob-viamente, mas não mais com exclusividade, atuar conjuntamentecom os diversos conselhos municipais e poderes locais, com oscomitês de fábricas e com as novas organizações sindicais numespaço pulverizado pelos movimentos sociais. Além do que, nacotidianidade do pluralismo comunitário, longe de seremexcludentes, os movimentos sociais e as demais forças político-societárias (partidos, sindicatos, comissões de fábricas etc.) podemde fato coexistir como meios democráticos de base e como apara-tos organizacionais complementares”. Mesmo porque os movimen-tos sociais insurgentes, enquanto instituintes de arenas inovadorasde decisão política, podem encontrar enorrnes dificuldades e limi-tações, tanto pelo fato de reduzirem suas práticas autônomas dedemocracia direta ao cotidiano de pequenos círculos comunitáriosregionais e locais, quanto por não conseguirem “institucionahnente”fazer reconhecer seus direitos emergentes e instrumentalizar a “re-presentação” de seus interesses. Daí a necessidade de definir umanova lógica pluralista de ordenação sócio-política que permitacompatibilizar práticas de democracia participativa direta commecanismos particulares da democracia representativa. Com issoquer-se sublinhar, como faz apropriadamente Celso F. Campilongo,que a crise da representação política “não sugere a democracia di-reta como única salvação do sistema político” nem que os movi-mentos sociais descartem integralmente alguns “instrumentosinstitucionais de representação” política clássica64.

Portanto, a projeção dos movimentos sociais, como autênticossujeitos coletivos de uma nova composição político-jurídicapluralista, não extingue e tampouco nega as virtualidades e con-quistas presentes no velho paradigma da cultura liberal-democrá-tica representativa.

No estabelecimento de uma ordem pluralista, esse quadro deconstatações antinômicas deve ser, igualmente, transposto para

63 Cf. BOSCHI, Renato R.. op. cit., p. 29, 38 e 166; BOSCHI, Renato R.:VALLADARES, Lícia do Prado. op. cit., p. 65 .

6* Cf. CAMPILONGO, Celso F. op. cit., p. 111. Observar também: COUTINHO,Carlos Nelson. A democracia como valor universal. São Paulo: Ciências Humanas, 1980.p. 25-29.

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l5Ú As FONTES DE PRODUÇÃO NA Novx CULTURA Iurtiolcx

os dilemas resultantes da relação dos movimentos sociais com oEstado. Isso dá ensejo a pensar que, mesmo resguardando a natu-reza por excelência auto-sustentável dos movimentos sociais, aafirmação de sua legitimidade como expressão de uma “vontadecoletiva” e o reconhecimento de sua ação e potencialidadetransformadora se comprovam na capacidade de negociar einteragir com o Estado. De fato, não se pode ver tão-somente re-lações conflituosas entre organizações comunitárias e agênciasinstitucionais da estrutura de poder, pois se de um lado a pressãodos movimentos sociais tende a democratizar as relações políti-co-institucionais e a transformar o próprio Estado, de outro, há dese conceber a efetiva resposta de regulação do Estado diante danatureza excessiva das reivindicações, de assegurar a exigênciapor novos direitos e de operacionalizar com certa unifonnidade afragmentação dos interesses setoriais, intemalizados pelas mani-festações coletivasós. Pode-se aí visualizar tuna conseqüente trans-formação na dinâmica interativa das duas realidades.

Embora se admita que a originalidade dessas novas formaçõescomunitárias seja sua “relativa autonomia” frente ao Estado e àsorganizações político institucionais, na verdade, como ressaltaPedro Jacobi, tais identidades coletivas “não recusam frontalmentea possibilidade de uma negociação que, freqüentemente,institucionaliza suas práticas, provocando transformações emambos os pólos do processo”°6. Assim, neste espectro de alarga-mento político, onde se redefme permanentemente a mobilizaçãoe participação dos movimentos sociais, o Estado também trans-cende os limites habituais de sua esfera de ação, modificando aintensidade dos níveis de sua interaçãoõl.

Fica configurada, ademais, na explicitação dessas diversida-des apontadas, a originalidade de um pluralismo comunitário-participativo que traduz urna nova expressão de “relacionar o po-litico e o social, o mundo público e a vida privada”68, as práticascotidianas e o institucional, a cidadania coletiva e a representa-

°5 Cf. JACOBI, Pedro, 1987, op. cit., p. 267 e 272.6° JACOBI, Pedro, l989a, op. cit., p. 12; . Movimentos sociais e políticas

públicas. São Paulo: Cortez, l989b. p. 154.°"' Cf. JACOBI, Pedro, 1987, op. cit., p. 272.68 JACOBI, Pedro, l989a, op. cit., p. 18.

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3.3 Os Movimentos Sociais como Fonte de Produção Jurídica 151

ção de interesses, enfim, as ações comunicativas autônomas e acodificação simbólico-cultural de novos tipos de relações e deregulações sociais.

Por conseguinte, tanto como modo de contextualizar ahistoricidade específica latino-americana, quanto de suplantar aantinomia do “voluntarismo messiânico”/“autonomia absoluta” dosnovos sujeitos coletivos versus “lógica detenninante”/“cooptação”dos processos institucionais tradicionais, parece correto:

a. situar os movimentos sociais num espaço plural de articula-ção, organização, mobilização com “autonomia relativa”, princi-palmente frente ao poder estatal;

b. encarar a questão da “institucionalização” no entendimentode “graus diversos”, ou seja, de modalidades que implicam o“máximo” ou o “minimo” de formalização. Isso pressupõe pensarnum novo tipo de “institucionalização” que venha agregar inte-resses emergentes contraditórios, caracterizando-se pelamutabilidade, fluidez e circunstancialidade no espaço.

3. 3 Os Movimentos Sociais como Fonte de Produção Jurídica

Prosseguindo na mesma direção a que já se aludiu, examina-se,neste tópico, de que fonna os novos sujeitos coletivos podem serreveladores de uma fonte diferenciada de produção jurídica. Tendopresente a perspectiva de um pluralismo comtmitário-participativo,há de se chamar a atenção para o fato de que a insuficiência dasfontes clássicas do monismo estatal determina o alargamento doscentros geradores de produção jurídica mediante outros meiosnormativos não-convencionais, sendo privilegiadas, neste proces-so, as práticas coletivas engendradas por sujeitos sociais.

É inegável a constatação de que “fonte”, no âmbito do Direito,traduz os diferentes modos de sua formação e as múltiplas ex-pressões de seu conteúdo histórico na realidade social. Daí que afonte primária do Direito não está na imposição da vontade deuma autoridade dirigente, nem de um poder legiferante ou de tunacriação iluminada de magistrados onipotentes, mas, essencialmen-

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152 As FONTES DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

te, na dinâmica interativa e espontânea da própria sociedade hu-mana. Assim, a fonte juridica por excelência encontra-se interli-gada às relações sociais e às necessidades fundamentais deseja-das, inerentes ao modo de produção da vida material, subjetiva ecultural.

As fontes de produção juridica que se estruturam em termosde um conteúdo (sentido material) e de uma configuração simbó-lico-cultural (sentido formal), reproduzem a manifestação de se-res humanos inter-relacionados, que vivem, trabalham, partici-pam de lutas e conflitos, buscando a satisfação de necessidadescotidianas fundamentais num interregno marcado pela “convivên-cia das diferenças”. Nestas condições, a produção jurídica nãopode deixar de retratar o que a própria realidade dimensionaliza,bem como de corresponder às reais necessidades da sociedadeem dado momento histórico, moldando-se às flutuações cíclicasque afetam também os demais fenômenos do mundo cultural (as-pectos sociais, econômicos, políticos, éticos, religiosos,lingüísticos etc.). As transfonnações da vida social constituem,assim, a fonnação primária de um “jurídico” que não se fechaexclusivamente em proposições genéricas e em regras estáticas efixas formuladas para o controle e a solução dos conflitos, mas semanifesta como resultado do interesse e das necessidades de agiu-pamentos associativos e comunitários, assumindo um caráter es-pontâneo, dinâmico, flexível e circunstancial. Esta concepção aquipartilhada afasta-se das expressões normativas pré-fixadas e abs-tratas criadas e impostas, com exclusividade, pela modema estru-tura estatal de poder. A produção jurídica formal e técnica doEstado modemo só atinge parcelas da ordem social, achando-sequase sempre em atraso, relativamente às aspirações jurídicas maisdesejadas, vivas e concretas da sociedade como um todoóg.

6° cf. TELLES JUNIOR, oofrrzâo. A cràzçâa do arrow. sào Pauioz ca1i1, 1953, tz. 2.p. 514-516. Ainda sobre a temática das “fontes jurídicas”, observar: MIAILLE, Michel.Uma introdução crítica ao direito. Lisboa: Moraes Editores, 1979. p. 189-213; GEN-RO, Tarso F. Introdução critica ao direito. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1988. p. 44-53; MAGANO, Octavio Bueno. Convenção coletiva do trabalho. São Paulo: LTR, 1972.p. 40; FRANCO MONTORO, André. Introdução à ciência do direito. 5. ed., São Paulo:Martins/azia Hoúzantez Itatiaia, 1973, 2 vs. p. 101-105 zz 401-403; RENDÓN vÁsQUEz,Jorge. EI derecho como norma y como relación social. Lima: Tarpuy, 1989. p. 78 e 138.

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3.3 Os Movimentos Sociais como Fonte de Produção Jurídica 153

Evidentemente que o Direito projetado pela sociedade burguês-capitalista, corporificado pelo modelo de centralização estatalhegemônico, impõe um rígido sistema de fontes fonnais caracteri-zado pela supremacia do Direito legiferado e escrito sobre o Direi-to consuetudinário e o Direito dos juristas, e pelo sufocamento eexclusão de práticas infonnais vinculadas ao Direito comunitárioinsurgente. Parece claro, por conseguinte, que o problema das fon-tes do Direito numa sociedade determinada e historicamente con-creta não está mais na priorização de regras técnico-forrnais e nacompletude de ordenações teórico-abstratas, porém na dialéticade uma práxis do cotidiano e na materialização normativa com-prometida com a dignidade de um novo sujeito social. Os centrosgeradores de Direito não se reduzem, de forma alguma, às insti-tuições e aos órgãos representativos do monopólio do Estado, poiso Direito, por estar inserido nas e ser fruto das práticas sociais,emerge de vários e diversos centros de produção normativa, tantona esfera supra-estatal (organizações internacionais) como no ni-vel inf`ra-estatal (grupos associativos, organizações comunitárias,corpos intermediários e movimentos sociais)7°.

Como confirma Eugen Ehrlich, o ponto de partida para a cons-tituição e o desenvolvimento do Direito vivo comunitário não seprende nem à legislação, nem à ciência do Direito e tampouco àdecisão judicial, mas às condições da vida cotidiana, cuja realeficácia apóia-se na ação de grupos associativos e organizaçõescomunitárias. Nesse quadro de referência, as “vontades coleti-vas” organizadas, utilizando-se de práticas sociais queinstrumentalizam suas exigências, interesses e necessidades, pos-suem a capacidade de instituir “novos” direitos, direitos aindanão contemplados e nem sempre reconhecidos pela legislaçãooficial do Estado. Com efeito, isso ocorre porque a produçãojuri-dica não reside tão-somente no Estado, mas pode surgir de outrasinstâncias sociais diferenciadas e independentes, mais exatamen-te do bojo complexo e do contingente de diversos espaços ocupa-

Y” Cf. LÉVY-BRUHL, Henri. Sociologia del derecho. 4. ed., Buenos Aires: Eudeba,1976. p. 14-15; CARBONNIER, Jean. Sociologia juridica. Coimbra: Almedina, 1979.p. 215; DEL VECC1-IIO, Giorgio. Direito, Estado e Filosojia. Rio de Janeiro: Politécni-ca, 1952. p. 65-112.

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154 As somas DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURIDICA

dos por sujeitos coletivos autônomos. Desde logo, entende-se que,ainda que o Direito Estatal, simbolizado pela lei escrita e por có-digos formais, exerça o monopólio na sociedade industrial-capi-talista, na verdade tal realidade não se esgota em si mesma, pois oDireito Estatal é “somente urna espécie dentro do gênero Direito”enquanto fenômeno cultural".

Significativo número de doutrinadores contemporâneos(Gierke, Ehrlich, Gurvitch, Santi Romano) são unânimes em ad-mitir que amplas parcelas dos “corpos intermediários”, com bai-xo grau de institucionalização, podem elaborar e aplicar suas pró-prias disposições normativas, dentre as quais: as corporações declasse, associações profissionais, conselhos de fábrica, sindica-tos, cooperativas, agremiações esportivas e rellgiosas, fundaçõeseducacionais e culturais etc. Em cada um desses grupos comuni-tários de interesses livremente organizados, ocorre uma “regulaçãointema”, “infonnal”, “autônoma” e “espontânea”, paralela e in-dependente da normatividade estatal, dos códigos oficiais, daslegislações elaboradas pelas elites políticas dominantes e pelosjuízes nos tribunais estatais. Reforçando a interpretação da exis-tência das várias formas jurídicas autônomas de grupos ou movi-mentos coletivos, assinala Georges Gurvitch que “as proposiçõesjurídicas abstratas, formuladas pelo Estado, (...) não se dirigem,no fundo, senão aos tribunais estatais e a outros órgãos do Estado.Os grupos e indivíduos vivem freqüentemente sua vida jurídicana ignorância do conteúdo dessas proposições”. Assim, só “umainfima parte da ordem jurídica da sociedade pode ser alcançadapela legislação do Estado, e a maior parte do Direito se desenvol-ve independentemente das proposições juridicas abstratas””.

Trata-se de nova fonna de gerar legitimidade a partir de práti-cas e relações sociais surgidas na concretude plural e efetiva do

7' COELHO, Luiz Femando. Teoria crítica do direito. Curitiba: HDV, 1986. p. 290.Sobre o direito dos grupos associativos autônomos: TREVES, Renato. Introdaccián a lasociologia del derecho. Madrid: Taurus, 1978. p. 59-61 e 69; GURVITCH, Georges.Sociologül del derecho. Rosário: Editorial Rosário, 1945; COELHO, Luiz F. Lógicajuri-dica e inteipretação das leis. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 256-257; EHRLICI-1,Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: UnB, 1986. p. 27-68.

72 GURVITCH, Georges [Org.]. Problemas de sociologia do direito. In: Tratado desociologia. Lisboa: Martins Fontes, 1977, v. 2. p. 256-257.

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3.3 Os Movimentos Sociais como Fonte de Produção Juridica 15 5

cotidiano. O centro de gravitação e de produção jurídica apareceatravés de “pactos setoriais”, “negociações coletivas”, “arranjossócio-políticos” e “convenções norrnativas”, finnadas por identi-dades coletivas e por associações voluntárias, que “passam a serencaradas como fontes do Direito ntun certo sentido prevalecentee não subordinado ao formalismo das fontes chamadas formais°”3.Naturalmente que a conseqüência dessa assertiva é, como escre-ve Luiz Femando Coelho, o “deslocamento do lugar geométricoda soberania”74 representado pelo Estado, ou seja, é a transfonna-ção do Estado como núcleo exclusivo e absoluto do podersocietário. Encarar o Estado sob novas funções implica não vê-locomo tutor permanente da Sociedade e detentor único do mono-pólio de criação jurídica, mas, agora, como simples instânciamandatária da comunidade, habilitada a prestar serviços a tunaordem pública plenamente organizada pelo exercicio e pela parti-cipação da cidadania individual e coletiva”.

Tal compreensão permite ainda aferir que a vida cotidiana”presente nas sociedades periféricas do Capitalismo atual, marcadapela produção e circulação de bens e serviços, detennina profun-das mudanças de valores e de ordenação social, favorecendo acriação de novos padrões nonnativos, novos conceitos juridicos.Nesta conjuntura de transformações paradigmáticas, onde as re-lações materiais alargam e impõem limites ao “jurídico”, a pró-pria utopia, na assertiva de José Reinaldo L. Lopes, funciona comohorizonte de sentido. Logo, a “autonomia relativa” dos sujeitoscoletivos decorre exatamente da “possibilidade de expressar nãoapenas aquilo que é, como aquilo que se deseja, ou se sonha”".Certamente, tem razão o jurista paulista, pois conceber limites

73 COELHO, Luiz Femando, 1986, op. cit., p. 291.” Idem.75 WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma critica do Estado. Porto Ale-

gre: Sergio A. Fabris, 1990. p. 43, 58-59.7° Encontrando subsídios em Agnes Heller, vida cotidiana aqui se define como ações

e práticas humanas de cada dia, experiências históricas de vida em sua dimensão diária,subjetiva, familiar, profissíonal, pública, individual e coletiva. É a existência da realidadecomum: vida privada, trabalho, lazer, relações sociais etc.

77 LOPES, José Reinaldo de Lima. Mudança social e mudança legal: os limites docongresso constituinte de 87. In: FARIA, José Eduardo [Org.]. A crise do direito numasociedade em mudança. Brasília: UnB, 1988. p. 110 e 118.

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1 56 As roNTEs DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

para se pensar o “novo”, esses limites estão circunscritos na pró-pria materialidade da vida cotidiana.

Os limites de atuação dos sujeitos sociais estão configuradosna própria materialidade que envolve as necessidades e os inte-resses reivindicados, fatores que constituem, hoje, o conteúdoespontâneo e autêntico de uma das formas de fontes jurídicasmateriais. Ainda que possa haver resistência por parte da culturaoficial dominante, a comprovação desses sintomas plurais de “le-galidade paralela” torna-se, na atualidade, gradativamenteinconteste e por demais evidente. Prova disso está nas condiçõesparticulares vivenciadas pelo processo sócio-político dos paísesperiféricos de industrialização tardia como o Brasil, em cuja di-nâmica registra-se o fenômeno, apontado por Celso F. Campilongo,da “fragmentação de interesses, a corporativização da sociedadee as agregações transitórias”. Tais situações inéditas e/ouemergenciais, segundo o autor, “abrem espaços para fonnas maisflexíveis, informais, específicas e passageiras da legislação. Con-tratos coletivos, pactos setoriais, acordos internacionais etc. sãosinais de um novo padrão de legalidade que rompe com o mono-pólio estatal da produção normativa (...)”78.

Tendo em conta que a relação nonnativa e o conteúdo essenci-al das relações jurídicas são extraídos do contexto social e repro-duzidos na materialidade cotidiana em permanente processo deínteração, torna-se, presentemente, uma contingência natural re-conhecer, nos movimentos sociais, uma fonte “não-estatal” gera-dora de direitos emergentes e autônomos.

As novas exigências, necessidades e conflitos em espaços so-ciais e políticos frag1nentados,tensos e desiguais, envolvendo clas-ses, grupos e coletividades, importam na utilização de novos pro-cedimentos, novas formas do agir comunicativo e do entendimento.E nesse interregno que aparece novas identidades coletivas capa-zes de introjetar direitos que não passam nem pela positivaçãoestatal nem pelas instituições representativas convencionais”.

73 CAMPILONGO, Celso F. Constituinte e representação política. In: FARIA, JoséEduardo [Org.]. op. pit., p. 98.

7° Cf. CAMPILONGO, Celso F., 1987, op. cit., p. 103. Observar: FARIA, José Eduar-do. Justiça e conflito: os juizes em face dos novos movimentos sociais. São Paulo:Revista dos Tribunais, 1991. p. 39-41 e 44.

3.3 Os Movimentos Sociais como Fonte de Produção Juridico 1 57

Trata-se do pluralismo de formulações jurídicas provenientes dire-tamente da comunidade, emergindo de vários e diversos centros deprodução normativa, adquirindo um caráter múltiplo, informal emutável. A validade e a eficiência desse “Direito comunitário”, quenão se sujeita ao formalismo a-histórico das fontes tradicionais (leiescrita e jurisprudência dos tribunais), estão embasadas nos critéri-os de uma “nova legitimidade” gerada a partir de valores, objetivose interesses do todo comunitário, e incorporados através damobilização, da participação e da ação compartilhada.

Atesta-se, assim, a elucidação de Eunice Durham, sobre aobrigatoriedade de novos tipos de mecanismos de legitimação eeficácia social, porquanto, “nos movimentos sociais, de modogeral, a passagem do reconhecimento da carência para a fonnula-ção da reivindicação é medida pela afirmação de um direito (...).A transformação de necessidades e carências em direitos, que seopera dentro dos movimentos sociais, pode ser vista como umamplo processo de revisão e redefinição do espaço da cidada-nia”8°. Vive-se, por conseguinte, a partir da criação dos movi-mentos sociais, a dinâmica reedificadora de um novo tipo de ci-dadania, concebido “por um conjunto de direitos, tomados comoauto-evidentes, que é pressuposto da atuação política e funda-mento de avaliação da legitimidade do poder”81.

As evidências e os indícios ora enfatizados apontam para ainstituição de uma fonna pluralista de se fazer e de se pensar o“juridico”, rompendo drasticamente com o paradigma hegemônicoda legalidade estatal instituída.

A partir de interesses cotidianos concretos e necessidades his-tóricas, intemalizadas por sujeitos sociais que têm consciência,percepção, sentimento, desejo e frustrações, emerge nova con-cepção de juridicidade que não se identifica com os direitos esta-tais consagrados nos códigos e na legislação dogmática. Impõe-se, assim, não mais um direito desatualizado, estático, ritualizadoe eqüidistante das aspirações da coletividade, mas “direitos” vi-vos referentes à subsistência, à saúde, à moradia, à educação, ao

3° DURHAM, Eunice Ribeiro. Movimentos sociais - a construção da cidadania. NovosEstudos CEBRAP, São Paulo. n. 10, p. 29, Out./1984.

8' Idem, ibidem. p. 29.

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158 As FONTES DE PRODUÇÃO NA Novx CULTURA JURÍDICA

trabalho, à segurança, à dignidade humana etc. Esses “direitoscomunitários” têm sua eficácia na legitimidade dos múltiplos “cor-pos intermediários” existentes na sociedade, cabendo a primaziaâ representação dos movimentos sociais. E inegável a presença ea interferência dos movimentos sociais para dar eficácia a novalegalidade, uma legalidade autêntica e autônoma capaz não só deredefinir democraticamente as regras institucionais de convivên-cia, mas também de influenciar, reordenar e alterar os critériosque fundamentam o Direito Estatal moderno.

Prosseguindo ao desdobramento das fontes não-estatais deprodução infonnal e autônoma, descrever-se-á como se desen-vglve - na contextualização do pluralismo jurídico, em cujo es-paço paradigmático privilegiam-se os movimentos sociais - a com-posição de “novos” direitos que nascem de necessidades huma-nas fundamentais. E 0 que se verá na etapa seguinte da discussão,ou seja, a afinnação de “direitos comunitários” advindos de su-jeitos coletivos insurgentes e de suas práticas reivindicatórias emtorno de carências, necessidades e direitos.

3.4 Necessidades como Fator de Validade de “Novos ” Direitos

Tendo presente, até aqui, que os pólos geradores da produ-ção jurídica são encontrados na própria sociedade, nada maispertinente do que, no avanço das delimitações do marco teóricoem questão (pluralismo comunitário-participativo), sublinhar oprocesso de constituição da normatividade em função do desen-volvimento, contradições, interesses e necessidades dos atoressociais interagentes. Este direcionamento ressalta a relevânciade se buscarem fonnas plurais de fundamentação para a instân-cia da juridicidade, contemplando uma construção comunitáriasolidificada na plena realização existencial, material e culturaldo ser humano. Trata-se, principalmente, daqueles sujeitos que,na prática cotidiana de uma cultura político-institucional e deum modelo sócio-econômico particular (espaço societário bra-sileiro), são atingidos na sua dignidade pelo efeito perverso einjusto das condições de vida impostas pelo alijamento do pro-cesso de participação e desenvolvimento social, e pela repres-

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3.4 Necessidades como Fator de Validade de “Novos " Direitos 159

são e sufocamento da satisfação das mínimas necessidades. Nasingularidade da crise que atravessa o imaginário instituído eque degenera as relações da vida cotidiana, a resposta para trans-cender a exclusão e as privações provêm da força contingentede novos agentes coletivos que, por vontade própria e pela cons-ciência de seus reais interesses, são capazes de criar e instituirnovos direitos. Assim, as contradições de vida experimentadaspelos diversos grupos voluntários e movimentos coletivos, ba-sicamente aquelas condições negadoras da satisfação das ne-cessidades identificadas com a sobrevivência e a subsistência,acabam produzindo reivindicações que exigem e afirmam direi-tos. Não há dúvida de que a situação de privação, carência eexclusão constituem a razão motivadora e a condição de pos-sibilidade do aparecimento de direitos. Os direitos objetivadospelos sujeitos coletivos expressam a intennediação entre neces-sidades, conflitos e demandas.

Mais exatamente, com o aprofundamento da questão, há quese ver, na lógica de desenvolvimento e reprodução da vida ma-terial em sociedades periféricas (países latino-americanos), comose representa a estrutura das necessidades essenciais. Obviamen-te, para maior rigor conceitual, importa aclarar que a estruturado que se chama “necessidades humanas fundamentais” não sereduz meramente às necessidades sociais ou materiais, mas com-preende necessidades existenciais (de vida), materiais (de sub-sistência) e culturais. Ora, na real atribuição do que possa signi-ficar “necessidade”, “carência” e “reivindicação”, há uma pro-pensão natural, quando se examina o desenvolvimento capita-lista das sociedades latino-americanas, de se enfatizar uma lei-tura “economicista” dessas categorias, ou seja, priorizarem-seas necessidades essenciais como resultantes do sistema de pro-dução. Entretanto, ainda que se venha inserir grande parte dadiscussão das “necessidades” ou “carências” nas condições dequalidade, bem-estar e materialidade social de vida, não se podedesconsiderar as variáveis culturais, políticas, filosóficas, reli-giosas e biológicas. A dinâmica das necessidades e das carênci-as que permeiam o individuo e a coletividade refere-se tanto aum processo de subjetividade, modos de vida, desejos e valoresquanto a constante “ausência” ou “vazio” de algo almejado e

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160 As FONTES DE PRDDUÇÃD NA Nox/A CULTURA JURÍDICA

nem sempre realizávelsz. Por serem inesgotáveis e ilimitadas notempo e no espaço, as necessidades humanas estão em penna-nente redefinição e recriação. Entende-se, assim, a razão de no-vas motivações, interesses e situações históricas impulsionaremo surgimento de novas necessidades. Igualmente, por vezes, _avalidade da satisfação das necessidades humanas fundamentaisresulta na implementação obrigatória daqueles “bens ou meiosque durante muito tempo foram considerados como indispensá-veis (...), como alimentação, saúde, moradia etc.”33.

i As experiências cotidianas dos indivíduos e dos sujeitos cole-tivos, quer por suas próprias relações sociais relativamente autô-nomas, quer pelos influxos ordenadores das instituições, acabamdirecionando as escolhas dos valores, interesses e carências. Pode-se consignar, no lastro de Edison Nunes, que o conjunto das ca-rências enquanto fonnalização de intentos individuais ou coleti-vos, “em sociedades modernas, marcadas pela industrialização,capitalização e pela presença de valores democráticos, ao menoscomo idéia regulativa, (...) apresenta um aspecto pluralista. Valedizer: cada indivíduo deve optar entre determinadas carências emdetrimento de outras, dado que existem inclusive contradiçõesentre carências, bem como a criação de novas carências é umapossibilidade real. Essa escolha, por sua vez, é guiada pela opçãoentre valores, cuja somatória numa sociedade pluralista tambémapresenta inúmeras incongiuências e contradições”84. _

A interação de fatores que permitem práticas reivindicatórias,numa lógica distinta de organização social, está estreitamenteconectada com as fonnas de consciência assumidas por atores co-letivos. Tais sujeitos sociais passam por um processo preliminar devivência objetiva da negação das necessidades e da insatisfação decarências, acabando, tanto por adquirir consciência de seu estadode marginalidade concreta, quanto por constituir uma identidade

32 Cf. NUNES, Edison, 1989, op. cit., p. 68; SADER, Eder. op. cit., p. 43; FALEIROS,Vicente de Paula. A politica social do Estado capitalista. 4. ed., São Paulo: Cortez,1985. p. 25-35.

33 JACQUES,..Manuel. Una concepción metodológica del uso altemativo del derecho.El Otro Derecho. Bogotá, n. l, p. 24, Ago./l988.

3* NUNES, Edison et al. A saúde como direito e como serviço. São Paulo: Cortez,l99l.p.l33.

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3.4 Necessidades como Fator de Validade de “Novos” Direitos 161

autônoma capaz de se autodirigir por uma escolha emancipada quese efetiva em mobilização, organização e socialização. No exameatento das condições, verifica-se a relevância do elemento“conscientização” que está imbricado na contextualização de múl-tiplas identidades participantes, inter-relacionadas com as bases co-munitárias. Não se trata de mobilizações marcadas por relaçõesmecânicas entre necessidades e demandas, carências e reivindica-ções, mas por uma prática humana que necessariamente expressa a“conscientização” de sua condição de historicidade presentess . Nessaperspectiva, é perfeitamente possível entender que os elementosque atingem a mobilização dos segmentos sociais marginalizados eoprimidos não estão apenas vinculados à percepção de necessida-des comuns, mas, sobretudo, à noção essencial da “ausência” dedireitos. O direito aparece aqui como fator articulador que iiiternalizaa passagem da necessidade à reivindicação. Isso projeta o que EuniceDurham caracteriza como amplo processo de alargamento dos ho-rizontes da cidadania, espaço que propicia uma conceituação dojurídico, assentado numa nova legitimidade que é “medida por suacapacidade de respeitar e promover os direitos que a populaçãoestá se atribuindo”36.

Uma constatação histórica de conflitos, lutas e conquistas, queevidenciam necessidades individuais, políticas e sociais e que re-velam a “ausência” e a “negação” da noção básica de direitos, podeser demonstrada na própria fonnação da cidadania. Em largo paiio-rama que se estende sobre diferentes épocas históricas, T. H.Marshall concebe, em seu clássico trabalho Cidadania e ClasseSocial, o avanço lento e gradual da conquista de direitos. De umperíodo que abrange do século XVIII ao século XX, a evolução dacidadania engloba três momentos jurídicos diferenciados quecorrespondem aos valores, interesses e concepções de necessida-des desejadas em cada época: liberdade individual, participaçãopolítica e igualdade sócio-econôniica. Assim, a cidadania comostatus que identifica e integra, em direitos, garantias e obrigações,sujeitos de uma mesma comunidade, emergiu no século XVIII, comoproposta da burguesia triunfante por “novos” direitos necessários à

85 Cf. JACOBI, Pedro. l989a, op. cit., p. ll e 19; _ l989b, op. cit., p. 159.8° DURHAM, Eunice Ribeiro. op. cit., p. 29.

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162 As roNTEs DE i=RoDUÇÃo NA Novâ CULTURA JURÍDICA

liberdade individual. Na sua luta contra a arbitrariedade do poderaristocrático, as necessidades históricas da burguesia cingiain-seaos direitos civis individualizados, como o direito a ser reconheci-do como pessoa, o direito de liberdade, de locomoção, de pensa-mento e o direito de propriedade. Diante das transfonnações ocor-ridas na sociedade burguesa, ao longo do século XIX, tais direitoscivis tomaram-se iiisuficientes e liinitados frente ao “preconceitode classe e à falta de oportunidade econômica” para parcelas emer-gentes e significativas da população. Daí que, diante de “novas”necessidades histórico-políticas, seguiu-se a ampliação dos direi-tos civis através dos direitos políticos. O reconhecimento dos direi-tos políticos se efetiva mediante lutas reivindicatórias diante dasnecessidades por direitos relativos à democratização do sufrágio eà participação dos cidadãos no exercício do poder político. Segun-do Marshall, foi graças ao “aumento da participação nas comuni-dades locais” e ao “interesse crescente pela igualdade como princí-pio de justiça social” que se criaram as condições iniciais para arevelação de direitos sociais mínimos”. No entanto, somente noséculo XX, com o desenvolvimento da educação primária públicae as tentativas de superação das desigualdades do sistema de classeé que se implantam os direitos sociais, complementando o ciclofonnador dos direitos de cidadania.

Refletindo na perspectiva de Marshall, verificar-se-á que as con-dições históricas da sociedade burguesa liberal-capitalista desen-cadearam necessidades conjunturais de época que se afirmaramatravés do direito à liberdade individual (expressa nos direitos ci-vis, do século XVIII), do direito de participação política (direitospolíticos, do século XIX) e do direito à igualdade econômica (di-reitos sociais, do século XX)88. A necessidade e a reivindicação em

87 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.p. 63-70. Sobre a questão dos direitos de cidadania no Brasil, observar: WEFFORT, Fran-cisco C. A cidadania dos trabalhadores. In: LAMOUNIER, B.; WEFFORT, F.;BENEVIDES, M. [Orgs.]. Direito, cidadania e participação. São Paulo: T. A. Queiroz,1981; SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania ejustiça. A política social na ordembrasileira. 2. ed., Rio de Janeiro: Campus, 1987; CARVALHO, José Murilo.Desenvolvimiento de la ciudadania en Brasil. México: Fondo de Cultura Económica,1995; VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 1997.

38 Cf. MARSHALL, T. H. op. cit., p. 75, 83, 87-88. Para a problematização mais recen-te da cidadania em língua espanhola, ver: MARSHALL, T. H.; BOTTOMORE, Toni.

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3.4 Necessidades como Fator de Validade de “Novos " Direitos 163

tomo de direitos civis (direitos por liberdade) denotam uma partici-pação dos atores sociais hegemônicos que constituem liinites à açãoe ao poder do Estado. Já os direitos políticos e sociais surgem nãomais como contenção ao Estado, mas como expressão positiva denecessidades que clamam por participação dos cidadãos. Na verda-de, ainda que se reconheça o grau de avanço representado pelosdireitos civis e políticos, não se pode deixar de ressaltar que muitasnecessidades sociais básicas não estavam aí contempladas. Daí ter-se desenvolvido nos horizontes de lutas, conflitos e demandas, adimensão imperativa por “novos” direitos do homem não mais ex-pressão única de individualidades, mas reflexos de relações e ne-cessidades sociais, envolvendo sujeitos coletivos concretamenteengajados. A afirmação desses “novos” direitos de emilio social éproclamada, não mais para restringir radicahnente o poder estatal,mas para exigir unia certa ação positiva do Estado, objetivandoassegurar e garantir a efetivação de direitos nascidos no âmbito daprópria sociedade. Esses direitos introjetados a partir de carênciasvitais e sociais, obtidos por confrontos e reivindicações permanen-tes, vão exigir, quase sempre, a presença dos poderes públicos paraimplementar as condições necessárias à sua realização. Explícita-se, ademais, que o fundamento da eclosão dos direitos sociais con-temporâneos deve ser encontrado na permanente insatisfação deum corpo social cada vez maior que não consegue saciar as neces-sidades materiais e culturais, geradas pela sociedade industrial demassa e pelo paradigma individualista de cultura política instituí-da. Nesse quadro, tem razão lvo Lesbaupin, que, reforçando o pre-sente argumento, assinala que é somente em função das necessida-des humanas fundamentais “que o conteúdo dos direitos são esta-belecidos. Por essa razão, os direitos sociais não são uma lista com-pleta e acabada, pois novas situações históricas permitem aparecernovas necessidades, novos direitos enfim”89.

Ciadadaniay clase social. Madrid: Alianza Editorial, 1992; CORTINA, Adela. Ciudadanosdel mundo. Hacia una teoria de la ciudadania. Madrid: Alianza Editorial, 1999.

89 LESBAUPIN, Ivo. As classespopulares e os direitos humanos. Petrópolis: Vozes,1984. p. 67-68. Sobre o terna do “Direito e das necessidades”, vide: ROIG, María J .Anõn. Necesidadesy derechos. Un ensayo de fiindamentación. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionales. 1994; GUSTIN, Miracy B. S. Das necessidades humanas aos direitos:ensaio de sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

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164 As FONTES DE PRODUÇÃO NA NOVA CULTURA JURÍDICA

Concretamente, O que se pode afinnar é que toda essa tradiçãolinear de afirmação e conquistas de direitos a partir de necessida-des por liberdade individual, participação política e maior igual-dade econômica se processou na maioria das democracias repre-sentativas das nações centrais industrializadas do Ocidente capi-talista. Sob os influxos de um legado progressivo, advindo dosprincípios da modemidade iluminista, dos ideais de racionalidadeformal e da plena cidadania democrática, os países do PrimeiroMundo em grande parte já conseguiram O reconhecimento e agarantia dos direitos civis, políticos e sociais básicos. Tais con-quistas dos direitos de primeira, segunda e terceira gerações per-mitem que, hoje, as democracias burguesas avançadas caminhempara a materialização dos chamados direitos de quarta e quintagerações. A prioridade das nações pós-industrializadas não sãomais os direitos políticos e sociais minimos, mas a materializaçãononnativa de suas necessidades por segurança e consumo. Daí arazão de suas lutas e reivindicações por direitos difusos, direitosdas minorias e direitos relativos à proteção ambiental, ao desar-mamento, direitos à bioética e à engenharia genética etc.

Ao contrário das condições sociais, materiais e culturais rei-nantes nos países centrais do Primeiro Mundo, nas sociedadeslatino-americanas as reivindicações se dão, sobretudo, no nívelde direitos civis, políticos e sociais. Assim, as demandas e as lu-tas históricas, na América Latina, têm como objetivo aimplementação de direitos em função das necessidades de sobre-vivência e subsistência da vida. Muitos dos direitos reivindica-dos, de dimensão fonnal e material, apresentam-se intemalizados,pois alguns ainda nem sequer foram consagrados concretamente,outros já foram admitidos oficialmente mas sem efetividade prá-tica. Por conseguinte, a mobilização dos segmentos sociais opri-midos e excluídos dos direitos implica tanto a luta para tomarefetivos os direitos proclainados e concebidos formalmente (nãosão garantidos e nem aplicados) quanto a exigência para impor“novos” direitos que ainda não foram contemplados por órgãosoficiais estatais e pela legislação positiva institucional. Por isso,em países comoo Brasil, marcados por um cenário de dominaçãopolítica, espoliação econômica e desigualdades sociais, nada maisnatural que configurar a pluralidade pennanente de conflitos, con-

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3.4 Necessidades como Fator de Validade de “Novos " Direitos 165

tradições e demandas por direitos. Direitos calcados em necessá-rias prerrogativas de liberdade e segurança (tradição de govemosautoritários, violência urbana, criminalidade, dificuldades de aces-so à justiça etc.), de participação política e democratização davida comunitária (restrições burocráticas, poder econômico diri-gente e O papel da mídia na condução dos processos eleitoral-participativos) e, finalmente, de direitos básicos de subsistência ede melhoria da qualidade de vida.

Neste espaço de sociedades divididas em estratos sociais cominteresses profundamente antagônicos, instituições político-jurí-dicas precárias, emperradas no fonnalismo burocrático e movi-das historicamente por avanços e recuos na conquista de direitos,nada mais significativo do que constatar que o pluralismo dessasmanifestações por “novos” direitos é uma exigência contínua daprópria coletividade frente às novas condições de vida e às cres-centes prioridades impostas socialmente. Naturalmente, as mu-danças e a evolução no modo de viver, produzir, relacionar e con-sumir de indivíduos, grupos e classes podem perfeitamente deter-minar anseios, desejos e interesses que transcendem os limites eas possibilidades do sistema, propiciando situações de privação,carência e exclusão.

Tomando em conta a contextualização do cenário periféricolatino-americano e brasileiro, há de se convir que a tônica dasreivindicações e das demandas, legitimadas pelos sujeitos histó-ricos, pelos múltiplos segmentos populares e comunidades inter-mediárias, incidem em direitos à vida, ou seja, direitos básicos deexistência e de vivência com dignidade. Tais direitos, sem deixarde refletir a dimensão personalizada e política, afirmam-se, so-bretudo, como direitos materiais e sociais. Isso se deve à percep-ção de que os oprimidos, pobres e marginalizados socialmente“(...) encontram-se às voltas com problemas básicos de sobrevi-vência: desde a dificuldade de encontrar emprego, a exploraçãono trabalho, os baixos salários, a carestia, até a conservação dasaúde, (...)”. Trata-se de direitos relacionados às “necessidadessem as quais não é possível 'viver como gente': trabalho, remu-neração suficiente, alimentação, roupa, saúde, condições infra-

9° LESBAUPIN, Ivo. op. cit., p. 164.

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166 As PONTES DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

9estruturais (água, luz etc.), educação, lazer, repouso, férias etc. ”'.Essa especificidade explica a razão de a maioria das ações coleti-vas se organizarem e se mobilizarem para a implementação de“novos” direitos, pois, quase sempre, estão em busca de “neces-sidades não atendidas, com seus direitos desrespeitados, excluí-da, de fato, a cidadania”92.

Ainda que os chainados direitos “novos” nem sempre sejaminteiramente “novos”, na verdade, por vezes, O “novo” é O modode obtenção de direitos que não passam mais pelas vias tradicio-nais - legislativa e judicial -, mas provêm de um processo delutas e conquistas das identidades coletivas para O reconhecimen-to pelo Estado. Assiin, a designação de “novos” direitos refere-seâ afirmação e materialização de necessidades individuais (pesso-ais) ou coletivas (sociais) que emergem infomialmente em toda equalquer organização social, não estando necessariamente pre-vistas ou contidas na legislação estatal positiva.

O lastro de abrangência dos “novos” direitos, legitimados pelaconsensualidade de forças sociais emergentes, não está rigida-mente estabelecido ou sancionado por procedimentos técnico-for-mais, porquanto diz respeito a direitos concebidos pelas condi-ções de vida e pelas exigências de run devir, direitos que “só seefetivam, se conquistados”93.

Certamente, pode-se descortinar a partir de algumas necessi-dades imperiosas, justas e indispensáveis, a justificativa para aeficácia e a legitimidade dos direitos de novo tipo. Dentre alguns,ITl€I1C10I1ElI'l'l-S62

a. Direito a satisfazer as necessidades existenciais: alimenta-ção, saúde, água, ar, segurança etc.;

b. Direito a satisfazer as necessidades materiais: direito à ter-ra (direito da posse, direito dos sem-terra), direito à habitação

9' Idem, ibidem.°2 Idem, ibidem...‹op. cit., p. 165.93 DEMO, Pedro. Participação e' conquista. São Paulo: Cortez, 1988. p. 61. Ver

também: ALDUNATE, José [Coord.]. Direitos humanos, direitos dos pobres. São Pau-lo: Vozes, 1991. p. 191.

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3.4 Necessidades como Fator de Validade de “Novos” Direitos 167

(direito ao solo urbano, direito dos sem-teto), direito ao trabalho,ao salário, ao transporte, à creche etc.;

c. Direito a satisfazer as necessidades sócio-politicas: direitoà cidadania em geral, direito de participar, de reuriir-se, de associ-ar-se, de sindicalizar-se, de locomover-se etc.;

d. Direito a satisfazer as necessidades culturais: direito à edu-cação, direito à liberdade de crença e religião, direito à diferençacultural, direito ao lazer etc.;

e. Direito a satisfazer as necessidades difusos: direito à pre-servação ecológica, direito de proteção ao consumo etc.;

f. Direito das minorias e das diferenças étnicas: direito damulher, direito do negro, do índio, da criança e do idoso94.

Essa conjunção tipológica, é claro, objetiva dar certa sirigulari-dade expositiva e uniformizadora, uma vez que tais direitos atra-vessam um mesmo espaço público, em cujo cenário de necessida-des e interesses adquirem, ora mais, ora menos prioridade. Namultiplicidade de experiências e práticas de acesso para detennina-da espécie de direito, a eficácia do procedimento dependerá do de-sejo consciente e do grau de carência, calcado numa ação coletivaorganizada por segmentos sociais excluídos e marginalizados.

Não se trata, ademais, de evocar O que está na sistematizaçãodo legal ou na aprovação nonnativa do “instituído”, mas configu-rar nova ordenação político-jurídica pluralista, duradouramenteredefinida na minimização das insatisfações e na plena vivênciade “direitos comunitários”. Direitos comunitários que se impõemcomo exigência de Luna vida compartilhada que vai dialeticamentese constituindo. Afinal, nesse processo de afirmação de “novos”

94 Esta tipologia dos direitos como mediação das necessidades reivindicadas foi ela-borada a partir das contribuições de: DEMO, Pedro. Participação é conquista São Pau-lo: Cortez/Autores Associados, 1988. p. 63; JACQUES, P. Manuel. Una concepciónmetodológica del uso alternativo del derecho. El Otro Derecho. Bogotá, n. l, p. 23-24,Ago./ 1988; LESBAUPIN, Ivo. As classes populares e os direitos humanos. Petrópolis:Vozes, 1984. p. 95-158.

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168 As FONTES DE PRODUÇÃO NA NovA CULTURA JURÍDICA

direitos, fundados na legitimidade de ação dos novos sujeitos co-letivos, a inscrição plural e cotidiana do “jurídico” alcança umahumanização mais integral. Ademais, nos marcos de configura-ção da vida associativa, enquanto contingência interativa históri-co-social, que se pauta pela finalidade e direção de realizar o “hu-mano” em sua dimensão existencial, material e cultural, a emana-ção do direito vivo não se revelará como mera atribuição de umanatureza imutável ou de um a-priori 'racional-metafisico, mas es-sencialmente, das exigências reais de uma práxis social”.

A imprevisibilidade, a autenticidade e a autonomia que trans-gride e escapa do “instituído” deve ser redimensionada numpluralismo comunitário-participativo, cuja fonte de direito é opróprio homem projetado em suas ações coletivas, intemalizadorasda historicidade concreta e da liberdade emancipada. Com efeito,a formação de sujeitos coletivos e a ampliação de focos de podersocial autodeterminados, num espaço de “invenção democráti-ca”, processam-se, concomitantemente, com a “subversão contí-nua do estabelecido”, com a “reivindicação permanente do sociale do político” e “a criação ininterrupta de novos direitos”9°, direi-tos que se vão refazendo na circunstancialidade das situações,direitos que se vão definindo a cada momento.

E neste sentido, e por estas razões, que se pretendeu pôr em evi-dência, até este momento, detemiinadas formulações mais genéricasdo fenômeno jurídico, tendo presente a historicidade burguês-capita-lista de nossa latinidade. Procurou-se, ademais, passar a idéia de quea superação das fontes de produção legal ligadas à cultura liberal-individualista, tradicionalmente centradas no monopólio do poderestatal e mediatizadas por algumas instituições representativas con-vencionais em crise, dar-se-á por meio do desenvolvimento de umparadigma altemativo embasado num pluralismo compartilhado cons-tituido por novas subjetividades participativas, que reinventam, pormeio de suas práticas cotidianas, a esfera da vida pública.

Esses fatores permitem o firme avanço na construção de umparâmetro cultural diferenciado que se examinará em seguida.

°5 Cf. ALDUNATE, José [Coord.]. op. cit., p. 95, l9l e 195.9° LEFORT, Claude. A invenção democrática. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. ll e

55-69.

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Capítulo IVPluralismo jurídico:projeção de um marco de alteridade

Introdução

Nos marcos da crise dos valores e do desajuste institucionaldas sociedades periféricas de massa, da estruturação das novasformas racionais de legitimação da produção capitalistaglobalizada e de saturamento do modelo liberal de representaçãopolítica e do esgotamento do instrumental jurídico estatal, nadamais correto do que empreender o esforço para alcançar outroparadigma de ftmdamentação para a cultura política e jurídica.

A edificação da nova instância de norrnatividade social serácapaz de abrir um horizonte que realmente transcenda as fonnasde dominação da modemidade burguês-capitalista e de suaracionalidade fonnal impeditiva do “mundo da vida”. Sobretudo,é de se repensar a racionalidade não mais como projeto de totali-dade acabada e uniforme, mas como constelação que se vai refa-zendo e que engloba a proliferação de espaços públicos, caracte-rizados pela coexistência das diferenças, bem como a diversidadede sistemas jurídicos circunscrita à multiplicidade de fontesnormativas infonnais e difusas. Tal tendência, que aponta para aimperiosidade de se construir um corpo teórico novo, legitima-sea partir de práticas cotidianas disseminadas e interagentes comnovos atores sociais. Obviamente que esse escopo impele a umaopção estratégico-metodológica que, diante do quadro configura-do, favorece, mais do que nunca, retrabalhar as coordenadas dopluralismo enquanto sistema de referência que expressa o refluxo

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170 PLURAr1sMo JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCo DE ALTERIDADE

da política e do jurídico - quer sob a esfera estrita de run pluralismojurídico, quer sob o ângulo mais amplo de um pluralismo societáriode base democrático-participativo.

Percebe-se, assim, que a crise do modelo normativo estatizantepropicia, gradualmente, amplas possibilidades para o surgimentode orientações “prático-teóricas” insurgentes e paralelas que ques-tionam e superam o reducioriismo doginático-positivista represen-tado pela ideologia moiiista centralizadora. Por conseqüência, re-pensar a questão do “pluralismo” nada mais é do que a tentativa debuscar outra direção ou outro referencial epistemológico que aten-da à modemidade na virada do século XX e nos primórdios donovo milênio, pois os alicerces de fundamentação - tanto das Ciên-cias Humanas quanto da Teoria Geral do Direito - não acompa-nham as profundas transformações sociais e econômicas por quepassam as sociedades políticas pós-industriais e as sociedades deindustrialização tardia. A crise de racionalidade formal e as novascondições globais das forças produtivas capitalistas, que permeiama complexa cultura burguesa de massas, estendem-se ao sabersacralizado e hegemônico das estruturas lógico-formais que man-têm os envelliecidos padrões de legalidade estatal. Daí a perspecti-va de crítica teórica e construção de uma práxis normativasedimentada em “novo” tipo de pluralismo. Trata-se da compreen-são do pluralismo como marco de ruptura e denúncia dos mitossacralizados do instituído e como expressão mais direta dos reaisinteresses e exigências da experiência interativa liistórico-social.Evidentemente que a formulação do “pluralismo”, como paradigmaaltemativo no âmbito da cultura jurídica, pressupõe pensar e ade-quar a proposta “prático-teórica” tendo em conta as condições exis-tenciais, materiais e culturais refletidas pela globalidade sócio-po-lítica estudada. Sendo assim, o pluralismo jurídico deve servisualizado tanto como fenômeno de possibilidades e dimensõesde universalidade cultural, quanto como modelo que incorporacondicionantes inter-relacionados (formal e material) adequado àsespecificidades e às condições históricas de micro e macro socie-dades políticas. Na análise de sociedades periféricas como a latirio-americana, marcada por instituições frágeis, histórica exclusão deseu povo e secular intervencionismo estatal, toma-se imperiosa aopção por um pluralismo inovador, um pluralismo jurídico inseri-

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Introdução 17 1

do nas contradições materiais e nos conflitos sociais e, ao mesmotempo, determinante do processo de práticas cotidianas insurgen-tes e do avanço da “auto-regulaçäo” do próprio poder societário. Onovo pluralismo jurídico, de características participativas, é conce-bido a partir de uma redefinição da racionalidade e uma nova ética,pelo refluxo político e jurídico de novos sujeitos - os coletivos; denovas necessidades desejadas - os direitos construídos pelo pro-cesso histórico; e pela reordenação da sociedade civil - adescentralização nonnativa do centro para a periferia; do Estadopara a Sociedade; da lei para os acordos, os arranjos, a negociação.E, portanto, a dinamica interativa e flexível de um espaço públicoaberto, compartilhado e democrático.

Visando a explicação e ao avanço do “novo” pluralismo jurídi-co como o principal referencial teórico desta análise, há de se des-dobrar a temática em quatro etapas diferenciadas. Em um primeiromomento, assinalam-se aspectos relativos à natureza e à

' ' CG ' . ~ ;especificidade do pluralismo” em geral, sua conceztuaçao filoso-fica, sociologica e politica, alguns de seusprincipais valores eprin-czpzos, suas modalidades e questoes envolvendo sua nova forrnula-çao. No segundo momento, far-se-á uma revisão histórica docs ' - r - A - . ,., A .pluralismo jiuidico” no ambito da tradiçao academica de cunhofilosofico, sociologico e antropologico. Na parte seguinte da pes-quisa, examinam-se algumas das possibilidades e limites dopluralismo na esfera da cultura juridica contemporânea, perpassaii-do pelas causas ”, “objetivos ”, “classificação ”, “caracterização ”,“natureza das objeções ” e as distinções entre o pluralismojuridicoe a pluralidade de ordenainentos jurídicos. Por fim, na última etapado capítulo, desenvolvem-se os fundamentos da proposta de(6 ° Ú I 0 0 I' o ni o 0 , .pluralismo juridico comunitario-participativo ” como referencialas f ' f ' aspratico-teorico de uma nova cultura, descrevendo seus elemen-tos de “efetividade material” e de “efetividade formal”.

4.1 Natureza e Especiƒicidade: o Pluralismo em Questão

Ao contrário da concepção unitária, homogênea ecentralizadora denominada de “monismo”, a formulação teóricae doutrinária do “pluralismo” designa a existência de mais de uma

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172 Pruiuirismo JURÍDICO: PROJEÇÃO DE um MARCO DE ALTERIDADE

realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidadede campos sociais com particularidadeprópria, ou seja, envolveo conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneosque não se reduzem entre si. O pluralismo enquanto concepção“filosófica” se opõe ao unitarismo deterininista do materialismoe do idealismo modemos, pois advoga a independência e a inter-relação entre realidades e princípios diversos. Parte-se do princí-pio de que existem muitas fontes ou fatores causais para explicarnão só os fenômenos naturais e cosmológicos, mas, igualmente,as condições de historicidade que cercam a própria vida humanal.A compreensão filosófica do pluralismo reconhece que a vida hu-mana é constituída por seres, objetos, valores, verdades, interes-ses e aspirações marcadas pela essência da diversidade, fragmen-tação, circunstancialidade, temporalidade, fluidez econflituosidade. Igualmente, pode-se afinnar, com N. Glazer, queo pluralismo “cultural” implica um “estado de coisas no qual cadagrupo étriico mantém, em grande medida, um estilo próprio devida, com seus idiomas e seus costumes, além de escolas, organi-zações e publicações especiais”. O pluralismo, enquanto“multiplicidade dos possíveis”, provém não só da extensão dosconteúdos ideológicos, dos horizontes sociais e econômicos, mas,sobretudo, das situações de vida e da diversidade de culturas?

Avançando na explicitação conceitual, deve-se admitir que opluralismo “sociológico” e “político” emerge como estratégiadescentralizadora em face do moderno monismo social e da teo-ria da soberania estatal. O pluralismo “sociológico” se consolidana medida em que socialmente se ampliam os papéis, as classes eas associações profissionais no âmbito da sociedade industrial.Mais precisamente, como escreve Nicola Matteucci, o pluralismo“sociológico” tem suas origens “na defesa que Montesquieu fazdos corpos interniediáiios, como elementos de mediação políticaentre o indivíduo e o Estado, ou na exaltação feita por Tocqueville

l Cf. FERRATER MORA, José. Verbete: Pluralismo. Diccionario defilosofia. Bar-celona: Alianza, 1982. p. 2605-2606; KARIEL, Hemy S. In: Enciclopedia Internacio-nal de Ciencias Sociales. Madrid: Aguilar, 1976, v. 8. p. 228-232.

2 LEISERSON, Avery. Pluralismo. In: SILVA, Benedicto da [Coord.]. Dicionário deciências sociais. Rio de Janeiro: FGV/MEC, l986. p. 903-904.

3 Cf. ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos epoder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 263.

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4.1 Natureza e Especificidade: 0 Pluralismo em Questão 173

das associações livres, consideradas como as únicas capazes detomar o cidadão apto a se defender da maioria soberana e oriipo-tente”4. Já Robert Nisbet vai mais longe ao proclamar que o ad-vento do modemo pluralismo social deve ser encontrado na obrado jurista Joharmes Althussius, um crítico contumaz do absolu-tismo estatal soberano e adepto de inn federalismo constituídopor grupos reais, faniílias, igrejas, comunidades e associaçõess.

Quanto ao pluralismo “político”, sua territorialidade incorpo-ra proposições que se pautam pela rejeição de toda e qualquerfonna de concentração e unificação do poder ou força de açãomonolítica (política, ideológica ou econômica). O pluralismo “po-lítico”, enquanto diretriz histórico-estratégica ou modo de análiseassentado em práticas de direção descentralizadas, realça a exis-tência de um complexo corpo societário formado pelamultiplicidade de instâncias sociais organizadas e centros autô-nomos de poder, que, ainda que antagôriicos ou mantendo confli-tos entre si, objetivam restringir, controlar ou mesmo erradicarfonnas de poder unitário e hegemônico, principalmente a modali-dade suprema de poder corporificado no Estadofi. Para além dopluralismo “político” - entendido como variedade de partidos emovimentos políticos que “disputarn entre si, através do voto oude outros meios, o poder na sociedade e no Estado” -, NorbertoBobbio recorihece, levando em conta a experiência da sociedadeitaliana, a presença também do pluralismo “econômico” e “'ideo-lógico”. O pluralismo “econômico” revela-se na concomitânciade setores públicos da economia de mercado e no fluxo diferenci-ado de indústrias privadas que concorrem entre si. Sobre opluralismo “ideológico”, Bobbio associa-o às “diversas orienta-ções de pensamento, diversas visões de mundo, diversos progra-mas políticos (...), não unifonnesl.

Parece claro que o esforço do pluralismo está voltado para aedificação de um espaço social de mediação que se contraponha

4 MATTEUCCI, Nicola. Soberania. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário depoli-tica. Brasilia: UnB, 1986. p. ll86.

5 Cf. NISBET, Robert. Os filósofos sociais. Brasília: UnB, 1982. p. 393-400.6 Cf. BOBBIO, Norberto et al., Pluralismo, op. cit., p. 928.7 BOBBIO, Norberto. Ofutnro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p.

59-60.

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174 PLURALISMO JURi'D1CO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

aos extremos da fragmentação atomista e da ingerênciadesmensurada do Estado. Desse modo, enquanto prevalência decorpos sociais intermediários, o pluralismo tem sempre sua lutaarticulada contra O “estatismo” e o “individualismo”. Ainda queO pluralismo possa aproximar-se do individualismo, porquantoimplica O direito particular à autonomia e à diferença, ambos nãose confundem. Diferentemente do individualismo, a dimensãopluralista não se limita a conclamar à realização estritamente par-ticular de cada um, mas sim à particularidade de cada um comuma diferenças.

Ao descrever a realidade integral do princípio pluralista, GeorgesGurvitch identifica três sentidos nitidamente distintos, abrangendoo pluralismo como “fato”, como “ideal” e como “técnico”. Opluralismo como “fato” é observável em toda e qualquer socieda-de. Toda sociedade envolve sempre “um microcosmo de agrupa-mentos particulares se limitando, se combatendo, se equilibrando,se combinando hierarquicamente num conjunto global e se penni-tindo as combinações mais variadas, condicionadas pelas situaçõeshistóricas”9. A matéria fiindamental desse pluralismo de “fato” é avida social posta pela tensão e pelo equilíbrio entre os diversosgrupos. O pluralismo como “ideal” compreende, para Gurvitch, aliberdade humana coletiva e individual, definida através da hanno-nia recíproca entre os valores pessoais e os valores de grupo, sinte-tizada pela equivalência democrática de corpos sociais autônomose pessoas livres. Trata-se, na integração fratema e democrática, devalores intercalados entre a variedade e a unidade. Cabe aopluralismo “téciiico” enquanto método especial a serviço de umideal, O esforço para implementar a liberdade humana e os valoresdemocráticos, contribuir para O enfraquecimento do Estado e ser-vir aos interesses gerais em seus múltiplos aspectos”.

No exame genérico do pluralismo, certos “principios”valorativos são primordiais para a completa captação de sua natu-reza e especificidade. Para tanto, levando em conta algumas ca-

* Cf. ANSART,__Pierre, op. cit., p. 172-173.9 GURVITCH, Georges. La déclaration des droits sociaux. New York: La Maison

Française, 1944. p. 66-67.1° Idem, ibidem. p. 68-71.

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4.1 Natureza e Especnficidade: o Pluralismo em Questão 175

racterizações assinaladas por R. Nisbet, R. Wolff e P. Ansart, po-demos distinguir alguns “traços valorativos” do pluralismo emgeral, tais como: “autonomia”, “descentralização”, “participação”,“localismo”, “diversidade” e “tolerância”. A “autonomia” refere-se ao poder intrínseco que os movimentos coletivos ou associa-ções profissionais, econômicas, religiosas, familiares e culturaispossuem independentemente do poder governamental. A eficáciadesses grupos ou associações voluntárias dependerá do grau deliberdade de suas articulações e mobilizações em função de lutasque obj etivarn reivindicações idealizadas. A “autonomia” se ma-nifesta não só diante do poder do Estado mas no próprio interiordos vários interesses particulares, setoriais e coletivos. Por suavez, a “descentralização” enquanto valor pluralístico sigiiifica oprocesso em que o exercício do poder político-administrativo sedesloca de instituições foniiais unitárias para esferas locais e frag-mentadas. Trata-se da mobilização de formas de administraçãode pequena dimensão e da articulação mais íntima com as múlti-plas necessidades dos novos sujeitos coletivos. Isso implica adescentralização de funções e recursos visando a melhorredistribuição de competências e maior fortalecimentoparticipativo das inúmeras identidades locais. O mérito da“descentralização” está em reforçar os espaços de pofder local eampliar a “participação” dos corpos intermediários”. E indiscutí-vel que a “descentralização” acaba tomando-se a condição neces-sária para impulsionar a dinâmica interativa da própria “partici-pação”. Ora, se a cultura monista se desenvolve numa tradição deprocedimentos representativos, o pluralismo comunitário propi-cia mais diretamente a prática da paiticipação de base. O plenofuncionamento de uma sociedade constituída por núcleos dispersos

“ Sobre a “descentralização”, verificar: JACOBI, Pedro. Descentralização municipale participação dos cidadãos: apontamentos para O debate. Lua Nova. São Paulo, ri. 20, p.125-141., Maio/1990; NEVES, Gleisi H. Descentralização territorial nos municípios: cri-térios e cuidados. Revista de Administração Municipal. Rio de Janeiro, n. 183, p. 36-46.Abr./Jun. 1987; MONCAYO, Héctor Leon. “Dccentralization as a formula fordemocratizacion: the case of Colombia” e HALDENWANG, Christian von. “Towards apolitical science approach to deccntralization”. In: Mas alla del derecho/Beyond Law.Bogotá, n. 2, p. 19-57 e 59-83, 1991. Sobre “autonomia”, examinar: VILLORO, Luis.Estado plural, pluralidad de culturas. México: Paidós, 1998. p. 79 e segs.

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176 PLURALISMO JURiD1Co: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERJDADE

e não-similares efetiva-se com a permanente participação não sódas diversas instâncias sociais mais complexas e autônomas, comotambém da participação dos elementos integrantes de pequenasunidades e de corpos setoriais.

Do ponto de vista do “localismo”, O poder local é O nível maisdescentralizado do poder estatal, organizado e articulado por re-lações que mais diretamente são atravessadas pela sociedade epelos interesses advindos das forças sociais. O “localismo” comotuna das instituições-chave da democracia pluralista procura fa-vorecer as condições estratégicas que permitam a produção diretae a movimentação de bens e serviços, acentuando processosdecisórios alicerçados em técnicas de ação comunitária eparticipativa, bem como reforçando regionalmente aimplementação deliberatória e executiva das ações coletivas e desuas funções no âmbito da família, vizinhança, igreja, comitês debairro, associação local e comunidade restrita”.

Outro critério valorativo capaz de distinguir O pluralismo en-quanto sistema que se opõe ao moriismo unificador e homogêneoé a sua natureza fluida e mutável centrada na “diversidade”. Estána raiz da ordem pluralista a fragmentação, a diferença e a diver-sidade. Trata-se de se admitir a “diversidade” de seres no mundo,realidades díspares, elementos ou fenômenos desiguais e corpossociais semi-autônomos irredutíveis entre si. O sistema pluralistaprovoca a difusão, cria urna nonnalidade estruturada na prolifera-ção das diferenças, dos dissensos e dos confrontos. Enquanto aortodoxia monista mascara as contradições e as diversidades, opluralismo, no dizer de Pierre Ansart, confimia “as divisões eincita cada grupo, cada semigrupo e cada indivíduo a explicitar

'2 Cf. NISBET, Robert, op. cit., p. 383-384; Revista de Administração Municipal.Governos locais: agentes do desenvolvimento. Trad.: Cassio H. L. da Silva. Rio de Janei-ro, n. 180, p. 56-59. Jul./Set. 1986. Ver, também: CASTRO, Maria Helena Guimarães.Governo local, processo político e equipamentos sociais: um balanço bibliográfico. BIB,Rio de Janeiro, ri. 25, p. 56-82, 1° sem. 1988; VILLASANTE, Tomás R. Comunidadeslocales. Análisis, movimientos Sociales y altemativas. Madrid: Inst. Estudios Adm. Lo-cal, 1984. p. 171-231; DEMO, Pedro. Participação e' conquista. São Paulo: Cortez/Au-tores Associados, 1988; OLIVEIRA NETO, Valdemar de. Organizações não-governa-mentais, movimentos sociais de base e poder local. Cadernos Gajop. Olinda, n. 8, p. 9-12, 1990.

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4.1 Natureza e Especiƒicidade.° O Pluralismo em Questão 177

suas exigências e aceitar O conflito como a condição de sua inser-ção social positiva”“.

Cabe, por fim, estender ao pluralismo a noção modema do priii-cípio da “tolerância”. Ora, na medida em que a natureza humana émotivada por necessidades concorrentes, por disposições de vidamarcadas por conflitos de interesses e pela diversidade cultural ereligiosa de agrupamentos comunitários, O pluralismo resguarda-se através de regras de convivência pautadas pelo espirito de indul-gência e pela prática da moderação. A filosofia da tolerância não sóestá associada à filosofia da liberdade humana mas, igualmente, aodireito de autodeterminação que cada indivíduo, classe ou movi-mento coletivo possui de ter sita identidade própria e ser diferentefuncionalmente dos outros. A “tolerância” que implica O bom-sen-so e a pré-disposição de aceitar tuna vida social materializada peladiversidade de crenças e pelo dissenso de manifestações coletivasvem a se constituir, como assinala com razão Robert P. Wolff, asuprema virtude do modemo pluralismo democrático”.

Além de certos princípios valorativos inerentes à natureza dopluralismo, avançando num exame mais atento, pode-se consta-tar a presença de várias “modalidades” do pluralismo, a partir deuma meta comum que é O enfraquecimento ou exclusão do Esta-do e a valorização das instâncias sociais intermediárias. Depen-dendo da espécie de “critérios” utilizados, pode-se enquadrar Opluralismo em formas antigas, tradicionais, conservadoras, libe-rais, modemas, progressistas, radicais, críticas etc. As priorida-des na escolha estrutural e funcional de “critérios” explica certastipologias, como as de Robert Nisbet e Norberto Bobbio.

Atentando para urna preocupação mais sociológica, RobertNisbet distingue, no desenvolvimento do pensamento modemoocidental, três concepções de pluralismo: “conservadOr”, “libe-ral” e “radical”. O pluralismo “conservador” que foi representa-do por autores como Burke e Bonald se constitui num vigorosoataque à centralização política consagrada pelos ideais da Revo-

'3 ANSART, Pierre, op. cit., p. 173-176.“ Cf. WOLFF, Robert P. A miséria do liberalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

p. 115-129. Para a retomada e o questionamento da “toIerância”, consultar: WALZER,Michael. Tratado sobre la tolerancia. Barcelona: Paidós, 1998.

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178 PLUMLISMO Juaímcoz PRoJEÇÃo DE UM MARCO DE ALTERJDADE

lução Francesa de 1789. De outra feita, o pluralismo “liberal”,associado a figuras como Lamennais e Tocqueville, veio a pro-clamar a autonomia individual, a liberdade das associações e adescentralização das instituições locais. Já o pluralismo “radical”,encontrado nas obras de Proudhon e Kropotkin, se concentra noapelo às comunidades naturais, nos valores utópico-ecológicos enos princípios “anarquistas, sindicalistas e socialistas de Guilda”.Mostra-nos Robert Nisbet que, enquanto o pluralismo “conserva-dor” objetivou a “recuperação ou o esforço dos grupos e comuni-dades históricas tradicionais”, e o pluralismo “liberal” preocu-pou-se com “as relações entre o Estado democrático e com umaestrutura da autoridade social que prometia o mais alto grau deliberdade individual”, o pluralismo “radical” veio enaltecer a pers-pectiva de uma organização comunitária inteiramente nova, es-sencialmente localista e descentralizada, erguida sobre “as ruínasdo capitalismo e do nacionalismo”15.

Em contrapartida, a temática merece igualmente a atenção deNorberto Bobbio, que, num enfoque de teor mais político-ideoló-gico, descreve o pluralismo mediante os modelos do “socialis-mo”, do “cristianismo social” e do “liberalismo democrático”. Opluralismo “socialista”, também conhecido como “guild-socia-lismo”, está vinculado ao socialismo fabiano de Cole, Hobson eLaski. Segundo Bobbio, esse pluralismo que evoca o coletivis-mo, o autonomismo e a descentralização tem relação muito es-treita com o sindicalismo libertário de Proudhon, personagem quefundou pela primeira vez o pluralismo socialista. O pluralismo“cristão-social” expressa uma concepção organicista do mundo,onde os vários grupos ou entes sociais que compõem o todo estão“dispostos num sistema hierárquico e finalístico. Cada parte temsua colocação no todo a partir da função que nele desenvolvecom base numa ordem e num grau”l6. Nesta sociedade pluralista,caracterizada por um ideal orgânico, a interligação e o equilíbrio

'5 NISBEST, Robert, op. cit., p. 400-422.1° BOBBIO, Norberto. As ideologias e 0 poder em crise. Brasília: UnB; São Paulo:

Polis, 1988. p. 17-18 e 21-22; BOBBIO, Norberto et al., op. cit., p. 930-932. Sobre opluralismo “socialista” e “cristão-social”, vide ainda: CHÂTELET, François; DUHAMEL,O. & PISIER-KOUCHNER, E. História das idéiaspolíticas. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.p. 173-180.

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4.] Natureza e Especificidade: 0 Píuralismo em Questão 179

entre núcleos naturais, família, classes, ações profissionais su-planta duas proposições antagônicas: de um lado, o individualis-mo que conclama e reduz tudo ao indivíduo; de outro, o coletivis-mo que glorifica e promove o poder do Estado". Quanto à moda-lidade doutrinária do pluralismo “liberal-democrático” que aca-bou florescendo principalmente no contexto histórico das insti-tuições norte-americanas, sua formulação teórica será encontradanos trabalhos de autores como A. Bentley, D. Truman, D. Riesman,J . K. Galbraith e R. Dahl. No entender de Robert Dahl, um dosmais importantes ideólogos do pluralismo norte-americano, o cemeda ordem pluralista numa inserção “liberal-democrática” é reve-lado pela necessidade da presença de uma gama de centros depoder autônomos, sendo que “nenhum deles deve ou pode serinteiramente soberano”. Em face do grande número de interesses,da restrição a um único pólo de decisão e da multiplicidade dasesferas de comando, abre-se o espaço “poliárquico” para a práti-ca de uma democracia pluralista capaz de “controlar o poder e deassegurar o consentimento de todos para a solução pacífica dosconflitos”'8. Naturalmente, no modelo ““poliárquico”” conjuga-seum variado número de lideranças concorrentes, grupos indepen-dentes e coligações de interesses que, nos limites do consensogeneralizado e do equilíbrio espontâneo, tomam decisões ordena-das por conciliações, concessões e negociações partilhadas. Opluralismo liberal é movido por um objetivo dualista caracteriza-do, de um lado, pelo fato de que é necessária a existência de umgovemo democrático da sociedade civil; de outro, de que a socie-dade pluralista não só é separada do govemo, como também en-contra-se mais ou menos autônoma diante do poder politico. Omodelo de liberalismo ntuna ordem pluralista dinamiza as forçassocietárias, em cujo espaço democrático integra-se a soberaniado consumidor, a competitividade do mercado, a influência dosgrupos de pressão e a tomada de decisões pelas elites que respon-dem às demandas dos eleitores. Nos limites do democratismo

“ Cf. BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 18; BOBBIO, Norberto et ai., op. cit., p. 932.'S Cf. BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 18-19 e 22; BOBBIO, Norberto, et al., op. cit.,

p. 931. Observar ainda: MOREIRA, Adriano. Cíênciapolítica. Coimbra: Almedina, 1984.p. 247; DAHL, Robert A. Um prefácio à democracia econômica. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1990. '

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180 PLuRA1.1sMo Juaimcoz PROJEÇÃO De um MARCO DE ALTERIDADE

poliárquico, não só se impõe a convivência ambígua de opiniõesmúltiplas e interesses conflitivos, mas também se combina o con-senso pacífico com fonnas de dominação, diminuição do contro-le em fruição de maior eficácia e eficiência”.

Embora se reconheça uma longa trajetória dos pluralismos“socialista”, “cristão-social” ou “corporativista”, é indiscutívelque o mais conhecido e influente é o do pluralismo “liberal-de-mocrático”. Daí a costumeira e inapropriada tradição de se vincu-lar quase sempre o pluralismo com propostas de políticas liberal-capitalistas. Entretanto, ainda que se possa levar em consideraçãoa eficácia do liberalismo das instituições pluralistas norte-ameri-canas, não se pode confundir nem reduzir o pluralismo tão-so-mente à democracia liberal.

Não obstante seu desenvolvimento histórico encontre substratoe justificativa, deve-se inferir que a existência teórica e prática dopluralismo tem conhecido algumas distorções que acabam sendoalvo de questionamentos. Dentre as criticas mais freqüentes quesão feitas ao “pluralismo”, sobressaem as que apontam para o seuradicalismo que exclui parcial ou totalmente a presença do Esta-do, a sua fragmentação incontida que induz à desagregação anár-quica, a sua redução ao poder de decisão de elites econômicas, àameaça do autoritarismo de grupos sobre indivíduos ou do mono-pólio de alguns corpos intermediários sobre os interesses majori-tários da coletividade.

Independente do que se estabeleça com referência aos limitesteóricos e práticos do pluralismo, há de se compreender que portrás de um modelo político ou sistema social subsiste sempre umavida comunitária compartilhada por vontades, interesses e neces-sidades humanas conflitivas. Desta feita, antes de se apontar paraa ausência ou exclusão do Estado, bem como para o maleñcio decontendas exclusivistas entre grupos hegemônicos contrapostosdestinados à desagregação societária e à prepotência de interes-ses setoriais sobre intentos gerais e coletivos, urge redefinir os

'° CF. SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. Sociologia politica Elementos de ci-ência política. São Paulo/Rio de Janeiro: Difel, 1979. p. 680-681; CARNOY, Martin.Estado e teoria poliiica. Campinas: Papirus, 1986. p. 49-54; CHÂTELET, François;PISIER-KOUCHNER, Évelyne. As concepções políticas do século XX. Rio de Janeiro:Zahar, 1983. p. 112-133.

4.1 Natureza e Especiƒicidade: 0 Pluralismo em Questão 181

procedimentos descentralizados e autônomos que envolvem anatureza grupal da sociedade. Isto porque, numa nova constela-ção de relações descentralizadas, de atores sociais participativose de movimentos autônomos organizados, o pluralismo deve aban-donar a representação da sociedade vista “como um campo debatalha de grupos concorrentes” e projetar, como assinala RobertWolff, um “ideal de sociedade mais elevado que a mera aceitaçãode interesses opostos e costumes diversos”2°. Verifica-se, natural-mente, a necessidade imperiosa de nova diretriz ñlosófica depluralismo societário assentado numa democracia comunitáriaparticipativa onde todos os interesses estejam representados.

Assim, a reinvenção do pluralismo, como mn novo paradigma,implica transpor as diretrizes da cultura sócio-política identificadascom o tradicionalismo dos pluralismos “°orgânico-corporativista”e “neoliberal-capitalista”.

Evidentemente, o ideário almejado para o terceiro milênio nãoserá mais o pluralismo corporativista medieval ou cristão e tampoucoo pluralismo liberal-burguês de minorias exclusivistas e competiti-vas. Este último, que foi defendido na primeira metade deste sécu-lo, foi reintroduzido na década de setenta (neoliberalismo) como aprincipal estratégia política do novo ciclo do Capitalismo mundial-- envolvendo descentralização, flexibilização, integração de mer-cados, globalização do capital, formação de blocos econômicos,privatização etc. - e dos interesses de colonização dos ricos paísesindustrializados2'. Por conseqüência, o debate revela-se oportuno,particularmente, quando se pensa num pluralismo como projetodiferenciado adaptado às contingências de sociedades marginaliza-das como as da América Latina, que convivem secularmente com ointervencionismo, o autoritarismo e a dependência.

Para não incidir no utopismo inconseqüente e na abstraçãoirreal, qualquer paradigma de espécie alternativa, pensado paraas sociedades latino-americanas, deve examinar atentamente ofenômeno Estado, suas modificaçôes funcionais e matizes recen-

2° WOLFF, Robert, op. cit., p. 148.2* Sobre o pluralismo jurídico como expressão da globalização e do neoliberalismo,

consultar: PALACIO, German. Pluralismo Juridico. Bogotá: Universidad Nacional deColombia, 1993. p. 17-61; FARIA, José Eduardo [Org.]. Direito e globalização econô-mica. São Paulo: Malheiros, 1998.

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182 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

tes. Por isso, a proposta de pluralismo deverá adequar-se às exi-gências de um processo político descentralizado/participativo esua inserção global/local, coexistindo com o Estado transforma-do, controlado e ordenado pela sociedade democrática”.

É, pois, tomando em conta os “desvios” das antigas concep-ções e os rumos falaciosos das atuais que se pode refletir sobreum novo pluralismo, não mais ligado à concepção individualistado mundo, mas resultante da síntese social de todos os intentosindividuais e coletivos. Tal proposição é radicalmente contráriaao pluralismo desenfieado e implementado pelo surto “neoliberal”e pela retórica “pós-moderna” que favorecem ainda mais o inte-resse de segmentos privilegiados e corporações privativistas, co-niventes com as formas mais avançadas de exclusão, concentra-ção e dominação do grande capital.

Certamente nas nações periféricas e dependentes do Capita-lismo, o espaço democrático há de ser “articulado em torno deaparelhos de hegemonia plurais e não apenas individuais”23. Tra-ta-se, como proclama com justa razão Carlos Nelson Coutinho,da produção de um pluralismo de “sujeitos coletivos” fundadonum novo compromisso: consolidar uma outra hegemonia queconsidere a compatibilização entre “predomínio da vontade geral(...)” e “o pluralismo dos interesses particulares”. Todas as alter-nativas devem ter em vista a constituição de um “bloco históricoonde, através do consenso, são articulados diferentes interessessociais, políticos, ideológicos”, econômicos e jurídicos. Para tan-to, a nova hegemonia do “pluralismo de sujeitos coletivos”, erguidanas bases de um amplo processo de democracia participativainterclassista, deve também resgatar alguns dos princípios da cul-tura política ocidental, como: o direito das minorias, o direito àdiferença e à autonomia, a tolerância e a “necessidade de dividiro poder para limitá-lo e tomá-lo mais socializado”24.

Em suma, fica assim delineada a relevância de serem configu-rados os elementos iniciais de um modelo compartilhado de

22 Ver, nesse sentido: WOLKMER, Antonio C. Elementospara uma critica do Esta-do. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1990.

23 COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre Pluralismo. Conferência apresentada no En-contro Nacional da Associação Brasileira de Ensino do Serviço Social, Out./1990. p. 2-3.

24 Idem, ibidem.

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4.2.1 Pluralismo Juridico na tradição européia

pluralismo enquanto teoria e prática político-cultural. O certo éque, nesta elaboração, toma-se obrigatório, por extensão, vincu-lar aos marcos da coexistência pluralista, democrática eparticipativa, O florescimento de uma nova cultura jurídica. Mas,para conceber a aplicação do novo tipo de pluralismo nos hori-zontes do fenômeno jurídico, é condição repassar o que se insti-tuiu, até agora, sob a designação de “pluralismo jurídico”. É oque se apreciará na seqüência do capítulo.

4.2 Pluralismo Juridico: Revisão Histórica do Problema

4.2.1 Pluralismo .Íuridico na tradição européia

Se inúmeras dimensões podem ser encontradas no pluralismofilosófico, sociológico ou político, o pluralismo juridico não dei-xa por menos, pois compreende muitas tendências com origensdistintas e caracterizações múltiplas. Toma-se difícil apontar umacerta uniformidade de principios essenciais em razão da diversi-dade de modelos e de autores, abarcando em sua defesa desdematizes conservadores, liberais, moderados e radicais atéespiritualistas, sindicalistas, corporativistas, institucionalistas,socialistas etc. Essa situação de complexidade não impossibilitaadmitir que O principal núcleo para o qual converge o pluralismojuridico é a negação de que o Estado seja a fonte única e exclusi-va de todo o Direito. Trata-se de uma visão antidogmática einterdisciplinar que advoga a supremacia de fundamentos ético-sociológicos sobre critérios tecnoforrnais. Assim, minimiza-se ouexclui-se a legislação formal do Estado e prioriza-se a produçãononnativa multiforme de conteúdo concreto gerada por instânci-as, corpos ou movimentos organizados semi-autônomos que com-põem a vida social. Não se há de aquiescer à idéia de que opluralismo jurídico limita-se tão-somente a uma reação das for-ças vivas da sociedade contra a onipotência funcional do moder-no Estado capitalista. Ora, na verdade, bem antes da produção edo controle hegemônico do Direito por parte do Estado nacionalsoberano, subsistiu uma rica e longa trajetória histórica de práti-cas autônomas de elaboração legal comunitária.

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184 PLURÃUSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO os UM MARCO DE ÃLTERIOÃOE

A assertiva acima remete para o mundo clássico antigo, ondese pode perfeitamente captar os primeiros traços de urna experi-ência legal espontânea disseminada pela sociedade, sem se redu-zir a um único poder político centralizado. A constatação da exis-tência do pluralismo jurídico no Império Romano é pautada emduas observações. Primeiramente, no fato de que os romanos nãoimpuseram total e rigidamente seu Direito às populações conquis-tadas, pennitindo uma certa liberdade para que as jurisdições lo-cais estrangeiras continuassem a aplicar seu Direito autóctone.Os romanos vivenciaram experiências de grande diversidade ju-ridica que os levaram a adequar situações conflitivas, por um ladoaplicando, de fonna flexível, seujus gentium, por outro incorpo-rando as práticas normativas alienígenas ao seu Direito. O pró-prio recurso natural do jus gentium demonstrava a preocupaçãoconciliadora para resolver a existência de uma pluralidade de sis-temas jurídicos no Império Romano”. Outra observação históricaé trazida pela pesquisa de Eugen Ehrlich, para quem os romanosjá conheciam e utilizavam fontes jurídicas não-estatais, represen-tadas basicarnente no chamado Direito consuetudinário dos juris-tas. No dizer de Ehrlich, há que fazer distinção entre duas fontesjurídicas romanas: ojusprivatum oujus civile, expressão do cos-tume e da convicção popular, permanentemente reafirmado pelosjuristas, e ojuspublicum, que não é exatamente lei estatal, mas oDireito estabelecido pelo Estado. Toma-se difícil precisar quan-do os romanos começaram a produzir direito através de leis esta-tais, pois até o final da era imperial não chegaram a dar importân-cia ao monopólio jurídico do Estado”.

Na Idade Média, a descentralização territorial e a multiplicidadede centros de poder configtrraram em cada espaço social um am-plo espectro de manifestações norrnativas concorrentes, compos-to de costumes locais, foros municipais, estatutos das corporaçõesde ofício, ditames reais, Direito Canônico e Direito Romano. Cer-tamente foi com a decadência do Império Romano no Ocidente ecom a fixação política dos povos nórdicos na Europa, que se soli-

25 CF. ROULAND, Norbert. Anthropologiejuridique. Paris: PUF, 1988. p. 76-77.2° Cf. EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: UnB,

1986. p. 116, 333-336.

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4.2.1 Pluralismo Juridico na tradição européia 185

dificou a idéia de que a cada indivíduo seria aplicado o Direito deseu povo e de sua comunidade local. Com a chamada “personali-dade das leis”, estabeleceu-se que a representação das diferentesordens sociais corresponderia a urna natural pltualidade jurídica.Destacando esse quadro, Norbert Rouland situa quatro manifesta-ções legais: um “direito senhorial”, fundado na função militar; um“direito canôrrico”, baseado nos princípios cristãos; um “direitobtuguês”, calcado na atividade econômica, e, por fun, um “direitoreal”, com pretensões de incorporar as demais, em nome da centra-lização política”. Ainda em Ehrlich transparece a convicção de que,mesmo depois da decomposição do Irnpério Carolírrgio, por umlongo período de tempo não se encontram :dados que comprovem aidéia de que o Estado pudesse criar ou modificar o Direito. Maisprecisamente, foi na Idade Modema que um Direito Estatal “seimpôs com muita dificuldade e muito lentamente”23. Porém, talestatização do Direito realmente se efetivaria com o surgimento, naEuropa, da racionalização política centralizadora e da subordina-ção da justiça à vontade estatal soberana.

O certo é que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, pouco apouco o absolutismo monárquico e a burguesia vitoriosa emer-gente desencadearam o processo de unifomrização burocráticaque eliminaria a estrutura medieval das organizações corporativas,bem como reduziria o pluralismo legal e judiciário. Ainda que sepossa encontrar as bases teóricas iniciais da cultura jurídicamonista na obra de autores como Hobbes e no desenvolvimentodo Estado-Nação unificado, foi com a República Francesa pós-revolucionária que se acelerou a disposição de integrar os váriossistemas legais sob a base da igualdade de todos perante uma lc-gislação comum. Exame mais atento revela que a solidificação do“mito” monista (legitimação legislativa pelo poder público) éalcançada pelas refonnas admirristrativas napoleôrricas e pela pro-mulgação de turr íurico código civil para reger toda a sociedade.Tratava-se da coroação de esforços decorrentes de muitos sécu-

27 Cf. ROULAND, Norbert, op. cit., p. 77. Observar ainda: CARBONNIER, Jean.Sociologia juridica. Coimbra: Almedina, 1979. p. 215.

28 EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 117. Constatar: ARNAUD, André-Jean. 0 Direitoentre modernidade e globalização: Lições de filosofia do Direito e do Estado. Rio deJaneiro: Renovar, 1999. p. 49-71'.

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186 PLoRÃr.rsMO ruRiorCO: PROJEÇÃO DE um MARCO DE Ã1.rERrOÃOE

los para consolidar o “mito” da turidade de que cadasociedadeteria apenas um sistema jurídico, ou seja, “um só Drrerto paratodos, com o Estado por tutor”29.

Sob o reflexo de tuna sociedade burguesa no apogeu, plenaexpansão do Capitalismo industrial e amplo domírrio do individua-lismo filosófico, do liberalismo político-econômico e do dogma docentralisrno jurídico estatal, constata-se a forte reação por parte dasdoutrinas pluralistas em fins do século XIX e meados do séculoXX. O sucesso da proposta pluralista, confonne recorda NorbertoBobbio, valeu-se do fato de que incorporava “tuna representaçãomais satisfatória da realidade social, precisamente no momento emque a ebulição das forças sociais, conseqüência da pressão da “ques-tão social°, ameaçava fazer saltar - e em algturs países este salto jáhavia sido produzido - o aparato protetor do Estado'”°. Entretanto,não parece haver dúvida, já nas primeiras décadas do século XX,como altemativa ao nonnativismo estatal positivista, ressurge opluralismo na preocupação de jusfilósofos e de publicistas (Gierke,Hauriou, Santi Romano e Del Vecchio), bem como de sociólogosdo Direito (Ehrlich, Gurvitch). Não menos importante seria, igual-mente, a retomada do pluralismo nos anos 50 e 60 por pesquisado-res empíricos no âmbito da antropologia jurídica (L. Pospisil, S.Falk Moore, J. Griffiths).

Para melhor situar a temporalidade deste processo contempo-râneo, veja-se o desdobramento do pluralismo jurídico em algu-mas das mais significativas interpretações filosóficas, sociológi-cas e antropológicas.

Provavelmente, o principal propagador do pluralismo, em finsdo século XIX, foi o alemão Otto von Gierke. Irrfluenciado pelasidéias de Althusius e imbuído de fortes razões nacionalistas, Gierkereage ao monismo proposto por outros teóricos da época (Gerber,por exemplo) e repudia a presença dominadora do Direito Roma-no, advogando a preservação das instituições genuinamente ale-

” ROULAND, Norbert et al., op. cit., p. 78. Observar também: HESPANHA, Anto-nio Manuel. “Lei e justiça: história e prospectiva de um paradigma”. In: Justiça elitigiosidade: história e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. p. 7-58;GLEIZAL, Jean-Jacques . Le Droit politique de l'Éta1. Paris: PUF, 1980. p. 32 e segs.

3° BOBBIO, Norberto. Contribucción a la teoria del derecho. Edición de AlfonsoRuiz Miguel, Valencia: Fernando Torres, 1980. p. 163.

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4.2.1 Pluralismo Juridico na tradição européia 187

mãs. Buscando elementos nas teorias políticas do corporativismomedieval, Gierke revela que a fonte verdadeira do Direito não era oEstado, mas a atividade humana através de grupos, corporações ecomturidades orgânicas. A sociedade hturrana é composta por inú-meras personalidades corporativas autênticas, com vontade e cons-ciência própria, podendo cada tuna delas formular e criar direitos.O Estado pode até ser a corporação mais importante, mas isso nãoO legitima a tomar-se a fonte última e exclusiva do Direito. Paraesse autor, tanto o Estado quanto o Direito não chegam a criar aspersonalidades corporativas, pois apenas as reconhecem na medi-da em que as coletividades têm capacidade própria de querer e deagir semelhante à dos indivíduos. Na verdade, a ordem estatal e avida jurídica são duas dimensões autônomas da vida social”.

Ainda que se possa considerar relevantes para O desenvolvi-mento das correntes pluralistas: as concepções sociológicas deLeon Duguit, a doutrina do institucionalismo de Maurice Haurioue a contribuição de Georges Renard, foi a proposta jusfilosóficado italiano Santi Romano a de maior peso e rigor no rol das alter-nativas ao cultismo legal estatista dos anos trinta. Recolhendosubsídios nas teses de M. Hatuiou, Santi Romano esboça em suaobra L ' Ordínamemfo Giuridico uma visão do Direito, que, mes-mo sendo apresentado como um todo unitário, desdobra-se numateoria do Direito como instituição, que se contrapõe aononnativismo positivista (la parte) e nurna teoria da pluralidadedos ordenamentos jurídicos, que se opõe ao monismo estatal (23parte). O que se percebe, inicialmente, é que nesse pluralismo detipo moderado fica comprovada a interdependência histórica daformulação pluralista à teoria institucional. Para o mestre italia-no, toda instituição que surge como um “ente” ou “corpo social”bem estruturado e firmado em relações estáveis e permanentestransfonna-se num ordenamento juridico. Apontadas como im-próprias e não satisfatórias, as concepções do Direito como con-junto ou sistema de normas são substituídas por aquelas que pro-

31 Para melhor especificar O pensamento de Gierke, verificar: TELLES JÚNIOR,Gofliedo. A criação do direito. São Paulo: Calil, 1953. p. 431; REALE, Miguel. Teoriado direito e do Estado. 3. ed., São Paulo: Martins, 1972. p. 251-253; TREVES, Renato.Introducción a la sociologia del derecho. Madrid: Taurus, 1978. p. 62-63; LEISERSON,Avery, op. cit., p. 230. -

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188 PLURÃLISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ÃLTERIDÃDE

jetam o Direito como ordenamento jurídico, ou seja, como umcorpo social concreto com vida em si e por si, capaz de expressare identificar a nonnatividade implícita em “sua estrutura e nosseus caracteres essenciais”, portanto, se todo ordenarnento jurídi-co é uma instituição e “cada instituição é um ordenamento jttrídi-co objetivo”, torna-se necessária e absoluta tuna questão entre asduas entidades”. Por outro lado, as nonnas ou o complexonormativo nada mais são do que a pura marrifestação particulari-zada de uma “ordenação autônoma” ou instituição dada. Em ou-tros tennos, proclama-se que O Direito é reconhecidamente nor-ma, mas, “além de norma e, mesmo antes de ser norrna, é organi-zação ou corpo social, e é este que a norma comunica, como a umproduto seu ou derivação (...)”3¡`°. Assim, é a força do aspectoinstitucional que se toma decisiva para imprimir a juridicidadeem cada tuna das nonnas emanadas ou tuteladas pelas múltiplasordenações coexistentes. Fácil é concluir que, neste contexto, oconceito de Direito se determina sem a chancela do Estado, poiseste é somente uma entre várias outras instituições humanas que“podem existir e que na realidade existem”“'.

Para acentuar a relevância desse ponto, o autor transpõe ateoria da instituição propriamente dita e se aprofunda em dire-ção ao pluralismo, assinalando que existe uma ampla gama deordenamentos jurídicos distintos, cada qual com vida própria,não subordinada ao Estado e a seu ordenamento legal. Daí apremissa básica da não redução do conceito de norma jurídica ànorma estatal, ou seja, as nonnas jurídicas existem em maiornúmero que as estatais”. No entanto, embora rej eite a institui-ção estatal como a fonte exclusiva do Direito, Santi Romanonão deixa de encarar o Estado como tuna ordenação objetivasoberana com maior eficácia e poder de coerção. Além de nãose revestir da única ordenação juridica existente, o Estado con-vive com outras ordenações, ora em relação de coexistência so-

32 Cf. ROMANO, Santi. L'0rdinamento giuridico. Firenze: Sansoni, 1951. p. 27 e34; . Principios de direito constitucionalgeral. São Paulo: Revista dos Tribunais,1977. p. 72-73. _;

33 ROMANO, Santi, 1977. op. cit., p. 72-73.3* ROMANO, Santi, 1951. op. cit., p. 111-112; . 1977, op. cit., p. 75.35 Cf. BOBBIO, Norberto, 1980, op. cit., p. 162.

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cial, ora em relação de luta. A oposição e O não-reconhecimentopor parte do Estado ou mesmo o confronto de sua ordenaçãononnativa com a de outros grupos sociais autônomos não inva-lida ou obstaculiza, para estas, efeitos de juridicidade”. Trata-se do princípio da “possível não exclusividade” que impede queo Estado se sobreponha e conteste o caráter jurídico de outrasordenações menores com vida própria. As ordenações sociaisindependentes podem até ser consideradas ilícitas pelo Estado,mas não perdem sua condição própria de juridicidade. Daí que oEstado, por não deter o monopólio da produção jurídica, convi-ve com situações que inviabilizam reduzir o lícito ao jurídico.Isso configura um quadro em que o ilícito sob o ponto de vistada ordenação estatal poderá ser perfeitamente jurídico para urnaorganização não-estatal”. O

Antes de tttdo a lógica da “pluralidade de ordenarnentos jttrí-dicos” reflete a necessidade de se perquirir a própria evolução deuma crise do Estado modemo que ocasiona tuna natural tendên-cia para a ampliação e constituição de grupos sociais, cada qualcom um espaço jtuidico independente”.

O alcance da proposta de Santi Romano sobre a “pluralidadede ordenamentos jurídicos” acaba sofrendo dois percalços que seavizinham de certos matizes de teor monista: a) se, de um lado, éressaltado ser a ordem jurídica intemacional a constelação máxi-ma do turiverso dos entes autônomos, de outro, no plano menordas ordenações, Santi Romano privilegia o Estado como institui-ção distinta e irredutível com relação a todos os demais corpossociais; b) ainda que não incida no nonnativismo “Direito-Esta-do”, porquanto admite que o “Estado não é senão uma espécie dogênero Direito”, mas acaba adrnitindo, como direito válido, O di-reito formal positivo”.

3° Cf. TELLES JÚNIOR, Goffreóo. op. cit., p. 513.Í 3* Cf. ROMANO, Santi, 1977, op. cit., p. 76; REALE, Miguel, op. cit., p. 277; TELLES

JUNIOR, Goffredo, op. cit., p. 513.3” Cf. ROMANO, Santi, 1951, op. cit., p. 113; TREVES, Renato, op. cit., p. 69;

BOBBIO, Norberto, 1980, op. cit., p. 163.3° Cf. ROMANO, Santi, 1951, op. cit., p. 112 e 114-115; , 1977, op. cit., p. 72;

BOBBIO, Norberto, 1980, op. cit., p. 170; REALE, Miguel. op. cit., p. 279 e 283; COE-LHO, Luiz Femando. Teoria critica do direito. Cttritiba: HDV, 1986. p. 284.

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190 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

O impacto das concepções de Santi Romano, no que tange à“pluralidade de ordenamentos jurídicos”, seria absorvido na Itá-lia pelos juristas Giorgio Del Vecchio e Cesarini Sforza, que as-sumiram posturas intermediárias nas relações existentes entre oDireito e o Estado. A doutrina de G. Del Vecchio, mesmo nãopodendo ser qualificada como pluralismo jurídico, merece aten-ção na medida em que procurou harmonizar e tomar compatível o“pluralismo dos ordenamentos jurídicos” com a supremacia dapositividade juridica posta e declarada pelo ordenamento estatal.Além de conceber que o Direito pode ou não ser estatal, DelVecchio aceita a possibilidade do surgimento e evolução fora doEstado de núcleos de materializações jurídicas, havendo tantosordenamentos de Direito “quantos são os centros de determina-ção jurídica em um dado momento histórico”. Contudo, nestamultiplicidade de ordenações persiste não apenas “uma diferençaquantitativa quanto à extensão sócio-espacial da eficácia das nor-mas”4°, mas, sobretudo, uma diferença da graduação depositividade entre instâncias possíveis. Como o próprio DelVecchio concebe, “nem todos os ordenamentos jurídicos possuemo mesmo grau de positividade”, assim, pois, é inegável que oordenamento jurídico do Estado - o Estado aqui é identificadocom o Direito Positivo - é aquele que, “em confronto com osrestantes sistemas, possui o maior grau relativo de positividade”4'.Como assinala Ingberg, num estudo sobre o pluralismo jurídico,o que cabe destacar nas formulações de Del Vecchio é que estaspermitem avançar numa distinção conceitual entre “pluralidade”e “pluralismo”. Assim, corresponderia à situação de “pluralidade”a existência de muitos grupos sociais controlados e adequadospelo poder do Estado, enquanto o “pluralismo” estaria associadoe aplicado exclusivamente ao domínio jurídico.

A concepção institucional de Cesarini Sforza que se insere nacorrente de pensamento inaugurado por Santi Romano se aproxi-ma em muito de um pluralismo de tipo corporativista. Sua pro-

*° REALE, Miguel. op. cit.,_p. 286-287; DEL VECCHIO, Giorgio. Direito, Estado eFilosoƒa. Rio de Janeiro: Politécnica, 1952. p. 67, 71 e 78; ___. Lições defilosoƒía dodireito. 5. ed., Coimbra: Almedina, 1979. p. 487 e 494.

'“ DEL VECCHIO, Giorgio, 1979, op. cit., p. S11-512.

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posta central é a de contrapor ao Direito Estatal que apenas cobreparte da realidade social - o que ele chama de Direito dos particu-lares. Diferentemente do “Direito privado”, que denota quase sem-pre a vontade estatal reguladora de relações entre pessoas priva-das, o “Direito dos particulares” se identifica com as coletivida-des, grupos e corpos sociais, constituindo relações que “nem di-reta nem indiretamente emanam do Estado” ou de seus órgãos. É,na realidade, um “Direito das organizações”, movido pelo princí-pio da “cooperação para um fim comum”42. O Direito dos parti-culares é a normatividade que rege o interesse coletivo diante da“falta ou insuficiência” da lei estatal, pois o Estado, além de nãoser o criador de toda a juridicidade, tem leis que nem sempreconseguem acompanhar a dinâmica das novas relações que emer-gem da sociedade. Em verdade, para Cesarini Sforza, não é difícilperceber, na materialização da vida jurídica, relações que, “aindaque já definidas pelas leis estatais, se transformam e desenvol-vem praticamente de um modo distinto ou abertamente contrárioao estabelecido por ditas leis”43. Tais fonnas jurídicas que esca-pam da eficácia ou do controle estatal acabam incidindo no âmbi-to do Direito dos particulares, que, neste caso, tanto poderá dian-te de matérias idênticas às do Estado oferecer um tratamento dis-tinto ou contrário, quanto regular outras matérias não considera-das ou diversas do interesse do Direito Estatal44. O jurista italianochama atenção para o fato de que o Direito dos particulares porvezes não só está muito próximo como até mesmo possui meca-nismos de funcionamento similares aos do Direito costumeiro,fundamentalmente quando se toma em conta a prática de disposi-ções praeter legem ou contra legem45. Ademais, alerta o autor,aceitar o Direito independentemente do Estado não significa des-truir as construções jurídicas que se ergueram sobre o conceitounitário do poder estatal. Acima de tudo, é preciso saber avaliarque a “unidade do Direito sob o conceito do Estado se refere so-mente ao predomínio que este tem na aplicação das nonnas, pois,

42 SFORZA, W. Cesarini. El derecho de los particulares. Madrid: Civitas, 1986. p.37-38 e 67-68.

43 Idem, ibidem, p. 62.4* Cf. SFORZA, W. Cesarini, op. cit., p. 65.45 Idem, ibidem, p. 13, 62-66.-

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192 PLURALISMO Juaioico: PROJEÇÃO DE um MARCO DE ALTERIDADE

naturalmente, pertence à multiplicidade dos ordenamentos a es-pontaneidade criativa da consciência jurídica”4°.

Mencione-se, ainda, que Cesarini Sforza, tendo presente anoção de “ordenamento”, avança no desenvolvimento da catego-ria dos “corpos sociais”, que apresentam a forma de “associação”e de “instituição”. Deixando de lado os “corpos sociais obrigató-rios” (aqueles estabelecidos por lei estatal), atêm-se aos “corpossociais voluntários”, que buscam cooperar entre si para um fimcomum, ordenados por Luna vontade formadora, uma autoridadeconstituída e uma autonomia coletiva fora e além do Estado. En-fim, na esteira de Santi Romano, Cesarini Sforza compartilha coma afirmação de que o ordenamento jurídico do corpo social vo-luntário “é verdadeiro e autêntico direito objetivo, produto deautonomia de que o corpo social se acha naturalmente dotado””.

Mais do que a contribuição dos juristas-filósofos, os sociólo-gos do Direito, como Eugen Ehrlich e Georges Gurvitch, foramos que mais avançaram na construção teórica de um autêntico eoriginal pluralismo jurídico.

Partindo de concepções identificadas com o Direito Livre e vin-culando-se substancialmente a algumas teses de Gierke, EugenEhrlich, em sua conhecida obra Fundamentos da Sociologia doDireito, concebe o Direito como produto espontâneo da sociedade.O ponto de partida é a constatação de que a sociedade é formadapor organizações bem diversificadas ou associações humanas inter-relacionadas. Tais associações, que compreendem grupos, comuni-dades religiosas, corporações, classes, estamentos, partidos políti-cos e famílias, interagem entre si e conservam parcial ou totalmen-te a autonomia diante do Estado. Cada associação humana cria in-temamente sua própria ordem jurídica, sem qualquer comprometi-mento com outras fonnas de organização, podendo, ou não, haverinfluência recíproca”. É, portanto, na ordem intema dessas associ-ações que se revela a primeira e a mais fundamental fonna do Di-reito. As prescrições jurídicas entendidas como normas estataisabstratas ou leis codificadas correspondem a um estágio de desen-

*° Idem, ibidemfp. 55-56.4"' SFORZA, W. Cesarini., op. cit., p. 98.*s Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 27-29 e 286.

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volvimento posterior. O verdadeiro Direito é o “Direito vivo”, quenão se prende a doutrinas, dogma, norma de decisão ou prescriçõesestatais, mas provém da “vida concreta e diária das pessoas”, dasrelações entre os homens, como o casamento, o contrato e o testa-mento”. Trata-se de um “Direito vivo” que se contrapõe ao Direitovigente dos tribunais e dos órgãos estatais, pois domina a vida defonna originária e realista, não precisando impor-se através de fór-mulas técnicas e regras fixas”. A eficácia desse Direito, que templena independência do Estado, repousa em sanções não fonnali-zadas institucionalmente, ou seja, na sugestão, na pressão e na pró-pria força coativa que emana das associações organizadas. Na ver-dade, Ehrlich minimiza consideravelmente a coerção estatal eenfatiza a importância dos diferentes tipos de sanções naturais quepredominam nos grupos, tais como: a expulsão de qualquer tipo deassociação como a família, a igreja, o sindicato e o partido político,bem como a perda de crédito e de clientela no comércio, medidasque acabam revestindo-se de maior eficácia do que as sanções con-vencionais do Estado”.

Examinando a origem dos diferentes complexos nonnativos,Ehrlich classifica a realidade jurídica em três categorias:

a) O “Direito Vivo” organizativo dos grupos associativos, queemerge dinamicamente das flutuações da vida social;

b) O “Direito dos Juízes”, que é composto por nonnas utiliza-das nos tribunais para decidir casos concretos de litígios e de con-flitos. O Direito dos Juristas acha-se mutuamente entrelaçado como Direito do Estado. Deste modo, não poderá haver “uma legisla-ção do poder público estatal, sem que haja uma administraçãojudiciária que se subordine à vontade” e ao interesse do Estadosz;

4° Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 34, 36 e 39.5° Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 378; TELLES JÚNIOR, Goffredo, op. cit., p. 515.5' Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 55, 62-65; TELLES JUNIOR, Golfredo, op. cit.,

p. 515-516; INGBERG, Léon. Le pluralisme juridique dans l'oeuvre des philosophes dudroit. In: GILISSEN, John [Org.]. Le pluralisme juridique. Bruxelles: Editions del`Université de Bruxelles, 1972. p. 68.

52 Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 97-98, ll4 e 147; REHBINDER, Manfred.Sociología del derecho. Madrid: Piramide, 1981. p. 66-67.

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194 PLuRAi.isMo ruiunlcoz PROJEÇÃO DE um MARCO DE Arrsiumoa

c) O “Direito Estatal”, que depende de um aparato coativo e quesurge “exclusivamente com o Estado e não poderia existir sem ele”,aparecendo sob a forma de leis, decretos, normas de decisão (Di-reito Judiciário) e normas de intervenção (Direito Administrativo).De modo mais rigoroso, o Direito Estatal pode expressar-se e agirpor intemiédio de duas principais altemativas: (1) “nonnas de de-cisão”: normas estatais indiretas; (2) “nonnas de intervenção”: nor-mas estatais diretas. Nas primeiras, o Estado “prescreve aos tribu-nais e a outros órgãos estatais como devem decidir as questões quelhes são apresentadas pelas partes interessadas. A maioria das nor-mas de decisão, no entanto, são extraídas do Direito dos Juristas;elas somente são direito estatal quando (...) são destinadas a servira objetivos estatais”. Já as segundas “determinam aos órgãos esta-tais quando devem intervir, mesmo que não sejam invocados paraisso”. Acontece que nem sempre “as normas de decisão e as inter-venções estatais repousam sobre leis”55.

Naturalmente, Ehrlich radicaliza ao consignar que apenas uma“pequena parcela do Direito (Direito Estatal) é que emana do Es-tado”, pois a “maior parte da vida jurídica se desenvolve longe doEstado e da competência dos órgãos estatais”54. Ademais, sendoexpressão da vida social, o Estado toma-se um simples órgão dasociedade, capaz não só de impor a ordem às associações que aconstituem, mas de executar sem muitos atritos e resistências avontade da própria sociedade55.

Ainda se pode ter em conta, como assinala Carlos Cárcova,que as proposições de Ehrlich “parecem ignorar os conflitos e ascontradições que, com vista à organização do poder social, tam-bém permeiam a lógica intema de constituição e desenvolvimen-to dos agrupamentos infra-estatais. Poder e Direito ficam assimsem se explicar, pela predominância que assume em sua análise aidéia de cooperação e solidariedade nos pequenos grupos”5*5.

Em siuna, perpassa com nitidez nas considerações de Ehrlicha idéia de que a função primordial do Direito em todos os lugares

55 Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 282.5* Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 109, 125 e 128.55 Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 121; TREVES, Renato, op. cit., p. 61.55 CÁRCOVA, Carlos. A opacidade do Direito. São Paulo: LTr, 1998. p. 66.

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4.2.] Pluraiismo Juridico na tradição européia 5

não é a resolução dos conflitos, mas sim a instituição de umaordem pacífica intema das relações sociais de qualquer associa-ção humana. Assim, pois, o centro gerador do Direito, em qual-quer época, não deve ser procurado “na legislação nem na juris-prudência, nem na doutrina ou tampouco no sistema de regras,senão na própria sociedade”57.

Seguindo na direção demarcada por E. Ehrlich, Georges Gurvitchintroduziu e construiu de forma sistemática e comparativa a teoriamais completa e abrangente do pluralismo jurídico na França. Naverdade, sua concepção do pluralismo é profundamente antiestatista,dialética e complexa. Iguahnente entende que a legislação estatalnão é a única nem a principal fonte do mundo jurídico, existindooutros nmnerosos grupos sociais ou sociedades globais, indepen-dentes do Estado e capazes de produzir fonnas jurídicas. Cada gru-po possui uma estrutura que engendra sua própria ordem jurídicaautônoma reguladora de sua vida interior”.

Particularmente, o pluralismo jurídico é a conseqüênciametodológica de um “empirismo radical”, produzido pelos dadosimediatos e pela mobilidade intensa da “experiênciajurídica”. Dessemodo, a captação da “experiência jurídica” pennite comprovar asdiversas maneiras e critérios de revelação do pluralismo. Naconstatação dos “fatos normativos”, escalas ou graus de manifesta-ções diferenciadas se interpõe um quadro constituído por “direitosorganizados” ou “direitos espontâneos”, “direitos instituitivos” ou“direitos formais” etc. Nessa confomiidade, o pluralismo jurídicoconfirrna não apenas a “pluralidade de direitos”, porém ainda suaprópria equivalência. A projeção do “princípio da equivalência”faz com que Gurvitch reafiirne a coexistência de “diferentes or-dens jurídicas se limitando reciprocamente na esfera de sua inde-pendência e colaborando sob um plano de igualdade”55'. É certo,aliás, que tal esboço não impede de se pensar na validade e eficiên-

57 Cf. EHRLICH, Eugen, op. cit., p. 25; GURVITCH, Georges. Socioiogúz deiderecho.Rosario: Editorial Rosario, 1945. p. 165; FRIEDMANN, W. Théorie générale du droit.4. ed., Paris: LEDJ, 1965. p. 199.

55 Cf. GURVITCH, Georges, 1945, op. cit., p. 263; . La déclaration des droitssociaux. Paris: EMF, 1944. p. 80.

5° TOULEMONT, René. Socioiogie etpluralisme dialectique. Introduction a l' oeuvrede Georges Gurvitch. Louvain/Paris: Nauwelaerts, 1955. p. 80-82.

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196 Pruruiusmo iuiunlco: PP.oJi=;ÇÃo DE UM MARCO DE ALTEMDADE

cia de um certo tipo de Direito (Direito Social) que tenha por fun-ção implementar, numa comunidade empírica, a conciliação da“unidade” com a “pluralidade”. Enquanto ideal democrático queintegra a variedade e a equivalência, o pluralismo jurídico harmo-niza a diversidade e a unidade, não descartando, pois, “urna certaunidade imanente à multiplicidade”5°.

No âmbito da sociabilidade ativa que produz “fatos nonnativos”,há que distinguir duas grandes espécies de Direito, cuja hierarquiaé variável confonne a dinâmica das sociedades: o “Direito social”e o “Direito individual ou interindividual”. O “Direito social” temsua fonte na coletividade organizada, na confiança e na participa-ção de indivíduos que compõem grupos igualitários em colabora-ção. O “Direito social” é um Direito de integração que não podejamais ser imposto de fora, mas, por compreender uma “totalidadeimanente”, materializa-se a partir de dentro. Já o “Direito individu-al ou intergrupal” envolve fonnas restritas de sociabilidade bilate-ral entre grupos ou indivíduos, sendo desenvolvido no plano doordenamento jurídico estatal, mais particularmente como resultan-te das condições sociais do liberalismo econômico.

Gurvitch não deixa de exaltar o “Direito social” frente ao “Di-reito individual”. Esta primazia é evocada quando escreve que,enquanto o “Direito social” está baseado “na confiança, na paz,na ajuda mútua e nas tarefas comuns”, o “Direito individual” estáfundado na “desconfiança, na guerra, nos conflitos e na separa-ção”. Além de qualificar o “Direito social” como autônomo e alu-dir ao fato de que o “Direito individual” favorece toda espécie dealienação, dominação e subordinação, proclama que, no “Direitosocial”, “predomina a justiça distributiva, enquanto no “Direitoindividual' , a comutativa”5'.

De mais a mais, parece clara a necessidade que Gurvitch temde salientar a distinção entre o “Direito social” e aquela concep-ção “social” associada à política intervencionista do Estado. Tra-ta, assim, de combater as implicações ideológicas de uma inter-pretação errada de “Direito social” que reflete a determinação deum poder ou de urna única vontade superior sobre a postura pas-

5° GURVITCH, Georges, 1944, op. cit., p. 68; TOULEMONT, René, op. cit., p. 84-87.5' GURVITCH, Georges, 1945, op. cit., p. 230-232; , 1944, op. cit., p. 83-87.

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lfii'siva de grupos ou de individuos que nem sempre poderao exercerseus direitos de forma livre e democrática. Seu “Direito social”nasce da participação direta dos sujeitos interessados e de rela-ções fundadas num esforço comum”.

Por certo, não há dúvida de que pela riqueza e pela extensãode suas forrnulações, Gurvitch tomou-se responsável pelo grandeimpulso que a doutrina pluralista teve como um todo, pois, comobem destaca Renato Treves, a importância geral de sua doutrina“não reside tanto no pluralismo, no antiestatismo e no direito so-cial, mas na idéia interligada com esses princípios, ou seja, naidéia de um socialismo liberal, democrático, descentralizado,antiestatal, que está muito mais próximo dos ensinamentos deProudhon que dos de Marx”'55.

Deste modo, pode-se concluir que o período das grandes e vi-gorosas contribuições doutrinárias sobre o pluralismo juridico émediado por um ciclo histórico que se instaura com E. Ehrlich,avança com Santi Romano e alcança urna elaboração mais con-sistente com G. Gurvitch.

A investigação e análise do pluralismo, entretanto, não fica aícircunscrita. Nas últimas três décadas alguns autores vinculados àtradição jusfilosófica e sociológica, ainda que com orientações eposturas diversas entre si, vêm-se ocupando com o problema dopluralismo jurídico, reavaliando-o e oferecendo-lhe novas luzes.Nesse rol constituído por ecléticos, fimcionalistas, neomarxistas,pragmáticos e outras matrizes teóricas, destacam-se: Henry Lévy-Bruhl (seguidor de Gurvitch e defensor da pluralidade de direitossupra-estatais e inf`ra-estatais); Jean Carbomiier (a pluralidade nãoestá na oposição/concorrência entre normas de direito verdadeiro --ligado ao Estado - e os fenômenos infirijurídicos, mas nas fonnasdiversas de entendimento e aplicação de urna única ou mesma nor-ma); Jacques Vanderlinden (o pluralismo legal está na aplicação demecanismos jurídicos diferentes a situações idênticas); Jean-GuyBelley (o pluralismo jurídico não só envolve a interdependência demanifestações estatais e não-estatais, como, sobretudo, incide nadinâmica centralização/descentralização da regulação jurídica das

52 Cf. GURVITCH, Georges, 1944, op. cit., p. 80-83.55 TREVES, Renato, op. cit.., p. 72.

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198 PLURÃLJSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ÃLTERJDÃDE

sociedades globais); Boaventura de Souza Santos (o pluralismo ju-rídico denota a vigência oficial, ou não, no mesmo espaçogeopolítico, de mais de uma ordem jurídica, relacionada â confor-mação específica de conflitos de classes); Masaji Chiba (práticasde pluralismojurídico não-ocidental relacionadas aos conflitos en-tre “Direito oficial” e “Direito não-oficial”) etc54.

Por outro lado, as proposições nucleares de Eugen Ehrlich eGeorges Gurvitch de que o “Direito não se confunde com O Esta-do” e que “toda sociedade compreende subgrupos cada um comseu próprio sistema jurídico mais ou menos autônomo” seriam re-tomadas, após a Segimda Guerra Mundial, por antropólogos inte-ressados em comparar práticas de pluralismo entre modemas soci-edades colonizadoras e nações colonizadas do Terceiro Mundo.Postulando a universalidade do pluralismo jurídico, intensificam-se, nos anos sessenta, algumas das mais engenhosas propostas le-gais de cunho antropológico, como, por exemplo, a tese de LeopoldPospisil sobre os “níveis jurídicos” dos subgrupos constituídos, ateoria de Sally Falk Moore sobre os “campos sociais sen1i-autôno-mos” e as formulações críticas mais recentes de John Grifiiths.

Aliás, foi partindo de pressupostos metodológicos ofereci-dos pela antropologia e apoiando-se neles que Leopold Pospisilpropôs que O pluralismo jurídico se manifesta de modo particu-lar através de vários “níveis legais”. A sociedade, seja uma tri-bo, seja uma nação modema, não é um indiferenciável conjuntode individuos, mas, acima de tudo, “um mosaico de subgrupos

55 Ver, nesse sentido, para maior detalhamento: LEVY-BRUHL, Henry. Sociologiadel derecho. Buenos Aires: Editorial Universitária, 1964. p. 14-15; CARBONNIER, Jean,op. cit., p. 220-222; VANDERLINDEN, Jacques. Le pluralisme juridique. Essai desynthèse. In: GILISSEN, J. [Dir.], op. cit., p. 19-20; BELLEY, Jean-Guy. Pluralismejuridique. In: ARNAUD, André-Jean [Dir.]. Dictionnaire encyclopédique de théorie etde sociologie du droit. Paris/Bruxelles: LGDJ/E. Story-Scientia, 1988. p. 300-303; ________. L*État et la régulation juridique des sociétés globales. Pour une problématique dupluralisme juridique. Sociologie et.socie'te's. v. 18, n. 1, p. ll-32. Avr./1986; SANTOS,Boaventura de Souza. O discurso e o poder. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1988. p. 64-73; CHIBA, Masaji. Toward a truly intemational sociology of law through the study ofthe legal pluralism existing in the world. In: ARNAUD, A. J_ [Ed.]. Legal culture andmzyazy izfz. oi`<1A'r1 Proceedings. ONÃTI I.i.s.L., 1989. p. 129-136; .Lzgapluralism in Sri Lankan society. Toward a general theory. Tokai University, Japan, s/d.p. 1-19.

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4. 2. 1 Pluralismo Juridico na tradição européia 199

que pertencem a bem definidos tipos diferenciados por paren-tesco, conformação e grau de identidade”55. Ora, a estrutura so-cial é constituída por uma hierarquia vertical em que cadasubgrupo alcança sua existência através de um sistema legal pró-prio que regula o comportamento de seus membros. Na medidaem que a multiplicidade de sistemas legais corresponde a pa-drões de subgrupos distintos, toma-se corrente que os “níveisjurídicos” venham a diferir uns dos outros, chegando até mes-mo à contradição55.

Ademais, com esse modelo teórico, L. Pospisil apresenta asociedade global composta por um largo espectro de subgruposhierarquicamente sistematizados, cada subgrupo com seu pró-prio sistema jurídico. lsso pennite considerar que cada sistemanomiativo reflete também uma escala de graus ou níveis corres-pondente à importância maior ou menor dos subgrupos na estru-tura social. Não só cada “grupo específico” tem seu Direito, comotoda sociedade global é atravessada pela multiplicidade de ní-veis legais e pela concomitância de sistemas legais. Certamen-te, um indivíduo poderá ou não pertencer a vários subgrupos esistemas jurídicos diferentes. De qualquer forma, a distinção dos“níveis jurídicos” que separam o “Direito estatal” do “Direitode uma sociedade de malfeitores” (como a Cosa Nostra) nãoconsiste em razões qualitativas mas fundamentalmente em cri-térios hierárquicos”.

Outra contribuição que teve significativa repercussão, por es-tar sustentada em pressupostos empíricos advindos da antropolo-gia, foi a formulação pluralista de Sally Falk Moore. Para estudarpráticas normativas legais e ilegais em estruturas sociaispluralistas, a autora se utilizou de urna “pesquisa de campo” quefez, envolvendo comparativainente comtmidades em contrastes,como O interior tradicional do povoado de Chagga, na Tanzânia, eo setor modemo de uma indústria do vestuário feminino de Nova

55 POSPISIL, Leopold apud GRIFFITHS, John. What is legal pluralism? Journal ofLegal Plaralism. n. 24, p. 15, 1986.

5° POSPISIL, Leopold, op. cit., p. 15.5? Cf. ROULAND, Norbert, op. cit., p. 85-86. Examinar também: GUEVARA-GIL,

Armando e THOME, Joseph. “Notes on legal pluralism”. In: Beyond Law. Bogotá: ILSA,v. 2, jul./1992, p. 78-80. -

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200 Prurmusmo Juntmco: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

Iorque”. Nesse estudo, a autora substituiu as categorias “associa-ção” (Ehrlich), “nível juridico” (Pospisil) e “subgrupo” pelo locussocial fundamental dos “campos sociais semi-autônomos”. Nãose confundindo necessariamente com a expressão habitual de“subgrupo”, o conceito de “campo social semi-autônomo”, mes-mo sendo encontrado em sociedades de configuração tradicionale moderna, tende a ser menos intenso nas experiências cotidianasde estruturas não-complexas. Entende S. Falk Moore que, nassociedades modemas heterogêneas, os amplos campos degravitação social não podem ser totalmente autônomos, pois asfonnas de autoridade política, além de serem descentralizadas,são mais diferenciadas.

Ao tentar delimitar tecnicamente a questão, S. Falk Moorecompreende que a definição e os limites do “campo social semi-autõnomo” são “identificados não apenas por sua organização (quepode ou não ser um grupo corporativo ou uma associação), maspela sua característica de tipo processual que pode dar origem àsnonnas, assegurando a coerção ou indução para sua aplicação. Oespaço, dentro do qual um certo número de associações se relacio-nam umas com outras, pode ser, perfeitamente, um campo socialsemi-autônomo. Um grande número de campos desse tipo podemse articular uns com os outros, de tal modo que formam uma ca-deia complexa de relações sociais (...). Assim, a articulaçãointerdependente de inúmeros campos sociais diferentes constituiuma das características básicas de sociedades complexas”69.

Examinando a obra de S. Falk Moore, John Griffiths enaltecea postura inovadora de seu trabalho para o pluralismo jurídico,identificando, nas pretensões daquela, dois intentos muito claros.Primeiramente, ao contrário de outras versões mais recentes, comoa do próprio L. Pospisil, o fato de S. Falk Moore inclinar-se a umpluralismo de matiz horizontal, “resultante de interações entrecampos sociais que não são colocados numa posição hierárqui-ca”. Por outro lado, opondo-se à visão instrumental do “centralismo

63 Cf. FALK MOORE, Sally. Law and social change: the semi-autonomous socialfield as an appropriate subject of study. Law and Society Review. n. 7, p. 723, 1973;RoU1.AND,Núrb¢ú, op. cit., p. só; GRIFFITHS, John, op. cit., p. 30-33; GUEvARA-GIL, Armando e THOME, Joseph, op. cit., p. 81-85.

6° FALK MOORE, Sally, op. cit., p. 722.

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4.2.I Pluralismo Jurídico na tradição européia 201

legal” dos juristas que reduzem todo Direito à vontade de umórgão legislativo, a antropóloga prioriza a normatividade deter-minada por campos sociais que estão em “autonomia parcial” fren-te à ordem estatal, que determina, por conseguinte, que o indiví-duo não obedeça “tão-somente ao Direito estatal, mas igualmenteàs regras - jurídicas ou não - emanadas de entidades múltiplas ecoordenadas nos campos sociais semi-autônomos”7°. Ainda quetenha priorizado esses aspectos, na realidade, como ponderaGriffiths, S. Falk Moore teria dado demasiada ênfase à “ação doDireito estatal na esfera de cada campo social semi-autônomo”quando poderia ter privilegiado a análise “das relações existentesentre campos não-estatais”7'.

Por fim, cabe mencionar um dos resgates teóricos maisauspiciosos do pluralismo jurídico feito por John Griffiths, emseu artigo What is Legal Pluralism?, de 1986. Trata-se de umtexto fimdamental onde o autor faz uma crítica contundente a al-gumas das mais destacadas formulações pluralistas que acabam,no seu entender, não conseguindo romper definitivamente com oEstado. Assevera J . Griffiths que a ideologia do “centralismo ju-rídico” tem sido o maior obstáculo para o desenvolvimento damodema teoria do Direito. Ora, enquanto o pluralismo jurídico éfato decorrente de qualquer campo social vinculado a condutaspersuasivas, o “centralismo jurídico” é um “mito, um ideal, umclamor e uma ilusão”. Todavia, o poder dessa ideologia que con-cebe o Direito como ordem exclusiva e unificada numa hierar-quia de proposições normativas está fortemente introjetado naimaginação dos juristas positivistas, cabendo ao “pluralismo jurí-dico” desbancá-lo, contribuindo com uma proposta empírica maisclara que redefina o lugar do Direito na vida social”.

Especificando o conjunto dessas questões, assevera criticamen-te J. Griffiths, que é necessário distinguir duas modalidades depluralismo legal: aquele pemiitido pelo próprio Estado e um ou-tro realmente autêntico que consegue desgarrar-se de seu contro-

?“ ROULAND, Norbert, op. cit., p. 88; GRIFFITHS, John, op. cit., p. 36-37; FALKMOORE, Sally, op. cit., p. 745.

7' Cf. GRIFFITHS, John, op. cit., p. 38; ROULAND, Norbert, op. cit., p. 90.72 Cf. GRIFFITHS, John, op. cit., p. 3-5; GUEVARA-GIL, Armando e THOME,

Joseph, op. cit., p. 85-87.

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202 Pruxâusmo nmíoicoz PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERJDADE

le. Nessa perspectiva, não há como negar que, para conter e en-frentar o pluralismo jurídico, bem como resguardar a exclusivi-dade do seu monopólio de produção nonnativa, o Estado recorrea dois expedientes: tenta eliminar totalmente práticas pluralistas(“redução progressiva de competências de jurisdição não-esta-tais”) ou busca, com bastante freqüência, reconhecer ou incorpo-rar publicamente determinadas manifestações provenientes dascomunidades religiosas, grupos sociais, minorias étnicas etc. Maisprecisamente, interpretando as premissas de Griffiths, ponderaNorbert Rouland que, com essa autonomia das entidades sociais,concedida pelo Estado, cria-se um pluralismo mascarado e de fa-chada que se ajusta às regras impostas pela ordem estatal. A con-clusão a que se chega, a rigor, é a de que esta “partilha de compe-tências é operada de tal sorte pelo Estado, que os direitos não-esta-tais não representam senão um papel subordinado ou residual”'3.

Por sua inegável importância para o avanço da discussão so-bre o pluralismo jurídico contemporâneo, cabe destacar a figurade Boaventura de Souza Santos. O pesquisador português temsido, desde os anos 70 e 80, um dos nomes mais expressivos nãosó da sociologia jurídica como das ciências sociais. Com razãoreconhece Carlos Cárcova, que sua significação não só se deve asua formação “transdisciplinar e sua erudição muito ampla, comotambém seu discurso (que) é capaz de sintetizar e rearticular, per-manentemente, diferentes enfoques, permitindo-lhes assim umavisão do Direito multidimensional: dogmática e sociológica,epistêmica e política, ética e antropológica”"'4. São por demaisconhecidas no meio jurídico acadêmico suas “teses de caráter tó-pico-retórico” sobre uma retomada crítica do pluralismo jurídico,em que, utilizando-se de processos empírico-sociológicos, exa-minou as estruturas jurídicas intemas de urna favela do Rio deJaneiro, a que deu o nome fictício de Pasárgada.

73 ROULAND, Norbert, op. cit., p. 89; GRIFFITHS, John, op. cit., p. 38-39.7* CARCOVA, Carlos, op. cit., p. 93.

4.2.2 Pluralismo Juridico na América Latina 203

4. 2.2 Pluralismo Jurídico na América Latina

Nessa trajetória contemporânea que põe em relevo algumasdas mais representativas teorias jusfilosóficas, sociológicas e an-tropológicas, não poderia faltar urna breve menção ao pluralismojurídico na Arnérica Latina e no Brasil.

Inicialmente sobre a América Latina, começando pelo Méxi-co, importa assinalar as contribuições de Jesus Antonio de la Tor-re Rangel (Aguascalientes) e Oscar Correas (UNAM-DF).

Professor na Universidade de Aguascalientes, Jesus A. de laTorre Rangel em diversas obras deixa clara sua crítica aos diver-sos modelos de normativismo formal predominantes na culturaburguesa ocidental e sua opção por urna juridicidade embasadanos principios da Filosofia da Libertação e adequada à AméricaLatina. Torre Rangel defende que o Direito não só pode ser usadopoliticamente, como a política do Direito está direcionada ao es-paço do uso altemativo do Direito a favor dos pobres e dos índi-os”. Em suas lutas pela defesa de seus direitos, as populaçõesindígenas constituem sua própria identidade firmando nacional-mente um Direito autônomo e ancestral, rompendo com a lógicaalienante dajuridicidade abstrata da modernidade. Trata-se da “lutado povo pela justiça, quando o outro seja reconhecido como ou-tro. O primeiro momento será reconhecer a desigualdade dos de-siguais, e a partir daí possibilitar o reconhecimento pleno já nãodo desigual senão do distinto portador da justiça enquanto ou-tro”76. Ora, o espaço do pluralismo jurídico é onde nasce ajuridicidade altemativa. O Estado não é o lugar único do poderpolitico, tampouco a fonte exclusiva da produção do Direito. Opluralismo jurídico expressa run choque de nonnatividades, ca-bendo aos pobres, como novos sujeitos históricos, lutar para “fa-zer prevalecer seu Direito”. É muito ampla a gama de possibilida-des que oferece este direito dos pobres. Assim, “a importânciadeste uso da juridicidade pelos pobres constitui o fato de poder

P TORRE RANGEL, Jesus A. de la. Sociologúrjuridicay uso alternativo del derecho.Aguascalientes: Instituto Cultural de Aguascalientes, 1997. p. 82-83; . “Los pobresy el uso del derecho”. In: El otro derecho. Bogotá: ILSA, n. 6, Ago./1990. p. 7-14.

7° TORRE RANGEL, Jesus A. de la. EI derecho a tener derechos. Ensayos sobre losderechos humanos en México. Aguascalientes: CIEMA, 1998. p. 45-47.

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204 PLURALJSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERJDADE

apresentar altemativas à lógica do Direito dominante, pois assimo desmitifica e configura um novo tipo de relações sociais”". Porconseqüência, não há que negar a produção de uma normatividadeparalela e plural no bojo das comunidades, urna nonnatividadepara além do Direito do Estado. Todavia, os “pobres organizadosem movimentos sociais (...), não só fazem uso do Direito objetivoestabelecido pelo Estado para a defesa de seus direitos e para seorganizar. Também criam suas próprias nonnas (...). Isso consti-tui reapropriar o poder normativo; significa retirar do Estado, omonopólio da criação do Direito”73.

Jurista argentino radicado no México, Oscar Correas despon-ta como um dos principais teóricos do pensamento crítico latino-americano e um dos responsáveis pelo êxito das publicações deCrítica Juridica. Partindo de pressupostos oferecidos pelo mar-xismo, ele faz uma crítica contundente ao Direito modemo. Opon-do-se à ciência jurídica formal do positivismo, o autor defendeuma concepção de Direito voltada para os conteúdos normativosenquanto materialização dos fenômenos sócio-econômicos”.Afastando-se de enfoques forrnalistas que identificam a produ-ção normativa com o Estado, Oscar Correas expressa um interes-se muito grande por investigações sócio-jurídicas que examinamos fenômenos de pluralidade nonnativa. Entendendo que “em todasociedade modema coexistem distintos sistemas normativos quenão são necessariamente jurídicos”, o jurista da UNAM define opluralismo jurídico como “a coexistência de dois ou mais siste-mas normativos que pretendem validez no mesmo território”8°. Aexistência de muitas ordens normativas num mesmo espaço físi-co (urna dominante e outras paralelas) pode incidir em sistemasnonnativos altemativos e subversivos. A altematividade é um casode pluralismo normativo que admite a convivência de sistemaslegais distintos. Exemplos destas situações podem ser encontra-

" TORRE RANGEL, Jesus A. de la. El derecho a tener derechos. p. 72 e 75.tt Tortas RANGEL, Jesus A. de tz. op. cit., p. 74. J7° Cf. WOLKMER, Antonio C. Introdução ao pensamento jurídico critico. 2. ed.,

São Paulo: Acadêmica, 1995. p. 63.3° CORREAS, Oscar. Introducción a la sociologia juridica. México: Ediciones

Coyocán, 1994. p. 114; . “La teoria general del derecho frente al derecho indíge-na”. ln: Critica jurídica. México: UNAM/IIJ, n. 14, 1994. p. 26-27.

4.2.2 Pluralismo Juridico na América Latina 205

dos nas comunidades indígenas da América Latina ou nos gruposciganos da Espanha. Em tais sistemas, “suas nonnas são utiliza-das pelos próprios funcionários do sistema dominante, pois nãose contrapõem ao sistema oficial, sendo, por vezes, eficaz ajudapara conseguir dessas comunidades certas condutas desejadas”8'.Em outras situações de pluralidade, admitem-se os sistemas sub-versivos, ou seja, a ordem legal hegemônica entra em choque como sistema altemativo paralelo, podendo ser aquela suprimida oudiminuída pela eficácia desta, que pode tomar-se dominante. Paraeste caso, o autor menciona a guerrilha dos zapatistas no México,entre 1994-1995, em que os revolucionários não intentararn su-plantar a ordem nonnativa oficial, mas buscaram fazê-la mudarradicalmente”.

Além da produção no México, surgem com destaque certaspreocupações pluralistas de juristas críticos na Colômbia e naArgentina. Primeiramente deve-se mencionar as pesquisas deGerman Palacio sobre os serviços legais populares, as práticasjurídicas altemativas, a administração da justiça e os influxos daglobalização na esfera da legalidade. Para German Palacio, a cri-se do monismo jurídico abre caminho à emergência do pluralismojurídico, que aparece num período de transição marcado pela dis-persão aparente e pela fragmentação jurídica. Isso explica a razãodo reaparecimento do pluralismo ao expressar “um novo modelojurídico” no âmbito do capitalismo de acumulação flexível. Tra-ta-se de uma pluralidade marcada pela “porosidade e inter-rela-ção”, onde o “Estado é substituído ou complementado por múlti-plas instituições: a corporação transnacional, o mercado intema-cional (...), a localidade, a comunidade, a família, o grupo religi-oso (...), a organização não-governamental”83. A análise dopluralismojurídico leva ao reconhecimento dos microdireítos, daspráticas de legalidade informal e dos processos dedesregulamentação. Ainda que admita diversos tipos de pluralismojurídico e destaque o pluralismo juridico do capitalismo

8' CORREAS, Oscar. Introducción a la sociologia juridica. p. ll6-117; .Teoria del derecho. Barcelona: Editorial M. J. Bosch, 1995. p. 156-157.

32 CORREAS, Oscar. Teoria del derecho. p. 158.83 PALACIO, Germán. Pluralismojuridico. Bogotá: IDEA/Universidad Nacional, 1993.

p. 18-19 e 56-57; WOLKMER, Antonio C. Introdução ao pensamento juridico. p. 70.

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206 PLURALJSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

globalizado de acumulação flexível, German Palacio reconhece aexistência e a significação das “formas populares do Direito in-surgente, do Direito surgido do povo (...)”, das fonnas jurídicasproduzidas por lutas sociais e por práticas normativas inovadorase altemativas (Direito indígena, Direito da transformação social eDireito insurgente) que desafiam os limites do Direito oficial”.

Há de se fazer alusão igualmente a Eduardo Rodriguez M. (ad-vogado colombiano com mestrado em sociologia) para quem opltnalismo jurídico reproduz O Direito do capitalismo atual. Anova etapa de regulação jurídica vem sendo marcada pelo “dina-mismo dos novos movimentos sociais” e pelo “processo deglobalização da economia”85. O desmonte e a privatização do Es-tado do Bem-Estar Social favorece a direção para adescentralização administrativa, O fortalecimento da sociedadecivil e a consolidação de novas instâncias de jurisdição comuni-tária. O pluralismo juridico se apresenta “como novo mecanismode produção da legitimidade e do consenso dentro da sociedadedo capitalismo contemporâneo”3°. O autor procura distinguir Opluralismo jurídico de natureza estatal do pluralismo de naturezapopular. A configuração do modelo pluralista de “natureza esta-tal” se insere na “redefinição entre o público e O privado”, tendocomo conseqüência a estatização da sociedade civil e amimetização do Estado dentro da sociedade civil. Decorre do pro-cesso “um movimento de desjuridização das relações sociais deprodução”. Ora, desmonta-se a estrutura jurídica anterior e passa-se a “formalizar as estruturas comunitárias que se produziam demaneira infonnal com o propósito de provê-las de uma estruturade obrigatoriedade e coerção que pennitam a co-presença do fun-cionamento estatal dentro de seu circuito e lógica de funciona-mento. Esta institucionalização da informalidade aparece comoum movimento que através de sua formalização pretendereatualizar O Estado e o Direito não somente como mecanismosidôneos de exercício do monopólio da força (...), senão como in-

” PALACIO, Germán, Op. cit., p. 56, 124, 131-132.85 RODRIGUEZ,l\/1. Eduardo. “Pluralismo jurídico. El Derecho del capitalismo actual?

Nueva sociedad. Venezuela, n. 112, Mar./Abr. 1991. p. 91-101.3° RODRIGUEZ, M. Eduardo, op. cit., p. 94, 95 e 100.

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4.2.2 Pluralismo Juridico na América Latina 207

tentos de construir novos mecanismos sintéticos que permitem avigência plena da existência mercantil da propriedade e, portan-to, do traba1ho”37. Já o modelo de “pluralismo juridico de nature-za popular” manifesta-se no reconhecimento estatal do Direitointemo das comunidades, porém desconfiando do impacto e dosresultados de uma formalização desse Direito. Explicam-se, as-sim, as lutas pelo “reconhecimento do Direito intemo das organi-zações”, a ampliação das relações comunitárias, o incentivo nabusca “de sistemas organizativos que não reproduzam amercantilização da vida social (...); da reformulação das fontesdo Direito (...) e do objeto do jurídico”38.

Na Argentina, o pluralismo jurídico tem merecido a atençãodo jusfilósofo da Universidade de Buenos Aires, Carlos Cárcova,que tem, por mais de duas décadas, investigado temas como: mar-xismo e Direito, teoria crítica, Direito altemativo, Direitos huma-nos e multiculturalismo. Sempre muito atento às transformaçõesque atravessam a Filosofia e a Teoria do Direito, Carlos Cárcovaintroduz em sua obra A Opacidade do Direito instigantesquestionamentos sobre novas práticas de pluralismo relacionadasa processos de aculturação, migrações e multietnias. CarlosCárcova projeta a altematividade como “complexa operação apartir da qual se desenvolvem os valores emancipatórios contidosnas promessas não cumpridas da modemidade, reivindicando oDireito como paradoxo e não como pura negatividade. O Direito(...) é ao mesmo tempo opressão e emancipação”89. Frente a talperspectiva cabe visualizar e sublinhar, no amplo prospecto dapluralidade de ordenamentos normativos, o novo pluralismo re-sultante dos “fenômenos migratórios que caracterizam a socieda-de de fim do milênio e que expressam as situações decisivas quedevem enfrentar as atuais sociedades multiétnicas e multiculturais;outro (pluralismo), também recente, que emerge das práticasautogestoras dos setores populares, que procura preencher os va-zios deixados por um Estado em retirada e por uma juridicidade

8? RODRIGUEZ, M. Eduardo, op. cit., p. 100.33 RODRIGUEZ, M. Eduardo, op. cit., p. 100. Observar ainda: . “La producción

social del derecho”. ln: El otro derecho. Bogotá: ILSA, n. 6, Ago.l1990. p. 57-58.8° CARCOVA, Carlos, op. cit., p. 121.

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208 PLURALJSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

incapaz de satisfazer demandas generalizadas que fazem a prote-ção de direitos e garantias fundamentais”9°.

Finalizando, não se pode deixar de registrar que O tema dopluralismo juridico tem estado presente na discussão teórica e naprática social dos integrantes do Instituto Latino-Americano deServiços Legais Altemativos (ILSA-Bogotá). E inegável O esfor-ço e a importância dessa entidade não-govemamental que promo-ve o incremento dos serviços legais e de maior acesso à justiça noâmbito da América Latina e do Caribe. Em seus vinte anos deexistência, O ILSA não só tem privilegiado O estudo de culturaslegais infonnais, como, sobretudo, tem incentivado a formaçãode coordenações nacionais de práticas jurídicas insurgentes emtoda a América Latina. Constituído por investigadores de diver-sos países, o ILSA promove “(...) encontros de capacitação e deintercâmbio de experiências, estudos de campo, onde secontextualiza e evolui o trabalho dos grupos de Serviços LegaisAltemativos, publicações de informações e análises, campanhasde denúncia, de solidariedade, de mobilização em favor de rei-vindicações populares”°'. Certamente, os grupos de serviços le-gais altemativos, vinculados ao ILSA, operam principalmente comvítimas das violações dos direitos humanos, com grupos de mulhe-res, negros, índios, camponeses, desapropriados, organizações sin-dicais etc. Em suma, O ILSA tem encontrado no pluralismo jurídi-co “urn caminho teórico muito promissor”, ou seja, um marco soci-ológico que vem dando as suas diferentes frentes de luta, sentidode viabilidade histórica, não mais “como simples declaração ética,mas como reivindicação de “outro direito°”, por parte dos “novossujeitos frente à lógica individualista do Direito existente”92.

Após algumas contribuições específicas no contexto da Amé-rica Latina, há de tratar-se agora sobre a tradição do pluralismojuridico no Brasil. Como já se consignou no tópico sobre a for-mação da cultura juridica brasileira (2.l), encontra-se, ao longodos séculos XVII e XVIII, uma tradição comunitária muito viva,

9° Idem, ibidem. p. 121.°' WOLKMER, Antonio C. op. cit., p. 71. Consultar igualmente: Junta Directiva. “Qué

es ILSA, hacia dónde;va?” In: El otro derecho. Bogotá: ILSA, n. 3, Jul./ 1989. p. 5-49.92 MONCAYOS, Héctor-León. “Las huellas más profundas de una larga marcha”.

Boletin Comemorativa 20 años - 1978/1998. Bogotá - ILSA, 1998. p. 03.

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4.2.2 Pluralismo Juridico na América Latina

mas nem sempre reconhecida, de pluralismo jurídico, nos antigos“quilombos°”3 de escravos negros e em certas “reduções” ou co-munidades missioneiras”. Adrnite-se também, durante O EstadoMonárquico do século XIX, certa prática de pluralismo societárioe jurídico, basicamente de teor elitista e conservador. No mais,em meados do século XX, com O advento de uma cultura forte-mente impregnada do positivismo republicano, a consagração ideo-lógica do “monismo estatal” e do “centralismo legal” tolherarn eminimizaram todo um rico legado de práticas pluralistas.

Todo esforço de recuperação de uma cultura jurídicadescentralizadora e não-oficial tem sido aventado por estudos iso-lados e periódicos de alguns poucos pesquisadores que nem sem-pre estiveram plenamente identificados com O ideário dopluralismo jurídico e com uma postura política democrática. Tor-na-se difícil identificar, na evolução hegemônica de nossa culturajuridica estatal, predominantemente centralizadora, positivista efonnal, grandes expressões teóricas do pluralismo legal.

Entretanto, devem ser mencionados, com ressalvas, intérpre-tes que destacaram a presença e a influência de manifestaçõesjurídicas não-estatais. Ainda que possa ser considerado um morristaautoritário da Velha República (anos 20 e 30), Oliveira Viannademonstra, no estudo sobre as Instituições Politicas Brasileiras,que cabe reconhecer, além do Direito Estatal elaborado pelas eli-

” Os “quilombos” se constituíram em pequenas comunidades rurais povoadas porescravos negros fugidos das fazendas que buscavam defender-se da dominação e repres-são colonial. Eram organizados livremente e de forma auto-suficiente, baseados na ocu-pação da terra, na propriedade coletiva, na agricultura de subsistência e na luta armada.Para maior abrangência, consultar: FREITAS, Décio. Palmares, a guerra dos escravos.5. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987; MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebeliãonegra. 7. ed., São Paulo: Brasiliense, 1987.

9* Já as “reduções” consistiam em comunidades indígenas, muitas das quais apoiadaspor padres jesuítas, onde as terras, a propriedade, Os bens e os meios de produção eramcompartilhados e assumidos em comum, fundados sobre as bases do coletivismo solidá-rio. Observar a propósito: LUGON, C. A república “comunista” cristã dos guaranis. 3.ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. 2.ed., Porto Alegre: EST/Nova Dimensão, 1987; KERN, Amo Alvarez. Missões: uma uto-pia politica. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. Em espanhol pode-se encontrar:ARMANI, Alberto. Ciudad de diós y ciudad del sol. El “estado” jesuíta de los Guaraníes(1609-1768). México: Fondo de Cultura Económica, 1996; HERRERO, Beatriz Fernández.La utopia de América: teoria, leyes, experimentos. Barcelona: Anthropos, 1992.

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210 PLURAUSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

tes, “consubstanciado na lei e nos códigos”, a existência de umDireito produzido pela sociedade, um “Direito criado pela massa(...), de criação popular, mas obedecido como se fosse um Direitocodificado e sancionado pelo Estado”°5.

Partindo dos pressupostos inspirados na “teoria da instituição”de M. Hauriou, A. Ségal e J. Brethe de la Gressaye, nos anos 50,Luiz José de Mesquita pleiteou, em sua obra Direito Disciplinardo Trabalho, a defesa de um pluralismo institucionalista que con-templa a obrigatoriedade de “direitos sociais” dos vários gruposorganizadosgõ.

Também com base em observações extraídas de Gierke, Ehrliche Gurvitch, Evaristo de Morais Filho propugnou, em trabalhos an-teriores, não só por um Direito profissional coletivo distintamentedo Direito positivo estatal, como tratou de examinar as diversasexteriorizações jurídicas naturais e infonnais no seio de sindicatos,grupos de empresas e atividades cooperativas. Para este jurista, certasmanifestações profissionais e práticas nonnativas costumeiras quesurgem à margem do Direito oficial e que, por vezes, acabam con-frontando-o, devem ser reconhecidas como “Direito vivo, nascidodos fatos nonnativos da própria sociedade: chama-se também a issode Direito social, extra-estatal, direito este espontâneo, auto-regu-lador dos grupos profissionais”.

Igualmente em sua Introdução à Ciência do Direito, AndréFranco Montoro se mostra sensível à tese do pluralismo jurídico.Sublinha em um dado momento da obra que, ao lado das fontesjurídicas estatais, ocorrem “outras nonnas, efetivamente obriga-tórias e exigíveis, de origem não-estatais. São elaboradas pelosdiferentes grupos sociais e destinadas a reger a vida intema des-ses grupos”93. Prossegue o jusfilósofo paulista, na esteira de uma

9

95 OLIVEIRA VIANNA, F. Instituiçõespoliticas brasileiras. Rio de Janeiro: Record,1974. p. 22.

96 Cf. MESQUITA, Luiz José de. Direito disciplinar do trabalho. São Paulo: Sarai-va, 1950. Ver, nesse aspecto: LEGAL, Alfred; GRESSAYE, Jean Brethe de la. Lepouvoirdisciplinaire dans les institutions privées. Paris: Sirey, 1938.

97 MORAIS FILHO, Evaristo. Direito profissional, extra-estatal ou social. In: SOUTO,Cláudio; FALCÃO, Joaquim [Orgs.]. Sociologia e direito: leituras básicas de sociolo-gia juridica. São Paulo: Pioneira, 1980. p. 192-193.

°* FRANCO MONTORO, André. Introdução à ciência do direito. 5. ed., São Paulo:Martins; Belo Horizonte: Itatiaia, 1973, 2. v. p. 101.

4. 2.2 Pluralismo Juridico na América Latina 21 1

direção que remonta a Santi Romano e Gurvitch, que a “cada gru-po social particular corresponde um “ordenamento jurídico”, comcaracterísticas próprias. Temos, assim, ao lado do ordenamentojurídico estatal, ordenamentos jurídicos empresariais, esportivos,religiosos, sindicais, escolares etc.'”9. Tais “ordenamentos jurídi-cos”, independentes do Estado, constituem fontes do Direito comcaráter subsidiário, revelando a especificidade intema de um “po-der legislativo” e de um “poder jurisdicional.” Em toda coletivi-dade organizada, subsistem forças institucionais ou grupos soci-ais com capacidade para gerar direíto autônomo intemo, podendoser qualificados da seguinte natureza: a) direito estatutário (direi-to das associações, empresas, fundações, universidade etc.); b)direito esportivo; c) direito social nas relações de trabalho; d) di-reito religioso ou eclesiástico; e) direito costumeiro nas relaçõesinternacionais*°°.

De outra parte, compartilhando das formulações de GiorgioDel Vecchio, A. Franco Montoro aduz que, não obstante as nor-mas estatais constituam o grau mais elevado de fonnação do Di-reito positivo, “seria contrário ao espírito científico considerarcomo inexistentes as demais formações jurídicas que surgem noseio da sociedade”, pois elas “têm vigência efetiva e se desenvol-vem continuamente ao lado das leis do Estado”'°'.

A questão da fonnação extralegislativa é focalizada tambémpelo jurista-sociólogo F. A. de Miranda Rosa, que admite o cará-ter inegável de toda uma “copiosa” produção de nonnas jurídicasfora dos órgãos legiferantes do Estado. Trata-se de umanormatividade extra-estatal, com força coativa advinda de associ-ações e organizações sindicais, bem como das regras e dos acor-dos entre grandes corporações industriais. Essas regras não oriun-das dos órgãos do Estado, que prevalecem em casos de conflito,têm, para Miranda Rosa “urna importância que ainda está por re-ceber exame e pesquisa adequados à sua verdadeira influência nasociedade. Elas são bem a medida da afirmação de que o Direitoé reflexo da realidade social e se ajusta, necessariamente, às de-

9° FRANCO MONTORO, André, dp. cit., p. 334.10° cf. FRANCO MONTORO, André, np. dit., p. 101, 390-391.'U' FRANCO MoNroRo, André, dp. cn., p. 105.

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212 PLURALISMO IuRir›1co: PRo1EÇÃo DE UM MARCO DE ALrER1oADF.

mais fonnas de sociabilidade adotadas pelo grupo, a cujo modode viver, a cujas crenças e valorações se adapta”'°2.

Outra relevante incursão sociológica acerca de práticas jurídi-cas não-estatais produzidas por populações marginalizadas, en-volvidas em conflitos patrimoniais e invasões urbanas, foiinvestigada por Joaquim A. Falcão. Fruto dessa pesquisa é o arti-go “Justiça Social e Justiça legal: conflitos de propriedade noRecife”, no qual o autor examinou atentamente uma série de ex-periências empíricas que comprovam a ocorrência de pluralismojurídico no Brasil. No seu entender ocorreram, no país, duas mo-dalidades de Direito: um Direito legal estatal e um Direito socialnão-estatal. Isso permite assinalar a generalização de que as soci-edades contemporâneas têm como características a presença devários direitos espacial e temporalmente concomitantes. Apluralidade de manifestações normativas não-estatais se deve, emgrande parte, de um lado, à “baixa eficácia da legalidade estatal”,de outro, ao nível da “crise de legitimidade” que atinge o regimepolítico. Por trás de uma postura pluralista há muito de um de-sempenho abrangente capaz, tanto de discemir que o “Direito es-tatal tem uma ambição totalitária”, ou seja, é “apenas hegemônicoou dominante mas não exclusivo”, quanto de desenvolver um co-nhecimento juridico abrangente que saiba revelar determinadas“manifestações já positivadas, mas ainda não dominantes”1°3. Arigor, para Joaquim A. Falcão, a principal razão de ser dopluralismo juridico, é a de tentar explicar teoricamente “a convi-vência contraditória, por vezes consensual e por vezes conflitante,entre os vários direitos observáveis numa mesma sociedade”'°4.

Igualmente, em suas pesquisas sobre “política jurídica”, a maisde duas décadas, em Santa Catarina, Osvaldo Ferreira de Meloabriu um espaço para o pluralismo jurídico e para a retomada deuma problematização sobre as fontes de produção jurídica, inclu-indo urna discussão sobre a positivação do Direito informal. Aoenfatizar que a norma jurídica não deve ser sacralizada e que é

'02 MIRANDA ROSA, F. A. de. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.p. 58-59.

1°-3 FALCÃO, Joaquim de Arruda [Org.]. Conflito de direito de propriedade -inva-sões urbanas. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 80-85.

'04 Idem, ibidem, p. 83.

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4.2.2 Pluralismo Juridico na América Latina 213

necessário repensar a questão da sanção, declara ainda que a “po-lítica jurídica” não admite a obrigatoriedade do caráter absolutodas fontes jurídicas pelo processo legislativo. Alude o autor àpremência atual de se diferenciar um “pluralismo jurídico for-mal” (sobre um mesmo fato a incidência de regras de Direitomúltiplo: direito do menor) de um “pluralismo jurídico informal”(normas disciplinares produzidas pelas instituições, nonnas in-ternas de associações administrativas, estatutos consensualizadosdas favelas etc.)'°5.

Outra contribuição, embora sem tratar do tema de modo ponne-norizado, é a de Roberto Lyra Filho, que incorpora premissaspluralistas em sua análise dialética da sociedade e do Direito. Par-tindo de posturas contrárias à redução distorcida “jusnatuialismolpositivismo”, Lyra Filho advoga um projeto juridico altemativo,capaz de captar uma estrutura social classista, marcada por situa-ções conflituais e ordenamentos jurídicos plurais. E preciso notar,consoante Lyra Filho, que a principal “(...) inversão que se produzno pensamento jurídico tradicional é tomar as nonnas como Direi-to e, depois, definir o Direito pelas nonnas, limitando estas às nor-mas do Estado e da classe e glupos que o dominam”'°6. A tarefa depensar e transformar a ordem existente obriga a ter presente que aestrutura social é atravessada pela coexistência conflitual e pelopluralismo de normas jurídicas geradas pela divisão de classes en-tre dominantes e dominados. É no bojo do pluralismo jurídico in-surgente não-estatal que se tenta dignificar o Direito dos oprimidose dos espoliados. Evidentemente, o Direito não mais refletirá comexclusividade a superestrutura normativa do modemo sistema dedominação estatal, mas solidificará o processo normativo de baseestrutural, produzido pelas cisões classistas e pela resistência dosgrupos menos favorecidos”.

105 Ver, a esse propósito: MELO, Osvaldo Ferreira de. Sobre política juridica (I) e (II).Seqüência Florianópolis, n. l. p. 13-17; n. 2, p. 27-32, 1980; . Positivação dodireito informal, uma questão de política juridica. Seqüência Florianópolis, n. 7, p. 9-l5,Jun/1983.

'06 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 118-II9; _____. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sergio A. Fabris, 1980. p. 19.

"" Cf. WOLKMER, Antonio C. Introdução ao pensamento juridico critico. SãoPaulo: Acadêmica, 1991. p. l23.

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214 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

Seguindo O “juridicismo dialético” de Roberto Lyra Filho e asinvestigações do pluralismo legal de Boaventura de S. Santos,José Geraldo de Souza Júnior destaca-se, hoje, como um dos es-tudiosos brasileiros mais envolvidos com a implementação de umprojeto empírico de pluralismo jurídico popular. Suas preocupa-ções teórico-práticas, como já se mostrou em outro trabalho”,incidem na análise e no resgate de determinados temas como aanomia, poder popular, movimentos sociais, pluralidade deordenamentos e dualidade de poderes. Destarte, O que importaobservar, para O autor, é “(...) a descoberta de canais de expressãoque viabilizem a participação dos indivíduos e grupos sociais noprocesso de elaboração do Direito (...) a fim de que a necessáriafonnalização (...) não se oponha, antinomicamente, ao “direitoque nasce, ainda desprovido de fonna, da base social, em fluxoconstante e incessantemente renovado°°°'°9. Nesse aspecto, a or-ganização dos interesses diretos dos setores populares de basematerializa O conteúdo dos novos Direitos, substituindo as insti-tuições tradicionais hegemônicas.

Por fim, outro nome no pensamento jusfilosófico brasileiro éLuiz Femando Coelho, que tem ressaltado, determinadas premis-sas histórico-dialéticas de altemativa pluralista. Este jurista aler-ta para O fato de que a emergência das teses pluralistas penniteenfatizar os “diferentes centros de produção nonnativa paralelaao Direito positivo, produção que tende a ocupar seu próprio es-paço social, ainda que integrado ao Direito oficial, ou contra ele”“°.Tendo em vista que se faz necessário transpor a concepção jurídi-ca ontológica da unicidade e estatalidade para o nível de uma“ontologia do ser social”, correto é propor novo fundamento parao pluralismo jurídico. Desta forma, toma-se prioritário articular Opluralismojuridico com os movimentos sociais de libertação. Umaconjunção histórica que, segundo Luiz Femando Coelho, leva areconhecer não só a “conquista dos espaços nonnativos pela or-ganização social dos oprimidos”, como, sobretudo, a expansão de

1°” lbidem. p., 125.'°° SOUZA JUNIOR, José Geraldo de. Para uma critica da eficácia do direito. Porto

Alegre: Sérgio A. Fabris, 1984. p. 19, 25 e 132-136; . Ser Constituinte. Humani-dades. Brasília, n. 11, p. 11-17, 1986/1987.

“° COELHO, Luiz Femando, op. cit., p. 290.

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4. 2.2 Pluralismo Juridico na América Latina 215

“uma produção jurídica autônoma de grupos microssociais opri-midos mas ascendentes (...)”'“.

Nesse quadro, a meta não se situa no questionamento dos in-fluxos jurídicos políticos dos movimentos coletivos de liberta-ção, mas O essencial é a comprovação de que “as convenções doscidadãos e das associações de classe engendradas no seio dosmovimentos sociais passam a ser encaradas como fontes do Di-reito num sentido prevalecente, e não subordinado ao fonnalismodas fontes chamadas formais”“2.

Deve-se observar que as propostas de Luiz Femando Coelhoe, sobretudo, de José Geraldo de Souza Jr., ainda que resguarda-das suas nuanças próprias, interesses ideológicos e especificidadesmetodológicas, abrem toda uma gama de sugestões inovadoraspara problematizar e repensar, no Brasil, a questão do “pluralismojuridico” a partir de novas bases de legitimação, assentadas emfunção dos movimentos sociais compreendidos como novos “su-jeitos coletivos de Direito”“3.

Em síntese, a preocupação com O fenômeno do pluralismo ju-rídico, seu questionamento crítico-sociológico, sua relação comO Direito altemativo e sua leitura no final do milênio frente àglobalização e ao neoliberalismo, têm merecido a atenção de im-portantes investigadores do Direito, como Eliane B. Junqueira,Luciano de Oliveira, Marcelo Neves, Edmundo de L. Arruda Jr. eJosé Eduardo Faria“4.

'“ Idem, lbidem. p. 290-292.“2 COELHO, Luiz Femando, op. cit., p. 291. Observa ainda: . O Estado singu-

lar e O direito plural. Revista Faculdade de Direito. Curitiba, n. 25. p. 159-160, 1989.“3 Cf. SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de. Movimentos sociais - emergência de no-

vos sujeitos: O sujeito coletivo de direito. In: ARRUDA JÚNIOR, Edmundo L. de [Org.].Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1991. p. 131-142.

“4 Consultar: JUNQUEIRA, Eliane B. A sociologia do direito no Brasil. Rio deJaneiro: Lumen Juris, 1993; OLIVEIRA, Luciano. “O pluralismo juridico como signo deuma nova sociedade na América Latina: mitos e realidade”. Texto inédito. Recife. 27 p.;NEVES, Marcelo. “Do pluralismo juridico à miscelânia social: O problema da falta deidentidade da (s) esfera (s) de juridicidade na modemidade periférica e suas implicaçõesna América Latina”. Direito em debate. n. 5, jan./jun. 1995 _ p. 7-37; ARRUDA JÚNIOR,Edmundo L. Direito moderno e mudança social. Belo Horizonte: Del Rey, 1997; FA-RIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999. p.150-217.

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216 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALrERrDADE

4.3 Pluralismo Juridico: Possibilidades e Limites

Tendo em vista a presente construção teórica, toma-se indis-pensável, para um avanço epistêmico e precisão metodológica,focalizar com maior nitidez questões nucleares como“conceituação”, “fatores causais” ou critérios explicativos de “ori-gem”, “objetivos”, “classificação”, “objeções”, “limites” e “pos-sibilidades” do pluralismo juridico.

Preliminarmente, observa-se que, diante da existência de múl-tiplos fenômenos de pluralismo legal, toma-se inapropriado e in-correto estabelecer um único conceito do tema em discussão. Acontrovérsia é compreensível na medida em que os aspectos pri-vilegiados podem ter um cunho jusfilosófico, sociológico e an-tropológico. Isso não invalida a consensualidade comum entretodos de que, de um lado, em qualquer sociedade, antiga ou mo-dema, ocorrem múltiplas fonnas de juridicidade conflitantes ouconsensuais, formais ou infonnais; de outro, de que O Direito nãose identifica e não resulta exclusivamente do Estado.

Tais premissas pennitem elucidar a proximidade e distância dospressupostos em consideração. Como ponto de partida, tentandocompor um conceito mais genérico, funcional e sistemático, JacquesVanderlinden concebe O pluralismo jurídico como a “existência,numa determinada sociedade, de mecanismos jurídicos diferentesaplicando-se a situações idênticas”“5. Trata-se de tuna hipótese detrabalho que pretende alcançar e integrar um grande número defenômenosjuridicos bem caracterizados e específicos. Segundo estemesmo autor, diferentes situações históricas podem confirmar es-tas asserções, como: O casamento entre patrícios e plebeus, na Romaantiga; a humidade diplomática, na sociedade modema; a aplica-ção e a prática num país colonizado do Direito autóctone,concomitantemente com O Direito imposto da Metrópole etc.“6

Autores mais recentes como Sally Falk Moore e John Griffiths,teorizando com base em dados oferecidos por análises empíricasantropológicas, postulam O caráter universal do pluralismo juri-

"5 VANDERLINDEN, Jacques. Lé plrnnlismé jin-idiqné. mz GILISSEN, J. [Dn.], np.

4.3 Pluralismo Juridico: Possibilidades e Limites 217

dico, permanentemente associado a uma multiplicidade de “carn-pos sociais semi-autônomos”. A distinção entre ambos está nofato de que o pluralismo juridico, para S. Falk Moore, é constituí-do pela articulação e interdependência de ampla rede de “campossociais semi-autônomos” com relação à ordem estatal, cada qualconvivendo com direitos distintos, estatais ou não. Já John Griflithsutiliza a categoria de “campo social semi-autônomo” para ir maislonge e admitir radicalmente que “todo Direito não é Direito esta-tal”, sendo que O pluralismo legal autêntico é aquele dos campossociais não-estatais. Nesse contexto, O Direito é visto como “auto-regulação de um campo social semi-autônomo”, em cujo espaçoO pluralismo jurídico não só é a condição normal e universal daorganização societária hegemônica como, essencialmente, a con-seqüência natural do pluralismo socialm.

Pesquisas realizadas sobre urna série de conflitos de proprie-dade no perímetro urbano do Recife (Brasil), ao longo dos anos70, levaram Joaquim A. Falcão a identificar rima certa duplicidadenonnativa inerente à condição de pluralismo, porquanto coexisti-riarn uma justiça legal com uma justiça social, um Direito legalestatal com um Direito social não-estatal. Entende o autor quenão só a crise de legitimidade política favorece a emergência depráticas jurídicas paralelas, como, por outro lado, assinala que Opluralismo não deve ser confundido unicamente com a defesa doDireito não-estatal. Na realidade, no dizer de Joaquim Falcão, Opluralismo jurídico deve ser visualizado como O esforço teóricode “explicar a convivência contraditória, por vezes consensual epor vezes conflitante, entre os vários direitos observáveis numamesma sociedade”“8.

Inspirando-se em categorias extraídas da sociologia juridicamarxista, após uma revisão das principais teses teóricas e empíricassobre O tema, Boaventura de S. Santos propõe um conceito ampli-ado de pluralismo legal, reproduzido no âmbito de dominação dassociedades capitalistas e gerado na articulação concreta de contra-dições e lutas de classes. Tal inserção histórica assume dimensãointerclassista e intraclassista, deixando transparecer diferentes mo-

¢it_, p_ 19-20_ “7 Cf. FALK MOORE, Sally, op. cit., p. 722; GRIFFITHS, John, op. cit., p. 38.“Ú ld;-zm, ibid¢m_ p, 21_ “B FALCÃO, Joaquim de Arruda [Org.], op. cit., p. 80-83.

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218 Pruaâusmo Juatolcoz PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERJDADE

dos de manifestações jurídicas e configurando um pluralismo jurí-dico, cuja dinâmica reflete a materialidade de “conflitos sociaisque acumulam e condensam clivagens sócio-econômicas, políticase culturais particularmente complexas e evidentes”' '9.

Na proposta de Boaventura de S. Santos, a pluralidade de Di-reitos a senta-se em amplo processo de relações capitalistas, en-volvendo práticas sociais, formas institucionais, mecanismos depoder, modo de racionalidade e fonnas jurídicas, relações de po-der e conflitos sociais, compondo um amplo espectro de interaçõesque se enquadram em seis “espaços estruturais”. A percepção dapluralidade está em que cada “espaço estrutural” abarca uma for-ma particular de Direito: Direito doméstico (domesticidade, fa-mília, casamento), Direito da produção (trabalho, classe, fábrica,sindicato), Direito do mercado (espaço da troca, comércio, pro-dutores e consumidores), Direito da comunidade (espaços dosterritórios físicos e simbólicos, grupos oprimidos e hegemônicos),Direito territorial (cidadania, indivíduo, Estado) e Direito sistêmicoou mundial (mundialidade, nação, acordos intemacionais)”°. Fun-damentalmente, para o sociólogo português, a concretização dopluralismo jurídico acontece sempre “que no mesmo espaçogeopolítico vigora (oficialmente ou não) mais de uma ordemjurí-dica. Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentaçãoeconômica, rácica, profissional ou outra, pode corresponder a umperiodo de ruptura social como, por exemplo, um período de trans-fonnação revolucionária; ou pode ainda resultar, (...) da confor-mação específica do conflito de classes numa área determinadada reprodução social (...)”*2*.

Sob o influxo das perspectivas arroladas e em meio às contri-buições entreabertas pelos autores destacados, pode-se esboçar

i "° SANTOS, Boaventura de Souza, 1988, op. cit., p. 76.'2° Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma ciência pós-moderna.

Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 151-l53; ___ . La transición postmodema: derecho ypolítica. Doxa. Cuadernos de filosofia del derecho. Alicante, ri. 6, p. 253, 1989; ___. ACrítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência São Paulo: CortezEditora, 2000. l v. p. 277-278 e p. 292-303.

'Z' SANTOS, Boaventura de Souza. Notas sobre a históriajurídico-social de Pasárgada.mz souza IÚNIOR, José Geraldo de [Org.]. O âfrztza achada mz ma. Brasília: uns,1987. p. 46.

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4.3 Pluralismo Juridico: Possibilidades e Limites 219

uma conceituação que, embora reconhecendo ser um tanto gené-rica, serve como referencial para os intentos de nossa proposta depesquisa. Sendo assim, há de se designar o pluralismo juridicocomo a multiplicidade de práticas jurídicas existentes num mes-mo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consen-sos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nasnecessidades existenciais, materiais e culturais.

Partindo dessa conceituação, quer-se ressaltar, na dinâmicaatual do processo societário, algumas das causas determinantespara o aparecimento do pluralismo juridico. Nesse aspecto, o de-bate se tomará mais fácil tomando em conta uma “média” de trêsdescrições diferenciadas, mas que oferecem certos subsídios co-muns para se situar a questão do pluralismo jurídico como marcoteórico na órbita de sociedades do Capitalismo periférico e agra-vadas por profundas crises político-institucionais.

Com a lucidez que lhe é habitual, nas suas reflexões Boaventurade S. Santos deixa transparecer que o colonialismo impulsionoutanto a sociologia quanto a antropologia, para resgatar o proble-ma do pluralismo juridico. Na realidade, examinando mais aten-tamente o fenômeno, assinala o professor de Coimbra que osurgimento do pluralismo legal reside em duas situações concre-tas, com seus possíveis desdobramentos históricos: a) “origemcolonial”; b) “origem não colonial”. No primeiro caso, o pluralismojurídico desenvolve-se em países que foram dominados econômi-ca e politicamente, sendo obrigados a aceitar os padrões jurídicosdas metrópoles (colonialismo inglês, português etc.). Com isso,impôs-se, forçosamente, uma unificação e administração da colô-nia, possibilitando a coexistência, num mesmo espaço, do “Direi-to do Estado colonizador e dos Direitos tradicionais”, autóctones,convivência que se tomou, em alguns momentos, fator “de con-flitos e de acomodações precárias”“2.

Para além do contexto explicativo colonial, Boaventura de S.Santos ressalta que devem ser consideradas, no âmbito dopluralismo jurídico de “origem não colonial”, três situações dis-tintas. Primeiramente, países com cultura e tradições normativaspróprias, que acabam adotando o Direito europeu como fonna de

'22 SANTOS, Boaventura de Souza, op. cit., p. 73-74.

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220 PLURALISMO J¬uRír›1Co: PROJEÇÃO DE um MARCO DE ALTERJDAOE

modemização e consolidação do regime político (Turquia, Etiópiaetc.). Nrurr outro caso, trata-se da hipótese em que determinadospaíses, após sofrerem o impacto de uma revolução política, conti-nuam mantendo por algum tempo seu antigo Direito, ainda queabolido pelo novo Direito revolucionário (repúblicas islâmicasincorporadas pela antiga URSS). Por fim, aquela situação em quepopulações indígenas ou nativas não inteiramente dizimadas esubmetidas às leis coercitivas dos invasores, adquirem a autoriza-ção de manter e conservar seu Direito tradicional (população au-tóctone da América do Norte e da Oceania etc.)'23. Tais casosaqui aventados, consolidados por longo tempo em estruturas “he-terogêneas”, não esgotam todas as possibilidades de práticasnormativas, pois esta revisão serve para reforçar a proposta doautor de retrabalhar um conceito ampliado de pluralismo jurídi-co. Isso leva a pensar num paradigma que retrate as especificidadesda reprodução juridica numa área determinada de Estados doCapitalismo periférico, marcados por estruturas de“homogeneidades precárias” e compostas por espaços sociaisconflituosos, quer por lutas de classes, quer por contradições deteor sócio-econômico e político-cultural.

Tecendo ponderações sobre a natureza da justiça, enquantoreflexo da aplicação do Direito na sociedade brasileira dos anos70/80, Joaquim A. Falcão introduz, de fonna inovadora, a asserçãode que a causa direta do pluralismo jurídico deve ser encontradana própria crise de legitimidade política. Adverte o autor quemanifestações normativas não-estatais não devem ser explicadasoriginariamente como resultantes unicamente de estruturassocietárias da fase pré-capitalista e pré-estatal. Muito menos ape-nas de situações de dependência colonial ou de condições gera-das por guerras intestinas, bem como de impasses operacionaisrelacionados à disfunção ou ineficácia do Direito Estatal. Ao con-trário do que possam acreditar certas correntes do pluralismo,entende Joaquim A. Falcão que, em países do Terceiro Mundo,como O Brasil, o aparecimento de situações paralegais, paralelasou extra-legem, incentivadas, aceitas ou não pelo próprio Direitooficial, está correlacionado diretamente com a variável da legiti-

*23 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza, 1988. op. cit., p. 74-75.

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4.3 Pluralismo Juridico.° Possibilidades e Limites 22]

midade do regime politico. Assim, a pretensão da exclusividadeda legalidade oficial e sua eficácia real “para absorver ou neutra-lizar as manifestações normativas não-estatais” em contingênciacrescente está condicionada pelo grau da legitimidade da estrutu-ra de poder (autoritário ou democrático). Dentro dessa hipótese,para o consagrado investigador, configura-se que a “crise de legi-timidade do regime aumenta a probabilidade de uma baixa eficá-cia da legitimidade estatal, O que por sua vez abre espaços para osurgimento de manifestações normativas não-estatais, sendo no-tório que tais manifestações não são necessariamente contra Oregime. Podem ser e podem não ser. Muitas vezes elas são busca-das pelo próprio govemo como válvulas de escape, capazes deviabilizar a posição hegemônica do Direito Estatal”*24. Em outraspalavras, parece claro que a “pluralidade das ordens jurídicas éfruto da busca de nova legitimidade””5.

Todos esses aspectos apontados, como a ampliação dopluralismo jurídico para abarcar especificidades materiais de de-terminadas regiões do Capitalismo periférico, fundamentados emlutas sócio-políticas e contradições econômico-classistas(Boaventura de S. Santos), bem como a pluralidade normativacomo resposta à crise de legitimidade politica (Joaquim A. Fal-cão) são fatores relevantes mas não suficientes, se não forem con-siderados a “ineñcácia” e o caráter “injusto” do paradigmahegemônico da legalidade dogmática estatal.

Essas últimas questões foram muito bem colocadas por JacquesVanderlinden, em seu ensaio-síntese sobre O pluralismo jurídico.A argumentação básica do pesquisador belga é exatamente a deque as duas principais causas genéricas do pluralismo são o cará-ter “injusto” e “ineficaz” do modelo da “unicidade” do Direito.No que tange à “injustiça”, Vanderlinden parte do pressuposto deque a “unicidade” é incapaz tanto de contemplar corretamente a“existência de inferioridades próprias de grupos sociais particu-lares” uns com os outros, quanto de perceber a “relatividade daidéia de justiça”. Diferenças naturais, fisicas, culturais, sociais eeconômicas que somente O pluralismo, sem incorrer num

124 FALCÃO, Joaquim do amido [Org.], op. oii., p. al-as.125 Idem, ibidem. p. l0l.

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222 PLURÃLISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ÃLTERJDÃDE

nivelamento centralizador, saberá adequar com grau de justiça eeqüidade. A exemplificação disso está demonstrada em detennina-das situações como aquelas atinentes ao Direito dos menores, aoDireito nativo, ao Direito das minorias etc.”°. Já do ponto de vistada “ineficácia” do monismo estatal, tem-se, como contrapartida, asvantagens do pluralismo em melhor acolher as necessidades de: a)afinnar a primazia de interesses que são próprios a cada grupo pre-dominante; b) manter O equilíbrio entre grupos iguais (Direito dosnativos com O Direito do invasor); c) propiciar a especificidade dasinstituições (liberdade de optar em certas circunstâncias pelo Di-reito mais conveniente); d) resguardar a independência das institui-ções (imunidades diplomáticas com relação ao Direito local); e)favorecer a descentralização jurídica (impõe-se quando O Estadoatinge certo estágio de avanço e complexidade); f) propiciar O de-senvolvimento econômico (condições de igualdade para diferentesatores no processo de desenvolvimento produtivo)m.

O “objetivo” do pluralismo jurídico pode consistir naglobalidade do Direito de uma dada sociedade, possibilidade nãomuito freqüente, ou tão-somente num único ou em alguns ramosdo Direito, hipótese mais comumm. Pode-se ainda consignar quesua intenção não está em negar ou minimizar O Direito estatal,mas em reconhecer que este é apenas uma das muitas fonnas jurí-dicas que podem existir na sociedade. Deste modo, O pluralismolegal cobre não só práticas independentes e semi-autônomas, comrelação ao poder estatal, como também práticas normativas ofici-ais/formais e práticas não-oficiais/informais. A pluralidade en-volve a coexistência de ordens jurídicas distintas que define ounão relações entre si. O pluralismo pode ter como meta práticasnomrativas autônomas e autênticas geradas por diferentes forçassociais ou manifestações legais plurais e complementares, reco-nhecidas, incorporadas e controladas pelo Estado.

Naturalmente que o plrualismo jurídico tem O mérito de de-monstrar de modo abrangente, de run lado, a força e a autenticida-de prático-teórica de múltiplas manifestações normativas não-es-

IZÚ Cf. VANDERLINDEN, Jacques. In: GILISSEN, J . [Dir.]., op. cit., p. 22-26.'27 Idem, ibidem. p. 27-37. _'28 Cf. VANDERLINDEN, Jacques. In: GILISSEN, J . [Dir.]., op. cit., p. 38-43.

iii.-zz

4.3 Pluralismo Juridico: Possibilidades e Limites 223

tatais originadas dos mais diferentes setores da estrutura societária;de outro, a revelação de toda uma rica produção legal informal einsurgente a partir de condições materiais, lutas sociais e contra-dições classistas ou interclassistas. Num determinado espaço so-cial periférico marcado por conflitos, privações, necessidades fun-damentais e reivindicações, o pluralismo jurídico pode ter comoobjetivo a denúncia, a contestação, a ruptura e a implementaçãode “novos” Direitos.

A complexidade das experiências histórico-sociais e O exten-so quadro de fenômenos legais pluralistas viabilizarn configuraras possibilidades de diversas “propostas de classificação”. Aindaque não haja consenso entre os que tratam da questão das “moda-lidades” de pluralismo legal, há de se sublinhar algumas tentati-vas de distinção e justaposição. 6

Preliminarmente, convém discriminar a modalidade que distin-gue a pluralidade entre o “Direito oficial” e O “Direito não-oficial”.Ninguém melhor tem operacionalizado esta tipologia do que O ju-rista nipônico Masaji Chiba, em suas pesquisas sobre os diferentessistemas jurídicos não-estatais. Analisando-os com real objetivida-de, Chiba assevera que o “Direito oficial” não se reduz ao DireitoEstatal, pois compreende diversas espécies de Direitos, todos san-cionados por urna autoridade legítirna intema a cada grupo. Essesdiversos direitos oficiais, estatais ou não, que podem ser disciplina-dos pelo Estado, são representados, dentre tantos, pelo Direito dasassociações, Direito das minorias étnicas, Direito religioso etc.Quanto ao chamado “Direito não-oficial”, vincula-se à aplicaçãoprática de regras ou fonnas de comportamento geradas pelo con-senso de um dado grupo social. A tradiçãojurídica ocidental priorizaa hegemonia e a eficácia centralizadora do “Direito oficial”, en-quanto que as práticas jurídicas no Oriente possuem uma longa eantiga trajetória de “Direitos não-oficiais” autóctones. Enfim, asrelações entre os “Direitos oficiais” e os “Direitos não-oficiais”não são, segundo Chiba, necessariamente conflituosas, porquantopodem, ao mesmo tempo, expressar certa interdependência”.

'29 Cf. CHIBA, Masaji apud ROULAND, Norbert, op. cit., p. 93-94. Vide também:CHIBA, Masaji. Legal pluralism in Sri Lankan society. Toward a general theory. op. cit.,p. l-5 e 14-16. '

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224 PLURALISMO JURiD1Co: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALrER1DAoE

Além dessa dualidade inicial consignada, outra classificaçãoé proposta por Jean Carbonnier, para quem O pluralismo jurídicotraduz sempre a diversidade de fenômenos. Na medida em que“não há um único pluralismo, mas antes fenômenos de pluralismo”,a pluralidade insere-se numa extrema diversidade que pode ounão entrecruzar-se entre “fenômenos coletivos e individuais”, entre“fenômenos de concorrência e recorrência” e, por fim, “fenôme-nos categóricos e difusos°”3°.

Sem adentrar descrição mais pormenorizada, vale lembrar,como ilustração das reais possibilidades da coexistência numasociedade particular de amplas manifestações e práticas jurídicasplurais, O exame apurado e rigorosamente técnico de autores comoJ . Vanderlinden. Sendo assim, no dizer do pesquisador belga, háde se reconhecer e contemplar, num quadro social delimitado por“mecanismos jurídicos diferentes aplicados a situações idênticas”,diversas modalidades que podem combinar-se no contexto “deum mesmo fenômeno, sem que necessariamente todos se encon-trem dentro de cada um de1es”*3*. Rigorosamente, a particularida-de e a aglutinação das diversas maneiras podem servir de basepara futura tipologia, caracterizada por pluralismo de teor: “para-lelo ou integrado”, “cumulativo ou isolado”, “optativo ou obriga-tório”, “controlado ou independente”, “antagonista Ou comple-mentar”, “imposto ou consensua1izado”*32.

Diante de todas essas distinções, coloca-se, desde logo, aim-posição de uma objetividade e simplificação que melhor atenda Oescopo desta obra. É neste patamar que se processa a dualidadeentre um “pluralismo jurídico estatal” e um “pluralismo juridicocomunitário”133. Concebe-se O primeiro como aquele modelo re-conhecido, permitido e controlado pelo Estado. Admite-se a pre-sença de inúmeros “campos sociais semi-autônomos”, com rela-ção a um poder político centralizador, bem como múltiplos siste-

'3° CARBONNIER, Jean, Op. cit., p. 216-220.13* VANDERLINDEN, Jacques. In: GILISSEN, J . [Dir.], Op. cit., p. 44 e 51.'32 VANDERLINDEN, Jacques. In: GILISSEN, J. [Dir.], op. cit., p. 44-51.'33 Sobre essa dualidade temática, observar: WOLKMER, Antonio C. Pluralismo

jurídico, movimientos sociales y prácticas altemativas. Revista El Otro Derecho. Bogo-tá, n. 7, p. 29-46. Ene./1991b; RODRIGUEZ, M., Eduardo. Pluralismojurídico. El derechodel capitalismo actual? Nueva Sociedad. Venezuela, n. 1 12, p. 91-101. Mar./Abr. 1991.

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4.3 Pluralismo Juridico: Possibilidades e Limites 22 S

mas jurídicos estabelecidos vertical e hierarquicamente atravésde graus de eficácia, sendo atribuída à ordem jurídica estatal umapositividade maior. Perante isso os direitos não-estatais represen-tam uma função residual e complementar, podendo sua compe-tência ser minimizada ou incorporada pela legislação estatal. Já O“pluralismo jurídico comunitário” age num espaço formado porforças sociais e sujeitos coletivos com identidade e autonomiapróprias, subsistindo independentemente do controle estatal.

Ademais, nos marcos ora delimitados, é conveniente realçar, naesteira das interpretações de G. Del Vecchio, J. Vanderlinden e E.K. Carrion, que O fenômeno do pluralismo jurídico implica trêssituações próximas, porém diversas: a) pluralismo jurídico strictosensu; b) pluralidade do Direito; c) pluralidade de Direitos.

Na primeira hipótese, verifica-se O pluralismo jurídico propri-amente dito, ou seja, a coexistência num determinado espaço so-cial de manifestações jurídicas estatais ou não, de “Direito ofici-al” e “Direito não-oficial”, enfim, de “mecanismos diferentes parasituações idênticas”, daí decorrendo uma relação de “confronto”(Direito não-oficial insurgente e contestatório versus Direito ofi-cial injusto) ou de “compatibilização” (na Inglaterra medieval, autilização da equity concomitantemente com a common law)134.Ainda que haja urna certa aproximação entre “pluralismo jurídi-co” e “pluralidade do Direito”, não se pode confundir os fenôme-nos, pois O segundo deles, O da pluralidade, trata da existência demúltiplos direitos Oficiais intemos. A característica da pluralidadeestá na atuação de “mecanismos diferentes em função de diversassituações”, como, por exemplo, O Direito do Menor, O Direito doConsumidor, O Direito Esportivo, O Direito da Corporação Mili-tar etc.'35. Por último, fenômeno raro e que difere do pluralismojurídico, é a “pluralidade de Direitos” que pode ser encontradaem mais de uma sociedade com direitos próprios cada uma oucom direitos diferentes'36. Pode-se aqui observar um pluralismosocial que não corresponde ao pluralismo juridico. Exemplo dis-

'34 Cf. VANDERLINDEN, Jacques. In: GILISSEN, J. [Dir.], op. cit., p. 25.'35 A propósito verificar na legislação brasileira: O Código do Consumidor (Lei n°

8.078, de 11 de setembro de 1990) e O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n°8.069, de 13 de julho de 1990).

'36 Cf. VANDERLINDEN, Jacques. ln: GILISSEN, J. [Dir.], op. cit., p. 20-22.

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226 P1.uRÃLrsMo JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO os ÃLTERJOÃDE

so se encontra na Idade Média, entre O Direito real do Feudo e ODireito eclesiástico da Igreja.

Vê-se, pois, que, deslocando a reflexão para O presente cená-rio periférico brasileiro e tendo em mente as premissas deVanderlinden, interpretadas por E. K. Carrion, pode-se aproxi-mar O pluralismo jurídico não só do que se convencionou chamar“uso altemativo do Direito oficial” como, sobretudo, levantarpontos de contacto e identificação com O fenômeno de um “Direi-to altemativo ao Direito oficial”*”. Daí resulta que O pluralismojurídico é um fenômeno que transcende a questão do chamado“uso altemativo do Direito”, pois aquele pode ou não ajustar-seao Direito oficial, atuando fundamentalmente no espaço do Di-reito não-oficial. Por sua vez, O “uso altemativo do Direito” seconforma e se relaciona unicamente com a esfera de abrangênciado Direito oficial, ou seja, com a legalidade estatal posta, tentan-do explorar suas fissuras, ambigüidades e deficiências em favorde segmentos sociais desfavorecidos. Deste modo, O “uso alter-nativo do Direito” está estreitamente relacionado com O Direitooficial, sendo distinto, ainda que muito próximo, do pluralismojurídico'-ls. Na verdade, O pluralismojuridico não se reduz ao “usoaltemativo do Direito”, podendo, entretanto, ter contato mais di-reto e inter-relação de assimilação com outro tipo de fenômenodesignado como “Direito alternativo””9, “paralelo” ou “concor-rente” ao Direito oficial estatal.

Finalmente, no que diz respeito aos “limites” e às “objeções”feitas ao pluralismojuridico, cabe elencar algumas ressalvas apon-

*37 Cfi CARRION, Eduardo K. Proposta de Reunião para O XV” Encontro da ANPOCS-GT Direito e Sociedade, 1991. p. 1-2.

'38 Idem, ibidem. p. 1-2.'39 Impõe-se uma distinção inicial e necessária entre Uso alternativo e Direito alter-

nativo: O Direito altemativo constitui-se num Direito paralelo ou concorrente ao Direitoposto oficialmente pelo Estado. Uma outra legalidade que não se ajusta com O Direitoconvencional vigente, podendo ser vista como um “novo” Direito no espaço de manifes-tações plurais comunitárias. Já O Uso Alternativo do Direito é O procedimento técnico-interpretativo que busca tirar proveito das contradições e antinomias do Direito Positivoestatal em favor das camadas sociais excluídas. Trata-se de explorar mediante ahermenêutica (interpretação de cunho libertário) as contradições e as crises do própriosistema oficial frente às fonnas legais mais democráticas superadoras da ordem burguesaindividualista. .

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4.3 Pluralismo Juridico: Possibilidades e Limites 22']

tadas por autores de perfil teórico tanto tradicional quanto inova-dor. Numa incursão de juridicismo culturalista, Miguel Reale as-sinala a extrema dificuldade de se apurar e sistematizar os gran-des principios do pluralismo legal. Isso deve-se ao fato de que étanta a variedade de pluralismos quanto seus representantes, de-correndo uma altemância nos elementos essenciais de um siste-ma para outro. Sob certo aspecto, O pluralismo não é, para MiguelReale, muito diferente do monismo, pois agrega tendências polí-ticas e filosóficas das mais distintas origens e matrizes, que aca-bam excluindo-se e contrastando entre si, como Os sindicalistasrevolucionários, Os institucionalistas católicos, os corporativistasdo facismo etc.“'°. Assumindo uma postura em tomo da “gradua-ção da positividade juridica” favorável à ordem estatal dogrnática,O jusfilósofo brasileiro escreve que O erro dos adeptos dopluralismo está em não admitirem que “certas funções (...) nãopodem ser exercidas por indivíduos ou por associações particula-res sem grave perigo para a ordem social e sem O aniquilamentodo próprio Estado. Funções há que são inerentes à soberania doEstado, que são O próprio conteúdo da soberania estatal e que nãopodem ser objeto de delegação: as funções essenciais de defesado território, de segurança intema, de legislação e de jurisdição,as quais não podem ser confundidas com as funções facultativasque O Estado pode perfeitamente delegar, desde que resultem van-tagens de Ordem técnica ou econômica”“'.

Igualmente, na mesma direção encontra-se Norberto Bobbioque, ao questionar as formulações jurídico-sociológicas e lutarpela dimensão funcional do Direito Estatal, entende que O proble-ma do pluralismo perdeu grande parte de sua força. Parte desteargumento é percebido pela face ambígua do pluralismo jurídicoque, tanto pode revelar-se como estratégia global progressista,quanto projeto de espectro conservador. Ora, se por trás dopluralismo encontra-se um Gurvitch ou um Proudhon, por outro,no rol do monismo, alinham-se pensadores como Hegel e Marx.A relatividade dessas ponderações reforça a proposição de que,para Norberto Bobbio, a proposta teórica do pluralismo pode ocul-

“° Cf. REALE, Miguel, op. cit., p. 246 e 253.'4' REALE, Miguel, op. cit., p. 263.

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228 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

tar, tanto uma ideologia revolucionária inserida em ordenamentosque contribuem para a “progressiva libertação dos indivíduos edos grupos oprimidos pelo poder do Estado”, quanto uma ideolo-gia reacionária interpretada como “episódio da desagregação ouda substituição do Estado e, portanto, como sintoma de uma imi-nente e incomparável anarquia”°'42.

Todavia, as “objeções” ao pluralismo juridico não se restrin-gem aos jusfilósofos tradicionais, pois intérpretes não-dogmáticos do Direito, como Jean Carbonnier, alertam para oequívoco de certas fórmulas exageradas de pluralismo legal.Prova disto é o fato de que muitas situações qualificadas depluralismo, como aquela entre o jurídico (o Direito comum dosistema) e o infrajurídico (pretenso direito marginalizado), naprática não perfazem uma natureza similar e, por conseguinte,não constituem pluralidade. Dessa feita, desaparece a tipificaçãode pluralidade, quer para fenômenos nonnativos concorrentesabsorvidos e integrados pelo sistema jurídico global, quer parafenômenos não incorporados que ficam à margem e que no má-ximo alcançam a condição de “subdireito”. Assim, o pluralismojurídico autêntico não ocorre na situação de oposição ou con-corrência de normas entre si, mas nas diferentes maneiras deaplicar uma mesma regra“3.

Ainda que identificado com o pluralismo juridico, CarlosCárcova não deixa de reconhecer algumas de suas incongruênci-as. Cárcova entende que o pluralismo jurídico pode ou não verifi-car-se em determinadas formações sociais e que é mais sensatopensá-lo como “unidade descontinua e fragmentada, e não emduas unidades diferenciadas” ou dois ordenamentos contraditóri-os como tem sido tradicionalmente visto. Por outro lado, sendo oDireito um universo diferenciado de ações (ordenamento, siste-ma, prática discursiva, rede de sentidos), não há como eliminarsua natureza coativa. Ora, os autores clássicos do pluralismo jurí-dico incorrem numa forte tendência “de equiparar regras moraisou religiosas, costumes e rituais atávicos com nonnas jurídicas.Isso se deve (...) a uma ênfase desproporcionada em suas críticas

'42 BOBBIO, Norberto, l980. Op. cit., p. 164, 264-265.'43 Cf. CARBONNIER, Jean, op. cit., p. 220, 222-223.

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4.3 Pluralismo Jurídico: Possibilidades e Limites 229

ao fonnalismo juridico. No afã de manejar uma noção de direitonão-redutiva, acabam destmindo-a°°*'“.

A parte as imprecisões que podem ser geradas por fenômenosnão necessariamente de “pluralismo juridico”, outro tipo de criti-ca esboçada por alguns teóricos (próximos do marxismo) é aque-la que questiona determinadas generalizações que associam o“Direito oficial” à legislação estatal e o “Direito não-oficial” aoDireito espontâneo e popular”. Dado o alto grau de complexida-de das relações sociais das sociedades capitalistas, as implica-ções entre lei estatal e costume popular nem sempre deixam depossuir certas diferenciações político-ideológicas mais aparentesdo que reais. Segue-se daí que, por vezes, as práticas nomiativaspopulares carecem realmente de autenticidade quando concedi-das e tuteladas pelos interesses hegemônicos do Estado. O certo éque o Direito espontâneo popular não está isento de manipulaçãodo poder instituído, podendo, por manobra de juristas compro-metidos, assumir a transparência de uma não-oficialidade pseudo-insurgente e paralegal, de cunho comunitário, quando, em reali-dade, tem a função de esvaziar os conflitos, mascarar as genuinasexpressões populares e reforçar o controle por parte do Direitooficial em níveis de absorção que permitem a recomposição dopróprio sistema dominante.

Além dessas “objeções”, importa mencionar que o processode pluralidade pode sofrer determinados “limites” que poderãoimpulsionar as condições para sua atenuação, redução e pro-gressivo desaparecimento. Essa preocupaçäo engloba a singula-ridade do fenômeno chamado por Norbert Rouland de“°depluralização'”'4°, que conduz à unidade do Direito e caracte-riza o “fim” do pluralismo. Especificando um pouco mais, veri-fica-se que a “depluralização” pode ocorrer em função de duassituações:

'44 cÁRcovA, carlos, op. cit., p. ns-120.'45 Cf. ROULAND, Norbert, op. cit., p. 92.W' A palavra “depluralização” é formulada por Norbert Rouland (op. cit., p. 84-85) a

partir do significado desenvolvido por Jacques Vanderlinden. É oportuno observar queesta expressão não existe na língua portuguesa, tratando-se, portanto, de um “galicismo”,ou seja, uma construção afrancesada.

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230 PI-URAUSMO JURÍDICOI PROJEÇÃO DE UM MARCO DE A1-TERÍDADE 4.3 Pluralismo Juridico: Possibilidades e Limites 231

a) quando de uma grande “homogeneização” da sociedade,decorrendo o desaparecimento das diversas formas de Direitoparalelo e concorrentes. Exemplificaçäo disso está na adoção donivelamento geral através do sufrágio universal;

b) quando da imposição de tmidade por parte de um órgãocentral, o Direito paralelo se integra e se incorpora à ordem ofici-al. Particularidade que pode ser identificada quando, em paísesperiféricos como os da América Latina, as contestações popula-res e as reivindicações por direitos são incorporadas pelo Direitooficialm.

A contemplação desses mecanismos, outrossim, não impedede contrapor que, mesmo reconhecendo a diminuição ou a perdada eficácia de graduação do “pluralismo”, resulta claro que todaestrutura societária é interligada por “pluralidades” e “diferen-ças”, sendo que a “homogeneização” absoluta e perfeita dificil-mente poderá ser alcançada'48.

Do exposto, certamente, cabe constatar que o pluralismo jurí-dico tradicional está pulverizado por inúmeras “limitações” apon-tadas pelos analistas em questão, ou mesmo, avançando um pou-co mais, até inviabilizado ou inadequado para estruturas de privi-légios, desigualdades e injustiças como a brasileira, principalmentequando é assumido por interesses exclusivistas provenientes dabarganha de certos segmentos neocorporativistas ou de elites commaior poder de pressão econômica, representantes permanentesdas formas de dominação oligárquica antipopular. A exclusão destetipo em voga de pluralismo legal, utilizado e propagado sutilmen-te por camadas sociais hegemônicas que usufruem de vantagens,não obstaculiza repensar uma transformação integral e Luna reor-ganização da vida social (em nível econômico, político, culturaletc.), capaz de favorecer a imperiosidade de outro projeto depluralidade de caráter “ampliado” e “aberto”, identificado plenae autenticamente com as condições objetivas de mudança e eman-cipação de sociedades de cultura liberal-individualista como a

'47 Cf. VANDERLINDEN, Jacques. In: GILISSEN, J . [Dir.], op. cit., p. 53-56.'43 Cf. ROULAND, Norbert, op. cit., p. 85.

nossa. Trata-se de um pluralismo progressista que se dissocia radi-cahnente do pluralismo conservador. A diferença entre o primeiroe o segtmdo está, fundamentahnente, no fato de que o pluralismoprogressista enquanto estratégia democrática de integração procu-ra promover e estimular a participação múltipla das massas popula-res organizadas e dos novos sujeitos coletivos de base. O que éexatamente o oposto do que pretende o pluralismo do elitismo re-trógrado que pressupõe, como lembra Leandro Konder, “uma uni-dade substancial profunda, inabalável: todas as correntes conserva-doras (...) concordam em um determinado ponto essencial. Isto é:em impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem,façam politica e criem uma verdadeira democracia”'49.

A ampla revisão histórico-descritiva que foi feita sobre ex-pressões, autores e tendências (iusfilosóficas, sociológicas e an-tropológicas) referente ao pluralismo jurídico enquanto fenôme-no universal, bem como suas tipologias, finalidades, possibilida-des e limitações, pennitiu, sem a pretensão de exaurir a comple-xidade temática, extrair idéias nucleares e categorias essenciaispara compor outro quadro referencial prático-teórico inerente aospropósitos desta obra. Assim, a afinnação de um pluralismo polí-tico e jurídico traduzirá a complexa interação do pluralismo legal(nível do Direito) com um pluralismo comunitário-participativo(nível do social e da política). A abrangência deste modelo cultu-ral que será apresentado como marco teórico emancipatório de“novo” tipo implicará o desenvolvimento de duas condições bási-cas, conforme há de se verificar no próximo segmento:

a) fundamentos de “efetividade material” - emergência de no-vos sujeitos coletivos, satisfação das necessidades humanas fun-damentais;

b) fundamentos de “efetividade formal” - reordenação do es-paço público mediante uma politica democrático-comunitáriadescentralizadora e participativa, desenvolvimento da ética con-

“° KON DER, Leandro. In: COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valoruniversal. São Paulo: Ciências Humanas, 1980. p. 75.

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232 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERJDADE

creta da alteridade, construção de processos para umaracionalidade emancipatória.

4.4 Fundamentos do Pluralismo Juridico como novoParadigma

Constata-se que a derrocada dos e as mudanças nos paradigmastradicionais estão em sintonia com o processo civilizatório dehomogeneização das formas de vida e de unicidadecompactualizada nos acordos instituídos sobre o poder, represen-tação social e regulamentação ético-juridicos. Tais premissas, alia-das à lógica de atomização de um sujeito histórico universal-indi-vidualista, determinaram incongruências que atravessaram osdiferentes campos da estrutura produtiva e das ciências humanas.O processo de ruptura e afinnaçâo de paradigmas delineados porformas autônomas de vida heterogênea e modalidades alternati-vas de regulação social conduz à busca de novos parâmetros defundamentação e de verdade.

Relembre-se, como em outro contexto*5°, que as verdades teo-lógicas, metafísicas e racionais que sustentaram durante séculosas expressões de saber, de poder e de racionalidade dominantesnão conseguem mais responder inteiramente às inquietações e àsnecessidades da presente etapa de globalização das relações hu-manas. Os modelos culturais, nonnativos e instrumentais que fun-damentaram o mundo da vida, a organização social e os crité-rios de cientificidade tornam-se insatisfatórios e limitados. A cres-cente descrença em modelos frlosóficos e científicos que não ofe-recem mais diretrizes e nonnas seguras abre espaço para se re-pensarem padrões altemativos de fundamentação. Os paradigmasque produziram um ethos, marcado pelo liberalismo individual,pelo racionalismo instrumental e pelo fonnalismo positivista, bemcomo os que mantiveram a logicidade do discurso filosófico, ci-entífico e juridico têm sua racionalidade questionada e substituí-da por novos modelos de referência. Esses novos marcos teóricosestão diretamente vinculados “à crescente complexidade dos con-

'5° WOLKMER, Antonio C., l99la. op. cit., p. 35-36.

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4.4 Fundamentos do Pluralismo Juridico como novo Paradigma 233

flitos, à heterogeneidade sócio-econômica, à concentração e cen-tralização do capital, à expansão do intervencionismo estatal, àhipertrofia do Executivo etc. À medida que a sociedade é vistacomo um sistema necessariamente conflituoso, tenso e em per-manente transformação, toda e qualquer análise passa a ser consi-derada válida apenas se for capaz de identificar os fatores demudança responsáveis pela contínua inadequação dos modelosculturais tradicionais - entre eles, o Direito'”5'.

A desconstruçâo racionalizadora que atravessa a globalidade dacultura tecno-industrial estende-se ao conhecimento, às práticas derepresentações sociais e às estruturas lógico-formais de regulaçãojurídica. O padrão de “cientificidade” que sustenta monnente o dis-curso da legalidade liberal-individualista/forrnal-positivista,edificado e sistematizado nos séculos XVIII e XIX, está quase queem grande parte desajustado, diante da conjuntura oferecida pelasnovas facetas de produção do capital globalizado, pelas emergen-tes necessidades das fomias altemativas de vida e pelas profundascontradições sociais das sociedades classistas e interclassistasm.

O exaurimento do atual paradigma preponderante da CiênciaJurídica tradicional - quer em sua vertente idealista-metafisica, querem sua vertente formal-positivista - descortina, lenta e progres-sivamente, o horizonte para a mudança e a reconstruçãoparadigrnática, modelada tanto por contradiscursos desmitificadoresque têm um amplo alcance teórico-critico, quanto por novas propo-sições epistemológicas fundadas na experiência histórica e na prá-tica cotidiana concreta de um pluralismo juridico de teor comunitá-rio-participativo. Este pluralismo legal ampliado e de “novo tipo”impõe a rediscussâo de questões consubstanciais como as “fontes”,os “fundamentos” e o “objeto” do Direito. Ademais, toma-se irnpe-rativo que o pluralismo como novo referencial do político e do ju-rídico esteja necessariamente comprometido com a atuação de no-vos sujeitos coletivos (legitimidade dos atores), com a satisfaçãodas necessidades humanas essenciais (“fundamentos mate1iais”) ecom o processo politico democrático de descentralização, partici-

'5' FARIA, José Eduardo [Org.]. A crise do direito numa sociedade em mudança.Brasília: UnB, 1988. p. 24.

'52 Cf. WOLKMER, Antonio C., l99la. op. cit., p. 98.

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234 PLURALISMO IURÍDICO: PROJEÇAO DE UM MARCO DE Ar.rERrDADE

pação e controle comunitário (estratégias)“53. Soma-se ainda a in-serção do pluralismo juridico com certos “fundarnentos fonnais”como a materialização de tuna “ética concreta da alteridade” e aconstrução de processos atinentes a uma “racionalidadeemancipatória”, ambas capazes de traduzir a diversidade e a dife-rença das formas de vida cotidianas, a identidade, informalidade eautonomia dos agentes legitimadores.

Vêem-se pois, os traços demarcadores dessas condições que seincorporarn e se reproduzem, funcionando como “fundamentos”de eficácia “material” e “formal”, no agir dessa proposta de alarga-mento do poder societário fi'ente ao poder do Estado, do poder pú-blico ao privado, do poder local ou periférico ao poder global oucentral etc. Mais atentamente, e procurando sistematizar, dir-se-iaque a articulação deste projeto cultural pluralista e emancipatórioque pemtite aduzir um “novo” Direito - um Direito produzido pelopoder da comunidade e não mais unicamente pelo Estado - envol-verá o desenvolvimento de duas condições básicas:

a) ftmdamentos de efetividade material: engloba o conteúdo,os elementos constitutivos etc.;

b) fundamentos de efetividade formal: refere-se à ordenaçãoprático-procedimental etc.

Sendo assim, a estratégia de “efetividade material” compreende,de um lado, os sujeitos coletivos de juridicidade intemalizadosprioritariamente nos novos movimentos sociais; de outro, a estruturada satisfação das necessidades humanas que passa a ser a justificati-va, a razão de ser, o que legitima o agir dos novos atores sociais. Porsua vez, a estratégia de “efetividade formal” integraliza os procedi-mentos na “prática” (do agir, da ação) e na “teoria” (do conhecirnen-to, do pensamento). O procedimento da “prática” desdobra-se em“ação coletiva” (implica reordenar a sociedade para urna política dedemocracia descentralizadora e participativa) e em “ação individu-

'53 Cf. WOLKMER, Antonio C., Contribuição para o projeto da juridicidade altema-tiva. In: ARRUDA JÚNIOR, Edmundo L. de [Org.]. Lições de direito alternativo. SãoPaulo: Acadêmica, 1991c. p. 31.

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4. 4.] Os novos sujeitos coletivos de juridicidade 235

al” (desenvolvimento pedagógico de um sistema concreto de valoreséticos da solidariedade, configurado no que se poderia designar como“ética da alteridade”). Já o procedimento “teórico” está direcionadoa construir processos de racionalidade comprometidos com a auto-nomia e a emancipação da essência humana.

4. 4. I Os novos sujeitos coletivos dejuridicidade

Começando com o primeiro dos fundamentos de “efetividadematerial”, importa referir, para a sustentação paradigmática doprojeto pluralista de emancipação, que a emergência e a interaçãode novos atores sociais vêm sendo reconhecidas na literatura, ge-nericamente, pelas noções de “sujeito coletivo”, “sujeito históri-co-em-relação”, “sujeito popular”, “povo” e/ou “o outro””4. En-

154 Para uma bibliografia mais aprofundada sobre a categoria “povo”, observar: DUSSEL,Eofiqoo D. Éaoa oomaatiâna. Petrópolis; vozos, 19sóa. p. 96-97; . Método paraamafizosoflo da tràafzaçâo. sào Paoroz Loyola, rssób. p. 240-246; GUTIÉRREZ, Gustavo.Aforça histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 160-161; GOHN, Maria da GlóriaM. Aforça da periferia. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 39-40; ALM1NO,João. O povo inven-tando o povo? Humanidades. Brasilia, n. 1 1, p. 5-10. NovJJan. 1986/7; CAMACHO, Daniel.Movimentos sociais: algumas discussões conceituais. In: SCHERER-WARREN, Ilse &KRISCHKE, Paulo J . [Orgs.]. Uma revolução no cotidiano? Os novos movimentos soci-ais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 218; DE LA TORRE RANGEL,Jesus Antonio. El derecho que nace del pueblo. México: Centro de InvestigaeionesRegionales de Aguascalientes, 1986. p. 12-19. Sobre a conceituação “novo sujeito históri-co”, verificar: CNBB. Sociedade brasileira e desafiospastorais. São Paulo: Paulinas, 1990.p. 15 e 93-112; _ Diretrizes gerais da ação pastoral da Igreja no Brasil - 1991/1994. Documentos 45. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 116-118; COLETIVO do InstitutoHistórico Centro-Americano (Manágua). América Central - 1979/1986. O beco sem saidada politica dos EUA no terceiro mundo. Porto Alegre: L&PM, 1986. p. 11-18; SADER,Eder. Quando novospersonagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p.10-12 e 50-56; GORZ, Andre. Adeus ao proletariado: para além do socialismo. Rio deJaneiro: Forense-Universitária, 1987. p. 85; HELLER, Agnes. Para mudar a vida. SãoPaulo: Brasiliense, 1982. p. 133-134; MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade in-dustrial. 5. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1979. p. 231. Sobre o significado do “outro”, ver:LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 198821. p. 21-39 e 190-194; .Érica z izzfiarzo. Lisboa; Eóiçõos vo, rssso. p. sv-93; DUSSEL, Eoúqoo D.,rssób. op. oii., p. zoo; GUTIÉRREZ, Gustavo, op. oii., p. 69; TOURAINE, Alain. crafooda modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 211-311; GIRARDI, Giulio. Os excluídosconstruirão a nova história? São Paulo: Ática, 1996; EAGLETON, Terry. As ilusões dopós-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 72-92; HINIQELAMMERT, FranzJ _ El mapa del emperador. San José: DEI, 1996. p. 35-44 e 235 segs.

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236 PLURAUSMO Juninicoz PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

tretanto, no seu sentido estrito, objetivando os intentos da presen-te discussão, compreenderá aqueles estratos sociais participativose geradores de produção juridica, dando fonna e priorizando oque se convencionou chamar de “novos movimentos sociais”.

Mas qual a razão para se designar os atores históricosintemalizados nos movimentos sociais pelos atributos de “novos”e “coletivos”'? Na verdade, a resposta está numa digressão evolutivaque pennite diferenciar “sujeitos individuais” abstratos de “sujei-tos coletivos” concretos. Antes de mais nada, convém lembrar queo status de “sujeito privado” remonta à tradição “cartesiana” damodernidade burguesa que introjeta no sujeito o “inicio” do indivi-duo em si, bem como à filosofia do Iluminismo ou mesmo à heran-ça do subjetivismo kantiano que representará “uma visão de mim-do dominada por Luna racionalidade e autotransparéncia do “pensarem si mesmo” que objetiva “ser sujeito”'55”. Deste modo, o concei-to de “sujeito individual” corporifica uma abstração formalista eideológica de um “ente moral” livre e igual, no bojo de vontadesautônomas, reguladas pelas leis do mercado e afetadas pelas condi-ções de inserção no processo do capital e do trabalho. Com efeito,esta noção privada de “sujeito” mediatiza tanto o estado dos agen-tes que exercem a supremacia, o controle e a manipulação dos mei-os de produção e distribuição na sociedade, quanto a posição dapessoa hmnana alienada, opiimida e excluída das relações sociaisdominantes. Enquanto o metafisico “sujeito em si” da tradição li-beral-racionalista é o sujeito cognoscente a priori, que se ajusta àscondições do objeto dado e à realidade global estabelecida, o “novosujeito coletivo” é um sujeito vivo, atuante e livre, que seautodetermina, participa e modifica a mundialidade do processohistórico-social.

Nesta situação, o “novo”, enquanto portador do futuro, nãoestá mais numa totalidade universalista constituida por sujeitossoberanos, centralizados e previamente arquitetados, mas no es-paço de subjetividades cotidianas compostas por uma pluralidadeconcreta de sujeitos diferentes e heterogêneos. O amplo espectrode uma mundialidade repleta de subjetividades agrega sujeitos

‹1

'55 LAUDER, Karl Heinz. Verbete: Sujet. In: ARNAUD, André-Jean [Dir.].Dictionnaire encyciopédique de théorie et de sociologia du droit. op. cit., p. 401-403.

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I

4.4.1 Os novos sujeitos coletivos de juridicidade

pessoais e coletivos que se vão definindo e construindo a cadamomento num permanente processo interativo. Por conseguinte,o “novo” e o “coletivo” não devem ser pensados em tennos deidentidades humanas que sempre existiram, segundo o critério declasse, etnia, sexo, idade, religião ou necessidade, mas em funçãoda postura que permitiu que sujeitos inertes, dominados, submis-sos e espectadores passassem a sujeitos emancipados, participan-tes e criadores de sua própria histórialsõ. Trata-se da retomada eampliação de um conceito de “sujeito” fortemente associado auma tradição revolucionária de lutas e resistências que vai do “pro-letariado” ou das massas trabalhadoras (K. Marx), dos “margina-lizados” da sociedade industrial (H. Marcuse), dos “condenadosda terra” (F. Fanon) até o “povo oprimido” dos filósofos e teólo-gos latino-americanos (Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Enri-que Dussel etc.)*57. Isso transparece com nitidez quando, tanto E.Dussel como G. Gutiérrez, reconhecem a presença de um novosujeito histórico coletivo, representado, na América Latina, pelapopulação oprimida de camponeses, trabalhadores, indígenas,negros, menores, mulheres, marginais, enfim grupos sociais atin-gidos pela miséria e pela pobreza.

De fato, para E. Dussel, o novo sujeito ativo do processoemancipatório não é mais a classe, mas o “povo” enquanto mas-sa dominada, alienada e oprimida. O “povo” é a categoria maisconcreta que tem a vantagem de melhor retratar a práxis do con-tingente humano explorado de um sistema politico-econômico,mais precisamente o “bloco comunitário dos oprimidos de umaNação”'58.

Igualmente, admitindo a “força histórica dos pobres da terra”,Gustavo Gutiérrez defende que o “povo”, enquanto sujeito popu-lar, compõe o “conjunto dos despossuídos (os descamisados), queconstituem uma realidade ligada à libertação, à afirmação nacio-

'56 Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. O social e o político na transição pós-moder-na. Texto sem maiores referências. p. 44; PERRINE, Claudio. Notas sobre educação po-pular. Cadernos do CEAS. Salvador, n. 106, p. 75. Nov./Dez. 1986.

'57 Cf. HELLER, Agnes, l982, op. cit., p. l34; FANON, Frantz. Os condenados daterra. 2. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979; MARCUSE, Herbert. A ideo-logia da sociedade industrial. 5 ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

'58 DUSSEL, Enrique D. l986a. op. cit., p. 96-98.

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238 PLURALisMo JURÍDICO: PROJEÇÃO DE um MARCO DE ALTERIDADE

nal, à luta contra a exploração e à vontade de estabelecer umasociedade justa”'59.

Contudo, se determinados teóricos latino-arnericanos priorizama categoria “povo” para traduzir a historicidade do “novo sujeitocoletivo”, outros, sob o ângulo mais político-sociológico, limi-tam-no à especificidade dos “novos movimentos sociais”. Umademonstração dessas possibilidades comprova-se quando EderSader, examinando a dinâmica de desenvolvimento e emergênciados movimentos dos trabalhadores da Grande São Paulo, durantea década de 70, identifica-os como “novos sujeitos coletivos”,com identidade e autonomia próprias, associados a um projeto demudança social. Tais lutas e experiências vividas, fundadas naspráticas cotidianas e originadas de “necessidades, anseios, medose motivações”, acabam não só politizando e modificando o espa-ço público, como, sobretudo, propiciando a formação do “sujeitocoletivo” caracterizado, segundo E. Sader, como “coletividadeonde se elabora uma identidade e se organizam práticas atravésdas quais seus membros pretendem defender seus interesses eexpressar suas vontades, constituindo-se nessas lutas”'6°.

Na verdade, o “novo sujeito histórico coletivo” articula-se emtorno “do sofrimento - às vezes centenário -~ e das exigênciascada vez mais claras de dignidade, de participação, de satisfaçãomais justa e igualitária” das necessidades humanas ftmdamentaisde grandes parcelas sociais excluídas, dominadas da sociedade.Assim, a nosso ver, o “antigo sujeito histórico” individualista,abstrato e universal, que na tradição da periferia latino-americanavinha sendo representado, dentre tantos, por oligarquias agrárias,setores médios da burguesia nacional, por elites empresariais epor burocracias militares, deve dar lugar a run tipo de coletivida-de politica constituída tanto por agentes coletivos organizadosquanto por movimentos sociais de natureza rural (camponeses sem-terra), urbano (sem-teto), étnica (minorias), religiosa (comunida-des eclesiais de base), estudantil, bem como comunidades demulheres, de negros, de indios, de bairros, de fábrica, de

l5° GUTIERREZ, Gustavo, op. cit., p. 161. Igualmente: BOFF, Leonardo. 0 Desper-:zw da Águia. 7 ed. Petrópolis; vozes, 1993. p. 101.

'°° SADER, Eder, op. cit., p. 53, 55 e 58.

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4. 4.1 Os novos sujeitos coletivos de juridicidade 239

corporações profissionais e demais corpos sociais intermediáriossemi-autônomos classistas e interclassistasm.

No avanço da especificidade da categoria nuclear “novo sujei-to histórico”, válida tanto para a América Latina quanto para oBrasil, recorrem-se às análises levadas a efeito pelo Instituto His-tórico Centro-Americano de Manágua (Nicarágua) e pela Confe-rência de Puebla (México), para os quais as “novas identidades”compõem uma constelação de múltiplas subjetividades coletivas,aglutinando:

a) os camponeses sem-terra, os trabalhadores agrícolas, osemigrantes rurais;

b) os operários mal remunerados e explorados;

c) os subempregados, os desempregados e trabalhadores even-tuais;

d) os marginalizados dos aglomerados urbanos, subúrbios evilas, carentes de bens materiais e de subsistência, sem água, luz,moradia e assistência médica;

e) as crianças pobres e menores abandonados;

f) as minorias étnicas discriminadas;

g) as populações indígenas ameaçadas e exterminadas;

h) as mulheres, os negros e os anciãos que sofrem todo tipo deviolência e discriminação; e,

i) finalmente, as múltiplas organizações comunitárias, associ-ações voluntárias e movimentos sociais reivindicativos de neces-sidades e direitos”.

"“ Cf. WOLKMER, Antonio C., l99lc. op. cit., p. 44.'62 Cf. COLETIVO do Instituto Histórico Centro-Americano (Manágua), op. cit., p.

14; GUTIERREZ, Gustavo, op. cit., p. 206.

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240 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTEMDADE

O detalhamento das principais subjetividades elencadas per-mite auferir, nrun nível mais global, a presente conceituação des-ses “novos sujeitos históricos”. Por assim dizer, são situados comoidentidades coletivas conscientes, mais ou menos autônomos,advindos de diversos estratos sociais, com capacidade de auto-organização e autodeterminação, interligadasporformas de vidacom interesses e valores comuns, compartilhando conflitos e lu-tas cotidianas que expressam privações e necessidadespor direi-tos, legitimando-se como força transformadora do poder einstituidora de uma sociedade democrática, descentralizadora,participativa e igualitária.

E deste modo que, caracterizando a noção de sujeito enquantoidentidade distinta que implica O “novo” (frente ao “estabeleci-do”, ao “oficial”) e O “coletivo”, deve-se privilegiar, numapluralidade de sujeitos, os novos movimentos sociais. Ora, namedida em que os movimentos sociais são encarados, quer comosujeitos detentores de urna nova cidadania apta a lutar e a fazervaler direitos já conquistados, quer como nova fonte de legitimaçãoda produção jurídica, nada mais natural do que equipará-los àcategoria de “novos sujeitos coletivos de Direito”. Sendo assim,cabe frisar que a presente designação para os movimentos sociaisnão implica, de fonna alguma, qualquer alusão ou aproximação àmítica abstração liberal-individualista de “sujeito de Direito”,própria do velho paradigma do fonnalismo legal positivista”.

Levando em conta essa diferenciação, investigações mais re-centes, de teor critico-interdisciplinar, tendem a reconhecer, nosnovos movimentos sociais, sujeitos coletivos titulares de Direi-tos. Por essa via alinha-se José Geraldo de Souza Jr., para quem asignificação político-sociológica dos movimentos, enquanto po-tencial prático-teórico de enunciação e articulação de direitos,possibilita e justifica seu enquadramento na esfera de incidênciajuridica. Com efeito, empenha-se O autor em demonstrar a rela-

'Ú3 Sobre a questão histórica da formulação “sujeito de Direito”, consultar: ZARKA,Yves Charles. “A invenção do sujeito de direito”. In: Filosofia politica. Nova série I.Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 9-29; MARESCA, Mariano. “Destinos del sujeto en lasparadojas dela cultura juridica”. In: Críticajuridica. México: UNAM/IIJ, 1994, n. 15. p.131-145.

4. 4.1 Os novos sujeitos coletivos de juridicidade 241

ção entre a condição social de sujeitos populares e sua luta porreparar carências e injustiças, do que se infere que a apreciaçãopolítico-sociológica pode, perfeitamente, “precisar que a emer-gência do sujeito coletivo opera num processo pelo qual a carên-cia social é percebida como negação de um Direito que provocauma luta para conquistá-lo”““.

Certamente a validade de tais asserções possibilita avançar nareflexão de que O que importa, na demonstração do “sujeito coleti-vo de Direito” enquanto sujeito de uma práxis histórica, não é trans-formar-se em objeto de si mesmo, mas transcender-se numa rela-ção com outros sujeitos, ou seja, O “sujeito é sujeito para o ou-tro”'65. E nessa relação de alteridade de sujeitos enquanto “sujeitoscoletivos de Direito” que surgem as identificações valorativas eexperiências vividas, buscando a satisfação de necessidades e de-mandas por direitos. Sob os limites factíveis da cotidianidade, adinâmica interativa dos “sujeitos coletivos”, atuando no espaço dapluralidade das fonnas de vida, condiciona, para mais ou para me-nos, a realização das necessidades fundamentais. Com efeito, aimplementação das necessidades humanas essenciais toma possivelO próprio “mundo da vida”, porquanto, como diz FranzHinkelammert, a “satisfação das preferências a toma agradável. Mas,para que ela possa ser agradável, antes tem que ser possíve1”'66.Ora, a liberdade de construção de um projeto de vida reside narealização das opções baseadas na objetivação das necessidadesfundamentais e na conquista dos direitos delas provenientes.

4.4.2 Sistema das necessidades humanasfundamentais

É com O aparecimento dos novos sujeitos coletivos dejuridicidade, intemalizados nos movimentos sociais, que se justi-

'Õ4 SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de. Movimentos sociais - emergência de novossujeitos: O sujeito coletivo de direito. In: ARRUDA JÚNIOR, Edmundo L. de [Org.], op.cit., p. 136-137.

“P HINKELAMMERT, Franz J . Critica à razão utópica. São Paulo: Paulinas, 1986. p.283, 285 e 287. Observar também: RUBIO, David Sánchez. Filosofa, DerechoyLiberaciónen América Latina. Bilbao: Editorial Desclée de Brouwer, 1999. p. 185 e segs.

1°” Idem, ibidem. p. 267, 283-285.

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242 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ÃLTERIDÃDE

fica e se legitima todo um complexo “sistema de necessidades”.Tal “sistema de necessidades”, que dá origem aos corpos sociaisintermediários e insurgentes, qualifica-se como O segundo ele-mento de “efetividade material” na edificação do novo pluralismopolítico e jurídico.

Antes de mais nada, é preciso esclarecer, com Carlos NelsonCoutinho e Edison Nunes, que a expressão “necessidades” apre-senta certa ambigüidade na lingua portuguesa, pois pode ter Osentido objetivo de “determinismo” (aquilo que tem que ser) ouO sentido subjetivo referente a “alguma privação” que um indi-viduo ou grupo sente. Para escapar dessa confusão, esses cien-tistas politicos traduzem e usam a expressão (bisogno, besoin,needs etc.) como “carências” ou “carecimentos”l°7. Todavia,entende-se, aqui, que isso pode levar a confundir fenômenosnem sempre similares. Sendo assim, para efeito desta pesquisa,“carência” (sentido estrito) é designada como privação ou faltade alguma coisa, enquanto “necessidade” (sentido genérico, maisabrangente) todo aquele sentimento, intenção ou desejo consci-ente que envolve exigências valorativas, motivando o compor-tamento humano para aquisição de bens materiais e imateriaisconsiderados essenciais. Naturalmente, como se assinalou an-teriormente, a estrutura do que se descreveu por “necessidadeshumanas fundamentais” não se limitará às necessidades sociaisou materiais, mas compreenderá necessidades existenciais (devida), materiais (subsistência) e culturais. Com isso, deixam-sede lado as inúmeras, variadas e unilaterais abordagens sobre as“necessidades” feitas por antropólogos (necessidades como fun-ção do sistema orgânico-biológico de uma dada cultura)'°8, filó-sofos (necessidades como prioridades produzidas por um siste-ma de signos e codificações)1°°, cientistas sociais (necessidadescomo “exigências da produção e da luta de classes nas diferen-

'°" Cf. COUTINHO, Carlos Nelson apud HELLER, Agnes, 1982. op. cit., p. 7;NUNES, Edison. Carências e modos de vida. In: São Paulo em Perspectiva. São Paulo,v. 4, n. 2, p. 3. Abr./Jun. 1990.

1°* Cf. MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria cientifica da cultura. 3. ed., Rio deJaneiro: Zahar, 1975. p. 160-163.

'69 Cf. BAUDRILLARD, Jean. Para uma critica da economia politica do signo.São Paulo: Martins Fontes, s/d. p. 81-90.

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4. 4.2 Sistema das necessidades humanas fundamentais 243

tes frentes”)”°, psicólogos (necessidades como reflexo de moti-vações, sensações e estímulos inerentes à natureza humana)”l etc.

Evidentemente que, por serem inesgotáveis, espacial e tempo-ralmente, as necessidades humanas nas sociedades modemas nãopodem ser completamente satisfeitas, principalmente tendo emconta as novas exigências, interesses e situações históricas quedeterminam a cada momento crescentes e permanentesObjetivações. Ainda que a dinâmica das necessidades esteja vin-culada à formação de identidades individuais e coletivas em qual-quer tipo de sociedade, foi, entretanto, com a modemidade bur-guesa capitalista e industrial que adquiriu especificidadesincomuns e ilimitadas. Sob esse aspecto, refere com razão EdisonNunes: “nas formações pré-capitalistas, O desenvolvimento dascarências (necessidades) encontra limites na visão de mundo, emvalores e nonnas de conduta extremamente particularista (...).Ocorre que, como apontam Marx e Weber, O surgimento do capi-talismo implica a destruição de todos os sistemas particularistasde vida, O que toma possivel a livre expansão das carências (ne-cessidades), bem como a existência de uma pluralidade heterogê-nea de valOres””2.

O aprofrmdamento da questão pennite constatar que a “estru-tura das necessidades” refere-se tanto a falta ou privação de obje-

”° Cf. FALEIROS, Vicente de Paula. A politica social do Estado capitalista. 4. ed.,São Paulo: Cortez, 1985. p. 25-40.

'" Cf. HALL, C. S., LINDZEY, G. Teorias dapersonalidade São Paulo: EPU, 1966.p. 197-203 e 558-559; FADIMAN, James; FRAGER, Robert. Teorias da personalidade.São Paulo: Happer & Row do Brasil, 1979. p. 267-268. Interessante observar que a partirdas “necessidades psicológicas”, Abraham Maslow estabelece uma hierarquia de neces-sidades básicas, envolvendo: a) necessidades fisiológicas (fome, sono); b) necessidadesde segurança (estabilidade, Ordem); c) necessidades de amor e pertinência (família, ami-zade); d) necessidades de estima (auto-respeito, aprovação); e) necessidades de auto-atualização (desenvolvimento de capacidades). Tipologia descrita em James Fadiman eRobert Frager, op. cit., p. 268. Por Outro lado, convém assinalar, ilustrativamente, que amais completa taxonomia das necessidades como expressão de estímulos internos e ex-temos da personalidade foi elaborada por Henry A. Murray, chegando a compor urnamontagem de vinte principais necessidades.

'72 NUNES, Edison, 1990, op. cit., p. 5; . Carências urbanas: reivindicaçõessociais e valores democráticos. Lua Nova. São Paulo, n. 17, p. 90. Jun./1989. Verificar,neste sentido: HELLER, Agnes. Teoria delas necesidades en Marx. Barcelona: Penin-sula, I978. p. 171.

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244 PLURAUSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERJDADE

tos determinados (bens materiais inerentes à produção humanaem sociedade) quanto a ausência subjetiva de algo imaterial rela-cionado ao desejo, ações, normas, posturas, modo e fonnas devida, valores etc. O conjunto das “necessidades humanas”, quevaria de uma sociedade ou cultura para outra, envolve amplo ecomplexo processo de socialização marcado por escolhas cotidi-anas sobre “modos de vida” e “valores” (a “liberdade”, a “vida” ea “justiça” enquanto universalidade)”3.

Nas últimas décadas, a partir da herança marxista-lukacsiana,foi Agnes Heller quem melhor e de modo mais competente traba-lhou a teoria das necessidades e sua relação com a problemáticada vida cotidiana e com a criação histórico-social dos valores.Transpondo os determinismos do idealismo ético e do paradigmada vida social produtiva, Heller sublinha as funções proeminen-tes dos “valores” na compreensão real das “necessidades” própri-as a uma “essência humana” cada vez mais autônoma e pluralista,convivendo com diferentes fonnas de vida cotidiana”.

Especificamente em sua Teoria das Necessidades em Marx,Agnes Heller propõe uma reflexão sobre os diferentes tipos denecessidades humanas (necessidades “naturais” e “socialmentedeterminadas”, necessidades “pessoais” e “sociais”, necessida-des “existenciais”` e “propriamente humanas”, necessidades “ali-enadas”, “não-alienadas” e “radicais”)“5, segundo as diversas ra-zões que criam tais necessidades e suas caracterizações qualitati-vas e quantitativas. Se, nos trabalhos dos anos 70, Agnes Hellerdescreve genericamente as necessidades como “desejo conscien-te, aspiração, intenção dirigida em todo momento para um certoobjeto e que motiva a ação como tal”, nos anos 80 insiste emqualificar as necessidades como “sentimentos conscientes” ou

"3 Cf. HELLER, Agnes, FEHÉR, Ferenc. Políticas de la postmodernidad. Barcelo-na: Peninsula, I989. p. l7l-172; NUNES, Edison, 1990. op. cit., p. 5; . 1989. op.cit., p. 84 e 90; MARCUSE, Herbert, op. cit., p. 217 e 226; ZIMMERLING, Ruth.“Necesidades básicas y relativismo moral”. In: Doxa. n. 7, 1990. p. 35-54.

'74 Cf. ARNASON, Johann P. Perspectivas e problemas do marxismo crítico no LesteEuropeu. In: HOBSBAWM, Eric J. [Org.]. História do marxismo. O marxismo hoje(primeira parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, v. ll. p. 184-186 e 233-244; HELLER,Agnes. Una revisión dela teoria de las necesidades. Barcelona: Paidós, 1996.

'is Cf. HELLER, Agnes, 1978. op. cit., p. 28, 170-l7l.

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4.4.2 Sistema das necessidades humanas fundamentais 245

“disposições de sentimentos” sobre algo que está faltando e quese revela como autênticas “forças motivadoras”“6. Agnes Hellerparte de uma interpretação adequada de Marx para registrar queas condições econômicas geradas pelo Capitalismo impedem asatisfação das necessidades essenciais, determinando um sistemade falsas necessidades, sedimentadas basicamente na divisão dotrabalho, nas leis do mercado e na valorização do capital. Assim,a sociedade capitalista como totalidade social não apenas produzalienação mas também propicia a “consciência da alienação” re-presentada pelo conjunto de “necessidades radicais”, necessida-des ligadas às forças sociais criadas pelo trabalho e que “não po-dem ser satisfeitas nos limites dessa sociedade”. Assim, as “ne-cessidades radicais” são as únicas que podem constituir-se emfatores de superação da sociedade capitalista, possibilitando, atra-vés da consciência adquirida, a superação da alienação, a trans-formação da vida cotidiana e a emancipação humanam.

Adverte Agnes Heller que celtas necessidades relacionadas àposse, ao poder e à ambição não podem e não devem ser inteira-mente satisfeitas, sob pena de prejudicarem a objetivação de ou-tras necessidades consideradas essenciais para amplos setores dahuinanidadem. Além de sua referência aos modos valorativos devida, há que distinguir, igualmente, na problematização das ne-cessidades, suas implicações necessárias ou não com exigênciasde racionalidade e legitimidade. Tratando-se destas questões,Agnes Heller ressalta que não parece muito adequado qualificarO agir humano como racional ou irracional, porquanto as duascondições estão presentes na ação cotidiana, tornando-seinapropriado vincular a satisfação das necessidades, em si mes-mas, a pressupostos de racionalidade. De qualquer modo, no finaldos anos 80, a autora, ao evoluir teoricamente das “necessidadesobrigatórias e determinadas” (Teoria das Necessidades em Marx)para as “necessidades contingentes” de possibilidades

“Õ Cf. HELLER, Agnes, 1978. op. cit., p. l70; , 1989. op. cit., p. 170-173.W Cf. HELLER, Agnes, 1978. op. cit., p. 24-25, 90, 107-709, lll e 169-179; ___,

1982. op. cit., p. l34-135. Verificar igualmente: MARX, Karl. Manuscritos econômicose filosóficos. In: FROMM, Erich. Conceito marxista do homem. 8. ed., Rio de Janeiro:Zahar, 1983. p. I27-144.

“B Cf. HELLER, Agnes, 1982. Op. cit., p. 135.

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246 PLURALJSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE OM MARCO DE ALTERJDADE

indeterminadas (Politicas da Pós-Modernidade) retoma eaproftmda a temática da racionalidade. Nesta ampliação é possí-vel verificar necessidades formuladas como exigências que sãoracionais e necessidades meramente manifestadas por gestos oupalavras que não são racionais. Para Agnes Heller, as necessida-des irracionais podem converter-se em racionais quando se tor-nam justificadas por valores e são expressadas na linguagem dasexigências. Entretanto, a freqüente constatação de novas neces-sidades de teor irracional é, segundo a discípula de Lukács, “ra-zão suficiente para que se chegue à conclusão de que todas asnecessidades devem considerar-se como reais, e não só racionais.Destarte, o reconhecimento da realidade das necessidades nãoimplica reconhecer sua legitimidade. Uma necessidade pode serreconhecida como legítima se sua satisfação não inclui a utiliza-ção de outra pessoa como mero meio””9. Resulta, por conseguin-te, condenável qualquer imposição centralizadora e arbitrária daqualidade e quantidade das necessidades (“ditadura das neces-sidades”), cabendo ao bom cidadão (aquele comprometido com o“procedimento justo” e com a “tolerância radical”) não só rechaçara idéia de objetivações cotidianas interiorizadas por dominação,como, sobretudo, “praticar O reconhecimento de todas as neces-sidades, cuja satisfação não supõe o uso” e a exploração dos de-mais homens e mulheres1*°.

Ainda em seu trabalho Políticas da Pós-Modernidade, a filó-sofa húngara, agora mais distante do marxismo, proclama que alógica da modernidade ocidental, embasada na “industrialização,capitalismo e democracia”, está impulsionada por uma forçamotivadora que instaura uma “sociedade insatisfeita”, delineadapor mudanças continuas e interagida por sujeitos individuais ecoletivos. Nessa mundialidade convertida em contingência, emcujo contexto as possibilidades indeterminadas são projetadas pelaliberdade e pelas oportrmidades da vida, Agnes Heller priorizadois novos tipos de necessidades cotidianas que movimentam a

'79 HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc, 1989. op. cit., p. 174-175; , 1982. op.cit., p. 138.

'30 HELLER, Agnes. Más alld de Iajusticia. Barcelona: Critica, 1990. p. 238-239 e339-339.

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4.4.2 Sistema das necessidades humanas fimdamentais 247

“sociedade insatisfeita”: os desejos e as necessidades por autode-terminação. Na realidade, o sentimento de satisfação no espaçoda modemidade insatisfeita advém da possibilidade que cadamembro tem (por livre vontade e de modo direto) de atuar sobre oprocesso de contingência e comprometer-se com a realização dasnecessidades de autodeterminação dos demaislsl.

Agnes Heller não deixa de observar que a efetivação e a forçamotora dos movimentos sociais depende cada vez mais do siste-ma de necessidades insatisfeitas, sistema pautado em reivindica-ções de índole social, politica e cultural-espiritual. Sem dúvida,os movimentos sociais são engendrados por uma estrutura de ne-cessidades que os toma “potencialidade emancipadora”, fonte delegitimação de um direito próprio, importância que assegura aosnovos sujeitos sociais sua afirmaçâo como modo de participaçãodemocrática e intermediação emancipatória, capazes de desafiara racionalidade funcional-instrumental e romper com a coloniza-ção da vida cotidianam.

É inegável que se quer, com o exame de alguns aspectos da“teoria das necessidades”, de Agnes Heller, levadas em conta tam-bém suas categorias nucleares como “vida cotidiana”, “funções devalores” e “fonnas de vida”, buscar subsídios para refletir a rele-vância da questão das “necessidades humanas fundamentais” en-quanto pressuposto essencial que compõe um pluralismo de eman-cipação, de tipo aberto e ampliado. De qualquer fonna, ao avaliar-se o desenvolvimento conjuntural e estrutural do Capitalismo nassociedades latino-americanas, parece clara a forte tendência de serpriorizada uma interpretação “detenninista” ou “sócio-econômi-ca” de toda urna globalidade de necessidades básicas insatisfeitas.Issojustifica-se, historicamente, porquanto as condições valorativas,estruturais e institucionais favorecem leituras das “necessidades”como resultantes de carências primárias e diretas, de lutas e confli-tos gerados pela divisão social do trabalho e por exigências de bense serviços vinculados à vida produtiva. Mesmo que a hipótese do“detemiinismo estrutural” possa ser incisiva e preponderante quando

13' Cf. HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc, 1989. op. cit., p. 176-177, 181-189.*82 Cf. HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Anatomia dela izquerda occidental. Bar-

celona: Península, 1985. p. 214-216, 223.

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248 PLURALJSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

se opera com as esferas públicas periféricas (caso da América Lati-na), desintegradas pelos níveis de qualidade, bem-estar ematerialidade social de vida, não se pode e não se deve omitir asvariáveis culturais, políticas, éticas, religiosas e psicobiológicas.Com isso quer-se frisar que, para alcançar a real compreensão da“estrutura da satisfação das necessidades” nas fonnas de vidaimperantes na América Latina e no Brasil, ainda que ela seja emgrande parte constituída por carências e “necessidades necessári-as”, engendradas pelas condições do seu próprio modelo de desen-volvimento capitalista, não caberá excluir a contingência de neces-sidades eventuais, indeterminadas ou racionalizadas.

De fato, o conjunto das necessidades humanas fundamentais,quer como núcleo gerador de novos sujeitos coletivos, quer comoforça motivadora e condição de possibilidade de produção jurídi-ca, tem sua gênese num amplo espectro de causalidades qualitati-vas e quantitativas, objetivas e subjetivas, materiais e imateriais,reais e ilusórias etc.*83

Em suma, é nas condições de nosso processo histórico-socialperiférico, marcado por fonnas de vida inseridas na eclosão deconflitos, contradições e insatisfação de necessidades materiais,que se interpõe a reivindicação de “vontades coletivas”, em defe-sa dos direitos adquiridos e na afinnação ininterrupta de “novos”direitos a cada momento.

4.4.3 Reordenação politica do espaço público: democracia,descentralização e participação

Além dos fundamentos de efetividade material relacionadoscom os “novos atores que entram em cena” e o conjunto de neces-sidades fundamentais que os legitimam para reivindicar direitos,

'33 Para O aprofundamento da questão das necessidades como fundamento da produçãode direitos, consultar: ROIG, Maria José Anõn. Necesidades y derechos. Un ensayo deƒundamentación. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994; HERRERA FLO-RES, Joaquin. Los derechos humanos desde ia escuela de Budapeste. Madrid: Tecnos,1989. p. 49-112; GALTUNG, John. Direitos humanos. Uma nova perspectiva. Lisboa:Instituto Piaget, 1994. p. 91-167; GUSTIN, Miracy B. S. Das necessidades humanas aosdireitos. Ensaio de sociologia e filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

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4. 4.3 Reordenação politica do espaço público: democracia...

toma-se essencial incluir as estratégias de “efetividade formal”que estão vinculadas à reordenação do espaço público, à ética daalteridade e à racionalidade emancipatória.

Efetivamente, a terceira condição geral para pensar e articularum novo pluralismo de dimensão política e jurídica é viabilizar ascondições para a implementação de uma política democrática quedirecione e ao mesmo tempo reproduza um espaço comunitáriodescentralizado e participativo. A transformação de tal organiza-ção fisico-espacial e politico-institucional não pode ser feita a cur-to prazo e não é tão simples assim, pois as estruturas sociais perifé-ricas, como a brasileira, estão contaminadas até as raízes por umatradição político-cultural centralizadora, dependente e autoritária.Há de se ter em conta que a organização do tenitório se formoudependente de um amplo processo de imposição da produção docapital intemacional e de interesses exclusivistas de uma elite bu-rocrático-oligárquica, detentora da hegemonia política, econômicae cultural. Neste aspecto, toma-se fácil compreender a totalinexistência de uma tradição democrática de descentralização eparticipação das comunidades locais. O poder de autonomia, con-trole e autodeterminação da organização provincial, regional, mu-nicipal e distrital nunca tomou fonna e nunca se desenvolveu emnosso pseudofederalismo porquanto a sociedade frágil, desorgani-zada e conflituosa sempre esteve à mercê, tanto de relações políti-cas calcadas no clientelismo, no coronelismo e nos privilégios cul-tivados pela dominação dos grandes proprietários de terras, quantode atuações patemalistas, autoritárias e intervencionistas do Esta-do. Sem sombra de dúvida que o perfil extremamente débil daselites nacionais, subordinadas aos intentos de acumulação das me-trópoles, favorece a montagem de um Estado interventor epatrimonialista, capaz de controlar e imprimir uma grande centrali-zação sobre a Sociedade. Um poder centralizador que se projetapara efetivar as modificaçôes independentes da participação dossetores locais regionais, de legitimar o espaço público para a nego-ciação entre as oligarquias rurais e as burguesias estrangeiras, e deassegurar o consenso dos subordinados através de uma politica decooptação e de distribuição clientelística de favores'34.

'34 WOLKM ER, Antonio C., '1990. op. cit., p. 40.

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250 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERÍDADE

Parece claro, por conseguinte, que a ruptura com esse tipo deestrutura societária demanda profundas e complexas transfonna-ções nas práticas, na cultura e nos valores do modo de vida cotidi-ano. Além da subversão do pensamento, do discurso e do com-portamento, importa igualmente reordenar o espaço público indi-vidual e coletivo, resgatando fonnas de ação humana que passampor questões como “comunidade”, “politicas democráticas debase”, “participação e controle popular”, “gestão descentraliza-da”, “poder local ou municipal” e “sistema de conselhos”.

Quando se dissemina a discussão sobre a mudança dosparadigmas em nível do político e do social e sobre as fonnasaltemativas de legitimidade a partir de novos sujeitos coletivosde juridicidade, toma-se imperioso recuperar a conceituação de“comunidade'”85. Ainda que possa carregar um sentido por vezesvago e difuso, a noção de “comunidade” implica certo aglomera-do social com características singulares, interesses comuns e iden-tidade própria, que, embora inseridos num espectro de relaçõespulverizadas por consenso/dissenso, interligam-se por um lastrogeográfico espacial, coexistência ideológica e carências materi-aislsfi. No rmiverso de compreensão da comunidade há de se con-vir que a justificação ética para o que seja “interesse público” e“bem geral” está assentada na “consciência de reciprocidades”valorativas. A percepção essencial de que a comunidade é a ins-tância de subjetividades individuais e coletivas que “experimentauma reciprocidade de consciência” envolve todo um conjunto devalores, que, se estão íntima e genericamente vinculados às ne-cessidades humanas fundamentais, podem - por que não? -, maisespecificamente, expressar a sociabilidade afetiva, produtiva e

*35 A propósito do significado de “comunidade”, ver: WOLFF, Robert, op. cit., p.149-177; GOHN, Maria da Glória M. A volta do mito e seus significados. Humanidades.Brasília, v. 7, n. 1, p. 54-60, 1990; FRANCO MONTORO, André. Alternativa comuni-tária: um caminho para o Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 13, 20-25;OLIVEIRA, Pedro Paulo Cardoso de. Breves reflexões sobre a idéia de comunidade: dapré-modemidade ao pós-modemo. Comunicação apresentada no II Congresso Brasileirode Filosofia Juridica e Social, promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, realizadona USP, 1-5 de set. 1986. 10 p.; NISBET, Robert, op. cit., p. 381-384; PAIVA, Raquel. 0espirito comum. Comunidade, midia e globalismo. Petrópolis: Vozes, 1998;BARCELLONA, Pietro. Postmodernidad y comunidad. Madrid: Trotta, 1992.

'sf' Cf. GOHN, Maria da Glória M., Op. cit., p. 56.

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4. 4.3 Reordenação politica do espaço público: democracia... 251

racional. Ao priorizar esses valores sociais, Robert Wolff concebea existência de uma “comunidade afetiva” pela “reciprocidade deconsciência” de uma cultura compartilhada e de uma situação pos-sível de bem geral para todos. Ademais, a “reciprocidade de cons-ciência” está presente, igualmente, quer na “comunidade produti-va” enquanto dinâmica de atuação e participação nas forças gera-doras da riqueza e de sua distribuição material, quer na “comunida-de racional” enquanto experiência comungada por sujeitos racio-nais, política e “moralmente iguais que livremente se unem e deli-beram em conjunto com o propósito de ajustar suas vontades nacolocação de metas coletivas e na realização de ações comuns”'*7.

A noção de “comunidade” que se está propondo distancia-sedos axiomas da modemidade liberal-capitalista dos séculos XVIII/XIX, bem como de seu ressurgimento, a partir da segunda metadedo século XX, associada às estratégias sociais e assistencialistasdo Capitalismo estatal. De fato, o atomismo metafísico do séculoXVIII projeta a comunidade como a ordem social, fundada nauniversalidade fonnal, livre e voluntarista de subjetividades indi-viduais (contratualismo) que se identificam na mesma condiçãode seres racionais e homogêneos, capazes racionalmente de esta-belecer os padrões de direitos subjetivos, bem como de regrasjurídicas protetoras e limitadoras da soberania estatal'88.

Tal idéia estática de comunidade, constituída por sujeitos abs-tratos de direitos, evolui para outras formas contemporâneas deordem social que apresentam sujeitos “aparentemente” dinâmi-cos e participativos, mas que, na verdade, não são processos séri-os e autênticos, pois trata-se de políticas de participacionismocomunitário implementadas e controladas pelo Estado, medianteinvestidas cooptativas e clientelísticaslsg. Daí a obrigatoriedadede se pensar a altemativa comunitária como espaço público pul-verizado pela legitimação de novas forças sociais que, em penna-nente exercício de alteridade, implementam suas necessidadesfundamentais e habilitam-se como instâncias produtoras de práti-cas juridicas autônomas. Nestes tennos, a comunidade através

*B7 WOLFF, Robert, op. cit., p. 168-173.'88 Cf. OLIVEIRA, Pedro Paulo Cardoso de, op. cit., p. 2-5.'89 CE GOHN, Maria da Glória M., op. cit., p. 58-59.

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252 PLURÃLISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ÃLTERÍDÃDE

dos movimentos sociais e dos múltiplos corpos intermediários estáchamada a co-gerir seu destino. No bojo da pluralidade deinterações das fonnas de vida, empregar processos comunitáriossignifica adotar estratégias de ação transformadoras com a parti-cipação consciente e ativa de sujeitos de juridicidade. Significa,como lembra A. Franco Montoro, ver em cada essência humana(individual e coletiva) um ser capaz de agir de forma solidária,responsável e racional, abrindo mão do imobilismo passivo e dobeneficiamento comprometido. De todo modo, prosseguindo, temrazão ainda A. Franco Montoro, quando aponta dois caminhospara realizar as transformações de sentido comunitário: primeira-mente, “pela adoção de processos comunitários ou de participa-ção. Segundo, pela defesa e fortalecimento das comunidades in-termediárias em todos os níveis da vida social”'9°.

A essa retomada da idéia-força da altemativa comunitária, se-gue-se amplo complexo de exigências e interações em tomo deuma politica democrática fundada em processos de“descentralização”, “participação de base”, “controle comunitá-rio”, “sistema de conselhos” e “poder local”.

Ora, o estágio de acumulação do Capitalismo transnacional eas mudanças da sociedade industrial de massa acabaram por im-pulsionar não só uma crise urbano-social, mas, sobretudo, crisestanto no sistema de legitirnação e de representação política, quan-to nas formas unitárias e centralizadoras do poder administrativo.Assim, toda e qualquer proposta de transformação e organizaçãourbano-industrial de massa no espaço público periférico e depen-dente passa, hoje, necessariamente por políticas democráticas as-sentadas na “descentralização”, “participação” e “controle dasbases”. Mais do que nunca, em estruturas periféricas como a bra-sileira, marcadas por urna cultura autoritária, centralizadora eexcludente, impõe-se identificar, como indissociável no processode reordenação do espaço comunitário, a construção de uma ver-dadeira cidadania aliada ao desenvolvimento de uma democracia

'°° FRANCO MONTORO, André, 1982. op. cit., p. 21-22; . Liberdade, parti-cipação, comunidade. Comunicação apresentada no ll Congresso Brasileiro de FilosofiaJurídica e Social, promovido pelo Instituto Brasileiro de Filosofia, realizado na USP, 1-5de set. 1986. p. 6-7.

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4. 4.3 Reordenação politica do espaço público: democracia... 253

participativa de base que tenha como meta a descentralizaçãoadministrativa, O controle comunitário do poder e dos recursos, Oexercicio de mecanismos de co-gestão e autogestão local/setorial/municipal e O incremento das práticas de conselhos ou juntas con-sultivas, deliberativas e executivas.

Sublinha-se que a construção de tuna sociedade democráticaalicerçada nas necessidades das identidades coletivas locais nãosó depende da participação integral de uma cidadania conscientee atuante, como ainda tem sua condição prévia nos marcos dedescentralização político-administrativa e na redistribuição raci-onal de recursos, competências e funções. Na verdade, parececorreto associar a prática modema de descentralização com a pró-pria democratização da sociedade, do Estado e da cultura, bemcomo com a melhoria da qualidade de vida cotidiana, ahumanização e O fortalecimento das múltiplas fonnas democráti-cas de gestão local, distrital ou mruricipalm. A implementação eO alargamento da sociedade democrática descentralizadora só secompleta com a efetiva participação e controle por parte dos mo-vimentos e grupos comunitários. Na medida em que a democra-cia burguesa formal e o sistema convencional de representação(partidos políticos) envelhecem e não conseguem absorver e ca-nalizar as demandas sociais, criam-se as condições de participa-ção para as novas identidades coletivas insurgentes. Assim, asreivindicações e as lutas políticas por direito a satisfazer às ne-cessidades essenciais passam ao largo dos partidos políticos e dossindicatos, afluindo para uma pluralidade de espaços públicosparticipativos. Não se trata mais de sujeitos de uma “cidadaniaregulada”, presos à formalidade do voto delegativo, mas de “su-jeitos em relação”, numa dinâmica de alteridade com o outro, com

*°' Cf. JACOBI, Pedro. Maio 90. op. cit., p. 129-141; VILLASANTE, Tomás R,1984. p. 240; FISCHER, Tânia. A gestão do município e as propostas de descentralizaçãoe participação popular. Revista de Administração Municipal. Rio de Janeiro, n. 183, p.18-35. Abr./Jun. 1987; NEVES, Gleisi H _, op. cit., p. 36-46; MONCAYO, Héctor León,op. cit., p. 19-5 7; HALDENWANG, Christian von, op. cit., p. 59-83; DOWBOR, Ladislau.A reprodução social. Propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis: Vozes,1998. p. 29-46; VILLASANTE, Tomás R. Las democracias participativas. De laparticipación ciudadana a las altemativas de sociedad. Madrid: HOAC, 1995; NAVARROYÁNEZ, Clemente J . El sesgo participativo. Córdoba: CSIS, 1999.

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254 Pwnnusmo rusirnco: Paoirçâo DE UM MARCO os ALTERIDADE

a comunidade e com o poder politico, objetivando a solução deseus problemas, de suas carências e do reconhecimento de seusdireitos. Por isso, cabe substituir sujeitos destituídos de poder pelosubterfúgio da “delegação” por sujeitos individuais e coletivoscom poder de ação e decisão, capazes de, no pleno gozo da cida-dania, exercer o controle democrático sobre o Estado ou sobrequalquer outra fonna de poder instituídol”. Certamente é vitalque a participação advenha de um processo permanente deinteração entre os sujeitos coletivos de juridicidade e o poder le-gitimamente instituído, resultando que a própria “administraçãose configura como efetiva ampliação das práticas comunitárias,através do estabelecimento de um conjunto de mecanismosinstitucionais que reconheçam os direitos dos cidadäos°”°3.

Nesse contexto, a viabilidade da participação popular comu-nitária depende de determinadas “condições” e de “instrumentosoperacionalizadores”. Quanto às “condições”, são necessáriasestruturas individuais e coletivas, com certo grau deinstitucionalização e reconhecimento, habilitadas a abarcar osdiferentes níveis da sociedade que têm interesses a serem defen-didos e que estão em confronto e negociação. Isso se explicita,segundo Pedro Jacobi, em duas “condições” fundamentais: a) apresença de organizações de interesse popular na esfera públicalocal; b) a ocupação estratégica de cargos ou funções também noâmbito distrital ou municipal por parte de indivíduos, liderançasou partidos comprometidos com as causas comunitárias*94. Na

1” Cf. TRAGTEMBERG, Mauricio; MARTINS, Carlos E.; QUIRINO Célia G.;MOISÊS, José A. Regime politico e mudança social: comentários. Revista de Cultura &Politica. Rio de Janeiro, n. 3, p. 27-46. Nov./Jan. 1981. Sobre a temática da “participa-ção”, examinar: MOISES, José Álvaro. Cidadania e participação. São Paulo: MarcoZero, 1990. p. 15-33; BAGOLINI, Luigi. O trabalho na democracia. Brasília: UnB,1981 . p. 73-97; BORDENAVE, Juan E. Diaz. O que e'participação. São Paulo: Brasiliense,1983; VILLASANTE, Tomás R., p. 224-232; DEMO, Pedro, 1988. op. cit., p. 18-26;DELGADO, Daniel García. Estado-nación y globalización. Fortalezas y debilidades enel umbral del ter-cer milenio. Buenos Aires: Ariel, 1998; JÁUREGUI, Gurutz. La Demo-cracia en la encrucijada. Barcelona: Anagrama, 1994. p. 112-140; BILBENY, Norbert.Democracia para la--diversidad. Barcelona: Ariel, 1999; VILLASANTE, Tomás R. Lasdemocracias participativas. p. 151-228.

'93 Cf. JACOBI, Pedro. Maio 90. op. cit., p. 135.'94 Cf. JACOBI, Pedro. Maio 90. op. cit., p. 135-136.

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4. 4.3 Reordenação politica do espaço público: democracia... 255

medida em que se amplia politicamente a pluralidade de esferassociais, o espaço político unificado e homogêneo das formas derepresentação tradicional (partidos políticos e sindicatos) cedelugar a uma proliferação de práticas coletivas canalizadas agorapelos movimentos sociais, associações voluntárias em geral, cor-pos intermediários, comitês de fábricas, conselhos comunitáriose municipais, juntas distritais, comunidades religiosas de base,órgãos colegiados e instituições culturais etc. É nessa nova fonnade se fazer política que se institui a cidadania coletiva. Uma cida-dania que nasce com a participação democrática dos diversos se-tores da sociedade na tomada de decisões e na solução dos pro-blemas pela descentralização de competências, recursos e rique-zas e pela criação de mecanismos de controle sobre o Estado,assegurados pela real efetividade de um pluralismo político e ju-rídico, firmado em novas bases de legitimaçãol”.

Outro aspecto ainda a considerar é com referência aos “meca-nismos” que podem melhor operacionalizar a prática da demo-cracia participativa de base local. Desse modo, parece justificadotomar expressão desta obra a distinção de Dalmo de Abreu Dallari,pois é quem melhor diferencia modalidades instrumentais de par-ticipação no âmbito do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.Cumpre assinalar, neste passo, que, ao tratar dos mecanismos departicipação popular no Legislativo, Dallari sustenta seis medi-das de democracia de base:

1. o poder de “iniciativa legislativa” da comunidade com aconseqüente vinculação para os representantes (as propostaslegislativas da população não devem ser mera sugestão, pois de-vem ser discutidas e aprovadas por assembléia ou parlamento);

2. a prática do “plebiscito” enquanto consulta de caráter geralsobre assuntos fundamentais; 1

'95 Cf. YVOLKMER, Antonio C., 0 terceiro mundo e a nova ordem internacional.São Paulo: Atica, 1989. p. 57-58; CORTINA, Adela. Ciadadanos del mundo. Hacia unateoria de la ciadadam'a. Madrid: Alianza, 1997. Sobre os “corpos intermediários”, ver:FIGUEROLA, Francisco J., Teoria de la democracia social. Buenos Aires: Depalma,1986, p. 160- l 88; GRINOVER, Ada Pellegrini [Coord.]. A tutela dos interesses difusos.São Paulo: Max Limonad, 1984. p. 32-33, 84 e 90.

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256 PLURALISMO ruiumcoz PROJEÇÃO DE UM MARCO na Arriaiunâoe

3. 0 exercício do referendum para a aceitação ou rejeição demedidas legislativas;

4. o pronunciamento da comunidade através do “veto popu-lar” sobre determinado projeto de lei;

5. a convocação de “audiências públicas” com a inscrição pré-via da população para deliberar sobre futuros projetos;

6. o ato de revogação do mandato e a reconfirmação, tanto dorepresentante politico quanto de servidor público comunitário”.

Além dessas fonnas de expressão popular, cabe igualmentedesenvolver modalidades de voto distrital e criar instituições no-vas, como os “conselhos populares” nos diversos níveis da socie-dade, comissões de consultoria de cidadãos, representação dasminorias etc.

Quanto aos mecanismos democráticos de participação comu-nitária na esfera da Administração, tomar-se-á de empréstimo urnavez mais a distinção de Dallari: 1. participação do povo no plane-jamento; 2. consulta à comunidade sobre proposta ou projeto or-çamentário; 3. representação da comunidade em órgãos consulti-vos e na direção de entidades de administração descentralizada;4. participação da população no exercicio de um poder de contro-le para facilitar o direito à infonnaçãol”. Por fim, a participação

'96 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu et al. Mecanismos de participação popular nogovemo. ln: Problemas e reformas: subsídios para o debate constituinte. São Paulo:OAB/Depto. Editorial, 1988. p. 193-195. Ainda a questão dos “mecanismos” de demo-cracia participativa é descrita em: MOISÉS, José Alvaro, 1990. op. cit., p. 61 e segs.;CAMARGO, Azael R. et al. A cidade na constituinte. Espaço & Debates. São Paulo, n.19, p. 74; MELLO, Diogo L. de. Relações públicas, informação e participação popularcomo expressões de urn govemo local democrático. Revista de Administração Munici-pal. Rio de Janeiro, v. 34, n. 155, p. 74-75. Out./Dez. 1987; VILLASANTE, Tomás R.Las democracias participativas. p. 23 e 301; JAUREGUI, Gurutz. op. cit., p. 87-187.Sobre a democracia realizada através de meio eletrônico, verificar: BONAVIDES, Paulo.“Um novo conceitoide democracia direta”. ln: Teoria do Estado. 3. ed. São Paulo:Malheiros, 1995.

'97 Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu, op. cit., p. 196-197; MELLO, Diogo L. de, op.cit., p. 10.

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4. 4.3 Reordenação politica do espaço público: democracia... 257

popular deve ocorrer também nos órgãos colegiados do Judiciá-rio, tanto na primeira instância quanto nos tribunais superiores. Aprática participativa da comunidade na administração da Justiçaenvolve a democratização do acesso à Justiça, a criação de tribu-nais distritais de habitação e de constunidores, centros de justiçade bairro, comissões de apelação e arbitragem, comitês de conci-liação e mediação, juízes eleitos e juízes assessores etc.'98

Em suma, todas essas questões atingem pleno significado se oespaço público comunitário alcança, em todos os níveis, fonnasde democracia participativa de base. Quando se pensa em novoparadigrna de se fazer política, não se está abandonando, ou ex-cluindo, inteiramente a democracia representativa burguesa e suaslimitadas e insuficientes regras institucionais forrnais (como par-tidos politicos, proporcionalidade, votos etc.), mas sim desenvol-vendo fonnas de democracia de base (participação, gestão com-partida e sistema de conselhos) capazes de conviver com certosinstitutos positivos da democracia por delegação. A convergên-cia deve levar em conta, sobretudo, a participação, o controle e arepresentação vinculante dos interesses de todos os setores dasociedade, seja sob a experiência de sujeitos individuais, seja soba expressão de sujeitos coletivos.

Em conformidade com as várias situações e exigências, a am-pliação da democracia decorre, para lembrar Norberto Bobbio,tanto da “participação” e da “liberdade de dissenso”, quanto deum processo de expansão do poder ascendente (controle de baixopara cima) em suas diversas articulações, desde a família até aescola, passando pela empresa e chegando aos serviços públicosl”.

Certamente, a utilização de “certas condições” e “certas práti-cas” favorece a implementação e a consolidação dos liames quemoldarn a democracia participativa de base. Por conseqüência,não só importa considerar as pré-condições de que falaMacPherson acerca da “mudança da consciência do homem con-

'°“ Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu, op. cit., p. 198; Cf. SANTOS, Boaventura deSouza et al. A participação popular na administração da justiça. Lisboa: Livros Hori-zontes, 1982. p. 84-87.

'°° Cf. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras dojogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 52-53; . Qual o socialismo? Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1983. p. 32-33.

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258 PLURALISMO JURÍDICO: PRoJEÇÃo DE UM MARCO DE ALTERIDADE

sumidor”, “diminuição da desigualdade social e econômica” e“aumento da participação política”2°°, como, também importacolocar em prática determinados “exercícios democráticos”vivenciados na Comuna de Paris e lembrados por Pedro Demo,sobre as “possibilidades de deposição”, “prestação de contas”,“remuneração dos administradores ou servidores do Estado igualà dos trabalhadores” e “rodízio no poder”2°l.

Tendo em conta que as necessidades das múltiplas formas devida cotidiana estão sendo permanentemente colocadas numacontinuidade acelerada, as fonnas de sufrágio e de democraciaformal acabam envelhecendo em pouco tempo, sobretudo quan-do fundadas no poder econômico, na manipulação da “mídia” ena imposição cultural por meio de figuras ou símbolos persona-lizados. Diante disso, tomam-se evidentes as vantagens de prá-ticas democráticas em intervenção contínua, refletindo os inte-resses e os conflitos cotidianos das diversas forças sociais a cadamomento. Como bem observa Villasante, a democraciaparticipativa de base “não se fixa tanto em número de votos,mas na capacidade de determinados setores sociais para organi-zar a expressão de suas necessidades, mediante uma interven-ção direta e contínua na opinião pública”2°2. Trata-se de práticapolítica não muito fácil de perceber, porque, estando permanen-temente em mudança, aglutina questões específicas e, “em ummomento concreto, os interesses que são sentidos pela comuni-dade”2°3.

Não resta dúvida de que a fonna democrática mais autênticade participação, deliberação e controle é o “sistema de conse-lhos”, disseminado nos diferentes niveis da esfera e do poder lo-cal (bairro, distrito e município). A estrutura geral dos conselhos,que pode também compreender “comitês de fábrica”, “comissõesmistas” de espécies distintas ou “juntas distritais”, é, por excelên-cia, a efetivação maior do arcabouço político de uma democracia

2°” MACPHERSON, C. B. A democracia liberal. Origens e evolução. Rio de Janei-ro: Zahar, 1978. p. 102-103.

2°' DEMO, Pedro, op. cit., p. 114.202 VILLASANTE, Tomás R., op. cit., p. 221-223; DELGADO, Daniel García. Esta-

do-nación y globalización. op. cit., p. 266-269.2” Idem, ibidem. p. 222.

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4. 4.3 Reordenação politica do espaço público: democracia... 259

pluralista descentralizada, assentada na “participação de base” eno poder da “autonomia local”. O “sistema de conselhos” propi-cia mais facilmente a participação, a tomada de decisões e o con-trole popular no processo de socialização, não só na dinâmica dotrabalho e da produção, como igualmente na distribuição e no usosocial2°4. Ademais, no âmbito do espaço público local, a ordena-ção político-democrática da estrutura piramidal dos conselhos (in-temamente composta por comitês de consulta, deliberação e exe-cução) é constituída por uma rede de múltiplas forças sociais dis-tribuídas desde uma escala maior (Conselho Comunitário, Muni-cipal ou Distrital) até níveis menores (Conselho de Bairros, deFavelas, de Fábricas, de Entidades Públicas, de Sindicatos, deAssociações Profissionais e Comerciais, dos Trabalhadores Ur-banos e Rurais etc.).

Registra-se que, quando no govemo dos Conselhos, o núcleode poder reside no conjunto dos organismos de base: as deci-sões tomadas são passadas, asseguradas e executadas para a cú-pula administrativa com delegação. Entretanto, quando o siste-ma está escalonado sob a forma de uma pirâmide de poderesdifusos e interpostos, as bases deverão dispor de instrumentoseficazes para opinar, pressionar e controlar os núcleos de deci-são e de poder mais acima. É nesse quadro de uma democraciaparticipativa pluralista que MacPherson procura chamar a aten-ção para a necessária combinação de certos mecanismos (indi-retos) recuperados da democracia representativa (quadros parti-dários) com o modus operandi (direto) do sistema piramidal debase. De qualquer modo, razão assiste ao pensador canadense,

20" Com referência ao “Sistema de Conselhos”, a literatura é muito rica, podendo sermencionado: ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.199-201; PORTELLI, Hugues. Democracia representativa, democracia de base e movi-mento social. Revista de Cultura & Politica. Rio de Janeiro, n. 3, p. 55-63. Nov./Jan.1981; COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci. Porto Alegre: L&PM, 1981. p. 30-34 e142-151; CASTORIADIS, Comelius. Socialismo ou barbárie. O conteúdo do socialis-mo. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 80-88; VILLASANTE, Tomás R., op. cit., p. 225 e230-232; FIGUEROLA, Francisco J., op. cit., p. 259-311; DALLARI, Dalmo de Abreu,op. cit., p. 207-208. Sobre os “Conselhos populares”, ver: CNBB. Participação populare cidadania: a Igreja no processo constituinte. São Paulo: Paulinas, v. 60, 1990. p. 269-276; SILVA, Vini Rabassa da (Org.). Conselhos Municipais e Poder Local. Pelotas:Educat, 1998.

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260 Prunausmo JURÍDICO: PROJEÇÃO os UM MARCO DE ALTERIDADE

quando aduz que o modelo mais simples de democraciaparticipativa é aquele que se institui como um sistema pirami-dal, aglutinando a “democracia direta na base (nivel de vizi-nhança e fábrica) e a democracia por delegação em cada níveldepois dessa base”. O processo avança até o vértice da pirâmi-de, tendo “um Conselho nacional para assuntos de interesse na-cional, e conselhos locais e regionais para questões própriasdesses segmentos territoriais”2°5.

Pelo que representou em algtms dos mais importantes eventostransfonnadores (Revoluções Francesa, Norte-Americana, Rus-sa, Comtma de Paris etc.), o “sistema de conselhos” tem sido exal-tado por teóricos de matizes tão distintos, como Antonio Gramsci,Hannah Arendt, C. B. MacPherson, Comelius Castoriadis e ou-tros. Ainda que tenha realçado os “conselhos de fábricas”, Anto-nio Gramsci reconhece que o “sistema de conselhos”, além detraduzir O modo genuíno de democracia pluralista de base, é opressuposto de nova estrutura representativa”. Ainda por essavia, Hugues Portelli comenta, com razão, que o “sistema de con-selhos”, enquanto democracia pluralista de base, configura-se, deum lado, como a mais modema modalidade de controle das clas-ses populares sobre a organização do trabalho e da produção, deoutro, O fator instrumental privilegiado e essencial de expressãodos movimentos sociais”.

Certamente, o que importa ter presente na reordenação políti-ca do espaço público, com o conseqüente processo de democra-cia descentralizadora e participativa, é descortinar uma socieda-de pluralista marcada pela convivência dos conflitos e das dife-renças, propiciando a existência de outra fomia de legitimidade.Por certo se está avançando e ampliando o processo mediantefonnas de democracia direta (participação orçamentária, gestãocompartida e sistema de conselhos) capazes de conviver com ademocracia por delegação. A convergência dos processos demo-cráticos tem de levar em conta, sobretudo, a participação comuni-tária, o controle dos cidadãos e a representação vinculante dos

M MACPHERSON, c. B., op. cit., p. 110.2°” Cf. GRAMSCI, Antonio. In: COUTINHO, Carlos Nelson, op. cit., p. 33-34 e 150.2°? Cf. PORTELLI, Hugues, op. cit., p. S8.

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4.4.4 Ética concreta da alteridade 261

interesses em novo espaço público, cujo palco privilegiado é opoder localm.

4. 4.4 Ética concreta da alteridade

Prosseguindo na discussão sobre os fundamentos paradigmáticosdo pluralismo político e jurídico de novo tipo, sublinha-se a rele-vância de urna quarta condição - em nível de “efetividade fonnal”-, configurada na formulação de valores éticos emancipatórios. Aconstatação do esgotamento da cultura projetada pela modemidadeindustrial-capitalista testemunha um encadeamento de crises de le-gitimidade normativa que atravessa as esferas do cotidiano, dasinstituições econômicas e políticas, bem como das idéias e práticasvalorativas”. A crise do ethos valorativo vivenciada pelas fonnasde vida da sociedade contemporânea de massas tem sua razão de serna profunda perda de identidade cultural, na desurnanização das re-lações sócio-políticas, no individualismo irracionalista e egoísta, naausência de padrões comunitários e democráticos, senão ainda naconstante ameaça de destruição da humanidade e de seu meio ambi-ente. Tal situação gera uma das grandes dificuldades presentes, que éarquitetar as bases de um conjunto de valores éticos capazes deintemalizar O “eu” individual e o “nós” enquanto comunidade real.

2°* Para uma leitura introdutória sobre o poder local, consultar: FISCHER, Tânia[Org.]. Poder local, governo e cidadania. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,1993; DOWBOR, Ladislau. O que époder local. São Paulo: Brasiliense, 1994; GENRO,Tarso F. “Cidade, cidadania e orçamento participativo”. ln: Governo municipal na Amé-rica Latina. Inovações e perplexidades. FACHIN, Roberto e CHANLAT, Alain [Orgs.].Porto Alegre: Sulina/UFRGS, 1998. p. 196-198; BOWMAN, Margaret e HAMPTON,William [Comp.]. Democracias locales: un estudio comparativo. México: Fondo deCultura Económica. 1989; NAVARRO YÁNEZ, Clemente J. El sesgo participativo. op.Cit.; . El nuevo localismo - municipio y democracia en la sociedad global. Córdo-ba: Diputación de Córdoba, 1998; BRUGUE, Quim e GOMA, Ricard [Coords.]. Gobiernoslocales y politicas públicas. Barcelona: Ariel, 1998.

2°” Cf. HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc, 1989. op. cit., p. 215; .Sociologiade la vida cotidiana. 3. ed., Barcelona: Península, 1991. p. 132-160; . A herançada ética marxista. In: HOBSBAWM, Eric J. [Org.]. História do marxismo. O marxismohoje (segunda parte). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, v. 12. p. 103-130; FROMM,Erich. Análise do homem. 10 ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1978; RUSS, Jacqueline. Pen-samento ético contemporâneo. São Paulo: Paulus, 1999.

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262 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

No meio da crise de legitimidade normativa, vive-se a falta de con-senso e o impasse em face da diversidade de interpretações sobre oque seja “virtude” “bem-comum” “vida boa” ou “ação justa”2'°9 9 '

E óbvio, neste contexto, que, para diagnosticar uma saída para acrise ética da modernidade, há de se contemplar o avanço de racio-nalização da vida moderna, uma racionalização de ctmho técnico-sistêmico que acaba fragmentando o “mundo da vida e da cultura”em dois níveis: “de um lado, nonnas e orientações cada vez maissofisticadas para a ação htnnana no campo instrumental e técnico.De outro, as nonnas e valores éticos da ação humana vão se genera-lizando cada vez mais, até o ponto de sua diluição ou extinção com-

l ”2“ O h ` d ` d' 'd l` dp eta (...) . recon ecimento o in 1v1 ua ismo, adesumanização alienadora e da fragmentação do sujeito como tra-ços ético-culturais das sociedades burguês-capitalistas (tanto noespaço avançado do “centro” quanto nas áreas instáveis da “perife-ria”) propicia a abertura e a busca de altemativas para a descobertade um novo universo axiológico. Dentre as muitas propostas aven-tadas, duas importantes contribuições filosóficas, configuradas, orapelo “pragmatismo analítico”, ora pelo “racionalismo discursivo”,oferecem, no seu ceme, respostas paradigmáticas para o exaurimentodos valores éticos da modemidade.

Sem adentrar os pormenores, interessa apenas lembrar que o“pragmatismo analítico”, representado por teóricos anglo-norte-americanos como A. Maclntyre, Hilary Putnam e Richard Rorty,rejeitando os chamados princípios éticos universais, entendem queé desnecessário e até prejudicial buscar normas gerais, pois a éti-ca enquanto “virtude” cinge-se a regras imediatas e particulares”.

2"' Cf. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jiirgen Habermas: razão comunicativa eemancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 41; HELLER, Agnes, 1990.op. cit., p. 343.

2" SIEBENEICI-ILER, Flávio Beno, op. cit., p. 41.“Z Uma apreciação dos argtunentos de A. Maclntyre e H. Putnam pode ser encontra-

da em: HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, l989a. p. 61-141; PUTNAM, Hilary. Racionalidad en la teoria de ladecisión y en la ética. In: OLIVÉ, León [Comp.]. Racionalidad. México: Siglo Veintiuno,1988. p. 46-57; GUERREIRO, Mario A. L., Ética e ciência em Hilary Putnam. In: CAR-VALHO, Maria Cecilia M. de [Org.]. Paradigmas filosóficos da atualidade. Campinas:Papirus, 1989. p. 289-305; MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qualracionalidade? São Paulo: Loyola, 1991.

4. 4.4 Ética concreta da alteridade 263

Em sua postura marcada por um “etnocentrismo pragmático” epor um “relativismo cultural”, Richard Rorty argtunenta ser inútilfundamentar os valores em algo absoluto, atemporal e utópico,pois os critérios valorativos de conduta enquanto virtudes cívicasregionais espelham a estreita vinculação com os condicionamen-tos de uma tradição culttnal concretam. Naturalmente, a partir detal lógica, toma-se fácil entender a defesa que ele faz de uma éticaespecífica, calcada nas tradições culturais do modo de vida liberal-individualista norte-americano. Isso leva-o não só a minimizar opapel de uma ética de racionalidade universal, como, sobretudo, adesconsiderar as concepções éticas de outros contextos culturais,principalmente no que tange às éticas libertárias desenvolvidas nasculturas políticas periféricas. Na verdade, ainda que tenham a pre-tensão de ser “progressistas”, Richard Rorty e seus adeptos, ao pro-clamarem a validade e a universalidade da filosofia analítica, bus-cam utilizar sua linguagem, sua lógica e seu instrumentalmetodológico para justificar uma ética regional de dominação ine-rente ao erhos de legitimação nacional norte-arnericana2'4.

Deixando de lado o relativismo e a insuficiência do“pragmatismo analítico” e de outras correntes do funcionalismo-sistêmico (inspirados em autores como Niklas Luhmann), cabefocalizar agora a mais importante contribuição do racionalismofilosófico contemporâneo na edificação do projeto de uma éticauniversal: a ética racional do discurso. Diferentemente da posturairracionalista do “pragmatismo analítico” norte-americano e do“pós-estruturalismo” francês, a “teoria da racionalidade comuni-cativa” de Jürgen Habennas e Karl-Otto Apel tem-se constituído,nas últimas décadas do século XX, no ponto referencial obrigató-rio e necessário para toda e qualquer investigação sobre a funda-mentação de principios éticos universais.

2” A este respeito, cf. VALLESPIN ONÃ, Femando; AGUILA TEJERINA, Rafaeldel. Será necessário um ponto arquimédico? Teoria crítica e práxis política. p. 7-37 eRORTY, Richard. Solidariedade ou objetividade. p. 45-62. In: Critica. Revista do Pen-samento Contemporâneo. Lisboa, n. 3. Abr./1983.

2” Cf. ZIMMERMANN, Roque. América Latina -- o não ser: uma abordagemfilosófiea a partir de Enrique Dussel (1962-1976). Petrópolis: Vozes, 1987. p. 149 e206. Observar, igualmente, RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Lis-boa: Dom Quixote, 1988. p. 238-243 e 293-297.

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264 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO De ALTERIDADE

INI FÉTrabalhando com novo conceito de “razao” (nao mais a “razãoinstrumental” iluminista, mas a “razão dialógica”, vivenciada epartilhada por atores lingüisticamente competentes), assentado numentendimento comunicativo, tanto Habermas quanto Apel buscamuma saída para a crise da ética modema, ou seja, a proposição denomias e valores para a ação humana que levem à emancipaçãodos sujeitos históricos e dos grupos sociais. Neste sentido, Habermase Apel procuram edificar as condições para uma ética universalistado discurso prático-comunicativo que objetive maior assimilaçãoentre o “eu” individual e a autonomia das identidades coletivas.

Rompendo com a tradição clássica da ética aristotélico-tomista(sistema de virtudes: supremo bem, ser feliz), e sustentando-se emargumentos apoiados na dialética hegeliana, Habennas retoma,amplia e transpõe a ética fonnalista de Kant (sistema de deveres:imperativo categórico como a priori de fundamentação dos enun-ciados nonnativos), carninhando em direção a uma ética do discur-so prático. Desta maneira, os pressupostos habennasianos não maisrecorrem exclusivamente à razão, mas interpõem os principios ge-rais da comunicação humana dada pela vida concreta dos partici-pantes. Além disso, toda e qualquer concepção ética, a partir dodiscurso prático consensualizado, deve tratar e considerar a reci-procidade de três grandes princípios de fundamentação universal:princípio da justiça, princípio da solidariedade e princípio do bem-comum. Passa a ser essencial para Habennas que a ética do discur-so prático-comunicativo, enquanto ética de ctmho universalista,dependa das formas reais de vida e das ações hrnnanas concretas”.

A ética do discurso ou da comunicação, alicerçada na “prag1ná-tica universal” (segundo Habermas) e/ou na “pragmáticatranscendental” (confonne Apel), por ser uma ética cognitiva,fonnalista e pós-kantiana, assume características de “macroéticapós-convencional” que tem eficácia para o conjunto da humanida-de, requerendo, para seu princípio fundante, “Luna validade univer-

2” Ver, nesse sentido: SIEBENEICHLER, Flávio Beno, op. cit., p. 139-142 e 147;HELLER, Agnes, 1990. op. cit., p. 297-312. Sobre a crise e a reconstrução do Direito naperspectiva universalista da ética do discurso, ver: HABERMAS, Jürgen. Direito e de-mocracia: entrefacticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2 vs., n. 101 e102, 1997.

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4. 4.4 Ética concreta da alteridade 265

sal intersubjetiva e independente das circunstâncias”. Isso leva àponderação de Apel de que a ética do discurso é mediada por doisníveis: o princípio formal de fundamentação racional último e asnonnas materiais justificadas pela comunicação prática”.

Além da contribuição de Habermas, outra proposta não menosimportante para a edificação racional de uma nova éticauniversalista, em fins do século XX, é a que vem sendo sistemati-zada pelo também integrante da Escola de Frankfurt, Karl-Otto Apel.Tendo presentes as proposições normativas de teor lingüístico-prag-mático, muito próximas de Habermas, Apel avança, através de umaracionalidade marcada por tuna “reflexão transcendental”, na cons-trução de tnna ética especial (discursivo-comunicativa), denomina-da “ética da responsabilidade”, que tem como exigência ser consti-tuída pelo “consenso” de vontades livremente reafinnadas. No ins-tante em que a ciência busca traduzir tnna civilização unitária, tor-nando-se insuficiente a fonnação de éticas específicas de grupos eéticas subjetivas individuais, nada mais oportuno do que afnmar,mediante urna racionalidade estratégica de interação social, urnaética comunitária intersubjetivamente válida”. Efetivando umaponte conciliadora entre a racionalidade tecno-instrumental (adap-tada e depurada a partir de categorias weberianas), Apel defme oprincípio de uma norma moral ftmdamental, denominada “ética daresponsabilidade”. A “ética da responsabilidade” nada mais é doque uma ética dialógica que se articula através da interação social,mediação que possibilita as “condições de existência da Comuni-dade ideal com a Comunidade real”218.

Ressalta ainda o autor dos Estudios Éticos que a necessidade eo surgimento desta “norma moral fundamental” assenta na pre-missa de que “(...) todos os homens são parceiros, com os mes-

2"' Excelente síntese sobre a “Ética do discurso” pode ser encontrada em: APEL,Karl-Otto. Verbete: L°Éthique de la discussion: sa portée, ses limites. In: JACOBI, André[Dir.]. Encyclopédie philosophique universelle. L'univers philosophique. Paris: P.U.F.,1989, v. 1. p. 154-155.

2” Cf. RABUSKE, Edvino. Epistemologia das ciências humanas. Caxias do Sul:UDUCS, 1987. p. 86-87.

“S APEL, Karl-Otto. Estudios éticos. Barcelona: Alfa, 1986. p. 94-100; . Latransformación de laƒilosofa. Madrid: Taurus, 1985, v. 2. p. 341-413; .Estudosde moral moderna. Petrópolis: Vozes, 1994.

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266 PLURAusMo JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

mos direitos e os mesmos deveres”2'9. Insiste Apel em assinalarque “somente este tipo de nonna básica, universalmente válida, defundamentação consensual-nonnativa, é que possibilita a convi-vência das pessoas, dos povos e culturas, com diferentes interessese tradições valorativas de mundos vitais. Ora, é justamente o reco-nhecimento intersubjetivo da °metanorma°, enquanto princípio daracionalidade discursiva, que toma possível a condição dopluralismo valorativo do mundo moderno”22°. Por conseguinte, paraApel, a fonna de se conseguir aceitação das nonnas, no âmbito deuma “ética da responsabilidade” e/ou “ética do diálogo”, dependeda capacidade de se obter consenso por parte dos atores sociais e“das conseqüências das normas que se há de aceitar (...)””*.

Em resposta às críticas feitas pelo “pós-estruturalismo” francês(Foucault, Deleuze, Derrida e outros), Apel pondera que a busca devalores universais não prejudica a diferença e a particularidade,porquanto, mais do que ntmca, é necessária urna grande ética, umaética cósmica, planetária. A intenção de Apel não é oferecer umaética acabada para uma realidade constituída de diferentes gruposparticulares, mas sim princípios universais condutores que deverãoser usados como direção geral, principios que ordenam tuna éticacoletiva da responsabilidade, envolvendo a participação de todospara o bem-estar e a felicidade geral. Certamente, deve-se, prelimi-narmente, reconhecer não só o esforço de Habennas e Apel no sen-tido de fundamentar uma ética racional, potencialmente universal,que parte de relações intersubjetivas e da ação comunicativa con-creta superadoras do fonnalismo positivista, como, sobretudo, aimportância de suas análises e de suas categorias-chave como “res-ponsabilidade”, “práxis emancipatória”, “solidariedade”, “valori-zação das subjetividades do mundo da vida” e “consenso da comu-nidade real”, para se repensar e romper com todos os parâmetrosaxiológicos convencionais.

Se parece não haver dúvida quanto ao reconhecimento do altograu de significação da ética discursiva como ponto inicial paradiscussão de todo e qualquer projeto ético na atualidade, não me-

2” RABUSKE, Edvino, op. cit., p. 86.22° APEL, Karl-Otto, 1986. op. cit., p. 93.22* Idem, ibidem. p. 101.

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4.4.4 Ética concreta da alteridade 267

nos relevante é tentar examinar as possibilidades reahnente exis-tentes da eficácia de seus pressupostos quando aplicados a experi-ências históricas e situações culturais regionais, marcadas por irra-cionalismos, conflitos, dependência e violência institucionalizados.De fato, a proposta da ética discursiva parte de uma visão de so-ciedade quase perfeita, constituída por homens competentes, livres,conscientes e madtuos, prevalecendo sempre a lógica do melhorargumento possível. Em outros tennos, dir-se-ia que tal desideratoparte das premissas básicas de que haja Luna condição pública dadaapriori (comunidade de comunicação ideal), que todos os agentesparticipem por livre consenso e que todos os sujeitos integrantes dojogo argumentativo sejam iguais. Diante disso, verificam-se reaisdificuldades para situar e utilizar a ética discursiva universal nascondições das comunidades sócio-políticas do Capitalismo perifé-rico, cujo cenário é composto por sujeitos alienados, espoliados edesiguais. Sem negar o mérito de um projeto ético calcado em prin-cípios fundantes universais (vida, liberdade, justiça), presentes eúnicos em qualquer situação histórica ou experiência cultural, deve-sc também contemplar valores éticos particulares (que, Luna vezreconhecidos pela Comunidade Internacional, poderão alcançar uni-versalidade), inerentes às especificidades das formas de vida pre-dominantes em espaços regionais periféricos, como emancipação,autonomia, solidariedade e justiça. O que deveras acontece é quena “comunidade de comtmicação real”, hegemônica e central, o“outro” (o sujeito espoliado e dominado do mundo periférico), quedeveria ser a condição fundante, na verdade é ignorado, silenciadoe excluído, porque não é livre nem competente para participar daconsensualidade discursiva e do jogo lingüístico argumentativo.Com isso pode-se também afinnar que o sujeito da “intençãoemancipadora” dos teóricos da Escola de Frankfurt não se confun-de necessariamente com o sujeito da “práxis libertadora” (pobres,miseráveis e oprimidos) dos pensadores latino-americanosm.

222 A questão da insuficiência da “Ética do discurso prático” de cunho universalizantepara o contexto da periferia latino-americana é examinada por: DUSSEL, Enrique D.Filosofia de'la liberación y comunidad de comunicación de vida. Texto inédito. s/d., 75p.; ____ . Etica dela liberación en la edad dela globalización y la exclusio'n. Madrid:Trotta/DNAM, 1998; SCANNONE, Juan Carlos. Filosofia primera e intersubjetividad.El a priori de la comunidad de comunicación y el nosotros ético-histórico. Revista

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268 Pruimrrsmo JURÍDICO: PRoJEÇÃo DE UM MARCO DE ALTERIDADE

Parece claro, por conseguinte, o presente propósito: ainda quese tomem preliminarmente algumas categorias teóricas (emancipa-ção, solidariedade e justiça) enaltecidas pela “ética discursiva”, háque avançar na formulação de uma “ética concreta da alteridade”capaz de romper com todos os formalismos técnicos e osabstracionismos metafisicos, revelando-se a expressão autêntica dosvalores culturais e das condições histórico-materiais do povo sofri-do e injustiçado da periferia latino-americana e brasileira. A “éticada alteridade” não se prende a engenharias “ontológicas” e a juízosa priori universais, postos para serem aplicados a situações vivi-das, mas traduz concepções valorativas que emergem das própriaslutas, conflitos, interesses e necessidade de sujeitos individuais ecoletivos insurgentes em permanente afirmação. Admite-se, assim,que a “ética concreta da alteridade” tem um cunho libertário, pois,por estar inserida nas práticas sociais e delas ser produto, pode per-feitamente se materializar como instrumento pedagógico que me-lhor se adapta aos intentos de conscientização e transformação dasnações dependentes do Capitalismo periférico, bem como das lutasde libertação e emancipação nacional dos povos oprimidos223.

Destarte, o conteúdo constitutivo da “ética da alteridade”, en-quanto expressão de valores emergentes (emancipação, autono-mia, solidariedade e justiça), quer como fonna de destruição dadominação, quer como instrumento pedagógico da libertação,envolve duas condições essenciais:

a) inspira-se na “práxis concreta” e na situação histórica dasestruturas sócio-econômicas até hoje espoliadas, dependentes,marginalizadas e colonizadas;

b) as categorias teóricas e os processos de conhecimento sãoencontrados na própria cultura teológica, filosófica e sócio-polí-tica latino-americana. Neste sentido, deve-se apreender um pen-

Stromata. San Miguel Faculdades de Filosofia y Teologia, n. 42. p. 367-386; _______ .Racionalidad ética, comunidad de comunicación y alteridad. Revista Stromata. n. 43/4-4,p. 393-397, 1987. 'V

223 Cf. SERRANO CALDEIRA, Alejandro. Filosofia e crise. Pelafilosofia latino-americana. Petrópolis: Vozes, I984. p. l4-15.

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4.4.4 Ética concreta da alteridade 269

samento periférico autóctone de vanguarda, representado tantopela Filosofia (Enrique D. Dussel, Juan Carlos Scamrone, Raul F.Betancourt, Augusto Salazar Bondy, Alejandro Serrano Caldeira,Leopoldo Zea e outros) quanto pela Teologia (Gustavo Gutiérrez,Leonardo Boff, Hugo Assmann e outros) e pelas Ciências Sociais(José Carlos Mariátegui, Eduardo Galeano, Darcy Ribeiro, FranzJ . Hinkelammert e outros)224.

Além de compartilhar com certos valores racionaisuniversalizantes, como vida, liberdade, bem-comum e justiça, a“ética da alteridade”, por ser parte de uma pluralidade de fonnasde vida, traduz a singularidade de certos valores específicos(simbolizadores de uma dialética do particular/universal, da uni-dade/pluralidade etc.), representados basicamente por emancipa-ção, autonomia individual e coletiva, solidariedade, justiça e asatisfação das necessidades humanas. A “ética da alteridade”, semdeixar de contemplar princípios racionais universalizantes comunsa toda a humanidade, prioriza as práticas culturais de uma dadahistoricidade particular, material e não-formal.

A “ética da alteridade” é uma ética antropológica da solidari-edade que parte das necessidades dos segrnentos humanos margi-nalizados e se propõe gerar uma prática pedagógica libertadora,capaz de emancipar os sujeitos históricos oprimidos, injustiçados,expropriados e excluídosm. Por ser uma ética que traduz os valo-

2” Para uma introdução básica ao pensamento e à cultura periférica latino-america-na, convém observar: SERRANO CALDEIRA, Alejandro, op. cit.; DUSSEL, Enrique D.Filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1982; SALAZAR BONDY, Augusto. Existeunafilosoƒia de nuestra América? 8. ed., México: Siglo Veintiuno, 1982; ZEA, Leopoldo.La filosofia americana como filosofia sin más. 3. ed., México: Siglo Veintiuno, 1975;CERUTTI GULDBERG, Horacio. Filosofia de la Iiberación latino-americana. Méxi-co: Fondo de Cultura Económica, 1983; GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação.2. ed., Petrópolis: Vozes, 1976; MARIATEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpreta-ção da 'realidade peruana. São Paulo: Alfa-Omega, 1975; GALEANO, Eduardo. As vei-as abertas da América Latina. 8. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979; RIBEIRO,Darcy. 0 dilema da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1983; HINKELAMMERT, FranzJ_ Ei mapa del emperador: San Jose (Costa Rica): DEI, 1996.

225 A esse propósito, consultar: MOSER, A.; DUSSEL, E.; STEIN, D.; MIETH, D.Libertação - um desafio para a ética cristã. Petrópolis: Vozes, Concilium/192, 1984;GUTIERREZ, Gustavo, 1982. op. cit.; DUSSEL, Enrique D. Para uma ética da liberta-ção latino-americana. São Paulo: Loyola, v. 4, s/d. p. 120-158.

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270 PLURALJSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

res emancipatórios de novas identidades coletivas que vão afir-mando e refletindo uma práxis concreta comprometida com a dig-nidade do “outro”, encontra seus subsídios teóricos não só naspráticas sociais cotidianas e nas necessidades históricas reais, masigualmente em alguns pressupostos epistemológicos da chamadaFilosofia da Libertação. Sendo assim, há que se ter presente, ain-da que brevemente, certos marcos referenciais da obra de Enri-que D. Dussel, O teórico por excelência da mais bem elaborada econsistente proposta de uma ética filosófica libertadora sob a ópticada periferia latino-americana.

Em algumas de suas Obras, O filósofo e teólogo argentino En-rique D. Dussel mostra que a Ética da Libertação compreende adimensão de lugar ou do momento da exterioridade, em cujo es-paço se dá a “afirmação do oprimido como Outro, como pessoa ecomo fim”, sendo constituída por duas categorias fundamentais:a categoria ontológica da “totalidade” e a categoria metafísica da“exterioridade” (a1teridade)226.

A categoria da “totalidade”, que pode manifestar-se de diver-sas maneiras, abarca O mundo da vida cotidiana, a totalidade doser, a universalidade dos sentidos e das práticas, a mundialidadecapitalista concreta e abstrata. A exigência de uma nova ordemfundante implica O desafio de romper com a “totalidade”ontológica do pensamento moderno europeu, caracterizado porum idealismo individualista e por um subjetivismo centrado no“Eu Absoluto”. A nova “totalidade” está comprometida com umareflexão que parte do mundo e da realidade, exigindo justiça eemancipação dos oprimidos de todos os tempos e lugares.

Já a categoria da “exterioridade” engloba O “espaço humanodo outro”, da alteridade de urna nova subjetividade presente emcada pessoa enquanto individualidade e em cada grupo como co-letividade. Ademais, a metafísica da alteridade enquantoparadigma originário que rompe com a injustiça e com a “nega-ção do ser do outro”, inscreve na história a exterioridade do ou-tro, configurando, pela práxis, refletida igualmente no nível teó-

22° Cf. DUSSEL, Enrique D. Verbete: Éthique de la libération. In: JACOBI, André[Dir.]. Encyclopédie philosophique universelle. op. cit., p. 150;í . Etica comuni-tária. Petrópolisz Vozes, 1986a. p. 259-267.

4.4.4 Ética Concreta da alteridade

rico, uma nova lógica de convivência humana. Esta nova subjeti-vidade de transgressão mediatiza aquela singularidade de que falaEmmanuel Levinas, projetada no absolutamente “tu,” na relação“face-a-face” e na infinitude do rosto “frente-a-frente”2”.Alteridade subjetiva que na menção categórica de Enrique D.Dussel irá afirmar a dignidade humana concreta existente, aqui eagora, “exterioridade” que foi sempre historicamente oprimida,violada e não-respeitada, quer na figura do “índio (durante a con-quista), no colonizado (séculos subseqüentes), no mestiço e nocrioulo (após a emancipação), quer no marginalizado (camponêsou favelado) ou no subnutrido e alienado de nosso tempo°”28.

Deixando clara a centralidade do binômio “totalidade” (para Oque se pretende destruir) versus “exterioridade” (para O que sepretende construir), Enrique D. Dussel acrescenta e desenvolveduas “categorias práticas” derivadas daquelas:

a) a “alienação” - simboliza O “pecado” e a “opressão”, a ne-gação da exterioridade, O “outro” despojado e tomado mera partefuncional intema do sistema mercantil, O sujeito vivo coisificadopelo capital, O mal ético por excelência etc.;

b) a “libertação” - O imaginário da “salvação” e da “saída”, autopia do “homem novo”, a alternativa construtiva ao Capitalis-mo dependente, enfim, a “negação da alienação a partir da afir-mação da exterioridade”229.

Não há dúvidas de que a tarefa de buscar princípios normativospara a ação humana é extremamente complexa, basicamente num

227 A originalidade dessas referências que fundamentam urna nova estrutura da sub-jetividade definida na “responsabilidade por outrem” pode ser detalhada em: LEVINAS,Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1988a. p. 21-67, 167-194, 229-247, 268-287; . Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, l988b. p. 75-93; VATTIMO,Gianni. Metafisica, violência, secularização. In: Critica. Revista do Pensamento Con-temporâneo. Lisboa, n. 2, p. 57-58, Nov./ 1987 (Filosofia e Pós-Modemidade).

228 ZIMMERMANN, Roque, op. cit., p. 158, 180-181, 195.22° Cf. DUSSEL, Enrique D. Verbete: Éthique de la libération. In: JACOBI, André

[Dir.]. Encyclopédie philosophique universelle. Op. cit., p. 149-154; l986a. op.cit., p. 262-264; . Para urna ética da libertação latino-americana. Op. cit., p.120-158.

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272 PLURALISMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE

horizonte cultural delineado por urna crescente pluralidade e di-versidade de forrnas de vida cotidiana. Parece acertado tentar com-preender uma mundialidade constituida pelo cruzamento, concor-rência e a convivência de valores éticos racionais universalizantes(princípios aceitos por quase todas as culturas, instituições e so-ciedades contemporâneas, como a vida, a liberdade, a justiça e Obern-comum) com valores éticos particulares e especificos ine-rentes à historicidade, aos costumes e às tradições de cada con-texto espacial cotidiano. Justifica-se, deste modo, que, em deter-minadas condições estruturais e conjunturais, é possível consti-tuir categorias éticas em decorrência de situações singulares e emconsonância com experiências concretas vivenciadas. Propor,ademais, uma ética identificada com os valores latino-america-nos não é renunciar à aceitação e à consciência da existência deprincípios racionais universalizantes, mesmo porque serãoprojetadas as nossas particularidades com uma visão universal. Epreciso, portanto, reafirmar nossos valores, convictos de que, comoassinala A. Serrano Caldeira, a “pluralidade de culturas é urnaforma de universalidade, na medida em que, ao expressar dife-rentes povos, se complementa a criatividade do ser hu1nano”23°.Assim sendo, é mister reconhecer, na contextualização periféricada cultura capitalista latino-americana e brasileira, as possibili-dades de urna nova ética de teor pedagógico e libertário, geradano bojo de relações conflituosas e de práticas cotidianas configu-radas, quer por sujeitos coletivos, indistintamente, quer especifi-cainente pelos novos movimentos sociais.

Certamente que O desafio está em transgredir O convencionale buscar valores emergentes (no nível do pensamento, da sensibi-lidade e da ação comportamental), provenientes das práticas soci-ais emancipatórias e das lutas reivindicatórias por necessidadestransfonnadas em direitos. No espaço aberto de interações reno-vadas e de exigências éticas23', cuja realidade fragmentada e ex-perimental é reinventada e rearticulada permanentemente, os no-

23° SERRANO CALDEIRA, Alejandro, op. cit., p. 27-29.23' Ver, neste sentido: GOMEZ DE SOUZA, Luiz Alberto. Elementos éticos emer-

gentes nas práticas dos movimentos sociais. Revista Síntese - Nova Fase. São Paulo/Belo Horizonte, n. 48, p. 73-77. Jan./Mar. 1990.

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4.4.5 Racionalidade enquanto necessidade e emancipação 273

vos sujeitos sociais se legitimam para criar, produzir e definirprincípios éticos de urna sociedade compartilhada, pautados naemancipação, autonomia, solidariedade, justiça e na dignidade deuma vida capaz de satisfazer as necessidades fundamentais.

4. 4.5 Racionalidade enquanto necessidade e emancipação

Para compor O quadro que fiuidamenta e aponta na direçãoparadigmática do pluralismo político e jurídico ampliado e de novotipo, resta, por último, descrever a significação de processos raci-onais de conhecimento que, além de emanarem da historicidadeconcreta de interesses, carências e necessidades vitais, estejamintimamente comprometidos com a emancipação e a autonomiada “essência humana”. Entretanto, para chegar à proposição deuma “racionalidade emancipatória”, que integra O que se designaaqui de “estratégia da efetividade formal”, toma-se necessáriorepassar, sumariamente, aspectos da discussão que envolve a ques-tão da “racionalidade”232.

Na verdade, se O processo de racionalização que penetrou emtodos os níveis da sociedade modema, de um lado desencadeou Oprogresso material, técnico e científico dos sistemas de organiza-ção da vida produtiva, de outro, não conseguiu evitar que as pró-prias conquistas materiais acabassem por afetar profundamente aliberdade, a qualidade de vida e a evolução das condições cultu-ral-espirituais do homem. A essência cultural da modemidade

232 Para uma discussão sobre as diversas modalidades de “racionalidade”, verificar:APEL, Karl-Otto. O desafio da crítica total da razão e O programa de uma teoria filosófieados tipos de racionalidade. Novos Estudos CEBRAR São Paulo, ri. 23, p. 67-84. Man/1989; OLIVE, León [Comp.]. Racionalidad. México: Siglo Veintiuno, 1988; HABA,Enrique P. Verbete: Racionalité. In: ARNAUD, André-Jean [Dir.], op. cit., p. 337-340;GODELIER, Maurice. Racionalidad e irracionalidaden economia. 4. ed., México: SigloVeintiuno, 1974; ROUANET, Sergio Paulo. As razões do iluminismo. Rio de Janeiro:Cia. das Letras, 1987; KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 4. ed., Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1986. p. 90-97; I-IINKELAMMERT, Franz J. Cultura dela esperanza y sociedadsin exclnsión. San Jose (Costa Rica): DEI, 1995. p. 273-304; BICCA, Luiz. Racionalidademoderna e subjetividade. São Paulo: Loyola, 1997. p. 145-217. Quanto à questão deuma “racionalidade jurídica”, Observar: COELHO, Luiz Fernando, op. cit., p. 297-349;RUIZ, Oscar José D, “Hacia una nueva racionalidad jurídica en el derecho colectivo deltrabajo”. In: El otro derecho. Bogotá: ILSA, n. 10, Mar./1992. p. 117-137.

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274 PLURALISMO IURiDiCO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ÃLTERIDÃDE

estabelecida, geradora do progresso material mas também respon-sável pelo cerceamento desintegrador da “condição humana”, en-contra seu desfecho numa racionalização de matriz iluminista, por-tadora de uma temporalidade inacabada que contribui para a alie-nação, massificação, coisificação e crises de subjetividade. Parecenotório, quer em seu aspecto positivo (dimensão material, avanço eprogresso científico sistêmico), quer sob seu ângulo negativo (di-mensão huinana, atrofiamento do mundo da vida), o racionalismoocidental surgiu nos marcos das sociedades modemas enquantoproduto da especificidade econômica do mercantilismo e dos valo-res individualista-antropocêntricos emergentes. De fato, a seculari-zação da cultura liberal-burguesa e a conseqüente expansão mate-rial do Capitalismo determinaram a hegemonia de certa fonna mui-to singular de racionalização do mundo da vida.

Esta racionalização do mundo enquanto princípio organizativoe fio condutor de toda reflexão filosófico-cultural tem sido, entre-tanto, encarada de modo distinto por duas das maiores vertentesdo pensamento teórico ocidental: a) a interpretação clássica deMax Weber sobre a racionalidade modema; b) a interpretaçãocrítica da racionalidade iluminista através da tradição marxista(Lukács, Adomo e Horkheimer, Marcuse e Habermas).

O conceito de “racionalização”, enquanto fenômeno peculiar àssociedades modernas da civilização ocidental, foi visto, prelimi-narmente, por Max Weber, tanto como um modo de vida racional,ordenado pela diferenciação técnica e pela especialização cientifi-ca, voltada para a realização de um fim, quanto como a própriafonna de ser da organização social, estruturada pela divisão técnicadas diversas atividades e coordenada por meio da previsão, bus-cando dar às relações humanas, intemas e extemas, maior eficáciae rendimento. A “racionalização” como dinâmica deintelectualização representa o domínio da razão técnica disciplina-da e do progresso instrumental que se impôs ao mundo imprevisível,mítico e mágico das sociedades primitivas. Trata-se do longo pro-cesso de “desencantamento” que se constitui no correr dos séculosda civilização ocidentalm. Evidentemente que a perspectiva de

2” Cf. WEBER, Max. Ciência e politica: duas vocações. 4. ed., São Paulo: Cultrix,s/d. p. 30-31, 45; FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber: 3. ed., Rio de Janeiro:Forense-Universitária, 1980. p. 19-23.

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4. 4.5 Racionalidade enquanto necessidade e emancipação 275

Weber é de que a racionalidade técnica e O progresso crescente daciência propiciam a construção de um mundo racionalizado (racio-nalização da totalidade da vida e despojamento do irracionalismo)e a consolidação da liberdade como processo de “auto-responsabi-lidade do indivíduo em meio à sujeição universal”234.

Mas esta visão weberiana do “mundo desencantado”, previsí-vel e racionalizado, não seria compartilhada pela tradição da crí-tica marxista que identifica, no modemo processo de racionaliza-ção do mundo da vida, os sintomas negativos da alienação, domi-nação e reificação (coisificação).

Nesta direção, cabe mencionar a interpretação que GeorgLukács faz da tese weberiana, quando examina a racionalidadeque nutre O Capitalismo modemo e que sustenta a logicidade téc-nica da divisão social do trabalho. O Capitalismo produziu umcerto ethos de racionalização que introduz em toda a sociedadeuma estrutura de forças produtivas mercantilizadas e relações so-ciais coisificadas. A mecanização racional do processo do traba-lho, a exploração fisica do trabalhador e a usurpação da mais-valia definem as condições históricas da alienação e propiciam osparâmetros de uma consciência de classe verdadeira. Assim, afetichização da vida, na sociedade capitalista, permite considerara racionalização e a reificação como processo únicoê”.

Na esteira aberta por Georg Lukács, Theodor Adomo e MaxHorkheimer, radicalizando a crítica à “racionalização comocoisificação”, são unânimes em reconhecer que a sociedade bur-guesa e sua cultura iluminista, com sua técnica e ciência, produzi-ram um “desencantarnento do mundo” que, em vez de conduzi-rem a liberdade e autonomia dos homens, favoreceram O domíniode uma “razão instrumental” opressora, totalitária e subjugadorada “razão emancipatória.” A proclamação da supremacia de urna“racionalidade emancipatória” originariamente vinculada ao pro-

234 LOEWITH, Karl. Racionalização e liberdade: O sentido da ação social. In:FORACCHI, Marialice M.; MARTINS, José de Souza. Sociologia e sociedade. Rio deJaneiro: LTC, 1977. p. 157-160.

2” Cf. LUKACS, Georg. Historiay consciencia de clase. Barcelona: Grijalbo, 1978.p. 124, 130-138, 142-143; HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa.Madrid: Taurus, 1987, v. l. p. 452-464; KOLAKOWSKI, Leszek. Las principalescorrientes del marxismo. Madrid: Alianza Editorial, 1983, v. 3. p. 268-274.

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276 PLURALISMO runinlcoz PRoJEÇÃo DE UM MARCO DE ALTERJDADE

jeto filosófico do Iluminismo culmina em ser atrofiada e negada,diante dos rumos que tomou a lógica da racionalidade formalpositivista, inerente ao Capitalismo contemporâneo”.

Nessa linha de pensamento, merece ainda ser lembrada a con-tribuição de Herbert Marcuse, em cujos inúmeros textos crítico-filosóficos encontra-se urna profimda denúncia contra a “ideologiada sociedade industrial”, caracterizada por ser repressiva e destrui-dora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades hu-manas. O caráter totalitário dos princípios que fundamentam o Ca-pitalismo avançado compreende uma “racionalidade tecnológica”que se personifica num aparato produtivo usado irracionalmentepara criar automatização, conformismo e alienação. Neste univer-so de racionalização expressa pela civilização capitalista, que negae oprime a “essência humana”, a liberação revolucionária total deveresultar na conjunção de forças operacionalizadoras comprometi-das com o predomínio do “racionalismo crítico” sobre o“racionalismo tecnológico” (tradicional, idealista)237.

Depois de Herbert Marcuse, mais precisamente nas últimas dé-cadas (anos 70 e 80), a filosofia européia reacende toda uma dis-cussão acerca das possibilidades de se elaborar ou não uma “teoriada racionalidade”. Tendo como cenário de problematização a Fran-ça e a Itália, pensadores como G. Deleuze, J. Derrida, J. F. Lyotarde G. Vattimo, compondo um movimento designado por “Pós-Modernidade”, esforçam-se numa “crítica total à razão, não só ques-tionando radicalmente todo o projeto da modernidade, mas negan-do o modelo de uma racionalidade válida e vinculante, porquanto oracional não só é um projeto falido, como ainda se apresenta frag-mentado ntuna pluralidade de discursos, marcados pelo particulare pela diferençam. Reagindo a essas fonnulações do niilismo

23° A este respeito, Cf. FREITAG, Bárbara. A teoria critica: ontem e hoje. São Paulo:Brasiliense, 1986. p. 48-52; ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do esclareci-mento. 2. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

2” Cf. MARCUSE, Herbert, op. cit., p. 41, Sl, 92 e 125; KOLAKOWSKI, Leszek,op. cit., p. 384-385 e 396-405; LÕWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra obarão de Miinchhausen. São Paulo: Busca Vida, 1987. p. I39-160.

2” Referências sobre a polêmica dos filósofos “racionalistas” contra os teóricos da“pós-modernidade” pode ser encontradas em: BETANCOURT, Raul Fornet. La filosofiaeuropea hoy y las condiciones para el diálogo con la filosofia latinoamericana. Textoapresentado no I Seminário Internacional de Filosofia Ibero-Americana. São Leopoldo,

4. 4.5 Racionalidade enquanto necessidade e emancipação 277

irracionalista e retomando a melhor tradição do marxismo, aparecea Escola de Frankfurt (principalmente Jürgen Habennas e Karl-Otto Apel) que não nega a razão, porém propõe corrigir e recons-truir a racionalidade modema. Trata-se de uma racionalidaderedirecionada para uma “razão comunicativa”, embasada não maisnuma filosofia da consciência e numa mera ontologia do conheci-mento, mas finnada na interação humana participativa, no livreconsenso e na ação da argumentação comunicativa.

É inegável que pensar, no novo milênio, num projeto de “trans-formação da filosofia” e de conseqüente “mudança dosparadigmas”, cuja priorização pode ser, de um lado, reconstruir aracionalidade iluminista, de outro, buscar uma nova razão de cu-nho emancipatório, toma-se imperioso para não dizer “obrigató-rio”. E, neste processo, tomar-se-ão como ponto de partida deter-minadas premissas acerca da “racionalidade comunicativa” de-senvolvida, sobretudo, por Jürgen Habermas.

Começando por questionar as teses webeiianasm e seguindoos passos de Adomo, Horkheimer e Marcuse, Habennas assinalaque a racionalidade modema não está a serviço das relações dedominação e de interesses reprodutores da violência contra o“mundo da vida”, mas pode ter contribuído para a superficialida-de dos valores e a desintegração atual da humanidade, mais doque nunca manipulada, constrangida e distorcida. Ora, nas socie-dades do capitalismo industrialmente avançado, o modo de domi-nação tende a perder o caráter claramente explorador e opressivoe a tomar-se uma racionalização ocultada, sem que, com isso, adominação política desapareça ou diminua. Hoje, mais do quenunca, ocorre a fusão peculiar da opressão com a racionalidade e

Unisinos, 24/03/91. 9 p.; APEL, Karl-Otto. Novos Estudos CEBRAP, n. 23. p. 67-84;HABERMAS, Jürgen. El discurso filosófico de la modernidad. Madrid: Taurus, I989b;RORTY, Richard. Habermas y Lyotard sobre la posrnodemidad. In: BERNSTEIN, RichardJ . et al. Habermas y la modemidad. Madrid: Cátedra, 1988. p. 253-276; MACHADO,Carlos Eduardo Jordão. O conceito de racionalidade em Habermas: “a guinada lingüísti-ca” da teoria crítica. Revista Transformação. São Paulo, n. ll, p. 31-44, 1988.

2” O avanço das teses de J. Habermas a partir do confronto com a teoria daracionalidade de M. Weber pode ser visto em: HABERMAS, Jürgen, 1987, v. l. p. 213-249; WELL-MER, Albrecht. Razón, utopia y la dialética de la ilustración. In: BERNSTEIN,Richard J . et al., op. cit., p. 65-l 10; COHN, Gabriel. Racionalidade e poder. Folha de S.Paulo. 14 ago. 1987, Cademo B. p. 8-10 [Folhetim].

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278 PLURALISMO runioico: PROJEÇÃO or; UM MARCO DE ALTEIUDADE

da técnica com a dominação. Para Habennas, a racionalidade daciência e da técnica já é, por si só, “uma racionalidade de manipu-lação, uma racionalidade de dominação”. Esta dominação, metó-dica e calculada, propaga-se e dimensionaliza-se “não apenas atra-vés da tecnologia, mas enquanto tecnologia”, pois, absorvendotodos os parâmetros do mundo da cultura, automaticamente asse-gura, de modo mais concreto, a legitimação do poder público24°.As antigas legitimações e a ordem normativa tradicional vão gra-dualmente desaparecendo, dando lugar a novas fonnas de organi-zação político-jurídicas, adaptadas e reconciliadas com a pene-tração e a dominação globalizada da técnica e da ciência.

Na primeira fase da produção habermasiana2“, a obra Conhe-cimento e Interesse foi importante tanto para propor uma teoriasocial crítica baseada na produção de conhecimento vinculado ainteresses (interesses técnicos, práticos e emancipatórios), quan-to para o esboço de uma inicial distinção entre uma “racionalidadetécnica” (razão instrumental) e uma “racionalidadeemancipató1ia”242. Posteriormente, com sua Teoria da Ação Co-municativa, Habermas avança para uma segunda fase de seu pen-samento - da “representação” e do “esclarecimento” para o “agirinterativo” e o “entendimento participativo” -, deslocando a fun-damentação da racionalidade para um foco de cunho “lingüístico-pragmático” ou “discursivo comunicativo”. Agora, fica muito claraa emergência de uma “racionalidade comunicativa” (é a razãoprática ou dialógica-consensual, constituída por enunciadosprescritivos) que se opõe a uma “racionalidade cognitivo-instru-

2^*° Cf. I-IABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência enquanto “ideologia ”. São Paulo:Abril Cultural, 1980, p. 313-343 [Os Pensadores]

24' Para uma visão geral da produção e do pensamento habermasiano, consultar:BERNSTEIN, Richard J . et al. Introducción. p. 13-61 e GIDDENS, Anthony. Razón sinrevolución? La theorie des Kommunikativen Handelns de Habennas. p. 153-192. In:Habermas y la rnodernidad, op. cit.; SIEBENEICHLER, Flavio Beno, op. cit.;HABERMAS, Jürgen [Entrevista com]. Um perfil filosófico-político. Novos EstudosCEBRAR São Paulo, n. 18, p. 77-102. Set./1987; MERQUIOR, José Guilherme. O mar-xismo ocidental. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, I987. p. 227-256; FREITAG, Bárbara& ROUANET, Sergio Paulo [Orgs.]. Habermas. Série Grandes Cientistas Sociais. SãoPaulo: Ática, 1980. p. 9-73.

242 A esse respeito, ver: HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio deJaneiro: Zahar, 1982.

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4.4.5 Racionalidade enquanto necessidade e emancipação 279

mental” (razão lógico-formal ou técnico-instrumental, constituí-da por enunciados descritivos)243.

Ora, enquanto Adomo, Horkheimer e Marcuse constataram edenunciaram os aspectos negativos revelados pela “razão instru-mental”, bem como o colapso da civilização tecno-científica e dasociedade industrial contemporânea, sem conseguir elaborar umasaída, Habermas se propõe solucionar as “patologias sociais”(medo, dominação, alienação etc.) e os desvios da modemidadeatravés de uma vigorosa “ação comunicativa”, embasada no en-tendimento concreto (empírico, fáctico), no consenso não-coagi-do e na convicção recíproca. Isso implica a mudança do paradigmada ação, a reordenação dos sujeitos sociais (de mn sujeito que searticula em torno de objetos para sujeitos que se relacionam naperspectiva da intersubjetividade e da participação) e o abandonoda “razão instrumental” insuficiente por uma razão “prático-discursiva”, reconstruída, ampliada e humanizadora2“*.

Interpretando as proposições habennasianas, destaca BárbaraFreitag que a “razão comunicativa”, sustentáculo do “mundo davida”, está com sua existência ameaçada pela interferência da ra-zão instrumental que se atrofiou e que insiste em legitimar o mun-do sistêmico. Para superar as perversões e as crises de integraçãosocial (patologias da modernidade) que sacodem as modernassociedades industriais, Habermas “acredita no potencial deracionalidade inerente à razão comunicativa, parcialmenteinstitucionalizada na linguagem cotidiana. (...) Assim, Habennasinclui um novo conceito de razão (...)”, relacionado a uma pro-funda alteração paradigmática em que “a razão passa a serimplementada socialmente no processo de interação dialógica dosatores envolvidos em tuna mesma situação. A racionalidade, paraHabermas, não é mais tuna faculdade abstrata, inerente ao indiví-duo isolado, mas um procedimento argumentativo pelo qual doisou mais sujeitos se põem de acordo sobre questões relacionadas

242 Cf. HABERMAS, Jürgen, 1987. v. 1, op. cit., p. 27-29.244 Examinar, nesse sentido: SIEBENEICHLER, Flavio Beno, op. cit.; STEIN, Emildo.

Paradoxos da racionalidade. Caxias do Sul: Pyr Edições, 1987. p. 51-75; GIDDENS,Anthony. In: BERNSTEIN, Richard et al., op. cit., p. 153-192; MERQUIOR, José Gui-lherme, op. cit., p. 227-256; ROUANET, Sergio Paulo, op. cit., p. ll-15.

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280 PLURAUSMO Juniolcoz PROJEÇÃO DE um MARCO DE ALTERIDAOE

com a verdade, a justiça e a autenticidade”2“5. Desta maneira, a“razão comunicativa”, enquanto razão prático-dialógica, redundanaquilo que “em contexto social, vivido e compartilhado por ato-res lingüisticamente competentes, pode ser elaborado como que-rido e aceito por todos”2“.

Há que referir, entretanto, as possibilidades e os limites de suaobra - enquanto síntese paradigmática de um novo saber capaz deredefinir os parâmetros epistemológicos da racionalidade moder-na - para um projeto acabado e integral de emancipação humana.Com efeito, ainda que se possa questionar as bases de sustenta-ção e a eficácia de seus pressupostos no sentido de uma respostaplenamente satisfatória, na verdade, ao longo de sua obra existemcategorias nucleares apropriadas para O nosso tempo e que ofere-cem subsidios para repensar os processos de racionalização do“mundo da vida” em sua dimensão cotidiana, pública einstitucional. Por transcender fonnas desagregadoras e distorcidasassumidas pela racionalidade iluminista, a teoria macrocósmica einterdisciplinar de Habermas, é O ponto de partida da discussãosobre toda e qualquer reflexão que envolva, hoje, aproblematização de uma nova racionalidade. Realçar a contribui-ção habermasiana não impede, contudo, de reconhecer seus limi-tes para uma solução efetiva e total da especificidade históricadas sociedades periféricas. Uma primeira ressalva que se podefazer é a de que a proposta altamente soñsticada da “racionalidadecomunicativa” foi elaborada tendo em vista as condições materi-ais e culturais de sociedades capitalistas que alcançaram elevadograu de riqueza, desenvolvimento e satisfação das necessidades.Um segundo elemento a considerar é O de que “a ação e O enten-dimento comunicativo” pressupõem, obrigatoriamente, a presen-ça de atores livres, autônomos e iguais, condições que não condi-zem com a realidade do Terceiro Mundo e da América Latina,onde, como se sabe, os sujeitos individuais e coletivos vivenciamuma situação histórica de alienação, opressão, desigualdade eexclusão. Uma terceira ponderação encontra-se na dificuldade dealcançar um “consenso” na esfera de espaços comunicativos pe-

2"5 FREITAG, Bárbara, op. cit., p. 59.24° Idem, ibidem. p. 112-113.

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4.4.5 Racionalidade enquanto necessidade e emancipação 281

riféricos profundamente marcados por contextos culturais fiug-mentários, tensos e explosivos. Não parece ser tão fácil distinguirO falso do verdadeiro “consenso” ou mesmo de atingir um “con-senso” espontâneo desprovido de preconceitos. No mundo con-temporâneo tem-se visto que O “consenso” pode, tanto ser forja-do e manipulado por burocracias partidárias estatais (Socialismode Estado), quanto pela indústria cultural do Capitalismo de mas-sas. Uma quarta restrição é que este novo paradigma de açãodialógico-discursiva requer uma “comunidade lingüística ideal”,de pureza quase utópica, desprovida de mentira, coação eirresponsabilidade. Por outro lado, as dificuldades subsistem ain-da com relação à própria institucionalização desses “discursosemancipatórios” que, como se sabe, são criações artificiais firma-das em cima da suposta competência argumentativa dos partici-pantes envolvidos. Por último, há supervalorização da razão hu-mana como agente de transformação e da emancipação, sem dis-tinguir as diferenciações, condicionamentos e irracionalismos ine-rentes à própria experiência do homem”. Ainda que se possareconhecer a validade da “racionalidade comunicativa” no futurodiálogo entre as nações ricas do Norte e os países pobres do Sul,deve-se ter presente certas insuficiências do seu “discursoemancipador” para com a “práxis” sócio-política dessas últimassociedades dependentes. Na medida em que se toma essencial opleno equilíbrio do nexo “práticas sociais - procedimentos teóri-cos” (práxis-teoria-práxis), é preciso observar que toda formula-ção teórica que envolva processos racionais, deve partir das ne-cessidades, reivindicações, conflitos e lutas históricas. Isso im-plica redefinir os processos de racionalização como decorrênciadas fonnas alcançadas de vida e das condições históricas geradaspelas práticas sociais cotidianas.

Em suma, os processos de racionalização não nascem dos aprioris fundantes universais, mas da contingência direta dos inte-

2" Sobre determinadas críticas às proposições habermasianas, consultar:MACDOWELL, João Augusto A. A. Ética política: urgência e limites. Revista Síntese -Nova Fase. São Paulo/Belo Horizonte, n. 48. p. 7-34; COUTINHO, Wilson. Em busca daemancipação. Jornal do Brasil, 22 abr./1989, n. 134. p. 6-7 [Idéias]; KOLAKOWSKI,Leszek, op. cit., p. 381; MERQUIOR, José Guilherme, op. cit., p. 252-255;SIEBENEICHLER, Flavio Beno, op. cit., p. 157.

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I

PLURAUSMO JURÍDICO: PROJEÇÃO DE UM MARCO DE ALTERIDADE 4. 4.5 Racionalidade enquanto necessidade e emancipação

resses e necessidades da pluralidade de ações humanas em per-manente processo de interação e participação. Deste modo, o novoconceito de razão implica O abandono de todo e qualquer tipo deracionalização metafisica e tecnofonnalista eqüidistante da experi-ência concreta e da crescente pluralidade das fonnas de vida cotidi-ana. Somente com base na idéia de racionalidade proveniente davida concreta é que se há de evoluir para a percepção de uma razãovital liberta, de uma “razão emancipatória”. Não se trata de uma“razão operacional” pré-determinada e sobreposta à vida,direcionada para modificar o espaço comunitário, mas da razão queparte da totalidade de vida e de suas necessidades históricas. Trata-se de redefinir a racionalidade como expressão da identidade cultu-ral enquanto exigência e afinnação da liberdade, emancipação eautodeterminação242. Todo O esforço para a autenticidade de umacultura periférica emancipadora incide na elaboração da“racionalidade emancipatória”249 própria - distinta e diferentemen-te dos processos alcançados pelo racionalismo colonizador damodernidade ocidental -, fundada numa razão liberta, cuja realida-de não provenha da razão, mas cuja razão derive da realidade.

Evidentemente que O pluralismo como paradigma de uma cul-tura politico-jurídica diferenciada e compartilhada deve susten-tar-se em mecanismos instrumentais que possam viabilizar sua“estrutura formal” direcionada à “ação prática coletiva” (desen-volvimento de uma cidadania coletiva), à “ação prática individu-al” (percepção e favorecimento de valores éticos da alteridade) e,por fim, à ação teórica no nivel do saber e das fomias de represen-

242 Neste aspecto a contribuição de Alejandro Serrano Caldeira é muito significativa.Ver sua obra já citada nas p. 70-73, 76-78 e 92-94. Igualmente: MARCUSE, H., op. cit.,p. 211-212; KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A crise do século XX São Paulo: Ática,1988. p. 161-173.

24° A racionalidade emancipatória baseia-se, no dizer de Henry Giroux, nos princípi-os da “crítica” e do “agir”. Na verdade, tem como finalidade “(...) criticar aquilo que érestritivo e opressor, enquanto ao mesmo tempo apóia a ação a serviço da liberdade e dobem-estar individual. Esse modo de racionalidade é construído como a capacidade dopensamento crítico de refletir e reconstruir sua própria gênese histórica, isto é, pensarsobre O próprio processo de pensamento. (...) a racionalidade emancipatória. aumenta seuinteresse na auto-reflexão com a ação social que visa criar as condições ideológicas emateriais nas quais as relações não-alienantes e não-exploradoras existem”. In: GIROUX,Henry. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis: Vozes, 1986. p. 249.

tação social, objetivando processos racionais emancipatórios.Dentre todos os mecanismos instrumentais, há de se optar poraquele mais capaz de romper com os obstáculos do velhoparadigma e lançar as bases para um novo homem, uma nova so-ciedade, um novo comportamento e um novo conhecimento. Afunção maior e privilegiada para operacionalizar tal projeto serádada por meio da estratégia de uma pedagogia libertadora. Umaeducação libertadora”", comprometida com O processo dedesmitificação e conscientização (um novo “desencanto do mun-do”), apta a levar e a permitir, por meio da dinâmica interativa“consciência, ação, reflexão-transformação”, que as identidadesindividuais e coletivas assumam O papel de agentes históricos dejuridicidade, fazendo e refazendo o mundo da vida, e ampliandoos horizontes do poder societário.

Uma vez delineados os contornos que viabilizam outra culturade validade para O Direito, demonstrar-se-á, no último capítulo,em nivel da prática cotidiana, institucional e informal, a legitimi-dade de manifestações normativas plurais “dentro” e “fora” dajustiça oficial, procurando sempre realçar a força da produção de“novos” direitos, assentados nas necessidades fundamentais e nasações participativas dos novos sujeitos coletivos de juridicidade.

25° A proposta de uma “educação libertadora” é exposta com maior profundidade em:FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 6. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978;. Conscientização. Teoria e prática da libertação. São Paulo: Moraes, 1980.

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Capitulo VO pluralismo jurídico naspráticas de justiça participativa

Introdução

Tendo em conta os processos explicitados e objetivandocorrelacionar de modo mais direto e efetivo as variáveis levanta-das nos dois primeiros eapítulos (hegemonia do modelo estatal deDireito e sua crise de eficácia na periferia) com as proposições,de um lado, relativas aà emergência de uma nova fonte legitimadorade produção jurídica (terceiro momento), de outro, a percepçãoda historicidade de um modelo cultural que expresse o alarga-mento do espaço societário e de seu poder de auto-regulação (quar-to capítulo), dividir-se-á esta última parte da obra em:

5.1) práticas pluralistas altemativas, no nível da legislação eda jurisdição, surgidas no interior da própria ordem jurídico-esta-tal oficial;

5.2) práticas pluralistas altemativas, no nivel da legislação ejurisdição, instituídas à margem da juridicidade posta pelo Estado;

5.3) as reais implicações da cultura jurídica informal, no quetange às novas fonnas de legitimidade, da efetividade do justoilegal, dos critérios de eticidade, da natureza altemativa da san-ção e da justiça informal em face da mudança dos papéis entreEstado e Sociedade;

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286 O Prumrlsmo Junimco NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARr1c1PAr1vA

5.4) a influência na formação da nova cultura jurídica pluralistalatino-americana dos “valores” trazidos pelos movimentos sociais,como “identidade”, “autonomia”, “satisfação das necessidades”,“participação democrática de base”, expressão cultural do “novo”e igualmente a proposição de um “outro” significado de justiça.Neste horizonte de multiplicidades, além de implementar os funda-mentos de efetividade “material” e “formal” do projeto pluralista,o instrumental pedagógico libertário estabelece as condições parauma concepção interdisciplinar e participativa de justiça.

5. I Pluralidade Alternativa no Interior do Direito Oficial

Antes de tudo é indispensável, uma vez mais, ter presente que, namodemidade da sociedade liberal-burguesa ocidental, toda a tradi-ção da produção legislativa e das práticas de aplicação da justiça eresolução dos conflitos é formalmente dominada pelos órgãos ofici-ais do Estado. Quanto maior é o poder de intervenção, dirigismo eresponsabilidade administrativa, maior é a necessidade que tem oEstado de criar “mitos-ftmdantes” para proteger e justificar sua onis-ciéncia frente a outras instâncias sociais. Todo esse esforço para cen-tralizar a “regulamentação” da vida social incidirá em funções clássi-cas (polícia, justiça e defesa) que serão canalizadas em procedimen-tos formais de cunho legislativo, administrativo e jurisdicional. Pormais ampla, forte e totalizadora que possa ser esta “regulamentaçãojurídica” da sociedade modema por parte da ação monopolizadorado Estado, este não consegue erradicar e inviabilizar todo fenômenode regulação informal proveniente de outros giupos sociais não-esta-tais. Para além da oficialidade global dos aparelhos de produção edistribuição da justiça estatal, subsiste, paralela, subjacente e con-corrente, uma pluralidade de níveis autônomos e semi-autônomos deinstâncias legislativas e jurisdicionais. Esses procedimentossocietários não-estatais envolvendo a convenção de padrõesnormativos de conduta e a resolução consensual de conflitos, articu-lados infomialmente por segmentos ou vontades individuais e coleti-vas, assumem características específicas de uma validade distinta,legítima e diferenciada, não menos verdadeira, podendo ser, por ve-zes, até mais justa e autêntica.

5.1 Pluralidade Alternativa no Interior do Direito Oficial

Essas modalidades de práticas descentralizadas e mecanismosde auto-regulamentação espontâneas provenientes fundamental-mente dos setores majoritários, marginalizados, reprimidos einjustiçados compreendem aquilo que se passará a designar comoo “altemativo”. Ainda que se possa reconhecer uma multivocidadede sentidos e toda uma gama de deslocamentos diversos, a di-mensão do “alternativo” na inserção do “fenômeno jurídico” tra-duz uma variante de “juridicidade” distinta da que foi instituídacomo obrigatória e burocratizada, ou seja, outro procedimentonormativo espontâneo distinguindo-se do introjetado e fonnal-mente imposto pelo poder oficial dominante. Essa disjunção ouopção entre dois procedimentos que não se excluem necessaria-mente é corretamente captada por Agostinho Ramalho MarquesNeto quando trata da expressão “Direito Alternativo”. Com efei-to, no que se refere ao “alternativo”, importa considerar, comofaz o jusfilósofo do Maranhão, que “as fonnas adjetivas prono-minais latinas alter, era, erum tanto podem indicar “o outro”, “umsegundo”, como podem designar “um dos dois”, isto é, um ou ou-tro. Podem, por conseguinte, apontar tanto no sentido de um ou-tro que, por assim dizer, exista ao lado” de um primeiro, “quantono de um outro que com esse” primeiro “mantenha Luna relaçãode exclusão. Em ambos os casos, esse outro e esse” primeiro “sãoindissociáveis, constituem uma unidade dialética em que um é acondição de possibilidades do outro (e vice-versa)”.1

Entende-se, assim, esta questão preliminar do “alternativo” en-quanto processo dialético que pode estar associado tanto a umavariante suplementar não excludente (o “alternativoinstitucionalizado” no “interior” do próprio sistema oficial) quantoa uma variante oposta/diversa (o “altemativo não-institucionalizado”no “exterior” da mundialidade estatal). Isso leva à obrigatoriedadede se contemplar, mais concretamente, a pluralidade dessas situa-ções na cultura jurídica periférica latino-americana. Parece corre-to, entretanto, antes de abordar tais preocupações particulares econjunturais, ter noção da temática num contexto mais global.

* MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Direito altemativo e marxismo - Aponta-mentos para uma reflexão critica. Texto apresentado no I Encontro Intemacional de Di-reito Alternativo, realizado em Florianópolis, em 05/O9/91. p. 2-3.

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288 O PLURALISMO nntíolco NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATIVA

Assim sendo, importa observar que, nas últimas décadas doséculo XX, a cultura jurídica dos paises capitalistas de industria-lização globalizada (EUA e França) experimentou considerávelavanço na direção da substituição da tradicional regulamentaçãocentralizadora do Estado por crescentes processos de auto-regulação da sociedade civil. Essa dinâmica pluralista que refletea diminuição da intervenção do poder estatal (fenômeno da“desregulação estatal”) e o aumento gradativo da organizaçãosocietária (processos autônomos de regulação) refletem um pro-cedimento mais abrangente não só de informalização da adminis-tração da justiça como, sobretudo, da expansão crescente, quer denovos pólos legislativos de criação espontânea do Direito, querde novos mecanismos flexíveis e informais de resolução dos con-flitos. Certamente, o impulso para as novas formas de “regulaçãojurídica” descentralizadas, com o conseqüente alargamento deórgãos legiferantes e o aparecimento de uma variedade de práti-cas locais e agências de justiça informal, deve-se, em grande par-te, ao nível de democratização alcançado pelas instituições soci-ais e às proftmdas transformações vivenciadas por um aparelhode Estado, receptivo e implementador das mais variadas modali-dades de políticas públicas?

Outra é a situação que se pode descortinar para os países peri-féricos latino-americanos, como o Brasil, marcados por crescen-tes desigualdades sociais, marginalização de largos setores dapopulação, instituições historicamente tuteladas e dominadas,intervencionismo patrimonialista estatal e ineficácia de uma jus-tiça demasiadamente fonnalista e burocrática. Nesse tipo de es-trutura sócio-política, como a sociedade brasileira, as prioridadespassam obrigatoriamente pela democratização do Estado, pelaformação de uma cidadania coletivo-participativa e peladescentralização e avanço da sociedade civil. Com efeito, o gran-de esforço é não só empenhar-se pela criação de “direitos comu-

2 Ver, nesse sentido: .TUNQUEIRA, Eliane Botelho. O altemativo regado a vinho e acachaça. Texto apresentado no l Encontro Intemacional de Direito Altemativo, realizadoem Florianópolis, em 05/09/91, 26 p.; VIEIRA, José Ribas. A teoria sistêmica e aregulaçãojurídica: dcódigo do consumidor no Brasil. Texto apresentado no Seminárioorganizado pela coordenação do grupo II dentro do Acordo CAPES-COFECUB, Projeto95/99, 29/01/91. 18 p.

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5.1 Pluralidade Alternativa no Interior do Direito Oficial

nitários” insurgentes gerados pelas necessidades da população edefinir novas instâncias informais de resolução dos conflitos,como, também, de um lado, lutar pela afirmação de direitos jáexistentes na legislação mas não regulamentados (ou sem eficá-cia), de outro, explorar as possibilidades das práticas de justiçainformal oferecidas pelo próprio Direito oficial do Estado.

Pois bem, toda essa argumentação precedente se encaminhapara realçar, no fundo, a impossibilidade de se negar, na tradiçãode nossa cultura jurídica monista, a convivência secular e dualistaentre um Direito oficial do Estado - produzido para servir aosinteresses econômicos e políticos das grandes elites oligárquicase inspirado, quase sempre, nas legislações alienígenas - e um ou-tro Direito informal inerente às práticas reais da população,(índi-os, negros excluídos, camponeses, trabalhadores rurais, movimen-tos sociais e injustiçados em geral), operando à margem da lega-lidade oficial e eqüidistante dos tribunais e instâncias estatais.

Nesse contexto, a utilização de procedimentos com baixo nívelde institucionalização, em escala parcial (práticas e interpretaçõesaltemativas dentro do sistema legal vigente) e em escala total (rup-turas e mudanças para um outro modus vivendi de juridicidade),poderão contribuir para o processo de desregulamentação estatal eo conseqüente alargamento societário de auto-regulação voluntá-ria, sedimentando uma nova política de administração da Justiça.O que transparece com muita nitidez, na conjuntura presente, é queexiste uma consciência da crise de fundamentos que atravessa oparadigmajurídico dogmático, uma percepção de que o Estado atual(declínio do Estado-Nação) não mais possui o monopólio absolutoe irrestrito da produção e distribuição do Direito, bem como a deque a “juridicidade oficial” positivista (por vezes desatualizada,conservadora e injusta) cada vez mais é obrigada a reconhecer e aconviver, no âmbito da Sociedade Civil, com outras fonnas dinâ-micas e mais justas de manifestações extralegais e informais.

Diante da imperiosidade de serem delineados os meios de supe-ração do paradigmajurídico materializado no Estado e de estabele-cer o projeto de uma ordenação descentralizada e espontânea quenasça da própria Sociedade, fundada na pluralidade de necessida-des básicas e no consenso das diferenças, cabe visualizar duas es-tratégias essenciais, direcionadas para a produção legal insurgente:

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290 O I>LuRAI.IsIvIo JURiDIco NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATWA

a) práticas ou mecanismos legais institucionais de produção al-temativa existentes dentro do Direito positivo oficial do Estado;

b) práticas ou mecanismos legais não-institucionalizados deprodução altemativa fora da órbita do Direito Estatal positivo.

Ora, certamente a crescente significação de detemiinados pro-cedimentos legais, que são tolerados, admitidos ou mesmo jáinstitucionalizados, podem contribuir, senão de todo, pelo menosparcialmente, como canais viabilizadores de práticas jurídicas maiságeis e flexíveis. Esses instrumentos de teor normativo com certograu de formalização, tolerados mas nem sempre obrigatoriamentereconhecidos pelo aparato oficial do Estado, uma vez divulgadose acionados, servem como disposições diferenciadas capazes degerar “novos” direitos para beneficio de imensos setores margi-nalizados e injustiçados.

Esta questão da produção legal descentralizada mediante me-canismos com “institucionalização mínima”, mas independente-mente da esfera estatal, está diretamente relacionada às transfor-mações por que passa o Estado Capitalista, num contexto mundi-al globalizado, bem como ao alargamento necessário do poder daSociedade Civil e à construção progressiva de um espaço público(poder local) mais democrático e compartilhado. Percepção queleva a reconhecer a inequívoca força do pluralismo jurídico, ouseja, a coexistência e interação, no interior de uma mesma fonnade vida cotidiana, de múltiplas e diversas manifestações normativasnão-estatais. Naturalmente, a pluralização democrática do espaçopúblico societário está sintonizada com o crescimento e a partici-pação do poder comunitário, tanto no processo legislativo de cri-ação das leis, quanto na atuação mais direta da administração daJustiça e da socialização do seu acesso.

Admitindo a importância dos canais menos formais e descen-tralizados do sistema oficial, Boaventura de Souza Santos assinalaque as reformas de cunho altemativo “constituem hoje uma dasáreas de maior inovação na política judiciária. Elas visam criar, emparalelo à administração da justiça convencional, novos mecanis-mos de resolução de litígios (...)”, caracterizados tanto pela rapideze participação ativa da comtmidade, quanto por “instituições leves,

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5.1 Pluralidade Alternativa no Interior do Direito Oficial 291

relativa ou totalmente desprofissionalizadas, por vezes impedindomesmo a presença de advogados, de utilização barata, senão mes-mo gratuita, localizados de modo a maximizar o acesso aos seusserviços, operando por via expedita e pouco regulada, com vista àobtenção de soluções mediadas entre as partes”3.

Ao se refletir sobre a mobilização e participação dos movimen-tos sociais (e demais sujeitos individuais e coletivos), comopotencialidades capazes de produzir uma nova legitimidade políti-ca e de criar novos direitos, toma-se essencial identificar algunsdos procedimentos institucionalizados, com eficácia para produzirjuridicidade altemativa, presentes e fundamentados na atual legis-lação oficial positiva brasileira. Nesse aspecto, a Constituição Bra-sileira de 1988 não só consagra, em seu artigo primeiro, inciso V, opluralismopolítico como um de seus principios fundamentais, como,também, introduz, inovadoramente, a democracia direta (art. 1°,parágrafo único)4, possibilitando a conseqüente participação e con-trole da população e dos sujeitos coletivos representativos (arts.l0°, 14, I e II; 29, X; 31, § 1° e 3°; 204, II, da CFB), bem comodisposições relativas à iniciativa da sociedade de propor “novos”direitos (arts. 14, III; 29, Xl; 61, § 2°, da CFB)5.

3 SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à sociologia da administração da justi-ça. In: José E. Faria [Org.]. Direito ejustiça. A função social do judiciário. São Paulo:Ática, 1939. p. 55.

4 A redação do artigo 1°, § único, da Constituição Brasileira de 1988 é a seguinte:“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou direta-mente, nos termos desta Constituição”.

5 Art. 10°, da Constituição de 1988 dispõe: “É assegurada a participação dos traba-lhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses pro-fissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação”.

Art. 14, itens I, ll e III da Constituição de 1988: “A soberania popular será exercida(...) mediante: 1- plebiscito; ll - referendo; Ill - iniciativa popular”.

Art. 29, itens X e Xl da Constituição de 1988: “O município reger-se-á por lei orgâ-nica (...) atendidos (...) os seguintes preceitos: X - cooperação das associações represen-tativas no planejamento municipal; XI -iniciativa popular de projetos de lei de interesseespecífico do município, da cidade ou de bairros (...)”.

Art. 31, § 3°, da Constituição de 1988, com a seguinte redação: “As contas dos muni-cípios ficarão, (...), à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, oqual poderá questionar-lhes a legitimidade, (...)”.

Art. 61, § 2°, da Constituição de 1988: “A iniciativa popular pode ser exercida pelaapresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um porcento do eleitorado nacional (...)”.

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292 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTIcII>A'rIvA

Cumpre assinalar, ademais, que a Lei 7.347, de 24/O7/85,disciplinadora das ações civis públicas, contempla, em seu art. 5°,a legitimidade de agir das associações ou entes coletivos paraimpetrar medidas legais objetivando a defesa do meio ambiente edos consumidores.

Prosseguindo, dentre alguns dos procedimentos altemativos“institucionalizados” que podem ser apropriados, explorados eutilizados pelos novos sujeitos coletivos de juridicidade, cabeprivilegiar:

a) a produção normativa institucionalizada

5.1.1 Convenções coletivas do trabalho.5.1.2 Ações propostas por sujeitos coletivos.

b) a resolução dos conflitos institucionalizada

5.1.3 Conciliação, mediação, arbitragem ejuizados especiais.5.1.4 “Prática” e “uso ” alternativos do direito.

5.1.1 Convenções coletivas do trabalho

Primeiramente há de se aventar as espécies institucionalizadasde “convenções coletivas”, previstas na legislação trabalhista bra-sileira (art. 611, da CLT) e reconhecidas oficialmente pelo pró-prio aparelho estatal. De fato, independente do controle e daintermediação do Estado, subsiste toda esta rica e inesgotável pro-dução de normas jurídicas nascidas das relações sociais e da vidaprodutiva. O Estado aqui só assume uma certa consideração quan-do confere validez e eficácia a essas fontes extraídas da realidadesocial. Tendo por base, fundamentalmente, a presença de umaeconomia capitalista, de uma organização sindical de trabalhado-

Art. 204, item 4,, da Constituição de 1988: “As ações govemamentais na área daassistência social serão (...) organizadas com base nas seguintes diretrizes: II - participa-ção da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas

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5.1.1 Convenções coletivas do trabalho

res e de relações jurídicas laborais, surgem as “convenções cole-tivas do trabalho” como um acordo que cria, num primeiro mo-mento, nonnas obrigatórias para os sujeitos coletivos envolvidos(organizações sindicais), dentro de certos limites mínimos (salá-rio), estendendo-se, posteriormente, para outros campos da ativi-dade produtiva, no que se refere às condições de trabalho e em-prego. Esses acordos coletivos, com efeito normativo, que nas-cem das categorias profissionais e que não necessitam da interfe-rência do Estado, fixam as condições de trabalho e de salário en-tre as paites individuais associadas num órgão representativo declasse. A “convenção coletiva” se afirma como um novo tipo defonte institucionalizada, geradora de normas jurídicas advindasdas relações sociais e materializadoras de uma autonomia priva-da coletiva “cuja particularidade consiste exatamente na repre-sentação de interesses que, superando a esfera dos indivíduos,não atingem nem se identificam com a esfera pública”°.

Uma das distinções essenciais que se pode fazer entre os pro-cedimentos menos formalizados da “convenção coletiva do tra-balho”, enquanto instrumental normativo não-estatal, e a legisla-ção estatal vigente é a de que, como observa Carlos A. Paulon, alei formal oficial é por demais genérica, “não cuida das particula-ridades regionais, setoriais da produção, específicas das profis-sões (...). A Convenção Coletiva, ao contrário, tem diante de sisituações concretas e as soluções que encontra são estreitamenterelacionadas com a realidade a ser atingida'”.

Ainda que os positivistas dogmáticos não aceitem o caráternonnativo da convenção coletiva e a incumbam de regular exclusi-vamente questões atinentes à remuneração, a convenção não deixade ser um instrumento fomial de decisão e que pode ser usado demodo altemativo, produzido pela contradição de interesses e peloconfronto de categorias profissionais, que intentam controlar e regu-lamentar as relações mais abrangentes entre o capital e o trabalho.

Entretanto, a revelação das situações de pluralismo presente nalegislação brasileira e que escapa ao controle do Estado, não se

° SILVA, Antônio Álvares. Direito coletivo do trabalho. Rio de Janeiro: Forense,1979. p. 204; ALONSO GARCIA, Manuel. Curso de derecho del trabajo. Madrid: Ariel,1973. p. 120-123 e 222-235.

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294 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS De JusrIcA PARTIcII=A'rIvA

atém apenas às tradicionais práticas de “convenção coletiva do tra-balho”, pois, o Direito oficial introduziu, inovadoramente, a figurada “convenção coletiva de consumo” (art. 107, da Lei n° 8.078, de11/09/90 - Código do Consumidor) que, prescindindo do Estado,institui relações de consumo e a auto-regulamentação de interessesentre associações de fornecedores e entidades de consumidoress.

5.1.2 Ações propostas por sujeitos coletivos

A atual Constituição Federal Brasileira dispõe de alguns meca-nismos, por demais relevantes, através dos quais os sujeitos coleti-vos podem propor e reivindicar novos direitos, abrindo um horizontede largas perspectivas. Entretanto, antes mesmo da Constituição de1988, a emergência da cidadania participativa vinha sendo contem-plada na fonna de lei ordinária, com a Lei da Ação Civil Pública n°7.347, de 24 de julho de 1985, cujo texto de caráter processual não selimita a mera fomia de ação, mas também protege juridicamente osdireitos de ambiente e do consumidor, sendo pois Luna legislaçãocom direitos materiais que, dado seu alcance abrangente, implica emdireitos coletivos e difusos. Esta lei revela-se, no dizer de Luiza H.Moll, como um autêntico “código pan-processual, dada a plasticidadefuncional e a abrangência de direitos e interesses que nela são passí-veis de subsunção. Além da própria economicidade textual comosimplificação do processo, da ação e dos mecanismos, há ainda adestacar-se o caráter mediador que lhe é inerente, eis que contemplaa possibilidade do inquérito civil, instrumento envolvente dos pode-res e órgãos públicos constituídos, tendo nesse mister o MinistérioPúblico como instituição mediadora, verdadeiro canal de vasoscomunicantes sócio-institucionais”°. Cabe ao Promotor Público acompetência privilegiada para atuar sem, no entanto, restringir o po-

3 CÓDIGO DO CONSUMIDOR. Lei n° 8.078, de ll/09/90. [Org.] Floriano AguiarDias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1991. p. 29; BITTAR, Carlos Alberto. Direitos doconsumidor: Código de defesa do consumidor: 4. ed., Rio de Janeiro: Forense Universi-tária, l99l. p. 105-109 e 145.

9 Essas idéias e asserções citadas fizeram parte do artigo: MOLL, Luiza H. M. “For-mal/informal: as expressões protéicas constitucionais”. Revista Ministério Público doRS. Porto Alegre, v. I, n. 23, p. 55-59, 1990.

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5.1.2 A ções propostas por sujeitos coletivos 295

der de agir das associações legalmente constituídas e organizadascom o objetivo determinado pelos próprios estatutos sooiais.

A lei da Ação Civil Pública foi, assim, instrumento tendente aconsagrar, na nova conjuntura, o “espaço” instituinte da cidadaniaativa e da resolução de conflitos coletivos emergentes, porque sepreocupa “em prevenir e não apenas em sancionar, e sua cadeia deações não se restringe a neutralizar conflitos por meio de uma recu-peração judicial-judiciária dos mesmos. Com o inquérito civil têmos legitimados para agir um meio de agregar os interesses em dis-puta numa mesa de debates, de tal fonna que dali se engendra achance de negociar, convencionar e definir acordos coletivos queensejem definitivamente termos e cláusulas que eliminam os con-flitos mesmo antes de que ocasionem danos de dificil ou nenhumareparação. O propósito desse texto, embora sejam nele previstaspenas de reclusão e multa, tanto de caráter criminal como admiiiiS-trativo (art. 10), é muito mais a prevenção e a pró-ação do que asanção e a ptmição”“'. E por esse motivo que se pode afirmar comofaz, com justa razão Luiza Moll, a emergência de uma nova con-cepção de Direito, afirmativa, ao contrário de restritiva da liberda-de, via pela qual se constitui a cidadania participativa.

Já receptivo face a instauração do “novo”, no Brasil, o legisladordo texto constitucional de 1988 atribui a institutos como o direito dereunião e o direito de associação uma nova configuração, disciplinam.do a ordem social e nela garantindo, constitucionalmente, essa disposi-ção no Título II, Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais eColetivos -; em cujo artigo 5°, incisos XVI ao XXI, a nota principal ea legitimidade ativa atribuida ao ente coletivo (associação), o qua] seprojeta como substituto processual, seja em Ação Civil Pública paradiversas espécies de demandas, seja no Mandado de Segurança Cole-tivo e no Mandado de Injunção, até mesmo na ação direta de argüiçãode inconstitucionalidade por ação ou por omissão".

'° Idem, ibidem.“ Num instigante ensaio, Paulo de Tarso Brandão argumenta da “inaplicabilidade

dos conceitos tradicionais que informam a teoria geral do processo no âmbito da açãocivil pública”. Por sua natureza juridica diversa, o Processo Civil é “incapaz de abrigarem seu seio esse novo direito de ordem coletiva”, cabendo a Ação Civil Pública basearsubsídios no sistema constitucional. Consultar neste sentido: Ação Civil Pública,Florianópolis: Obra juridica, 1996. p. 81-137.

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296 O PI.uRAI.IsIvIo JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JusrIÇA PARrIc:PArIvA

Igualmente, como lembra Ruy R. Ruschel”, a ampla Repre-sentação Judicial das entidades associativas, fundamentada noinciso XXI do art. 5°, da Constituição Brasileira de 88, possibilitaque os sujeitos coletivos reclamem direitos em juízo (judicial eextrajudicialmente). Na medida em que os direitos pleiteados sãonegados por instituições estabelecidas, surgem conflitos coleti-vos que, uma vez levados ao Judiciário, favorecem que este aja,proferindo sentenças que são verdadeiras leis, sentenças em nívelcoletivo que transitam em julgado, tomando-se obrigatórias paraa sociedade e assumindo valor norrnativo dada a validade ética desua eficácia forrnal.

Outro instrumento é o Mandado de Segurança Coletivo, pre-visto no art. 5°, inciso LXX, alíneas “a” e “b”, da Lei Maior, quereconhece a legitimidade de agentes coletivos, representados prin-cipalmente por associações legalmente constituídas, organizaçãosindical e partidos políticos oficializados, para agir na defesa deinteresses difusos lesados e na reivindicação de direitos coletivose individuais de seus integrantes.

O legislador constituinte igualmente introduziu medida pio-neira no art. 5°, LXXI, que vem viabilizar o exercício efetivo dedireitos e liberdades, quando da falta de norma regulamentadora.Trata-se do Mandado de Injtmção que serve como remédio repa-rador, objetivando implementar dispositivos conquistados pelasociedade, mas sem eficácia prática, porque enclausurados emnonnas programáticas se constituem em pactos de compromissoda ordem instituída. Neste caso, sujeitos coletivos, como os sin-dicatos (art. 8°, III), podem impetrá-lo na defesa dos direitos cole-tivos ou individuais da categoria, inclusive em questões de teorjudicial e administrativo”. Como proclama Ruy R. Ruschel, o

'° A sugestão sobre alguns mecanismos constitucionais foi enfatizada pelo Dr. RuyR. Ruschel, quando da participação na banca examinadora deste trabalho, apresentadocomo tese de doutoramento em Direito, em 10/04/92, na UFSC.

'3 Depois de mais de dez anos que o “ mandado do injunção” foi instituído pelaConstituição de 1988 ainda não existe lei regulamentadora própria do procedimento, suaaplicação prática tem sido quase nula, pois o Supremo Tribunal Federal o tem comparadoe o equiparado a uma espécie de ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Ainstância maior de jurisdição no Brasil tem entendido que não cabe aos tribunais fazernormas, mas sim constatar ou não a lacuna legislativa e fazer a devida comunicação aoórgão que deveria legislar.

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5.1.3 Conciliação, mediação, arbitragem e juizados especiais 29']

Mandado de Injunção deve ser complementado com outro instru-mental de grande importância atribuido ao Poder Judiciário e queestá disposto no art. 5°, § 1°: “as normas definidoras dos direitose garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Assim sendo,por propostas de comunidades voluntárias e movimentos sociaisque requerem a implementação de direitos, pode agora, o PoderJudiciário, mediante ações competentes embasadas nesta “apli-cação direta dos direitos fundamentais”, efetivá-los, tendo em vistaque ainda não foram legislados porque o legislador se omite pro-positadamente sobre o assunto. Trata-se de uma perspectiva am-pla que deve ser explorada e praticada no futuro.

5.1.3 Conciliação, mediação, arbitragem ejuizados especiais

Ora, se as “convenções coletivas” do trabalho e do consumoassumem caráter legislativo, na medida em que são acordosnonnativos auto-reguláveis efetivados por identidades coletivase independentes do Estado, outros procedimentos técnicos, comoa “conciliação”, a “mediação”, a “arbitragem”, os “juizados espe-ciais” e a “justiça de paz”, são significativos como instânciasjurisdicionais que podem ser utilizados altemativamente na reso-lução dos conflitos.”

A “conciliação” pode ser vista como prática judicial (instaura-da a partir do processo) ou extrajudicial (alternativa para evitar oprocesso estatal), mais ou menos fonnal, podendo ou não serinstitucionalizada, capaz de mediar controvérsias entre partes anta-gônicas, conflitos de interesses e litigiosidade provenientes das re-

'4 Além dos institutos da “conciliação”, da “mediação” e da “arbitragem” enquantomeios altemativos para a resolução de conflitos, cabe mencionar a “negociação” comooutro importante mecanismo de transação ou de acordo entre as partes. Escreve ClovisGorczevski que a “negociação, antes que um instituto, é um processo durante o qual duasou mais partes, com um problema comum, com o auxílio ou não de um terceiro, medianteo emprego de técnicas diversas de comunicação, buscam obter um resultado ou soluçãoque satisfaça, de uma maneira razoável e justa, seus objetivos, interesses, necessidades easpirações”. In: Formas alternativas para a resolução de conflitos. Porto Alegre: Livra-ria dos Advogados, 1999. p. 25. Complementar, consultando: CAIVANO, Roque J.;GOBBI, Marcelo y PADILLA, Roberto E. Negociación y mediación. Buenos Aires: AD-HOC, 1997.

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298 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE Justica Pânrlcrrârrva

lações de consumo. O crescimento dos conflitos de natureza coleti-va e a impossibilidade da engenharia processual individualista decanalizá-los determinam, cada vez mais, na sociedade industrial demassa, a operacionalização altemativa do instituto da “concilia-ção”. Considerando que sua natureza pode ser judicial ouextrajudicial, pública ou privada, facultativa ou obrigatória, a “con-ciliação” revela-se não só como variante à solução dos litígios, mas,igualmente, como direção mais diferenciada e espontânea aos ritu-ais canonizados da processualística estatal. Na legislação positivabrasileira, ainda que não goze de uma prática efetiva, a ““concilia-ção” prévia tem fundamentação na jurisdição civil e na jurisdiçãotrabalhista. Assim, o Código de Processo Civil de 1973, em seusarts. 331, 447, 448 e 449 consagrou a “conciliação” obrigatória,mediante a figura de um juiz, para as causas que versem sobre di-reitos patrimoniais de caráter privado (arrendamentos rurais) e lití-gios relativos à família (separação, divórcio, alimentos). Já na Jus-tiça do Trabalho, a “conciliação” é também obrigatória como ins-trumental privilegiado para a resolução dos conflitos, conformeinstituem os arts. 764, 831 e 850 da Consolidação das Leis do Tra-balho. '5 O incentivo à adoção de fonnas extrajudiciais de soluçãode conflitos trabalhistas como a “conciliação” obteve uma conquistacom a Lei n° 9.958, de 12/01/2000, que instaura as Comissões deConciliação Prévia que poderão ser constituídas no âmbito dos sin-dicatos e das empresas. Mais do que contemplar as CCPs, a Lei n°9.958/2000 inova ao instituir a experiência anterior à regulamenta-ção que são os “núcleos intersindicais de conciliação trabalhista”(Ninter), práticas bem sucedidas “calcadas exclusivamente na “ne-gociação coletiva° ou mesmo sem sustentação em qualquer fontede direito além da vontade das partes (...)”'°. Resta anotar, outros-sim, que a imperiosidade do funcionamento da “conciliação” tam-

'5 Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 1990. p. 206-208. Para o aprofundamento do tema da“conciliação”, ver: CARDOSO, Antonio Pessõa. A justiça alternativa: juizados especi-ais. Belo Horizonte: Nova Alvorada, 1996. p. 93-125.

'f' VASCONCELOS, António Gomes. “Os núcleos intersindicais de conciliação tra-balhista na Lei n° 9.958/2000”. Revista LTr: Doutrina. n. 02, v. 64, p. 201. Fev./2000.Observar igualmente na mesma revista: FRANCO FILHO, Georgenor de S. “A Lei dasComissões de Conciliação Prévia”. p. 174-177.

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5.1.3 Conciliação, mediação, arbitragem e juizados especiais

bém está presente na Lei n° 5.478/68 (disciplina a ação de alimen-tos), na Lei n° 6.5 15/77 (dispõe sobre a dissolução do casamento eseus efeitos) e na Lei n° 9.099, de 26/09/95 (regulamenta os JuizadosEspeciais Cíveis e Criminais) através dos termos precisos de seusarts. 2°, 21 e 22, § único.

Uma outra espécie de justiça consensual marcada pelainformalização dos procedimentos é a “mediação”. Trata-se desolução que não é nova, sempre existiu ao longo de épocas pas-sadas, mas que agora reaparece, em função da crise do sistemade jurisdição estatal modema. E o exercício em que partes emdesavença, de forma rápida, informal e voluntária, buscam re-solver suas pendências e seus interesses, com ou sem a ajuda deuma pessoa neutra, e deixando de se submeter aos princípios eàs regras processuais do Direito formal. Em vez da controvérsiajudicial busca-se um entendimento dialógico, construtivo e co-operativo. Por conseqüência, a “mediação” é “uma altemativa àauto-ajuda (...), é uma altemativa à violência, ao litígio em si e àcontinuidade dele. (...) a mediação é um processo que faz recair,na própria responsabilidade dos participantes, a tomada da de-cisão que influenciará suas vidas. Em outras palavras, é um pro-cesso que confere autoridade sobre si mesma a cada uma daspartes””.

A “arbitragem” é outro procedimento relativamente informalem que as partes conflitantes concordam em submeter suas diver-gências a julgadores ou árbitros extemos, aceitando as detenni-nações resultantes do parecer técnico. Não se trata propriamentede um acordo livremente efetivado, mas tão-somente daconsensualidade das partes envolvidas na escolha do árbitro quetem legitimidade para proferir um laudo final, não necessitando

" GORCZEVSKI, Clovis. Formas alternativas para resolução de conflitos. PortoAlegre: Livraria dos Advogados, 1999. p. 31-32. Para análise mais abrangente da “medi-ação”, examinar: MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Mediação e Arbitragem: alternativasà jurisdição! Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1999. p. 145-169; DUFFY y otros,Karen Grover. La mediación y sus contextos de aplicación. Una introducción paraprofesionales y investigadores. Barcelona: Paidós, 1996; FOLBERG, .lay y TAYLOR,Alison. Mediación - resolución de conflictos sin litígio. México: Limusa, 1996;HIGHTON, Elena I. y ALVAREZ, Gladys S. Mediaciónpara resolver conflictos. BuenosAires: AD-HOC, 1998. -

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300 O Pruaxusmo JURÍDICO NAS PRÁrrcAs DE JUSTIÇA PARr1C1PzmvA

homologação judicial”. No que tange à sua fundamentação, a “ar-bitragem” é contemplada pelo Direito Positivo brasileiro na tradi-ção ordinária da Justiça privada (particularmente comercial) e daJustiça trabalhista. Quanto ao âmbito da Justiça civil, o“arbitramento” aparece principalmente na solução obrigatória deconflitos comerciais (Estatuto Comercial n° 556, de 1850, arts. 95,194, 201, 215, 217, 772, 776 e 777), sendo ainda disciplinado peloCódigo Civil de 1916, nos arts. 136, VII, e 1.123, bem como peloCódigo de Processo Civil, nos arts. 267, VII, 301, IX, 520, VI, 584,III e 606. Já a arbitragem (eleição de árbitros) que ocorre na Justiçado Trabalho e que está prevista na Constituição Brasileira de 1988(art. 114, § 1°) e na Consolidação das Leis do Trabalho (art. 764, §2°), surge como opção para as partes decidirem determinado con-flito diante do fracasso da negociação coletiva”. Ao lado das dis-posições tradicionais aventadas nos Estatutos Civil, Processual Ci-vil e Trabalhista, novo e melhor entendimento acerca dojuízo arbitral- representando menor intervenção dos órgãos da jurisdição, maiorflexibilidade e tramitação mais célere - ganhou relevância com suaregulamentação a partir do art. 19, da Lei n° 9.307, de 23/09/96,atual lei da arbitragem no Brasil. A lei da arbitragem trouxe inúme-ras inovações e tem influenciado no fomento da emergência de câ-maras de arbitragem e de conciliação pelo pais.

'S Cf. MIRANDA ROSA, F. A. de [Org.]. Direito e conflito social. Rio de Janeiro:Zahar, 1981. p. 50-51. Sobre o “juízo arbitral”, consultar: OLIVEIRA, Waldemar Mariz.Do juízo arbitral. In: Ada Pellegrini Grinover, Cândido R. Dinamarco, Kazuo Watanabe[Coord.]. Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 308-321;MARTINS, Pedro Batista. Aspectos juridicos da arbitragem comercial no Brasil. Riode Janeiro: Lumen Juris, 1990; e outros. A arbitragem na era da globalização.Rio de Janeiro: Forense, 1997; MORAIS, Jose L. Bolzan. op. cit., p. 173-214; CAIVANO,Roque J. Arbitraje - su eficácia como sistema alternativo de resolución de conflictos.Buenos Aires: AD-HOC, 1997.

*° Ver, sobre este aspecto: MARTINS, Pedro Batista, op. cit., p. 1, 17-21, 31-41;OLIVEIRA, Waldemar Mariz, op. cit., p. 308-321; NASCIMENTO, Amauri Mascaro.Direito sindical São Paulo: Saraiva, 1989. p. 354; SILVA, José Afonso. Curso de direitoconstitucionalpositivo. 5. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 490. O examecrítico da Lei da Arbitragem no Brasil, sua filiação político-ideológica aos princípiosneoliberais do mercado, suas vantagens e riscos têm sido bem tratadas nas obras: RO-CHA, José de Albuquerque. A Lei da Arbitragem. Uma avaliação critica. São Paulo:Malheiros, 1998; RAMOS FILHO, Wilson. Oƒim do poder normativo e a arbitragem.São Paulo: LTr, 1999.

5.1.3 Conciliação, mediação, arbitragem e juizados especiais

Diante da complexidade e da multiplicidade de espécies deconflitos produzidos pelas atuais sociedades capitalistas, talvez aresposta eficaz para a implementação de uma Justiça menosritualizada e burocrática, mais flexível, rápida e infonnalizada,seja o alargamento da “mediação” e da “conciliação” em direçãoà instituição de pequenos e descentralizados tribunais de justiça.O “juizado de pequenas causas”, inicialmente regulado pela Lein° 7.244/84, acabou evoluindo e transformando-se nos chamadosJuizados Especiais Cíveis e Criminais, instituídos pela Lei n° 9.099,de 26/09/95. Trata-se de instância pouco formalizada e de míni-ma institucionalização, constituída por juízes togados e leigos,objetivando apreciar litígios de valor pecrmiário reduzido. Igual-mente, a Constituição Brasileira de 1988, em seu art. 98, I, acolhedisposições que atribuem à União e aos Estados-membros capa-cidade para criar os juizados especiais, “competentes para a con-ciliação, o julgamento e a execução de causas civis de menor com-plexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo (...)”.No Brasil, esses tribunais especiais nasceram do esforço de bus-car alternativas ao aparato inoperante das instâncias jurisdicionaisoficiais do Estado, recorrendo aos juizados informais de concili-ação e arbitragem, mais ágeis, práticos e inforrnais, propiciandoestímulo às formas extrajudiciais de resolução de conflitos e al-mejando assegurar concretamente o acesso à Justiça de grandesmassas populares”. Tais agências judiciais, altamente

2° Sobre o reconhecimento inicial dos “juizados especiais de pequenas causas” noDireito Positivo brasileiro, verificar: WATANABE, Kazuo [Coord.]. Juizado especial depequenas causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985; CARNEIRO, Athos Gusmão.Juizado depequenas causas. In: GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R.; WATANABE,K., op. cit., p. 333-341; GRINOVER, Ada Pellegrini, op. cit., 1990. p. 182-189, 214;

et al_ A justiça para o povo na Constituição. In: Problemas e reformas: subsídiospara o debate constituinte. São Paulo: OAB/Depto. Editorial, 1988. p. 170-176. Para aproblematização atualizada da Lei n° 9.099, de 26/09/95, que regula os juizados especiaiscíveis e criminais (experiência prática, vantagens, impropriedades) verificar: ABREU,Pedro M. e BRANDÃO, Paulo de Tarso. Juizados especiais cíveis e criminais.Florianópolis: Obra Jurídica, 1996; CARDOSO, Antonio Pessôa. op. cit., p. 33-91;RODRIGUES, Horácio Wanderley. “Juizados especiais cíveis: inconstitucionalidades,impropriedades e outras questões pertinentes”. In: Revista de Direito Processual Civil.Curitiba: Genisis, v. 1, p. 22-42. Jan./Abr. 1996; FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias e LOPES,Maurício Antonio Ribeiro. Comentários à Lei dos Juizados cíveis e criminais. São Pau-lo: Revista dos Tribunais, 1995.

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302 O PLuRAL1sMo JURÍDICO NAS PR.ÀrrCAs DE Justica PARr¡CrRAr1vA

inforrnalizadas e flexíveis (inspiradas nas Small Claims Courtsnorte-americanas), mesmo representando incisiva contribuiçãoestratégica de “desregulamentação” e “desburocratização” da cul-tura jurídica nacional, não deixam de ser procedimentos altema-tivos instituídos por iniciativa do próprio Estado. Entretanto, olegislador estatal atribuiu uma autonomia relativa a essas instânci-as judiciais surnaríssimas, porquanto definiu certas exigências parasua efetivação preconizando, de um lado, a obrigatoriedade do pro-vimento de juízes togados, e de outro, a indicação necessária debacharéis em Direito para as funções de conciliadores e árbitros.Em suma, há que se ressaltar a crescente relevância dos “juizadosde conciliação” na Justiça do Trabalho e os “juizados especiais” naárea civil e na área criminal, como os primeiros indícios concretosda infonnalização e mutabilidade da Justiça Estatal brasileira”.

Acresce, também, a consagração pela Constituição de 1988, emseu art. 98, ll, da figura dos “juízes de paz”, muito similar a certosinstitutos como o “juizado eletivo” existentes no Texto Imperial de1824. Esses “juízes de paz” são cidadãos eleitos pelo voto direto,universal e secreto, com mandato de quatro anos e competênciapara, além de exercer funções conciliatórias, sem caráterjurisdicional, apreciar urna gama de outras situações. Na verdade, ainstrrurrentalização desses agentes eletivos, principahnente para asatribuições de conciliação, dependerá da iniciativa mais corajosa edecisiva dos Estados-membros e dos municípios que têm poder paracriá-los. Trata-se de uma esfera capaz de resolver conflitos e quepoderá ser, com freqüência, muito bem utilizada.

5.1.4 “Prática ” e “uso ” alternativos do direito

Inicialmente importa considerar que, na atual cultura jurídicabrasileira, o modelo de juridicidade altemativa enquanto estraté-

2' Alerta o prof. Paulo Brandão que, na parte criminal desses juizados especiais, “(...)há efetivamente uma composição do conflito (tanto na composição dos danos como natransação) penal entre ,as partes, o que é uma novidade no Direito brasileiro. Estou refor-çando a idéia, para lembrar que o Código de Trânsito Brasileiro - Lei n° 9.503/97 - emseu art. 291, parágrafo imico, amplia os casos de aplicação dos institutos de composi-ção”. Correspondência recebida em 12/05/2000, Florianópolis-SC.

5.1.4 “Prática " e “uso” alternativos do direito

gia que propõe a transfonnar a legalidade do Estado capitalistapor uma outra ordem juridica estatal - evolução do monismo po-lítico-jurídico individualista para um monismo democrático po-pular -, compreende duas frentes de atuação:

a) Estratégia das “práticas altemativas do Direito”, implementadapor organizações da sociedade civil (comissões populares, centroscomunitários e organizações não-govemamentais - ONGs) e por as-sessorias de extensão universitária, que vêm desenvolvendo a práticaefetiva de serviços legais ou assistênciajudicial extraestatal. Trata-sedo rompimento com os serviços legais de cunho assistencialista epatemalista calcados na prática ritualista da lei e do fonnalismo fo-rense. Essas entidades centradas em tomo de organizações popularese assessorias universitárias, responsáveis pelo crescente avanço deum esforço descentralizado/participativo de práticas paralelas têmatuado em duas grandes frentes: na área rural (atendimento aos Mo-vimentos Sem-Terra) e na área urbana (acesso à justiça, segurança,direitos humanos e cidadania). Exemplificando tais experiências, aolongo dos anos 80 e 90, registram-se algumas organizações popula-res, ONGS e assessorias universitárias, como: o Instituto de ApoioJurídico Popular (AJUP - Rio de Janeiro); o Gabinete de AssessoriaJurídica às Organizações Populares (GAJOP-Olinda/PE); o Projetode Assessoria Jurídica da Pró-Reitoria Comunitária da UniversidadeCatólica de Salvador (PAJ - Bahia); a Comissão de Justiça e Paz daArquidiocese de Salvador (Bahia); o Acesso à Cidadania e DireitosHumanos (Porto Alegre/RS); o Serviço de Assessoria Juridica Uni-versitária da Faculdade de Direito da UFRGS (SAIU-Porto Alegre/RS); Serviço de Apoio Jurídico Popular (SAIU - Universidade Fe-deral da Bahia), todos no Brasil e, na América Latina, o Instituto deServicios Legales Altemativos (ILSA - Colômbia)22.

22 WOLKMER, Antonio C. Introdução aopensamentojuridico crítico. São Paulo: Aca-dêmica, 1991. p. 103-104. Ver, para maior aprofundamento da questão sobre os “ser¬viçoslegais alternativos": CAMPILONGO, Celso Fernandes. Acesso àjustiça e formas altemativasde resolução de conflitos: serviços legais em São Bemardo do Campo - Brasil. Pesquisapatrocinada pelo CEDISO/USP, 1990. 45 p.; & PRESSBURGUER, Miguel. Discutin-do a assessoria popular: Rio de Janeiro: AJUP/FASE, Seminários n. 15, 1991; PALACIO,Gerrnán. Servicios legales y relaciones capitalistas: un ensayo sobre los servicios juridicospopulares y la práctica legal crítica. El otro derecho. Bogotá, n. 3, p. 51-70. Jul./1989.

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O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATIVA

b) Estratégia do “uso altemativo do Direito”, operacionalizadapor magistrados no exercicio da fimção judicial e de inegável ex-pansão no meio da produção, interpretação e aplicaçãojurisprudencial.

Preliminarmente, o intento dessa variante teórico-prático, ins-pirada na Magistratura Democrática italiana dos anos sessenta,vem sendo desenvolver procedimentos político-jurídicos capazesde propor, diante da dominação e hegemonia do Direito burguês-capitalista, a utilização do ordenamento jurídico técnico-formal ede suas instituições na direção de uma prática judicial altemativa,voltada para a emancipação dos setores, classes e movimentossociais menos favorecidos. Trata-se de explorar, mediante o mé-todo hermenêutico (interpretação de cunho libertário), as contra-dições e as crises do próprio sistema oficial e buscar formas le-gais mais democráticas superadoras da ordem burguesa estatal”.Sem descartar o aparato normativo oficial e sem formular hipóte-ses ou defmir novas categorias jurídicas, o “uso altemativo doDireito”, no dizer de Saavedra López, apresenta-se como propos-ta, “(...) tanto de caráter prático como teórico, de utilizar e conso-lidar o Direito e os instrumentos jurídicos em uma direçãoemancipadora; (...) de projetar e realizar uma cultura e uma práti-ca jurídica alternativas à cultura e à prática dominante, a fim de,sem romper a legalidade estabelecida, privilegiar no plano jtnídi-co, especialmente no plano judicial, (...) os interesses e a práticadaqueles “sujeitos jurídicos” que se encontram submetidos pelasrelações sociais de dominação”24.

Para os agentes e operacionalizadores (juízes) do “uso alter-nativo do Direito”, a instância jurisdicional é aquela que assegurao status quo estabelecido, agindo não só como aparelho ideológi-co do Estado, mas também como instrumento de repressão e decontrole institucionalizado. A tradição histórico-liberal vem de-monstrando que o poder judicial não tem sido uma instância neu-tra e independente na esfera da máquina estatal, a serviço das

23 Idem, ibideinfp. 66.24 LOPEZ CALERA, Nicolás; SAAVEDRA LÓPEz, M‹›ó›zs1<›;ANDRÉs IBANEZ.

Sobre el uso alternativo del derecho. Valencia: Femando Torres, 1978. p. 40.

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5.1.4 “Prática " e "uso ” alternativos do direito 305

liberdades e acima dos antagonismos de classe”. Certamente per-siste uma contradição: o Judiciário, não obstante sua aparência deneutralidade, imparcialidade e apoliticidade, nada mais é do queuma instituição de natureza política, reflexo da própria dinâmicade poder do Estado Capitalista. O que leva autores como Ferrajolia postular que a prática alternativa deve não apenas converter ascontradições do Direito Estatal burguês em processo de emancipa-ção dos setores populares e dos movimentos sociais de base, mastambém definir claramente a inserção da magistratura e do poderjudicial “na ampliação dos possíveis espaços democráticos”26. Naperspectiva delineada, os atores jurídicos estatais advogam, entreoutras coisas, apropriadamente, o “alargamento do processohemienêutico nas instâncias menores, ocupadas por juízes maisjovens e mais sensíveis às reivindicações dos setores populares””.

No amplo quadro da legislação estatal brasileira subsistem vári-os dispositivos que viabilizam não só explorar as lacunas da lei e asantinomias jurídicas, como, igualmente, exercer uma interpretaçãoflexível e menos rígida, até mesmo fora das regras formais, funda-da na eqüidade, na justiça social e na socialização do Direito28. Porconseqüência, a via para uma interpretação judicial pluralista elibertária, comprometida com o “uso altemativo do Direito”, en-contra fundamentação nas diversas situações de juízos por “eqüi-dade” contemplados nos art. 8° da CLT; arts. 1.040, IV, 1.456, doCódigo Civil; arts. 108, IV, 172, IV, do Código Tributário Nacionalde 1966; no art. 5°, da LICC n° 4.657, de 1942 e no art. 6° da Lei9.099/95. Sendo assim, o art. 5°, da Lei de Introdução ao CódigoCivil propicia um “uso” abrangente e altemativo, quando dispõeque, na aplicação da lei, o intérprete ou o operadorjurídico objetivarásempre os “fins sociais (...) e as exigências do bem comum”. O

25 cf. WOLKMER, Antonio c., op. cit., p. 67; LÓPEZ CALERA, Nicolás ef af., op.cit., p. 71; ZULETA PUCEIRO, Enrique. Paradigma dogmático y ciencia del derecho.Madrid: Editoriales de Derecho Reunidas, 1981. p. 248; TORRE RANGEL, Jesus Anto-nio de la. Conƒlictos y uso del derecho. México: Jus, 1988. p. 13-24.

2° BARCELLONA, Pietro; COTTURRI, Giuseppe. El Estado y los juristas. Barce-lona: Fontanella, 1976. p. 254 e segs.; LÓPEZ CALERA, Nicolás et al., op. cit., p. 40.

27 FARIA, José Eduardo. Retóricapolítica e ideologia democrática. São Paulo: Graal,1984. p. 171.

28 Cf. CRESCI SOBRINHO, Elicio de. Justiça alternativa. Porto Alegre: Sérgio A.Fabris, 1991. p. 147.

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306 O PLURALISMO Junioico NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARr1c1PAr1vA

mesmo teor de amplitude e abrangência extrajudicial predominanos princípios do art. 6° da Lei dos Juizados Especiais, quandoprescreve que o agente jurídico competente adotará “em cada casoa decisão que reputar mais justa e equânime (...)”.

Em suma, o uso altemativo, trabalhando por vezes com umatécnica interpretativa libertária, procura minar e transfonnar oordenamento jurídico positivo dentro dos horizontes da própria le-galidade oficial estatal, não tendo como preocupação específicacriar e desenvolver outros núcleos de regulação fora do Estado,provenientes principahnente das práticas autônomas e espontâneasdo poder comunitário. Na verdade, tem razão Eliane B. Jimqueira,quando, examinando essas duas variantes brasileiras do modelo detransfonnação do Direito Oñcial (o “uso” e as “práticas” altemati-vas do Direito), sublinha que ambas as estratégias caminham “(...)não no sentido de criação de respostas societais e lugares deregulação autônomos, mas sim na direção ao Estado, ainda queseja um “otro Estado”, fundado sobre um “otro derecho””°.

Com efeito, a presença dessas práticas pluralistas no nível dalegislação e da jurisdição, engendradas no interior da própria or-dem jurídico-estatal oficial, são importantes não só para eviden-ciar os primeiros passos da transformação e ruptura gradual como velho paradigma da modemidade jurídica burguês-capitalista,como também para demonstrar que a mesma instância dejuridicidade do Estado, tendo consciência da insuficiência de seumodelo de regulamentação social, admite, favorece e cria certosmecanismos diferenciados funcionalmente essenciais para o pro-cesso de equilíbrio e recomposição do próprio sistema. Tais pres-supostos de cunho mais refonnista acabam beneficiando a passagempara práticas pluralistas altemativas, à margem da juridicidade postapelo Estado. E o que se verá no próximo tópico.

5.2 Pluralidade Alternativa no Espaço do Direito não-oficial

O principal argumento, até aqui, vem sustentando a proposi-ção de que, para superar a crise do modelo jurídico tradicional de

2° JUNQUEIRA, Eliane B., 1991. op. cit., p. IS.

5.2 Pluralidade Alternativa no Espaço do Direito não-oficial 307

regulamentação social (Direito produzido e monopolizado peloEstado modemo centralizador), é necessário optar por processosestratégicos pluralistas de médio (“reformismo compartilhado”)e longo prazo (“rupturas compartilhadas”). O pluralismo jurídicoa médio prazo, que está relacionado à “reprodução” e às “refor-mas” legais, tenta utilizar, retrabalhar e ampliar certos procedimen-tos paralegais e extrajudiciais na esfera do próprio sistema jurídicooficial. Além de remodelar e alargar conquistas normativas do ve-lho paradigma, pauta-se por outro Direito mais justo, mas sem ab-dicar da presença do aparelho estatal, ainda que seja a de um Esta-do democrático e controlado pelas maiorias. As variantes pluralistassurgidas no bojo da mesma legalidade oficial são percebidas emdois planos distintos: no “interior” da legislação positiva e no fim-cionamento hennenêutico da instância jurisdicional. Isso, retrata-do nas considerações anteriores, possibilita, agora, avançar para aproposta definitiva de um pluralismo legal a longo prazo, vincula-do às mudanças, rupturas e disposições paralelas e concorrentes.Trata-se aqui da edificação das bases de um paradigma configura-do no pluralismo jurídico de cunho comunitário-participativo, ca-racterizado por fundamentos de efetividade material e formal (per-fil já proposto no 4° Capítulo). Sem negar ou abolir as manifesta-ções normativas estatais, é avançar democraticamente rumo a umalegalidade diversa, à margem da juridicidade posta pelo Estado.Esta pluralidade concomitante está fundada não mais na lógicatecno-formal e nos controles disciplinares, mas na justa satisfaçãodas necessidades cotidianas e na legitimidade de novos sujeitoscoletivos. Vejam-se, então, alguns desses primeiros indícios (aindanão inteiramente defmidos) presentes na sociedade periférica lati-no-americana que apontam, de modo ainda tênue, informal e semi-autônomo, para uma nova fonna de produção jurídica mais autênti-ca e justa, quer em grau legislativo, quer em grau de resolução dosconflitos. Tais procedimentos altemativos, alguns já instituídos econhecidos, outros em processo de gestação, expressam a partici-pação crescente, direta e preponderante de atores sociais recentes,bem como de outros corpos intermediários na afirmação e na cons-trução de “direitos comunitários” concorrentes.

Certamente que essas práticas diferenciadas não-institucionalizadas, que implicam alto teor de informalização,

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308 O PLuRAL|sMo runímco Nâs PRÁTICAS DE JUSTIÇA Pânriclvzmvâ

descentralização e democratização dos procedimentos, senão aindamaior conscientização, participação e criatividade dos sujeitoscoletivos no processo de auto-regulação social e na administra-ção da Justiça, são fatores que, bem explorados e estimulados,constituem-se no meio mais adequado, tanto para operacionalizaras demandas e equacionar os conflitos coletivos de espaçossocietários dependentes, quanto para canalizar com eficácia ascarências e as aspirações dos novos movimentos sociais.

Parece notório que, diante da existência de certas limitaçõesdos procedimentos altemativos no interior da administração daJustiça Estatal e da premência em reconhecer conflitos de massaprovenientes das demandas por direitos, impõe-se a criação demecanismos múltiplos não-institucionalizados, assentados emações legislativas rápidas, efetivas e simplificadas, e em tribunaisde julgamento socialmente mais eficazes, informais e poucodispendiosos. Daí a obrigatoriedade de não só detectar os “novosdireitos” advindos das carências e das necessidades dos sujeitossociais, como instrumentalizar o modo de viabilizar a representa-ção efetiva desses interesses insurgentes que não foram aindacontemplados ou, quando previstos pela legislação, não chegam aser bem assegurados, nem representados adequadamente peloscanais delegativos convencionais. Examinando as amplas pos-sibilidades de transpor os obstáculos para um acesso mais efetivoà Justiça por parte dos novos sujeitos coletivos, Mauro Cappellettinotou que é forçosa a exigência de uma gama de alterações pro-fundas e inovações radicais, que transcendam as esferas tradicio-nais de representação, alcançando as fonnas consensuais e des-centralizadas de procedimentos. Tais implicações vão desde asmodalidades flexíveis de gerar produção jurídica até a criação denovos tribunais com a utilização amiúde de leigos ouparaprofissionais. Incluem, além disso, modificações na legisla-ção substantiva oficial que permitam contemplar novas reivindi-cações e solucionar novos tipos de conflitos. Pressupõem, final-mente, a implantação concreta e célere de práticas cotidianas pri-vadas, coletivas e informais de resolução dos litígios”. Importa

3° Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso àjustiça. Porto Alegre: Sér-gio A. Fabris, 1988. p. 7l e 81.

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5.2 Pluralidade Alternativa no Espaço do Direito não-oficial 309

destacar, como fatores de produção paralela, os seguintes proce-dimentos auto-reguláveis que podem emergir e ser aplicados poruma pluralidade de atores sociais, associações comunitárias edemais corpos intermediários, subsistindo espontaneamente comrelativa autonomia frente à vontade estatal e independente doDireito Positivo oficial:

a) No nível da resolução dos conflitos: novas modalidades não-institucionais de negociação, mediação, conciliação, juízosarbitrais e júri popular; fonnas não-convencionais, ampliadas esocializadas de juizados especiais de pequenas causas (justiça demínima quantia); extensão e fragmentação de comitês ou conse-lhos populares de justiça; criação de tribimais de bairros e de vi-zinhança; justiça distrital, juizados e juntas itinerantes”.

b) No nível das fontes de produção legislativa: reapropriaçãoe alargamento de novas formas de “convenção coletiva” do traba-lho, do consumo e do uso social; formação de “acordos coleti-vos”, “negociações consensuais” e de “arranjos” político-jurídi-cos de agregação de interesses; imposição de “acertos comunitá-rios” mediante mobilização e pressão advindas das carências enecessidades dos novos sujeitos individuais e coletivos.

5. 2. I Resolução dos conflitos por via não-institucionalizada

Na medida em que o órgão de jurisdição do modelo de legali-dade estatal convencional toma-se funcionalmente incapaz deacolher as demandas e de resolver os conflitos inerentes às neces-sidades engendradas por novos atores sociais, nada mais naturaldo que o poder societário instituir instâncias extrajudiciais assen-tadas na informalidade, autenticidade, flexibilidade edescentralização. A constituição de outro paradigma da política edo jurídico está diretamente vinculada ao surgimento comunitá-rio-participativo de novas agências de jurisdição não-estatais es-

3* Sobre as diferentes práticas de justiça consensual descentralizada, bem como sobreos “juizados itinerantes”, vide: CARDOSO, Antonio Pessóa. op. cit., p. 46-48.

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3 10 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATWA

pontâneas, estruturadas por meio de processos de negociação,mediação, conciliação, arbitragem, conselhos e tribunais popula-res. Não se trata aqui das formas de conciliação, juizo arbitral ejuizados especiais já previstas e consignadas no interior da legis-lação estatal positiva, mas de instâncias e procedimentos maisamplos, em regra inforrnalizados e independentes, nascidos e ins-taurados pela própria Sociedade e seus múltiplos corpos intenne-diários quase sem nenhtuna vinculação com os órgãos do Estado.Certamente que as fonnas atuais de “conciliação” e “arbitragem”institucionalizadas (examinadas no tópico anterior - 5.1) são asprimeiras expressões plurais passíveis de serem exploradas alter-nativamente mas não bastam por si sós, pois faz-se necessárioradicalizar, alargar e socializá-las muito mais.

Desta feita, pode-se e deve-se pensar a “conciliação” comoinstância de jurisdição completamente infonnalizada e utiliza-da a serviço tanto dos sujeitos sociais quanto da comunidadecomo um todo. Ao discutir a questão do acesso e a participaçãodos movimentos sociais na Justiça, verifica-se que a prática-institucionalizada da “conciliação” tem a grande vantagem depoder resolver conflitos por demandas e necessidades, de fonnarápida e imediata, sem adentrar os trâmites burocráticos e one-rosos da Justiça Estatal que, ou não reconhece, ou inviabiliza oacesso popular. Naturalmente, trata-se do procedimento maissimplificado, distinto da atividade jurisdicional clássica, poisos conciliadores são agentes que exercem funções diversas nacomunidade, não necessitando ser juiz ou mesmo advogado”. Ocritério que deve nortear a “conciliação” extra-oficial, comoruptura e altemativa à justiça formal do Estado, não está na apli-cação da lógica fundante da atual legislação positiva, mas emnovo tipo de interpretação emancipatória, norteada pela legiti-midade de novas identidades sociais e firrnada na eqüidade, naordenação de justos interesses e na satisfação plena das neces-sidades humanas fundamentais.

32 A propósito darsignificação da “conciliação prévia extrajudicial”, ver: GRINOVER,Ada Pellegrini, 1990, op. cit., p. 190-193 e 208-213; . et al., 1988, op. cit., p. 168-169; CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant, op. cit., p. 83-85; CARDOSO, AntonioPessóa. op. cit., p. 109-125.

n-AA.

5.2.1 Resolução dos conflitos por via n¿io-institucionalizada 311

Distintamente do “juízo arbitral”, técnico, institucionalizadoe moldado por uma filosofia individual-privativista, as novasmodalidades de “arbitragem” têm alcance amplo e populariza-do, transformando-se em verdadeiros “juízos arbitrais comuni-tários”. A “arbitragem” não-institucionalizada pode constituir-se em recurso complementar ou altemativo aos processos maisconsensuais e livres da “conciliação”, envolvendo, em etapaposterior, o acordo das partes sociais conflitantes na opção porárbitros mediadores eleitos pela própria comunidade. Enquantoa “conciliação” refere-se mais diretamente à negociaçãoconsensual e flexível entre indivíduos ou entidades coletivas, a“arbitragem” pressupõe maior complexidade conflitiva, fazen-do-se necessária a interferência de uma terceira pessoa ou comi-tê consultivo para dirimir as diferenças e os choques decorren-tes de carências e necessidades. É evidente que pensar num pro-jeto jurídico que contemple o poder dos “juízos arbitrais comu-nitários” implica também repensar as modalidadesinstitucionalizadas de “juízo arbitral”, minimizadas e pratica-mente irrelevantes na tradição do monismo estatal positivistabrasileiro”. Ainda que seja um procedimento jurídico extra-es-tatal muito habitual nos EUA e em alguns países da Europa, nãotem sido incentivado em países do Capitalismo periférico comoo Brasil. Entre as razões para tal situação está, de um lado, ofato de que, como esclarece Ada Pellegrini Grinover, a legisla-ção estatal brasileira “(...) não confere à cláusula arbitral o cará-ter instituidor do juízo arbitral, considerando-o simples pactumde contrahendo, a ser completado pelo compromisso arbitral”34.De outro, a arbitragem tradicional tende a ser pouco usada pelossetores populares carentes e injustiçados, em face dos altos cus-tos dos honorários do árbitro. Isso explica, não sem razão, porque, em alguns países do Capitalismo avançado, o próprio Esta-do acabou assumindo esse ônus, pagando os árbitros ou incenti-

33 Cf. OLIVEIRA, Waldemar Mariz. Do juízo arbitral. op. cit., p. 308-321;CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e jurisdição. In: Ada P. Grinover; C. R.Dinamarco; K. Watanabe [Coords.]. Participação e processo. op. cit., p. 296-307;CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant, op. cit., p. 82-83.

3° GRINOVER, Ada Pellegrini, 1990. op. cit., p. 199.

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3 12 O PLURALISMO JUIu'mco NAS PRÁTICAS DE IusTIÇA PARrIcIPArIvA

vando programas experimentais de juízo arbitral voluntário”. Éindiscutível, a longo prazo, o poder que os “juízos arbitrais co-munitários” poderão representar para a resolução paralela dosconflitos no âmbito de espaços públicos mais democráticos edescentralizados.

Concomitantemente com as práticas comunitárias de “concili-ação” e “juízos arbitrais”, o projeto pluralista de tuna justiça com-partilhada não-estatal - articulada pela presença, participação emobilização de novos sujeitos coletivos ~ contempla ainda outrase ampliadas fonnas de “júris populares criminais”, “juizados co-munitários de pequenas causas”, “juntas itinerantes”, “tribunaisde bairros” e “juízes distritais”.

A crise e o exaurimento das estruturas centralizadoras do Es-tado modemo favorecem o desenvolvimento de limitações a estepoder não só mediante modelos de descentralização político-ad-ministrativa (por vezes direcionada pelo próprio Estado), como,sobretudo, de múltiplas variantes de descentralização societária.Trata-se aqui da crescente expansão da democracia de base quepennite o efetivo controle no exercício do poder e a intervençãona tomada de decisões, privilegiando para esta tarefa a participa-ção intensa dos movimentos sociais e demais corpos intermediá-rios, dotados de autonomia relativa, identidade própria e funçõesespecíficas. Mas a intervenção dessas novas categorias sociaisnão se dá apenas em nível de atuação e controle do aparato políti-co-administrativo, pois avança igualmente na esfera da participa-ção na “administração da Justiça” e da participação “mediante ajustiça”, que configura, no dizer de Ada Pellegrini Grinover, ouso do “processo como veículo de participação democrática, quermediante a assistência judiciária, quer mediante os esquemas dalegitimação para agir”3°. Na verdade, a participação dos novossujeitos sociais e demais grupos comunitários no amplo processode administração da Justiça compreende nada mais do que a in-tervenção direta de leigos na solução das controvérsias e o con-

” Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant, op. cit., p. 82-83. Observar igual-mente: ROCHA, José de Albuquerque. op. cit., p. 15-25; RAMOS FILHO, Wilson, op.cit. p. 182-230.

1° oR1NovER, Aziz Pellegmú, 1990. op. cit., p. 2s I.

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5. 2.1 Resolução dos conflitos por via não-institucionalizada 313

trole sobre as decisões judiciais. Isso implica procedimentos de-mocráticos e descentralizados que conduzem à instituição de “tri-bunais populares” constituídos por juízes togados do Estado(concursados mas fiscalizados pela sociedade) e juizes comunitá-rios eleitos diretamente pela própria população. Sem desconsideraras críticas que são levantadas referentemente ao baixo nível deinstrução e à considerável marginalização de nossa população, asvantagens dos tribunais populares têm o grande mérito de aproxi-mar o povo da justiça e de socializar a função jurisdicional. Nestesentido, Ada P. Grinover assinala com razão que, dentre as princi-pais conseqüências dessas instâncias de Justiça Popular, devemser apontadas: a) a ruptura com o corporativismo e com aburocratização da magistratura tradicional; b) a desmistificaçäodo ritualismo e do hermetismo retórico das forrnas de expressãodo mundo jurídico para o senso comum da população; c) a“descentralização do poder coativo do Estado” para o exercíciode jurisdição efetivado pelos cidadãos”.

Com efeito, a reordenação do espaço público em nível local e aconsolidação hegemônica do poder de auto-regulação dos sujeitossociais possibilita a retomada, o alargamento e a difusão de proce-dimentos de intervenção popular direta na Justiça Penal, na JustiçaCivil e na Justiça do Trabalho. Vale lembrar, neste caso, não só aeleição de juízes (juízes de primeira instância escolhidos pela po-pulação e pelos corpos intermediários; magistrados dos tribunaissuperiores escolhidos por juízes profissionais e por representantesda comunidade), mas também a aquisição, por parte da comunida-de, do direito de julgar e decidir, democraticamente, através dos“júris populares” na área penal, dos “juizados comtmitários de cau-sas mínimas” no Civil e das “juntas distritais de conciliação” noâmbito trabalhista. Com isso busca-se realçar as novas fonnas delegitimidade projetadas pelos sujeitos coletivos, autênticos porta-dores de um novo conceito de soberania compartilhada e de cida-dania coletiva atuante. E evidente que, nessa linha de raciocínio,toma-se necessário não só suplantar os meios tutelares de jurisdi-ção estatal, como ainda introjetar, definitivamente, nas mudançasparadigmáticas do espaço societário marcadas pela democratiza-

3° GRINOVER, Ada Pellegrini, 1990. op. cit., p. 283-284.

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3 14 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATIVA

ção e descentralização, um pluralismo de instâncias infonnais, agên-cias extrajudiciais, entidades públicas (Ordem dos Advogados,Defensoria e Ministério Público, Procon, Prefeituras Municipaisetc.) e entidades privadas (movimentos sociais, associações civis,comunidades de bairro, sindicatos etc.) capazes de, competente-mente, solucionar conflitos de interesses coletivos”. s

A pulverização de “tribunais comtmitários do povo” no seio dasociedade reflete a legitimidade de sujeitos coletivos emergentesque são chamados para a tarefa de fazer justiça, bem como de fisca-lizar publicamente a legalidade instituinte e de participar na toma-da de decisões. O chamamento e o reconhecimento da participaçãodos movimentos sociais e dos demais corpos intermediários, nointento de fazerjustiça, consolida, de um lado, a obrigatoriedade daadrnissão plural de júris populares, dos juízes estatais togados econcursados, dos juízes assessores, dos juízes sociais, distritais ede paz, bem como dos juízes e jurados populares; de out:ro, assegu-ra a imperiosa instituição de múltiplos tribunais e instâncias comu-nitárias, integrados por comissões populares de conciliação e arbi-tragem, comitês ou conselhos dejustiça de bairros, juntas itinerantes,defensorias de consumidores, tribunais de habitação, tribtmaisdistritais, comitês de ombudsman etc.°°.

5.2.2 Fontes de produção legislativa não-institucionalizadas

Antes mesmo da intervenção e fiscalização dos movimentossociais e dos demais corpos intermediários na dinâmica cotidiana

3* Cf. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade modema. In: Ada P. Grinover;C. R. Dinamarco; Kazuo Watanabe [Coords.]. Participação e processo. op. cit., p. 133.A Defensoria Pública que foi aprovada e sancionada pela Lei Complementar n° 80, de 12.!01/94, surgiu como instituição destinada a uma função jurisdicional do Estado, ou seja,“prestar assistência juridica, judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados(. . .)”. O atendimento da Defensoria Pública ainda é precário, necessita de maior efetividade,sendo suas funções tradicionalmente exercidas por sindicatos e advogados que prestamassistência judiciária.

3° Cf. SOUZA SANTOS, Boaventura de. A participação popular na administração dajustiça nos países capitalistas democráticos. In: A participação popular na administra-ção da justiça Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Lisboa: Livros Hori-zontes, 1982. p. 83-98; ___. Introdução à sociologia da administração da justiça. In:José E. Faria [Org.], op. cit., p. 45-60.

5.2.2 Fontes de produção legislativa não-institucionalizadas 315

de “fazer justiça” e no direcionamento das funções jurisdicionaisde operacionalizar litígios (conflitos entre vizinhos, operários,camponeses, minorias étnicas, população negra e indígena, con-sumidores, estudantes etc.), cabe perceber, no processo de trans-formação rumo a outro paradigma, a ampliação dos espaços só-cio-políticos de participação democrática e controle popular naprodução plural do Direito. Para tanto, será necessário, primeira-mente, desenvolver procedimentos, acordos, arranjos, agências einstâncias de participação direta e controle comunitário,consubstancializados através da fragmentação e multiplicidadede “sistemas de conselhos” ou “comitês comunitários” espalha-dos pelas três esferas da vida cotidiana contemporânea: poder lo-cal ou mimicipal, estadual ou regional e federal.

Certamente que é no interregno do poder local e no domíniodo “sistema de conselhos municipais populares” que se encontrao núcleo mais autêntico e legítimo para que os movimentos soci-ais e outras associações voluntárias reivindiquem, lutem e criemnovos direitos. A produção legal altemativa emerge de novas ediversificadas fonnas cotidianas consensuais de se fazerem nego-ciações ou acordos individuais e coletivos; arranjos sócio-políti-cos de agregação de interesses; convenções coletivas de trabalho,consumo e uso social; regulação de interesses pela ação dos gru-pos plurais de pressão; efetivação de processos legislativos viainiciativa, plebiscito, referendum popular, tribrmais e audiênciaspúblicas; disposições deliberadas democraticamente por comitêscomunitários, juntas executivas e conselhos distritais etc. De todaessa gama de procedimentos infonnais e não-institucionalizadosde produzir direitos, legitimados pela entrada em cena de novossujeitos coletivos de jtnidicidade, serão destacados o pluralismodas “convenções coletivas” no âmbito das relações do capital edo trabalho e os “acordos” e “arranjos” setoriais que agregaminteresses no contexto específico das relações civis coletivas.

5. 2.2. I Convenções coletivas de novo tipo

A convenção coletiva de novo tipo resulta da tendência de Scampliar o campo da “convenção” tradicional como fonte penna-

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3 16 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATIVA

nente e genuína da produção jurídica, cabendo a esta instituição,conforme já dispõe hoje o avançado Estatuto dos Trabalhadoresespanhóis, disciplinar “matérias de índole econômica, laboral,sindical e assistencial em geral, bem como todas as demais queafetem as condições de emprego e a esfera de relações dos traba-lhadores e suas organizações representativas com o empresário eassociações empresariais”4°. Antes de tudo há que reconhecer quea “convenção coletiva”, enquanto disposição obrigatória, mesmonão reproduzindo tipicamente uma contradição ou dominação detuna classe social sobre outra, a bem da verdade, revela-se muitomais como conquista daqueles sujeitos coletivos estreitamenteassociados às carências provenientes da produção da riqueza eque lutam para reafirrnar necessidades por Direitos.

Quanto à questão da possivel relação conflituosa entre a legisla-ção oficial (fontes forrnais estatais) e novas modalidades informaisde convenção coletiva (fontes sociais autônomas), há que precisar,com nitidez, as particularidades legais de cada pais e o estabeleci-mento de uma ordem hierárquica entre as fontes sociais autônomase as fontes estatais, tendo como critério não o interesse das elitesdominantes alojadas no aparelho estatal, mas as necessidades fun-damentais dos sujeitos coletivos insurgentes. Como se vê, a pos-sível preponderância ou hegemonia da lei estatal não implicará aminimização ou marginalização de toda a produção nonnativa al-temativa”. Pelo contrário, toma-se imperativa a aceitação desteDireito extra-estatal e não-oficial, emanado de sujeitos sociais in-surgentes e dos grupos espontâneos classista e interclassista, en-quanto procedimento mais autêntico e mais justo.

A percepção do tipo ampliado e não-institucionalizado de “con-venção coletiva”, como fonte diferenciada de produção jurídicanão-estatal e como nova possibilidade instrumental na redefiniçãodo pluralismo legal, deverá superar as deficiências e os limitesdas formas atuais de “convenção coletiva” presas à Justiça do

*U Cf. MAGANO, Octávio Bueno. Organização sindical brasileira. São Paulo: Re-vista dos Tribunais, l982. p. 80.

4' Cf. KROTOSCHIN, Ernesto. Instituciones de derecho del trabajo. 2. ed., BuenosAires: Depalma. p. 73. Para um exame mais completo das “convenções coletivas”, verifi-car: DESPAX, Michel. Conventions collectives. In: CAMERLYNCK, G. H. [Dir.]. Traite'de droit du travail. Paris: Dalloz, 1966. p. I, 65 e 74.

J.

5.2.2.1 Convenções coletivas de novo tipo 317

Trabalho tradicional e ainda existentes nos horizontes da realida-de oficial periférica. Tais modelos de aplicabilidade da “conven-ção coletiva” no Brasil têm alcance demasiadamente reduzidos, pois,como assinala Octávio Bueno Magano, persiste um enorme vazioentre sua montagem instituída e sua prática efetiva, “(...) distânciaessa que só pode ser vencida com a remoção dos obstáculos quetolhem o seu florescimento, a saber: excessiva concorrência do le-gislador; poder normativo da justiça do trabalho; política salarialdemasiadamente abrangente; debilidade dos sindicatos”42.

As condições complexas das sociedades periféricas atuais,geradoras de carências e necessidades, favorecem a utilização maisfreqüente das “convenções” como fonte altemativa eficaz, não sóde manifestações de produção legal não-estatal, como também doprocesso multifonne de um “novo” Direito que não expressa avontade do Estado nem de individuos, mas de sujeitos sociaisconscientes e organizados. Portanto, é possivel fazer convençõescoletivas valendo como lei em todos os campos do Direito, mate-rializando-se através de ações sociais efetivadas junto às instân-cias judiciais, oportunizando-se nas inúmeras práticas de concili-ação e nos acordos daí resultantes.

Naturalmente, as “convenções coletivas” de novo tipo, comofonte material de concretização para um Direito Comunitário,evidenciam que as relações sociais da vida produtiva tendem aconfirmar, gradualmente, práticas cotidianas mediante açõesparticipativas específicas de pluralismo jurídico.

5.2.2.2 Acordos setoriais de interesse

Diante da crise do sistema de representação político-liberal, daampliação de canais infonnais na resolução de conflitos sociais edo fortalecimento de negociações coletivas canalizadoras de inte-resse, projetou-se, com muita força, a partir das condições criadaspelo Estado do Bem-Estar Social e que se prolongaram, menos in-tensamente, no influxo do Capitalismo globalizado e no espaço dealguns países de Capitalismo industrial periférico, os “acordos”,

42 MAGANO, Octávio Bueno, 1982. op. cit., p. 81.

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3 18 O Pruroxrrsmo JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA Pâaricrrwrrvâ

“pactos” ou “arranjos” sócio-politicos como fonte normativadisciplinadora. Na verdade, tais “arranjos” setoriais de agregaçãode interesses estão vinculados a certo modelo politico de sociedadepluralista, também denominado corporativismo societal ou demo-crático. Essa ordenação política da estrutura societária distingue-setotalmente do antigo “corporativismo estatal” de inspiração fascis-ta, pois neste o Estado controla e absorve totalmente as unidadesintegrantes semi-autônomas. Distintamente, no paradigma docorporativismo democrático, os movimentos sociais, os grupos co-letivos ou as corporações representativas de interesses emergemespontaneamente, adquirem capacidade de organização, criam con-dições para influenciar e defender objetivos específicos, conseguin-do, as corporações, manter-se autônomas com relação ao Estado.

Não resta dúvida de que este pluralismo social ““poliárquico””enquanto expressão de instituições particulares autônomas, gruposcoletivos organizados e associações agregadoras de interesses, ain-da que limite o acesso à estrutura de poder político e restrinja aparticipação de segmentos isolados e não-organizados no espaçopúblico, tem a vantagem de reafirmar (uma vez popularizado) no-vas formas de cidadania coletiva com maior eficiência que aquelasidentidades proverrientes das instituições tradicionais das demo-cracias representativas burguesas. No dizer de Celso F. Campilongo,estudioso atento dessa temática no contexto do Direito Político bra-sileiro, a passagem de tais fonnas de atuação de cunho representa-tivo para o pluralismo das organizações de interesses demonstra,para alguns de seus teóricos, que o protótipo de corporativismosocietário expressaria outra modalidade racional de tomar decisõese processar regulações muito acima da racionalidade formal irre-rente à democracia parlamentar burguesa. Além disso, a exaustãodo Estado, como lugar de equacionamento dos conflitos coletivos,permite identificar na variante do corporativismo democrático umaaltemativa de legitimação política distinta das regras do jogo decunho convencional consagradas pelo sistema representativo dademocracia liberal”.

*3 Cf. CAMPILONGO, Celso Femandes. Representação politica e ordem juridica:os dilemas da democracia liberal. São Paulo: USP, 1987. Dissertação [Mestrado emDireito] - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. p. 110-115.

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5. 2. 2.2 Acordos setoriais de interesse 319

Tais implicações evidenciam, de um lado, as profundas trans-fonnações por que passam as relações entre Estado e Sociedade noque tange ao processo de “regulamentação/regulação”; de outro, atentativa de superar a crise de legitimidade refletida pelas instânci-as tradicionais de representação, como partido, parlamento e judi-ciário. As novas fórmulas de produção de identidades coletivas ede representação de interesses revelam, para Celso F. Carnpilongo,uma inconteste mudança no relacionamento entre o Direito e omundo social da Politica. A complexidade dessa dinâmica deve-seao fato de o Estado e as instituições políticas estarem perdendo omonopólio do exercicio da política, favorecendo, com a ampliaçãodos diversos movimentos sociais, a simultaneidade do fenômenoda “socialização do político” e da “politização do social”““.

A crise da legalidade e a ineficácia das instituições político-jurídicas, no contexto de economias periféricas que têm seu capi-tal submetido às imposições de um Estado controlado extema-mente e que busca, intemamente, constante legitimação, propici-am o clima favorável para a troca de beneficios e vantagens entrepartes conflitantes com interesses opostos e que não conseguemencontrar uma resposta adequada nos canais institucionais. Dai anecessidade de os segmentos em confronto (govemo X gruposco orativos, em resários X trabalhadores) buscarem um “acor-dofycoletivo extrlá-estatal, consensual, flexível e eqüidistante dolocus de jurisdição oficial. A freqüência e a repercussão com quetêm ocorrido na Sociedade brasileira (as “negociações” e os “acor-dos coletivos” efetivados entre a Central Única dos Trabalhado-res - CUT e parcela significativa do empresariado nacional) com-provam a eficiência da utilização desses mecanismos infonnais eplurais para materializar “negociações” ou “pactos” com maiorrapidez, simplificação e com eficácia nonnativa. Este tipo de pro-dução nonnativa mais aberta e informal está munida de lógicaprópria, portadora de nova concepção de regulação social, apta a,com maior eficácia, atender carências e necessidades emergenciais.Essas práticas legais extrajudiciais, como esclarece oportunamenteCelso F. Campilongo, “desenvolvem-se fora dos limites da lei edos tribunais, quando não apesar da lei ou contra ela. O apareci-

44 Idem, ibidem. p. 111.

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320 O I=LURAI.IsIvI0 JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTIC1PATIvA

mento deste tipo de negociação política rompe com o padrãopositivista de legalidade, esvazia a concepção liberal de repre-sentação política e coloca os modelos dogrnáticos, novamente,em “órbita'”45.

Em suma, os “acordos” setoriais, agregadores de interesses,impõem-se como nova modalidade de produção nonnativa, fun-dada no sentimento de justiça de ações reivindicatórias e na lógi-ca de uma racionalidade material, independente e à margem davontade do Estado, prevalecendo como regra de eficáciaconsensualizada pela livre vontade dos movimentos sociais, gru-pos sindicais e associações comunitárias voluntárias. Conside-rando que esses “acertos” ou “arranjos” nascem fora de qualquercontrole por parte das instituições estatais, emergindo de reivin-dicações sociais insatisfeitas, da explosão de litígios e do esforçode entendimento societário, parece significativo explorar aindamais e ampliar, democraticarnente, em favor dos segmentos co-munitários pouco organizados, subaltemos e excluídos, alguns deseus procedimentos como modo de “institucionalizar” tais mani-festações legais não-estatais46.

A incidência desses pressupostos pennite conferir novas for-mas de legalidade não advindas dos órgãos estatais. Engendradasno seio de reivindicações, lutas e negociações, tais fonnas produ-zem “acordos” coletivos setoriais com força de lei. Esta situaçãopode ser associada às práticas sociais “ilegais” desenvolvidas por“invasores” que buscam acesso à terra (movimento dos sem-ter-ra) e à habitação (movimento dos sem-teto), e, a partir da trans-gressão do “jurídico estatal instituído”, constroem uma outra le-galidade, um Direito comunitário espontâneo, vivo e local. Trata-

45 CAMPILONGO, Celso Fernandes, op. cit., p. 106.*° Sobre a crescente importância dos “acordos” ou dos “arranjos” neocorporativos,

observar: OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1989. p.223-zós; FREITAS JÚNIOR, Antônio Rodrigues de. s¡zzz1¡‹zzzw.~ damzsâcaçâo e rapaz-ra. São Paulo: OAB/SP, 1989. p. 123-134; ALMEIDA, Maria Herminia Tavares de. Di-reitos sociais, organização de interesses e corporativismo no Brasil. Novos EstudosCEBRAP: São Paulo, n. 25, p. 50-60. Out./1989; BOBBIO, Norberto. O futuro da de-mocracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 25-26; REIS, Fábio Wanderley. Estado,política social e corpörativismo. Revista Análise & Conjuntura. Belo Horizonte, v. 4, n.1, p. 87-94; FARIA, José E. 0 Brasilpós-constituinte. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 79e segs.

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5.2.2.2 Acordos setoriais de interesse 321

se da nova cultura jurídica compartilhada, em cujo imagináriosocial as lutas, reivindicações e negociações se transformam empreceitos e regras legais imperantes. Com isso, rompe-se com aconfiguração mítica de que o Direito emana unicamente da nor-ma cogente estatal, instaurando-se a idéia consensual do Direitocomo “acordo”, produto de necessidades, confrontos e articula-ções das forças sociais na arena política.

Não se deve negar, contudo, que sobre este quadro de possibi-lidades múltiplas, tanto oficialmente instituídas e estimuladas peloEstado, quanto praticadas por procedimentos societários não-institucionalizados, levanta-se todo um questionamento acerca dealguns elementos interligados que dão realidade, justificativa evalidade ao cotidiano da juridicidade informal, como: a legitimi-dade dos novos agentes, a eficácia e os limites das manifestaçõesparalegais, a ilegalidade frente às indagações da eticidade, a bus-ca de outra fimção no uso da “sanção”, as possibilidades instituintesde uma justiça participativa etc. Tais preocupações terão pros-seguimento no próximo item.

5. 3 Cultura Jurídica Informal: Formas Perifiãricas de Legílimação

Coerente com as linhas de evolução até aqui expostas, e tendopresente que a resposta para a crise do paradigma legal monistaencontra-se num espaço político e juridico pluralista, legitimadopor necessidades básicas transformadas em direitos e pela açãohistórica de novos agentes sociais, intentar-se-á traçar o esboçode algumas categorias-chave para o desenho de uma cultura jurí-dica infonnal na periferia latino-americana.

Neste ponto, toma-se natural tuna discussão lirninar sobre osprincípios fundantes da legitimidade capaz de nortear uma cultu-ra libertária compartilhada. Essa percepção implica a claraexplicitação dos critérios de validade, eficácia e efetividade deuma “nova” legitimidade. Na verdade, a análise passa, antes detudo, pela “legitimidade” dos atores e pela “legitimidade” de suaspropostas, interesses e reivindicações.

Indiscutivelmente o desafio está em reconhecer a presença e osignificado dos sujeitos coletivos como autênticos portadores de

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322 O r›LuRALIsrvIo JuRiDrco NAs r›RArIcAs DE JusTJÇA I=ARrrcIPATrvA

nova cultura político-jurídica de base, acentuando não só seu cará-ter reivindicatório mas sobretudo sua dimensão participativa e cons-trutiva. Sua ação e sua luta, ainda que predominantementedirecionadas à justa satisfação das necessidades relativas às condi-ções materiais e à qualidade de vida, engendradas pela produção econsumo da industrialização capitalista da modernidade, pode en-globar outras demandas coletivas diversificadas (direito à terra e àmoradia, direitos humanos, direito às minorias étnicas, direitos re-lativos ao pacifismo, ecologia, liberdade sexual e religiosa, etc.).

Assim sendo, o interesse com referência aos movimentos soci-ais é enfatizar sua capacidade como fonte legítima para produzirformas de regulações consensuais autônomas, ou seja, o locus depráticas cotidianas habilitadas a transfonnar carências e necessida-des humanas em “novos direitos”. Certamente que, sendo tais agen-tes fontes de juridicidade não-estatal e base de nova legitimidadepara conjunturas políticas periféricas, toma-se necessário ter pre-sentes algrms de seus traços caracterizadores, já desenvolvidos noterceiro capítulo, como: as detemiinantes de sua origem, o conteú-do de seus objetivos, valores e prirrcipios, as estratégias de ação e abase social de seus atores. Nesse contexto, procurou-se diferenciaros “antigos” movimentos sociais (vinculados ao conceito de “clas-se”, subordinados ao Estado e de caráter temporário) dos “novos”movimentos sociais (de teor interclassista, possuidores de autono-mia relativa frente ao Estado e de alcance duradouro, mais ou me-nos permanentes). Tal diferenciação compreende ainda a busca desuas origens nas rupturas e crises culturais valorativas, no esgota-mento das estruturas institucionais de govemo e representação, bemcomo no crescimento das demandas vinculadas à melhoria das con-dições de vida e no aumento das contradições geradas pelo desen-volvimento de sociedades do Capitalismo dependente e associado.Na verdade, ainda que esses novos sujeitos coletivos componhamum quadro fragmentado, pluralista e heterogêneo, com reivindica-ções específicas, há que recorrhecer, em quase todos, urna percep-ção única e uma identidade comum no que se refere à significaçãoideológica e fonnalizada do Direito e da Justiça oficial do Estado.Ora, esta identidade de propósitos justifica a ação dos movimentossociais heterogêneos na instituição de uma cultura político-jurídicainsurgente que rompa com a cultura autoritária, centralizadora e

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5.3 Cultura Juridica Informal: Formas Periféricos de Legitimação

tradicional, simbolo instituído de uma fonna imaginária de repre-sentação formal de “Direito”, “Lei”, “Justiça” e “Judiciário” calca-da em “ordem”, “segurança”, “certeza”, “poder” e “dominação”.

Mas caberia perguntar: essa ação coletiva de desmitificaçãodo imaginário jurídico instituído, opressor e injusto, e a conse-qüente afnmação e criação de “novos direitos” encontra sua for-ça de legitimação em qualquer movimento social? Em outros ter-mos, admitindo a presença de legitimidade na ação dos sujeitoscoletivos de juridicidade, indagar-se-ia se todo movimento socialestá legitimado a produzir direitos e se toda regulação comunitá-ria autônoma e espontânea (não-estatal) é justa, válida e legítima.

Admitindo uma ampla crise que atravessa os valores da vida,as re as de govemabilidade, a validade dos canais de representa-ção %Torganizações partidárias), a eficácia das agênciasjurisdicionais de resolver conflitos e as instâncias parlamentaresde produção legislativa estatais, nada mais correto do que atribuirlegitimidade àquelas novas identidades histórico-sociais capazesda ruptura e da construção de um outro paradigma do “social”, do“político” e do “jurídico”.tAdquirem legitimidade os sujeitos so-ciais que, por sua ação libertadora, edificam uma nova culturasocietária de base, cujos direitos insurgentes são a expressão maisautêntica da satisfação das carências e das necessidades humanasfundamentais. Entretanto, os critérios que compõem a legitimida-de desses novos atores têm certos limites: está-se falando daquelalegitimidade que se constitui a partir de um conteúdo intencional,justo e programático, articulado não por quaisquer movimentoscoletivos mas somente por aqueles conscientemente organizadose comprometidos com as mudanças paradigmáticas, com apluralidade das formas de vida cotidiana e com o projeto de umasociedade auto-gestionária, descentralizada, liberta e igualitária.Com isso excluem-se da legitimidade aqueles movimentos soci-ais não identificados com as ações civis e políticas justas, e comos interesses do povo excluído, oprimido e espoliado, bem comoaqueles grupos associativos voluntários que não questionam aordem injusta e a estrutura de dominação.

Por outro lado, transpondo a legitimidade dos direitos, dir-se-ia que todo sujeito coletivo ou corpo social organizado, mais oumenos permanente e com certo grau de institucionalidade, está

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324 O PLURALrsIvIo JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JusTiÇA PARTIcn›ATIvA

apto a produzir nonnatividade com eficácia. No entanto, nem todamanifestação legal não-estatal ou nem todo “direito” ai produzi-do pode ser justo, válido e ético, pois um corpo social intermedi-ário ou grupo dirigente qualquer pode criar regras perversas,objetivando atender interesses contrários à comunidade, expres-sando diretamente intentos de minorias identificadas com o po-der, a dominação, a ambição, a exploração e o egoísmo. Nessecaso, existem direitos particulares produzidos por urna pluralidadede grupos sociais que não são justificáveis e legítimos, pois nãoresultam da vontade, interesse e do bem geral, tampouco estãodirecionados à satisfação justa das necessidades humanas (certasformas coletivas de arbítrio, tortura e justiça com as própriasmãos). A ausência de valores mínimos e universais relacionadosà eticidade e à justiça esvaziam a legitimidade desses “direitos”.A legitimidade dos direitos produzidos pelas subjetividades cole-tivas emergentes depende de determinados “critérios-limites”,intimamente associados ao “justo”, ao “ético” e ao respeito à vidahumana. Nesse contexto, as regras ou preceitos nonnativos comforça de lei, produzidos por grupos mal-intencionados, sem uma“causa justa” ou sem critérios éticos limitadores, não merecemser considerados como “direitos”. Exemplificação disso pode servisto nos grupos societários como a Máfia na Itália, a Ku-Klux-Klan nos EUA, o Cartel de Medellin (Colômbia) e os antigosEsquadrões da Morte no Brasil.

Com efeito, não é qualquer grupo social que gera “direitos”autênticos, pois toma-se essencial, além de ter em conta detenni-nados “critérios-limites”, destinguir os grupos comprometidos comas causas do “justo”, do “ético” e do “bem comrurr” de grandeparcela da comunidade daqueles grupos sociais identificados coma manutenção dos privilégios, a dominação e a oposição a qual-quer mudança. Parece claro, por conseqüência, que admitir e acei-tar o pluralismo jurídico não antecipa uma resposta adequada-mente correta e justificável. O conteúdo valorativo de uma mani-festação normativa informalizada e não-oficial é muito relativo,podendo ser moralmente correto ou não. O fato de uma práticaaltemativa ser “extra-estatal” ou “não-oficial” não é condição parasua legitimidade. Igualmente pode-se considerar que a simplesexistência de um Direito autônomo ou consensual não implica

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5.3 Cultura Juridica Informal: Formas Periféricos de Legitimação 325

:QIautomática e imediatamente a conquista de urna regulaçao maisjusta e dentro de critérios minimos de bom-senso. Examinandoessa problemática, Eliane B. Junqueira visualiza um certo tipo“perverso” de juridicidade altemativa no Brasil. Trata-se da ca-racterização de uma variante de legalidade paralela ao Direitooficial, fundada na violência arbitrária e na justiça privada, sendomuito mais rigorosa que a própria legislação penal estatal, poisimplica até mesmo o abandono de garantias jurídicas mínimas.Tais situações de juridicidade, que escapam ao controle do Esta-do, estariam sendo praticadas, no dizer da autora, em favelas doRio de Janeiro (a prática de punição física dos “boca-de-fumo”,como pena para os pequenos fiirtos), comprovando a presença de“ilícitos penais” e de “práticas inconstitucionais” (violação dedireitos civis e politicos constitucionalmente assegurados)'”. Tal“desvio” no procedimento altemativo não pode, entretanto, serencarado como regra prevalecente e absoluta.

Retomando a legitimidade, enquanto pressuposto para edificaras bases de urna cultura jurídica informal, pode-se ainda agregara sua íntima vinculação não só com a eficácia do interesse públi-co e com a participação de “vontades coletivas” consensualizadaspela diferença, como, sobretudo, com a afinnação de novos crité-rios estabelecidos a partir do real e organizados em função dasatisfação das necessidades justas. Cabe, assim, tendo presente aforça simbolizada pelos novos agentes históricos, o desafio delograr outra legitimidade construída sobre a base de uma culturalibertadora e democrática com baixo grau de institucionalização,isenta de conceituações pré-estabelecidas e rotinizações formaisburocráticas. Essa idéia de legitimação se dissocia da chancelaestatal, das diretrizes convencionais de efetividade formal e dalegalidade positivista, assentando-se no poder de participaçãocompartilhada e no consenso do “justo” comunitário. Daí aexigibilidade de novas pautas de verdade e novas regras do jogosocial, capazes de perceber o deslocamento da antiga lógica de

47 Cf. JUNQUEIRA, Eliane B., 1991. op. cit., p. 16 e 19. Consultar também da mes-ma pesquisadora em co-autoria com José A. de Souza Rodriguez: A volta do parafuso:cidadania e violência. In: Direitos humanos - um debate necessario. InstitutoInteramericano de Direitos Humanos. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 120-140.

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326 O PLuRAL1sMo JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE Jusriça Pxnncimriva

legitimação advinda da representação individualista e da legali-dade tecno-fonnal “instituída” para uma legitimidade “instituinte”,formada no justo consenso da comunidade e num sistema de va-lores aceitos e compartilhados por todos. Não se trata mais, comono velho paradigma do monismo estatal, de identificar e reduzir oconceito de legitimidade ao aspecto simplesmente jurídico, ouseja, à estrita vinculação com a validade e a eficácia enquantoprodução de efeitos normativos. Naturalmente, na nova culturajurídica pluralista, descentralizada e participativa, a legitimidadenão se funda na legalidade positiva gerada exclusivamente pelopoder formal do Estado (por vezes, emergente das formas de “ile-galidade”), mas resulta da consensualidade, das práticas sociaisinstituintes e das necessidades reconhecidas historicamente como“justas”`, “éticas” e “reais”48.

Para além da discussão sobre a legitimidade dos atores emer-gentes e a legitimação dos interesses, carências e necessidadestransformadas em “novos direitos”, caberia perquirir das reaispotencialidades de apreciação e de efetividade dessas manifesta-ções normativas informais. Ainda que se formule outra modali-dade de sociedade democrática e pluralista, pulverizada e articu-lada pela ação legitimadora de novos sujeitos coletivos, não sepode deixar de refletir sobre as deficiências e as imperfeições danatureza humana, bem como a contingência necessária para cer-tos padrões sociais de convivência e práticas mínimas de contro-le. Em qualquer tipo de sociedade, das mais simples einformalizadas até as mais complexas e altamenteinstitucionalizadas, persistem princípios de regulação produzidospelas próprias instâncias grupais para definir a extensão e os limi-

“Ê Subsídios para uma discussão mais aprofundada sobre a “nova” legitimidade, ve-rificar: JACQUES PARRAGUEZ, Manuel. Legalismo y derechos humanos. Un desafiopara el uso altemativo del derecho. In: Oscar Correas [Ed.]. Sociologiajuridica en AmericaLatina. Oñati Proceedings - 6, Oñati IISL, 1991. p. 213-230; . Educar para losderechos humanos y las estrategias de defensa jurídica desde la sociedad civil. Docu-mento de debate n. 12 (Chile), Querquum, Abr./1989. 12 p.; CASTRO FARIAS, JoséFemando de. Critica à noção tradicional de poder constituinte. Rio de Janeiro: LumenJuris, 1988. p. 63-96;,PANlZZI, Wrana Maria. Entre cidade e Estado, a propriedade eseus direitos. Espaço, & Debates. Lutas Urbanas. São Paulo, n. 26, p. 84-90, 1989;GRAU, Eros Roberto. Direito, conceitos e normas jurâlicas. São Paulo: Revista dosTribunais, 1988. p. 36-54.

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5.3 Cultura Juridica Informal: Formas Periféricos de Legitimaçäo 327

tes de conduta entre seus membros, sejam individuais, sejam co-letivos. Na medida em que a dinâmica do controle social passa aser um ingrediente essencial para o ftmcionamento da sociedadee, dependendo do grau de intemalização no que tange a “suges-tão”, “persuasão” e “coerção”, o controle social poderá assumirdimensões formais (diferentes tipos de leis) e infomiais (costu-mes, tradições, opinião pública).

A sociedade modema veio consagrar o controle social formalrepresentado por leis, tribunais e polícias, tendo como instrumentodisciplinador a “sanção” coercitiva penal”. Com efeito, o Direito esuas formas de sanção organizada, configuradas nas penaspecuniárias (multas) e nas penas de restrição da liberdade (prisão),transformaram-se nas mais importantes espécies de controle socialformal das modernas sociedades burguês-capitalistas. Ademais, nãoé de estranhar que a tradição do monismo jurídico centralizadortenha projetado a falácia de que todo Direito Positivo não só sedefinia pela “sanção”, como, também, a de que o Direito que não sesustentasse pela força da “sanção” enquanto “repressão”, não dura-ria muito tempo ou não seria absolutamente eficaz5°.

Ora, se a marca do Direito Positivo do Estado modemo é a“sanção”, como se situará o Direito compartilhado e produzidopelo poder comunitário diante da eficácia da “sanção” repressivatradicional? Em outras palavras, como fica a sanção numa culturajurídica não mais produzida e tutelada pelo Estado, mas geradaautonomamente pelo poder societário de auto-regulação? Qual aforça de aceitação e aplicação de sanções no que se refere aos“novos direitos” engendrados pelos movimentos sociais? Persis-tirão no novo paradigma de ordenação societária processos decontrole calcados na “sanção”? Inúmeros indícios apontam parao desenvolvimento de outras formas totalmente “novas” de san-ção (sanções de tipo ampliado e pedagógico), cujo critério basilarnão mais incidirá nas práticas de violência física e no controlemediante coerção disciplinar. Há que encarar a sanção não mais

4° Ver, a esse respeito: SOUTO, Cláudio; SOUTO, Solange. A explicação sociológi-ca. Uma introdução à sociologia. São Paulo: EPU, 1985. p. 108-116; .Sociologiado Direito. Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: EDUSP, l98l. p. 3-10.

5° Cf. MIAILLE, Michel. Uma introdução critica ao direito. Lisboa: Moraes, 1979.p. 83-85. -

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328 O PLURALISMO Ju-Rinico NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PA1mc1PAr1vA

sob o aspecto puramente repressivo, mas sob o cariz preventivo,compensatório, premial e retórico. A cotidianidade do Direito ins-tituído pela comunidade, ao acompanhar as flutuações concretasdas fonnas de vida, favorecerá um tipo de regulação social articu-lada sob as bases de um sistema de sanções naturais, prospectivasea não mais puramente negativas. Estas novas fonnas de sanção seexpressam pelo uso da “retórica” persuasiva (reprimendas, cen-sura, sugestão, intimação e ameaça), pelas práticas compensató-rias de prestação de serviços à comunidade e, finalmente, em suamaterialização mais radicalizada, pela suspensão ou perda de umasituação social ou profissional e a expulsão temporária ou defini-tiva da comunidade (a condenação ao “ostracismo”)5*. .

Sem deixar de conceber uma diversidade de controles geradae consensualizada pela própria Sociedade, a este respeito devem-se privilegiar, no paradigma do pluralismo jurídico comunitário-participativo, duas modalidades de “sanções” em nível de discur-so e em nível de prática. Na perspectiva do “discurso” como ins-trumento de “controle social”, é possível abandonar modalidadestipicas de sanções negativas do Direito Estatal moderno, basea-das na imposição burocrática (procedimentos formalizados eprofissionais) e na violência da coerção fisica, retrabalhando,positivamente, o uso da “retórica” enquanto força de regulaçãodifusa de cunho persuasivo e dialógico.

A retórica como estratégia de regulação estrutura-se na produ-ção de fórmulas cunhadas mediante persuasão e na difusão desugestões preventivas aceitas voluntariamente pelas partes envol-vidas. Assim, o discurso retórico substitui as fonnas de sançãoinstrumentalizadas pela coerção física, funcionando como umamodalidade de imposição nonnativa expressada por mecanismosde indução ou pressão psicológica. Trata-se, portanto, da introdu-ção de um modelo de regulação social que descaracteriza a san-

5' Para formulação altemativa de “sanção” ou uma “sanção” de novo tipo, consultar:MIAILLE, Michel, op. cit., p. 83-85; EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia dodireito. Brasília: UnB, 1986. p. 53 e segs.; ROULAND, Norbert. Anthropologiejuridiqne.Paris: PUF, 1988. p.: 146; SFORZA, Widar Cesarini. El derecho de los particulares.Madrid: Civitas, 1986. p. 127-135; TELLES JÚNIOR, Goffredo. A criação do direito.São Paulo: Calil, 1953, v. 2, p. 515-516; BOBBIO, Norberto. Contribución a la teoriadel derecho. Ed. de Alfonso Ruiz Miguel. Valencia: Femando Torres, 1980. p. 383-390.

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5.3 Cultura Juridica Informal: Formas Periƒëricas de Legirimação 329

ção da idéia tradicional de um mecanismo de repressão, vinculan-do-a às práticas discursivas socializadas, centradas na coopera-ção dialógica entre subjetividades individuais e coletivas”.

Uma vez delineada a singularidade da sanção minimizada docaráter punitivo e revestida de aspecto mais natural (dc efeitopositivo), atuando em nível de discurso, veja-se, agora, como sepode pensar a sanção no sentido de prática compensatória. Detodos os procedimentos reparadores de direitos, a pena compen-satória da “prestação de serviços à comunidade” constitui-se numadas mais apropriadas variantes à sanção penal do monismo esta-tal. Trata-se de uma medida já utilizada na legislação de algunspaíses (antiga URSS, Inglaterra, França, EUA, Itália etc.), em queações ou atitudes de segmentos da comunidade são reparadas comtarefas gratuitas junto a entidades assistenciais, orfanatos, hospi-tais, centros educacionais e outros programas comunitários e fi-lantrópicos. Ainda que essa modalidade de “sanção”, de valorcorretivo e de utilidade funcional, não encontre guarida no siste-ma jurídico estatal brasileiro, subsiste, inforrnalmente, a consci-ência de sua importância como dispositivo de correção/reparaçãohumanizadora. A rigidez da regra oficial não inviabiliza sua cres-cente aplicação por parte de algtms operadores jurídicos inovado-res e an°ojados que, rompendo com os cânones penais repressivos,implementam, para a especificidade de certos casos, a aplicação da“prestação de serviços à comunidade” como substituto espontâneoe pouco formalizado, tanto na sanção restritiva de direitos, comona suspensão condicional da pena”.

Ressaltar novos critérios para definir altemativas de regulaçãoe controle social tipificados na presença de sanções naturais epedagógicas não reduz, nem neutraliza, o argtunento de que nonovo paradigma o caráter hegemônico da sanção estatal repres-

52 Cf. SOUZA SANTOS, Boaventura de. O discurso e o poder: Ensaio sobre a soci-ologia da retóricajurídica. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, 1988. p. 53-59; JUNQUEIRA,Eliane B.; RODRIGUES, José A. de Souza, 1988. op. cit., p. 128-131.

53 Cf. MULLER, Vera Regina. Prestação de serviços à comunidade, uma alternativaviável às penas de curta duração. Revista da Escola do Serviço Penitencürio do RS.Porto Alegre, n. 3. p. 56-59; . Prestação de serviços ã comunidade como penarestritiva de direitos. Revista Ajuris. Porto Alegre, n. 36. p. 65-82; ___ & PADILHA,Carmem Maria. Prestação de serviços à comunidade. Porto Alegre: AJURIS, 1985.

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330 O rrunxusmo runtmco NAS rRÁr1cAs DE Justiça Pânrrcnwriva

siva perde sua significação. Na verdade, a sanção há de ser vistacomo mecanismo que pode ser usado, tanto de forma negativa(como no velho paradigrna de ordenação) quanto, positivamente,na projeção de um novo referencial. Certamente, o núcleo centraldo Direito comunitário não será a coercibilidade da “nonna” e aviolência da “sanção”, mas a “relação” de sujeitos coletivos quebuscam criar e garantir preceituações sobre necessidades vitais.Com a mudança de fundamentação paradigmática, a questão dasanção deixa de ser “prioridade” ou “essência” da valoração jurí-dica, sendo deslocada para um segundo plano. Antes de ser nor-ma disciplinadora, o Direito é relação, relação engendrada e ine-rente à satisfação das necessidades humanas, que passam a ser osupremo bem jurídico conquistado e garantido.

Outro aspecto que cabe levantar na apreciação do cotidiano deuma cultura jurídica informal é a posição que a Sociedade e oEstado assumem frente ao fenômeno da Justiça altemativa e seudesdobramento no nível da “regulação X regulamentação”54. Defato, como adverte Eliane B. Junqueira, o desenvolvimento daJustiça informal em países do Capitalismo industrial avançado(principalmente nos EUA) compreende tuna série de experiênci-as e práticas de resolução de conflitos mediante instânciasinformalizadas, flexíveis e sumárias, com o conseqüente fortale-cimento do poder de auto-regulação societária e a expansão deprocedimentos calcados na negociação, na conciliação, na medi-ação e na arbitragem extra-oficial. Nas nações centrais do Primei-ro Mundo, como EUA e França, a Justiça informal, já possuidorade reconhecimento público e certo grau de institucionalização,vivencia, há tempos, um amplo movimento de substituição dasfunções tradicionais clássicas de “interdição” e de “regulamenta-ção”, atribuídas com exclusividade ao Estado Moderno, por umesforço paralelo da Sociedade Civil em direção à auto-regulação,ou seja, pela estruturação organizativa com autonomia suficientepara criar novos pólos de produção legislativa e novas agênciasconsensuais de resolução dos litígios. Na verdade, ainda que haja

54 Esta problematização teórica “regulação X regulamentação”, que tem merecidoatenção da doutrina francesa, vem sendo trabalhada no Brasil por pesquisadores do Direi-to, como Eliane B. Junqueira e José Ribas Vieira (PUC/RJ).

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5.3 Cultura Juridica Informal: Formas Pertfišricas de Legitimação 331

singularidades próprias da Justiça informal entre os países cen-trais avançados, é inegável o crescente processo dedescentralização, o afastamento gradual do Estado como locusprivilegiado de fazer justiça, a desprofissionalização das agênci-as jurisdicionais e a tendência efetiva de regulação consensual dopoder societário”. Essa complexidade dinâmica de“desregulamentação estatal”/”regulação societária”, própria hojeao cenário de mn pluralismo jurídico produzido e incentivado porinstituições sócio-políticas integrantes do atual estágio deglobalização do Capitalismo avançado, não corresponde à evolu-ção e às peculiaridades da cultura jurídica informal latino-ameri-cana. Sendo assim, o reconhecimento das diferenças existentespermite apreender que a cultura jurídica pluralista na periferialatino-americana - no nível da criação das normas e da resoluçãodos conflitos - passa, obrigatoriamente, pela redefinição das rela-ções entre poder centralizador de regulamentação do Estado e oesforço desafiador de auto-regulação dos movimentos sociais, dasentidades voluntárias excluídas e das associações profissionais.Acima de tudo, porém, há dificuldades de se examinar ahistoricidade estrutural brasileira sem a presença forte e onisci-ente do Estado. Em nossa tradição, qualquer proposta envolven-do cultura juridica informal implica, por sua vez, o reexamedesmitificador de uma culttua política autoritária, centralizadorae dependente, impregnada pela constante presença do Estado. Porter-se consciência de certa trajetória ético-cultural introjetada esedimentada no inconsciente da coletividade e das instituiçõesnacionais, toma-se praticamente impossível projetar uma culturajurídica informal com a ausência total e absoluta do Estado. Aproposta de uma cultura jurídica pluralista para nossaespecificidade deve ser pensada levando em conta a adequaçãoentre determinados arquétipos ou padrões arraigados a nossa for-ma de ser e “novos” valores que terão de ser assimilados e culti-vados, como a democratização, descentralização e participação.Tais concepções alimentadas por uma pluralidade de corpossocietários emancipados haverão de coexistir e de interagir com

55 Cf. JUNQUEIRA, Eliane B., l99l. op. cit., p. 4-9; ROULAND, Norbert, op. cit.,p. 456.

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332 O Prunausmo JURÍDICO NAS PRÁr1CAs DE JUSTICA Pânriclrxrivâ

um Estado transformado, controlado e ordenado pela hegemoniada nova esfera pública local.

Assim, se o processo de informalização da justiça nos paísescentrais do Capitalismo avançado favorece o crescimento de es-paços de regulação societária fora do Estado, no Brasil, a culturajurídica altemativa vem sendo construída a partir de uma convi-vência e interação com o ordenamento jurídico estatal”. Admitiruma cultura jurídica instituinte baseada na auto-regulaçãosocietária e na força da produção legal paralela, efetivada por novossujeitos coletivos, não inviabiliza a existência de um Estado comjurisdição própria, mas fiscalizado pela Comunidade e obrigadoa reconhecer e garantir Direitos emergentes. Uma visão ampliadae aberta de pluralismo para a América Latina só pode ser pensadaa partir das singularidades dessa realidade, composta de crises einstabilidades institucionais, do pennanente dirigismo das elitese da confluência “subjacente” dos fenômenos plurais legais den-tro e fora do Estado. Logo, imaginar e instituir o contrário seriacair na irrealidade do utopismo ou do romantismo antimodemo.

De qualquer modo, a comprovação e consolidação de direitosplurais infomiais, com mais legitimidade que as decisões impositivasdo Direito Estatal, provenientes de sujeitos coletivos e segmentospopulares, são, hoje, fato inconteste. Trata-se da produção e aplica-ção de direitos advindos das práticas sociais comunitárias, inde-pendentemente de serem reconhecidos formalmente pelos órgãosou agências do Estado. A prova de tal realidade, por demais autên-tica e inovadora, que não mais se centraliza no Judiciário, nas As-sembléias Legislativas ou nas Escolas de Direito mas no interior daprópria Comunidade, são os movimentos dos sem-terra, os movi-mentos pelo Direito de moradia, os novos movimentos sindicaisetc. Com isso, aflora um “novo” saber e uma “nova” cultura quenasce das práticas sociais e que passa, dialeticamente, a orientar aação libertadora de tais corpos intermediários semi-autônomos. Agrande novidade de toda essa rica explosão de manifestaçõesnonnativas não-estatais está no caráter emancipatório de tal opção,que, segundo Wilson Ramos Filho, pode ser tanto “usar o Direitoestatal no interesse das classes populares”, quanto “valorizar o Di-

5“ Cf. JUNQUEIRA, Eliane B., 1991. op. cit., p. 19.

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5.3 Cultura Juridica Informal: Formas Periféricos de Legitimação 333

reito altemativo que é produzido pelas mesmas”57, eqiíidistantementedo Direito Positivo oficial. De todas essas manifestações depluralismo legal recente, o exemplo mais concreto de um podernonnativo legitimado e eficaz é representado pela Central Unicados Trabalhadores (CUT), instauradora também de um novo tipode sindicalismo. Neste quadro de ineficiência da Justiça estatal, aCUT advoga fonnas altemativas temporárias de resolução dos con-flitos, propondo, entretanto, como alerta Wilson Ramos Filho, “(. . .)não valorizar os elementos de juridicidade extra-estatal que se ma-nifestam no interior da classe trabalhadora (estatutos sindicais...),mas ousa convidar o patronato para, na mesa de negociações, en-gendrar um sistema jurídico, extra-estatal, que assegure aos traba-lhadores certos direitos a mais que os previstos na lei (...)”58. Emsuma, a intenção da CUT “é fazer o Direito, na mesa de negocia-ções junto com os empregadores, no marco de conflitividade in-trínseco ao modo de produção capitalista, explicitando o conflito, ena correlação de forças buscando fonnas eficazes de garantia doexercício de tais direitos”59.

Partindo da asserção nuclear de que nem todo Direito dimanado Estado e que na periferia latino-americana subsiste uma ricaprodução de juridicidade informal emanada das lutas de sujeitossociais e de movimentos plurais, aduz-se, neste locus de articula-ções contra legem, as primeiras manifestações de um Direito com-partilhado concorrente ao sistema legal positivo do Estado. EsseDireito alternativo já presente, subjacentemente, no bojo das ins-tituições latino-americanas, ainda que irrnanado mas inteiramen-te distinto do “uso altemativo” da legislação oficial, vem integraro que é designado, ao longo desta obra, de Direito comunitário. Ocerto é que na proposta da nova culturajurídica, de base consensuale pluralista, intimamente associada ao processo de emancipaçãodos setores excluídos, espoliados e injustiçados, encontra-se aplena historicidade de práticas libertárias no interior do próprioCapitalismo periférico latino-americano.

I 57 RAMOS FILHO, Wilson. Direito altemativo e cidadania operária. In: ARRUDAJUNIOR, Edmundo L. [Org.]. Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 199 l.p. 157.

5* Idem, ibidem. p. l65-166.5° Idem, ibidem. p. 170.

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334 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE Jusrtcâ PARr1c1PAr1vA

Mas, para avançar na distinção inicial da especificidade doDireito comunitário (no sentido de ser “altemativo” ao DireitoEstatal positivo) que começa a se materializar na América Latina,importa ter presente, uma vez mais, o fenômeno particular euro-peu conhecido como “uso altemativo” do Direito. A este propósi-to cabe tomar alguns critérios apontados pelo jurista colombianoJesus A. Muñoz Gomez, quem, de fato, melhor diferenciou ambasas perspectivas.

a) Primeiramente, a tendência para uma juridicidade altemati-va latino-americana “se desenvolve no âmbito da crise do Capita-lismo “periférico” ou de “dependência” “ e nas condições iniciaiscriadas pelo autoritarismo repressor dos regimes militares, de finsdos anos 60 e ao longo da década de 70, que desencadearam tor-turas, desaparecimentos, mortes, exílio, miséria, marginalidade,fome e carências vitais (saúde, educação e habitação). Por outrolado, a escola européia tem sua origem na crise sócio-econômicaque varreu o Capitalismo das nações industrializadas (principal-mente Itália e Espanha) em fins dos anos 60. De qualquer fonna,estas duas “espécies de crise implicam conflitos diferentes, e,portanto, interpretações e vias de solução distintas”.

b) Um segundo aspecto assinalado é que as duas perspectivas“(...) partem de práticas diferentes: uma da prática judicial e aoutra das lutas das comunidades por seus direitos e a assistêncialegal que lhes possa prestar para tais fins. A versão européia pre-tende reivindicar o juiz como protagonista da justiça (...)”°°. Dis-tintamente, na concepção latino-americana, “não se pensa na rei-vindicação do juiz como verdadeiro protagonista da justiça (...)”,mas sim no próprio poder de auto-regulação da comunidade. Ali-ás, “pretende-se que seja a comunidade mesma” os sujeitos legí-timos portadores diretos do Direito, “que adotem mecanismos paraa defesa de seus próprios interesses”, carências e necessidades,

6° MUÊOZ GÓMEZ, Jesus Antonio. Reflexiones sobre el uso altemativo del derecho.El otro derecho. Bogotá, n. I, p. 58-59. Ago./1988. Ainda sobre as práticas jurídicasaltemativas na América Latina, ver: JACQUES, Manuel. Una concepción metodológicadel uso altemativo del derecho. EI otro derecho, op. cit., acima, p. 19-42.

5.3 Cultura Juridica Informal: Formas Periƒëricas de Legitimação 33 5

(...) “estejam ou não reconhecidos e protegidos adequadamentepelo Direito” oficial estatal6'.

c) Por último, cabe frisar que a noção européia do “uso altema-tivo do Direito” se ocupa muito mais com a formação do jurista edos operadores jurídicos, submetendo “(...) a uma forte critica osconteúdos e a fonna como a Universidade organiza o ensino doDireito”. Já a formulação latino-americana do Direito engendradopelo poder comunitário altemativo não “(...) se preocupa tanto coma formação do jurista, mas sim em educar a comunidade, para queos segmentos populares possam participar diretamente na soluçãode suas necessidades e na organização de uma sociedade realmentemais democrática”, descentralizadora e participativa.

Portanto, o Direito comunitário concorrente na América Latinapassa do monopólio do juiz, dos intelectuais e das escolas de Direi-to para o domínio, o conhecimento e a prática popular. Compreen-de-se, assim, o porquê de a versão latino-americana vir favorecen-do o surgimento e o desenvolvimento, cada vez mais crescente, doschamados “serviços legais alternativos”, intimamente ligados aosmovimentos sociais emergentes e à defesa dos interesses das co-munidades populares, campesinas, negras e indígenas.

5.4 Pluralismo, Movimentos Sociais e os Horizontes da Justi-ça Participativa

Pelo que foi proposto e descrito até o presente, percebe-se queo marco teórico da nova cultura no Direito está intemalizado nofenômeno “prático-teórico” do pluralismo jurídico comunitário-participativo já existente em nível subjacente e que vem, agora,revelar-se através de alguns indícios, sintomas ou expressões in-fonnais ainda não de todo reconhecidos pela cultura oficial insti-tuída. Trata-se das coordenadas de uma instância política e jurídi-ca que surge como resposta à ineficácia e ao esgotamento da lega-

°* MUTÍIOZ GÓMEZ, Jesus Antonio, op. cit., p. 59.62 Idem, ibidem. p. 60. -

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336 O rrunzirismo Juníolco Nas PRÁTICAS DE Justica PARr1cii›ArivA

lidade liberal-individualista e às formas inoperantes de jurisdiçãooficial, tendo sua força na atuação compartilhada de sujeitos so-ciais instituidores de espaços públicos não-estatais. Dentre esseselementos operacionalizados, cabe privilegiar os personagenscentrais do novo cenário, portadores de “valores” que justificammodalidades libertárias da vida cotidiana. De fato, tais atores in-surgentes não só têm função central enquanto símbolos constitutivosde uma “outra” subjetividade, apta a transgredir a ordem do imagi-nário instituído, como, ainda, inserem-se como canais efetivos domodo pluralista e consensual de se fazer a “juridicidade”, rompen-do com os procedimentos de produção e aplicação nonnativa dacentralização estatal. Certamente que a compreensão desses sujei-tos coletivos deve ser encarada no contexto de rupturas e crises devalores que atravessam a vida cotidiana, a dinâmica de organizaçãopolítico e os processos racionais de conhecimento e de representa-ção social. Mas pensar nos movimentos sociais como instânciainstituinte, capaz de gerar “legitimidade” a partir de práticas soci-ais e afnmar direitos construídos do processo histórico, impulsio-na, também, perquirir sua contribuição para urna cultura jurídicadiferenciada e insurgente, levando em conta seus “princípios” ou“valores” condutores. Em outros tennos, poder-se-ia indagar sobreos “princípios” essenciais incorporados e projetados por esses agen-tes sociais que contribuem, autêntica e originariamente, para umsaber normativo compartilhado.

Ora, a cultura jurídica centralizadora e individualista produzi-da pelo desenvolvimento burguês-capitalista acaba favorecendoa produção legislativa e a aplicação jurisdicional, formalizada eritualizada em proposições genéricas e em regras tecno-estáticasimpositivas quase sempre dissociadas dos interesses, exigênciase necessidades reais de grande parcela da população. Deste modo,a cultura instituinte dos movimentos sociais introjeta, com seus“valores” essenciais (identidade, autonomia, satisfação das ne-cessidades fundamentais, participação democrática de base, ex-pressão cultural do “novo”), a influência norteadora e libertáriapara a reconceituação da Lei, do Direito e da Justiça.

Veja-se brevemente como se manifestam tais “valores” nucle-ares na edificação da nova cultura jurídica comunitária eparticipativa.

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5.4 Pluralismo, Movimentos Sociais e os Horizontes da Justiça Participativa

Nesta perspectiva, o valor “identidade”, enquanto reconheci-mento de subjetividades, experiências históricas e ações compar-tilhadas, quando projetado na mundialidade jurídica, envolve umamplo processo coletivo de consensualidade a respeito da trans-gressão e da supressão das múltiplas formas assumidas pela Lei(enquanto opressão e violência), pelo Direito (enquanto instru-mento a serviço dos interesses de segmentos privilegiados) e pelaJustiça (enquanto fator de comprometimentos e desigualdades).A “identidade” aceita e partilhada sobre o que seja “outra”juridicidade está calcada na própria legitimidade dos novos sujei-tos coletivos instituírem uma legalidade insurgente,instrumentalizada por suas próprias práticas reivindicatórias, in-teresses e necessidades cotidianas. Tal premissa acerca da “iden-tidade” comunitária permite estabelecer que a Justiça e o Direitosão conquistas do povo, extraídos de um social conflitivo e derelações de força que não se confundem com o “legal” positivadoe outorgado pelas minorias, camadas e classes privilegiadas, de-tentoras do poder político e econômico. Trata-se da concepçãopolítica comum do Direito e da Justiça, que não passa pelo “le-gal” abstrato e aleatório, pré-determinado por órgão burocratiza-do e eqiiidistante da realidade imediata e vivida.

Indo mais longe, acrescenta-se o valor “autonomia”63, que re-produz uma forma conquistada de ser ou mesmo um modo deagir, organizar-se e ter consciência da historicidade presente. Sobeste aspecto, a “autonomia” expressa o imaginário de grupos co-munitários instituintes que são responsáveis por suas ações namedida em que seu agir emancipatório resulta de suas aspirações,de suas exigências e de suas experiências interativas. Com efeito,refletir a “autonomia” implicará, então, aceitar a alteridade ética,o conflito e a diferença, cujo interregno dialético, o pluralismo,constitui uma fonte ininterrupta de modelos democráticos, nuncaprontos e terminados, mas recriados permanentemente, semprena diferenciação e na diversificação. A inserção da “autonomia”no nível da juridicidade, defendida pelos movimentos sociais,

63 A questão dos princípios da “identidade” e “autonomia” pode ser vista em:VILLORO, Luis. Estado Plural, Pluraiidad de culturas. México: Paidós, 1998. p. 63 esegs.

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3 38 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTICA PARTICIPATIVA

pennite instituir uma noção de Lei, Direito e Justiça não maisidentificada com o imaginário de “regulamentação estatal”, con-sagrado nos códigos positivos, nos documentos legais escritos ena legislação dogmática, mas numa práxis concreta associada avários e diversos centros de produção normativa de natureza es-pontânea, dinâmica, flexível e consciente. A “autonomia” não sóadvém como resposta às imposições repressoras de uma ordemjuridica injusta, comprometida com o poder e com os privilégios,como, igualmente, condiz com a eficácia de outra ordenação ins-tituída pela auto-regulação societária, uma ordenação autônoma,apta a redefinir democraticamente as regras cotidianas einstitucionais de convivência.

Tendo sublinhado a questão da “identidade” e da “autonomia”,consigna-se também um valor que se expressa como condição deefetividade material e como objetivo finalístico das “vontadescoletivas”, ou seja, a satisfação das “necessidades humanas fun-damentais”. As condições geradas pela sociedade burguesa demassa e pela produção e consumo do Capitalismo atual globalizado(em sua condição periférica ou central) propiciam determinadasnecessidades materiais e sociais que não podem ser satisfeitasnos limites institucionalizados dessas condições alienantes de vida.Sendo assim, em contextos periféricos, marcados por cenáriosfragmentados, conflitivos, de profunda instabilidade e de fortetradição autoritária-patrimonialista, o aparecimento dos novossujeitos sociais simboliza não só o rompimento com os antigospadrões de institucionalidade e a resposta flexível para a compo-sição democrática e descentralizada, como ainda retrata a forçacoletiva que, através de suas lutas, reivindicações e pressões, con-segue satisfazer necessidades transfonnadas em direitos. De fato,a própria realidade latino-americana é rica na demonstração deque as demandas coletivas e os confrontos setorializados inter-postos por segmentos comunitários e corpos intennediários vo-luntários têm como objetivo a implementação de umajuridicidadeem função das prioridades de sobrevivência e subsistência de vida(direito à tetra e à moradia, direito à saúde, educação, trabalho,segurança, dignidade humana etc.). Naturalmente que, tanto parao projeto cultural do pluralismo participativo quanto para os in-tentos imediatos dos movimentos sociais recentes, a satisfação

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5.4 Pluralismo, Movimentos Sociais e os Horizontes da Justiça Participativa

das necessidades implementa critérios para justificar a legitimi-dade, quer dos “novos direitos”, leis e concepções de justiça, querdos “novos” valores éticos de alteridade assentados em processosde racionalidade emancipatória.

Por sua vez, não menos significativo é ainda o valor “partici-pação”, que é configurado como processo contingente de interaçãoentre sujeitos individuais/coletivos e o poder comunitário legiti-mamente instituído. Por certo, o alargamento e a consolidação doespaço público, de base democrática, pluralista e descentraliza-da, só se materializam com a efetiva “participação” e controle porparte dos agentes e grupos comunitá1ios64. Ademais, aquelas for-mulações, reivindicações e propostas sobre direitos, leis e justiça,que não mais são contemplados, eficaz e competentemente, peloscanais tradicionais da cultura jurídica estatal ou mesmo destituí-dos de sentido no novo paradigma, passam a ser criados e com-partilhados por forças participativas insurgentes. As experiênciase as práticas cotidianas dos movimentos sociais acabamredefinindo, sob os liames do pluralismo político e jurídico co-munitário-participativo, um espaço ampliado que minimiza o pa-pel do °“institucional/oficial/formal" e exige uma “participação”autêntica e constante no poder societário, quer na tomada e con-trole de decisões, quer na produção legislativa ou da resoluçãodos conflitos. Por conseguinte, a “participação” propicia que acomunidade atuante decida e estabeleça os critérios do que seja“legal”, “juridico” e “justo”, levando em conta sua realidade con-creta e sua concepção valorativa de mundo.

Por último, há de se contemplar em que medida o valor cultu-ral do “novo” (como ação, como fonna de ser e como modo deorganização), vinculado às manifestações atuais dos sujeitos so-ciais emergentes, pode caracterizar uma cultura periférica insur-gente no que tange ao que seja Lei, Direito e Justiça. O “novo”,quando representado por grupos sociais comunitários, como omovimento dos “sem-terra”, refere-se à ação consciente, espon-tânea e autônoma posta em mobilização. O “novo” está no fato de

64 Sobre a “participação” e sua relação com a democracia e a cidadania, ver:JAUREGUI, Gurutz. La democracia en Ia encrucijada. Barcelona: Anagtama, 1994. p.113-l40; VILLASANTE, Tomás R. Las democracias participativas. Madrid: HOAC,1995. p. 192 e segs.

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340 O PI.uRAi.IsMo iuRiDICo NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA PARTICIPATIVA

se constituírem independentemente, com capacidade de aparece-rem “fora” das amarras e dos limites do locus político institucional.Obviamente, a problemática do “novo” não se centraliza em algoser ou não institucionalizado, mas na capacidade de transgredir alógica do paradigma individualista dominante. Essa idéia do“novo” projetada pelos movimentos sociais (outra cultura políti-ca de base, “nova” sociedade democrática autogestionária etc.),quando transposta para o fenômeno jurídico, possibilita pensaruma cultura jurídica derivada não mais das vias tradicionais doEstado -legislativo e judicial- e de procedimentos tecnoformaisisolados, mas de lutas e conquistas, materializadas em tomo decarências e necessidades humanas fundamentais, e geradasconsensualmente de todo e qualquer corpo social intermediário,com independência plena ou relativa.

-Outra discussão pertinente, quando da inter-relação dos “va-lores” essenciais identificados aos movimentos sociais com a novacultura jurídica pluralista latino-americana, é a noção, nesse con-texto, do que seja Justiça. Ainda que se possa reconhecer inúme-ros significados para a Justiça, o sentido específico que interessaoperacionalizar aqui é o da Justiça social relacionada às neces-sidades concretas por igualdade de oportunidades e condições devida. Deste modo, o conceito de Justiça presente nos movimentossociais não se reduz a uma proclamação estática, subjetiva e abs-trata, mas se faz através de lutas reais por oportunidades iguais noprocesso de produção e distribuição de bens. A Justiça, em suadimensão social e política, defme-se como virtude ordenada paraa satisfação das necessidades mínimas e equilibradas que garan-tam as condições (materiais e culturais) de uma vida boa e digna.Assim, o critério básico para a fixação de uma Justiça de cunhosocial não são os padrões nonnativos apriori, mas a historicidadeconcreta que parte de situações cotidianas, assegurando condi-ções justas e iguais de existência”. Com isso, o questionamento e

65 Subsídios para uma discussão da “justiça” sob a ótica das “necessidades” e dos“interesses” das maiorias, ver: HARVEY, David. A justiça social e a cidade. São Paulo:Hucitec, 1980. p. 81-100; HELLER, Agnes. Más allá de lajusticia. Barcelona: Critica,1990; AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Omega,1980. p. 172-182; ROIG, Maria José Añón. Necesidades y derechos. Un ensayo de

fundamentación. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1994. p. 288-308.

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5.4 Pluralismo, Movimentos Sociais e os Horizontes da Justiça Partictjoativa 34]

a contestação dos novos sujeitos coletivos incide na ruptura radi-cal a todo imaginário instituído do “justo” enquanto espaço re-presentativo do privilégio, da exclusão, do artiñcio, da discrimi-nação e da desigualdade. A compreensão da idéia objetiva de Jus-tiça, que provém de “vontades coletivas” e atravessa os horizon-tes de regulação compartilhada, projeta um significante de Justi-ça como libertação, igualdade e vida social digna.

A articulação da Justiça no novo marco de jtuidicidade, aotrabalhar com a consensualidade nas diferenças, transpõe princí-pios de igualdade de teor individualizante e fonnal, interagindonum contexto de igualdade social efetivaõó. Assim, na medida emque o critério do “justo” resulta daquilo que os grupos comunitá-rios reconhecem como tal, correspondendo eficazmente aos pa-drões da vida cotidiana almejada pelas coletividades submetidasàs relações de dominação, a noção de Justiça acaba constituindo-se em necessidade por liberdade, igualdade e emancipação.

Não se pode deixar de levar em consideração nesse ponto quedeterminados “valores” ou “princípios” caracterizadores dos no-vos sujeitos sociais são critérios necessários para compor e insti-tuir uma cultura juridica insurgente. Não menos importante é aatuação desses agentes históricos no sentido de propiciar, desen-cadear e interagir com os pressupostos estratégicos do pluralismojuridico comunitário-participativo, seja como integrantes de umaesfera pública compartilhada e democrática, seja como portado-res de outra “racionalidade” capaz de direcionar as fonnas de vidacotidiana rumo a interações de alteridade. A transposição da cul-tura monista centralizadora (calcada na representação) para a cul-tura pluralista descentralizadora (fundada na participação) acabaalcançando, nas novas identidades históricas, o ponto mais amploe culminante do complexo processo de transição e de reconstru-ção paradigmática.

66 Observar a esse propósito a pesquisa na área do Direito: MOREIRA PINTO, JoãoBatista. A cultura instituinte dos novos movimentos sociais frente à cultura jurúlica.Florianópolis: UFSC, l99l. Dissertação (Mestrado em Direito). Centro de Ciências Jurí-dicas. Universidade Federal de Santa Catarina. p. 69-76. Consultar igualmente: MELO,Osvaldo Ferreira de. O valor da justiça para a política do direito. Seqüência Florianópolis,n. I9, p. 46-56. Dez./1989; CORRÊA, Darcísio. A construção da cidadania. Reflexõeshistórico-politicas. Ijuí: Unijuí, 1999. p. 138-159.

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342 O PLURALTSMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE RIsTiÇA PARTICIPATIVA

Nos horizontes da pluralidade de corpos comunitáriosinstituintes, os movimentos sociais representam a subjetividadeinsurgente vinculada ao “espaço humano do outro” e identificadaa uma lógica inédita de convivência solidária. A manifestaçãodessa “exterioridade”, traduzida em solidariedade, emancipação,autonomia e justiça, parte do mundo vivido e da realidade con-creta pulverizada por conflitos, interesses e carências. Em outraspalavras, há que realçar, igualmente, que a sintonia entre a reali-dade viva e a preceituação regulamentadora está subordinada àeficácia social legitimadora e não à sistematicidade formal de urnalegalidade instituinte. Lembra, com razão, Camilo Borrero que,numa racionalidade emancipadora, os próprios grupos que agre-gam interesses devem assumir suas regulações como Direito, ouseja, trata-se de “considerar como Direito aquilo que socialmentese reconhece como tal”. A opção e a sobrevivência de tal modali-dade de auto-regulação da vida comunitária depende, obviamen-te, “de sua autonomia para fixar regras próprias que sejam aceitase impulsionadas por seus membros”67. Em suma, os critériosfundantes estão diretamente associados ao grau de legitimidadede interesses e ao nivel da “justa” satisfação das necessidadeshurt-alias desejadas.

horizonte de pluralidades humanas manifestadas atra-ves da “diferença”, da “alteridade” e da “autonomia”, os novossujeitos coletivos de juridicidade criam e redefinem processos“prático-teóricos” reduto de nova aprendizagem e de novo saberpedagógico libertário. Evidentemente que a lenta e gradual mu-dança paradigmática, correspondente a nova cultura político-ju-rídica pluralista, terá como principal estratégia operante uma pe-dagogia crítico-libertadora alicerçada nos “valores” e “princípi-os” emergentes. Tal instrumental pedagógico libertário compro-metido com a desmitificação, conscientização e emancipação,redefinirá o mundo da vida cotidiana e o alargamento das frontei-ras do poder societário. Nesse ínterim, a ação dos novos movi-mentos sociais, das organizações populares voluntárias e dos de-mais corpos intermediários revela-se fonte autêntica de indícios,

“J BORRERO, Camilo. A pluralidade como direito. Qual Direito? Seminários n. 16,Rio de Janeiro: IAJUP/FASE, Set./1991. p. 48-49.

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5.4 Pluralismo, Movimentos Sociais e os Horizontes da Justiça Participativa 343

referências e diretrizes materiais e culturais do novo saber e danova educação acerca do “legal”, do “juridico” _e da “justiça”. Aforça desse processo educativo de socialização será plenamenteeficaz quando for capaz de gerar irão só novas fonnas de relacio-namento entre poder societário e Estado, entre público e privado,entre informal e formal, entre global e local, mas também formasde vida cotidiana, estimuladoras de orientações baseadas em prin-cípios comunitários, como “autonomia”, “a1teridade”,“descentralização”, “participação” e “°autogestão”°°8.

Uma projeção paradigmática de juridicidade para as condi-ções do Capitalismo periférico latino-americano impõe visualizarno instrumental pedagógico emancipatório o mecanismo maisautêntico e legitimador para definir as condições de umpluralismo jurídico comunitário direcionado para uma visão demundo que compatibilize múltiplos aspectos da vida humananas suas dimensões globais, regionais, setoriais, sociais e indi-viduais. Dir-se-á que pensar hoje o pluralismo, é pensar umpluralismo difuso de novo tipo, marcado por uma perspectivaparticipativa e interdisciplinar, um pluralismo ampliado que nocontexto da complexidade periférica latino-americana e brasi-leira não rompe de todo com a presença do poder estatal, e mui-to menos a exclui.

Uma cultura jurídica instituinte representada pelos valores“identidade” dos sujeitos, “satisfação das necessidades” e “eman-cipação” impõe um imaginário diferenciado que integra adequa-damente o “jurídico”, o “político”, o “social”, o “econõmico”, o“filosófico`”, o “histórico” etc. Assim, o pluralismo como novacultura instituinte refletirá não só a junção do singular com o plu-

Õ* Sobre o papel do processo pedagógico como instrumento capaz de estimular umanova cultura e gerar novas fonnas de vida comunitária, ver: BORRERO, Camilo, op. cit.,p. 56-65; JACQUES PARRAGUEZ, Manuel. Educar para los derechos humanos y lasestrategias de defensa juridica desde la sociedad civil. op. cit.; CARCOVA, Carlos Maria.Sociedad, educación legal y pluralismo juridico. In: Direito, politica e magistratura. SãoPaulo: LTr, 1996. p. 33-58; CLÊVE, Clèmerson Merlin. Uso altemativo do direito e saberjuridico altemativo. ln: ARRUDA JÚNIOR, E. L. de [Org.]. Lições de direito alternati-vo. São Paulo: Acadêmica, 1991. p. 113 e 120; MOREIRA PINTO, João Batista, op. cit.Quanto ao sentido democrático da “autogestão”, consultar: MARKOVIC, Mihailo.Dialética de la práxis. Buenos Aires: Amorrortu, 1972. p. 78-99. .

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344 O PLURALISMO JURÍDICO NAS PRÁTICAS DE JUSTIÇA Pnnricirnrivâ

ral, mas sobretudo a contigência histórica da complexidade coma interdisciplinaridade”.

A percepção do pluralismo como “sistema de decisão complexa”implica um avanço maior resultante num “cruzamentointerdisciplinar” entre Direito e Sociedade. Nesse aspecto, falar eminterdisciplinaridade, como quer André-Jean Arnaud, significa ad-mitir e reconhecer que o Direito tem uma natureza essencialmenteplural, Luna condição que toma necessário pensar o Direito enquantoDireito relativo”. A perspectiva interdisciplinar do pluralismo juri-dico de “novo tipo” envolve a extinção dos limites formais e dasfronteiras setoriais, compreendendo a passagem e a interação de umcampo de conhecimento sobre o outro. Trata-se da “dinâmica deinterinfluência que explica não somente o fenômeno dedesregulamentação, mas também o de auto-regulamentação”'“. Ocaráter interdisciplinar do pluralismo jurídico comunitário-

°° Por sua crescente importância, a temática da “interdisciplinaridade” vem sendodestacada em inúmeros trabalhos: APOSTEL, L. et al. Interdisciplinariedad y cienciashumanas. Madrid: Tecnos/Unesco, 1983; JAPIASSU, Hilton. Interdisciplinaridade epatologia do saber: Rio de Janeiro: Imago, 1976; GUSDORF, Georges. Reflexões sobre ainterdisciplinaridade. Convivium. São Paulo, v. 28, n. l, p. 19-50. Jan./Fev. 1985;SIEBENEICHLER, Flavio B. Encontros e desencontros no caminho dainterdisciplinaridade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 98, p. 153-180. Jul./Set. 1989;ARANTES FAZENDA, Ivani Catarina. Integração e interdisciplinaridade no ensinobrasileiro. São Paulo: Loyola, 1979. p. 25-99; MARTINS DE SÁ, Jeanete L. [Org.].Serviço social e interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez, 1989; PINTO, Maria Novaes.Meio ambiente e interdisciplinaridade. Humanidades. Brasília, n. 21, p. 36-42, 1989. Aaproximidade e o cruzamento da “interdisciplinaridade” com o Direito são examinadosem algumas obras pioneiras, como: OST, François. Questions methodologiques à proposde la recherché interdisciplinaire en droit. Revue Interdisciplinaire D 'Études Juridiques.Bruxelles, Facultés Universitaires Saint-Louis, 1980; KERCHOVE, Michel Van de. [Dir.].Lilnterprétation en droit. Approchepluridisciplinaire. Biuxelles: Facultés UniversitairesSaint-Louis, 1978; ARNAUD, André-Jean. Direito e sociedade. Um cruzamentointerdisciplinar. O direito traído pela filosofia. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, l99l. p.2l9-243; ANDRADE, José Maria Tavares de et al. Interdisciplinaridade em direitos hu-manos. Direitos humanos: um debate necessário. São Paulo: Brasiliense, 1989, v. 2. p.7-38.

7° Cf. ARNAUD, André, op. cit., p. 220, 223 e 247; _ Le juriste à I'aube duXXIe. siécle. Texto apresentado no I Encontro Internacional de Direito Alternativo, reali-zado em Florianópolis, em 05/09/91, 24 p., p. 12-14; e DULCE, María José Fariñas.Sistemasjurúiicos: elementos para un análisis sociológico. Madrid: Universidad CarlosIII de Madrid/ Boletín oficial del Estado, 1996. p. 226-234.

7* ARNAUD, André-Jean, op. cit., p. 239.

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5.4 Pluralismo, Movimentos Sociais e os Horizontes da Justiça Participativa 345

participativo é resultante de sua fonna de articulação enquanto pro-cesso de efetivação prático-teórico nos horizontes interativos do Di-reito (pluralidade de fontes infonnais de produção social nonnativa),da Política (aumento do poder societário e seu controle sobre o Esta-do, tendência progressiva para a descentralização e participação debase), da Sociologia (espaços de lutas e práticas conflitivas interagidaspor novos sujeitos sociais) e da Filosofia (interpenetraçäo dos valo-res éticos da alteridade com as ações de racionalidade emancipatória).

Conceber o pluralismo, hoje, enquanto conceito nuclear de umavisão democrático-popular de juridicidade, é não descartar uma pre-ocupação basicamente interdisciplinar”. Daí decorre, segundo a pon-deração de Boaventura de Souza Santos, que não se trata mais deestudar e teorizar aquele pluralismo juridico atuante num “(...) mes-mo espaço geopolítico, de duas ou mais ordens jurídicas autônomase geograficamente segregadas. Trata-se, outrossim, de sobreposição,articulação e interpenetração de vários espaços juridicos misturados(...), quer em movimentos de crise ou de transformação qualitativanas tragédias pessoais e sociais, quer na rotina moma do quotidianosem História. (...) Vivemos num tempo de porosidades e, portanto,também de porosidade jurídica, de um Direito poroso constituídopor múltiplas redes de ordens jurídicas que nos forçam a constantestransições e transgressões. A vida jurídica é constituída pelaintersecção de diferentes linhas de fionteiras e o respeito de umasimplica necessariamente a violação de outras (...)”73, sendo que estaintersecção abrange um processo dinâmico de interlegalidade. Oenfoque interdisciplinar mostra que essa legalidade fragmentada nãoé caótica e que é possível viver num mundo de juridicidadepolicêntrica. O pluralismo legal interdisciplinar permite o trânsitoentre diferentes fronteiras, o que representa a passagem continua deurna ordenação juridica para outra”.

72 ARNAUD, André-Jean. op. cit., p. 230 e 247.73 SOUZA SANTOS, Boaventura de. Law: a map ofMisreading. Toward a postmodern

conception of law. Journal of Law and Society. v. 14, n. 3. p. 297-298, 1987. Nestaocasião, consultou-se comparativamente e utilizou-se de grande parte da tradução dotexto original (em inglés), feita por Wanda de L. Capeller, constante na obra de A. J.Amaud. O direito traído pela filosofa. op. cit., p. 230, 239.

74 Cf. SOUZA SANTOS, Boaventura de. op. cit., p. 298; Cf. ARNAUD, A. J., op.cit., p. 239.

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346 O Piurmusivio Juxioico I~IAs PRÁTICAS DE Jusriçx I›ARrIcII=-Ativa

Certamente que projetar o pluralismo como um novo paradigmainterdisciplinar do “politico” e do “juridico”, para instâncias peti-féricas do Capitalismo latino-americano, envolve também constru-ções emancipatórias que conseguem compatibilizar e integrar pri-mazia da consensualidade situadas a partir da multiplicidade dediferenças e de diversidades. Nesse contexto, o pluralismointerdisciplinar consegue, no largo espectro da historicidade de umacomunidade regional ou global, conciliar o “singular” com a“pluralidade”. Trata-se da integração democrática da variedade coma equivalência, da diversidade com a Lmidade, da diferença com asemelhança, do global com o local, integração que não exclui detodo a constatação do particular imanente à multiplicidade”.

O pluralismo jurídico projetado no espaço das sociedades cen-trais do Capitalismo tende a contemplar fenômenos aparentementedistintos mas inter-relacionados: a integração de direitos comuni-tários regionais e setoriais constitui no nível das relações exter-nas, o que já começa a ser conhecido como Direito ComunitárioIntemacional”.

Evidentemente que a especificidade da integração, quandoprojetada para a América Latina, assume um sentido de coexis-tência solidária entre sociedades históricas para se opor àmarginalidade, à espoliação e à dominação colonizadora. Acimade tudo, integração no contexto latino-americano refere-se às for-mas plurais de reação sócio-política emancipatórias que condu-zem à mobilização, participação e transformação.

75 GURVITCH, Georges. La déclaration des droits sociaux. New York: La MaisonFrançaise, 1944. p. 68.

7° A proposta de uma “integração” pluralista incorporada no projeto de um novo Direi-to Comunitário Internacional (produzido por acordos regionais), tanto no âmbito dos paisescentrais do Capitalismo avançado (Comtmidade de Estados Europeus), quanto na esfera darealidade latino-americana, encontra alguns subsídios nas seguintes referências: CAMPOS,João Mota de. Direito comunitário. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1988. 2. v.;SEITENFUS, Vera Maria P. & DE BONI, Luis A. [Coords.]. Temas de integração latino-americana. Petrópolis: Vozes, 1990; MOLL, Luiza H. M. Que Estado? Qual Direito? ConeSul - Cano Sur: Jornal de Integração. Porto Alegre, n. 6, p. 2. Jul./1990; WOLKMER,Antonio C. O terceiro mundo e a nova ordem internacional. São Paulo: Ática, 1989;Centro de Estudos de_Cultura Contemporânea. Integração e desintegração na AméricaLatina. São Paulo, n. 21, p. 106-108. Set./1990; Diversos autores. Direito e integração:eiqreriência latino-americana e européia Brasília: UnB, 1981; IANNI, Octavio. Perspec-tivas da democracia na América Latina. Humanidades. Brasília, n. 20, p. 103-104, 1989.

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5.4 Pluralismo, Movimentos Sociais e os Horizontes da Justiça Participativa 347

Em síntese, parece clara a presente proposta do pluralismojurídico de teor comunitário-participativo destinado a se contra-por e a responder às insuficiências do projeto monista legal-ir1di-vidualista, produzido e sustentado pelos órgãos do Estado moder-no. Este pluralismo ampliado e de novo tipo, além de possuir cer-tos pressupostos fundantes de existência material e fonnal, en-contra a força de sua legitimidade nas práticas sociais de cidada-nias insurgentes e participativas. Tais cidadanias são, por sua vez,fontes autênticas de nova fonna da produção dos direitos, direitosrelacionados à justa satisfação das necessidades desejadas.

Parece claro que, intemamente, tomou-se o pluralismo comoreferencial para uma dada especificidade estrutural sócio-política(Brasil), bem como para a edificação eficaz de uma nova culturademocrática participativa (do Direito e da Política), pautada no alar-gamento e controle societário, na transformação das funções tradi-cionais do Estado, na instrumentalização pedagógica crítico-emancipadora e na compreensão e relação interdisciplinar dos sa-beres. Por outro Iado, sob o viés extemo, fica a projeção de que auniversalidade do pluralismo como novo paradigma alcança as fion-teiras de sociedades diversas, favorecendo a captação de múltiplaspráticas comunitárias locais que coexistem mediante sistemas com-plexos de integração. Tais sistemas complexos de integração, res-guardando as diferenças de cada país, conseguirão criar e estabele-cer regulações comunitáiias em dimensão global, tendo em containteresses e exigências que se apresentam similares e comuns entrevários Estados. Enfim, o devir descortina as reais possibilidades deum processo de integração" que permitirá a existência plural dedireitos comunitários regionais/locais na inserção globalizada deum Direito Comunitário Intemacional. Objetivo esse que poderáconstituir-se no tema de outro livro.

ii Neste sentido, consultar: WOLKMER, Antonio C. “Integración y derechocomunitario latinoamericano”. In: Anales de la cátedra Francisco Suarez. Edición: “Lademocracia en Latinoamérica”. Granada: Universidad de Granada, n. 33, p. 231-240,1999.

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Conclusão

O novo modelo de Direito, proposto ao longo desta obra, com-partilha das discussões mais recentes no âmbito das ciências hu-manas sobre a “crise dos paradigmas”, o rompimento e a criaçãodos padrões teóricos'. Tem-se como ponto de partida a premissade que os modelos culturais, instrumentais e normativos são limi-tados e insuficientes para contemplar as novas fonnas de vidacotidiana, de organização político-social e dos parâmetros de sa-ber e de cientificidade. Constatou-se que os paradigmas que ex-plicam a condição e a possibilidade de existência, delineada peloidealismo individual, pelo racionalismo liberal e pelo fonnalismopositivista, que mantiveram o rigor lógico do discurso filosófico,científico e jurídico, têm seus substratos abalados, questionados

1 Para um aprofundamento da questão da “crise e mudança dos paradigmas”, consul-tar as seguintes referências: KUI-IN, Thomas S. A estrutura das revoluções cienaflcas.São Paulo: Perspectiva, 1975; LACLAU, Emesto. Os novos movimentos sociais e apluralidade do social. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, n. 2, p. 41-47.Out./1986; ARDITI, Benjamin. Uma gramática pós-moderna para pensar o social. LuaNova. São Paulo, n. 15, p. 105-123. Out./1988; OFFE, Claus. Trabalho: a categoria-chave da sociologia. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, n. 10, p. 5-18.Jun./1989; TOURAINE, Alain. O método da sociologia da ação: intervenção sociológica.Novos Estudos CEBRAR São Paulo, n. 3, p. 36-45. Jul./1982; ALEXANDER, JeffreyC. O novo movimento teórico. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, n. 4, p.5-28. Jun./ 1987; SOUZA SANTOS, Boaventura de. Introdução a urna ciência pós-mo-derna. Rio de Janeiro: Graal, 1989; GROF, Stanislav. A natureza da realidade - o alvore-cer de um novo paradigma. In: Além do cérebro. São Paulo: McGraw-Hill, 1988;FERGUSON, Marilyn. A conspiração aquariana. 3. ed., Rio de Janeiro: Record. s/d.

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3 SO CoNc1.UsÃo

e substituídos por novos padrões valorativos de referência, de fun-damentação e de legitimação. Trata-se de abandonar os paradigmasteóricos clássicos centrados em aprioris da produção, da unidadeEstado-Nação, projetos universais de transformação do Estado eda Sociedade, da representação de interesses institucionalizados,da ação coletiva das classes (consciência de classe), da totalidadedo “social”, do fim da história e, enfim, da fragmentação do sujei-to. Tal superação implica o direcionamento para um modelo cul-tural estruturado na proliferação de espaços políticos locais, napluralidade do “social”, nas prioridades concretas de um mundoda vida compartilhada, na emancipação e libertação de experiên-cias humanas plurais e na construção de um conhecimento que,como assinala Boaventura de Souza Santos, é sempre “aproxima-do, provisório e contextualizado” a partir da práxis concreta?Tendência que pauta pela descentralização, autonomia e autogestãodas fonnas de organização sócio-políticas e pelas novas modali-dades de relações individuais/coletivas (interclassistas), calcadasna diversidade, alteridade e informalidade de identidades (atores,agentes e movimentos) históricos.

É evidente que esse processo social e político, envolvendonovas fonnas de vida e de necessidades que ensejam a produçãode ordens diferenciadas, marcos reinventados e a singularidadede sujeitos históricos, defme as possibilidades e os limites de umaoutra representação de juridicidade. Entretanto, o reconhecimen-to de uma outra cultura jurídica só pode ocorrer sob a condição dedeslocamento, transformação e ruptura substancial com as for-mas tradicionais e centralizadoras de se fazer o “jurídico”. Daíque pensar em mudança paradigmática no Direito a partir de fim-damentos de efetividade “material” e “formal” encaminha parauma proposta “prático-teórica” de pluralismo viabilizador dascondições de um Direito comunitário. Na verdade, foi o que seprocurou demonstrar no percurso da investigação: a instituição,as características, os critérios de legitimação e as bases pluralistasde sedimentação desse Direito paralelo compartilhado.

Deixando de subordinar-se à sistematização tecno-forrnal e aosprocedimentos pré-fixados, as manifestações comunitárias da pro-

2 SOUZA SANTOS, Boaventura de. op. cit., p. 72.

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Conclusão 3 5 1

dução do Direito estão sujeitas à eficácia social, cuja dinâmicareguladora é assumida pelas próprias forças individuais ou porgrupos coletivos. Assim, o conteúdo dos novos direitos é engen-drado tendo presente aquilo que os agentes participantes e associ-ados consideram política e socialmente relevante. A força destaauto-regulação da vida cotidiana estará diretamente vinculada aograu de autonomia e identidade dos sujeitos sociais (ou corposintermediários) capazes de fixar preceituações que sejam acata-das e respeitadas por seus membros. Deste modo, o Direito, nosentido comunitário, não será obrigatoriamente visualizado como“controle disciplinar” nem como “direção” social impositiva, mascomo resposta às justas necessidades humanas, tomadas o supre-mo bem jurídico protegido e garantido.

Na discussão sobre alguns critérios que perrnitem ordenar umanova cultura jurídica pluralista e participativa importa ainda terpresente a relação que há de se estabelecer entre a “antiga” e _a“nova” legalidade. Ou seja, como evitar que os direitos commu-tários concorrentes se subordinem ao Direito Estatal convencio-nal? Quando o Direito informal, não-oficial ou comunitário, en-trar emichoque com o Direito do Estado, qual deverá prevaleçer?

A primeira indagação reflete uma preocupação influencladapelos critérios do velho paradigma que separa e subordlna o po-der da Sociedade ao poder político centralizador do Estado. Sob aperspectiva ideológica da supremacia do monismo estatal, tor-nou-se clássico, pela lógica operacional do próprio sistema, darmaior importância e validade ao Direito Positivo do Estado sobrequalquer outra expressão normativa proveniente, livre e esponta-neamente, da sociedade. Isso significa que só é legítimo o queestá dentro do procedimento da democracia representativa bur-guesa (regra da maioria, sistema representativo, processolegislativo etc.). Contudo, na implementação de um novoparadigma ocorrerá um deslocamento nas posições tradicionais:o Estado e seu Direito terão um caminho inverso ao que foi feitoaté agora, pois serão controlados e tutelados pelos novos pólosnormativos da vida cotidiana comunitária. Os interesses emer-gentes e os reclamos do todo social é que determinaram a atuaçãodo Estado e a produção de juridicidade. O Estado passará a repre-sentar mais direta e autenticamente a formalização dessas novas

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aspirações gerais e se efetivará a partir da própria Sociedade, per-dendo sentido uma separação ou linha demarcatória entre Estadoe Sociedade, entre Público e Privado. A dinâmica se desencadea-rá tendo presente uma apropriação do espaço público de fonnasolidária e cooperativa e não mais como ambição, imposição edominação. Somente modificando as regras atuais da lógicaimperante (democracia representativa, Estado como fonte do Di-reito etc.) é que os direitos comunitários deixarão de ser inferio-res, confrontados ou cooptados pelo Direito Positivo do Estado.Evidentemente que a mudança na lógica fundante não é imposta,mas conquistada. A nova lógica de mudança não envolve umacélere e radical ruptura como sempre proclamou o projeto damodernidade iluminista. Os discursos da modernidade ocidentalpautaram-se sempre por princípios a priori fundantes e por mode-los prontos e acabados como origem do “político” e do “jurídico”.E preciso ter olhos para enxergar o “novo”. O “novo” já está acon-tecendo, o problema é que os atuais modelos teóricos não conse-guem percebê-lo e retratá-lo. Há de se criar um modelo que permitareproduzir a realidade concreta e a partir daí articular uma propostade mudança. Com efeito, o “novo” está em captar o que já existesubjacentemente na realidade e não a idealização utópica, algo quenão existe, impossível de se apreender. É um vicio errôneo damodernidade concluir que a criação do “novo” implica destruiçãoe ruptura total com o presente, estabelecendo um mundo diverso eacabado. A questão é, portanto, encaminhar-se para a mudança gra-dual, preservando certas conquistas políticas e jurídicas essenciaisda própria civilização e possibilitando, concomitantemente, a cons-trução e o avanço ininterrupto de melhores condições de vida hu-mana. Neste contexto, o autoconhecimento não é um patamar jádado e voltado para um desejo individualista, mas trata-se de práti-cas que_ implicam a superação cotidiana da ambição e doegocentrismo, assentadas numa melhor convivência e numa rela-ção de solidariedade com o “outro”.

Outra indagação que pode ser levantada no processo de “transi-ção” entre o velho paradigma e o novo modelo de legalidade é oeventual choque entre o “legal oficial” e o “extralegal insurgente”.Qual das duas ordenações legais deve ser privilegiada? Natural-mente, trata-se de questionamento ainda preocupado com e preso

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Conclusão 3 53

aos critérios de supremacia do Direito estatal. Pensa-se no “novo”com a lógica da racionalidade formal e da unicidade sistemáticados “velhos” parâmetros. Algunsjuristas ecléticos tentaram dar urnaresposta a este problema através da doutrina da “graduação dapositividade jurídica” entre sistemas plurais. Autores como GiorgioDel Vecchio, Miguel Reale e Luiz F. Coelho postulararn a existên-cia de uma graduação legal de positividade que alcança a sua máxi-ma expressão no ordenamento jurídico do Estado. Isso significaque, na pluralidade das fonnas jurídicas, a positividade estatal é amais alta, mais perfeita e segura. Certamente que esta postura satis-fez em certa época do passado, mas hoje é insuficiente para expli-car as alterações nos referenciais teóricos. Sendo assim, a temáticadeve ser reordenada em dois níveis: a) nas condições da transiçãoparadigmática; b) no interior do novo paradigma.

Primeiramente, no nível da “transição paradigmática”(pluralismo aparente convivendo com o Estado), as relações en-tre o Direito formal do Estado e o Direito informal dos sujeitossociais emergentes podem ocorrer por “supremacia de um dosdois”, por “complementação” e por “interdependência”. No casode confronto aberto, a supremacia de um dos dois dependerá dascondições e do grau de avanço em que se encontra o poder deregulação societária versus poder de regulamentação estatal. Aexistência de sociedades plenamente democráticas, descentrali-zadas e participativas sob o controle de cidadanias organizadas eatuantes é um forte indício da supremacia do Direito comunitá-rio. Outra hipótese que poderá ocorrer é a complementação deum com o outro. Não sendo ainda o Direito comunitário suficien-temente forte e eficaz, poderá ser cooptado, absorvido ou integra-do ao ordenamento altamente institucionalizado do Estado. Naúltima situação, o Direito comunitário convive e aceita o Direitoestatal do mesmo modo que este reconhece e tolera as fonnasplurais de direitos concorrentes e paralelos. Trata-se daquilo queA. J . Amaud menciona como sistema de decisões marcado poruma “complexidade simultânea”3, ou seja, cada qual com sua áreade atuação, compatibilizando-se, interdependentemente, os pro-

3 Cf. ARNAUD, André-Jean. Le juriste à l'aube du XXIe Siècle. Tato apresentado noI Encontro Internacional de Direito Alternativo, realizado em Florianópolis, em 05/09/91.

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cessos de auto-regulação social com os procedimentos de regula-mentação institucional do Estado.

Quanto às conjecturas do choque entre duas formas plurais dedireitos “no interior do novo paradigma” (pluralismo autênticocom a possível exclusão do Estado), a questão não será mais entreDireito estatal e Direito comunitário, mas entre o Direito justo e oDireito injusto. Por ora, não existe consenso de que o Direito es-tatal deva impôr-se, pois este não é, necessariamente, o Direitomais justo para certos tipos de coletividade. Não se pode maisvisualizar, num conflito de leis, o Direito estatal como a instânciamais justificável, correta e legítima para exercer a hegemonia emnome da maioria social. Prevalecendo o Direito mais justo, háque estabelecer os critérios e a medida do que seja “justo”, bemcomo há que saber quem terá legitimidade para dizer o que sejamais “justo”. Nesse caso, o “justo” é definido por aquilo quecorresponde às aspirações legítimas e à satisfação das necessida-des estabelecidas democraticamente pela própria Sociedade. Nãoé preciso ir muito longe no argumento: se o Direito comunitárioexpressa diretamente as aspirações da sociedade como um todo eo Direito estatal defende os intentos de grupos privilegiados e deminorias elitistas, não há dúvida de qual deva prevalecer. O con-fronto pode ser situado em contexto bem atual: o que mais favo-rece a Comunidade, o Direito social da posse (direito de morar,plantar, viver etc.) ou o Direito da propriedade privada (o direitode possuir, de ter simplesmente por ter?).

Ademais, nesse processo toma-se imperativo redefinir os pres-supostos de sustentação da legitimidade, idéia que se dissocia dachancela estatal, dos critérios tradicionais de efetividade fonnal eda legalidade positivista, assentando-se no poder de participaçãode decisão compartilhada e no consenso do “justo” comunitáriodesejado. Para serem alcançadas tais condições teóricas e práti-cas de supremacia do “direito justo”, de uma juridicidade dife-rente, de se pensar o “novo” e a prática de uma legitimidade alter-nativa, é essencial operar com a estratégia de uma pedagogiaemancipadora. Para isso, é necessário desenvolver, também, pro-cessos racionais direcionados a modificar e a conceber um novoespaço de convivência. Trata-se de construir uma racionalidadecomo expressão da realidade histórica enquanto exigência e afir-

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Conclusão 3 5 5

mação da liberdade, emancipação e auto-determinação. Ora, so-mente uma ampla educação de base, de longo alcance, ofereceráelementos conscientes para propiciar outra racionalidade,confrguradora do “novo” no Direito e na Sociedade, bem comoinstrumentalizará valores e modelos teóricos aptos para captar eexpressar tais percepções. Trata-se de uma educação libertadoracomprometida com a desmitificação e conscientização, habilita-da a levar e a permitir que as identidades individuais e coletivasasstunam o papel de novos sujeitos da história, fazendo e refazen-do o mundo da vida cotidiana, e ampliando os horizontes do po-der societário.

Em suma, estamos numa fase de transição paradigmática, cujaproposta de pluralismo jurídico comunitário-participativo é umatentativa inicial de “sistematizar” os primeiros indícios e os sin-tomas de uma realidade que já existe informal, subjacente e sub-terraneamente. O pluralismo ampliado e de novo tipo, enquantoreferencial de validade, não é uma imposição dogmática, mas umaproposta estimuladora em constante redefinição - não tem a pre-tensão de buscar e oferecer uma resposta estanque e pronta paratudo, pois é um modelo aberto e contextualizado que se vai com-pletando na medida em que se efetiva através da cotidianidadedos consensos nas diferenças. Certamente que to desafio está emtransgredir o convencional e buscar valores emergentes,priorizando não mais a segurança e a certeza, mas os riscos...

A opção para a América Latina não será pelo pluralismo libe-ral em voga, cônsono com as novas condições de globalizaçãoimpostas pelo Capitalismo Intemacional. Certamente que a atualetapa econômica, ainda não de todo definida e acabada, atravessaum momento marcado por urna redistribuição da produção emblocos econômicos mundiais (corporações de oligopólios). Oâmbito de apropriação e concentração do capital se amplia e seevade para um espaço maior, agravando a exploração, a exclusãoe a miséria nos paises da periferia.

Naturalmente que o discurso pluralista, na esfera do desloca-mento da política econômica, em nível de blocos centrais, abre osespaços, favorecendo práticas de descentralização, infonnalizaçãoe maior participação, ao passo que, na situação de conjunturasdependentes e instáveis, a flexibilidade conduz o sistema a um

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descontrole econômico e ao recrudescimento político-social de-senfreado do “salve-se quem puder”.

Nesse contexto, faz-se apelo à ausência ou à presença “míni-ma” do Estado, de um Estado em “processo de retração”, que nãomais tutela e concilia os intentos do capital (acurnulação) e as de-mandas sociais (legitimação), como no arranjo distributivista quecaracterizava o Estado intervencionista. Na medida em que os ob-jetivos do grande capital ocupam lugar acentuadamente preponde-rante, afetando a qualidade de vida e a própria sobrevivência, osproblemas estruturais historicamente não resolvidos (como os doBrasil) assumem, nesse aspecto, caráter de extrema agudização.

Como se vê, há de se ter certos cuidados com relação à retórica“anti-Estado” no espaço conjuntural da América Latina e do Bra-sil, pois toda essa orquestração da falência estatal e da expansão dopoder privado interessa aos novos rearranjos de forças transnacionaisidentificadas com as leis do mercado globalizado. Na verdade, existeum grande equívoco, apontado por Boaventura de S. Santos, por-quanto, no cenário oficial de retração do Estado, vive-se um novotipo camuflado de expansão estatal, ou sej a, “em vez de se expan-dir através dos seus aparelhos burocráticos formais, o Estado ex-pande-se sob a fonna da Sociedade Civil. (...) através de redes soci-ais informais, o Estado toma-se, ele próprio, mais informal, maisparticularístico e menos organizado. Isto é, assurne característicasque até agora foram consideradas próprias da Sociedade Civil. Tudoisto (...) leva a concluir que se caminha para uma situação em que oEstado e a Sociedade civil se duplicam um no outro, criando cadaqual aquilo a que se opõef. Nessas condições de interpenetração,tem razão ainda Boaventura de S. Santos quando assinala que é opróprio Estado que, através de fonnas sutis de intervenção, criamecanismos tradicionalmente produzidos pela Sociedade civil,como “participação”, “consenso”, “ação comunitária” etc.

Tal cenário de “alargamento” e “aparente” expansão societáriase inscreve e se ajusta ao favorecimento de uma certa formulaçãode pluralismo em voga.

4 Cf. SOUZA SANTOS, Boaventura de. O Estado e o direito na transição pós-moder-na: para um novo senso comum sobre o poder e o direito. Revista Crítica de CiênciasSociais. Lisboa, n. 30, p. 24-25. Jun./1990.

5 SOUZA SANTOS, Boaventura de. op. cit., p. 24-25.

*__

Conclusão 3 57

Entretanto, a preocupação que cabe é saber distinguir o modelodemocrático enquanto emancipação das sociedades dependentes edos segrnentos excluídos, de urna outra prática de pluralismo queestá sendo apresentada como a derradeira saída para os intentos do“neocolonialismo” ou do “neoliberalismo”. Ora, tal modalidade depluralismo vinculado a projetos da “pós-modemidade”6 é mais umsubterfúgio para escamotear a concentração violenta do grande ca-pital nas metrópoles avançadas, excluindo em definitivo a periferiaou fazendo dela uma fonna mais perversa de colônia.

Tal pluralismo globalizado, marcado por uma cultura indivi-dualista, pragmática e desumanizadora, engendra a lógicamundializante de uma “nova” lex mercatorial.

2 Certamente que este tipo de pluralismo expressa, como adver-te Gerrnán Palacio, determinadas condições de possibilidade queestão interligadas diretamente ao processo de globalização docapitalismo atual, como: “a) a crise do modelo fordista-keynesianoe a globalização da acumulação por especialização flexível; b) odesenvolvimento do neoamericanismo; c) o debilitamento dosEstados nacionais latino-americanos junto com os processos dedescentralização administrativa; d) a crise do trabalhador de mas-sa e as novas lutas sociais”8.

Naturalmente, a este pluralismo neo-conservador se contra-põe, radicalmente, o pluralismo progressista de teor “democráti-co-participativo” proposto neste livro. A diferença entre o pri-meiro e o segundo está, fundamentalmente, no fato de que opluralismo do elitismo retrógrado inviabiliza a organização das

6 Sobre o “modismo” da pós-modernidade, ver: HARVEY, David. Condição pós-moderna. 4. ed., São Paulo: Loyola, 1994; EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-mo-demismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998; ANDERSON, Pierry. As origens da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

7 Cf. CARCOVA, Carlos. A opacidade do Direito. São Paulo: LTr, 1999. p. 109.Sobre as relações entre o Direito e a Globalização, observar igualmente: SANTOS,Boaventura de Souza. La globalizacián del derecho: los nuevos caminos dela regulacióny la emancipacián. Bogotá: ILSA, 1998; ARNAUD, André-Jean y DULCE, Maria JoséF. Sistemas jurídicos: elementos para un análisis sociológico. Madrid: UniversidadCarlos Ill, 1996. p. 271-317; FARIA, José E. O Direito na economia globalizada. SãoPaulo: Malheiros, 1999. p. 40 e segs.

3 PALACIO, Germán. Pluralismo juridico. Bogotá: IDEA/Universidad Nacional,1993. p. 19 e 21.

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35 8 CoNcLUsÃo

massas e mascara a verdadeira participação, isto é, oferece falsosespaços de articulação, enquanto que o pluralismo progressistacomo estratégia mais democrática de integração procura promo-ver e estimular a participação múltipla dos segmentos populares edos novos sujeitos individuais e coletivos.

De igual modo, pode-se diferenciar o antigo pluralismo (de matrizliberal) daquele afinado com as novas exigências históricas.

Enquanto o pluralismo liberal era atomístico, consagrando umaestrutura privada de indivíduos isolados, mobilizados para alcan-çar seus intentos econômicos exclusivos, o novo pluralismo ex-pressa funções de integração, pois une indivíduos, sujeitos coleti-vos e grupos organizados em tomo de necessidades comuns. Trata-se, como lembra Carlos Nelson Coutinho, da criação de umpluralismo de “sujeitos coletivos” fundado em novo desafio: cons-truir nova hegemonia que contemple o equilíbrio entre “predomí-nio da vontade geral (...) sem negar o pluralismo dos interessesparticulares”. Ademais, a hegemonia do “pluralismo de sujeitoscoletivos”, sedimentada nas bases de um largo processo de demo-cratização, descentralização e participação, deve também resgataralguns dos princípios da cultura política ocidental, como: o direitodas minorias, o direito à diferença, à autonomia e à tolerância”.

A percepção desse pluralismo instituinte na perspectiva lati-no-americana - em nível de criação das nonnas e da resoluçãodos conflitos - passa, obrigatoriamente, pela redefinição das rela-ções entre o poder centralizador de regulamentação do Estado e oesforço desafiador de auto-regulação dos movimentos sociais, gru-pos voluntários e associações profissionais.

Ora, a compreensão mais abrangente e atualizada do pluralismocomo “sistema de decisão complexa” envolve hoje, como procla-ma A. J . Arnaud, um “cruzamento interdisciplinar” entre anormatividade (Direito) e o poder social (Sociedade), conside-rando obviamente a interação do “jurídico” com outros camposdo conhecimento. Uma perspectiva interdisciplinar revela que ainter-relação fragmentada do legal não mais é vista como anár-

° Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. Notas sobre pluralismo. Conferência apresentadano Encontro Nacional da Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social, Out./1990.p. 2-3.

h-._

Conclusão 3 5 9

quica e que é perfeitamente admissível viver nrnn mundo dejuridicidade policêntrica'°. .

Nesse contexto, o pluralismo enquanto perspectivainterdisciplinar consegue, no largo espectro da historicidade deuma comunidade local ou global, intercalar o “singular” com a“pluralidade”, a junção democrática da variedade com a equiva-lência, a tolerância expressa na convivência do particular com amultiplicidade.

Em síntese, a conclusão a que se chega é que:

1°) em estruturas de Capitalismo periférico nos moldes da lati-no-americana, a ordem jurídica não pode ser exclusivamente re-duzida a instituições e aos órgãos representativos do monopólioestatal, pois impõe-se o reconhecimento de outras fontes infor-mais de produção legal geradas no seio da própria Sociedade epor ela e para ela orientadas;

2°) ao examinar a crise da hegemonia do modelo jurídico tra-dicional (monismo estatal individualista), delineia-se, gradual eprogressivamente, urna resposta através da sua transformação emparadigma altemativo, assentado em proposições culturais quepartam das condições e das práticas cotidianas, processadas e ins-tituídas por novos agentes históricos;

3°) nesse paradigma desejado e descrito, o ponto de funda-mentação não está mais preso aos rígidos ditames de regrastecnoformais e ordenações teórico-abstratas, mas ao processo deuma práxis marcada por horizontes de frágeis igualdades e com-posto por espaços de conflitos intennitentes;

4°) os pressupostos da nova legitimidade se dissociam da chan-cela estatal, dos critérios tradicionais de efetividade fonnal, da

'° Cf. ARNAUD, André-Jean. 0 direito traúio pela fllosoƒa. Porto Alegre: SérgioFabris, 1991. p. 219-239; SOUZA SANTOS, Boaventura de. Law: a map of misreading.Toward a postmodem conception of law. Journal ofLaw and Society. v. l4, n. 3. p. 297-298, 1987.

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3 60 CoNcLusÃo

legalidade positivista e dos modelos individualistas de jurisdi-ção, embasando-se no poder de participação, eficácia social e noconsenso do “justo” comunitário;

5°) a criação pennanente de “novos” direitos, asstunindo di-mensão individual, politica, social e difusa ou metaindividual, estádiretamente relacionada com o grau de eficácia de uma resposta àsituação ou condição de privação, negação ou ausência de neces-sidades reivindicadas por sujeitos individuais/coletivos;

6°) diante da insuficiência das fontes formais clássicas domodelo jurídico estatal, os novos movimentos sociais tornam-seportadores privilegiados do novo pluralismo político e jurídicoque nasce das lutas e das reivindicações em tomo de carências,aspirações desejadas e necessidades humanas fundamentais;

7°) as práticas pluralistas concorrentes, no âmbito da legisla-ção e da jurisdição, constituem uma cultura informal, caracteriza-da pela subsistência, tanto de manifestações normativas no interi-or da própria ordem jurídica positiva oficial, quanto à margem doDireito posto pelo Estado;

8°) à cultura legal-estatal, contrapõe-se um modelo depluralismo concebido a partir de outro modo de conceber aracionalidade e uma outra ética pelo refluxo político e jurídico denovos sujeitos - os coletivos; pelas novas necessidades - os direi-tos construídos pelo processo histórico; e pela reordenação daSociedade civil - o deslocamento normativo do centro para a pe-riferia, do Estado para a Sociedade, da lei para os acordos, arran-jos e negociações. É a dinâmica interativa de um espaço públicoaberto, democrático e compartilhado;

9°) além de possuir funções integradoras - une indivíduos, su-jeitos coletivos e grupos organizados em tomo de necessidadescomuns -, o novo pluralismo de teor progressista não inviabilizaa existência do Estado fiscalizado e controlado pelo poder localcomunitário, tampouco exclui aceitar a “questão” Estado, suastransformações e desdobramentos mais recentes;

in...

Conclusão 3 6 1

10°) por fim, o reconhecimento de outro paradigma cultural devalidade para o Direito, será representado por nova espécie depluralismo, designado como pluralismo jurídico comunitário-participativo.

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Lá...

Índice onomástico

A

ADORNO, Sérgio, 87ADORNO, Theodor, 67, 274, 275, 279AGUIAR, Roberto, 71ALFONSIN, Jacques Távora, 84ALTHUSSIUS. Johannes, 173ANSART, Pierre, 175, 176APEL, Klaus-Otto, 263, 264, 265,

266, 275ARENDT, Hanna, 260ARNAUD, André-Jean, 334, 353, 358ARRUDA JR., Edmundo L., 215ASSMANN, Hugo, 269AUSTIN, John, 52, 55

B

BARCELLONA, Pietro, 47, 62BASTOS, Aurélio W., 93BELLEY, Jean-Guy, 197BENAKOUCHE, Rabah, 81BENTLEY A., 179BERMAN, Harold J., 47BETANCOURT, Raul F., 269BOBBIO, Norberto, 50, 173, 177,

178, 186, 227, 257

BODIN, Jean, 41, 42BOFF, Leonardo, 237, 269BONALD, Louis, 177BONAVIDES, Paulo, 256BONDUKI, Nabil G., 133BONDY, Augusto Salazar, 269BORRERO, Camilo, 342BRANDÃO, Paulo de Tamo, 295, 302BRAVO, G. M., 35BRUXEL, Arnaldo, 209BURKE, Edmund, 177

CCAENEGEM, R. C. Van, 48CALDEIRA, Alejandro Serrano,

269, 272CALDERÓN GUTIÉRREZ,

Femando, 124CAMACHO, Daniel, 135CAMPILONGO, Celso F., 75, 76,

98, 140, 141, 147, 148, 149, 156,318, 319

CAPPELLETTI, Mauro, 308CARBONNIER, Jean, 197, 224, 228CARCOVA, Carlos, 194, 202, 207, 228CARRION, Eduardo K., 225, 226CARVALHO, José Murilo, 162

Page 200: Wolkmer_pluralismo==Livro=Estado de Direito

396 ÍNDICE oNoMÁs¬r1co Índice onomástico 397

CASTORIADIS, Comelius, 260 EHRLICH, Eugen, 153, 154, 184,cHAU1,Meri1eoe, 71 185, 186, 192, 193, 194, 195, 197,CHIBA, Masaji, 198, 223 198, 200, 210COELHO, Luiz Femando, 62, 155, ELIAS, Norbert, 42

214, 215, 353 ENGELS, Friedrich, 35coLE, o. D. H., 173 ENTERRÍA, Edooroo oeioio oe, 53CORREAS, Oscar, 203, 204 EVERS, Tilman, 130, 131CORTINA, Adela, 163, 255COUTINHO, Carlos Nelson, 182,

242, 358 FCRUET, Jean, 72CUEVA, Mario de la, 34

FALCO, Joaquim de A., 101, 102, 104,112, 113, 116, 212, 217, 220, 221

D FANON, Franz, 237FARIA, José E., 59, 64, 65, 71, 72,

89, 100DAHL, Robert, 179 FERRAJOLI, Luigi, 305DAHRENDORF, Ralf, 94, 95 FISCHER, Tânia, 253DALLARI, Dalmo de Abreu, 116, FOUCAULT, Michel, 266

255, 256 FRANK, André Gunder, 123, 135DAVID, René, 53 FREITAG, Barbara, 279DE LA CRUZ, Rafael, 123, 124 FROMM, Erich, 31DE LA TORRE RANGEL, Jesús

António, 49, 203DEL VECCHIO, Georgio, 186, 190, G

21l,225,353DELEUZE, Gilles, 266, 276DEMO, pedro, 253 GALBRAITH, John Kenneth, 179DERRIDA, J” 266, 276 GALEANO, Eduardo, 269DIDEROT, Denis, 51 GALGANO, Francesco, 65DOBB, Meofioe, 29, 31 GERBER› 136DOWBOR, Loaioleo, 261 GENRQ THYSO F» 261DUGUIT, Leon, 137 GIERKE, Otto von, 154, 186, 187,DULCE, Marie José F., 77 192» 210DURHAM, Eooioe Ribeiro, 91, 157, GÍRARDL-GiH1i°›235

161 GLAZER, N., 172DURKHEIM, Émfle, 94 GOHN, Maria da Glória M., 131DUssEL, Enrique D., 237, 269, G0RZ› André» 124

270, 271 GRAMSCI, Antonio, 260GRESSAYE, J . Brethe de la, 210GRIFFITI-IS, John, 186, 198, 200,

E_ 20l,202,2l6,2l7GRINOVER, Ada Pellegrini, 31 1,

312, 313EAGLETON, Terry., 235 GROCIO, Hugo, 51

L-_

GURVITCH, Georges, 154, 174, 186,192, 195,196, 197,198, 210,211, 227

GUTIERREZ, Gustavo, 40, 237, 269

H

HABERMAS, Jürgen, 67, 70, 263,264, 265, 266, 274, 275, 278, 279

HAURIOU, Maurice, 186, 187, 210HEGEL, Friedrich, 51, 227HELLER, Agnes, 122, 244, 245,

246, 247HELLER, Hermann, 45HERRERA FLORES, Joaquin, 248HERRERO, Beatriz Fernández, 209HESPANHA, Antonio M., 28, 50HINKELAMMERT, Franz, 241, 269HOBBES, Thomas, 41,42, 50, 51,

55, 185HOBSON, 178HÕFFE, Otfried, 59HORKHEIMER, Max, 67, 274, 275,

277, 279HUNGRIA, Nelson, 89

I

1NoBERo, Léon, 190

J

JACOBI, Pedro, 125, 150JAGUARIBE, Hélio, 71JHERING, Rudolf von, 52, 55, 56JUNQUEIRA, Eliane B., 306, 325, 330

K

KANT, Emmanuel, 51, 264

KÃRNEN, Hartmut, 130KELSEN, Hans, 57, 58, 89KERN, Arno Alvarez, 209KOERNER, Andrei, 100KONDER, Leandro", 231KROPOTKIN, Piotr Alekseievitch,

178KUHN, Thomas, 73, 74

L

LAMENNAIS, Felicité Robert de, 178LANZONI, Augusto, 38LASKI, Harold, 34, 37, 47, 178LESBAUPIN, Ivo, 163LEVINAS, Emanuel, 271LEVY-BRUHL, Henry, 197LISBOA, Teresa Kleba, 113, 136, 137LOCKE, John, 51LOPES, J _ R. Lima, 100, 155LUHMANN, Niklas, 263LU1<Ács,oeoz~g,24ó, 274, 275LYOTARD, J. F., 276LYRA FILHO, Roberto, 213, 214

M

MACFARLANE, Alan, 29MACINTYRE, Alasdair, 262MACPHERSON, C. B., 257, 260MAGANO, Octávio Bueno, 317MAINWARING, Scott, 146MAQUIAVEL, Niccoló, 41, 42, 50MARCH, J. G., 93MARCUSE, Herbert, 237, 274, 276,

277, 279MARESCA, Mariano, 240MARIATEGUI, José canos, 269MARQUES NETO, Agostinho

Ramalho, 287MARSHALL, T. H., 58, 161, 162MARX, Karl, 31, 32, 3.3, 35, 36, 40,

Page 201: Wolkmer_pluralismo==Livro=Estado de Direito

3 ÍNDICE oNoMAs¬rlco Índice Onamásfico

94, 95, 96, 197, 227, 237, 243, 245MATTEUCCI, Nicola, 172MELO, Osvaldo Ferreira de, 212MESQUITA, Luiz José, 210MIAILLE, Michel, 54Mo1sÉs, José Álvefo, 125MOLL, Luiza Helena M., 294, 295MONTESQUIEU (Charles de

Secondat), 51, 172MONTORO, André Franco, 210,

211, 252MOORE, Sally Falk, 186, 199, 200,

201, 216, 217MORAIS, Jose Luis Bolzan de, 299MORAIS FILHO, Evaristo de, 210MOREIRA, Vital, 47MORIN, G., 72MOURA, Clóvis, 209Mufšloz GOMEZ, Jesus A., 334

N

NAVARRO YÁ1'<rEz, Clemente J.,253,261

NEVES, Marcelo, 215N1sBEr,Robett,42, 173, 175, 177,

178NUNES, Edison, 125, 160, 242

OOFFE, Claus, 122, 127, 132, 135,

142OLIVEIRA VIANNA, Francisco J.,

87, 209OLIVEIRA, Luciano, 102, 215

P

PALAc1o, Gemtâo, 205, 206, 357

PANIZZI, Wrana M., 113PARETO, Vilfredo, 94PARSONS, Talcott, 94PASQUINO, Gianfranco, 93PAULON, Carlos A., 293PEDRO I. D., 85PEREIRA, Affonso C., 102POGGI, Gianfranco, 42, 48PORTELLI, Hugues, 260POSPISIL, Leopold, 186, 198, 199,

200PROUDHON, Pierre Joseph, 178, 227PUCEIRO, Enrique Zuleta, 74PUFFENDORF, 51PUTNAM, Hilary, 262

R

RAMOS FILHO, Wilson, 333RAWLS, John, 38REALE, Miguel, 50, 60, 62, 63,

227, 353RENARD, Georges, 187RIBEIRO, Darcy, 269RIESMAN, D., 179RIPERT, G., 72ROCHA, José de Albuquerque, 300ROCHER, Guy, 95RODRIGUES, Horácio Wanderley,

301RODRIGUEZ, Eduardo M., 206ROIG, María J . Añon, 163, 248RORTY, Richard, 262, 263ROSA, F. A.” de Miranda, 211ROULAND, Norbert, 185, 202, 229ROUSSEAU, Jean-Jacques, 51RUGIERO, Guido de, 34RUSCHEL, Ruy Ruben, 296RUSCONI, Gian R., 30, 33

SSAAVEDRA LÓPEZ, Modesto, 304

1

1

1

I

SADER, Eder, 132, 238SANTI ROMANO, 154, 186, 187,

188, 189,190,192,197, 211SANTOS, Boaventura de Souza,

144,198, 202, 214, 217, 218, 219,221, 290, 345, 356

SANTOS, Theotônio dos, 124SAVATIER, M., 72SCANNONE, Juan Carlos, 269SCHERER-WARREN,I1se, 129,

130SEGAL, A., 210s1=oRzA, W. ceeotioi, 190, 191,

192SHIRLEY, Robert W., 88SILVEIRA, Antonio da, 111SIMMEL, Georg, 94SIMON, H. A., 93SOMBART, Wemer, 32, 35SOREL, Georges, 94SOUZA FILHO, Victor Sant'Am1a

de, 114 ISOUZA JUNIOR, José Geraldo de,

214, 215, 240

T

1 TARELLO, Giovanni, 50

1

l.-.__

TARROW, Sidney, 121TEJERINA, Benjamin, 121TIGAR, Michel E., 47, 68TOCQUEVILLE, Charles Alexis

Clérel de, 172, 178TOURAINE, Alain, 94, 124, 129TRASPADINI, Roberta, 81TREVES, Renato, 197

TRUMAN, D., 179

V.

VANDERLINDEN, Jacques, 197,221, 224, 225, 226

VATTIMO, G., 276VERÁS, Moore R B., 133VERDU, Pablo Lucas, 38VIANNA, Luiz Werneck, 103VIEIRA, José Ribas, 100VIEIRA, Liszt, 162VILLASANTE, Tomás R., 176, 258VILLORO, Luis, 175VIOLA, Eduardo, 146VOLTAIRE (François Marie

Arouet), 51

W

WALZER, Michael, 177WEBER, Max, 31, 32, 33, 35, 43,

63, 64, 243, 274WECKMANN, Luis, 45WIEACKER, Franz, 48WOLFF, Robert P., 175, 177, 181,

251WOLKMER, Antonio Carlos, 80

Z

ZARKA, Ives Charles, 50ZEA, Leopoldo, 269

Page 202: Wolkmer_pluralismo==Livro=Estado de Direito

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1"*

g

Índice analítico

-

AÇÃO CIVIL PÚBLICA, 294, 295ACORDOS/ARRANJOS SETORIAIS

DE INTERESSES, 317, 321ALTERNATIVO, 287, 290, 302, 304ARBITRAGEM, 299, 300

4 juízo arbitral, 300, 311, 312AUTONOMIA, 131, 132, 337, 338 DESCENTRALIZAÇAO, 252, 253

4 autonomia relativa, 120, 144, 147 DESPLURALIZAÇÃO, 229, 230DIREITO, 26, 82, 153

4 “novos” direitos, 90, 92, 165,168, 3264 Direito da propriedade, 106, 116,117

4 da legalidade, 98, 100, 306, 3194 da representação politica, 97, 98,139, 141, 148, 149, 252

DEMOCRACIA I>ARrICII›ArIvA,257,26l,291 1

BURGUESIA, 34, 37

CARÊNCIA, 159, 160,242CAPITALISMO, 29, 34

4 dependente, 814 monopolista, 43, 57, 69, 984 periférico, 79, 81, 99, 105, 119,343

4 Direito de posse, 106, 107, 116,117

DIREITO ALTERNATIVO, 225,226, 287, 303, 306, 334, 335

DIREITO BRASILEIRO, 84, 90,208, 215

DIREITO COMUNITÁRIO, 153, 157,158, 327, 330, 334, 335, 350, 351

DIREITO MEDIEVAL, 28CONVENÇÃO C0LE"1¬1VA, 292, DIREITO MODERNO ESTATAL,

294,3l5,317 44,50C0RpORA"1¬1V1SMO, 317, 320 4 princípio da estatalidade, 60, 61CORI>Os INTERMEDIÁRIOS, 119, ~ princípio da positividade, 62. 63

121) 4 principio da racionalização, 63,65

CIDADANIA, 157, 161, 162, 253, 255COMUNIDADE, 250, 252CONCILIAÇÃO, 297, 298CONFLITOS COLETIVOS, 93, 96,

105, 107

CRISE, 70, 73,3494 da ética modema, 261, 262, 264 _” PTÍHCÍPÍO da unicidade» 61› 52

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402 ÍNDICE ANALITICO

DOGMÁTICA JURÍDICA, 69, 74 4 antigos movimentos sociais, 123,322 1

EDUCAÇÃO LIBERTADORA, 342, 4 autonomia, 131, 132, 337, 338343, 355 4 conceito, 122

ESTADO, 40, 43, 331, 332, 356 4 identidade, 130, 1314 Estado contemporâneo, 43 4 novos movimentos sociais, 121,4 Estado liberal, 43 122, 132, 133, 138, 3224 Estado modemo, 40, 42 4 relação com O Estado, 146, 147,

ESTADO DE DIREITO, 48, 49 150ÉTICA 4 relação com os partidos politicos,

4 da alteridade, 268, 272 147, 1494 do discurso, 264, 268

NECESSIDADES HUMANASFEUDALISMO, 27, 29 FUNDAMENTAIS, 91, 92, 159,PONTES DE PRODUÇÃO IURÍDI- 241, 248

CA, 151, 158 4 conceito, 159, 2424 necessidades como expressão de

GLOBALIZAÇÃO, 69, 77, 355, 357 direitos, 158, 168NEGOCIAÇÃO, 297

IDEOLOGIA, 25 'IDENTIDADE, 130, 131, 337 PARADIGMA, 73, 74, 232, 233,INSTITUCIONALIZAÇÃO, 138, 349, 354

139, 142, 143, 151 PARTICIPAÇÃO, 254, 255INTERDISCIPLINARJDADE, 344, 4 na Administração, 256

346, 358 4 no Legislativo, 255, 2564 no Judiciário, 257

JUIZADOS ESPECIAIS PLURALIDADE DE DIREITOS,4 juizados especiais, 301, 302 225, 2264 juizado de pequenas causas, 301 PLURALIDADE DO DIREITO,

JUSTIÇA, 340, 341, 354 225, 2264 cultura juridica informal, 321, 324 PLURALISMO, 170, 1834 juizes de paz, 302 . 4 conceito, 171, 1724 justiça informal, 331, 332 4 críticas, 180

JUSNATURALISMO, 53, 66, 67 4 modalidades/espécies depluralismo, 177, 180

LEGALIDADE, 105, 113 4 pluralismo filosófico, sociológico,4 Ilegalidãde, 10.7 politico e econômico, 172, 173

LEGITIMIDADE, 157, 158, 321, 326 4 pluralismo liberal, 77, 179, 181,LIBERALISMO, 37,.39 358

4 liberalismo individualista, 39 4 pluralismo medieval, 28, 184, 1854 neoliberalismo, 357 4 principios do pluralismo, 174, 177

PLURALISMO JURIDICO, 170,MEDIAÇÃO, 299 * 171, 183, 232, 344, 346MONISMO JURIDICO, 30, 48, 60, 4 causas geradoras, 219, 222

303 4 classiñcação, 223, 226MOVIMENTOS SOCIAIS, 119, 139 4 conceito, 219

Índice analítico

4 objeções e limites, 226, 229 RACIONALIDADE4 objetivos, 222 4 racionalidade comunicativa, 278,4 pluralismo jurídico no Brasil, 281208, 215 4 racionalidade emancipatória, 280,4 revisão histórica, 184, 187 2824 pluralismo juridico da globali- 4 racionalidade formal/material, 69,zação, 77, 357 . 70

PLURALISMO JURÍDICO COMU- - teoioooiizeeâo do mttooo, 321,NITÁRIO-PARTICIPATIVO, 78, 274, 275344, 347, 355, 361 REGULAÇÃO SOCIAL, 288, 330,4 democracia, descentralização eparticipação, 248, 2614 ética da alteridade, 261, 2734 novos sujeitos coletivos, 235,241

331REGULAMENTAÇÃO ESTATAL,

286, 288, 319, 330, 331

SANÇÃO, 327, 3304 racionalidade emancipatória, 273, SISTEMA DE CONSELHOS, 258,282 2604 sistema de necessidades funda- SUJEITOS COLETIVOS, 235, 241mentais, 241, 248 4 sujeito de direito, 90, 240, 241

PODER JUDICIÁRIO, 97, 101 4 sujeito eomo povo, 237, 23s4 crise da administração da 4 conceito de “novos sujeitosjustiça, 98, 99 históricos”, 2404 justiça administrativa, 102, 103

PODER LOCAL, 252, 260, 261 USO ALTERNATIVO DO DIREI-POSITIVISMO JURÍDICO, 54, 55, TO, 226, 302, 304, 334, 335

59, 66, 68PÓS-MODERNIDADE, 357 VIDA COTIDIANA, 155

nn-..._ 4--_