o brasil resgata a sua história

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Suplemento Especial o Brasil resgata a sua história

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Pesquisa FAPESP - Suplemento Especial. Ed.57

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Suplemento Especial

o Brasil resgata a sua história

ESPECIAL

O Brasil resgata a sua história Documentos trazidos de Lisboa falam da vida nas capitanias

Por trás do lon­go título Proje­to Resgate de Documentação Histórica Ba­

rão do Rio Branco, há um trabalho formidável de mais de uma centena de pessoas que a partir de 1996 vasculharam o acer­vo do Arquivo Ultrama­rino de Lisboa, e leram, decifraram, organizaram, microfilmaram e digitali­zaram documentos, para ficar apenas nas tarefas mais evidentes que um empreendimento desse ti­po abarca. Como efeito de um tal esforço há, no en­tanto, um resultado monu- Carta da costa do Brasil, dos padres Diogo Soares e Domingos Capaci: século 18

mental, muito maior, em múltiplos sentidos, que a carga de trabalho investida: são cerca de 250 mil documentos referentes ao Brasil Colô­nia, que trazidos ao país cumprem papel fundamental na preservação da memória do Brasil. Mais: cumprem uma função de democratizar o acesso à informação, na medi­da em que se tornam acessíveis a qualquer interessado.

Os documentos atingem, de certo modo, todos os as­pectos da vida pública nas capitanias e mesmo aspectos da vida pessoal de seus habitantes entre os séculos 17 e 19. E por isso tornam-se uma fonte agora próxima e ines­gotável de pesquisas em história e outras áreas das ciên­cias humanas, que poderão lançar novas luzes sobre o que fomos e o que hoje somos como nação.

Patrocinado pelo Ministério da Cultura, com a partici­pação de dezenas de instituições públicas e privadas de to­do o país- e em São Paulo financiado pela FAPESP- o Pro­jeto Resgate pode ser considerado emblemático dentro das comemorações dos 500 anos do Descobrimento. Seus pro­dutos materiais são os microfilmes guardados na Biblio­teca Nacional, no Museu Histórico Nacional e nos arquivos públicos estaduais, abertos à consulta de todo interessado. São os CD-ROMs que os reproduzem e os catálogos que con­têm os índices desses documentos e que vêm sendo entre-

PESQUISA FAPESP

gues às universidades, entre outras instituições. Mais adian­te, essa documentação deverá se tornar acessível também pela Internet; democratizando ainda mais sua consulta.

Quanto aos produtos mais intangíveis do Projeto, por ora é impossível dimensioná-los. Mas os pesquisa­dores diretamente envolvidos nesse resgate histórico es­tão convencidos de que ele é um marco referencial. Tanto que o evento organizado para seu encerramento em São Paulo, de 25 a 27 de-setembro, com a participação de his­toriadores brasileiros e portugueses, tem por título A História que Nasce do Projeto Resgate. Mais: ele está com­binado com o simpósio Agenda da História para o Milê­nio, cujos debates podem delinear uma nova política de cooperação luso-brasileira para a pesquisa histórica.

Neste suplemento especial de Pesquisa FAPESP, pes­quisadores brasileiros- incluindo o ministro da Cultura, Francisco Weffort - e portugueses expõem em detalhe suas visões sobre o Projeto Resgate, sobre seu significado e prováveis desdobramentos. As entrevistas foram feitas pelos jornalistas Maria da Graça Mascarenhas, Mariluce Moura e Mário Leite Fernandes.

O documento da capa é uma planta da baía de Para­naguá, de 1653, recuperada pelo Projeto Resgate.

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Francisco Weffort

O ministro da Cultura do Brasil é professor titular do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). Foi eleito chefe desse departamento em 1994. É também presidente do Conselho Superior da F acuidade Latino-Americana de Ciências Sociais. Paulista da cidade de Quatá, no oeste do Estado, tem o título de doutor em Ciência Política pela USP. Já lecionou e pesquisou nos Estados Unidos, Inglaterra, Chile e Argentina. Tem livros publicados no Brasil, Chile e Costa Rica.

Ainda há mais para ser feito Projeto vai continuar em outros arquivos europeus

ministro da Cultura, Francisco Weffort, con­sidera o Projeto Resga­te de Documentação Histórica Barão do Rio

Branco uma obra emblemática do Ministério. Por isso, ele está sob con­trole direto de seu gabinete, em Bra­sília. Weffort pretende agora ampliar a busca e o registro de documentos do Brasil Colônia para outros lugares.

• Como teve início o Projeto Resgate?

-Tomei conhecimento das tentati­vas recentes e dos antigos sonhos re­lativos ao resgate dos documentos do Período Colonial existentes nos arquivos europeus, notadamente em Portugal, logo que assumi o Minis­tério. A ocasião era propícia para uma ação conjunta, de caráter na­cional, diante da proximidade das comemorações dos SOO anos do Des­cobrimento do Brasil. Pedi ao em­baixador Wladimir Murtinho que atuasse para viabilizar o Projeto. Ele, por sua vez, obteve a colaboração

interessavam pelo Projeto. Estabele­cemos diversas parcerias, com insti­tuições privadas e públicas, no âm­bito dos governos federal, estaduais e mumC!pats.

• E os resultados?

- Os resultados já estão aí. Os do­cumentos referentes a 18 capitanias, que correspondem hoje a 22 estados, já foram microfilmados e digitaliza­dos para sua divulgação em CD­ROM. Os catálogos com os verbe­tes-resumo estão sendo publicados. Já se encontram no Brasil mais de 1.500 rolos, com cerca de 200 mil documentos. Eles estão à disposi­ção de todos na Biblioteca Nacional e no Museu Histórico Nacional, ins­tituições vinculadas ao Ministério da Cultura. Os microfilmes vêm sendo entregues aos arquivos públicos es­taduais, e os CDs, às universidades de todos os estados. Os institutos histó­ricos e geográficos estaduais e obra­sileiro têm sido igualmente contem­plados com os CDs, eles que foram

de uma funcionária da Fundação Biblio­teca Nacional, Es­ther Caldas Berto­letti, que desde 1975 atuava como con­sultora na área de documentação e mi­crofilmagem de do­cumentos em todo o Brasil, com o Pla­no Nacional de Mi­crofilmagem de Pe­riódicos Brasileiros. Então, convocamos todos os que, direta ou indiretamente, se

Vila Nova da Fortaleza de Assunção: Ceará, 1730

PESQUISA FAPES P

os pioneiros, no século 19, da copia­gem dos documentos no exterior.

• Qual o significado e a importância disso para o Ministério?

-O significado e a importância do Projeto Resgate são exatamente o apoio à preservação da memória na­cional e a facilitação do aces­so às fontes, um preceito constitucional que o Minis­tério da Cultura se empenha muito em ver cumprido.

• Quantas pessoas e institui­ções foram envolvidas?

• Qual o volume de recursos liberados?

- O próprio Ministério da Cultura investiu cerca de US$ 1 milhão, em suas três modalidades, orçamentá­ria, fundo de cultura e lei de incenti­vo fiscal. Outros ministérios também contribuíram, como o da Ciência e Tecnologia, por meio do CNPq, e o

nômica Federal, o Banco do Nor­deste e o BEM-Fundação Clemente Mariani; de fundações, como a Vi­tae, a Waldemar Alcântara, a Demó­crito Rocha e a Casa da Memória de Campo Grande; e de empresas, como a Auvepar, Telems, Micro­service, Tap-Air Portugal e Varig. Houve a participação de algumas

instituições portuguesas, públicas e privadas, como a Fundação Calouste Gulbe­kian e a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugue­ses, além das luso-brasilei­ras, como o Real Gabinete Português de Leitura, a Fundação Cultural Brasil­Portugal e a Federação das Associações Portuguesas e Luso-brasileiras. Como se vê, ocorreu um verdadeiro mutirão em favor da cultura e da memória nacional, onde todos apartaram alguma coisa e todos saíram gratifi­cados, pelo desdobramento positivo e pela conclusão, dia a dia, de diversos proje­tas, cujos benefícios para o Brasil, podemos dizer, serão imensuráveis.

- Enumerar todas as pes­soas e instituições que fo­ram e estão envolvidas com o Projeto Resgate de Docu­mentação Histórica Barão do Rio Branco não é tarefa das mais fáceis. Mas posso dizer, pelos relatórios for­necidos pela coordenação do Projeto, que mais de cem pessoas estiveram até agora diretamente ligadas a ele. Várias atuaram em Lisboa, lendo, decifrando os docu­mentos em leituras paleo­gráficas e organizando-os em caixas após tê-los resumido em verbetes. Outras elabo­raram os índices e organiza­ram a publicação dos catá­logos aqui no Brasil. V árias empresas, em Lisboa e no

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• No âmbito das comemora­ções dos 500 anos do Desco­brimento, como o Ministério situa o Projeto Resgate?

Joaquim José da Silva Xavier pede à rainha licença para viajar

Brasil, nos ajudaram na microfilma­gem e na digitalização. A divisão de microfilmagem da Biblioteca Nacio­nal assumiu a tarefa de preservar os microfilmes e duplicá-los para dis­seminação. Quanto às instituições participantes, tivemos seguramente uma média de cinco por estado, o que nos dá, só para os conjuntos já microfilmados, 11 O instituições. Po­demos somar cerca de 15 para os es­tados que ainda estão sendo organi­zados e verbetados em Lisboa, Pará, Pernambuco e a segunda parte da documentação do Rio de Janeiro.

PESQUISA FAPESP

da Educação, por intermédio de di­versas universidades. Não podemos esquecer os governos dos estados, através de suas secretarias de Estado, principalmente as da Cultura, e suas fundações culturais. Tivemos tam­bém as fundações de amparo à pes­quisa do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e São Paulo, e mesmo alguns municípios, como o de Olinda. Isso trouxe mais US$ 1 milhão. O restante dos recursos, mais de US$ 1 milhão, veio da ini­ciativa privada, por meio de bancos, como o Banco Santos, a Caixa Eco-

- No momento mesmo ·em que o presidente da República lançava em Porto Seguro, em 1996, a agenda das comemorações, já se in­cluía o Projeto Resgate como um dos projetos emblemáticos dos SOO anos. A essa altura, estava em desen­volvimento desde 1994, quando re­cebeu os primeiros recursos orça­mentários do Ministério da Cultura e os primeiros aportes da Fundação Vitae e do CNPq. Fomos buscar os professores e pesquisadores que ha­viam sonhado em recomeçar o traba­lho que, por todo o século 19, ocupou ilustres pesquisadores e historiado-

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res, copiando à mão alguns dos mais significativos documentos, para a melhor compreensão da nossa his­tória. Em torno dos trabalhos isola­dos, fomos formando uma cadeia nacional. Conseguimos vencer um desafio: organizar, identificar, ler, decifrar e elaborar verbetes-resu­mo, para depois microfilmar, como forma de preservação e de transferência da informação. Seguimos os moldes preconiza­dos pela Unesco em suas resoluções sobre esse tema e em seu programa Memória do Mundo.

• As novas tecnologias ajudaram?

centram cerca de 80% dos docu­mentos sobre o Brasil existentes no exterior.

• E agora?

-O trabalho do Ministério da Cul­tura não parou no Arquivo Históri­co Ultramarino. No próximo ano,

-Sim. Com o avanço da tecnologia e da in­formática, pudemos pensar em duplicar e disseminar o mais pos­sível o conteúdo infor-

Cidade de Salvador, por Manoel Roiz Ferreira, 1786

macional dos documentos, de forma que ele chegasse a todos os pesqui­sadores, universitários ou não. A transposição para CD-ROMs permi­te o acesso onde houver um compu­tador com drive de CD. Isso signifi­ca que o estudante do interior da Paraíba ou do câmpus avançado da Universidade do Amazonas poderá ler os documentos da mesma forma que o estudante e o interessado em história do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Isso significa a verdadeira de­mocratização da informação. E mais. Com a ajuda das secretarias de Cultura dos diversos Estados e de várias universidades, através de suas editoras, pudemos editar os catá­logos, colocando no papel e ao alcance de todos as informações resumidas que remeterão aos docu­mentos em verdadeiros fac-símiles, captados pela microfilmagem e di­gitalização. Até junho do ano 2001, estarão no Brasil todos os docu­mentos do Arquivo Histórico Ul­tramarino de Lisboa, onde se con-

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avançaremos com a documentação de outros arquivos portugueses, como o da Torre do Tombo, e a de arquivos espanhóis, franceses, ho­landeses e italianos. Este ano, esta­mos fazendo um mapeamento nes­ses países, para sabermos o que microfilmar e onde. Até o final de 2000, estaremos com quatro guias publicados. A partir deles, vamos de­finir, juntamente com os pesquisa­dores, o que microfilmar primeiro. Creio que, pela sua importância, já podemos pensar na documenta­ção dos arquivos espanhóis de Si­mancas, Sevilha e Tenerife, referen­tes ao período colonial brasileiro, e nos documentos da Nunciatura em Lisboa no Arquivo Secreto do Vaticano. O Projeto Resgate situa-se na linha dos projetas especiais do Ministério da Cultura, diretamente ligado ao meu gabinete em Brasília. É um projeto emblemático.

• Como o senhor situa o Projeto na importância de preservar e valorizar

melhor a memória brasileira e como uma forma de entender melhor o Brasil atual?

- Como professor universitário e pesquisador de ciência política, pos­so dizer da imensa capacidade que tem o povo brasileiro de encontrar em si mesmo as forças de sua per-

manente renovação. ~ Nada explicaria este g imenso território e es­~ ta força sempre reno-

vada se os brasileiros não tivessem um pas­sado do qual podem orgulhar-se. É exata­mente para relembrar os momentos do pas­sado, para conhecer e melhor interpretar o que somos hoje, que esses documentos nos ajudarão, e muito, a valorizar a memória brasileira, a valorizar cada construção, cada estrada, cada árvore,

cada animal, cada montanha, pois o ambiente que nos cerca é o cenário em que se desenrolou a nossa histó­ria. Se passamos por momentos mais difíceis e até incompreensíveis aos olhos de hoje, podemos sempre melhorar com a compreensão dos erros do passado.

• E como isso pode influenciar a auto­estima brasileira?

· - Conhecer melhor como foi fun­dada a nação brasileira, antes e de­pois da Independência, é talvez a forma de reflexão que levará cada vez mais o povo brasileiro a ser se­nhor do seu destino. O Brasil depen­de de nós. Nós somos o Brasil, como no passado colonial foram os habi­tantes destas terras, índios, negros e brancos amalgamados, que vence­ram as montanhas, cruzaram os rios e levaram as fronteiras do Brasil de hoje aos extremos nunca sonhados pelos que aqui primeiro chegaram às nossas praias.

PESQU ISA FA PESP

José Jobson de Andrade Arruda

O responsável pela coordenação do Projeto Resgate dos documentos da Capitania de São Paulo formou-se em História pela Universidade de São Paulo (USP) em 1966. Nesta instituição fez mestrado, doutorado e livre docência. É professor titular de História Moderna. Ocupa também o cargo de coordenador da cátedra Jaime Cortesão, do Instituto de Estudos Avançados, e é membro do Conselho Superior da FAPESP. Foi chefe do Departamento de História e diretor do Instituto da Pré-História da USP, além de diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia.

PESQUISA FAPESP

Documentos abrem novas oportunidades Material poderá também ser colocado na Internet

Preocupado com a aproxi­mação entre pesquisadores portugueses e brasileiros, o historiador José Jobson cita uma das grandes van­

tagens do Projeto Resgate: qualquer pessoa tem agora à mão o que antes exigia longas temporadas no Arquivo Ultramarino de Lisboa.

• As previsões feitas quando o resgate da documentação paulista começou, em agosto de 1998, eram de que seriam encontrados cerca de 6.500 documen­tos referentes à Capitania de São Paulo, dos quais mais ou menos 1.500 não es­tavam ainda inventariados. Esses nú­meros se confirmaram?

cumentação nova. Os dois primeiros volumes têm cerca de 400 páginas ca­da um. O terceiro, cerca de 200.

• E quanto à documentação referente à parte mais meridional do país, subor­dinada à Capitania de São Paulo? Ne­nhum dos documentos relativos a essa área estava catalogado.

- Este material já está pronto. O trabalho esteve ligado ao projeto de São Paulo, mas foi realizado por pesquisadores de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Além dos docu­mentos que esperávamos encontrar, foram descobertas mais ou menos 145 latas, com mais de 5 mil docu­mentos, referentes a questões de

- Sim, eles se confirmaram. Tínhamos antes pouco mais de 5.100 documentos, que faziam parte do catálogo or­ganizado pelo historiador Mendes Gouveia, em 1954. Agora, foram encontradas cerca de 30 latas, que conti­nham um pouco mais de 1.500 documentos. Em ter­mos de números, está confir­mado.

IMPRENSA ÜOOALI

• Como os catálogos serão pu­blicados?

- Em dois volumes, mais um de índice. O primeiro volume é o catálogo de Men­des Gouveia, reavaliado, re­condensado e retomado com procedimentos técnicos e políticas atuais. Quem con­duziu esse processo foi a professora Heloísa Bellotto. O segundo volume é o da do-

Documentos d C manuscntos avUlsos

a _,apttanta de 1 Sao Pau

Catálogo 1 r 1644 • 18JOJ

José )obson de Andrade Arruda --

Capitania de São Paulo: 6.500 documentos

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fronteira, à Colônia do Sacramento e a contratos referentes ao sal.

• Essa documentação nova trouxe re­velações também novas?

- Essa é uma preocupação que to­das as pessoas têm. Querem saber o que há de novo. O que nós sabemos é o seguinte: essa documentação é uma documentação ampla. Ela fala da vida dos homens que vive­ram durante esse período aqui na colônia, na Capitania de São Pau-lo. Então, é claro que somente um trabalho em cima dessa docu­mentação poderá dizer se há algo novo.

• E o que virá agora?

- Há o encontro neste mês de setembro: o congresso A História que Nasce do Projeto Resgate e o colóquio Agenda da História para o Milênio. A reunião na FAPESP,

globalização; a história econômica; os movimentos sociais; a população, famí­lia e migrações; e a relacionada com a historiografia e a memória social.

• O que resultará disso?

- Cada bloco será composto por 50% de historiadores portugueses e

tre Brasil e Portugal nos próximos 20 ou 30 anos.

• Qual será, então, o impacto do Pro­jeto Resgate para o estudo da história do Brasil?

-Acho que isso está mais ou menos consignado no título do congresso, A

Planta de ranchos construídos no caminho de São Paulo a Santos: século 18

no dia 25, é apenas a abertura ofi­cial do evento. Para a tarde, no Departamento de História da Universidade de São Paulo, está marcado um encontro do qual participarão cerca de 30 pesquisado­res portugueses e 60 brasileiros. Al­guns dos maiores pesquisadores por­tugueses participarão desse encontro. São dois os objetivos desse encontro: consolidar o Projeto Resgate, no que é, de certa maneira, uma festa de en­cerramento, e pensar na possibilida­de de abrir um Projeto Resgate 2, para obter documentos sobre o Brasil em outros arquivos portugueses e de vários países europeus.

• Mais alguma coisa?

- Sim, vamos aproveitar a oportu­nidade e colocar frente a frente os historiadores brasileiros e portugue­ses. Juntos, eles podem pensar quais serão as diretrizes de nossa cooperação na área da história, em seis áreas prin­cipais. Temos as áreas da cultura e da religiosidade; os trabalhos relaciona­dos com o município, o poder local e a

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50% de brasileiros. Cada pessoa vai elaborar um texto individual e todos, em conjunto, farão um texto síntese. Esses textos serão publicados num li­vro, que deverá estar pronto até o fim do ano. Nele, estará o que cada pes­quisador pensa sobre como deve ser a cooperação.

• Um objetivo amplo, não é?

- Sim, muito amplo. Fazer melhor seria difícil. Pense, não é fácil trazer para um lugar no Brasil e pôr para discutir 30 historiadores portugue­ses de uma vez só. Não são só dois, três, cinco ou dez, são 30. Mais os brasileiros. A lista dessas pessoas mostra o que há de melhor nas his­toriografias brasileira e portuguesa. São essas as pessoas que vão pensar e escolher nossas diretrizes. Esta será uma espécie de política pública para a área de história na cooperação en-

História que Nasce do Projeto Resgate. Creio, verdadeiramente, que há uma história nascendo do Projeto Resgate. Ela vai nascer porque a massa de do­cumentos que está chegando e fican­do à disposição dos pesquisadores é tão grande que, tenho certeza, grande parte da história terá de ser reescrita.

• Haverá uma democratização?

- Sim, acho que sobretudo é isso. Passamos a ter a informação demo­cratizada. Os documentos vão estar reunidos em CDs, que qualquer pes­soa pode comprar. Além disso, pre­tendemos, mais tarde, colocar todo esse material na Internet. Já há um projeto relativo a isso na FAPESP. Aí será a democratização absoluta dessa documentação.

• Há dois anos, quando fizemos uma reportagem sobre o lançamento do

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Projeto Resgate de Documentação Histórica Referente à Capitania de São Paulo, surgiu o dado de que o Ar­quivo Ultramarino era muito mais vi­sitado por pesquisadores brasileiros do que por portugueses. Isso continua a ser verdade?

- Bem, foi feita uma estatística no Arquivo Ultramarino. Num perí­odo de quatro anos, ele foi visita­do por cerca de 2.200 pesquisa­dores. Os brasileiros eram maioria absoluta. Representavam aproxi­madamente 1. 700 do total de 2.200.

• Quem bancava isso?

- Majoritariamente, recursos públicos. Foram bolsas pagas pe­la Capes, pelo CNPq, pela FAPESP e por outras fundações que per­mitiram aos pesquisadores ir ao Arquivo Ultramarino nesse pe­ríodo. É um custo que não te­remos mais. Esse período se esgotou. O Arquivo e os pesqui­sadores portugueses terão como um presente, dado por nós, a do­cumentação toda catalogada e microfilmada. Mas existe um contra-resgate.

começaram o contra-resgate em Per­nambuco, na Bahia, nas outras capita­nias. Ora, nós estamos trazendo de Portugal 250 mil documentos. Tal­vez, no final, o total chegue a 300 mil. Acho que o número de documentos que os pesquisadores portugueses vão microfilmar no Brasil, transfor­mar em CDs e levar para Portugal

ses são muito caros no Brasil. Os bra­sileiros não são distribuídos lá. Além disso, também há um problema de língua. A sintaxe do português falado e escrito no Brasil não é muito agra­dável aos portugueses. A forma como os portugueses escrevem, por outro lado, não é muito agradável para o leitor brasileiro.

~ • Há exceções? r.::: ;~_~,J .\ g ~- ~ - Sim. Como historiador, eu

pertencia à cadeira de História Moderna e Contemporânea, na Universidade de São Paulo. Oca­tedrático era o professor Eduardo de Oliveira França. Ele achava que, para se fazer bem a história do Brasil, era necessário ligá-la, entrelaçá-la, à história de Portu­gal e da Europa. Em sua opinião, era difícil fazer a história do Bra­sil, sobretudo nos tempos coloni­ais, nos séculos iniciais da coloni­zação, sem enlaçar a história do Brasil com a da Europa. Para ele, a idéia de que alguém pudesse fazer só história do Brasil, sem conhe­cer a história de Portugal, era uma idéia estúpida. E efetiva­mente não é?

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• E qual é esse contra-resgate? Planta de fortaleza no litoral de São Paulo

• Houve algum resultado concreto desse trabalho?

-No Brasil, há documentos funda­mentais para a história de Portugal. Eles dizem respeito, principalmente, ao tempo em que a Corte Portuguesa se instalou no Brasil, com dom João VI. Eles ficaram, por exemplo, na Bi­blioteca Nacional do Rio de Janeiro. Os portugueses nem tinham noção de quantos documentos eram, nem de quais os interessavam. Então, ao fazermos o resgate de lá para cá, tam­bém fizemos um resgate da docu­mentação que está no Brasil e que in­teressava aos portugueses. Esses documentos vão permanecer aqui. Os portugueses estão fazendo agora o levantamento no Rio de Janeiro. O total chega a perto de 100 mil docu­mentos. Os portugueses ainda não

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será equivalente ao dos que eles nos irão repassar.

• Quais são as perspectivas de um tra­balho conjunto entre historiadores brasileiros e portugueses, inclusive a partir de toda essa documentação que vem sendo resgatada?

-Bem, durante muito tempo houve um distanciamento. Brasileiros e por­tugueses se mostraram arredios, uns com relação aos outros. São poucos os livros de historiadores brasileiros que se encontram em Portugal. De forma semelhante, são poucos os li­vros de historiadores portugueses en­contrados no Brasil. Há problemas editoriais sérios. Os livros portugue-

- O próprio professor França co­meçou a fazer uma tese sobre a mo­narquia portuguesa. Trata-se de um estudo considerado até hoje como

-de alto nível em Portugal. É reco­nhecido, em Portugal, como um ex­celente trabalho sobre o Estado monárquico português e sobre os fundamentos do Estado português. Ele fez outro trabalho, sobre a res­tauração portuguesa, que até hoje é considerado um clássico. Além dis­so, como na época os catedráticos ti­nham muita força, ele empurrava seus assistentes para prepararem te­ses sobre os assuntos nos quais tinha mais interesse.

• Há exemplos?

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- Os professores que fize­ram parte dessa cadeira se­guiam à risca o menu do mestre França. O professor Fernando Antônio Navais, por exemplo, fez um estudo, chamado Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colo­nial, um estudo do sistema colonial e do império portu­guês, sobretudo nas suas re­lações com o Brasil, que é considerado um clássico. Outro historiador conhecido, Carlos Guilherme Mota, tam­bém estudou as relações en­tre Brasil e Portugal, especial­mente pelas atitudes de inovação e as questões relaci­onadas com a Independência e a Revolução Pernambucana de 1817.

• E o senhor?

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- Sim, o pessoal que fez a adaptação é muito compe­tente. O resultado é um texto acessível para um público de estudantes brasileiros. Esse é um caso. Outros certamente virão. Eu mesmo acabo de escrever um livro em conjun­to com o historiador portu­guês José Penha Arriga. Ele se chama Historiografia Luso­Brasileira Contemporânea.

• Na década de 1980, o senhor participou de uma espécie de projeto-piloto do Projeto Res­gate, não foi?

- Bom, também segui esse caminho. Tenho um estudo sobre o império luso-brasi­leiro que é uma quantifica­ção das relações comerciais

Carta sobre venda de negros de navio francês apreendido

- Se formos repassar essa história pregressa, vamos en­contrar muitas pessoas que tiveram consciência da im­portância dessa documenta­ção. Mas o movimento mais sistemático começou há cer­ca de dez anos, quando eu era diretor de Ciências Hu­manas e Sociais Aplicadas do

no contexto do império português. Esse trabalho, efetivamente, me levou a estudar não só Portugal, mas, so­bretudo, a Inglaterra. No contexto da formação da sociedade, do capitalis­mo, as relações envolvendo Brasil, Portugal e Inglaterra se tornaram privilegiadíssimas num momento es­sencial da vida brasileira, aquele que antecede a Independência.

• Isso continuou?

- Não. Depois da aposentadoria do professor França, percebemos que as pessoas estavam gradativamente abandonando esse campo. Era, então, necessário formar uma nova geração de pesquisadores interessados em Por­tugal. Foi assim que tomei uma série de iniciativas junto aos historiadores portugueses. Eles vieram ao Brasil, deram aulas, interessaram os alunos na história de Portugal, e vice-versa. Ultimamente, essa aproximação en-

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tre Portugal e Brasil cresceu muito. Cresceu a tal ponto que agora já é possível trabalharmos em conjunto.

• E as publicações?

- Ultimamente, os livros dos histo­riadores portugueses começaram a ser publicados no Brasil. A Editora da Universidade do Sagrado Coração de Bauru, por exemplo, publicou o livro História de Portugal. Trata-se de uma história de Portugal escrita por vári­os professores. É uma obra coletiva. Os principais historiadores portu­gueses fizeram sínteses de cada peda­ço da história de Portugal, dentro de sua especialidade. O importante é que esses historiadores aceitaram ser "traduzidos" para o português falado no Brasil. Então, o livro foi publicado com grafia usada no Brasil, não na de Portugal.

• O resultado ficou bom?

CNPq. A propósito de come­morar o centenário de acontecimen­tos como a Proclamação da Repúbli­ca e a Abolição da Escravatura, foram organizados vários eventos. Houve congressos, publicações de livros e documentos. Um acontecimento es­pecial, relativo à Inconfidência Mi­neira, foi a publicação da documen­tação do Arquivo Ultramarino relativa a Minas Gerais. Foram aber-

. tas cerca de 190 latas. O CNPq, na oportunidade, mobilizou recursos para que um pesquisador, o professor Caio Boschi, fosse a Portugal.

• E depois?

- Em 1994, o Ministério da Cultura encarregou Esther Bertoletti de fazer o trabalho em escala nacional. A Es­ther assumiu o bastão e distribuiu estí­mulos para que o trabalho fosse reali­zado nacionalmente. Em 1997 e 1998, achei que estava na hora de fazer o trabalho também em São Paulo.

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Joaquim Antero Romero Magalhães

O coordenador das comemorações do Quinto Centenário do Descobrimento do Brasil em Portugal é professor catedrático da F acuidade de Economia da Universidade de Coimbra. Foi deputado à Assembléia Constituinte de 1976, secretário de Estado da Orientação Pedagógica e presidente da Assembléia Municipal de Coimbra. É licenciado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Obteve o doutorado, em História Econômica e Social, pela mesma universidade. Já lecionou como professor convidado na Universidade de São Paulo (USP).

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A diversidade também é importante Opiniões diferentes ajudam a estudar a história

Um dos principais histo­riadores portugueses, Romero Magalhães defende a diversidade de enfoques, diz que

a contribuição luso-brasileira passa pelas universidades e adverte que o pesquisador não precisa esperar pela documentação para abrir novas li­nhas no estudo da história.

• O que vem marcando, em Portugal, as comemorações dos 500 anos do Des­cobrimento do Brasil?

-Muito tem sido feito em Portu­gal para assinalar a efeméride dos SOO anos da chegada de Pedro Álvares Cabral a ter­ras que v1nam a ser parte do Brasil. Insti­tuições oficiais e uni­versidades muito em especial se preocupa­ram com isso. Mas não apenas. Funda­ções e outras entida­des privadas também procuraram assinalar a passagem desses pri­meiros cinco séculos de um imenso e por­tentoso país que fala português. Não tanto apenas quanto ao que interessa à história, mas também ao que nos pode interessar, como pessoas e como cidadãos.

marina relativos ao período colonial do Brasil se vincula com as comemo­rações do Descobrimento, do ponto de vista de Portugal?

-A Comissão Nacional para asCo­memorações dos Descobrimentos Portugueses, entidade governamen­tal, colaborou ativamente nesse pro­cesso. Foi entendido que o que im­porta é o que fica feito e publicado. Importa tudo o que contribua para o alargamento dos nossos conheci­mentos sobre um passado comum. Isso explica, a aposta feita no pro­jeto, que da parte do Brasil se cha­ma "resgate", e da parte portuguesa, "reencontro".

• Como o trabalho de catalogação e microfil­magem dos documen­tos do Arquivo Ultra-

Homens pardos de confraria requerem licença ao rei

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• Com a catalogação e a microfilma­gem dos documentos, um número maior de historiadores brasileiros terá condições de realizar mais estudos so­bre o período colonial do Brasil. Os historiadores portugueses também se sentiram estimulados com as come­morações do Descobrimento e propu­seram novos trabalhos, tomando por base os documentos do Arquivo Ultramarino?

-O Arquivo Histórico Ultrama­rino é apenas uma parte do que foi o arquivo do Conselho Ultra­marino, entidade que durante os séculos 17 e 18 era a responsável pelo aconselhamento do rei ab­soluto de Portugal em matéria de administração do ultramar. Os investigadores brasileiros e portugueses sabem-no. E não precisaram da microfilmagem para iniciarem a busca de docu­mentação em tal acervo.

• Esse trabalho pode ser ampliado?

- Sim. É bom não esquecer que outros fundos, como os da Torre do Tombo, os dos municípios (como Lisboa, Porto, Viana do Castelo, Braga, ou muitos outros)

pectativa quanto a esses documentos e quais perspectivas eles abrem para a historiografia portuguesa?

- Toda a documentação disponível é bem-vinda para os historiadores. Mas não devem estes esperar por no­vos documentos para se lançarem nas pesquisas que lhes interessam. E,

e misericórdias são indispensá- Animais do Maranhão: no século 17 veis para alargar as nossas fontes de informação. E, como não, os arquivos dos tabeliães. Indispensá­veis. Todos. Veja-se os recentíssimos trabalhos de Ângela Domingues, de André Ferrand de Almeida ou de Má­rio Olímpia Ferreira, que utilizam com apurada minúcia materiais que estavam depositados em arqmvos portugueses e brasileiros.

• Como uma espécie de contrapartida à liberação para a microfilmagem e envio ao Brasil dos documentos do Ar­quivo Ultramarino de Lisboa, os histo­riadores portugueses poderão inventa­riar e microfilmar documentos do período colonial que permanecem em arquivos brasileiros. Só na antiga capi­tania do Rio de Janeiro, existem 100 mil desses documentos. Qual sua ex-

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sobretudo, há que não esquecer o que há muito nos ensinaram Marc Bloch e Lucien Febvre: sem história, não há documentos. O inverso não é ver­dadeiro.

• Qual a visão predominante da histo­riografia portuguesa sobre as navega­ções e o descobrimento do Brasil?

- Em Portugal não há uma visão predominante sobre a historiografia. Há visões, plural mais rico e mais en­riquecedor. As divergências são pos­síveis e desejáveis. Por isso, há quem teime em pensar que a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil foi in­tencional e os que persistem em refu­tar essa possibilidade. No que todos

concordam é na necessidade de estu­dar a construção do Brasil, muito mais do que a sua descoberta. Não vale a pena pensar em descobrir do­cumentos sobre o que se terá passado em 1500. Eles até podem vir a apare­cer. Mas não será muito provável que isso aconteça.

• Particularmente, o que o senhor espera quanto ao desenvolvimento de estudos históricos conjuntos de Brasil e Portugal?

- Feliz ou infelizmente, as pes­quisas históricas passam sobre­tudo pelas universidades. Tudo correrá bem se entre as universi­dades portuguesas e as brasileiras se estabelecerem linhas de inves­tigação comuns ou, pelo menos, convergentes. E é bom que assim seja. O contributo do conheci­mento do outro é sempre parte indispensável do nosso próprio conhecimento.

• Em que medida a relação de Por­tugal com o Brasil, sua ex-colônia, continuou a influenciar a história portuguesa depois da Independên­cia, em 1822?

- Até cerca de 1960, o Brasil foi o maior "importador" de emi­grantes portugueses. Alguns mi-

lhões de portugueses e seus descen­dentes continuam a ter importância. Isto diz tudo.

-• Quais as principais tendências hoje da historiografia em Portugal? Há uma relação maior com a história das mentalidades ou são seguidas outras linhas, como, por exemplo, a funda­mentação econômica da história?

- O tempo das tendências de um só sentido já não têm audiência. A his­toriografia portuguesa continua plu­ral, variada nas suas inspirações teó­ricas e interesses empíricos. E, como sempre, há que distinguir entre bons e maus historiadores. Porque em to­das as correntes sempre os há.

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Fernando Antonio Nova is

Um dos mais conhecidos historiadores brasileiros, Novais é pesquisador do Núcleo de Estudos Econômicos do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi professor da Universidade de São Paulo (USP), instituição onde se formou em Geografia e História, em 1957, e obteve o doutorado em ciências, em 1973. É autor de diversas obras. É dele a obra Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial e a organização do trabalho História da Vida Privada no Brasil, editado em quatro volumes em 1997

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Ter sido colônia é a diferença do Brasil Cada país tem características que o tornam único

Planta da Igreja Matriz de Vila do Desterro: Santa Catarina, 1747

Para Fernando Novais, as descobertas não termi­naram. Milhares de docu­mentos, inclusive os origi­nais de Os Lusíadas, como

foram escritos por Camões antes de serem submetidos à censura, ainda esperam nos arquivos de Lisboa.

• Na sua tese de doutorado, o senhor trabalhou com documentos de entre 1777 e 1808. Foi muito difícil achar es­ses documentos?

- A posição da documentação em meu trabalho não se distingue em nada de outros trabalhos de história. É característica dos trabalhos de his­tória estarem centrados na docu­mentação. Todos os trabalhos são ba­seados em fontes de documentação diretas. Elas não têm, necessariamen­te, de ser inéditas. Mas há uma tradi­ção, sobretudo quando se trata de te-

ses, de que se deve sempre trabalhar com fontes primárias.

• A documentação, então, é central?

- Sim, a documentação sempre ocupa uma posição central nas pesqui­sas de história, mais do que em outras áreas. Em todas as ciências sociais, a

- documentação equivale à pesquisa empírica nas ciências exatas, à expe­rimentação na química. Na história, é ainda mais fundamental do que nas outras ciências sociais. Certamente, a história é menos ciência do que elas. Além de tentar explicar o aconteci­mento, ela procura reconstituir.

• Por que a história é menos ciência do que as outras ciências sociais?

- Porque seu objeto não é perfeita­mente definível. Como dizem os ma­nuais de metodologia científica, duas

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coisas caracterizam qualquer ciência: a delimitação de um objeto e a ade­quação de um método a esse objeto. Qual é o objeto da história? Tudo o que acontece ao ser humano, em qual­quer época e em qualquer lugar. Logo, o que caracteriza esse objeto é ele não ter limites.

• Como era na época o Arqui­vo Ultramarino?

ta do arquivo para o catálogo. Mas, por mais que a catalogação seja bem feita, e considero esta do Resgate muito ampla, ela não destrói de todo a descoberta no Arquivo, pois há coi­sas que ficam fora do lugar. O pesqui­sador, por exemplo, está mexendo na documentação do Ministério do Rei­no e acha uma coisa sobre o Brasil

mães. Ele o enviou para a censura, antes de ser publicado. Na época, a Inquisição arquivava os originais, in­clusive para determinar se não fora feita alguma mudança quando o tex­to era publicado. Os historiadores de Literatura já indicaram vários versos de Os Lusíadas que devem ter sido modificados pela censura. Como?

Porque se trata de um assun­to perigoso e o verso está num patamar de qualidade muito inferior ao de Camões.

• Até hoje, então, não se acha­ram os originais de Camões?

- Não. E ele está lá, no Ar­quivo Nacional de Lisboa, na Torre do Tombo. Só os pro­cessos da Inquisição são de­zenas de milhares, cada um com cerca de 2 mil páginas. Além dos processos, há ou­tros textos relativos à Inquisi­ção. Creio que só 10% dos processos estão catalogados. Imagine o que vai acontecer quando alguém, finalmente, descobrir os originais de Ca­mões. Além do valor de um documento escrito e assina­do pelo próprio Camões, sa­beremos, finalmente, como eram os versos realmente es­critos por ele.

-Não fiz a pesquisa somen­te nesse arquivo. Trabalhei em outros arquivos portu­gueses, em Lisboa e em Évo­ra, e em arquivos brasileiros. Mas, no conjunto, o mais usado foi o Arquivo Ultra­marino. Hoje, ele está muito melhor organizado. Havia na época um índice de códices, preparado por uma historia­dora alemã. Eram mais de 3 mil códices. Não era um ca­tálogo, que descreve o que há em cada códice, era simples­mente um índice. Além desse material, havia a chamada documentação avulsa. Eram maços ou caixas, com indica­ções sumárias, o local e o pe­ríodo. Uma enorme parte da documentação não estava nem em maços. Provavel­mente, estava totalmente iné­dita. Não existe mais isso. Todo o material está pelo menos dividido por área. Mas, na época, boa parte do

O governador das Minas: plano contra extravios de ouro • Dos vários documentos existen­tes no Arquivo Ultramarino, quais o senhor achou mais inte­

que consegui foi fruto de um autên­tico trabalho de garimpo. Um bom, catálogo é muito importante. Facilita muito a pesquisa. Chega-se já saben­do o que se vai pedir, não é mais pre­ciso garimpar. Mas desaparece um certo prazer que o historiador tem, de ficar garimpando coisas num arquivo até achar algo interessante.

• A catalogação, então, diminui o en­tusiasmo do pesquisador?

- Não, de forma alguma. A catalo­gação transfere o prazer da descober-

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que deveria estar no Ministério do Ultramar. Se até hoje as coisas são postas no lugar errado, imagine na­quela época.

• Então sempre poderá haver uma descoberta?

- Sim. Além disso, há arquivos que ainda não estão totalmente cataloga­dos. Imagine que há entre 35 mil e 40 mil processos da Inquisição em Lis­boa. Num desses processos deve estar o original de Os Lusíadas, escrito pela própria mão do poeta Luís de Ca-

. ressantes para sua pesquisa?

- Há vários tipos de documento nesse arquivo. Existem, inclusive, do­cumentos totalmente avulsos, que ninguém sabe como foram parar lá. Só com a garimpagem será possível avaliá-los. Muitos são cartas pessoais. Nesse sentido, a catalogação facilita muito o trabalho.

• Quais são os documentos básicos?

- Creio que são as atas das reuniões do Conselho Ultramarino. Esse con-

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selho era o órgão da administração portuguesa equivalente a um Minis­tério das Colônias. Foi criado pouco depois de 1640, quando houve a res­tauração e Portugal se separou da Es­panha. A restauração ocorreu sem maiores problemas nas colônias. Mesmo assim, o novo governo queria consolidar o poder sobre as colônias. Outros documen­tos importantes são as consultas dos benefícios, as con­sultas do Conse­lho Ultramarino.

• O que são essas consultas?

da colônia, vai para o Conselho. Só chega ao rei pelo do Conselho. Os conselheiros se reúnem, discutem e encaminham o problema para o rei. Muitas vezes, há reclamações que se­guem diretamente para o soberano, pois a gente da alta nobreza podia se dirigir pessoalmente ao rei. Mas o rei encaminhava tudo ao Conselho.

tomar tais e tais providências': O que acontece é o inverso. O rei é quem está consultando. Mas o rei não pode consultar nem pedir o conselho de ninguém. Esses documentos são cha­mados de consultas. Falamos, por exemplo, na "Consulta do Conselho Ultramarino de março de 1749 sobre tal assunto':

• A correspon­dência dos gover­nadares não era dirigida ao rei?

- É um docu­mento de assesso­ria. No regime absolutista, a ter­minologia reflete o conceito do po­der. Por exemplo, a carta régia é um alvará com força de lei. Os docu­mentos legais assi­nados pelo rei ti-

Planta do Forte de Nossa Senhora dos Remédios, Ilha de Fernando de Noronha: 1739

-Sim, mas ia para o Conse­lho. As únicas exceções ocor­nam com pa­rentes do rei ou com pessoas de quem o re1 gos­tava muito. A correspondên­cia também é muito impor­tante porque re­gistrava os pro­blemas que

nham uma introdução informando o assunto sobre o qual tratavam. A pas­sagem da descrição do assunto para a determinação é feita pela expressão "sou servido a': Geralmente, "sou ser­vido a ordenar e como rei o faço': A introdução é uma justificativa por­que o rei é generoso e acede em dar explicações. Mas ele não precisa ex­plicar nada. O motivo pelo qual ele determina é a sua vontade, por isso é servido a dar uma ordem.

• Essas justificativas são longas?

-Às vezes, sim. A introdução é sem­pre muito importante, porque define o problema.

• Como era o processo?

- Toda a correspondência dos go­vernadores de capitanias, governado­res-gerais e vice-reis, no período final

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Como o rei, por definição, sabe tudo, ele é rei por direito divino, é represen­tante de Deus na Terra, não pode ser instruído, nem pode ser assessorado.

• Ele sabe tudo?

- Sim. Mas, na prática, o rei precisa da assessoria do Conselho. Às vezes, ele é um menino, às vezes ele é um débil mental. Mas a terminologia tem de estar de acordo com o conceito. É o rei que é consultado, não o contrá­rio. Digamos que chega ao conheci­mento do rei que jesuítas e colonos estão brigando no Maranhão por causa do preço dos estábulos. O rei, então, envia o problema ao Conselho Ultramarino, com a ordem: "Consul­tem-me sobre esse assunto". Os con­selheiros, então, escrevem longos re­latórios, onde diziam: "De fato constatamos e consultamos Sua Ma­jestade sobre se talvez não se devesse

ocornam nas capitanias. É interessante comparar a correspondência com as leis que eram promulgadas. O Conselho Ul­tramarino também cuidava de leis. Nem toda a legislação do período co­lonial já foi publicada.

• Há mais material?

- O material das instruções é muito interessante. Todos os vice-reis que serviram no Brasil, de 1763 a 1811, receberam instruções e fizeram as re­sidências. As residências são docu­mentos nos quais o vice-rei presta con­tas à Coroa. Quando a residência não era aprovada, ele podia até ser preso.

• Quem aprovava, o rei?

-Era o Conselho Ultramarino, que "consultava" o rei. Localizei todas as instruções no Arquivo Ultramarino. Antes, só duas ou três tinham sido

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publicadas. Algumas estavam catalogas, outras não. Consegui localizar todas e as analisei, uma por uma. Não consegui todas as residências. Mas o que obtive foi suficiente para ter uma visão geral. Além das ins­truções e residências, há os re­latórios. Um dos mais impor­tantes é do vice-rei marquês de Lavradio. Ele foi publicado num dos primeiros números da revista do Instituto Históri­co e Geográfico Brasileiro, em 1841.

• O senhor vê a investigação do período colonial brasileiro como uma necessidade para compreen­der mais profundamente a cons­trução do Brasil?

a da América do Norte. É por isso que o estudo da colônia é fundamental, porque esse estu­do é o estudo da formação do Brasil. Nossa formação é uma formação escravista. É colonial e escravista. Quanto melhor compreendermos isso, melhor compreenderemos o que somos. É a base da nossa sociedade.

• E daí?

- Todo país, toda nação, quando faz sua história, deve procurar aquilo que é específi­co. O específico, no caso do Brasil, é ter sido uma colônia. É isso que diferencia o Brasil de outros países e aproxima o Brasil dos países da América. É

Mato Grosso: proibição para a compra e venda de mulas

- Daí que as pesquisas rela­cionadas com o período colo­nial são absolutamente indis­pensáveis. Qualquer estudo sobre o Brasil contemporâneo, o Brasil nação, tem embutido uma visão da colônia. Não se pode estudar o Brasil atual sem uma visão da colônia, queira ou não queira, seja ela melhor ou pior. A visão do Brasil nos séculos 19 e 20 será melhor ou pior, conforme os estudos dos historiadores sobre a colônia. Sejam estudos de historiadores ou de cientistas sociais.

o que distingue o país, também, dos países da Europa. Se perguntarmos o que é específico de Portugal como nação, é o de ter sido um feudo que se transformou num reino e, mais tarde, num Estado moderno. A Fran­ça, por outro lado, é formada por feudos que se juntaram. Portugal é um feudo que se destacou, a França é um conjunto de feudos que se agre­garam. A Espanha não é uma junção de feudos, mas de reinos. Cada país tem seu processo de formação.

• E o Brasil?

- O específico do Brasil é ter sido uma colônia. Antes de ser Brasil, era uma colônia de Portugal. Se a colônia se chamava Brasil ou não, não im­porta. Não era o Brasil nação, era o Brasil colônia. Aliás, o nome Brasil só foi aplicado a toda a colônia depois de certo tempo. O norte foi chamado várias vezes de Estado do Grão-Pará

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e Maranhão e o nome Brasil só se aplicava ao sul. O Brasil, assim, é uma colônia que se transformou numa nação, algo diferente de um feudp que se transformou em reino. A vin­culação de uma colônia com sua me­trópole não é a mesma de um feudo com seu senhor. A relação do feudo com o senhor é uma relação desuse­rania, a de uma colônia com sua me­trópole uma relação de soberania. Um feudo não se torna independente. Ele se torna autônomo. A colônia, sim, se torna independente. Por isso, o Brasil teve uma independência.

• Isso aproxima o Brasil dos Estados Unidos e da América Espanhola.

- Sim, essa é a formação dos países da América em geral. Mas precisamos ver também que tipo de colônia o Brasil era de Portugal. Isso nos apro­xima mais da colonização espanhola e da encontrada nas Antilhas do que

• E o papel de Portugal?

- O estudo da colonização portu­guesa é fundamental. O Brasil é uma colônia que virou nação. Para estu­dar a colonização, é essencial ter uma documentação, a documentação do Arquivo Ultramarino, do qual se está fazendo o resgate. Mas também é preciso dizer algo que talvez distoe das comemorações. Toda documen­tação é importante. Ela precisa ser conhecida. Mas o conhecimento de­finitivo de uma realidade não se esgo­ta com o estudo da sua documentação. Por quê? Porque estamos falando de história, não de peixes, pedras ou ár­vores. Se fosse assim, quando todos os documentos do Arquivo Ultra­marino estiverem lidos, não haverá mais história da colonização portu­guesa. Não é isso o que vai ocorrer. Os mesmos documentos podem ser lidos de maneira diferente, a qual­quer momento.

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Rui Rasquilho

Professor de História, Rasquilho ocupa, desde 1995, o cargo de conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Brasília. Faz parte desde 1994 do corpo especializado do Ministério dos Negócios Estrangeiros. É diretor do Instituto Camões no Brasil e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da Academia Lusíada de São Paulo. Poeta, publicou seu primeiro livro de poesias, Do Lado Oposto do Tempo, em 1996, quando já estava em Brasília. O mais recente, O Limite do Fogo, saiu em 1998.

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A história é um patrimônio comum Brasileiros e portugueses podem colaborar mais

Historiador português Rui Rasquilho vê no Projeto Resgate um si­nal de aproximação dos pesquisadores dos

dois lados do Atlântico e usa argumen­to de peso para defender os trabalhos conjuntos: só o conhecimento da ver­dade para substituir os equívocos nas re­lações entre brasileiros e portugueses.

• Como as comemorações dos 500 anos da viagem de Pedro Álvares Cabral ao Brasil estão ajudando a desenvolver o conhecimento da história comum de portugueses e brasileiros?

- As comemorações conjuntas dos SOO anos do descobrimento do Bra­sil, unindo portugueses e brasileiros, trouxeram um importante estímulo à investigação histórica. De maneira particular, intensificaram o acesso de equipes brasileiras de pesquisa ao Ar­quivo Histórico Ultramarino de tis­boa. Uma parte substancial deste ar­quivo, importantíssima para a história do Brasil, estava ainda por ser estudada. Nem mesmo estava classi­ficada. Por isso, a S!Ja reorganização, levan­tamento e passagem para microfilme e CD-ROM são im­portantíssimos para futuras pesquisas.

- Cada vez mais, o Brasil e Portugal descobrem um ao outro. Cada vez mais, historiadores de ambos os paí­ses se encontram em congressos. Disso resulta que fazem investigações comuns, escrevem sobre a história dos dois países. A continuação deste trabalho conjunto será, a partir da conclusão do Projeto Resgate, feita a partir dos milhares de documentos agora colocados à disposição dos his­toriadores.

• Então esse projeto pode ser considera­do muito importante para o futuro?

- Desde que em 1943 se criou a Co­missão de Estudos dos Textos de His­tória do Brasil que nada de tão impor­tante havia sido feito nesse campo de estudos como o Projeto Resgate. As notícias de que o trabalho de micro­filmagem será ampliado são muito interessantes. Deve-se assinalar que não é apenas em Portugal que oBra­sil tem uma vasta documentação his­tórica sobre o seu passado. Em ou­tros países da Europa, na Holanda e

• Em que medida este trabalho, o Projeto Res­gate, poderá ser útil também para futuras colaborações entre Por­tugal e Brasil na área da história?

Pará: planta e alçada de um trem de artilharia

IS

na França, sobretudo, há conjuntos de documentos muito importantes, que terão inegavelmente uma enor­me valia para a compreensão do pas­sado do Brasil.

• O trabalho de microfilmagem tam­bém facilitará o acesso dos historiado­res portugueses aos documentos do Ar­quivo Ultramarino? Podemos esperar novos estudos de histo­riadores portugueses, nos quais o material recolhido pelo Projeto Resgate será aproveitado?

- Não tenho qualquer dúvida de que os historiadores con­temporâneos, dos dois lados do Atlântico, poderão, a partir da microftlmagem sistemática dos documentos da época colonial do Brasil, vir a redesenhar no­vas teorias ou chegar a novas conclusões sobre a história co­mum luso-brasileira. Falo so­bre todos os documentos exis­tentes na Europa, não apenas os que estão no Arquivo Ultra­marino ou mesmo em territó­rio português.

decidida pela verdade. Compartilhar o passado é prestar um serviço ao fu­turo.

• Foi publicado recentemente um livro de um historiador português, Jorge Couto, sobre os primeiros anos do Bra­sil, chamado A Construção do Brasil. Esse livro seria um exemplo do apro-

• Qual é a situação atual do interesse de estudos sobre o Brasil por parte da historiografia portuguesa?

- É cada vez mais evidente o inte­resse dos pesquisadores portugueses sobre o Brasil. Ele aparece em diver­sas áreas do estudo da história. As publicações recentes demonstraram

de maneira muito clara o inte­resse que brasileiros e portu­gueses manifestam, em sucessi­vos colóquios e congressos bilaterais, sobre a divulgação mútua de sua história.

• Na sua opinião, como poderia ser alcançada uma maior arti­culação entre as investigações históricas portuguesas e brasilei­ras? Quais os grandes temas que deveriam ser estudados em pri­meiro lugar num projeto co­mum de pesquisas históricas, envolvendo Brasil e Portugal?

• Numa espécie de contraparti­da à abertura do Arquivo Ultra­marino para os pesquisadores brasileiros, os historiadores por­tugueses terão acesso a docu­mentos, inclusive aos relativos à administração portuguesa que permanecem em arquivos brasi­leiros desde a viagem de dom João

Ofício sobre o padre Nicolau, que exportava ouro em pó

- É inquestionável que du­rante cerca de 300 anos Brasil e Portugal viveram em comum. Melhor dizendo, o Brasil fazia parte do território português. Por isso, os projetas comuns luso-brasileiros são fundamen­tais para que se compreenda o nosso passado comum. Quan­to aos grandes temas, os novos levantamentos feitos por meio do Projeto Resgate vão com cer­teza indicar caminhos para no­vas e interessantes pesquisas.

VI para o Rio de Janeiro. O senhor acre­dita que esses documentos serão úteis para a historiografia portuguesa?

- A filosofia é a mesma. Isto é, só haverá benefícios para Portugal se as fontes e documentários existentes no Brasil forem colocados em Portugal, à disposição dos nossos historiado­res. O princípio do patrimônio co­mum, estabelecido pela Unesco para casos como este, é um modelo muito eficaz para que nos conheçamos me­lhor e acabemos com os equívocos, substituindo-os de maneira firme e

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veitamento de fontes çomuns, em Por­tugal e no Brasil?

-O livro do doutor Jorge Couto, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, é provavelmente o mais importante estudo contemporâneo sobre a formação do Brasil e sobre a sua construção, antes e depois da che­gada dos portugueses. O doutor Jor­ge Couto trabalhou exaustivamente as fontes disponíveis e o seu texto é um testemunho evidente do trabalho de pesquisa que os historiadores cos­tumam realizar.

• Esses projetas precisariam ter um ca­ráter nacional?

-Não. É certo que muitos dos pro­jetas luso-brasileiros poderão ser es­taduais ou no mínimo regionais, tal a riqueza da documentação escrita le­vantada e tratada nos últimos anos. Também é certo que esse trabalho co­mum entre portugueses e brasileiros é de insuspeitado alcance cultural e histórico. Só não uso a palavra exem­plar porque se trata de um conceito que não é de meu particular agrado.

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Heloísa Liberalli Bellotto

A professora Heloísa chefiou, em Lisboa, a equipe encarregada do resgate dos documentos do Arquivo Ultramarino relativos à Capitania de São Paulo. Ela é professora do curso de pós-graduação do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) e do curso de especialização em Arquivística do Instituto de Estudos Brasileiros, da mesma universidade. Formou-se e obteve o doutorado em História na USP. Tem ainda o grau de bacharel em Biblioteconomia e fez cursos de especialização em Arquivística na França, Espanha e nos Estados Unidos.

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Um Brasil com contornos mais nítidos Aumenta a consistência do retrato do país

Planta do novo palácio episcopal: São Paulo, 1743

Para a historiadora que chefiou o resgate dos do­cumentos referentes a São Paulo no Arquivo Ultra­marino, não se devem es­

perar informações espetaculares do Projeto. Mas está para vir um quadro muito mais claro ·e consistente do que era a vida e o jogo do poder no Brasil Colônia.

• Qual o ponto de partida para o tra­balho de descrição e microfilmagem dos documentos referentes à capitania de São Paulo existentes no Arquivo Ul­tramarino de Lisboa?

- Os trabalhos de descrição dos documentos referentes à Capitania de São Paulo começaram em 1998. Estavam dentro da seqüência da

programação do Projeto Resgate. Soubemos que teríamos de traba­lhar com duas vertentes. Uma era a revisão de um catálogo preexisten­te, finalizado e publicado em i954, por ocasião do quarto centenário da cidade de São Paulo pelo histo­riador Alfredo Mendes Gouveia. Seria feito o confronto entre o catá­logo e a documentação que ele des­crevia. A segunda parte do trabalho seria a descrição de outros docu­mentos, isto é, a elaboração de ver­betes descritivos do restante dos do­cumentos referentes a São Paulo. Esse material ainda não tinha sido submetido à descrição porque esta­va inserido, quando foi feito o traba­lho de Mendes Gouveia, em outros conjuntos. Estava em outros lugares do arquivo.

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• Havia muito material?

-As peças documentais descritas no catálogo totalizavam 5.113, e as inédi­tas, a serem trabalhadas, 1.383. Pri­meiro, fixamos e redigimos os verbe­tes. Depois, eles foram impressos e recortados. Numa etapa seguinte do trabalho, que já era da alçada dos

• O que é diplomática?

- Trata-se da área das ciências do­cumentárias que se ocupa não só da estrutura formal do documento e da sua natureza jurídica, mas que tam­bém analisa o seu contexto de produ­ção. Seu raio de ação desenvolve-se entre a actio, isto é, a ação, o fato, o

funcionários do Arquivo Ultrama­rino, esses verbe­tes foram presos aos respectivos documentos, pa­ra assim consta­rem na microfil­magem. Isso e a passagem dos fotogramas para CD-ROM foram atividades de gru­pos portugueses e brasileiros alheios à nossa equipe, que era encarre­gada apenas do trabalho científi­co propriamente dito.

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• Esse trabalho de descrição exige co­nhecimentos his-

Planta geral da nova Sé de São Paulo, em 1743

tóricos, mas também preparo em pa­leografia, em muitos momentos. É possível descrever um pouco o processo de um trabalho dessa natureza e as suas diversas etapas?

- A primeira parte é a leitura e análise dos documentos. Depois, vem o trabalho de síntese, aquele que conduz à elaboração de um ver­bete unitário de catálogo. O verbete, por sua natureza, precisa ser conci­so. Mas não pode esconder infor­mações necessárias à compreensão prévia do que a arquivística chama de estrutura e substância do docu­mento. Este trabalho, sim, tem as suas exigências. Além da necessida­de do conhecimento da história, há a necessidade de conhecimentos de diplomática.

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processo/procedimento jurídico-as­ministrativo, e a conscriptio, isto é, a sua concretização, enquanto veículo documental, válido para produzir efeito jurídico. Só fazendo uso desses conhecimentos o documentalista, ao redigir o verbete descritivo, será ca­paz de estabelecer aquele elo sufi­ciente e necessário entre o documen­to e o pesquisador.

• Quantas pessoas se envolveram no trabalho de descrição dos documentos de São Paulo e quanto tempo levou esse trabalho?

-Foram cinco os integrantes do Pro­jeto Resgate a compor a equipe para São Paulo. Dois eram arquivistas do Arquivo do Estado de São Paulo, his­toriadores e bolsistas do Conselho

Nacional de Pesquisas (CNPq), Elia­ne Bisan Alves e José Roberto de Sou­za. Havia também uma historiadora, mestranda em História do Brasil da Universidade Clássica de Lisboa e bolsista da Comissão Nacional dos Descobrimentos Portugueses de Por­tugal, a portuguesa Paula Gonçalves. Tínhamos ainda um historiador que

já atuara em ar­quivos brasileiros e no trabalho do Projeto Resgate pa­ra outras capita­nias, bolsista do CNPq e douto­rando em Paleo­grafia da Univer­sidade Nova de Lisboa, Gilson Sérgio Matos Reis. Finalmente, eu, professora da pós-graduação em História da Faculdade de Fi­losofia, Letras e Ciências Huma­nas da Universi­dade de São Pau­lo (USP) e do curso de Arqui-vística do Insti­tuto de Estudos

Brasileiros da USP e, além disso, bol­sista de pós-doutorado da FAPESP.

• Quanto tempo levou o trabalho?

- O ciclo completo do trato dos do­cumentos foi de 14 meses. Teve lugar de junho de 1998 a agosto de 1999. O cronograma cumprido foi de cerca de três meses para as tarefas iniciais, oito meses para a elaboração dos ver­betes e três meses para a revisão final, que incluía correção de texto, ajustes topográficos, equivalência de nota­ções (chamadas de cotas, na termi­nologia arquivística portuguesa) e a substituição de unidades de arquiva­mento, as capilhas.

• Há fatos e situações novas relatados nesses documentos? É possível descre-

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ver descobertas ou curiosidades neles reveladas?

- O que o Projeto Resgate traz de novo é o que poderíamos chamar de um certo preenchi­menta, uma certa reintegração entre os cheios e os vazios no tecido esgarçado da história. Foi com essa expressão que al­guém já adjetivou aquela cons­trução que o historiador vai elaborando, ao amalgamar os dados obtidos nos documentos com a sua própria percepção e compreensão dos momentos estudados e a partir, mesmo, das outras ferramentas que fa­zem parte da sua formação profissional. No ponto de vista do Projeto Resgate, não interes­sa tanto dizer que ele traz à luz fatos ou situações antes não co­nhecidas, descobertas ou cu­riosidades, e sim afirmar que ele torna a história do Brasil colonial mais consistente, me­nos permeável, mais nítida em seus contornos e mais suscetí-

Consulta ao príncipe sobre terras no sul do Brasil

vel de ser entendida numa macrovi­são de espaço, tempo e circunstân­cias. Isso, a meu ver, é infinitamente mais importante.

• Ainda há espaços não cobertos?

-É preciso ter-se em mente que o Arquivo Histórico Ultramarino cus­todia os documentos produzidos, re­cebidos e acumulados pelo Conselho Ultramarino e pela Secretaria de Es­tado dos Negócios da Marinha e Do­mínios Ultramarinos, no exercício das suas funções, no período em que existiram. Não é um arquivo total da história do Brasil, mesmo porque isto não existe, os arquivos são sem­pre institucionais. Por exemplo, o Conselho Ultramarino só foi forma­do depois da restauração, depois que Portugal recuperou sua independên­cia da Espanha. Além disso, ele não cobria todas as áreas das relações en­tre o Brasil e a administração de Lis­boa. Nesse sentido, ali não estão, por

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exemplo, os atas das chancelarias, os atas dispositivos da Coroa, os regis­tras das outras agências governamen­tais do governo central. Também não se encontram os atas da área judiciá­ria, da área financeira e da área mlli­tar, mesmo quando dizem respeito às colônias. Estes documentos, em Por­tugal, acham-se nos arquivos nacio­nais da Torre do Tombo, no arquivo histórico do Tribunal de Contas e em vários outros arquiyos.

• O que há, então, nesse trabalho?

-O que vamos encontrar no Arqui­vo Histórico Ultramarino é o pulsar administrativo, é o dia-a-dia da go­vernação colonial. Isso porque o Conselho Ultramarino, além de estu­dar relatos, requerimentos e petições, faz análises e emite as consultas, que são pareceres elucidativos para as re­soluções a serem baixadas pelo rei. Fazia isso, além de exercer outras fun­ções administrativas que lhe foram

delegadas, relativas ao manejo dos domínios ultramarinos. Percorrer a documentação que foi objeto do Projeto Resgate é flagrar, no seu real tempo e lu­gar, as atitudes e comporta­mentos dos provedores, ouvi­dores, governadores, vice-reis e capitães-generais, sargentos­mores, oficiais das câmaras municipais e, sobretudo, pes­soas, sejam funcionários civis, militares ou eclesiásticos, se­jam povo simplesmente. É acompanhá-los, nos relatórios formais, nas queixas e solicita­ções, nas intrigas e prestação de contas, nas obediências e deso­bediências ao governo metro­politano. Também é possível detectar, de forma inequívoca, as reações desse governo me­tropolitano, em suas mais va­riadas nuances, durante quase 200 anos.

• Como historiadora, como a senhora avalia o Projeto Res­gate e as possibilidades de estu-

do que se abrem para os historiadores brasileiros?

- Como historiadora que, para sua tese de doutoramento, anos atrás, utilizou largamente a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino e ainda a vem utilizando, compreendo quanto o Projeto Resgate alarga as possibilidades da pesquisa no mate­rial existente nesse arquivo. Os novos dados agora revelados e a facilidade de acesso representada pelo suporte em microfilme e em CD-ROM com­plementam informações e respon­dem a indagações que, durante anos, haviam ficado sem resposta. Além disso, vai ser possível a pesquisa qua­se que simultânea em documentos das várias antigas capitanias brasilei­ras, o que era bastante complicado de ser feito no recinto do próprio arqui­vo, como é natural. Ora, isto facilita enormemente a confrontação de da­dos, em qualquer momento em que ela se fizer necessária.

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• Como a senhora vê a atual si­tuação da historiografia brasi­leira?

tante ampla a pesquisa sobre a história.

• Como assim? - A historiografia brasileira, durante muito tempo, de certo modo, deixou de lado a histó­ria colonial, isto é, a história luso-brasileira dos séculos 16 ao 19. Não sei se esta mudança ocorreu pela oportunidade de revisitação proporcionada pe­las comemorações dos SOO anos do Descobrimento do Brasil, ou se apareceu, nos últi­mos tempos, um esforço volta­do para aquele período da nos­sa história. Havia um problema a mais. Os estudos de história colonial tinham ficado marca­dos pela sua inserção num tipo de historiografia tradicional, positivista, pouco científica e, num certo período, muito liga­da, em suas publicações e em seus congressos e seminários, ao próprio salazarismo, o go­verno de tipo ditatorial que do­minou Portugal da década de

Carta reclama da falta de trilha para minas de Cuiabá

- No momento em que se torna senhor dos processos ad­ministrativos, que aprende como se originam, atuam e vigoram os atos normativos, comprobatórios e de informa­ção, o historiador pode ilumi­nar sua própria análise e fazer generalizações. Um dos inte­grantes da equipe de São Paulo do Projeto Resgate, Gilson Sér­gio Matos Reis, está preparando seu doutorado, na Universida­de Nova de Lisboa, justamente na área da diplomática, com uma tese sobre o funciona­mento do Conselho Ultrama­rino, nos seus 70 anos iniciais. Ele analisa toda a legislação que comanda a empresa da co­lonização de Portugal, dos meados do século 17 aos iní­cios do 18. A tese vai levantar e

1930 à de 1970. A atual "saúde", se me for permitido usar essa expressão, que encontro na historiografia colo­nial, será sensivelmente beneficiada pelo Projeto Resgate.

• Quais áreas ou temas serão mais be­neficiados?

-Abrem-se na área da história do Brasil possibilidades de pesquisa em campos antes pouco explorados. Posso citar o direito administrativo luso-brasileiro, as relações sociais en­tre os colonos e os funcionários vin­dos do reino, as disputas de jurisdição geopolítica entre sesmarias, comar­cas, distritos, municípios, capitanias e governos gerais. Vamos poder tam­bém estudar melhor as lutas pelo po­der entre as autoridades delegadas, sobretudo entre capitães-generais e ouvidores ou bispos, entre provedo­res e ouvidores, entre estes e os juízes de fora, etc., questões muito freqüen­tes na documentação do Projeto Res-

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gate. E não serão só os historiadores os que vão ganhar mais recursos. Ou­tras áreas do conhecimento também terão suas pesquisas facilitadas.

• Com a colaboração de pesquisadofes dos dois países?

- Tudo isso poderá ser objeto de pesquisas conjuntas. Na área da di­plomática histórica, que tão pouco tem sido alvo de estudos teóricos ou aplicados no Brasil, há todo um campo virgem a explorar. O estudo do funcionamento das instituições, sua base legal, os documentos que são produzidos, recebidos e acu­mulados no seu processo decisório não um exemplo. Os interessados poderiam analisar a estrutura for­mal de cada espécie ou tipo de do­cumento, além de sua tramitação habitual ou homogênea, desde a gê­nese da conscriptio até a consecu­ção final pretendida pela actio. Isso viria a enriquecer de maneira bas-

descrever a trama de docu­mentos entre a colônia e a metrópo­le, os contextos de produção, a tra­mitação e o arquivamento final dos documentos ascendentes (dos súditos para a Coroa) e dos docu­mentos descendentes (da Coroa pa­ra os súditos).

• O que podemos concluir?

- Esses estudos revelarão, mais do que as hipóteses há muito levantadas pelos historiadores, que houve, segu­ramente, nas relações entre o Estado português e a colônia brasileira, uma governação legal, aparente, controla­da e sobreposta. Mas nem por isso ela era mais poderosa do que uma outra, que funcionava nas entrelinhas, nos bastidores. Essa autoridade estava à margem dos textos. Mas podemos detectar sua presença até por esses mesmos textos. Contribuir para des­vendar toda essa trama é o fascinante trabalho que está à espera dos usuá­rios do Projeto Resgate.

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Esther Caldas Guimarães Bertoletti

A coordenadora técnica nacional do Projeto Resgate é formada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Jornalismo pela PUC da mesma cidade. Fez outros cursos em Buenos Aires, Roma e na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Como consultora da Fundação Ford, coordenou e implantou o Plano Nacional de Microfilmagem de Periódicos Brasileiros, trabalho pelo qual recebeu vários prêmios. Foi diretora de vários departamentos da Biblioteca Nacional e diretora substituta do Museu do Índio do Rio de Janeiro.

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Os pesquisadores diante de um desafio Chegou a hora de repensar a história da colônia

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No século 18, o Rio de Janeiro torna-se importante porto e capital da colônia

Coordenadora técnica na­cional do Projeto Resgate acha que a nova facili­dade de acesso aos dow­mentos sobre o período

colonial vai obrigar os historiadores a examinar outra vez fatos e interpre­tações e fazer surgir opiniões diver­gentes sobre o mesmo assunto.

• O trabalho de registro dos documen­tos do Arquivo Histórico Ultramarino só começou agora?

-Não, ele vem de muito longe. Co­meçou no século 19. Mas os pesqui­sadores que iam a Lisboa não tinham uma concepção de arquivista de his­tória, de fazer verbetes, como agora. Eles copiavam ipsis litteris os docu­mentos. Iam ao Arquivo Ultramari­no, passavam os olhos pelo material, achavam um documento curioso ou interessante e então o copiavam inte-

gralmente, sem fazer um resumo. Um desses pesquisadores foi o poeta Gonçalves Dias. Em várias cartas, ele se queixou do trabalho. Escrevia, por exemplo: "Não suporto mais, minha mão está muito cansada':

• Isso continuou por muito tempo?

- No começo do século 20, com­preendeu-se que seria impossível copiar à mão todos os documentos. Por essa altura, nem 5% do que ha­via tinha sido copiado. Só no Arqui­vo Ultramarino, são 3 milhões de pá­ginas manuscritas. Se formos contar os outros arquivos portugueses, mais o que há na Holanda, na Fran­ça, na Itália, o total deve ultrapassar os 5 milhões. Por mais que se man­dasse gente para Lisboa, o trabalho não terminaria.

• O que se fez, então?

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-Passou-se a contratar pesquisado­res portugueses, como Castro de Al­meida e Mendes Gouveia, com ins­truções para que fizessem resumos. Mas, em vez de fazer sumários bre­ves, eles faziam resumos de três ou quatro páginas. Muitas vezes, trans­creviam todo o documento e o junta­vam ao resumo. Veja o exemplo do Rio de Janeiro. Ele tem, no total, 414 caixas. Castro de Almeida conseguiu completar os resu­mos de apenas 88. Todas as outras 326 caixas estão sendo feitas agora.

• Como se trabalha atual­mente?

- Faz-se um resumo breve. Um verbete de São Paulo, por exemplo, diz: "ofício do go­vernador tal ao secretário tal, comentando sobre a epide­mia de bexiga e pedindo a chegada imediata de remé­dios para atender a popula­ção': Agora, basta o resumo, pois temos a íntegra do docu­mento em microfilme.

• Qual é a previsão para o fim dos trabalhos?

me, quando no Arquivo Ultramarino usamos cerca de 3 mil. Também va­mos copiar os documentos da Casa da Suplicação, que recebia todos os processos. Com esses dois conjuntos, o da Inquisição e o da Casa da Supli­cação, pretendemos encerrar a massa documental em Portugal.

• O trabalho estará completo?

Caio ( . Boschi (Cnord.)

do preparado?

- Esperamos terminar até o fim deste ano o Guia de Fontes para a História do Brasil Holandês. Será uma lista dos arquivos holandeses com documentação sobre o Brasil. Logo depois, talvez ainda em 2000, sairão trabalhos semelhantes sobre França, Espanha e Itália. São países que tive­

ram uma aproximação muito grande com o Brasil. Veja, por exemplo, o caso da França Antártica. A partir desses guias, vamos identi­ficar os grandes acervos de documentos, para que eles, também, sejam microfil­mados.

• Este trabalho já está muito adiantado?

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- O Projeto Resgate de Docu­mentação Barão do Rio Bran­co tem duas etapas. A pri-

O trabalho de resgate começou com Minas Gerais

- Sim, algumas partes dos guias já estão até em fase de editoração. Na Espanha, onde a documentação vem sendo trabalhada há mais tempo, já sabemos que os três principais arquivos com material sobre o Brasil são os de Simancas, de Sevi­lha e de Tenerife. Então, já sabemos que vamos micro­filmar esses três arquivos. Na Holanda, os documen­tos estão em língua holan-

meira, a maior, foi o registro dos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Ele tem 80% da docu­mentação sobre o Brasil no exterior. São 300 mil documentos, cerca de 3 milhões de páginas manuscritas. Até junho do próximo ano, este traba­lho terminará. A última capitania a fechar a microfilmagem será a do Rio de Janeiro.

• E depois?

- Pretendemos fazer um adendo em Portugal, com os documentos da In­quisição que estão na Torre do Tom­bo. Relativamente, é pouco material. Serão cerca de 80 rolos de microfil-

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- Vai faltar um documento aqui, outro ali, mas correr atrás de tudo é impossível. O professor Caio Boschi fez há algumas décadas um guia dos arquivos onde havia coisas de inte­resse para o Brasil em Portugal. Par­tindo desse guia e de outros depoi­mentos, fizemos um levantamento. A conclusão é que praticamente tudo está no Arquivo Ultramarino e na Torre do Tombo. Há outros lugares, como a Cidade do Porto, Évora, a Universidade de Coimbra. Mas são lugares com apenas 30 ou 50 docu­mentos, nada que se compare aos 300 mil do Arquivo Ultramarino.

• Para fora de Portugal, o que está sen-

desa e letras góticas. Mas, mesmo as­sim, vários pesquisadores brasileiros, como João Cabral de Melo Neto e José Antônio Gonçalves de Melo, es­tiveram lá e fizeram livros sobre o as­sunto. Vamos microfilmar esses docu­mentos e trazê-los para cá. Quem quiser lê-los, que aprenda aquela lín­gua, que aprenda a ler aquelas letras.

• Será um trabalho rápido?

-Bem, pretendemos começar a mi­crofilmagem já em 2001. Mas o ma­terial está muito espalhado. Em Por­tugal, foi possível concentrar os esforços no Arquivo Ultramarino. Mas, nos outros países, há grupos de

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1.000 documentos aqui, SOO ali. Se ti­vermos condições, vamos também mi­crofilmar documentos sobre o Brasil no Arquivo Secreto do Vaticano.

• Arquivo secreto?

- Sim, o nome é este mesmo. Os preparativos foram feitos em parce­ria com Portugal. Durante muito

será feita no próprio arquivo. Não será preciso transportar o material.

,. E para trabalhar com o arquivo da Inquisição, em Portugal, houve algum problema?

-Não. Está todo à nossa disposição. O material está na Torre do Tombo. Quando houve a separação entre a

A documentação recolhida pelo Projeto Resgate estará disponível também em CD-ROM

tempo, esse arquivo era inacessível. Mas, nos últimos anos, o Vaticano fez uma ligeira abertura. Portugal, no fim do ano passado e no começo des­te, colocou pesquisadores lá. Eles es­tão fazendo os verbetes, documento por documento. Estamos em nego­ciação com o arquivo e já consegui­mos o dinheiro para o trabalho.

• Em que pé estão as negociações?

- Já estive no Vaticano e conversei com o diretor do Arquivo Secreto. Em tese, ele já liberou a microfilma­gem. Estamos esperando que os pes­quisadores portugueses completem os verbetes, para selecionar o que queremos, calcular a verba necessária e passar a conta para o Ministério da Cultura bancar. Deve ficar em cerca de US$ 20 mil. São pouco mais de 3 mil documentos, a metade da docu­mentação de São Paulo no Arquivo Ultramarino. Com algumas bulas e outro material agregado, o total pode chegar a 4 mil documentos e as des­pesas a US$ 25 mil. A microfilmagem

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Igreja e o Estado, o governo portu­guês assumiu toda a documentação eclesiástica. Os documentos da Igreja passaram a fazer parte da documen­tação oficial do governo.

• Mas, mesmo antes do Projeto, já eram feitos microfilmes.

- Sim, mas antes eram microfilma­dos dois processos, cinco processos. O que estamos fazendo agora é uma microfumagem sistemática, de ponta a ponta. Sem nenhuma exceção. Tau­nay, por exemplo, trabalhou com do­cumentação da Espanha. Publicou alguns verbetes e alguns textos inte­grais na revista do Museu Paulista. Mas ele pegava um documento, va­mos dizer, sobre Palmares, achava in­teressante, mandava transcrever e pu­blicava. Era um documento no meio de cem. Hoje, a historiografia diz que um documento não fala sozinho. Ele está dentro de um contexto e fala junto com outros documentos.

• Os documentos sobre o Brasil da épo-

ca em que Portugal ficou unido à Co­roa espanhola estão na Espanha?

-Os arquivos sobre o período filipi­no estão na Espanha, na parte do Conselho de Portugal nos arqmvos de Simancas e de Sevilha.

• Como aproveitar esse material?

- Pense uma coisa. Antigamente, um pesquisador brasileiro ia para a Europa e trabalhava na Espanha, na Holanda ou em Portugal. Não em to­dos esses países simultaneamente. Mas, com a microfilmagem de todo esse material, o pesquisador vai po­der acessar ao mesmo tempo a versão holandesa, a versão italiana, a versão espanhola. A versão francesa é impor­tante. A França estava continuamen­te tentando invadir o Brasil. Então, o pesquisador vai poder trabalhar pela primeira vez todo um período histó­rico em conjunto. Antes, não havia tempo, dinheiro ou fôlego para que um pesquisador mergulhasse de qua­tro a seis anos em vários arquivos eu­ropeus para preparar uma tese.

• E agora?

- Os verbetes facilitam tudo. Se o pesquisador está preparando uma tese sobre a colaboração entre os ín­dios e os invasores no período colo­nial, pode ir aos verbetes e escolher os documentos dos quais vai preci-

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sar. Ou passar o rolo de microfilme por uma máquina e fazer a mesma coisa. O sonho do Ministério da Cul­tura é conseguir, daqui a dois ou três anos, consolidar uma grande base de dados, colocar num mesmo lugar to­dos os verbetes de todas as capita­nias. Aí, você vai querer, por exem­plo, fazer um estudo sobre a questão de salários durante o período co­lonial e reunir de uma vez mate­rial de todas as capitanias. Atual­mente, para fazer isso, é preciso pesquisar capitania por capitania. Esse é o desenrolar normal do trabalho. Veja o exemplo do catá­logo do Espírito Santo. Fizemos uma edição de SOO exemplares. Esgotou-se rapidamente. Agora, estamos tentando fazer outra edi­ção. Daqui a 20 anos, será dificíli­mo encontrar esse catálogo. Tal­vez só em grandes bibliotecas. Mas hoje, com a Internet, uma grande base de dados pode subs­tituir a ida à biblioteca.

• Inclusive, com acesso de qualquer parte do mundo.

- Sim, e isso é muito importan-te. A Unesco, numa certa altura,

joanino está sendo agora microfil­mada por pesquisadores portugue­ses. É o chamado Projeto Reencontro, coordenado no Brasil também pelo Ministério da Cultura. Há muitas coisas também na Bahia e em Belém do Pará. No Instituto de Estudos Bra­sileiros da USP, há a coleção Lamego, que deixou pesquisadores portugue-

se viu enfrentando o problema dos países africanos que adqui­riam a independência e queriam

Ata de reunião do Vise. de Barbacena em Vila Rica

os documentos sobre seu passado que estavam nas metrópoles. Mas não era possível chegar num país eu­ropeu, abrir um armário, reunir os documentos e levá-los para Angola ou Argélia. A Unesco determinou en­tão que, em países de passado co­mum, o arquivo passa a ser um patri­mônio comum. É o caso dos documentos relativos ao Brasil que estão em Portugal.

• E vice-versa?

- Sim, os documentos que estão no Brasil também pertencem a Portugal. Como o Brasil foi governado a partir de Lisboa, Dom João VI governou Portugal a partir do Rio de Janeiro. Toda essa documentação do período

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ses encantados. Lamego era um pes­quisador do fim do século passado que comprou, em Portugal e outros países da Europa, muitos documen­tos sobre o Brasil e Portugal. Ao vol­tar para o Brasil, levou a coleção para Campos, no Estado do Rio, onde morava. Publicou três ou quatro li­vros e deixou a coleção lá. Foi com­prada pelo escritor Mário de Andra­de e hoje está no IEB. As coisas vão mudar, e muito. Antigamente, um pesquisador fazia um livro de histó­ria e todos aceitavam o que ele dizia, pois ele pesquisara os documentos, ele fora lá. Hoje, com o acesso mais fácil aos originais, o que um pesqui­sador disser poderá ser rebatido por outros dez. Pois o documento precisa

ser interpretado e confrontado com outros documentos. Hoje o fato já passou, não existe mais a história oral. Trabalha-se com os documen­tos. Um pesquisador vai ver coisas nas entrelinhas de um documento, conforme a sua formação, e apresen­tar novas idéias.

• Haverá conflitos?

-Num julgamento, os advoga­dos interpretam uma peça do processo de maneira diferente. Um documento histórico tam­bém pode servir de base a pelo menos duas interpretações. Com isso, muitas coisas serão repensa­das, vários fatos ou interpretações serão confirmados ou desmenti­dos. Antigamente, havia quatro ou cinco professores que eram donos do Brasil holandês. Só eles eram autoridade sobre o assunto. Com os documentos na mão, provavelmente não haverá mais isso. Hoje, aprender uma língua não é tão difícil. Há até fitas cas­sete ensinando holandês. Além disso, boa parte do material ho­landês está em latim, uma língua básica, também, para o material italiano. Conheço vários ex-pa­dres que estão ganhando a vida dando aulas de latim para profes­sores de história.

• E para as pessoas?

-Não sou historiadora, sou coorde­nadora do Projeto. Minha função é organizar esse material e jogá-lo nas mãos dos pesquisadores. É a eles que cabe o desafio. Na realidade, os pes­quisadores estão hoje diante do desa­fio de reconfirmar ou reescrever a história do Brasil. A história do ín­dio, por exemplo, ainda está toda para ser feita. Quando o projeto co­meçou, o professor Darcy Ribeiro fez uma carta muito bonita, na qual di­zia: "Finalmente, vamos poder conhe­cer coisas': Hoje, ninguém podemais ficar de 30 a 50 anos trabalhando num só projeto.

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ESTE SUPLEMENTO ESPECIAL É PARTE INTEGRANTE DA REVISTA PESQUISA FAPESP W 57, DE SETEMBRO DE 2000 - CAPA HÉLIO DE ALMEIDA - DOCUMENTOS PROJETO RESGATE