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TEXTO DE APOIO SOBRE A FENOMENOLOGIA Professor Marcelo Marques Você ainda deve lembrar que no início do ano estudamos duas perspectivas diferentes sobre o problema do conhecimento. A primeira foi o racionalismo, que toma a razão como critério para a busca da verdade. Segundo esse ponto de vista, se nós deixarmos de lado todas as noções derivadas dos sentidos para construir um pensamento puramente racional, poderemos chegar a idéias seguras. O principal filósofo desse período foi Descartes. Uma de suas conclusões foi a de que existem duas realidades diferentes: o pensamento (espírito) e a matéria (corpo). Enquanto os seres inanimados e os animais compõem a realidade material e Deus a realidade espiritual, nós, seres humanos, somos os únicos seres feitos das duas realidades. Sendo assim, podemos falar em essências, verdades e estruturas permanentes para o sujeito que conhece e para o restante do mundo. A segunda corrente é o empirismo, que se opõe ao racionalismo afirmando que todo conhecimento tem origem na experiência dos sentidos. A razão passa a ser vista como algo subordinado às sensações, e não se pode mais falar em verdades absolutas. Tudo o que podemos conhecer são percepções imperfeitas, e tudo o que chamamos de verdade não passa de probabilidade ou simples convenção.

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Page 1: Web viewA fenomenologia surge no fim do século XIX e foi aprimorada pelo filósofo Edmund Husserl. Aparece como uma proposta que resgata a importância da

TEXTO DE APOIO SOBRE A FENOMENOLOGIAProfessor Marcelo Marques

Você ainda deve lembrar que no início do ano estudamos duas perspectivas diferentes

sobre o problema do conhecimento.

A primeira foi o racionalismo, que toma a razão como critério para a busca da verdade.

Segundo esse ponto de vista, se nós deixarmos de lado todas as noções derivadas dos sentidos para

construir um pensamento puramente racional, poderemos chegar a idéias seguras. O principal

filósofo desse período foi Descartes. Uma de suas conclusões foi a de que existem duas realidades

diferentes: o pensamento (espírito) e a matéria (corpo). Enquanto os seres inanimados e os animais

compõem a realidade material e Deus a realidade espiritual, nós, seres humanos, somos os únicos

seres feitos das duas realidades. Sendo assim, podemos falar em essências, verdades e estruturas

permanentes para o sujeito que conhece e para o restante do mundo.

A segunda corrente é o empirismo, que se opõe ao racionalismo afirmando que todo

conhecimento tem origem na experiência dos sentidos. A razão passa a ser vista como algo

subordinado às sensações, e não se pode mais falar em verdades absolutas. Tudo o que podemos

conhecer são percepções imperfeitas, e tudo o que chamamos de verdade não passa de

probabilidade ou simples convenção.

Ao pensarmos no contexto histórico que se seguiu a esse período, lembraremos que a

sociedade ocidental buscou cada vez mais desenvolver as ciências e as técnicas. O modelo de

conhecimento mais valorizado passou a ser o conhecimento objetivo e neutro defendido pela

ciência. Com tudo isso, a filosofia entra em crise, junto às ciências humanas, que acabam sendo

vistas como conhecimentos sem rigor teórico.

Essa volta que acabamos de fazer foi para começarmos a falar de uma nova perspectiva

sobre o conhecimento, da qual faz parte o filósofo Martin Heidegger, que começaremos a estudar.

A perspectiva em questão é a fenomenologia. O termo fenomenologia, como você já sabe, vem de

fenômeno (objeto como aparece para o sujeito) + logia (de logos, que significa razão).

Simplificando: trata-se de uma ciência ou filosofia dos fenômenos.

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A fenomenologia surge no fim do século XIX e foi aprimorada pelo filósofo Edmund

Husserl. Aparece como uma proposta que resgata a importância da filosofia e busca re-humanizar

as ciências. Com relação ao conhecimento, diferente do racionalismo, que tem seu foco no sujeito

(racional) e do empirismo, que impossibilita a afirmação de qualquer essência, a fenomenologia

propõe um modelo no qual sujeito e objeto são interdependentes. Não pode haver razão pura, e o

sujeito que conhece não é mais visto como uma estrutura fixa composta de essências como

“alma”e “corpo”. Para a fenomenologia, o sujeito é, antes de tudo, uma consciência; e mais do

que isso, uma consciência intencional, uma consciência que se lança para o mundo e que nunca

existe isolada (redução transcendental). Essa consciência é definida como “consciência de”(algo).

Nessa perspectiva não se pode falar em conhecimento neutro e objetivo, pois tudo o que se

pode conhecer depende da consciência intencional e, por isso, sempre parcial - do observador.

Todo conhecimento é fruto da relação necessária entre o objeto e o sujeito que, ao observar, já

coloca sua intencionalidade sobre o objeto.

Curiosidades:

- A consciência é apresentada por Sartre como sendo algo que tem carência de Ser, e que

por isso se lança para o mundo, absorvendo-o. É como um buraco negro, que em si mesmo

não é nada além de um imenso vazio, mas que atrai os astros próximos para si.

A consciência é algo que se lança e que se constrói de acordo com a vivência do sujeito,

sujeito este que não tem uma estrutura própria. Não podemos falar mais em caráter do indivíduo,

personalidade fixa ou essência. Cada sujeito se constrói existindo. Nunca está determinado. Essa

perspectiva impossibilita as teorias cientificistas sobre as sociedades, sobre os comportamentos e

sobre qualquer tipo de moral na qual se entenda as ações humanas como determinadas e

previsíveis. Afinal, como podemos prever um acontecimento futuro que depende de consciências

que, em si mesmas, não possuem uma estrutura definida? Quando prevemos um fenômeno natural,

o fazemos por acreditar que os objetos envolvidos possuem uma estrutura fixa (caso da água que

ferve a 100 graus).

É difícil falar em ciências sociais segundo o modelo tradicional, mas é possível pensar o ser

humano a partir de seus modos existenciais. Diferente do que se entende por estrutura ou

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essência, os modos existenciais são características observáveis enquanto fenômenos. Aqui não se

fala de estrutura, mas sim de acontecimentos recorrentes, de formas de percepção e compreensão

de mundo. Isso ficará mais claro quando começarmos a falar de Heidegger.

Se só podemos falar de fenômenos, como fica a questão do conhecimento do mundo? De fato, o

conhecimento é sempre condicionado pela intencionalidade da consciência, mas é possível ainda

se falar em essência como uma espécie de núcleo obtido a partir de diversos pontos de vista sobre

um mesmo objeto. Para a fenomenologia, o caminho para se alcançar essa essência (eidos) começa

com uma suspensão do juízo (epoché), uma visão pura do objeto despida de qualquer noção

anterior, como se fosse a primeira vez. O sujeito que realiza a epoché percebe o objeto por um

ponto de vista particular e ainda não seguro. A segurança do conhecimento só é obtida a partir do

confronto entre várias visões distintas. A partir dessas visões, pode-se eliminar aquilo que cada

uma tem de supérfluo e descobrir o núcleo presente em todas elas. Este núcleo constitui

finalmente a essência do fenômeno. Mas essa essência não é uma verdade absoluta e metafísica.

Ela é construída; é uma verdade intersubjetiva. Uma verdade alcançada pelo método

fenomenológico é sempre passível de novas visões e novos pontos de vista. Dessa forma, toda

verdade encontra-se em constante construção. Ela encontra-se na mente, e não na realidade em si.

Edmund Husserl ( 1859-1938), 

Uma das mudanças mais marcantes na filosofia moderna foi a inclusão da idéia de sujeito,

o desenvolvimento desse conceito que passaria a ser central e determinador do pensamento a partir

de Descartes. Na filosofia moderna pode-se distinguir uma mudança de referencial em relação à

determinação da realidade. As especulações anteriores buscavam sempre alcançar a verdade. Uma

verdade exterior e inquestionável, universal e absoluta. Portanto, especulava-se sobre uma

realidade dada, e a partir da simples objetividade e do uso eficiente da lógica poder-se-ia atingi-la

com precisão absoluta.

Mas com a introdução da ideia de sujeito aparece a dúvida, pois todo o conhecimento que

podemos ter passa necessariamente a depender do sujeito e de sua percepção das coisas. Com isso

percebe-se o problema da subjetividade, e transfere-se o polo do conhecimento do objeto a ser

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conhecido para o indivíduo conhecedor. A consequência é que são elaboradas várias teorias do

conhecimento, as quais ora oscilam para o empirismo, ora para o racionalismo, mas concordando

em que todo o conhecimento depende do sujeito, e pode-se dizer que a culminância desse processo

se deu com o idealismo, o qual afirmava que não podemos conhecer de forma alguma a essência

das coisas, o que conhecemos são apenas as representações formuladas por nossos sentidos e por

nosso entendimento. Cria-se então um muro entre o sujeito e o objeto, e uma aporia para a questão

da verdade e da essência.

Uma solução para o problema surge então com a fenomenologia, um método de

investigação o qual poderia ser bem definido como um sistema aberto. Levando em conta os

problemas trazidos pela filosofia até então, a fenomenologia visa funcionar como um verdadeiro

"positivismo", não no sentido conhecido a partir do seu fundador Auguste Comte, mas no sentido

de que fundamentaria, unificaria e tornaria mais rigoroso o estudo filosófico. Visto que se tenha

posto de tal forma o conhecimento pelo idealismo, a fenomenologia afirma que podemos sim

conhecer. Podemos conhecer os fenômenos (e deles suas essências) que constituem tudo o que

percebemos, sensorialmente ou intelectualmente. Para a fenomenologia, a realidade não é

apreendida em sua forma final com uma essência definida simplesmente a partir de uma boa

intuição, mas somente a partir de continuas visadas que vão determinando o objeto em um

processo. Outro fator importante é que o foco do conhecer não está situado especificamente no

sujeito ou no objeto, mas em ambos. Os dois se relacionam incessantemente e o ato de conhecer

deixa de ter um polo. O sujeito se determina pelos objetos assim como os objetos se determinam

pelo sujeito.

Assim o método é aberto. O conhecimento não é fechado, mas desenvolvido, e a realidade

é determinada continua e infinitamente. Assim como o processo de conhecer, a essência não é

fechada. Ela é desvelada no processo e pode também ser infinitamente descoberta e transformada.

Por último, o sujeito não é fechado. Ele se determina no próprio ato de conhecer. Essa idéia de

sujeito pôde ser construida a partir da noção introduzida da consciência de algo, a qual será

descrita nas próximas linhas.

A consciência, para Husserl, não é uma coisa, um objeto, algo que possa ser localizado e

definido, a não ser como o ponto mais originário de qualquer apreensão (visada). Tudo o que

percebemos, o fazemos a partir dela, e na própria definição: "origem de qualquer visada"

percebemos que não a definimos em si mesma e isoladamente, mas incluímos o percebido na

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própria definição da consciência. O termo "visada" denuncia imediatamente a relação dessa

consciência com o objeto. Assim, ela é a origem, e por "Origem" não se pode ainda determiná-la

como coisa; e é origem de visada, e essa "visada" remete necessariamente à apreensão de algo, ou

seja, não se pode definir a consciência fora desta relação com o objeto. Por isso Husserl afirma

que a consciência é sempre e somente consciência de algo. A consciência só é enquanto

consciência de algo e esse algo, por sua vez, só o é enquanto é para a consciência. Pensar a

consciência "pura" seria como pensar um deus criador de todas as coisas. Ele seria a origem de

tudo. Podemos pensá-lo, como o fazemos com a consciência, mas não podemos defini-lo. De que

ele é feito? Qual a sua forma? Onde ele está? De onde vem?...

O problema se dá porque a consciência, como ponto originário, se volta sempre para fora,

para as coisas externas a si; semelhante aos nossos olhos, que são incapazes de se ver a partir de si

mesmos. Eles se voltam sempre para algo que lhes é exterior. Eles podem ver os objetos, podem

ver o próprio corpo, as mãos, os braços, os ombros, e até o nariz, e mesmo as sobrancelhas, mas

nunca a si mesmo. Ou seja, a consciência pode perceber, além das coisas, o próprio corpo e o

sujeito, e chegar muito próximo do que seria a consciência, mas esta ainda assim estaria

infinitamente distante de sua apreensão.

Uma outra definição (que se obtém por dedução da anterior) é que a consciência é o

próprio conhecer, isto é, como origem de toda apreensão (que é necessariamente apreensão de

algo). Ela só existe enquanto apreende, enquanto conhece; e este conhecer é um processo contínuo

e ininterrupto, o qual determina a consciência a cada instante. Daí surgiu o termo movimento de

consciência que explica justamente em que constitui esse existir da consciência, pois se ela não se

movesse e se relacionasse com os objetos, ela simplesmente não existiria.

Como no exemplo dos olhos que tentam ver a si próprios, a consciência realiza um

movimento semelhante. Seu foco se volta para os objetos mais próximos e, embora não consiga

ver-se como objeto, a consciência percebe a sua extensão mais imediata, o sujeito. A apreensão do

sujeito, que nesse caso se torna um objeto para a consciência, é de extrema importância, pois o

sujeito exerce expressiva influência na determinação de qualquer objeto e se ele mesmo não for

satisfatoriamente determinado antes, isto é, reduzido ou colocado entre parênteses, torna-se

impossível a determinação da essência de qualquer outro objeto.

O método de Husserl baseia-se nesse processo de redução. Ele constitui o ato de visar o

objeto sempre como se o sujeito estivesse percebendo-o pela primeira vez e realizando

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incessantemente novas e diferentes visadas, e tentando perceber o mesmo objeto a partir de outras

perspectivas. Em outras palavras, como se o observador se colocasse sempre no lugar de outra

pessoa, que estaria também tendo de tal objeto a primeira impressão, mas que se apresentaria

necessariamente de forma distinta. Neste processo é constatada claramente a presença de um

observador e de um objeto ou fenômeno.

O fenômeno é precisamente todo algo, todo ente que a consciência é capaz de perceber.

Ele constitui o objeto da maneira mesma como ele se nos aparece. A concepção de "coisa" é

alterada significativamente desde o racionalismo Cartesiano. Para Husserl, não há mais a

dicotomia entre a coisa-empírica e a coisa-em-si, mas apenas a "coisa que se mostra à

consciência". A realidade na fenomenologia é imanente no sentido tradicional do termo; os

fenômenos habitam este mundo e só existem enquanto há uma consciência que os percebe, e do

modo com que ela os percebe. Por isso cada uma dessas percepções, inquestionavelmente vê o

objeto, mas é muito difícil, ou talvez impossível que uma visada consiga captar toda a abrangência

do fenômeno, toda a sua extensão e todas as suas possibilidades de compreensão. Assim, o que se

tem são perspectivas; inúmeras e infindas perspectivas para um mesmo objeto, e cada uma delas

delimita positivamente de algum modo o fenômeno, mas só a soma e a combinação de várias

perspectivas pode chegar a delimitar esse fenômeno como um todo e dizer com segurança o que

ele é essencialmente.

Contudo, para realizar essa determinação fenomenológica do objeto é preciso antes que se

entenda o que é o sujeito, como ele pode influenciar a visada e como se realiza a redução do

próprio sujeito para que se consiga de fato olhar para um objeto da maneira mais pura (livre de

pré-conceitos) possível e assim chegar à sua essência.

O sujeito é a constituição do observador, de suas possibilidades de conhecimento. Ele

consiste no resultado da presença de um corpo que apreende através dos sentidos e de uma mente

que raciocina essas apreensões e as articula umas com as outras, sejam elas imediatas ou

lembranças. O sujeito é o causador da intencionalidade no movimento da consciência e por isso

influencia diretamente no modo com que visamos as coisas. A partir dessas intencionalidades

surgem as diferentes visadas.

O método afirma então a necessidade de se colocar o próprio sujeito entre parênteses para

se observar qualquer objeto. Esse "colocar entre parênteses" é o que Husserl chamou de epoché; é

a redução racional da coisa (no caso o sujeito) eliminando-se qualquer opinião pré-estabelecida. O

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primeiro passo e o mais essencial no processo da redução do sujeito é o de se tomar consciência

desse sujeito e de sua atuação no processo. Deve-se primeiramente tomar consciência da própria

intencionalidade existente na visada e tentar suspendê-la. Com essa redução chega-se ao ego-

transcendental, ao sujeito puro, e é a partir dele que se deve observar o objeto procurando novas e

diferentes visadas que constituirão a intersubjetividade, de onde será possível retirar o que é

consenso em todas as visadas, ou seja, sua essência ou eidos.

A redução do sujeito a ego-transcendental é realmente complexa, pois se dá quase como

uma volta da intencionalidade a si mesma. A solução para o problema é tomar consciência

exatamente de tudo que envolve esta dificuldade, ou seja, que ao tomar consciência da

intencionalidade, esta consciência é já intencional, e a consciência da intencionalidade da visada

que pensa a intencionalidade do sujeito é por sua vez uma intencionalidade e assim infinitamente,

pois o sujeito intentou pensar a sua intencionalidade necessariamente a partir de uma complexa

estrutura formada em sua vivência.

Por fim, resta definir o que seja a essência, que na fenomenologia Husserliana apresenta

claramente um sentido completamente diverso daquele dos idealistas e do senso-comum que o

incorporou.

A essência aqui não é a coisa-em-si metafísica; imutável como afirmara Parmênides ou

absoluta e transcendental em relação a este mundo sensível, como na filosofia de Platão. A

essência ou eidos, em concordância com o método, é uma essência dinâmica. Ela decorre do

próprio movimento de determinação do fenômeno a partir das visadas devidamente reduzidas. Ela

é o resultado de uma visada comum, possibilitada pela suspensão da intencionalidade em cada

uma delas; obtêm-se aí um postar-se face a face com a coisa (não a coisa-em-si, mas a coisa

mesma). Essa coisa mesma é a própria essência, e sua transcendentalidade não é se não a

transposição da barreira da intencionalidade e dos pré-conceitos. Ela é imanente quando se

observa que ela está na própria coisa e, mais que isso, que ela é a própria coisa. Sendo assim, ela é

infinitamente determinável e eternamente mutável, já que é fruto de um movimento, este

movimento das infinitas visadas que o homem pode realizar, e que partem de uma realidade que se

transforma no tempo.

A Fenomenologia de Husserl justifica dessa maneira o seu caráter metodológico, o qual

visa à universalidade e coloca-se como o "verdadeiro Positivismo", pois soluciona os problemas

encontrados na ideia de verdades absolutas, mostrando que a verdade existe, mas existe em

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dependência e comunhão com os homens, e somente a eles podem ser consideradas universais,

mas nunca absolutas.

Martin Heidegger (1889-1976),

Heidegger tomou seu caminho próprio, preocupado que a fenomenologia se dedicasse ao que está

escondido na experiência do dia a dia. Ele tentou em O ser e o tempo (1927) descrever o que

chamou de estrutura do cotidiano, ou "o estar no mundo", com tudo que isto implica quanto a

projetos pessoais, relacionamento e papeis sociais (pois que tudo isto também são objetos ideais).

Em sua crítica, Heidegger salientou que ser lançado no mundo entre coisas e na contingência de

realizar projetos é um tipo de intencionalidade muito mais fundamental que a intencionalidade de

meramente contemplar ou pensar objetos, e é aquela intencionalidade mais fundamental a causa e

a razão desta última, da qual se ocupava Husserl.

A fenomenologia inaugura uma nova forma de interpretar a realidade. Para essa corrente de

pensamento, tudo aquilo que se afirma como verdade seria um núcleo, uma essência obtida pelo

consenso de vários pontos de vista individuais formando uma visão coletiva. Entretanto, essa

verdade nunca se encerra completamente. O mundo pode sempre ser observado por novos

ângulos. Apreender um objeto a partir de novas perspectivas, alterando de alguma forma a sua

essência, é o que os fenomenólogos chamam de desvelar. Desvelar é observar sem preconceitos,

como se fosse a primeira vez, sem querer aplicar teorias ou metodologias que podem restringir as

possibilidades de se perceber realmente o que aparece ao sujeito.

O sujeito que conhece o mundo é definido como uma consciência (e não como corpo,

mente, alma, etc). A fenomenologia não tenta entender a realidade segundo o modelo científico.

Sem pressupostos, tenta compreender os indivíduos pelas suas experiências e vivências.

Podemos observar que algumas pessoas se destacam pela sua coragem, por se arriscar por

ideais, enquanto outras tendem a buscar estabilidade acima de tudo. Algumas pessoas são super

extrovertidas enquanto outras são tímidas. Umas têm vários projetos enquanto outras preferem se

deixar levar pelas ondas da vida. Para a fenomenologia, esses não são traços predefinidos de

personalidade, mas possibilidades existenciais. Todas as possibilidades estão abertas ao ser

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humano, que na fenomenologia é definido simplesmente como um “ser-para”, um “poder-ser” ou

como um projeto. Se o ser humano tem a peculiaridade de estar aberto para se construir, este fato

pressupõe que ele é livre, que toma posição diante da realidade.

Heidegger nem mesmo usava os termos “ser humano” ou “homem” para tratar daquilo que

somos. Para evitar a carga de “pré-conceitos” que estes termos já nos trazem, utilizava a

expressão “ser-aí”. Ser-aí é para ele uma palavra que designa melhor o que somos por afirmar

a nossa grande peculiaridade: somos seres que existem se lançando para o mundo, se criando a

partir da vivência. O que somos não resulta simplesmente da nossa genética e nem é

inteiramente determinado pelo meio. Somos as formas de existência que desenvolvemos

constantemente.

Heidegger define os entes (objetos) como: sem mundo

(objetos inanimados), pobres de mundo (animais) e seres-

no-mundo (homens). Nosso grande diferencial nesse

sentido é que ao existirmos e ao lidarmos com as coisas e

as pessoas vamos construindo uma noção de mundo

própria. A noção de mundo é uma espécie de conjunto de

toda a realidade que a nossa consciência configura inferindo-lhe sentidos determinados.

Finalmente, o ser humano, ao se projetar para a existência, desenvolve modos de lidar com os

objetos, de se relacionar com os outros seres como nós, e de dar sentido a todas essas relações.

Não é pelo advento da razão que podemos nos afirmar diferentes dos outros seres, mas sim por

esse modo específico de existir.

Apesar de existirem várias formas de o ser humano se relacionar com o mundo, uma delas

costuma se manifestar desde o início nas pessoas. É o modo existencial da lida instrumental com o

mundo. Heidegger dedica grande parte do seu pensamento a entender essa ocupação dos homens

com os objetos e até mesmo com as pessoas como se fossem meros utensílios. A prática sempre

aparece antes da teoria no desenvolvimento humano. Primeiro os homens começam a interagir

com a realidade, e só bem depois passam a compreendê-la.

O mundo como o percebemos hoje é uma

radicalização desse modo de existir. A ascensão da ciência é

um exemplo disso. A nossa forma de entender a realidade

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se tornou instrumental. É por isso que sempre que nos deparamos com algo desconhecido

queremos saber antes para o quê ele serve, e não simplesmente o que ele é.

Quando usamos uma caneta, por exemplo, não paramos para pensar sobre o que é o “ente-

caneta”; usamos sem precisar pensar. Em nosso cotidiano executamos inúmeras atividades sem

sequer nos darmos conta do que estamos fazendo. Com passar do tempo, conseguimos

desenvolver um ambiente de vida no qual todas as coisas com as quais nos deparamos são

instrumentos e passam desapercebidas. Tudo já está devidamente catalogado, reconhecido, e deve

ser apenas utilizado. Assim andamos na rua, atravessamos no sinal, pegamos o ônibus, pagamos a

passagem... até nossas relações pessoais se tornaram instrumentais.

Os instrumentos são adequados enquanto funcionam. Quanto

melhor seu funcionamento, menos a coisa é percebida e mais

ela cumpre o seu papel de não ser nada em si mesma. Um

martelo bom não solta o cabo. Somente quando seu cabo solta

ele aparece como simples objeto. Até mesmo um operador de

caixa de supermercado não existe em si mesmo, mas apenas como instrumento para as pessoas na

fila. Mas basta ele se atrapalhar e deixar de cumprir bem sua função para passar a ser percebido.

Nesse mundo onde tudo já está definido aprendemos a existir de uma forma padronizada.

Esse é o modo existencial da cotidianidade ou da mundanidade. Um mundo no qual o sentido das

coisas que se faz é determinado por todos e por ninguém. É o modo de existir em que se faz o que

se faz por que assim se faz. “Todos fazem assim...” É o modo impróprio ou inautêntico de existir.

Nesse modo, além de lidarmos com os objetos simplesmente como instrumentos, e com as pessoas

como se elas também fossem coisas, também orientamos nossas próprias vidas a partir de

caminhos predefinidos. Não aprendemos a perguntar pelo sentido da existência para encontrar um

sentido autêntico. Não nos espantamos com nada no mundo.

No entanto, essa forma instrumental e mundana de viver é apenas uma

das possibilidades de que o homem dispõe. Ela constitui a tendência mais

forte, na qual quase sempre estamos presos. Crescemos e aprendemos a viver

conforme esse modelo, e assim a estrutura se mantém cada vez mais forte.

Mas em cada indivíduo existe sempre a possibilidade de se descobrir outras

formas de existir. São formas próprias e singulares, possibilitadas pela

compreensão do homem de si mesmo como um ser indefinido e capaz de se

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criar. Só que quebrar o gelo do nosso modo-zumbi de viver não é fácil. As situações que podem

provocar uma ruptura com o modo cotidiano de viver e abrir a possibilidade de nos tornarmos

autênticos são raras. Geralmente essa abertura aparece nos momentos de angústia, de depressão,

de uma tragédia pessoal ou coletiva (como estar diante de uma doença fatal, da morte de alguém

ou de um acidente do qual se tenha escapado por pouco).

Mesmo assim, esses momentos que nos retiram do modo cotidiano muitas vezes acabam

sendo apenas um desligamento momentâneo. Muitas pessoas que sobreviveram a um acidente

dizem ter nascido de novo, mas após algumas semanas voltam a viver exatamente como viviam

antes.