werner, débora. desenvolvimento regional e grandes projetos hidrelétricos (complexo madeira)

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Inc. Soc., Brasília, DF, v. 6 n. 1, p.157-174, jul./dez. 2012 157 157-174 Desenvolvimento Regional e Grandes Projetos Hidrelétricos (1990-2010): o caso do Complexo Madeira 1 Deborah Werner Mestre em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP. Doutoranda. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro, RJ. E-mail: [email protected] Resumo O trabalho analisa o processo de instalação das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira. As hidrelétricas, componentes do Complexo Madeira, irão acrescentar juntas 6.450 MW ao Sistema Interligado Nacional (SIN). A análise dos projetos hidrelétricos justifica-se por dois motivos: os empreendimentos marcam a retomada da expansão do setor elétrico após a reformulação do marco regulatório em 2004; e seu planejamento pretendeu articular a instalação dos projetos ao desenvolvimento regional em bases sustentáveis. Assume-se como hipótese que o tratamento atribuído às regiões atingidas por barragens, ao estar circunscrito no âmbito da legislação ambiental, é insuficiente para abarcar a complexidade das questões que envolvem o desenvolvimento dessas regiões. Nesse sentido, o estudo de caso do Complexo Madeira permite verificar que a despeito de o processo decisório de instalação dos empreendimentos estabelecer medidas mitigadoras e compensatórias com o intuito de viabilizar e legitimar os projetos, o que torna seus empreendedores protagonistas no processo de reestruturação das regiões, a problemática socioambiental e o modo de apropriação dos recursos territoriais a que estão vinculados evidenciam os limites dos projetos como promotores do desenvolvimento regional. Palavras-chave Desenvolvimento regional. Projetos hidrelétricos. Amazônia. Regional development and large hydroelectric projects (1990-2010): the case of Madeira Complex ABSTRACT 1 The objective this paper is to analyze the process of installation of the Santo Antonio and Jirau hydraulic Power plant, in Madeira river. They will contribute with 6,450 MW to the Sistema Interligado Nacional (SIN) [National Interconnected System]. The hydroelectric power plants take up the resumption of electric sector expansion as established in 2004. The objective of this planning intended to install projects for regional development based on sustainability. The presumption that these regions in the area of dams, under environmental legislation, will be damaged, is overcome by the benefits of issues involving the development of these regions. The study of Madeira river complex brings in the process of restructure of the regions, the socio-environmental issues, and how the appropriation of the territorial resources is carried out for promoting the regional development. Keywords Regional Development. Large dams. Amazon 1 Este trabalho apresenta questões desenvolvidas na dissertação de mestrado intitulada Desenvolvimento Regional e Grandes Projetos Hidrelétricos (1990-2010): o caso do Complexo Madeira, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Econômico do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Deborah Werner

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Desenvolvimento regional.

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    Desenvolvimento Regional e Grandes Projetos Hidreltricos (1990-2010): o caso do Complexo

    Madeira1

    Deborah WernerMestre em Desenvolvimento Econmico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP. Doutoranda. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro, RJ.E-mail: [email protected]

    ResumoO trabalho analisa o processo de instalao das hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, no rio Madeira. As hidreltricas, componentes do Complexo Madeira, iro acrescentar juntas 6.450 MW ao Sistema Interligado Nacional (SIN). A anlise dos projetos hidreltricos justifica-se por dois motivos: os empreendimentos marcam a retomada da expanso do setor eltrico aps a reformulao do marco regulatrio em 2004; e seu planejamento pretendeu articular a instalao dos projetos ao desenvolvimento regional em bases sustentveis. Assume-se como hiptese que o tratamento atribudo s regies atingidas por barragens, ao estar circunscrito no mbito da legislao ambiental, insuficiente para abarcar a complexidade das questes que envolvem o desenvolvimento dessas regies. Nesse sentido, o estudo de caso do Complexo Madeira permite verificar que a despeito de o processo decisrio de instalao dos empreendimentos estabelecer medidas mitigadoras e compensatrias com o intuito de viabilizar e legitimar os projetos, o que torna seus empreendedores protagonistas no processo de reestruturao das regies, a problemtica socioambiental e o modo de apropriao dos recursos territoriais a que esto vinculados evidenciam os limites dos projetos como promotores do desenvolvimento regional.

    Palavras-chave Desenvolvimento regional. Projetos hidreltricos. Amaznia.

    Regional development and large hydroelectric projects (1990-2010): the case of Madeira Complex

    ABSTRACT1

    The objective this paper is to analyze the process of installation of the Santo Antonio and Jirau hydraulic Power plant, in Madeira river. They will contribute with 6,450 MW to the Sistema Interligado Nacional (SIN) [National Interconnected System]. The hydroelectric power plants take up the resumption of electric sector expansion as established in 2004. The objective of this planning intended to install projects for regional development based on sustainability. The presumption that these regions in the area of dams, under environmental legislation, will be damaged, is overcome by the benefits of issues involving the development of these regions. The study of Madeira river complex brings in the process of restructure of the regions, the socio-environmental issues, and how the appropriation of the territorial resources is carried out for promoting the regional development.

    KeywordsRegional Development. Large dams. Amazon

    1 Este trabalho apresenta questes desenvolvidas na dissertao de mestrado intitulada Desenvolvimento Regional e Grandes Projetos Hidreltricos (1990-2010): o caso do Complexo Madeira, apresentada ao Programa de Ps-graduao em Desenvolvimento Econmico do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.

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    maneira pela qual o setor eltrico incorpora a questo regional, a partir de restries impostas pela Poltica Nacional de Meio Ambiente (PNMA), de 1981, que ir interferir na autonomia do setor eltrico sobre as regies.

    A segunda seo apresenta a perspectiva de desenvolvimento regional atribuda ao Complexo Madeira, defendido pelos planejadores como um projeto estruturante, ao ser capaz de promover um novo vetor de ocupao territorial em decorrncia das potencialidades proporcionadas pela montagem infraestrutural de energia e transporte e pelas compensaes socioambientais implementadas pelos empreendedores.

    A terceira seo discute os limites dessa perspectiva, ao questionar o modo de apropriao dos recursos territoriais amaznicos e o projeto de desenvolvimento a que as hidreltricas se vinculam. A quarta seo traz as consideraes finais.

    A QUESTO REGIONAL NO MBITO DO SETOR ELTRICO

    A instalao de grandes projetos hidreltricos no Brasil pode ser compreendida a partir da lgica de grandes projetos de investimento (GPI). A falncia do padro de planejamento regional gestado nas dcadas de 1950 e 1960, e cristalizado no modelo da Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), fez emergir os grandes projetos de investimentos setoriais como o modo caracterstico de interveno estatal no perodo militar. A tnica do GPI o acionamento das regies perifricas a partir da necessidade de explorao econmica dos recursos territoriais (VAINER e ARAJO, 1992).

    Os grandes projetos de investimento quais sejam, grandes unidades produtivas relacionadas ao desenvolvimento de atividades bsicas, incio de cadeias produtivas, para extrao e produo de minrios, grandes obras de infraestrutura, complexos industriais porturios, termeltricas, hidreltricas, etc. (LAURELLI, 1987, apud

    INTRODUO

    O presente trabalho analisa o processo de instalao das hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, no rio Madeira, municpio de Porto Velho, em Rondnia, Amaznia brasileira. A anlise dos projetos hidreltricos justifica-se por dois motivos principais: os empreendimentos marcam a retomada da expanso setorial aps a reformulao do marco regulatrio em 2004; e seu planejamento pretendeu articular a instalao dos projetos ao desenvolvimento regional em bases sustentveis. Estes dois elementos devem ser analisados luz dos compromissos assumidos pelos empreendedores. O carter de energia limpa e renovvel atribudo matriz energtica brasileira confrontado pelas consequncias sociais e ambientais decorrentes da instalao de grandes projetos hidreltricos, o que coloca em questionamento a capacidade dos empreendimentos se articularem ao desenvolvimento das regies em que se inserem, principalmente quando se trata da regio amaznica.

    A hiptese que pauta o trabalho a de que o tratamento atribudo s regies atingidas por barragens, ao estar circunscrito ao mbito da legislao ambiental, insuficiente para abarcar a complexidade das questes que envolvem o desenvolvimento das regies atingidas por barragens. Assim, a partir do estudo de caso da instalao das usinas hidreltricas de Santo Antnio e Jirau que essas questes sero analisadas, mostrando que, a despeito de o processo decisrio de instalao dos empreendimentos estabelecer medidas mitigadoras e compensatrias com o intuito de viabilizar e legitimar os projetos, o que torna seus empreendedores protagonistas no processo de reestruturao das regies, a problemtica socioambiental e o modo de apropriao dos recursos territoriais a que esto vinculados evidenciam os limites dos projetos enquanto promotores do desenvolvimento regional.

    O trabalho est estruturado em quatro sees, alm da introdutria. A primeira seo discute brevemente a noo de grande projeto de investimento (GPI), para ento compreender a

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    sentido que a ao estatal no perodo nacional-desenvolvimentista se caracteriza por eixos claros de acumulao de capital e de ocupao do espao territorial (TAVARES, 1999, p. 463).

    A forte expanso do setor eltrico, capaz de atender ao projeto nacional-desenvolvimentista baseado na industrializao, e viabilizado a partir da atuao da estatal Eletrobrs, criada na dcada de 1960, obedeceria ao planejamento regional aos moldes dos GPIs. medida que a expanso do setor eltrico esgotava a possibilidade de aproveitamento dos recursos hdricos prximos aos principais centros de consumo, havia a necessidade de avanar a fronteira energtica do pas, com nfase na regio Norte, em que a produo de energia eltrica barata viabilizaria a transferncia de indstrias eletrointensivas para o Brasil, com destaque para a minerao.

    No entanto, a instalao de grandes projetos de investimento em regies perifricas no foi capaz de superar as desigualdades nem a subordinao do conjunto do territrio lgica e ao ritmo ditados pelo centro hegemnico da economia, uma vez que a energia gerada no estaria relacionada ao impulso das atividades produtivas regionais. Vainer e Arajo (1992) afirmam que as regies perifricas acionadas para participar do processo de industrializao por meio do fornecimento de recursos naturais foram investidas por um movimento de conquista com o objetivo de apropriao e explorao dos recursos estratgicos atravs da mobilizao direta do territrio, de modo que o centro instalou na periferia enclaves econmicos, polticos e ambientais.

    Para os autores, os grandes aproveitamentos hidreltricos so exemplos perfeitos e acabados do padro que se expressa nos grandes projetos de investimento, em que regies, extensas bacias e reas de vrzea so transformadas em jazidas energticas. As atividades econmicas, a vida social, as populaes que configuram e ocupam esses espaos tornam-se obstculos ao processo de apropriao territorial pelo capital e pelo poder do centro e devem, consequentemente, ser removidos.

    VAINER, 1990), foram assumidos como meio mais eficaz de assegurar a difuso acelerada do progresso tcnico nas regies e capaz de superar as desigualdades regionais que marcam o desenvolvimento capitalista brasileiro.

    Conforme Arajo (1991), sob essa forma de interveno a ao estatal no mais se preocuparia em viabilizar a captura das regies para inseri-las no processo de industrializao complementar ao centro hegemnico2; seu objetivo passava a ser identificar os potenciais microlocalizados passveis de serem explorados no mbito de um programa estratgico nacional. Nesse sentido, a interveno do Estado buscou concretizar a apropriao de riquezas atravs dos grandes projetos de investimento, que se tornaram os geradores de novas regies, fazendo com que o planejamento e a gesto desses espaos viessem a ser competncia da empresa ou agncia setorial responsvel pelos investimentos. Vainer (1990) afirma que ante cada setor produtivo, cada agncia setorial, no mais se apresentam as regies, mas um espao integrado e diferenciado de localizao de investimentos e projetos, que conformam um conjunto de pontos que no se individualizam seno pelo potencial que oferecem conquista econmica.

    Assim, a partir da dcada de 1970, enquanto a atuao das agncias de planejamento do desenvolvimento regional limitava-se a incentivos fiscais e elaborao de planos muitas vezes no concretizados, a reconfigurao do territrio foi sendo realizada a partir de decises tomadas em grandes agncias setoriais, como a Eletrobrs, a Companhia Vale do Rio Doce e a Petrobrs (VAINER, 2007). Por esse aspecto, no eram os tcnicos regionais que planejavam as regies, mas os planejadores e tomadores de deciso em cada um dos macrossetores de infraestrutura. Nesse

    2 Conforme anlise de Francisco de Oliveira (2008), a respeito do que veio a ser o processo de articulao do Nordeste ao dinamismo econmico do Centro-sul, desde a criao da Sudene. Destaca-se que tal processo se diferenciou daquele presente na concepo original da Sudene, que pretendia uma dinmica autnoma de expanso econmica e industrial para o Nordeste.

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    de atuao do setor eltrico brasileiro; a presso de rgos internacionais de financiamento4 sobre as consequncias socioambientais dos projetos; e o processo de democratizao do pas. Tais eventos repercutem no planejamento do setor eltrico, que pressionado a incorporar nos projetos os aspectos sociais e ambientais dos empreendimentos.

    A perspectiva ambiental no planejamento do setor eltrico a partir da dcada de 1980, a qual foi tratada como insero regional por parte da Eletrobrs, baseou-se na ideia de no coincidncia regional entre os custos e benefcios dos projetos, ou seja, os custos eram socializados na regio de instalao dos projetos hidreltricos, enquanto seus benefcios eram apropriados pelas regies consumidoras de energia. Como forma de solucionar os conflitos advindos dessa configurao, a regio de instalao dos projetos deveria receber, por parte dos empreendimentos, melhorias infraestruturais, compensaes e medidas de mitigao aos danos sociais e ambientais (LEMOS, 1999).

    No mbito das medidas socioambientais, o setor eltrico buscaria fazer um balano entre os benefcios setoriais (energticos) e as necessidades sociais, tendo como lastro o equilbrio entre os impactos positivos e negativos dos empreendimentos. Alm disso, buscaria a internalizao no projeto energtico a usina hidreltrica dos custos relativos s aes socioambientais indispensveis implantao do empreendimento, conforme definido em lei ou como resultado de negociao (Eletrobrs, 1991, apud Lemos, 1999). Esses custos seriam definidos pelas seguintes categorias: aes preventivas, aes mitigadoras, aes compensatrias e aes que visassem explorar as oportunidades de aproveitamento mltiplo dos recursos naturais e/ou potencialidades regionais para outros setores.

    Barragens, que reuniu grupos sociais de diversas regies atingidas por barragens (VAINER, 2004).

    4 Os primeiros estudos ambientais no Brasil foram preparados para alguns dos grandes projetos hidreltricos levados a cabo pelo Estado na dcada de 1970, a partir de exigncias do Banco Mundial para a concesso de financiamentos.

    Nesse sentido, a expanso do setor eltrico a partir do planejamento e instalao de grandes projetos hidreltricos refletiu o carter desigual e concentrado do desenvolvimento brasileiro marcado, segundo Brando (2010), por descontinuidades e predao de recursos materiais, humanos e ambientais.

    No entanto, a partir da dcada de 1970, as questes ambientais ganham nfase em nvel internacional, o que ter rebatimentos nas polticas de planejamento no Brasil (SANCHZ, 2008). Com a institucionalizao da Poltica Nacional de Meio Ambiente PNMA (Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981), que estabelece instrumentos e mecanismos de insero da perspectiva ambiental no planejamento do desenvolvimento, com destaque para a avaliao de impacto ambiental e o licenciamento ambiental, o setor eltrico passa a ser alvo das polticas ambientais vigentes, momento em que o setor se posiciona em relao aos aspectos regionais dos projetos.

    De acordo com Lemos (1999), a estrutura estabelecida desde a dcada de 1960, com a criao do Ministrio de Minas e Energia e da Eletrobrs, garantiu ao setor eltrico uma estrutura institucional capaz de conceder enorme autonomia e capacidade de interveno sobre os territrios e suas dinmicas sociais e ambientais. Como consequncia, por 20 anos o setor eltrico atuou de modo a deter total controle sobre seus espaos de interveno, isento de preocupao com as questes sociais e ambientais, uma vez que o que imperava era o controle real e inquestionvel de interveno sobre o espao regional. Tal postura s viria a ser arrefecida a partir do estabelecimento da Poltica Nacional de Meio Ambiente.

    s alteraes institucionais, somam-se a intensificao dos conflitos a partir da emergncia de movimentos sociais3, que questionam o modo

    3 No caso do setor eltrico, diversas experincias de resistncia em vrias regies do pas levou constituio de um movimento nacional, o Movimento de Atingidos por Barragens MAB, que surge no incio da dcada de 1990, a partir do I Encontro Nacional de Atingidos por

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    2020), sendo que a maior expanso do parque hidreltrico se concentra na regio Amaznica6.

    No entanto, o conturbado processo de ocupao territorial do espao amaznico, relacionado aos grandes projetos de investimentos estatais como hidreltricas, rodovias, indstrias mnero-siderrgicas, e projetos agropecurios, leva ao questionamento acerca da retomada da expanso do setor eltrico brasileiro por meio de grandes projetos hidreltricos na bacia amaznica como favorvel ao processo de desenvolvimento da regio. Com intuito de reverter essa tendncia, o Complexo Madeira foi defendido sob argumentos referentes sua capacidade de engendrar um novo processo de ocupao territorial, aspectos enfatizados pela Avaliao Ambiental Estratgica (AAE) e pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA)7, ambos elaborados pelos proponentes dos projetos, Furnas Centrais Eltricas S.A. e Construtora Norberto Odebrecht S.A8., e analisados a seguir.

    6 Conforme o PDEE 2008-2017, 64% do potencial hidreltrico planejado sero supridos pela regio at 2017 (Brasil, 2009). As hidreltricas de Santo Antnio, Jirau e Belo Monte correspondero em 2020 a 10% da capacidade instalada do Sistema Interligado Nacional (SIN). Ao serem includos nesse conjunto, os empreendimentos dos rios Teles Pires, Tapajs e Jamanxim, planejados pela Empresa de Pesquisa Energtica (EPE), representaro a participao de todas essas usinas em 14% do total, no final do horizonte de planejamento (BRASIL, 2011).

    7 O Estudo de Impacto Ambiental (EIA), determinado pela Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981, um documento tcnico-cientfico que se compe de diagnstico ambiental dos meios fsico, bitico e socioeconmico; anlises dos impactos do projeto e suas alternativas; definio dos impactos negativos e elaborao de medidas mitigadoras; e programas de acompanhamento e monitoramento a serem implementados pelos empreendedores. Para dar publicidade, este documento subsidia o Relatrio de Impacto Ambiental (Rima), elaborado de modo adequado ao fcil entendimento da populao. A Constituio Federal de 1988, em seu artigo 225, inciso IV, recepciona o EIA.

    8 Em 2001, Furnas Centrais Eltricas S.A. e Construtora Norberto Odebrecht S.A. obtiveram a concesso por parte da Agncia Nacional de Energia Eltrica Aneel de registro ativo para o desenvolvimento de Estudos de Inventrio e, posteriormente, estudos de Viabilidade do rio Madeira, no trecho de 260 km, entre a Vila de Abun, na divisa com a Bolvia, e a cachoeira de Santo Antnio, prximo cidade de Porto Velho (Furnas, 2005).

    O caso do Complexo Madeira referente s hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, localizadas no rio Madeira, em Porto Velho, Rondnia revela que a retomada da expanso setorial aps o marco regulatrio de 20045 guarda relao com o modo de apropriao dos recursos territoriais que marcaram o perodo desenvolvimentista, ao enfatizar no processo decisrio a capacidade dos projetos hidreltricos de superar o atraso e promover o desenvolvimento regional. A novidade no modo de interveno conferida pelos argumentos que atribuem sustentabilidade ambiental aos projetos.

    O CARTER ESTRUTURANTE DO COMPLEXO MADEIRA

    O processo de integrao da Amaznia ao mercado nacional foi consolidado a partir da dcada de 1970 sob o planejamento centralizado, que realizou a abertura da Amaznia ao processo hegemnico de acumulao e permitiu que a valorizao de capital se realizasse atravs do enfoque setorial, que buscava a apropriao de recursos especficos do territrio (LEMOS, 2007). Obedecendo a essa lgica, o espao regional Amaznico viria a ocupar a posio de jazida mineral e energtica na diviso regional de trabalho do pas.

    A instalao do Complexo Madeira, formado pelas hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, no rio Madeira, no municpio de Porto Velho, Rondnia, que juntas acrescero 6.450 MW de capacidade instalada ao Sistema Interligado Nacional (SIN), inaugurou um novo processo de expanso do setor eltrico brasileiro a partir de grandes empreendimentos hidreltricos na Amaznia, sob novas bases institucionais resultantes do marco regulatrio de 2004. Os Planos Decenais de Expanso Energtica (PDEE) recentes expressam o carter de jazida energtica conferido Amaznia. Conforme o PDEE 2011-2020, a capacidade de gerao hidrulica ser elevada no Brasil em 39% (de 82.939 MW, em 2010, para 115.123 MW, em

    5 Leis 10.847 e 10.848, de 15 de maro de 2004.

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    Avaliao Ambiental Estratgica (AAE)

    A Avaliao Ambiental Estratgica (AAE) pretendeu ser um estudo mais amplo do que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), documento exigido pela legislao brasileira, pois analisou os projetos propostos a partir de relaes territoriais mais extensas, inclusive internacionais. Conforme o estudo, o Complexo Madeira deve ser compreendido como um capital fsico e institucional que, diante das dimenses e funes no aparelho produtivo regional e nacional, promover por si s forte impulso e nova trajetria de desenvolvimento para a regio (FURNAS, 2005).

    O carter estruturante do Complexo Madeira relaciona-se com suas potencialidades energticas e

    hidrovirias. Com relao hidroeletricidade, alm das usinas de Santo Antnio (3.150 MW) e Jirau (3.300 MW), foram planejados os aproveitamentos hidreltricos de Guajar, projeto binacional na fronteira do Brasil com a Bolvia, no rio Guapor (3.000 MW); e a barragem de Cachuera Esperanza (600 MW), no rio Beni, em territrio boliviano. Acompanham os projetos as redes de linhas de transmisso para a conexo do sistema nacional interligado, atravs da linha de transmisso Porto Velho Araraquara, com 2.350 km de extenso; e a rede de hidrovias que se estenderiam pelos territrios da Bolvia, do Peru, atravs dos rios Madeira, Guapor, Mamor, Beni e Madre de Dios, totalizando 4.155 km de vias navegveis entre Brasil, Bolvia e Peru (Furnas, 2005).

    FIGURA 1O Complexo Madeira composto por quatro usinas hidreltricas: Santo Antnio, Jirau, Guajar e Cachuera Esperanza

    Fonte: SWITKES, 2008.

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    Desenvolvimento Regional e Grandes Projetos Hidreltricos (1990-2010): o caso do Complexo Madeira

    Com a consolidao da infraestrutura hidroviria haveria novo vetor de dinamismo econmico, que ao atrair cargas procedentes de vrias partes dos trs pases (Brasil, Bolvia e Peru), induziria a explorao do territrio em novas e variadas frentes produtivas, pela disponibilidade de transporte barato. Com relao ao contexto internacional, as hidrovias, que alcanariam a fronteira Brasil-Bolvia em direo ao interior do territrio boliviano e o territrio fronteirio Peru-Bolvia, contribuiriam para a proposta de integrao fluvial sul-americana, da Comisso Andina de Financiamento (CAF), que envolve a integrao fluvial interconectada por transporte multimodal, das bacias do Orinoco, Amazonas e Prata, no total de 50.000 km navegveis.

    Nesse sentido, o Complexo Madeira uma componente fundamental para a integrao continental proposta pela Iniciativa para a Integrao da Infraestrutura Regional Sul Americana (IIRSA), iniciativa de doze pases9 para promover o desenvolvimento infraestrutural de transporte, energia e comunicaes sob uma viso regional de integrao (IIRSA, 2011). Portanto, a proposta de desenvolvimento expressa no Complexo Madeira est relacionada integrao competitiva da regio amaznica aos mercados globais, de modo que a reduo nos custos de transporte e energia viabilizaria a exportao de produtos e proporcionaria o desenvolvimento de novas atividades produtivas na regio, inclusive a indstria, outrora incapaz de se desenvolver em decorrncia do dficit na oferta de energia, conforme o estudo (FURNAS, 2005).

    Aqui cabe um contraponto: apesar de a Avaliao Ambiental Estratgica (AAE) do Complexo Madeira explicitar a potencialidade de nova dinmica econmica para a regio a partir do

    9 Os pases so Argentina, Bolvia, Brasil, Chile, Colombia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. A coordenao da proposta fica a cargo da Comisso Andina de Financiamento (CAF), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Banco Mundial e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES).

    O estudo estabeleceu perspectivas para uma nova dinmica territorial e setorial desencadeadas pelo Complexo Madeira, decorrentes de investimentos em energia e transporte regional, e pela maior presena do Estado exercendo a gesto territorial, alm de suas funes tpicas que envolvem a legislao, regulao, e execuo de polticas, com destaque para as sociais. Desse modo, a implantao do Complexo Madeira poderia promover maior governana, decorrente da atuao da matriz institucional como um todo, pblico e privada. Considera-se que, a despeito dos aspectos buscados, poderia ocorrer a reverso e/ou alcance de resultados sociais e ambientais aqum do esperado. Positivos ou negativos, os resultados dependeriam do processo social e da participao dos diversos agentes envolvidos.

    As vantagens do projeto envolveriam a contribuio para a manuteno da poltica setorial em torno da matriz energtica limpa, pois proveniente de fonte renovvel, produzida em larga escala, competitiva e de interesse para o pas; o estabelecimento de um novo padro tecnolgico na gerao em rios de plancie, as turbinas tipo bulbo; e a possibilidade de contribuir para a integrao regional do sistema interligado nacional ao extremo oeste do pas e pases vizinhos, como Bolvia e Peru.

    Com relao s hidrovias, suas vantagens decorrem do fato de o rio ser uma alternativa natural de transporte de cargas e pessoas, principalmente na regio amaznica, que j tem as cidades de Manaus, Porto Velho, Belm e Santarm como centros importantes para as malhas hidrovirias. Nesse sentido, o Complexo Madeira potencializaria a vocao natural do rio Madeira para a navegao. Ainda, os investimentos em hidrovias seriam favorveis ao processo de planejamento e gesto territorial, pois no se configurariam em

    potencializadores de ocupao desordenada, como se verificou a partir de investimentos rodovirios na dcada de 1970 (FURNAS, 2005).

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    infraestrutura; gerao de emprego; elevao dos recursos financeiros para Municpio, Estado e Unio, decorrentes da Compensao Financeira pela Utilizao dos Recursos Hdricos para fins de energia eltrica10; s compensaes socioambientais e financeiras que permitem o aprimoramento da oferta de servios pblicos e elevam os recursos disponveis para investimentos pblicos; e integrao regional proporcionada pelo capital fsico expresso na infraestrutura energtica e de transporte, aspecto enfatizado pela Avaliao Ambiental Estratgica.

    Por esses aspectos, os empreendimentos propostos revelariam sua importncia enquanto capital fsico a contribuir para alterar significativamente as tendncias de desenvolvimento de grande parte da poro sudoeste da regio amaznica, o que possibilitaria a atrao de investimentos complementares que, em conjunto, provocariam efeitos multiplicadores de renda e emprego mais duradouros, trabalhando a favor da incluso social (FURNAS, 2005).

    Para discutir tais questes, o EIA estabeleceu dois cenrios para a regio de instalao dos projetos (FURNAS, 2005, Tomo C:IV-1). O primeiro considerou as tendncias de desenvolvimento da regio sem os empreendimentos e destacou o intenso processo de ocupao que caracteriza a

    10 A Compensao Financeira pela Utilizao de Recursos Hdricos foi instituda pela Constituio Federal de 1988 e se refere ao percentual que as concessionrias de gerao hidreltrica pagam pela utilizao de recursos hdricos. A Agncia Nacional de Energia Eltrica (Aneel) gerencia a arrecadao e a distribuio dos recursos entre os beneficirios: Estado, Municpios e rgos da administrao direta da Unio (Aneel, 2012). Com relao s hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, durante a fase de operao Unio, Estado e Municpio recebero R$ 55 milhes/ano relativos Jirau, sendo R$ 25 milhes/ano para o municpio de Porto Velho; R$ 25 milhes/ano para o estado de Rondnia; R$ 5 milhes/ano para a Unio; e R$54,8 milhes/ano, relativos a Santo Antnio, sendo R$ 24,9 milhes/ano para o municpio de Porto Velho; R$ 24,9 milhes/ano para o estado de Rondnia; R$ 5,0 milhes/ano para a Unio.

    Complexo Madeira, o prprio estudo destaca que, com relao estrutura produtiva brasileira, o transporte hidrovirio vir a favorecer a produo de gros, com nfase na produo de soja do oeste do Mato Grosso, em torno do Campo Novo de Parecis e da regio sul de Rondnia, centrado em Vilhena. Este aspecto ser importante para compreender os pontos crticos do Complexo Madeira.

    Com relao sustentabilidade ambiental, o Complexo Madeira se vincula ampliao da matriz energtica em bases renovveis, bem como ao uso de nova tecnologia adotada para explorao de recursos hdricos na Amaznia, a partir da utilizao de turbinas tipo bulbo. Esses equipamentos so apropriados para a operao de usinas de baixa queda, o que permite a reduo significativa da rea alagada, favorecendo a construo de usinas em rios de plancie, como os rios amaznicos.

    Os aspectos mencionados seriam combinados com a promoo do fortalecimento institucional a partir das articulaes pblico-privadas no processo de reordenamento territorial.

    Estudo de Impacto Ambiental (EIA)

    A despeito de a Avaliao Ambiental Estratgica (AAE) analisar o Complexo Madeira a partir de seu projeto mais amplo, com quatro hidreltricas, hidrovias e linhas de transmisso, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), documento institucionalmente reconhecido pela legislao ambiental brasileira como necessrio para subsidiar a tomada de deciso acerca da instalao de projetos ambientalmente impactantes, ir tratar dos aspectos especficos da construo das hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, de modo que os demais projetos foram postergados a outro processo decisrio.

    Segundo o EIA, a instalao do Complexo Madeira est relacionada modernizao da

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    infraestruturais em si, como pelas aes engendradas pelos empreendedores no mbito das compensaes ambientais pelos impactos. Desse modo, os empreendimentos engendrariam novo padro de ocupao territorial e assumiriam a funo de polo de desenvolvimento regional a partir da reorganizao territorial com o atributo da sustentabilidade.

    O cenrio que caracteriza a regio com os empreendimentos considera como efeitos adversos: a alterao da estrutura social e poltica local a partir da atrao da populao dos povoados comprometidos pelos empreendimentos Teotnio, Amazonas e Mutum-Paran para Porto Velho; a presso sobre Terras Indgenas; supresso de vegetao para a instalao dos empreendimentos; e a alterao da ictiofauna (peixes) em termos de diversidade e abundncia. O documento atesta, entretanto, que haver um conjunto de medidas a serem adotadas pelos empreendedores para a correo, mitigao ou compensao de inmeras alteraes que os empreendimentos causaro aos ambientes naturais da referida regio e sua populao (FURNAS, 2005, Tomo C, IV-7). Afirma ainda que, apesar de a regio em foco sofrer com as presses antrpicas, que podem se agravar com os empreendimentos, testemunhar

    alm de compensaes sociais notveis, a oportunidade de proteo de importantes reas florestais, onde podero ser aplicados recursos para sustar a predao sistemtica nelas verificada e, ato contnuo, frear o desmatamento (FURNAS, 2005, Tomo C, IV-7, grifo nosso).

    Tambm a compensao financeira vinculada utilizao dos recursos hdricos da regio e o dinamismo econmico engendrado pela instalao dos investimentos resultariam na elevao de recursos para investimento na melhoria dos servios pblicos e preservao ambiental.

    Como pode ser verificado no caso do Complexo

    parcela do territrio do Estado de Rondnia para a qual foram planejados os empreendimentos, marcada pela incorporao de reas para as atividades agrcolas e velocidade na apropriao dos recursos naturais, processo intensificado a partir da dcada de 1970, com os projetos de colonizao ao longo da BR-364.

    afirmado pelo estudo que as rodovias representaram mecanismos estruturantes de um padro de ocupao territorial com enfoque exgeno regio, que desconsiderou as questes socioambientais, as caractersticas locais e as formas de organizao territorial pretritas infraestrutura rodoviria implantada. Como conseqncia, ocorreu a concentrao populacional principalmente ao longo da BR-364, com intensificado processo de desmatamento, e em ncleos de colonizao associados malha viria, rompendo com o padro de ocupao ao longo dos cursos d`gua.

    A potencialidade econmica da regio sem os empreendimentos estaria relacionada ao reforo e aprofundamento das relaes prexistentes, quais sejam, explorao madeireira, agropecuria e extrao mineral, sem alteraes no padro de ocupao vigente. Somam-se a isso, a reproduo do padro dos servios bsicos, em decorrncia das perspectivas de investimento, incapazes de superar a precariedade na regio; e a degradao ambiental.

    O segundo cenrio buscou definir a qualidade ambiental e a qualidade de vida da populao a partir da instalao dos aproveitamentos hidreltricos de Santo Antnio e Jirau, e os vinculou ao desenvolvimento regional, ao promoverem a melhoria da qualidade ambiental; a superao de gargalos na economia regional, como energia e transporte; a ampliao e melhoria dos servios bsicos; a gerao de novos postos de trabalho; e o aperfeioamento do padro cientfico. Tais aes decorreriam tanto do dinamismo econmico proporcionado pelos investimentos

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    benefcios de circuitos de acumulao externos regio.

    Na dcada de 1970, esse processo esteve relacionado implantao do que seria o maior complexo integrado minerrio do mundo, com infraestrutura de energia e transporte, a partir de negociaes entre o governo brasileiro, atravs da ento estatal Companhia Vale do Rio Doce, e de um grupo japons de produtores de alumnio. O projeto demandou a construo da hidreltrica de Tucuru, o que levou criao da estatal Eletronorte (BERMANN, 1996). Os recentes projetos hidreltricos, implementados aps a reestruturao setorial iniciada na dcada de 1990, que culmina no marco regulatrio de 2004 que permitiu a atuao de grupos privados no segmento de gerao de energia eltrica , contam com multinacionais dos setores de energia e minerao como scias nas parcerias pblico-privadas11.

    A instalao de grandes projetos no perodo desenvolvimentista, apesar de ter promovido a desconcentrao industrial de setores relacionados explorao de recursos naturais, por localizarem-se em regies perifricas, no foi capaz de reduz as disparidades regionais. De fato, acabou por determinar a captura das regies perifricas para a apropriao de recursos territoriais como minerais e energticos por parte dos centros hegemnicos nacionais e/ou internacionais, ao passo que muitas vezes promoveu nas regies de implantao dos grandes projetos uma profunda desestruturao das atividades econmicas preexistentes, redundando no crescimento desordenado da populao, desemprego, favelizao, marginalizao social e degradao ambiental.

    11 Alguns exemplos so o Consrcio Energia Sustentvel, responsvel por Jirau, em que a principal acionista a multinacional Suez Energy South American Participaes, Ltda., com 50,1% de participao; o Consrcio Norte Energia, responsvel por Belo Monte, no rio xingu, que conta com a participao da mineradora Vale, com 9%, e da siderrgica Sinobrs, com 1% de participao societria; e o Consrcio Estreito Energia, responsvel pela hidreltrica de Estreito, no rio Tocantins, que conta com a participao da GDF Suez (40,07%), e das mineradoras Vale (30%), Alcoa (25,49%).

    Madeira, o setor eltrico, a partir do planejamento de grandes projetos hidreltricos, guarda atributos do que Vainer (2005, apud Lemos, 2007) aponta como o modo contemporneo de estruturao e gesto do territrio. Conforme o autor, o carter (re)estruturante se revela nos grandes projetos e nas polticas macrossetoriais, a exemplo do setor eltrico, em decorrncia do porte dos empreendimentos, da dimenso dos recursos mobilizados humanos, materiais, financeiros, espaciais e ambientais e das

    transformaes produzidas no meio ambiente, no espao e na sociedade.

    Ressalta-se ainda que, pelo diagnstico realizado e medidas propostas, o EIA pode ser considerado um instrumento de interveno regional no escopo dos grandes projetos hidreltricos, o que refora o protagonismo dos empreendedores nas regies de instalao dos projetos.

    No entanto, a despeito dos argumentos que enfatizam os aspectos favorveis ao Complexo Madeira enquanto vetor de novo ciclo de desenvolvimento para a regio, medida que se anunciam novos investimentos do setor eltrico, com nfase na regio Amaznica, so levantadas questes que remetem ao processo de migrao e urbanizao desordenada, inviabilizao de atividades econmicas, processo de deslocamento compulsrio e degradao ambiental relacionada aos empreendimentos, o que coloca em questionamento o carter de energia limpa e renovvel atribuda hidroeletricidade e a compatibilidade dos projetos s especificidades sociais, econmicas e ambientais do territrio amaznico, aspectos analisados a seguir.

    DESENVOLVIMENTO REGIONAL EM QUESTO

    Na Amaznia, a apropriao dos recursos para fins de energia eltrica corrobora as afirmaes de Vainer e Arajo (1992) quanto apropriao e mobilizao produtiva de recursos naturais em

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    Os proponentes afirmaram apoio gerao de renda para garimpeiros, agricultores, pescadores e moradores ribeirinhos, sem o detalhamento de como isso ocorreria. Destacaram ainda a melhoria nas condies dos servios pblicos, com nfase nos servios de sade; e elevao na receita tributria do municpio, do estado e do governo federal, durante a fase de construo, e aps, com as compensaes financeiras. Apesar da excluso

    das obras de navegabilidade do rio Madeira no processo de licenciamento, o projeto elaborado permitiria sua retomada quando houvesse interesse do governo brasileiro e empresrios.

    Sobre a contratao de mo de obra, os proponentes do projeto expuseram a prioridade em se contratar mo de obra local a partir de investimentos de capacitao, durante dois anos antes do incio da instalao. Para tanto, foram firmados

    convnios entre os empreendedores e instituies especializadas do Servio Social da Indstria (SESI) e Servio Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac).

    Os aspectos negativos advindos do aumento populacional em decorrncia das obras seriam compensados com aspectos positivos relacionados ao aumento dos recursos em circulao e consequentemente dos investimentos. Portanto, o Complexo Madeira seria capaz de romper com o histrico de degradao social que marca os grandes projetos hidreltricos.

    Entretanto, no momento da audincia pblica, os questionamentos por parte da populao (representantes de classe, sindicatos, trabalhadores rurais, indgenas, acadmicos, entre outros) envolveram questes que explicitaram dvidas e incertezas quanto aos benefcios dos projetos (WERNER, 2011).

    Com relao instalao do Complexo Madeira, o discurso desenvolvimentista retomado sob a lgica do GPI. As medidas de mitigao, compensao e melhoria na qualidade de vida da populao, somadas elevao na oferta de emprego, dinamizao econmica propiciada pelos investimentos e oportunidade de diversificao das atividades produtivas, conferiram legitimidade s hidreltricas do Madeira enquanto propulsoras do desenvolvimento regional.

    Na audincia pblica de Jaci-Paran12, o Complexo Madeira - neste momento circunscrito s hidreltricas de Santo Antnio e Jirau - foi apresentado como uma oportunidade para Rondnia iniciar novo ciclo de desenvolvimento regional, com apoio explcito de polticos locais, ao favorecer a gerao de emprego, atrao de indstrias e elevao na arrecadao dos recursos. Ainda, os projetos estariam em consonncia com as prerrogativas de sustentabilidade ao contribuir com a matriz energtica limpa e renovvel, capaz de livrar o pas do racionamento energtico, como o ocorrido em 2001.

    O municpio de Porto Velho seria beneficiado com investimentos infraestruturais de adequao, aprimoramento e recomposio. Por parte dos proponentes, Furnas e Odebrecht, foi destacado o compromisso com o remanejamento da populao da rea de formao dos reservatrios, realocao e indenizao das perdas e a recomposio econmica das atividades inviabilizadas. Os empreendedores apoiariam o desenvolvimento regional a partir da capacitao dos setores econmicos locais, para que se estruturassem e ampliassem sua capacidade produtiva.

    12 As atas das audincias pblicas das hidreltricas de Santo Antnio e Jirau esto disponveis no site do Ibama, no entanto, sem que as discusses na ntegra sejam apresentadas. Apenas as discusses da audincia pblica de Jaci-Paran, realizada em 10 de novembro de 2006, foram obtidas na ntegra com a empresa Furnas Centrais Eltricas S.A.. Essa foi a primeira audincia do processo de licenciamento das usinas hidreltricas de Santo Antnio e Jirau, aps a suspenso do processo por parte do Ministrio Pblico Estadual.

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    legislao brasileira, as prprias exigncias anexadas s licenas ambientais, em forma de condicionantes, reforam o carter legitimador que as medidas de mitigao e compensao expressam, pois vinculam a instalao dos empreendimentos oferta de servios bsicos e oportunidades no existentes na ausncia dos empreendimentos, o que favorece sua aceitao perante a populao. Nesse sentido, o compromisso por parte do empreendedor em contribuir com os investimentos infraestruturais e melhoria dos servios pblicos e as potencialidades na gerao de emprego e renda atuam como fatores de legitimao dos empreendimentos, de modo a justificar a sua necessidade para a regio (WERNER, 2011).

    No entanto, imperaram no processo de licenciamento dos empreendimentos do Madeira a incerteza e a insegurana quanto efetiva concretizao das aes propostas pelo projeto no perodo de licenciamento prvio13, tanto pelo fato de o empreendedor ser oculto, quanto pela inexistncia detalhamento das medidas a serem executadas, o que s ocorre aps a realizao do leilo de energia, quando se estabelece o empreendedor dos projetos, responsvel pela elaborao do Projeto Bsico Ambiental (PBA), que ir detalhar as medidas mitigadoras e compensatrias.

    Souza (2009) afirma que os estudos de impacto servem mais para legitimar o empreendimento do que para identificar os riscos, prejuzos e consequncias para as sociedades e meio ambiente

    13 O processo de licenciamento ambiental normatizado pela Conama 06/87, que estabelece que, com relao aos aproveitamentos hidreltricos, a Licena Prvia (LP) ) dever ser requerida no incio do estudo de viabilidade da Usina; a Licena de Instalao (LI) dever ser obtida antes da realizao da Licitao para construo do empreendimento, e a Licena de Operao (LO) dever ser obtida antes do fechamento da barragem. Aps a obteno da LP, realizado o leilo pblico que estabelece o empreendedor dos projetos. Este dever elaborar o Projeto Bsico Ambiental (PBA), que estabelece as medidas a serem implementadas pelo empreendedor para mitigar e compensar os impactos apontados pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA).

    As preocupaes envolveram a temporalidade entre a recomposio dos modos de vida e o incio das obras; a temporalidade entre a presso sobre os servios pblicos e o momento em que se iniciariam as compensaes e os investimentos; a insuficincia dos estudos de impacto ambiental; a especialidade dos empregos gerados; a oferta de empregos para homens e mulheres; a proteo de terras indgenas, inclusive para ndios isolados; as compensaes sociais e ambientais que envolveriam os empreendimentos; o aproveitamento local dos recursos madeireiros a serem suprimidos para a formao do reservatrio; a infraestrutura de transporte a ser aprimorada para apoio aos produtores da regio; a infraestrutura de integrao regional sul-americana que, apesar de amplamente contemplada na Avaliao Ambiental Estratgica (AAE) como vetor de desenvolvimento regional sustentvel, foi excluda do processo de licenciamento; e o processo indenizatrio e de regularizao fundiria.

    revelada no mbito da audincia pblica a posio do empreendedor enquanto planejador de polticas para a regio. Assim, pelo fato de realizarem aes que se confundem com aquelas atribudas ao poder pblico, as medidas de mitigao e compensao realizadas pelos empreendedores tornam-se objetos de barganhas, moeda de troca no processo de licenciamento, e permitem legitimar os projetos perante a populao como necessrios para a superao da precariedade nos servios pblicos.

    Acselrad et al. (2009), ao estabelecer os mecanismos de injustia ambiental, afirmam que as empresas, ao se instalar em reas de residncia de baixa renda e/ou desprovidas de servios pblicos essenciais, conseguem diante da omisso do poder pblico obscurecer a viso crtica dos moradores, instalando os servios necessrios, como postos de sade, creches, etc.

    Com relao a essa situao, a anlise do Complexo Madeira permite afirmar que, considerando a

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    Desenvolvimento Regional e Grandes Projetos Hidreltricos (1990-2010): o caso do Complexo Madeira

    vez mais especializado em gros, minrio e energia.

    A despeito de argumentos acerca da potencialidade das obras engendrarem o desenvolvimento da regio, Menezes (2009) adverte para o fato de que essas intervenes estatais reduzem os custos de transporte e energia para atividades industriais ligadas produo de commodities, beneficiando apenas alguns grupos econmicos, como minerao, produo da soja e celulose. Portanto, o Complexo Madeira reforaria o padro de desenvolvimento relacionado exportao de bens primrios que marca o processo de ocupao territorial da regio.

    Considerando a adoo de polticas neoliberais a partir da dcada de 1990 no Brasil, o dinamismo das regies passou a depender de sua competitividade no mercado externo, o que requereu vultosos investimentos para atender s necessidades logsticas das atividades exportadoras (ARAJO, 1999). Como consequncia, apesar de o principal determinante dos investimentos industriais no pas serem as exportaes, as polticas neoliberais aprofundaram nosso papel enquanto mero exportador de produtos bsicos de baixo valor agregado e elevado contedo energtico (BERMANN, 2003).

    De acordo com Vainer (2007), outro aspecto relevante o fato de que o processo de apropriao dos territrios a partir dos grandes projetos de investimento no perodo atual se diferencia do processo de integrao nacional que marcou o perodo desenvolvimentista. As privatizaes dos setores estratgicos, ao lado da ausncia ou fragilidade do planejamento regional, acarretam a ao soberana das empresas sobre as decises, de modo que a privatizao dos setores responsveis pela infraestrutura acabou tendo como corolrio a privatizao dos processos de planejamento e controle territorial intrnseco aos grandes projetos. Conforme o autor, apesar de os grandes projetos de investimento voltarem tona, como a integrao

    afetados. Segundo a autora, as populaes no so ouvidas como parte do processo decisrio de construo das barragens ineficcia do processo de audincia pblica , assim como as relaes sociais so consideradas de menor importncia e passveis de mitigao e compensao, se comparadas com os efeitos sobre os meios fsicos e biticos, considerados mais relevantes em termos de inviabilizao da obra.

    J Ioris (2010) destaca que os impactos das hidreltricas so enquadrados na metodologia utilitarista de anlise de custo-benefcio, em que se quantificam ganhos e perdas por meio de tcnicas de valorao ambiental que iro nortear a definio do nvel mais adequado de compensao dos impactos socioambientais. No entanto, apesar do argumento cientfico que sustenta os estudos, tais metodologias ignoram diferenas polticas e sociais que influenciam a aprovao dos projetos.

    Alm disso, no caso do Complexo Madeira, o argumento de energia limpa atribuda aos empreendimentos hidreltricos e seu potencial em termos de desenvolvimento regional se confrontou com o debate acerca do modo de apropriao dos territrios e dos recursos amaznicos, o que permitiu que a discusso em torno dos projetos superasse a negociao sobre as medidas de mitigao e compensao que envolvem o cumprimento da legislao ambiental.

    Conforme Garzon (2008), o Complexo Madeira no se vincula exclusivamente ao planejamento energtico nacional, mas se insere em um conjunto de projetos de infraestrutura que submete a regio amaznica a uma nova ordem territorial, vinculada s instituies financeiras internacionais e aos setores primrio-exportadores. Carvalho (2010) assegura que, a partir da integrao, a Amaznia torna-se importante para a viabilizao da insero internacional das empresas brasileiras, de modo a ser questionada pelo aprofundamento do modelo primrio-exportador a que se coloca o Brasil, cada

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    agropecuria, pesca e extrao florestal), o que

    compromete o potencial dos empreendimentos em promover um novo processo de ocupao territorial e dinamismo econmico para a regio; ii) a elevao na arrecadao de impostos a partir da instalao dos projetos foi expressiva no setor de servios, com destaque para aqueles relacionados s demandas ocorridas na fase de instalao dos empreendimentos, o que pode ser arrefecido aps essa fase; iii) recrudescimento do processo migratrio; iv) presso sobre servios pblicos j deficitrios, a partir do fluxo migratrio;

    v) ineficincia das medidas de mitigao e

    compensao; entre outros aspectos14.

    Com relao presso sobre os servios pblicos, a Plataforma Dhesca Brasil identificou, em Misso

    de Monitoramento realizada em abril de 2011, crises no sistema de educao e de sade, aumento do dficit habitacional e crescimento da violncia.

    Sob esse aspecto, de acordo com a Dhesca (2011), houve crescimento de homicdios dolosos, vtimas de abuso ou explorao sexual de crianas e adolescentes e estupros. J sobre o processo de remanejamento e indenizao da populao, o relatrio Dhesca destaca as subindenizaes de terras e benfeitorias, reduo da renda familiar, lotes pequenos e de baixa fertilidade, interdio de reas de pesca, alm de moradias e fornecimento de infraestrutura de qualidade precria. Recentemente, mais um episdio de degradao da vida da populao foi verificado a partir da instalao dos

    projetos.

    O episdio ocorreu no bairro Tringulo, centro de Porto Velho. A abertura das comportas da UHE Santo Antnio, em 23 de janeiro de 2012, acarretou o desbarrancamento e a socavao de cerca de 7

    14 As transformaes ocasionadas a partir da instalao do Complexo Madeira foram discutidas na dissertao de mestrado que subsidia este artigo, e apresenta uma anlise preliminar das transformaes verificadas no mercado de trabalho e nas finanas pblicas a partir da instalao dos empreendimentos (WERNER, 2011).

    do rio So Francisco, a hidreltrica de Belo Monte e o Complexo Madeira, o diferencial o fato de que parte das grandes empresas e os empreendimentos territoriais no esto mais sob controle do Estado brasileiro, o que dificulta o controle social sobre

    os mesmos. Nesse sentido que as aes das empresas passam a reordenar os territrios a partir de seus interesses.

    Assim, reafirma-se o carter de portadores de

    grande potencial de organizao e transformao dos espaos atribudo aos grandes projetos de investimento; no entanto, seu grande potencial de decompor e compor regies est relacionado projeo para os espaos locais e regionais interesses quase sempre globais, o que faz deles globais-locais (VAINER, 2007). No caso dos empreendimentos do rio Madeira, tais interesses se expressam na relao dos projetos com a IIRSA.

    Considerando esse aspecto que possvel compreender o Complexo Madeira como um projeto reestruturante, medida que pretende reordenar o espao amaznico a partir de condicionantes ditadas pelos mercados internacionais, sendo o Estado o viabilizador desse projeto de insero competitiva, que submete o territrio aos ditames globais. Porm, apesar de cumprir seu papel de servir ao processo de acumulao, ainda so limitados os efeitos dos projetos em termos de melhoria na qualidade de vida da populao na regio de instalao dos empreendimentos.

    A despeito do carter inovador em termos sociais, econmicos e ambientais apresentado no discurso de viabilizao do Complexo Madeira, a instalao dos projetos seguiu o mesmo padro que marca a histria do setor eltrico nas regies: i) a promessa de ampliao de empregos formais tem se realizado em atividades relacionadas fase de instalao dos empreendimentos (construo civil e servios), ou ainda em setores relacionados ao processo de ocupao tradicional da regio (extrao mineral,

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    Desenvolvimento Regional e Grandes Projetos Hidreltricos (1990-2010): o caso do Complexo Madeira

    por outro, atinente capacidade do investimento infraestrutural propagar seus efeitos para seu entorno e superar o carter de enclave so questes ainda em suspense com relao ao Complexo Madeira, o que coloca em xeque as perspectivas de desenvolvimento regional engendrado por grandes projetos hidreltricos.

    CONSIDERAES FINAIS

    A retomada da expanso do setor eltrico, com nfase na explorao dos recursos hdricos amaznicos, acompanhada do discurso da compatibilidade de instalao de grandes projetos hidreltricos ao desenvolvimento regional sustentvel. Por parte dos proponentes dos projetos e do governo, os empreendimentos se apresentam como redentores de novas formas de ocupao territorial, uma vez que sua instalao vincula-se ao fornecimento de infraestrutura econmica e social, de proteo ambiental, de novas articulaes da poltica regional, o que confere ao projeto hidreltrico o carter de planejador do territrio. Ao cumprir tais funes que o projeto hidreltrico torna-se vivel social, econmica e ambientalmente.

    Converge para a tentativa de legitimao do projeto o processo de licenciamento ambiental, uma vez que o Estado confere protagonismo ao empreendedor no que se refere ao reordenamento territorial, ao atribuir aos projetos a possibilidade de superar as deficincias sociais das regies atingidas

    por barragens por meio de medidas de mitigao e compensao ambiental. Como consequncia, tais medidas tornam-se objeto de barganha entre empreendedor e populao local. Assim, os Estudos de Impacto Ambiental estabelecidos para subsidiar o processo de deciso sobre a viabilidade dos projetos hidreltricos, mesmo que insuficientes,

    acabam por se configurar em um instrumento de

    legitimao e aceitao em favor dos projetos.

    km jusante do eixo da barragem, em decorrncia do movimento irregular do rio Madeira. O processo erosivo atingiu diretamente cerca de 115 moradias, a 5 km do eixo da barragem. As famlias tiveram de ser remanejadas emergencialmente para hotis e pousadas no municpio de Porto Velho, e suas atividades econmicas e sociais foram inviabilizadas. O consrcio Santo Antnio Energia (SAE) assumiu parcialmente a culpa aps um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) intermediado pelo Ministrio Pblico Estadual: parcialmente, pois atribuiu aos moradores a irregularidade ocupacional ao habitarem reas de risco. Cabe ressaltar que o Bairro Tringulo iniciou-se no sculo xIx em funo da construo da estrada de ferro Madeira-Mamor, e no h relatos de episdios no passado comparveis ao ocorrido (INFORMATIVO TRINGULO, 2012) 15.

    O que se constata que a proposta do Complexo Madeira de engendrar o desenvolvimento regional sustentvel a partir das hidreltricas confronta-se com o que se tem verificado na regio. Segundo

    Garzon (2010), o descolamento entre o previsto nos estudos de impacto ambiental e o ocorrido aps a instalao dos projetos decorre da ausncia de meios, prazos e recursos como parmetros para o cumprimento dos programas ambientais. Assim, apesar de a viabilidade dos projetos estar condicionada ao cumprimento das medidas de mitigao e compensao, no h garantias de que tais condicionantes sero suficientes como

    forma de amenizar os impactos desencadeados pelos projetos, exemplo do ocorrido no bairro Tringulo.

    Se por um aspecto o Complexo Madeira cumpre o seu papel de articular a regio amaznica dinmica global de integrao competitiva dos mercados,

    15 O episdio ocorreu aps a realizao da pesquisa de dissertao de mestrado a que o presente artigo se refere, porm foi aqui inserido pois corrobora as anlises realizadas na pesquisa, bem como ilustra os processos em curso na regio de instalao das hidreltricas de Santo Antnio e Jirau.

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    O fato de as regies serem marcadas por processos de ocupao precrios, sem que sejam garantidos direitos fundamentais, faz com que a viabilidade seja atestada sob a argumentao da superao de tais carncias, o que arrefece o poder de barganha da sociedade ante os interesses que envolvem o processo decisrio de instalao dos empreendimentos hidreltricos. Destarte, a precariedade no processo de ocupao das regies no deveria ser justificativa para a instalao dos

    projetos, nem tratada no mbito do processo decisrio dos mesmos, pois apenas favorece sua legitimao politicamente, sem permitir que se discutam mais profundamente os danos sociais e ambientais que acarretam.

    No obstante, ao serem identificados os interesses que permeiam a necessidade de instalao dos projetos setores primrio-exportadores e eletrointensivos, aspecto verificado pelo vnculo das

    hidreltricas IIRSA questionou-se no caso do Complexo Madeira o modelo de desenvolvimento a que os projetos atendem, pois apesar do discurso em prol do desenvolvimento regional e nacional, tais projetos aprofundam o padro de ocupao territorial vigente, com socializao dos danos sociais e ambientais.

    Por esse aspecto, apesar da nfase conferida s condicionantes socioambientais como forma de compatibilizar os projetos regio de instalao, em ltima instncia o debate em torno das usinas hidreltricas do Madeira pode ser considerado um debate acerca do modo de apropriao do espao amaznico, ao questionar a insero perifrica do pas, que posiciona a regio como fornecedora de commodities e energia aos circuitos nacionais e internacionais custa da explorao predatria dos recursos materiais, humanos e sociais, que marca a histria do setor eltrico e do desenvolvimento brasileiro.

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