edmund cooper - cavalo-marinho no céu

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Tradução de seahorse in the sky de Edmund Cooper.

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Page 1: Edmund Cooper - Cavalo-marinho no Céu
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Grahame e seus companheiros foram sequestrados, em pleno voo, na Terra, en-quanto Absu e seus companheiros chegaram a Erewhon de uma caravana em movi-mento a caminho do Reino de Gren Li. Absurdamente confusos, esses seres vivos en-contravam-se longe do mundo que conheciam, mas quanto tempo tinham levado para chegar a Erewhon? Alguns minutos ou alguns séculos? Além desses dois grupos tão diferentes e tão humanos, havia mais alguém? E seus sequestradores? Estavam cercados num estranho mundo e eram tratados como cobaias por seres de inteligên-cia altamente desenvolvida, ou estavam presos em suas próprias imaginações? Esta-vam vivos. Isso eles sabiam. Mas o que havia por detrás da névoa e do rio, intrans-poníveis, e como os alimentos que consumiam em supermercados eram imediata-mente substituídos?

Título Original: SeaHorse in the Sky © 1969 by Edmund Cooper

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Parecia o cenário do Dia da Ressurreição.Talvez fosse apenas um pesadelo irracional em plena luz do dia - com um toque de

Brueghel, uma pincelada de Dali e uma pitadinha de Peter Sellers. O conjunto provo-cava uma vontade irresistível de dar gargalhadas, ou chorar ou fazer outra coisa qualquer. De repente, as pessoas começaram a rir e a chorar - e a fazer outras coisas mais. De fato, não existe nada que possa perturbar, ou desnortear ou incomodar mais do que a total ignorância de onde, como, por que e quem.

O primeiro a sair de seu “caixão” foi Russell Grahame. Teve muita sorte. Quase no mesmo instante lembrou-se que era Russell Grahame, Membro do Parlamento, eleito em Middleport North, no condado de Lancashire.

Sabia quem era, mas continuou ignorando onde, como e por que. Também faltava-lhe a noção de quando. Deduziu que isso provava tratar-se de algum sonho maluco, e não demoraria em acordar pela voz de alguém dizendo: “Apertem seus cintos, por favor, e apaguem os cigarros. Em mais ou menos dez minutos estaremos aterrissan-do no aeroporto de Londres”.

Percebeu que não poderia acordar, pois já estava acordado, e o pesadelo era real. Saíra de um “caixão” que parecia feito de plástico verde. Era o último de uma fila de caixões idênticos, ordenadamente dispostos no meio da rua, entre um prédio que os-tentava o letreiro “Hotel” de um lado e outra construção que ostentava o letreiro “Su-permercado” do outro.

A rua parecia ter uma largura de dez metros e um comprimento de cem. Começa-va e terminava num mato espesso de gramas e arbustos. Era um minúsculo oásis ur-bano numa grande savana verde. Em frente ao hotel havia um táxi. Via-se um carro parado ao lado do supermercado.

Não se via gente nenhuma - fora as pessoas que estavam emergindo dos caixões verdes.

Uma moça de pele escura chutou com violência a tampa de seu caixão, levantou-se, emitiu um grito estridente e desmaiou. Pareceu o sinal que desencadeou uma al-gazarra completa. Logo emergiram um homem e uma mulher. Ambos eram brancos. Lançaram olhares assustados em volta, encontraram-se, e se lançaram um contra o outro, abraçando-se com tanta força que parecia não quererem mais se soltar.

Dois homens saíram de dois caixões que se encontravam lado a lado, esbarrando um no outro e caíram ao chão; atracaram-se quase que no mesmo instante, come-çando a lutar. E pararam de súbito.

Três moças aterrorizadas estavam rindo e chorando, sentindo-se estranhamente mais seguras compartilhando do mesmo terror.

Finalmente dezesseis pessoas, após saírem de dezesseis caixões, começaram a fa-zer um barulho cujo tamanho poderia ser suficiente para acordar até os mortos, ou pelo menos chamar a atenção de qualquer um que se encontrasse no interior do ho-tel ou do supermercado. Mas parecia que se houvesse alguém morando no hotel ou

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fazendo compras no supermercado, já estivesse acostumado com a bagunça provo-cada pela ressurreição no meio da única rua à vista, para não ter nenhuma curiosida-de a respeito.

Ninguém apareceu.A algazarra parecia não querer chegar ao fim; as pessoas falavam, gritavam, gesti-

culavam ou balbuciavam coisas sem nexo. Pareciam confusas, traumatizadas, como se tivessem passado por alguma experiência terrível. E na realidade era isso que acontecera com elas. Aliás, continuava acontecendo.

Russell Grahame, que por algum motivo estranho se sentia completamente aliena-do daquela absurda confusão, passou repetida e mecanicamente sua mão pelos ca-belos, num gesto muito característico que lhe valera, entre seus poucos amigos na Casa dos Comuns, o apelido de “Massagista de cérebro” . Não demorou muito em perceber que sua cabeça não tinha a forma costumeira. Descobriu um galo próximo ao cérebro. O galo era de proporções respeitáveis, liso e redondo, com algo que lem-brava tecido cicatricial em seu topo. Os cabelos por cima do galo pareciam muito mais curtos que os outros em sua volta.

Russell Grahame, Membro do Parlamento, passou a língua sobre os lábios e perce-beu de repente que estava se sentindo muito abalado. Precisava de um trago. Preci-sava muitíssimo de um bom trago. Observou o hotel e começou a andar devagar e com muita cautela em sua direção. Não era admissível que um Membro do Parlamen-to - mesmo em se tratando de um que finalmente decidira se afastar daquele mani-cômio em que a euforia de massa era salpicada continuamente por expressões abs-tratas - caminhasse e fosse cair ao chão no meio da rua.

O saguão do hotel estava deserto, a não ser por uma montanha de malas empilha-das logo ao lado da porta giratória. Não havia ninguém atrás do balcão da recepção. Bateu três vezes na campainha, mas ninguém apareceu.

Viu na parede um letreiro: “Cocktails-Bar” e uma seta que indicava um curto corre-dor. Foi para o bar. Também estava deserto. Refletiu por alguns instantes, em segui-da dirigiu-se atrás do balcão e despejou uma dose de whisky num copo.

Engoliu um bom trago da bebida. Procurou os cigarros com dedos trêmulos. Teve a impressão que a algazarra do lado de fora começava a se acalmar um pouco. Tocou o galo na parte traseira da cabeça e tomou mais um trago de whisky. Começou a se sentir um pouco mais à vontade.

Ouviu alguém bater na campainha da recepção. Não provou vontade nenhuma de chegar até lá e dar informações. Que chegassem até onde ele estava se quisessem.

Aconteceu assim mesmo. Uma pessoa apareceu. Os outros demoraram mais um pouco para achar o caminho.

O homem que apareceu tinha de vinte e cinco a trinta anos - era alto, loiro, de olhos azuis, bastante bem apessoado e com uma aparência extrovertida, do tipo con-tinental. Logo que o viu, Grahame começou a sentir-se muito britânico e bastante idoso por ter quarenta anos.

- Uma vodca, das grandes! E que raio aconteceu com o serviço? - o moço alto per-guntou agressivo.

Grahame encheu um copo de vodca - Saúde. Não tem serviço por aqui.- Quem é você?- O inglês olhou seu whisky, pensativo, e tomou mais um trago. - Eu também sou um dos mortos ambulantes. Meu nome é Russell Grahame -.

Sentiu a necessidade de acrescentar: - Inglês... E você?O moço abriu a boca, fechou-a de novo e colocou o copo de vodca no tampo do

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balcão com dedos que tremiam. Dava a impressão de estar muito confuso.- Tome todo o tempo que quiser falou Grahame com simpatia. - Tenho a impressão

que não vai faltar tempo. Estou com o palpite que teremos a nossa disposição todo o tempo que quisermos.

- Norstedt -, anunciou o moço e sua voz parecia conter um curioso tom de dúvida. - Sou Tore Norstedt... sueco. Muito prazer em conhecê-lo.- Esticou a mão direita e Grahame apertou-a com toda a cerimônia.

- Ótimo, agora sabemos quem somos. Tome mais um drinque. Eu vou tomar mais um. - Sorriu. - Acho que são por conta da casa.

- Sim. Muito obrigado.- Norstedt também sorriu. - Acredito que talvez a vodca seja o remédio indicado. - Num gesto inconsciente apalpou a nuca.

Grahame percebeu o gesto. - Não se preocupe -, disse. - Eu também estou com um galo. Parece que isso faz

parte da operação. Norstedt bateu o copo sobre o balcão com tanta violência que despejou um pouco

de vodca - Que operação? Onde é que nós estamos? Que diabo está acontecendo?- Fique calmo. Eu também não sei de nada. Após bebermos o suficiente para acal-

mar a tremedeira, poderemos tentar encontrar algum nexo em tudo isso... Aliás, dei-xe que o diga: seu inglês é excelente.

Norstedt sacudiu a cabeça. - Sueco. Estou falando sueco e você também está falando sueco.Grahame encolheu os ombros. - Como quiser. Mas para seu governo, eu não falo sueco - ou, pelo menos, não falo

muita coisa. - Teve uma ideia súbita. - Arlanda!- Sim! Sim, Arlanda! - Norstedt repetiu excitado. - Isso mesmo! Um primeiro pedacinho do puzzle encontrou seu lugar certo.- O aeroporto de Arlanda -, continuou Grahame - O voo da tarde, de Estocolmo

para Londres... Foi aí que eu vi você - foi no aeroporto. Você estava logo a minha frente. Você... você estava com excesso de bagagem. Dez kronor... Agora me lembro que fiquei especulando se me sobrava dinheiro suficiente para pagar meu próprio ex-cesso.

- Estou me lembrando! Estou me lembrando! - A voz de Norstedt era quase um grito. - Não consegui achar um táxi. Fiquei pensando que ia perder o avião!

- Fiquei observando os movimentos de seus lábios -, falou Grahame e sua voz es-tava tensa. - Você está falando sueco, por Deus! Mas as palavras que ouço são ingle-sas!

- Estive fazendo a mesma coisa -, confirmou Norstedt. - Os movimentos de seus lábios não são suecos - mas as palavras que eu ouço, sim.

Enquanto trocavam essas impressões Grahame percebeu repetidamente o som da campainha da recepção e vozes de pessoas falando alto no saguão do hotel. As vo-zes se tornaram mais nítidas enquanto seus donos se aproximavam do bar.

- Todos os caminhos levam a Roma -, observou com voz soturna. - Amigo Nors-tedt, tenho a impressão que teremos uma reunião bastante interessante.

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A reunião foi deveras interessante. E deixou todo mundo frustrado e desnorteado.Russell Grahame preferiu ficar atrás do balcão. Descobriu ser um barman muito

eficiente. Isso levou-o à amarga reflexão que parecia mais dotado quando servia be-bidas de que quando atuava na política. Quem sabe o que poderia ter acontecido se vinte e cinco anos antes tivesse se submetido a um teste de aptidões profissionais. Poderia agora ser um barman de primeira categoria num hotel de cinco estrelas, em vez de um político de terceira categoria, reduzido a pó entre as mós de um agonizan-te sistema bipartidário. Apresentara um pedido de demissão do Partido Trabalhista Parlamentar na mesma hora em que o Partido estava a ponto de excluí-lo de suas fi-leiras. Enquanto passava suas férias na Suécia decidira, com o mesmo extraordinário senso de oportunidade, apresentar sua demissão do Parlamento na mesma hora em que chegasse em casa.

Se chegasse em casa... Os fatos que estavam emergindo na reunião pareciam re-legar essa perspectiva para um futuro bastante remoto...

De qualquer forma, durante algum tempo esteve ocupado demais e não teve tem-po para reflexões: ficou atendendo aos pedidos de seus companheiros de desventu-ra. Ninguém contestou seu direito de monopolizar o balcão. Muito ao contrário, pare-cia até que todo mundo pensava que ele era um barman excelente. Já era alguma coisa. Considerando a quantidade de whisky consumida por ele mesmo, começou a lamentar sempre mais de nunca ter feito o tal teste vocacional.

Praticamente, a totalidade das pessoas presentes estava tomando uma ou outra bebida alcoólica. O álcool parecia muito apropriado, considerando a situação em que se encontravam.

Todas as dezesseis pessoas estavam no bar, após ter abandonado os malucos cai-xões no meio da maluca rua daquela maluca cidade fantasma, que parecia ser o cen-tro daquele maluco não-cosmo em que se encontravam a contragosto.

As apresentações aconteceram de forma caótica e até espasmódica, todas as ve-zes que as pessoas conseguiam finalmente lembrar-se de seus nomes. A última a re-cuperar sua identidade foi uma moça esguia e atraente das Índias Ocidentais que usava o incrível nome de Selene Bergere. Lembrou desse fato interessante enquanto bebia uma coca cola fartamente temperada com rum, e seu corpo admirável cor de chocolate se encolheu todo num montinho cheio de graça.

Ela parecia ser a mais jovem do grupo e fora a última em se lembrar. Russell ob-servou rapidamente os outros e julgou ser o mais velho de todos. Era evidente que fora o primeiro a recuperar sua identidade. Ficou a especular se esses fatos tinham alguma importância.

Sem dúvida, o tempo era de especulações.Especulações fantásticas...Entretanto decidiu que antes de se deixar submergir por estranhas fantasias, ou

antes de ficar bêbado, ou antes de ambas as coisas ao mesmo tempo, seria preferí-

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vel passar em resenha os fatos apurados até aquele instante.Primeiro fato: havia dezesseis pessoas na mesma desagradável situação. Oito ho-

mens e oito mulheres. Possivelmente o equilíbrio entre os sexos não era uma mera coincidência.

Segundo fato: Ninguém sabia por que, como, quando e onde. Os relógios de todos estavam parados, incluindo um, acionado por uma pilha, o qual, como sua dona rus-sa explicou em perfeito inglês, sueco ou outro idioma que fosse, tinha garantia para funcionar um ano inteiro.

Terceiro fato: Todos tinham galos e tecido cicatricial na parte traseira da cabeça. A mais, o grupo era absolutamente internacional, mas todos pareciam capazes de falar corretamente inglês, sueco, francês, hindu e russo, apesar de cada um estar aparen-temente falando sua própria língua.

Quarto fato: Todos estavam a bordo do mesmo jato que saíra de Arlanda, em Es-tocolmo, em direção a Heathrow, em Londres. Era interessante notar que os mais moços do grupo levaram algum tempo e precisaram de um pouco de ajuda para che-garem a se lembrar disso.

Quinto fato: As malas de todo mundo estavam empilhadas no saguão do hotel - e Russell Grahame só não tinha percebido isso porque, assim refletiu, estava preocupa-do demais em encontrar o bar. Por sinal, tinha visto todas aquelas bagagens, mas não as tinha ligado com sua própria pessoa e com as pessoas suas companheiras de desterro.

Sexto fato: A cidade não era uma cidade, aliás, não era sequer uma aldeia. Havia só o hotel, o supermercado e algumas construções menores nos dois lados de um trecho de rua que começava em lugar nenhum e terminava em lugar nenhum. Dava quase a impressão de ser o cenário para uma fita. Por isso, apresentava possibilida-des para uma série de suposições - a começar de um show humorístico para a televi-são, e daí por diante.

Sétimo fato: Não havia gente. Não havia ninguém, a não ser dezesseis criaturas humanas - pré-embaladas por mãos que não poderiam ser humanas. Isso sem dúvi-da era muito importante, e ao mesmo tempo provocava uma certa inquietação.

Oitavo fato: Era tudo verdadeiro. Não havia a menor demagogia em tudo aquilo. Era a mais horrível e maldita realidade.

- Reuni oito fatos -, Grahame anunciou a um homem que acabava de depositar no balcão uma bandeja com oito copos vazios.

- Alegro-me muitíssimo, meu velho. Parabéns -, exclamou Mohan das Gupta, que tinha vinte e oito anos e era executivo de uma companhia de petróleo hindu. - Que tal, você deixar por enquanto seus fatos na geladeira, e me dar uma cerveja, um gim com limão, um conhaque bem grande e um Bloody Mary?

- Podemos tirar um certo número de conclusões.- Tire todas as conclusões que quiser, mas não seja pão-duro com o conhaque,

sim?Grahame preparou docilmente as bebidas sentindo-se dominado por uma imensa

frustração. Todos pareciam falar a não mais poder - com certeza apresentando as mais desencontradas e fantásticas teorias a respeito de quando acontecera e porquê. Mas o inquérito, toda aquela atividade, faltavam totalmente de coordenação. Não ha-via disciplina nenhuma. Não havia coesão. Assim, dessa forma ninguém ia chegar a qualquer maldita conclusão.

Era o momento de Russell Grahame, Membro do Parlamento, entrar em cena. Re-almente suas reuniões constitucionais sempre se revelaram modelos de mediocridade e exemplos de ineficiência, a ponto de deixar todas as vezes seus copartidários de

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Middleport North completamente estarrecidos. Mas afinal, que diabo, alguém precisa-va fazer alguma coisa.

- Senhoras e senhores -, começou com voz vibrante. - Senhoras e senhores, po-dem me dar sua atenção por alguns minutos?

- Porque? - Alguém já estava num pileque avançado. - Sua própria atenção não lhe basta mais?

- Porque -, continuou Grahame paciente, - me repugna ser parte de um sonho que não é um sonho. Isso me dá enxaqueca. E porque gostaria de voltar a Londres qual-quer dia desses - se isso for possível.

- Apoiado -, disse uma voz masculina, muito britânica.Os rostos se viraram para Grahame com expressões esperançosas e ele começou

seu pequeno discurso. - Não vou me demorar em considerações sobre a maneira em que chegamos aqui.

Tenho certeza que todos nós vamos nos lembrar disso por algum tempo. Nem pre-tendo insistir no fato - e vou agradecer a todos se guardarem para mais tarde qual-quer observação humorística a respeito - que alguma coisa muito esquisita aconte-ceu na parte traseira de todas as nossas cabeças. Não possuímos qualquer dado com referência ao tempo; ninguém entre nós tem lembranças que digam respeito ao nos-so voo de Estocolmo a Londres, e acredito que não há ninguém entre nós que tenha a menor ideia sobre o lugar em que nos encontramos

- América do Sul -, alguém sugeriu.- Hollywood -, disse uma outra voz.- Por favor -, Grahame levantou uma mão. - O que eu quis dizer é que não temos

o menor indício para adivinharmos onde estamos. Tenho certeza que existem muitas teorias confusas e desencontradas, e teremos todo o tempo de discuti-las mais adi-ante. Acontece que as únicas provas que possuímos mostram a evidência do absur-do. Chegamos dentro de objetos que não posso descrever de forma diferente: são caixões; estamos numa cidade que comprovadamente não é nenhuma cidade; esta-mos saboreando bebidas num hotel completamente vazio; e aparentemente, todos ganhamos o dom de entender e expressarmos em muitos idiomas. Parece-me por-tanto que quem quer que seja - ou qualquer coisa seja - que provocou essa situação, sem dúvida interessante, teve que fazê-lo por algum motivo muito sério. Consideran-do que nossa bagagem também foi transportada para cá, presumo logicamente que nossa estada aqui não será muito breve.

- Conclua, meu velho, conclua-, gritou das Gupta com aquele seu jeito muito pes-soal.

- A conclusão é essa, minha gente-, retrucou Grahame com ênfase. - Vamos ter que começar a nos organizar, e já. Caso contrário, poderíamos mais tarde chegar à conclusão que desperdiçamos um tempo precioso torcendo as mãos e chorando den-tro dos nossos gins-tônicas

- Com sua licença, sim? O que é que você sugere? - A voz era de uma mulher de cabelos escuros, de uns trinta e cinco anos, mais interessante do que propriamente bonita.

Grahame observou-a com satisfação. - Antes de mais nada, acho boa a ideia de nos identificarmos perante todo mundo,

assim mais tarde saberemos quem está falando a respeito de que. Eu sou Russell Grahame, Membro do Parlamento... britânico, é claro. E a senhora?

- Anna Markova, jornalista... russa. Qual é sua linha política, senhor Grahame?- Isso é importante?- Poderia ser.

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- Está bem. Sou socialista - ou pelo menos, uma espécie de socialista.Anna Markova encolheu os ombros. - Poderia ter sido pior. Alguém bateu palmas.- Respondendo à sua pergunta, senhorita Markova, acredito que devíamos nos di-

vidir em grupos. Um grupo poderia vistoriar o hotel e escolher as acomodações - e aposto que vamos precisar disso. Um outro grupo precisaria ver o que há ao redor - o que existe da cidade e a área em volta. Um terceiro grupo poderia ver se há algu-ma possibilidade de encontrar alimentos. Um quarto grupo, finalmente, poderia ver se conseguimos encontrar um sentido qualquer em nossa situação, além de ajudar os outros em suas tarefas.

Um homem alto e magro, de idade aproximada à de Grahame, ou talvez um pouco mais novo, levantou-se.

- Sou Robert Hyman, funcionário público, inglês. Acredito que as propostas do se-nhor Grahame são muito sensatas.

Mais um homem falou. Era loiro, de constituição pesada. - Gunnar Rudefors, professor, sueco... O senhor Grahame está certo. Precisamos

fazer alguma coisa.Uma moça tomou a palavra. Parecia ter uns dezenove anos e estava sentada junto

a mais duas moças. Estava muito nervosa e quase não deu para ouvir o que ela esta-va dizendo.

- Chamo-me Andrea Small. Sou estudante e inglesa. Francamente, estou muito assustada. Es-

tou tão assustada que não sei o que fazer. Minhas amigas também... Precisamos de alguém que nos diga o que fazer.

- Estou de acordo - e acredito que a maioria de nós também concordará com isso.- As palavras vieram de um homem de grandes proporções e cabelos claros. A seu lado estava uma mulher loira, atraente e rechonchuda. O homem continuou: - Meu nome é Paul Redman. Sou um agente literário americano.- Acenou para sua compa-nheira: - Esta é minha esposa Marion. Desde que o senhor Grahame é o primeiro en-tre nós que tenta tomar uma atitude construtiva, achamos que pelo menos por esse motivo, devia ser ele a pessoa que comanda as operações.

Tore Norstedt levantou o copo em direção a Grahame. - Senhor, acho que não lhe resta mais nada a fazer, senão aceitar. - Olhou rapidamente em volta e acrescentou: - Oh, eu sou Tore Norstedt, oficial radiotelegrafista, sueco.

Grahame bebeu mais um pouco de whisky. - Antes de confessar que eu sou bas-tante idiota em aceitar essa responsabilidade, gostaria de saber se há objeções. Ou talvez alguém queira sugerir um outro nome?

Todos ficaram calados.Grahame sorriu. - Muito bem. A ideia foi vossa. De qualquer forma, toda a minha experiência de-

monstra que nunca se consegue nada quando existem muitas discussões. Por isso, desejo estabelecer um regulamento simples à salvaguarda minha e dos outros. Pará-grafo primeiro: minha autoridade deve ser absoluta. Parágrafo segundo: Se quatro ou mais pessoas objetam contra minhas ordens, vou ceder essa autoridade a ou-trem... Vamos votar? Por favor, levantem as mãos.

Observando seus companheiros Grahame refletiu que era essa a primeira e única vez em que uma proposta dele era aceita por unanimidade.

O choque aconteceu alguns instantes mais tarde.Um homem de estatura baixa, sem características especiais levantou-se.

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- Meu nome é John Howard. Sou inglês e professor. - Indicou a mulher sentada a seu lado que estava movimentando nervosamente seu copo de whisky aguado. - Essa é minha esposa Mary. Ambos ensinamos física, e acredito que percebemos algo que provavelmente ninguém entre vocês percebeu. - Hesitou por um instante: - A coisa é bastante estarrecedora... Talvez seria melhor se eu falasse a respeito com o senhor Grahame em particular.

Grahame sacudiu a cabeça. - Não sou a favor de segredinhos, senhor Howard. Acho que posso adivinhar seus

motivos. Suas revelações poderiam ser alarmantes. Mas nossa situação comum já é bastante alarmante e acredito que cada um de nós tem o direito de conhecer todas as informações. Assim, acho melhor o senhor falar agora.

John Howard sorriu um pouco sem jeito. - Receio que a coisa seja um pouco negativa... Quando o senhor começou a falar,

alguém aqui sugeriu que poderíamos estar na América do Sul. Sinto muito, mas pre-ciso afirmar que essa possibilidade e as outras devem ser excluídas.

- Nesse caso, o senhor talvez saiba onde estamos? - Grahame perguntou com um surto de esperança.

- Não. Só sei onde não estamos.- Como assim? - Não estamos na Terra -, Howard declarou com tristeza.Suas palavras foram seguidas por um silêncio geral e prolongado. Todos os rostos

se viraram para ele.Grahame passou a língua nos lábios. - Como é que o senhor pode afirmar isso?- Quando saí daquele - hum - daquele caixão, eu pulei. Foi uma coisa involuntária,

pelo menos a primeira vez. Em seguida, quando consegui me controlar melhor, pulei de propósito. Para experimentar. - Sorriu. - Mary fez a mesma coisa, logo que parou de chorar.

- Vocês deram pulos?- Grahame repetiu sem conseguir compreender.- Isso mesmo. Estou surpreso que ninguém tenha percebido nada. Acho que vocês

iam ter percebido. Estamos com menos de um G. A força de gravidade desse planeta parece ser somente três quartos da força de gravidade da Terra... Experimentem um pouco. Mas cuidado, para não bater com a cabeça no forro.

Uma meia dúzia de pessoas começou a pular com expressão compenetrada. Subi-ram no ar até três, quatro, cinco e também seis pés. Quando desciam, isso acontecia vagarosamente.

Os rostos se tornaram pálidos e tensos. Ninguém desmaiou. Um homem, porém, e três mulheres começaram a chorar.

Russell Grahame despejou uma boa dose de whisky em seu copo e chegou à con-clusão que precisava dizer alguma coisa.

Sem perder tempo.

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3

O resto da tarde - pois pela posição e o movimento do sol conseguiram estabele-cer que era de tarde - passou num claro-escuro, alternando momentos de tensão dramática com outros totalmente absurdos. O sol não parecia diferente daquele ou-tro sol que todos se acostumaram a ver desde que nasceram, apesar de ninguém conseguir olhar para ele de forma direta. Mas todos perceberam que ele parecia se movimentar um pouco mais rápido no arco do céu.

Todos conseguiram repor em movimento seus relógios, com exceção do relógio que estava precisando de uma pilha nova - e fazendo um cálculo por alto, viram que esse dia estranho teria um comprimento de aproximadamente vinte horas da Terra.

Antes de formar os grupos para compor uma aparência de ordem naquilo que por enquanto parecia o caos, Grahame fez a chamada do que ele, num surto de humor negro, apelidou sua legião estrangeira. A primeira medida foi de simplesmente ano-tar seus nomes, idades, nacionalidades e profissões, para ter uma ideia de quem po-deria fazer o que. Prometeu a si mesmo de pedir mais detalhes em seguida e, quem sabe, descobrir aptidões que fossem de utilidade para todos.

Entretanto, ele pensou, havia uma necessidade urgente de mandá-los fazer algo o mais rápido possível - não fosse por outro motivo, para dar-lhes a ilusão que não es-tavam completamente desamparados e vítimas de uma situação extremamente es-quisita.

Ninguém conseguia lembrar quantas pessoas estavam no jato de Estocolmo para Londres, mas parecia certo que o total dos passageiros, superava largamente dezes-seis pessoas. Mais tarde poderiam especular a respeito do destino dos pilotos, dos comissários e do resto. Por enquanto, parecia mais sensato concentrar todos os es-forços em avaliar a situação presente e torná-la o quanto mais possível segura, con-siderando as circunstâncias.

Os ingleses compunham a exata metade da legião estrangeira de Grahame. Refle-tindo, chegou a conclusão que a proporção não era extraordinária para um voo entre Estocolmo e Londres no fim da estação turística.

Escreveu cuidadosamente seu próprio nome, encabeçando a lista, e depois anotou os nomes dos outros desterrados ingleses. A seguir anotou dois americanos, dois su-ecos, um hindu, uma russa, uma francesa e a moça das Índias Ocidentais.

Antes de formar os grupos estudou a lista com o maior cuidado. Era a seguinte:

Russell Grahame, Membro do Parlamento, 39 anos, inglês;Robert Hyman, 39 anos, inglês, funcionário público;Andrew Payne, 28 anos, inglês, ator de TV;John Howard, 31 anos, inglês, professor eMary Howard, 27 anos, inglesa, professora, sua esposa;Janice Blake, 20 anos, inglesa, estudante de economia doméstica;Andrea Small, 20 anos, inglesa, estudante de economia doméstica;

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Marina Jessop, 20 anos, inglesa, estudante de economia doméstica;Paul Redman, 40 anos, americano, agente literário eMarion Redman, 32 anos, americana, dona de casa, sua esposa;Gunnar Rudefors, 35 anos, sueco, professor;Tore Norstedt, 25 anos, sueco, oficial radiotelegrafista;Mohan das Gupta, 28 anos, hindu, relações públicas (companhia petrolífera);Anna Markova, 33 anos, russa, jornalista de modas;Simone Michel, 23 anos, francesa, artista ;Selene Bergere, 21 anos, das Índias Ocidentais, modelo.

Examinando a lista, Grahame percebeu que a profissão do ensino estava bem re-presentada, mas isso não era nada fora do comum. Nesses tempos os professores estavam sempre viajando para um ou outro lado.

Suspirou. Um médico, um cientista de um tipo qualquer e quem sabe, dois ou três braçais marrudos seriam, nas circunstâncias atuais, de muito maior utilidade que pessoas como o ator de TV, o agente literário, o relações públicas e as moças que ti-nham escolhido uma carreira. De qualquer forma, uma coisa parecia bastante clara: as criaturas ou coisas ou o que mais fosse, que tinham planejado o sequestro, o rap-to, a transferência - não existia uma palavra única para descrever o ato - não tiveram nenhuma preocupação em compor um grupo equilibrado. Isto é, sem considerar o equilíbrio dos sexos, e este fato em si já era suficiente para despertar bastante curio-sidade...

De qualquer forma, essa circunstância poderia ser estudada mais adiante. Por en-quanto era necessário tomar uma atitude a respeito de assuntos mais importantes.

Dividiu as pessoas em quatro grupos de quatro, como já pensara antes. O estado-maior, que ele também definiu como o grupo auxiliar de reserva, era formado por ele mesmo, Gunnar Rudefors e Paul e Marion Redman. Dois outros grupos eram com-postos de duas mulheres e dois homens cada - eram os grupos de exploração - e o quarto grupo, cuja tarefa era de procurar alimentos, era composto pelo radiotelegra-fista sueco e as três estudantes inglesas.

O estado-maior elegeu por sede o bar e os outros foram cumprir suas tarefas.Logo, e aos poucos, começaram a chegar informações interessantes.A primeira e mais importante foi a de que não havia sinal de criaturas vivas dentro

de um raio de cerca de um quilômetro. A cidade era composta unicamente pelo ho-tel, o supermercado, um pedaço de rua e algumas pequenas construções equipadas com máquinas simples de oficina. A rua começava num mato baixo que poderia ser definido como uma savana, e também terminava na savana. O táxi estacionado ao lado do hotel parecia ser um Mercedes. Faltava-lhe o motor e a bateria. O carro esta-cionado ao lado do supermercado era um Saab: também faltavam a bateria e o mo-tor.

O supermercado estava cheio de alimentos. Tore Norstedt e suas três assistentes femininas, que a esse ponto estavam adorando, encontraram carrinhos providenciais que foram carregados de alimentos e empurrados para o hotel do outro lado da rua.

Durante esse tempo dois do grupo auxiliar - Gunnar Rudefors e Paul Redman - re-tiraram os caixões de plástico verde do meio da rua, empilhando-os de forma orde-nada atrás de um dos barracos. Examinaram demoradamente os caixões. O plástico era muito leve, mas assim mesmo duríssimo, tanto que foi impossível sequer arra-nhá-lo com a ponta de um canivete de aço. Internamente eram forrados com um material esponjoso que podia ser cortado a faca: mas não descobriram mais nada além desses dois fatos.

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O hotel tinha vinte quartos, dez de casal e dez de solteiro. Além disso, possuía uma cozinha perfeitamente equipada, completa de uma geladeira e uma máquina para lavar louça. Todos os quartos tinham água corrente quente e fria. A iluminação era elétrica e funcionava perfeitamente. De fato, era um típico pequeno e confortável hotel, desses que a gente poderia encontrar em qualquer parte da Europa.

A água encanada e a iluminação elétrica deram a Grahame algumas ideias a serem elaboradas mais adiante. Decidiu que, caso não houvesse distrações de outra espé-cie, não acontecessem aparições e não fossem interrompidos de outro jeito, poderia ser interessante descobrir a origem do encanamento e da força. Alguém, ou então alguma coisa, estava se esforçando muito para que dezesseis criaturas da Terra en-contrassem um lar longe de seus lares.

O crepúsculo aconteceu de repente, de maneira espetacular - como acontece na Terra nas regiões tropicais e equatoriais - e todos se reuniram no bar para fazer seus relatórios.

Parecia óbvio que não existia nenhuma outra alternativa e seriam obrigados a pas-sar a noite no hotel - quem sabe, até uma longa sucessão de noites - e Grahame pe-diu a Anna Markova, que parecia uma mulher muito eficiente, de distribuir alojamen-tos. As três estudantes de economia doméstica foram mandadas para a cozinha para pôr em prática as teorias aprendidas. Não demorou e todo o grupo foi se sentar na sala de jantar para saborear uma refeição que poderia ser servida até no Savoy - com a única diferença que todos os alimentos eram enlatados.

Quando chegaram ao café e ao conhaque, Grahame decidiu começar um inquérito sobre o total dos acontecimentos e sua sequência, e lançou a pergunta que interes-sava a todos.

A teoria que mais adeptos tinha e que sem dúvida era devida ao ter assistido a um sem número de filmes e peças de televisão baratas, e à leitura de um número infinito de histórias em quadrinhos, era de que os dezesseis eram vítimas de um sequestro perpetrado por Marcianos, Venusianos ou qualquer outra raça solar parecida que, com a ajuda de discos voadores, tinham capturado o grupo dentro do jato saído de Arlanda, antes de destruir o avião.

John Howard, o professor inglês, foi o primeiro a invalidar essa teoria. Aproximou-se das porta-janelas da sala de jantar, abriu uma e saiu para o terraço. A noite era clara e fria. Convidou o resto do grupo a sair também.

As estrelas visíveis no céu não pertenciam a nenhuma das constelações que eles conheciam antes, quando estavam em casa. Também não eram estrelas de constela-ções do hemisfério austral. Eram estrelas desconhecidas num céu desconhecido. Bri-lhantes, gélidas e longínquas. E eram terríveis, porque eram estranhas.

Grahame percebeu de forma aguda a angústia, a solidão e o desespero dos outros e convidou-os rapidamente a voltar à sala de jantar. Foram sentando com expressão soturna em volta da mesa e começaram mais uma vez a saborear seus cafezinhos. As conversas pararam. Ninguém estava com vontade de discutir as impressionantes e horríveis possibilidades que se apresentavam às suas mentes.

Não havia ainda possibilidade de medir o tempo com certeza ou de prever a dura-ção da noite. Era, porém evidente que todos estavam esgotados pelo cansaço - por causa do esforço, do medo, do desespero e dos pensamentos. Duas estudantes já estavam cochilando, sentadas em suas cadeiras.

Os acontecimentos foram demais. Um número excessivo de possibilidades assusta-doras se apresentavam ao cérebro humano, que não estava em condições de lidar com todas elas. Todo mundo estava precisando descansar.

Grahame, porém, decidiu que nem todos poderiam descansar - ou pelo menos,

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nem todos ao mesmo tempo. Dividiu os oito homens em patrulhas noturnas compos-tas de dois homens cada, para vigiar em turnos de uma hora. Teriam que cuidar que ninguém invadisse o hotel e que ninguém se machucasse. Mandou também que, como medida de precaução, todas as portas dos quartos ficassem escancaradas.

Durante a noite não aconteceu nada de estranho - a não ser os acessos de choro e alguns brandos ataques histéricos das mulheres e dos homens também, que porém, foram muito mais discretos.

Quando o dia voltou a clarear, uma pequena patrulha saiu do hotel para controlar se tudo se encontrava nas mesmas condições do dia anterior, e fez uma descoberta muito interessante.

Os caixões empilhados tinham desaparecido.

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Antes que chegasse a noite do segundo dia, foram feitas mais descobertas interes-santes.

Tore Norstedt, o jovem oficial radiotelegrafista sueco, foi o primeiro a descobrir que com toda probabilidade, o grupo estava sendo observado. Fizera essa constata-ção logo após terminar seu turno de patrulha, enquanto estava deitado em sua cama, no escuro, procurando dormir. Vira então quatro minúsculos pontos esverdea-dos, que emitiam uma luz fraca nos cantos do quarto, onde as paredes se encontra-vam com o forro.

Após acender o abajur da mesa de cabeceira - de um tipo muito comum e terres-tre, com lâmpada de sessenta watts - examinara os cantos com cuidado. Com a luz, a fraca reverberação esverdeada desaparecera por completo: mas no canto em que as paredes e o forro se encontravam, descobrira quatro lentes, uma em cada canto do quarto, invisíveis a um examinador superficial. As lentes eram diminutas, mais ou menos do tamanho da cabeça de um fósforo, mas não podia haver dúvidas a respei-to: eram mesmo lentes. Ficou especulando se seria conveniente raspar a massa da superfície da parede, para expor uma porção maior de equipamento, mas refletiu que talvez fosse preferível deixar as coisas na condição em que estavam.

Cedo de manhã quando encontrou-se com Grahame e enquanto tomavam seu desjejum, contou-lhe a respeito. Uma busca aprimorada revelou que todos os quar-tos eram providos de quatro lentes, e que o mesmo tipo de lentes podia ser encon-trado até nos corredores. Grahame ficou muito perturbado com a descoberta. Pediu que Norstedt não falasse com ninguém a esse respeito, pelo menos por algum tem-po. A situação de todos já era bastante complicada e não achava necessário piorá-la com a noção da mais total perda de qualquer intimidade.

Tore Norstedt disse que estava com vontade de arrancar parte daquele equipa-mento para examiná-lo, e talvez, em seguida, destruí-lo: mas Grahame optou pelo contrário. Sua experiência na política sugeriu-lhe uma solução bastante inteligente. Quando todos tivessem abandonado seus quartos, Norstedt teria que passar por to-dos, colando pequenos pedaços de papel sobre as lentes. Em qualquer outro lugar do hotel as lentes ficariam no estado em que estavam.

Grahame achou que dessa forma os observadores compreenderiam que seus espé-cimes não se recusavam a serem observados, pelo menos em princípio, mas que de-sejavam resguardar uma parte de suas vidas particulares.

Logo após o desjejum organizou uma investigação mais apurada das cercanias - o que não fora possível ou aconselhável no dia da chegada. Dessa vez o grupo que partiu para uma missão de reconhecimento era composto só de homens, comanda-dos por John Howard, o professor inglês, que já tinha comprovado ser uma pessoa dotada de espírito de observação e muito equilíbrio.

As instruções foram simples. Teriam que marchar em direção norte durante uma hora, e depois disso voltariam novamente ao hotel. O norte foi determinado tomando

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por leste a direção em que surgia o sol. Se encontrassem uma elevação qualquer, ela teria que ser usada para observar o terreno em volta. Recomendou que evitassem, em geral, qualquer contato com a vida animal indígena; a menos que fossem ataca-dos e tivessem que se defender, teriam que evitar qualquer ato que poderia eventu-almente ser interpretado como uma ação hostil.

A questão da necessidade de defesa era uma questão bastante delicada. Grahame sentia uma grande repugnância em mandar que os homens fossem para uma missão que poderia se revelar perigosa sem que eles tivessem qualquer meio de defesa. Uma busca no supermercado, que continuava vazio de compradores, levou a duas descobertas importantes. Em primeiro lugar, todos os mantimentos levados do super-mercado no dia anterior, já estavam substituídos por outros do mesmo gênero. Em segundo lugar, descobriram uma seção de ferragens em que, no dia anterior, nin-guém reparara.

Os quatro homens que compunham a patrulha encontraram na seção de ferragens facas e machadinhas. A temperatura estava se tornando bastante elevada e o sol resplandecia num céu sem nuvens: todos retiraram as roupas mais pesadas. Com as mangas das camisas arregaçadas, as facas no cinto e as machadinhas nas mãos, o grupo se apresentava como um temível bando de assaltantes.

Todo mundo saiu do hotel para cumprimentá-los enquanto partiam para aquela volta no interior. Caminhando pela rua que não levava a parte alguma, empunhando suas armas de fortuna e tentando não parecer confusos, eles começaram a perceber de forma aguda o absurdo daquela situação. Grahame também, apesar de sentir que todas as preocupações desse estranho mundo estavam pesando em seus ombros, não conseguiu controlar o riso. O grupo expedicionário se parecia de forma vaga com um ensaio de uma cena de “ópera-buffa” .

Voltaram pontualmente duas horas e dez minutos mais tarde.Todos estavam perfeitamente bem. Nenhum deles tinha corrido o menor risco.Mas o relatório não concorreu em nada para aliviar a sensação geral de angústia e

insegurança.John Howard relatou em primeiro lugar os fatos que todos concordaram terem ob-

servado. Pela sua estimativa, a marcha fora de aproximadamente oito quilômetros por uma planície que não apresentava nenhuma característica especial, a não ser es-tranhos arbustos, pequenas flores, plantas que se pareciam com samambaias de por-te excepcional e capim muito alto. Descobriram que havia um rio e não longe dali vi-ram uma sequência de colinas de elevação moderada. Mas o grupo, em sua totalida-de, não tinha encontrado espécime nenhum de vida animal de qualquer tipo.

Houve, porém, dois relatos particulares.O primeiro foi de Paul Redman, o agente literário americano. Ele explicou que en-

quanto caminhavam em meio a grandes touceiras de capim cuja altura poderia ser estimada em metade da altura de um homem de estatura média, parara para enxu-gar o suor da testa. Fazendo isso, levantara os olhos para o céu.

Redman afirmou que por um instante vira a passagem de um grupo de criaturas voadoras, brilhantes e extraordinárias. Disse que elas pareciam ter compridos cabe-los dourados e rostos diminutos que se pareciam com rostos humanos. Explicou que por quanto estranho pudesse parecer, a única maneira de descrever as criaturas era dizer que tinham a aparência esquisita de fadas.

O segundo relato foi feito por Gunnar Rudefors, o professor sueco. Os quatro ho-mens marchavam em fila, cada um a uma distância de uma dúzia de passos do ou-tro. Concordaram que essa era a maneira mais segura de caminhar, considerando

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que não conheciam nada a respeito da região a ser explorada. O lugar do que enca-beçava a patrulha era, claramente, a posição mais perigosa e por isso todos se alter-naram como batedores.

A vez de Gunnar Rudefors chegou quando já estava quase se esgotando o tempo estabelecido para a primeira parte da marcha: a patrulha teria que começar o regres-so dali a pouco. Estava desejoso de fazer o máximo possível durante aquela primeira expedição e por isso acelerou o passo e acabou precedendo os outros muito mais do que devia.

Caminhando desse jeito, emergiu de uma zona cheia de altas samambaias, viu por um instante algo que ele insistiu ser um cavaleiro medieval, coberto por uma estra-nha e reluzente armadura, a uma distância que julgou ser vinte passos.

Gunnar Rudefors não se deixou abalar por observações irônicas e nem por um cer-rado interrogatório: a descrição continuou a mesma.

O cavaleiro usava uma espécie de visor e seu rosto estava quase que totalmente coberto.

Levava também uma arma que parecia uma espécie de espada ou de lança.Estava montado num animal com chifres galhados, e cujo porte era menor do de

um cavalo, mas maior do que o de um gamo.O cavaleiro e Gunnar Rudefors se defrontaram durante um momento. Em seguida

o cavaleiro resmungou uma palavra, parecida com: - Adiante! - virou sua cavalgadu-ra puxando-a pelos chifres e, trotando, desapareceu entre um grupo de árvores.

Quando os outros homens chegaram perto do sueco que parecia petrificado pelo que vira, o cavaleiro já não estava mais lá.

John Howard, que era o segundo da fila, admitiu ter ouvido algo parecido ao esta-lar de cascos e uma espécie de grito, que pensou tivesse sido emitido por Rudefors. Mas não viu coisa nenhuma.

Grahame, após ouvir os relatos dessa expedição, percebeu que estava precisando urgentemente de um drinque. Um drinque bem grande, e já.

Não foi o único que sentiu essa necessidade.

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Não foi feito nenhum contato com as pessoas ou criaturas responsáveis pelo se-questro de dezesseis passageiros do voo Estocolmo-Londres, todavia alguns fatos in-teressantes aconteceram nos dias seguintes e dois desses fatos tiveram um desfecho trágico. A primeira tragédia foi o suicídio de Marina Jessop, estudante inglesa, com vinte anos. Aconteceu na noite do mesmo dia em que Paul Redman viu as fadas e Gunnar Rudefors viu o cavaleiro medieval.

Naquela noite Russell Grahame, Membro do Parlamento e comandante da legião extraterrestre, resumiu após o jantar os fatos conhecidos e comunicou sua interpre-tação provisória dos mesmos. Não conseguiu evitar fazer um discurso, mas fez o possível para que fosse o mais objetivo possível, consciente da forte tensão emocio-nal que dominava a todos e que sem dúvida continuaria a existir até a situação ficar esclarecida.

- Senhoras e senhores -, começou, olhando penalizado para o grupo abatido e ner-voso, - fiquei pensando um bocado - como também vocês já fizeram - em tudo o que aconteceu conosco. Apesar de estarmos vivendo dentro de um absurdo pesadelo e apesar da irritante falta de informações, acho necessário tentar tirar alguma conclu-são do que sabemos, para tranquilizar minha própria consciência. Evidentemente, es-tou brincando! Mas preciso ver se tudo isso tem algum sentido. É possível que minha interpretação dos fatos seja totalmente errada, mas vou apresentá-la pelo que vale. Se, após eu terminar, alguém pretende apresentar alguma explicação mais válida, gostaria muito de ouvi-la. Entretanto, aqui vai a minha.

Esperou por um instante.- Quero partir da suposição que quanto aconteceu conosco foi feito por razões sé-

rias e não à-toa. Pelo que vimos, fomos todos raptados e levados de um avião a jato em voo internacional, fomos todos submetidos a uma cirurgia e agora estamos num mundo estranho, que talvez se encontra a uma distância incrível da Terra. Parece-me que toda essa operação, que eu considero abaixo de qualquer crítica, só poderia ter sido efetuada por pessoas ou criaturas cuja civilização está tão mais adiantada que a nossa, como a nossa é adiantada a respeito da Idade da Pedra. - Parou mais uma vez, vendo a tristeza estampada em todos aqueles rostos e acrescentou em tom de brincadeira: - É claro que estou me referindo à Idade da Pedra terrestre. Se podemos acreditar no que diz o senhor Redman, esse planeta poderia ter uma pré-história muito mais colorida. - Estava esperando que alguém sorrisse, mas ninguém mudou de expressão. Continuou rápido:

- O esforço e os meios usados nessa operação estão além de nossas imaginações baseadas no século vinte. Dizer que foram colossais poderia ser insuficiente. Isso me leva a concluir, minhas senhoras e meus senhores, que fomos trazidos para cá por razões muito sérias. Acredito que o objetivo é de descobrir como somos nós, os da Terra. - Teve a absurda impressão de estar pronunciando a palavra com uma letra capital. - Não consigo adivinhar se em seguida seremos levados de volta ou não. Es-

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tou, porém convencido que durante nossa estada aqui teremos todos os confortos necessários.

- E as fadas?- alguém perguntou.- E que tal o cavaleiro medieval?- observou um outro.Grahame encolheu os ombros. - Existem muitas coisas que ainda não tem resposta. Outras, aliás, que talvez nun-

ca terão resposta. Só podemos concentrar todos os esforços em tentar adivinhar... Eu estou adivinhando, senhoras e senhores, quando digo que estamos sendo obser-vados como espécimes de jardim zoológico. Se realmente existem fadas e cavaleiros circulando por aí, só posso imaginar que eles também não passam de espécimes re-colhidos e trazidos para cá. Não tenho a mais pálida ideia de onde possam ter chega-do. Poderiam até ser indígenas desse planeta. De qualquer forma, não podem ser eles os responsáveis do que aconteceu conosco.

Acho que precisamos fazer logo duas coisas, ambas absolutamente necessárias. Precisamos descobrir o mais possível a respeito do mundo em que nos encontramos e precisamos fazer o impossível para estabelecer um contato direto com as pessoas que nos trouxeram para cá, sem provocar animosidade. Sem dúvida, em comparação com eles, podemos parecer débeis mentais ou bichos. Mas se o grau de progresso ético deles está em alguma relação com seu progresso tecnológico, poderíamos tal-vez convencê-los a mandar-nos para nossas casas - após um certo período de estu-do.

Seguiu-se uma pequena discussão, mas ninguém conseguiu oferecer uma explica-ção melhor ou mais plausível: de fato, todos estavam ainda por demais traumatiza-dos para conseguir pensar com clareza. Aos poucos os casais e os desacompanhados foram se deitar.

Grahame percebeu que as ligações sexuais já estavam começando. No grupo já havia quatro pessoas casadas, mas percebia-se que pelo menos mais quatro tinham assumido uma condição de casados temporários, então achou que isso fosse um mau sinal. Se havia alguém que conseguia encontrar algum conforto no sexo ou em simples companhia, ótimo. Possivelmente conseguiria se manter racional durante um período mais demorado.

Marina Jessop estava sozinha num quarto. Suas duas colegas partilhavam outro e a convidaram a ficar com elas. Marina, porém, sempre tivera uma preferência pela solidão e não gostava de interferências na sua intimidade.

Subiu para seu quarto e escreveu uma notinha. Em seguida foi tomar banho. Só foi encontrada na manhã seguinte. Um aquecedor elétrico portátil, que parecia ter sido puxado de propósito para dentro da água, resolvera todos seus problemas.

A notinha era para Grahame, pessoalmente.

Querido senhor Grahame,Sinto muito por estar desertando. Sou muito covarde mesmo e não aguento mais.

Andrea e Janice poderão confirmar que eu sempre fui muito tímida. Tenho medo do escuro e me assusto até com sombras. O que aconteceu conosco é a pior sombra que eu já vi. Estou tão aterrorizada que não consigo mais continuar fingindo que tudo está normal.

O senhor precisa me perdoar. Precisa mesmo. Três dias atrás eu estava voltando para minha casa e minha família após lindas férias na Suécia. Estava feliz de voltar para a faculdade. Mas sei - e o senhor também está sabendo - que ninguém entre nós jamais voltará para casa. Esse pensamento me deixa desesperada. Não posso

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me transformar numa heroína. Não tenho forças suficientes para aguentar ser uma prisioneira, longe de todas as pessoas que eu amo. Seria terrível se eu tivesse que enlouquecer e dar muito trabalho a todos vocês.

Por favor, compreenda isso e me perdoe. Se por um acaso o senhor conseguir vol-tar de alguma maneira, fale com meus pais. Eles moram em Stockport, na Eden Street, 71, no Cheshire. Por favor, diga-lhes que eu fui vitima de um acidente. Tenho também um gato chamado Floco de Neve, mas acho que não adianta dizer a ele que eu sofri um acidente.

Acredite, por favor, que eu não seria de nenhuma utilidade para o senhor ou para qualquer um.

Lembranças de suaMarina Jessop

Grahame chorou após ler a cartinha. Esperou ficar sozinho e chorou. Lembrou-se que o rosto de Marina Jessop estava pálido - muito, muito pálido. Seus cabelos eram lisos, negros e compridos e tivera um olhar distante e perdido. Parecia uma persona-gem de uma fábula de Hans Andersen. Marina fora a primeira vítima. Ficou especu-lando quantas mais haveria.

Mas a vida tinha que continuar - dentro dos limites do possível. Marina foi sepulta-da antes do meio-dia atrás do hotel, a uma distância de cinquenta metros, num tre-cho em que o terreno era plano e limpo.

Anna Markova, que declarava abertamente seu ateísmo, cantou para ela o Salmo 23 com sua belíssima voz de contralto. Mohan das Gupta, um hindu, fabricou uma cruz.

E a vida continuou.Durante a tarde Grahame chamou a todos e pediu que fizessem um inventário de

tudo o que possuíam, excluindo roupas e artigos de toalete. Achava boa ideia saber quais eram os recursos com que poderiam contar.

A lista que resultou continha em sua maioria os costumeiros apetrechos de turistas - máquinas fotográficas, pequenos objetos de vidro ou aço produzidos na Suécia, al-guns radinhos de pilha e livros. Havia, porém alguns objetos de grande valia, como por exemplo um compasso que mostrou que o planeta estava provido de polos mag-néticos - dois pares de binóculos, duas caixas de pronto-socorro bem equipadas, uma boa quantidade de pílulas e até duas máquinas de escrever portáteis.

Grahame, em parte para afastar os pensamentos cio pessoal da morte de Marina e em parte porque achava que isso seria de alguma utilidade, estava planejando uma exploração de uma certa envergadura. O grupo encarregado teria que ir para o sul. Sairia ao clarear do dia seguinte e só voltaria ao crepúsculo do segundo dia. Graha-me calculava que dessa forma o grupo poderia avançar durante um dia inteiro - per-correndo de vinte e cinco a trinta quilômetros antes de acampar durante a noite - e teria um dia inteiro para voltar.

Passar a noite a céu aberto poderia talvez ser perigoso, mas era evidente que tor-nava-se necessário correr alguns riscos, se eles quisessem apreender fatos importan-tes. Pediu voluntários.

John Howard, que já dirigira a expedição anterior, se ofereceu junto com sua mu-lher. Gunnar Rudefors também disse que iria. A quarta pessoa que fez questão de ir foi a moça francesa, Simone Michel.

Grahame ficou meio preocupado, não sabendo se era oportuno deixar que mulhe-res tomassem parte numa empresa desse tipo. Acabou se convencendo que precon-ceitos e inibições à maneira antiga não iriam ajudá-lo em nada. Anna Markova expli-

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cou que as mulheres tinham uma resistência diferente, mas não inferior à dos ho-mens, e a presença delas poderia exercer uma influência estabilizadora. Com certeza elas não deixariam que os homens se arriscassem de forma desnecessária.

Os voluntários então foram mandados descansar enquanto o resto do grupo pre-parava tudo quanto era necessário. Quatro deles, inclusive as duas estudantes ingle-sas, receberam a tarefa de confeccionar uma tenda completa de piso, feita de lençóis e capas de chuva de plástico. Robert Hyman, que era funcionário público, revelou possuir um talento secreto e muito útil: era um arqueiro amador bastante habilidoso. Ofereceu-se para fazer dois arcos e uma dúzia de flechas e de ensinar aos homens como deviam ser usados.

Tore Norstedt começou a construir um transmissor primitivo, feito de pedaços de metal e fio de arame de cobre insulado, encontrados numa das oficinas. O transmis-sor seria útil de duas maneiras. O grupo de exploradores poderia levar radinhos de pilha e manter assim um contato unilateral com o resto da turma, e haveria também a possibilidade de estabelecer qualquer contato radiofônico com as criaturas respon-sáveis pela situação ou com qualquer outro grupo de seres humanos que se encon-trasse numa situação parecida à deles.

Tudo estava pronto às primeiras luzes do dia seguinte, e todos se levantaram para desejar boa sorte ao grupo que ia fazer uma “exploração profunda”. O transmissor poderia ser de até quarenta quilômetros. Norstedt preparara um simples código tele-gráfico. Já fizera testes de transmissão e tinha certeza que o alcance do transmissor poderia ser de até quarenta quilômetros. Estava usando a força do hotel, modifican-do a corrente direta em alternada.

Havia, porém uma dificuldade: no grupo ninguém entendia sinais Morse. O trans-missor de Norstedt não servia para a irradiação da linguagem falada, e isso fazia ne-cessário reduzir os sinais a um mínimo muito simples. SOS queria dizer, “voltem com toda urgência” . OK queria dizer, “continuem segundo os planos”. As emissões seriam irradiadas de hora em hora.

Grahame estava desapontado pela impossibilidade de comunicação mútua. Tore Norstedt explicou que a construção de um transmissor portátil com as poucas coisas que tinha à disposição, levaria muito tempo e muitos testes.

Considerando as circunstâncias, a expedição estava bastante bem equipada. Tinha lanças de fabricação caseira, facas, machados, dois arcos e uma dúzia de flechas. Ti-nha também uma tenda e rações enlatadas. A mais, um compasso, um binóculo e uma máquina fotográfica.

Apesar disso, Grahame ficou acenando para eles com o coração pesado. A expedi-ção anterior não chegara muito longe antes que o grupo descobrisse aparições que se pareciam com fadas e um cavaleiro. Este grupo iria muito mais longe ao interior. Não estava com muita vontade de pensar nas notícias que trariam, quando voltas-sem - se por acaso fossem capazes de voltar.

Seus temores não eram sem fundamento.O grupo voltou ao crepúsculo do dia seguinte. Ou melhor, três pessoas do grupo

voltaram.Gunnar Rudefors que estava agindo de batedor durante o último trecho da jorna-

da, caíra num buraco dissimulado. Foi transpassado pelas estacas pontiagudas finca-das no fundo.

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6

Russell Grahame estava sentado na cama, em seu quarto, refletindo amargamente sobre a morte de dois de seus companheiros durante os últimos três dias. Trouxera do bar uma meia garrafa de whisky e estava acabando-a de forma sistemática. Nun-ca antes achara agradável beber sozinho. Aliás, continuava não achando o fato agra-dável. Estava simplesmente usando o whisky da mesma forma em que um homem com uma perna quebrada usa uma muleta.

Explicou a si mesmo que se continuasse a beber as mesmas quantidades consumi-das durante aqueles últimos dias, conseguiria bater todos os recordes de velocidade em se tornar alcoolizado. Era ótimo que os fornecedores invisíveis continuassem a suprir todos os mantimentos. Mas era completamente incompreensível como conse-guissem fazê-lo. Colocara um turno de guardas para vigiar o supermercado, mas nin-guém conseguiu ver nada. Apesar disso, todas as manhãs os mantimentos levados por eles se encontravam mais uma vez nas prateleiras. Era um mistério e tanto. Po-rém o que representava mais um maldito mistério num lugar tão cheio de mistérios?

Estava se sentindo desesperadamente só. As razões eram mais do que óbvias. Pos-sivelmente a situação não seria tão desagradável se ele não tivesse se colocado de forma egocêntrica à disposição dos outros, aceitando o comando e com isso todas as responsabilidades. Todos os outros dependiam dele e continuavam a fazer perguntas, como se ele soubesse todas as malditas respostas. Raios, ele nem sequer sabia as perguntas certas. Um belo chefe, realmente!

Despejou mais whisky no copo.Por ter aceito a responsabilidade, estava agora sentindo mais profundamente pela

perda da moça inglesa e do jovem sueco. Salud, Marina. Salud, Gunnar! Que seus despojos e seus espíritos descansem em paz nessa terra estranha, tão longe dos ver-des campos da Terra...

Esforçou-se em se concentrar nas informações trazidas pelos sobreviventes da se-gunda expedição. Eram muito mais alarmantes do que o insignificante relato da pri-meira expedição. De fato, todos os integrantes dessa vez concordavam a respeito do que viram. Ainda por cima, tinham fotografias para prová-lo.

O acontecimento mais desconcertante, a não se considerar a morte de Gunnar, fora a descoberta de outras criaturas humanas - as que eles agora estavam chaman-do de o Povo do Rio.

A primeira a vê-los foi Simone, a jovem artista francesa. Poderiam também ter passado despercebidos com a maior facilidade, porque naquele instante a expedição estava a cerca de vinte quilômetros de - casa -, caminhando em direção quase para-lela ao rio, mas a mais ou menos dois quilômetros do próprio. Simone começou a perseguir algo que acreditou ser uma enorme e linda borboleta, que parecia ter se assustado com o progresso do grupo entre as árvores bastante aproximadas. A bor-boleta começou a se movimentar lentamente - quase como querendo ser perseguida, a moça observou mais tarde.

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Talvez, fosse isso mesmo. O grupo já estava perto da margem da floresta e, sem-pre seguindo a borboleta, ela saiu para o terreno descoberto e subiu por uma leve elevação, de onde se podia ver o rio. A esse ponto perdeu de vista a borboleta. Si-mone, porém, estava carregando o binóculo e começou a observar distraidamente as margens do rio. Algo que num primeiro momento parecia uma espécie de ponte, re-sultou não ser uma ponte quando ela começou a observá-la com mais atenção. Aliás, era sim uma ponte, mas feita de choças primitivas construídas sobre palafitas. A fu-maça estava saindo dos buracos no topo. Os moradores das choças estavam eviden-temente em casa.

O grupo de exploradores começou a se aproximar cautelosamente do pequeno agrupamento de choças, usando de bastante bom senso. Chegaram a não mais de quinhentos metros e desse ponto fizeram suas investigações com os binóculos.

Havia algumas pessoas na margem. O povo do rio tinha uma aparência primitiva: seus cabelos eram emaranhados e estavam cobertos com peles de animais. John Howard explicou que, pela sua aparência, eles davam a impressão de serem rema-nescentes da Idade da Pedra. Estavam armados com machados e tacapes, que apa-rentemente eram feitos com pedaços de pedra, e com lanças com pontas também de pedra. Tinham também canoas que pareciam feitas com troncos de árvores.

John Howard decidiu, com muito bom senso, não insistir mais nas investigações. Achou que era muito mais importante levar de volta à base as informações que já possuíam. Dedicou, porém algum tempo a estudar não só os movimentos do Povo do Rio, mas também o terreno em volta. Viu a uma certa distância, do outro lado do rio, algo que conseguiu descrever somente como uma espécie de alta muralha de névoa ou neblina. Parecia estar a cinco ou seis quilômetros de distância e julgou sua altura em aproximadamente duzentos metros.

O grupo voltou para a floresta para acampar, e passaram a noite ali com duas pes-soas de guarda e duas dormindo, se alternando a cada hora. Ouviram ruídos alar-mantes feitos por animais selvagens, mas não viram nada. No dia seguinte, quando estavam a apenas sete ou oito quilômetros da base, Gunnar Rudefors caiu na arma-dilha.

O buraco não era muito grande, mas estava situado de maneira astuciosa ao longo de uma trilha quase invisível - possivelmente a trilha feita por animais que iam ao bebedouro - e o grupo estava seguindo-a talvez de forma inconsciente. As estacas pontiagudas o mataram rapidamente. Estavam dispostas de maneira tal que só pro-vocariam um prejuízo mínimo na presa.

Gunnar foi duas vezes mal-afortunado. Em primeiro lugar, porque naquela hora era a sua vez de servir de batedor, e em segundo lugar porque não percebeu que o ca-pim mais em frente era murcho e amarelado...

Russell Grahame ficou examinando todos os acontecimentos desde o instante que saíra de seu caixão e entrara no hotel. Chegou à conclusão que estava totalmente despreparado para ser um chefe. Chefe, pois sim! Não seria capaz de dirigir um gru-po de escoteiros...

Se tivesse um pingo de bom senso, teria inventado uma porção de tarefas para todo o mundo, e então Marina teria ficado cansada demais para ter vontade de pen-sar em suicídio. Se ele tivesse um pingo de bom senso não teria permitido a um gru-po sair em exploração sem ter antes um treinamento adequado. Se ele tivesse um pingo de bom senso...

Um chefe, pois sim! O responsável pelas decisões, pois sim! Por Deus, ainda esta-va em tempo de renunciar ao cargo, antes que os outros se cansassem de sua in-competência e o mandassem embora!

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Alguém bateu e a porta se abriu.- Posso entrar?Anna Markova entrou sem esperar a resposta.- Olá, Anna.- Olá, Russell.Todo mundo já passara a usar o primeiro nome. Era ridículo insistir em formalida-

des quando todos estavam num lugar a quem sabe quantos anos-luz de um livro de etiqueta. Também era estranho, realmente muito estranho, que com a possibilidade de todo mundo entender a língua de todo mundo, as nacionalidades já não tinham importância nenhuma.

Anna espiou o whisky. - Você gosta de beber sozinho?- Não.Ela sorriu. - Então me ofereça um pouco também.- Desculpe-me. Não queria ser malcriado... Você não se importa de beber num

copo comum, que está no banheiro, ou prefere que eu busque um copo para whisky no bar?

- O copo comum vai ser ótimo, muito obrigada.- Ela sentou na beira da cama e pu-lou um pouco, como testando. - Acho que essa cama é mais confortável que a mi-nha.

- Vá se queixar com a gerência -, ele respondeu com um pálido sorriso. - Ou en-tão, se você assim preferir, podemos trocar de quarto.

Ela mudou rapidamente de assunto. - Russell, você está muito triste. É uma coisa muito natural sentir tristeza por

aqueles que morreram, mas ninguém devia ficar sozinho nessas circunstâncias. E isso, ela acrescentou indicando o whisky que estava em sua mão, - não pode ajudar como você está esperando que faça.

- Amém -, ele respondeu levantando o copo.- Amém -, repetiu Anna bebendo também. - Essa é a primeira vez que consigo fa-

lar a sós com você. Vou dizer-lhe o que eu penso e depois você me dirá o que pensa. Está bem assim?

- Perfeito.- Muito bem -, ela continuou. - Parece-me óbvio que estamos numa espécie de zo-

ológico. Na Terra, nos zoológicos mais modernos -, disse com um sorriso nos olhos, - ou pelo menos nos mais modernos zoológicos da Rússia, tentamos proporcionar aos animais um ambiente o mais possível parecido com seu ambiente natural. Parece-me que os que nos capturaram fizeram isso mesmo conosco. Foi por isso que nos deram um hotel para morar, por isso temos um supermercado para nossos suprimentos e por isso existem carros na rua.

- Os carros não funcionam.- - Claro que não. Também não há estradas por onde dirigi-los. Mas os que cumpri-

ram essa façanha sabem que estamos acostumados com essas coisas e fizeram o possível para que nos sentíssemos à vontade.

- Eu apreciaria muito mais toda essa delicadeza conosco se eles nos mandassem para casa -, ele respondeu de cara amarrada.

- Mas eles não pretendem fazer isso -, disse Anna.- Por que não?- Somos - ou melhor, éramos - oito homens e oito mulheres.- Daí?

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Anna ficou a observá-lo com um olhar ao mesmo tempo triste e divertido. - Mas é tão óbvio, Russell. Fomos trazidos para cá para nos multiplicarmos... Você não acha?

Ele não respondeu e nem olhou para seu lado.- Estou vendo que você também chegou a essa conclusão. É muito melhor enfren-

tar a realidade, não é mesmo? Fomos trazidos para cá para nos multiplicarmos. Com essa premissa, acho quase impossível que algum dia sejamos devolvidos à Terra.

Russell levantou o olhar e ficou admirado pela calma que leu no rosto dela. - Você parece não estar aterrorizada por esse pensamento.Ela foi sacudida por um calafrio. - Precisa encarar a realidade e saber como aceitá-la. A vida então pode continuar.

Aliás, a vida deve continuar. O que aconteceu conosco é horrível e ao mesmo tempo é extraordinário. Não podemos permitir que se torne inútil.

- O que é que você quer dizer com isso?- Quero dizer que vamos nos multiplicar. Em nosso grupo há casais e outros estão

se formando. - Deu uma gargalhada quase cruel. - Russell, acho que naquele super-mercado tão cômodo e cheio de coisas, não há nenhum estoque de anticoncepcio-nais.

Ele apanhou a mão dela num gesto impulsivo e ficou segurando-a. - Anna, você já reparou que essa gente ou essas criaturas nos apanharam da mes-

ma maneira em que os biólogos recolhem espécimes? Para eles, nós não passamos de material experimental, e quando a experiência terminar... - Não terminou a sen-tença.

- Você quer dizer que o material para experiências não terá mais nenhuma utilida-de para eles?

Russell acenou com a cabeça.- Isso é possível -, refletiu Anna. - Mas não acredito que seja provável. De qual-

quer maneira, é importante agirmos como se não estivéssemos pensando nisso. De outra forma - de outra forma tudo se tornaria insuportável.

- Ainda não é insuportável?- Não.Ele riu. - Acho que você tem uma personalidade muito forte.- Isso é possível. Mas só vou poder me manter forte se... Russell, você me acha

atraente?- Acho que você é muito atraente, Anna.- Você deixou uma esposa ou uma família na Inglaterra?- Não. Fiquei tão ocupado sendo um péssimo socialista que não tive tempo de me

dedicar a algo assim - criativo.Ela sorriu. - Então agora você poderá ter uma oportunidade. Eu sou uma péssima comunista,

mas sou uma mulher muito prática. Não sou virgem, e aprendi a não esperar muito dos homens... Por isso, vou morar com você e vamos aprender a proporcionar um pouco de calor um ao outro. Acho que ambos poderíamos achar agradável a parte sexual, mas não vamos deixar que isso se torne simplesmente uma obrigação. Afinal, existe algo muito mais importante - por exemplo, a amizade. Você concorda?

Olhou para ela em silêncio por alguns instantes, com as sobrancelhas arqueadas. Em seguida disse em tom solene:

- Anna Markova, eu estou um pouco bêbado, e você é uma mulher extraordinária.-- Então, estamos de acordo. Se por acaso não conseguirmos nos adaptar um ao

outro, nossa relação pode ser facilmente desfeita. Não estou me referindo à amizade,

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é claro.Russell ergueu o copo. - Deus abençoe Karl Marx.Anna se levantou, erguendo seu próprio copo e anunciou, de maneira um pouco

misteriosa: - À Rainha! - Bebeu seu whisky e saiu para apanhar suas coisas.Russell Grahame descobriu de repente que já não se sentia mais deprimido e que

mais uma vez estava se sentindo confiante. Levou alguns instantes para descobrir como isso tinha acontecido.

Então percebeu que já não estava mais sentindo o peso da solidão.

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7

Segue um trecho do diário de Robert Hyman:

É a décima quinta noite de nossa estada num mundo que Russell achou engraçado chamar de Erewhon. Não acredito que ele tenha lido o livro de Samuel Butler, mas isso não tem importância. O nome é bastante apropriado por muitas razões. Em rela-ção ao resto da raça humana, nós realmente estamos no meio do nada. Alguns entre nós, sem dúvida, irão fazer muita falta e provocar um luto profundo. Para mim é um conforto saber que esse não vai ser meu caso. Eu estava sozinho na Terra e acho que vou continuar sozinho aqui. Afinal, esse é o privilégio de quem é homossexual, mas ao mesmo tempo não tem a coragem de suas próprias convicções.

Por algum tempo tive esperanças que Andrew - o coitado do Andrew, o magro e insípido herói daquele péssimo seriado de espionagem da TV - fosse aflito, abençoa-do com as mesmas tendências. Mas não é assim. O coitado do menino não passa de um macho levemente afeminado. Aliás, do jeito que está agora, só Deus sabe se al-guma vez será de alguma utilidade. Nesse momento parece até bastante calmo e quem sabe, daqui a algum tempo estará em condições de sair da camisa de força que tivemos que improvisar para ele. É claro que não poderíamos continuar indefini-damente a cuidar dele. Estou pensando que teria sido melhor para ele se tivesse conseguido cortar sua própria garganta de maneira mais eficiente.

Todo mundo está enervado pelas suas frases desconexas a respeito de grandes aranhas metálicas. Pelas poucas coisas coerentes que conseguiu dizer, parece que se levantou durante a noite para dar alguns passos no único pedacinho de rua calçada de nossa mini-cidade-fantasma. Ele afirma ter visto essas criaturas indo para o su-permercado, carregadas de suprimentos - apesar da turma de patrulha não ter per-cebido nada. Só sabemos com certeza que encontramos Andrew no chão, pouco an-tes do dia clarear, deitado na rua rígido como uma tábua, e de olhos arregalados. Ti-vemos que forçá-lo para que se movimentasse. Quando conseguimos isso, ele se fe-chou como uma ostra e não quis falar mais nada. Quando lembramos mais uma vez dele, vimos que estava trancado em seu banheiro, berrando como um louco e ten-tando cortar a garganta com uma lâmina. Conseguiu arrumar uma bela confusão.

Acho que temos muita sorte que Marion Redman entenda um pouco de enferma-gem. Andrew não conseguiu se prejudicar muito, mas parecia que ia morrer de he-morragia. E agora o coitadinho está sentado ali, com suas ataduras e dentro da ca-misa de força, girando os olhos arregalados em todas as direções e murmurando a respeito de aranhas carregadas de pacotes de detergente e alimentos enlatados.

De qualquer forma, é um verdadeiro mistério de que maneira nossos suprimentos chegam ao supermercado. Mantemos constantemente guardas, mas ninguém viu nada, a não ser Andrew. John Howard se saiu com uma teoria pela qual estaríamos condicionados a não ver. Tore tem uma teoria ainda mais maluca, pela qual nossos guardiões conseguem nos “desligar” todas as vezes que acharem conveniente. Ele

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acha que eles simplesmente esqueceram de “desligar” Andrew.Assim mesmo, ainda não demos algum passo para nos aproximarmos à solução

dos mistérios que nos envolvem. Talvez não estamos fadados a resolvê-los...Essa noite fiz minha confissão. Não sei porque fiz isso. Achei, porém, muito impor-

tante agir assim. Talvez seja porque todos parecem estar se juntando em casais e em trios. Tore Norstedt levou Janice e Andrea para seu quarto. Parece que ninguém está ligando. E por que deviam? Mohan das Gupta está tendo um caso violento e tempestuoso com Simone. Parece que ela pretende pintá-lo, enquanto ele só quer fazer amor. A coitada pequena Selene Bergere - céus, que nome impossível! - está cobiçando humildemente e à distância nosso respeitado chefe. John e Mary continu-am calmos e mutuamente devotados e Paul e Marion só brigam quando pensam que ninguém está ouvindo.

Gosto muito do Russell. Talvez foi por isso que confessei. Ele é a primeira pessoa após Sammy - e o coitado e querido Sammy morreu há tanto tempo que quase não consigo me lembrar de seu rosto - a quem eu realmente falei no assunto.

Pensei que talvez Russell estivesse admirado por eu não tentar querer “consolar” uma das moças. Mas não foi por isso que eu falei. Estava simplesmente com vontade de falar. Ele não ligou a mínima.

Só disse, - Robert, meu velho, você está entre amigos. É uma lástima que as coi-sas não possam ser um pouco mais fáceis para você.-

Entendi perfeitamente o que ele quis dizer com isso. De qualquer forma, estou acostumado com a solidão.

Apesar de duas mortes e de um colapso, e apesar de relatos a respeito de fadas, cavaleiros medievais e selvagens, ainda não sabemos realmente nada de mais positi-vo a respeito de nossa situação, desde a hora em que chegamos aqui. A teoria do zoológico é a mais aceita. Também acho que é a mais razoável. De qualquer forma é inquietante não saber quem está dirigindo esse zoológico!

Anna parece estar convencida de que eles querem que nos multipliquemos. Ela é metódica como todos os russos e parece que a ideia não a deixa indignada. Aliás, está ameaçando de presentear Russell com meia dúzia de filhos - tendo o tempo ne-cessário de produzi-los.

Tentamos explorar mais um pouco, é claro. Pelo menos, assim fizemos até que An-drew encontrou as tais aranhas. Mas não fomos muito longe, porque Russell insiste para ficarmos todos juntos. Segurança devida à união, e coisas assim. Se os direto-res do zoológico possuem um eficiente sistema de observação, devem estar às gar-galhadas quando nos veem sair para “treinamento no campo”, armados de arcos e flechas, lanças e tacapes rudimentares.

De fato, acredito que Russell não está muito interessado em “explorações”, mas simplesmente em treinar-nos e dar-nos mais segurança. Acho que ele deve ter al-gum plano.

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8

Eram três horas da tarde, hora de Erewhon. O calor era estafante. Os dias pareci-am estar ficando mais compridos e mais quentes. Havia estranhas sementes pluma-das de capins altos que esvoaçavam pela rua, amontoando-se de maneira desorde-nada, e todos os sinais deixavam concluir que era pleno verão.

Russell Grahame estava sentado sobre os degraus de acesso do hotel com uma fo-tografia na mão, observando distraidamente as sementes que se empilhavam contra a inútil Mercedes e o igualmente inútil Saab. Tentou calcular quanto tempo levaria até que ambos os carros ficassem completamente cobertos. As sementes vinham vo-ando em grandes nuvens da savana verde. Algumas pessoas ficaram brevemente afetadas por uma aguda febre de feno, mas parecia que não provocavam outros in-convenientes. Pelo jeito, em alguns dias a estrada toda ficaria coberta por uma ca-mada de duas ou três polegadas de sementes. Russell perguntou a si mesmo se não seria oportuno constituir uma equipe para limpar a rua. Mas estava inquieto, como todos os outros; chegou à conclusão que seria mais oportuno varrer as sementes quando não houvesse mais chegando da savana.

Russell não estava sozinho. Andrew Payne, já sem camisa de força, mas ainda cheio de ataduras, estava sentado ao seu lado junto com a morena e infantil Selene Bergere, cuja aparência era curiosamente etérea. Selene contara a todos que seu verdadeiro nome era Jojane Jones. Mas ninguém conseguia pensar nela como Joja-ne. O nome Selene parecia muito mais apropriado.

Desde a malograda tentativa de suicídio de Andrew, ela estava cuidando dele. Ape-sar dele estar quase completamente recuperado, ela continuava se preocupando com ele; parecia que entre ambos estivesse se desenvolvendo um comovente relaciona-mento fraternal.

A volta de Andrew a um estado quase normal, após dias de ausência alternados com ataques histéricos, era devida em grande parte à fotografia que Russell estava segurando.

A fotografia fora obtida com a ajuda de flash. A câmera ficou apontada para a por-ta de entrada com o obturador ligado a um barbante esticado entre duas prateleiras. Paul Redman emprestara a máquina e a colocara em posição. Felizmente estava com dois rolos de filme e uma meia dúzia de bulbos de flash ainda sem uso. Tore Nors-tedt deu o toque final, ligando o barbante do obturador a uma campainha de desper-tador arrumada para a ocasião.

Dessa forma foi possível estabelecer exatamente a hora em que foi batida a foto: mais ou menos às duas e trinta da madrugada.

A foto mostrava - infelizmente sem muitos detalhes - a silhueta de uma aranha metálica carregando uma caixa cheia de mantimentos, possivelmente para repor o que estava faltando.

Dessa forma as palavras de Andrew foram confirmadas e a vista daquela fotografia teve mais efeito do que o melhor dos remédios.

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Russell observou mais uma vez a foto - talvez fosse até pela vigésima vez. O corpo da aranha parecia não ser maior do que uma bola de futebol, com uma espécie de pequeno copo invertido - possivelmente o mecanismo sensor colocado no topo da esfera. Parecia estar caminhando com quatro pernas providas de muitas juntas, e usando mais quatro braços, também com muitas juntas, para suspender a caixa de mantimentos acima de sua cabeça ou corpo. A máquina - porque evidentemente tra-tava-se de uma máquina - não parecia ter uma altura superior a um metro.

- O que é que você acha?- perguntou Andrew, olhando com algo que se parecia com carinho para a foto que o ajudara a encontrar mais uma vez sua sanidade men-tal. - Você acredita que essa coisa é inteligente?

- Isso é possível -, admitiu Russell. - Mas na minha opinião há maiores probabilida-des disso ser um robô com controle remoto... O que realmente atrapalha é que so-mos condicionados por conceitos humanos ortodoxos. Afinal, não podemos sabê-lo, mas esse brinquedinho poderia ser até o senhor e dono desse planeta, que poderia ter dominado seus criadores que eram talvez seres biológicos. Assim mesmo, a mi-nha impressão é que se trata simplesmente de um robô - o executor das ordens de um dono elusivo e invisível.

Selene estremeceu e se aproximou mais de Andrew que colocou um braço em vol-ta dos ombros dela, com ar de protetor, dando a Russell um motivo de divertimento.

- Eu me assusto com muita facilidade, senhor Russell -, ela disse. Apesar dos pro-testos de Grahame, Selene sempre o chamava de senhor Russell, sendo ele o chefe reconhecido do grupo. - Realmente sou muito assustadiça. Que tal se tivesse legiões dessas coisas, só esperando para atacar-nos?

Russell deu uma gargalhada. - Se eles quisessem nos atacar, Selene, já o teriam feito antes. Ao contrário, você mesma precisa reconhecer que até agora eles cuida-ram de nós - ou pelo menos, cuidaram para que nada nos faltasse. Fizeram isso de maneira muito eficiente. Pessoalmente acho que a principal tarefa deles é cuidar para que... - Parou.

Mohan das Gupta acabava de sair do supermercado e atravessou a rua correndo.- Não tem um maldito cigarro sequer -, anunciou.- Como assim?- Ontem havia pacotes e pacotes de cigarros, e hoje não há nenhum.Grahame refletiu por um instante. - Você tem certeza que ninguém foi buscar ci-

garros antes de você?- Hoje é o meu dia de ir buscar mantimentos e coisas -, explicou Mohan. Sorriu. -

Quem sabe, alguém está querendo me pregar uma peça.- - Acho que não -, retrucou Russell. - Faz calor demais para qualquer um estar com

vontade de brincadeiras.- - Retaliação -, disse Andrew de repente. - É isso: estão retaliando.- Como assim? - Por um momento Russell pareceu não entender.- É simples: as aranhas - ou quem as está controlando - não gosta de gente curio-

sa -, explicou Andrew. - Eu vi uma e acabei tendo um caso de loucura temporária, e tentei me suicidar. Você poderia dizer que eu estava assustado, é claro - e eu estava mesmo! - mas não consigo me livrar da suspeita que alguém me ajudou um pouqui-nho para que meu cérebro realmente parasse de funcionar... Agora conseguimos fo-tografar uma dessas aranhas. Elas não conseguiram que a máquina fotográfica tives-se acessos, e por uma razão qualquer deixaram de destruí-la. Em consequência es-tão tentando desencorajar-nos deixando de nos dar algo que consumimos em grande quantidade.

- A teoria não deixa de ser interessante -, concordou Russell. - Mas as provas são

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apenas circunstanciais... De qualquer forma - é bastante plausível...- Pode também ser que a resposta seja ainda mais simples, meu velho -, sugeriu

Mohan com um sorriso. - Talvez simplesmente eles estão sem estoque. Talvez lá na base deles ninguém estava pensando que todos nos tornaríamos fumantes. Teve um engraçado estremecimento. - Mas que dia mais infernal! É uma caminhada e tanto até o mais próximo charuteiro.

- Temos uma possibilidade de averiguar isso -, Russell disse lentamente. - Bastaria colocar mais uma vez a máquina e ver se Andrew está certo.

Os olhos de Mohan brilharam em seu rosto escuro. Levantou as mãos num gesto de horror.

- Devagar, meu caro, devagar! Dessa maneira eles seriam capazes de cortar nosso suprimento de gim!

Selene segurou o braço de Andrew sacudindo-o: - Olhe! - gritou, apontando para o fim da rua. - Oh, meu Deus, meu Deus! O que é

isso?Uma figura estranha aparecera de repente, destacando-se do verde brilhante da

savana que lhe servia de pano de fundo. Começou a caminhar cambaleando como um bêbado, aproximando-se pelo curto trecho de rua que os estava separando.

- Agora estou pronto para acreditar em qualquer coisa -, disse Russell com a voz tensa. - Gunnar estava certo. No fundo de nosso jardim realmente há fadas e cava-leiros.

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9

A criatura que aparentava ser um cavaleiro se encontrava visivelmente em péssi-mas condições. Estava usando somente uma couraça sobre o peito, que parecia ser de bronze, calções de couro e um jaleco. Parecia ter perdido seu capacete com visor e também não havia sinal de sua cavalgadura.

O rosto que parecia composto de traços mongóis e negroides estava manchado de sangue. O calção e o jaleco embaixo da couraça metálica estavam molhados e ver-melhos. Era claro que estava bastante machucado. Tinha, porém forças suficientes para segurar com a mão direita uma espécie de espada.

O pequeno grupo nos degraus do hotel ficou imóvel, como que petrificado. O cava-leiro continuou a cambalear em direção a eles. Mantinha os olhos arregalados e imó-veis, mas sem enxergar nada em sua volta. Talvez estivesse preocupado com coisas que só ele estava conseguindo ver.

Apesar de estar sentado e imóvel, à espera do que pudesse acontecer, o cérebro de Grahame estava trabalhando com a rapidez de um relâmpago. Tudo parecia estar acontecendo em câmera lenta, tanto assim que conseguiu registrar todos os meno-res detalhes da aparência do cavaleiro. Viu os rasgos na roupa de couro, os hemato-mas, os fragmentos de terra e os fios de capim grudados nas roupas, na armadura e no rosto. Teve a impressão de estar vendo o sangue jorrar dos ferimentos ocultos - e até de estar ouvindo as batidas dolorosas do coração do homem ferido.

O cavaleiro continuava avançando em direção ao hotel. A cada três ou quatro pas-sos esboçava um gesto com a mão que segurava a espada, como querendo atingir um inimigo invisível.

De repente, sem saber se já tinha passado meio século ou só dez segundos, Gra-hame se controlou, levantou-se e caminhou em direção à estranha criatura.

O cavaleiro percebeu sua presença. Estacou e ficou ondulando, como quem está prestes a cair. Com um esforço terrível conseguiu focalizar Russell, mas o que viu pa-receu não inspirar-lhe nenhuma confiança. Tentou erguer a espada, quase perdeu o equilíbrio e fez logo outra tentativa. Mas foi inútil. Murmurando um palavrão entre os dentes apoiou a ponta da espada na superfície do calçamento e usou a arma como se usa uma muleta.

Tossiu com evidente esforço e cuspiu em direção de Russell. Com um último e pe-noso esforço conseguiu erguer a espada.

- Adiante -, pronunciou com voz sufocada, mas em excelente inglês. - Para trás, demônio, papão, duende, diabo, bruxo, espírito do Mal. Eu o ordeno, em nome da Rainha branca e da Rainha preta! Volte para as entranhas da terra que são seu reino!

Russell ficou imóvel. Compreendeu que a situação era idiota, mas conseguiu pen-sar e dizer só uma única palavra:

- Paz.- Paz!- berrou o guerreiro com desdém. - Paz! Estás querendo zombar de mim por-

que estou fraco! Pois morrerás, miserável, sabendo que Absumes Marur está muito

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ferido, pois de outra forma não terias a honra de ser transpassado com a espada!O cavaleiro tentou investir contra ele e Russell deu um passo para o lado. Foi um

movimento inútil porque o arremesso do cavaleiro não poderia chegar até o fim. Era evidente que a estranha aparição já não tinha mais um pingo de energia. Sem emitir mais um som caiu, batendo o rosto no chão.

Russell virou-o delicadamente. Em sua extrema palidez, o rosto do homem parecia quase branco. E era muito jovem.

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Absumes Marur, senhor do clã Marur, gonfaloneiro das torres ocidentais, auriga das caravanas da pimenta vermelha, guardião do falcão real e suserano eleito das terras desconhecidas, ficou inconsciente durante dois dias num dos quartos do hotel que Mohan das Gupta chamava zombando de Erewhon Hilton. Seus ferimentos eram pro-fundos, mas nenhum deles era mortal. Se ele fosse uma criatura terrestre, possivel-mente teria morrido de choque, infecção e hemorragia. Mas, qualquer que fosse sua origem, Absumes Marur não era um homem da Terra. No fim da tarde do terceiro dia a febre baixou e ele abriu os olhos.

Marion Redman cuidara dele durante quase todo aquele tempo. Limpara os feri-mentos, colocara compressas frias sobre sua testa que ardia pela febre e fizera o possível para que ele se sentisse confortável. Durante todo esse tempo John Howard e Tore Norstedt foram para o norte, o sul, leste e oeste, agindo como batedores, para ver se era possível travar contato com os companheiros do homem ferido. Mas não acharam ninguém. Grahame ainda por cima não queria que se afastassem mais do que três ou quatro quilômetros de cada vez, por razões que eram mais do que óbvias. Se os amigos, ou talvez os inimigos, do cavaleiro quisessem aparecer de re-pente e tivessem uma disposição à truculência, o problema poderia se tornar muito sério.

Grahame estava no quarto quando Absumes Marur recobrou os sentidos.- Não se mexa -, Grahame disse com voz calma. - Aqui ninguém quer lhe fazer mal

algum. Você esteve quase à morte. Quando você estiver melhor e tiver descansado o suficiente, vamos acompanhá-lo até sua casa - se você assim o quiser... Naturalmen-te, se formos capazes de descobrir onde você mora.

O homem deitado na cama virou os olhos e estremeceu. Apalpou o peito, procu-rando sua couraça, mas Marion já a havia tirado no primeiro dia, cortando as correias que a firmavam. Procurou sua espada, mas também não a achou.

Grahame percebeu que ele não estava à vontade, e pensou que talvez se sentisse nu sem toda aquela parafernália. Teve um rasgo de intuição e tirou a espada do ar-mário onde se encontrava, colocando-a sobre a cama, de forma que o cavaleiro pu-desse apoiar a mão sobre o cabo. Recebeu um olhar cheio de gratidão.

- Não sei se você é homem, fantasma ou demônio -, o homem falou em seguida, de maneira curiosa. - Gostaria porém de saber seu nome, sua linhagem e seus títu-los. Deitado aqui, cheio de vergonha perante si mesmo e perante vocês, está Absu-mes Marur, senhor do clã Marur.

- Muito prazer -, respondeu Grahame cauteloso. - Meu nome é Russell Grahame.- Você é o senhor de seu clã?- Não estou entendendo.- Absumes Marur ainda estava muito fraco e estava começando a se cansar de ma-

neira evidente. Estava porém decidido a saber o mais possível a respeito das circuns-tâncias em que se encontrava.

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- Essa mulher -, continuou em voz fraca, - ela é sua mulher?- Não. Ela não é minha mulher.- O cavaleiro suspirou. - Nesse caso não pretendo falar com você. Chame o senhor de seu clã.Marion foi a primeira a entender o que ele queria. - Russell, ele só quer saber se você é nosso líder. Pelo amor de Deus, tranquilize o

coitado antes que sua febre volte a subir.- Eu sou o líder eleito de meu povo -, disse Grahame. - Espero que você com-

preenda isso. Nós não temos um clã, como você acredita, mas talvez você entenda que eu sou o chefe entre os meus companheiros e amigos.

Absumes Marur teve um breve sorriso. - Pois então você é o senhor de seu clã. Fique sabendo que suas armas poderão se

cruzar condignamente com as minhas, quando estarei mais uma vez em condições de erguer minha espada.

- Não tenho a menor intenção de lutar com você -, disse Grahame. - Nem agora e nem nunca.

- Mas é sua obrigação!- Não é minha obrigação coisa nenhuma. Minha obrigação é levar você até sua

casa quando estiver mais uma vez em condições de viajar.O cavaleiro estremeceu mais uma vez. Fez um esforço violento para se controlar. - Sou gonfaloneiro das torres ocidentais, auriga das caravanas da pimenta verme-

lha, guardião do falcão real e suserano eleito das terras desconhecidas -, anunciou com bastante orgulho. - Quem tiver a ousadia de me espezinhar poderia, quando chegar a hora, precisar de muitos esquadrões de lanceiros para defendê-lo.

- Ninguém está querendo espezinhar você -, Grahame explicou com muita paciên-cia. - Meus companheiros e eu só queremos ajudá-lo... Se for preciso lutar, então lu-taremos; mas preferimos viver em paz. Queremos ser seus amigos. Queremos tam-bém que você e seu povo sejam nossos amigos. Agora descanse, Absumes Marur. Ninguém vai lhe fazer mal algum.

O cavaleiro estava respirando com dificuldade e sua testa estava coberta de suor. - Qual é sua linhagem?- perguntou.- Não tenho linhagem nenhuma.Absumes Marur soltou um gemido.- Pelo amor de Deus, Russell - protestou Marion. - Diga alguma coisa! O coitado

está quase fundindo a cuca pela angústia.- Mas minha querida -, retrucou Grahame, - não foi mesmo Oscar Wilde quem dis-

se que estávamos separados pela barreira de um idioma comum? Esse sujeito parece estar falando inglês - mas nós sabemos que não é assim, e seus lábios se mexem de forma diferente. Acredito que ele também teve a sua cabeça manipulada, da mesma forma que nós. Estamos nos comunicando, mas a dificuldade consiste no fato que os conceitos dele são completamente estranhos - medievais, suponho eu.

- Sua linhagem!- berrou Absu mes Marur desesperado.Russell encolheu os ombros. - Está bem. Lá vai.- Virou-se para o cavaleiro. - Sou Russell Grahame, Membro do

Parlamento -, anunciou solenemente. - Sou a Voz do Povo da Rainha, autor dos de-cretos reais, condecorado com a estrela de 1939-1945 e sócio do Real Automóvel Clube.

Absumes Marur acenou com a cabeça, cheio de entusiasmo, mas era evidente que não estava entendendo nada.

- Então é verdade que você é o senhor de seu clã?

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- Pois assim seja. Eu sou o senhor de meu clã... Mas você e eu chegamos para cá de mundos diferentes. Tente compreender isso. Meu povo e eu chegamos de um mundo que se encontra além das estrelas e do outro lado do sol. Chegamos aqui de uma forma que eu...

Absumes Marur que o estava fitando de olhos arregalados soltou um grito agudo e mergulhou mais uma vez no conforto proporcionado pela perda da consciência.

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Passaram-se vários dias antes que os ferimentos de Absu mes Marur se cicatrizas-sem o suficiente para ele conseguir se levantar da cama. Durante esse tempo Russell Grahame e Absumes Marur conversaram muito, trocando uma grande quantidade de informações a respeito deles próprios e a respeito dos mundos muito diferentes dos quais vinham. Grahame se encontrava numa posição de vantagem, pois fora criado numa sociedade tecnológica e emocionalmente muito sofisticada. Podia, por isso, compreender ideias e conceitos que estavam fora do alcance do outro, cuja cultura poderia ser comparada mais ou menos, pelo que Grahame estava vendo, à do perío-do do obscurantismo europeu.

Russell Grahame e seus companheiros não conseguiam, porém, se conformar com o fato surpreendente de Absu ser indiscutivelmente humano. Apesar de sua familiari-dade com os inícios da exploração espacial e com os preparativos para viagens inter-planetárias que estavam sendo feitos na Terra, Grahame nunca pensara muito nas possibilidades extraordinárias que essas viagens poderiam proporcionar. Imaginara que esse tipo de jornada teria que ser necessariamente limitada ao sistema solar, pois as distâncias entre as estrelas eram tão vastas que não poderiam ser superadas com métodos “convencionais” de locomoção.

Ele e seus companheiros, porém, receberam de forma bastante dramática a confir-mação de que as viagens interplanetárias eram possíveis e podiam ser feitas com uma certa facilidade. Entretanto, os terrestres estavam inconscientes durante seu se-questro, e não tinham por isso a possibilidade de saber quanto tempo tinham levado para chegar em Erewhon. Poderiam ter ficado em seus caixões plásticos durante al-guns minutos - ou durante séculos, - submetidos a alguma espécie de suspensão temporária de vida. Talvez algum dia seus sequestradores poderiam decidir revelar suas identidades e explicar o mecanismo e o propósito do sequestro, mas por en-quanto nada havia de positivo; estavam só fazendo todo tipo de conjeturas.

Após um grande número de discussões ficou claro que os terrestres não eram os únicos a se encontrar, confusos e isolados, longe do mundo que conheciam. Absumes Marur e quinze companheiros chegaram em Erewhon de maneira muito parecida à deles. A diferença estava no fato deles não terem sido sequestrados de um avião em pleno voo, mas de uma caravana em movimento, composta de mercadores, guerrei-ros, mulheres e animais de carga que transportavam a preciosa pimenta vermelha desde o Reino de Ullos até o Reino Superior e ao Reino Inferior de Gren Li.

Grahame tinha certeza absoluta que esses reinos descritos por Absu com fartura de pormenores não podiam existir em parte nenhuma de planeta algum dentro do sistema solar. Sabia o suficiente a respeito do sistema solar para ter certeza que so-mente a Terra, o terceiro planeta, apresentava condições favoráveis à evolução da vida humana.

Assim mesmo, Absumes Marur, cujo planeta de origem devia pertencer a uma es-trela desconhecida, era definitivamente humano. Na Terra sua aparência daria a im-

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pressão dele ser o resultado de uma mistura de sangue asiático e africano. Ele, po-rém não era da Terra, e nem do sistema solar. E assim mesmo, era humano. Quanto mais tempo passava, mais Grahame se convencia que Absumes Marur e seu povo acabariam por se revelar também geneticamente compatíveis com os homens e as mulheres da Terra.

Lembrou-se, preocupado, da promessa de Anna Markova de dar-lhe filhos. Se os acontecimentos continuassem a se desenrolar satisfatoriamente - ou talvez insatisfa-toriamente - dentro dessa situação deveras fantástica, a pobre Anna e as outras mu-lheres do grupo talvez tivessem que encarar a possibilidade de ter que enfrentar coi-sas que ninguém, no momento presente, poderia imaginar.

Absu não foi de muita ajuda no que dizia respeito a suas origens. Apesar do horror e da vergonha que manifestara no começo, e que deviam ser a resultante de estra-nhos tabus e costumes esquisitos, ele acabou confiando em Grahame e aceitando sua amizade.

- Vamos conversar, Absu -, falou Grahame uma manhã, vendo que o cavaleiro es-tava bem disposto e capaz de se sentar na cama e se concentrar. - Acho que precisa-mos discutir um certo número de coisas.

- Estou disposto a conversar com o Sir Grahame -, respondeu Absu calmo, - se o Sir Grahame me declarar, com suas mãos cruzadas sobre a testa e sobre o coração, jurando pelo manto sagrado, que não haverá engano ou traição em suas palavras.

Grahame, sentindo-se bastante ridículo, colocou as mãos sobre a testa e sobre o coração.

- É assim que você quer?Absumes Marur acenou com a cabeça: - Este é o costume.- Eu juro -, proferiu Grahame em tom solene, - pelo manto sagrado, que não há

engano e não há traição nas minhas palavras. Juro também que eu e meus compa-nheiros não alimentamos qualquer inimizade pelo Sir Absumes Marur e seu povo.

- É um juramento muito generoso, Sir Grahame.- Meu primeiro nome é Russell, e acho que o seu é Absu. Você acha apropriado

que em nossas conversas nós nos chamemos dessa forma?- Sim, mas só após estabelecermos o vínculo.- De que forma vamos estabelecer este vínculo?Absumes Marur sorriu: - Com uma espada, uma lança ou uma adaga colocada so-

bre nossas gargantas. Entre senhores de clãs é mais apropriado usar uma espada.- Não tenho nenhuma espada, mas desejo estabelecer este vínculo.- Olhou para a

espada deitada sobre a cama de Absu e que estava ali desde o momento em que ele mesmo a colocara. - Você não acha que poderíamos fazer isso com uma única espa-da?

- Essa modalidade já foi usada -, admitiu o cavaleiro. - Mas só aconteceu nos cam-pos de batalha.

- Meu amigo -, observou Grahame sério, - acho que na situação em que nos en-contramos, podemos considerar-nos num campo de batalha.

- Assim seja -, disse o cavaleiro. - E que o sangue jorre agora!Com um movimento de agilidade surpreendente num homem ferido e deitado

numa cama, Absumes Marur agarrou a espada, inclinou-se para frente e apoiou leve-mente a ponta na garganta de Grahame.

Grahame percebeu que um filete de sangue estava a lhe escorrer pelo pescoço. Olhou ao longo da afiadíssima lâmina e encontrou os olhos ferozes do homem que com um leve movimento de sua mão poderia terminar sua vida para sempre. Não se

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mexeu.Absumes Marur rosnou: - Aqui está alguém que eu não posso matar. Aqui está alguém que poderá me ver

de costas. Aqui está alguém em cuja presença eu poderei dormir. Aqui está alguém que poderá conversar com minhas mulheres. Se eu esquecer disso, possa eu morrer de uma morte vergonhosa. E que assim seja, pelo manto sagrado.

Colocou a espada sobre a cama e com um gesto convidou Grahame a pegá-la.Grahame apanhou-a, segurando-a com cuidado. Temia não saber como manejá-la

e estava apavorado em colocá-la na garganta de Absumes Marur.- Faça jorrar sangue! - convidou-o Absu secamente. Grahame relutava. Então Absu comprimiu sua própria garganta contra a ponta da

espada e um filete de sangue escorreu da picada. - Agora repita a fórmula do vínculo!Grahame fitou os olhos de Absu acima da lâmina e repetiu as palavras, que achou

comoventes. Estranhou sua própria reação. Mas as palavras equivaliam a um podero-so encantamento, elas podiam impedir que dois homens se matassem.

Terminou e colocou a espada em seu costumeiro lugar.- Isso significa que não precisamos mais nos matar um ao outro? - perguntou.- Significa que jamais poderemos nos enfrentar no campo de batalha.- Muito bem, Absu. Vamos acrescentar a este seu costume, mais um que é válido

no meu país.Estendeu a mão e mostrou a Absu como apertá-la. - Estou lhe oferecendo minha mão em amizade... E agora, se você não estiver

muito cansado, quero contar-lhe a respeito de meu país e a respeito da maneira em que eu e meus companheiros fomos trazidos para cá. Em seguida, você me contará tudo a respeito de sua terra.

Começou a descrever da maneira mais simples a civilização tecnológica dos países industrializados da Terra. Quando começou a descrever as máquinas voadoras que podiam ir rapidamente de um ponto ao outro, sobrevoando terras e mares, e as má-quinas para comunicar à distância, viu que a compreensão e capacidade de acreditar de Absu tinham chegado ao limite extremo. Terminou rapidamente com o relato da chegada em Erewhon dentro dos caixões de plástico e as tentativas de explorar a re-gião em volta.

- Então vocês são uma raça de mágicos? - perguntou Absu com ar desconfiado.- Não, Absu. Não somos mágicos. Acho que a diferença principal entre vocês e nós

consiste no fato que meu povo dedicou-se por muito mais tempo ao manuseio e de-senvolvimento de metais - muito mais que vocês. Os homens mais espertos em nos-so meio descobriram como construir máquinas que poderiam fazer melhor o trabalho que antes era feito por homens e animais... Agora, conte-me sua história. Vamos ter tempo bastante para refletir sobre estas coisas.

Absu começou a falar, mas como supunha que Grahame tivesse muito mais conhe-cimentos de seu mundo do que ele realmente tinha, deixou Grahame com a cabeça quase estourando. Relatou a viagem da caravana da pimenta vermelha marchando do Reino de Ullos para o Reino Superior e o Reino Inferior de Gren Li. Absu estava comandando a escolta de quase trinta guerreiros; havia também nove ou dez merca-dores, cerca de quinze mulheres e mais de trinta pulpuls - um animal que parecia um cruzamento entre um cavalo e um cervo - que estavam carregados de especiarias e de outras mercadorias. Absu não conseguia compreender quando o ataque - como ele o definia - começou, e de que maneira se passou. A esse respeito as recordações de Absu e de seus companheiros eram confusas e nebulosas quanto as dos terres-

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tres. Absu só tinha certeza de que a caravana já tinha saído de Ullos fazia cinco dias, procedendo através da elevada e extensa cordilheira que separava Ullos do Reino Su-perior e do Reino Inferior.

A chegada em Erewhon foi muito parecida à dos terrestres, com a diferença que em lugar de haver um hotel esperando por eles, havia uma alta e sólida torre de ma-deira, e em vez de um supermercado havia um rebanho de pulpuls. Mais curioso ain-da era o fato que Absu tinha se ferido no mesmo lugar em que Gunnar morrera - quem sabe, talvez na mesma armadilha cheia de estacas afiadas.

Por muita sorte, Absu, durante sua cavalgada de exploração estava montado num pulpul que ficou empalado nas estacas. E por ironia da sorte, os ferimentos de Absu foram provocados pelo pulpul, enquanto este se contorcia na agonia. Provavelmente Absu perdera os sentidos por algum tempo, mas finalmente conseguiu se colocar de pé sobre a carcaça do pulpul e sair da armadilha.

Quase louco pelas dores e pelo choque, tentou então encontrar o caminho que o levaria de volta à sua torre, mas acabou chegando a um lugar muito diferente e que, a seus olhos, parecia mais apropriado para ser a morada dos mortos. Os rostos bran-cos das pessoas que viu - aparentemente ele não reparara em Selene - somente ser-viram a confirmar sua primeira impressão de estar entre demônios ou fantasmas.

- Pois você não está no meio de mágicos, demônios ou fantasmas -, respondeu Grahame quando ele terminou. - Você está entre gente parecida com você, Absu. Re-almente nossa pele é mais clara que a sua, mas muitos entre nós tem a pele escura. Somos mais altos e vivemos de maneira diferente, mas também somos homens e mulheres. Como aconteceu com você, nós também fomos levados de nosso mundo e trazidos para cá.

- De seu mundo?- interrompeu Absu. - Você está querendo dizer, de seu país, não é mesmo?

- Não, estou querendo dizer de nosso mundo.Absu mes Marur deu uma gargalhada. Seu rosto expressou alívio.- Isso mostra que vocês, os mágicos, não sabem mesmo tudo -, exclamou satisfei-

to. - Pois então, meu amigo Russell, fique sabendo que só existe um único mundo. Este mundo é o centro de qualquer outra coisa, e o sol é sua luz... Você já disse al -gumas coisas sem sentido a respeito de um mundo além das estrelas e do outro lado do sol. Mas isso é impossível, porque a Terra é o que ela sempre foi - o jardim dos deuses.

Grahame por um instante sentiu-se confuso. - Você está falando da Terra?- Isso mesmo, da Terra, o palco de todas as nossas façanhas, onde nascemos e

onde iremos morrer. Russell, a Terra é o único lugar em que podemos viver. O único, dentro da fartura de todos os outros lugares criados pelos deuses.

Grahame ficou a observá-lo, curioso. - Qual é a forma que você imagina a Terra tem?Absu deu mais uma gargalhada. - A que valem as grandes máquinas e a grande sabedoria dos mágicos? Acredito

que você sempre viveu perto da beirada, e por isso perto das trevas que se encon-tram em seu exterior... Até as crianças sabem que a Terra é achatada e redonda como um pires, e que suas dimensões são muito vastas. Ela está repleta de países e gentes estranhas, gentes com costumes também estranhos. Não existem dúvidas a respeito disso. Mas ambas as nossas raças, Russell, pertencem à Terra. Somos todos filhos da Terra.

- Então diga-me uma coisa -, perguntou Russell sem mais saber o que dizer, - o

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que aconteceria se um homem chegasse até à mais longínqua beirada da Terra?- Acabaria caindo -, respondeu Absu. - Cairia nas trevas e ninguém poderia vê-lo;

nunca mais. Seria o justo castigo pela sua loucura.- Absu, meu amigo -, suspirou Russell, - receio que ambos temos muitas coisas a

aprender.

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A torre de Marur encontrava-se a apenas quinze quilômetros a noroeste. A capaci-dade de recuperação de Absu era realmente extraordinária, comparado à capacida-des dos terrestres, e quando melhorou, Russel e Anna o acompanharam em sua vol-ta para casa. Russell queria acompanhar Absu sozinho. Estava preocupado que os re-sidentes no Erewhon Hilton pudessem ficar expostos a outras surpresas. Por exem-plo, o Povo do Rio poderia aparecer em grande quantidade; pelo que se sabia a res-peito deles, eram gente bastante feroz. Por isso Russell era contrário a diminuir o que ele chamava de as forças defensivas.

Anna, porém, não era da mesma opinião. Assegurou-lhe que alguém teria que acompanhá-lo de qualquer jeito, não fosse por outro motivo, para lhe fazer compa-nhia na volta. Absu explicou que seu povo lhe daria uma escolta no retorno. Mas não estava acostumado a discutir com mulheres; e vendo que Russell, apesar de ser o senhor de seu próprio clã, não estava se saindo muito bem, aceitou a opinião dela com toda a elegância possível num senhor e guerreiro de uma cultura definitivamen-te machista. Quer dizer, daquele momento em diante, ignorou a presença dela e en-dereçou qualquer palavra somente a Russell.

Durante seus últimos dias em companhia dos terrestres, Absumes Marur conven-ceu-se mais ainda de estar em companhia de mágicos. Conheceu o milagre da ilumi-nação elétrica, os relógios de pulso, o encanamento moderno, máquinas fotográficas, binóculos e constatou um fato extraordinário: era permitido a uma mulher caminhar em frente de um homem.

Ficou bastante intrigado pela insistência de Russell que continuava a lhe explicar que o povo dele chegara de um outro mundo, completamente diferente, mas que eles também chamavam de Terra. Ficou admiradíssimo porque todos eles aparenta-vam ser capazes de falar fluentemente a idioma de Gren Li Superior e Inferior, ape-sar de seus lábios estarem se mexendo de forma diferente. A coisa que mais o dei-xou admirado foi o comportamento e as atitudes tão diferentes das de um povo guerreiro. Após muito especular, chegou à conclusão que um povo destes possivel-mente guerreava com a força das mágicas e não com armas honestas, e felicitou-se consigo mesmo por ter estabelecido um vínculo de sangue com o senhor desse es-tranho clã. Se os senhores dos clãs eram proibidos de se defrontar em combate, seus povos também não podiam guerrear um contra o outro. A coisa era ao mesmo tempo desagradável e vantajosa. A paz era uma condição enfadonha, mas era de longe pre-ferível a uma guerra contra gente que conseguia aparecer à vontade uma luz branca e que comia servindo-se de uma peça de metal recôncava.

Russell nomeou John Howard seu vice pela duração de sua ausência. Em caso de não mais voltar, John Howard teria que assumir a responsabilidade de forma perma-nente, a menos que não fosse deposto pela maioria e um outro nomeado em seu lu-gar.

Simone Michel, que tinha a incumbência de buscar mantimentos, fez uma desco-

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berta agradável bem cedo na manhã do dia em que iriam para a Torre de Marur.Ela descobriu que os pacotes de cigarros estavam mais uma vez à disposição nas

prateleiras do supermercado. Era evidente que o castigo pela curiosidade - se fora um castigo, e não uma simples distração - chegara ao seu fim.

A viagem em si foi perfeitamente normal. Durou quase o dia inteiro, em parte por-que Absu ainda estava fraco demais para viajar depressa, e em parte porque uma ou duas vezes ele perdeu o caminho, e isso acrescentou alguns quilômetros à marcha. Quando já estavam no fim, ele parecia se dirigir quase que exclusivamente pelo faro.

Quando Russell perguntou a Absu qual era o cheiro que ele estava seguindo, aprendeu que Abus estava tomando as trilhas recentemente usadas por pulpuls sel-vagens ou então montados. Não fazia nenhuma diferença, porque todos os pulpuls sempre ficavam num rebanho perto da Torre, e os pulpuls que estivessem montados deviam obrigatoriamente estar indo ou vindo da Torre.

Russell então tentou farejar também todas as vezes que via Absu dilatar as nari -nas. Mas não conseguiu distinguir cheiro nenhum - talvez porque não saiba qual fos-se o cheiro que tentava distinguir.

Chegou à conclusão que o pulpul tinha, para o povo guerreiro dos Reinos Superior e Inferior de Gren Li, a mesma importância que o búfalo para os índios americanos e a rena para os Lapões. Era um meio de transporte pessoal e também um animal de carga. Fornecia a carne para a alimentação e seu couro servia para fazer roupas. As tripas eram usadas para a fabricação de amarras e cordas para arcos. Seus chifres podiam ser usados para a confecção de utensílios, adereços, colheres, agulhas e fa-cas. Seus cascos tinham fama de afrodisíacos, sua cauda era usada como uma prote-ção contra os espíritos malignos e seu nariz, seco e curtido, confortava as mulheres quando os guerreiros estavam ausentes.

A Torre de Marur estava situada no topo de uma pequena elevação, a cerca de du-zentos metros acima da planície que a contornava. Não ficava distante de um regato ao qual se chegava por uma trilha bem pisada pelas mulheres que diariamente iam buscar água. A Torre era de madeira e protegida por uma alta paliçada. O Teto da Torre apresentava ameias, à maneira das fortalezas primitivas e se encontrava a vin-te e cinco metros do solo. Havia nele duas sentinelas que perceberam a aproximação de Absu e das duas pessoas que o acompanhavam quando eles ainda se encontra-vam a mais de dois quilômetros de distância, e um pequeno grupo de guerreiros fez uma surtida para investigar.

Os três guerreiros do grupo saíram da Torre montados em seus pulpuls e atraves-saram a vegetação composta de capim alto a uma velocidade extraordinária, evitan-do as pequenas árvores e os outros obstáculos com excepcional habilidade. Quando Absu percebeu a aproximação deles começou a caminhar com passo mais elástico e um porte mais austero.

Antes que chegassem a vista da Torre ficara caminhando tranquilamente entre Russell e Anna, mas quando chegaram perto, tomou a dianteira e começou a mar-char a três ou quatro passos à frente dos outros dois.

Anna começou a não se sentir mais à vontade. - Acredito que nosso amigo estrangeiro está passando por uma mudança espiritual

-, ela murmurou para Russell. - Quem sabe, teria sido melhor deixar que ele termi-nasse o último trecho sozinho. Que tal se essa gente decidir que seria boa coisa pe-dir mais reforços?

Russell segurou a mão dela e mostrou-se mais confiante do que estava. - Absu tem um profundo sentimento de honra -, disse. - Ainda por cima, ele e eu

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agora somos algo parecido com irmãos de sangue, não se esqueça disso. Não acredi-to que seria capaz de renegar sua própria palavra, e trair o vínculo.

- Russell, você é confiante demais. - Isso é uma fraqueza tipicamente ocidental.- E você é excessivamente cínica - que também é uma reação tipicamente orien-

tal... - Sorriu com alegria. - É por isso que você e eu nos damos tão bem.A conversa foi interrompida pela chegada dos guerreiros Gren Li, montados em

seus pulpuls, segurando firmemente os chifres dos animais, o que era bastante cômi-co porque dava a impressão que estivessem segurando o guidão de uma bicicleta. Vinham com tanta velocidade e apontando diretamente para Absu que davam a im-pressão de querer atropelá-lo.

Mas a habilidade de parar de repente dos pulpuls era muito superior à dos cavalos ou dos cervos. A um sinal do líder do grupo, os três animais pararam juntos.

- Os filhos de Absumes Marur apresentam saudações -, falou um dos cavaleiros.- Absumes Marur saúda seus filhos -, respondeu Absu em tom amável.- Sir, temíamos sua morte.- Cheguei tão perto da morte que senti seu gosto, mas me recuperei graças aos

inimigos de meus inimigos.- Sir - uma lança descreve um semicírculo e parou apontando para o estômago de

Russell, - esses estrangeiros são suas presas?- São meus amigos. Foram eles que me devolveram à vida. Se alguém ousar cha-

mar isso de fraqueza, lance agora seu repto segundo nosso antigo direito.Os três homens começaram a murmurar entre eles. Em seguida o que parecia o lí-

der dos outros virou-se para Absumes Marur. - Não duvidamos da valentia e sabedoria de nosso Sir Afirmamos isso, pelo manto

sagrado.- Também não duvido de vossa sabedoria -, respondeu Absu. - Apeiem agora,

meus filhos, e deixem meus hóspedes cavalgar.Russell protestou, mas de nada valeu, e ele e Anna foram levantados para o lombo

dos pulpuls. Mostraram-lhes como segurar os chifres. Era bastante fácil cavalgar um pulpul porque os animais costumavam manter as cabeças eretas, proporcionando aos cavaleiros um apoio firme.

Percorreram o que restava do caminho até a Torre em poucos minutos. Os pulpuls procediam a passo lento e sacudido e os “filhos” de Absumes Marur corriam ao lado. Quando subiram para a elevação em que se encontrava a Torre ouviram as notas de alguma tuba ou trompa, cujo som era agradável até aos ouvidos de criaturas terres-tres.

A Torre de Marur, construída por mãos desconhecidas como o Erewhon Hilton e o supermercado, já existia quando seus ocupantes chegarem - e Russell descobriu que isso aconteceu mais ou menos na mesma época da chegada dos terrestres. Como já fora o caso com o hotel e o supermercado, quem quer que fosse que levantara a Tor-re, tomara o maior cuidado para se certificar que ela seria uma réplica perfeita das construções às quais seus moradores estavam acostumados.

Vista de fora, a Torre dava a impressão de uma construção sombria, com um certo número de pequenas janelas triangulares em cada andar. Em seu interior, e pelo me-nos acima do rés-do-chão, era surpreendentemente confortável. Peles de pulpul cos-turadas umas às outras cobriam o chão de madeira e havia montes de peles e até al-mofadas cobertas de fazenda para sentar e deitar. Armas e troféus enfeitavam as pa-redes e lâmpadas fumacentas de óleo de pulpul propiciavam uma luz trêmula, mas agradável, iluminando o ambiente escuro.

O rés-do-chão parecia uma combinação de matadouro, forno, sala de armas e ofi-

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cina. Degraus de madeira levavam ao andar superior, onde havia uma porta trancan-do o apartamento das mulheres, e dali subia para os alojamentos dos mercadores e dos guerreiros, terminando no apartamento do senhor do clã, logo abaixo do adarve.

Absu instalou seus hóspedes ali mesmo, mas não sem antes apresentá-los a todos os seus outros “filhos” . Essa apresentação era um ritual imprescindível numa socie-dade em que a própria aparência de pessoas estranhas era o suficiente para provo-car reações violentas.

Durante sua estada com os terrestres, Absu fora obrigado a ingerir leite evaporado e estranhos mantimentos em conserva. Foi a vez dos terrestres: tiveram que aceitar comidas esquisitas. Receberam em primeiro lugar algo que se parecia e tinha o pala-dar de abacate picado, mas que resultou ser miolos crus de pulpul - o prato mais re-quintado daquele povo -. Seguiram-se: coração de pulpul brasado, algumas verduras de paladar bastante agradável e a famosa pimenta vermelha, a especiaria na qual Russell ouvira falar com tanta fartura.

Pelas descrições de Absu, Russell imaginava que essa especiaria fosse uma pimen-ta vermelha qualquer. Isso era certo - mas também era errado. Era muito mais ardida do que qualquer outra pimenta conhecida, e as gotas de suor começaram a brotar em sua testa.

Além disso, a tal pimenta embriagava, mas somente se quem a comesse também bebesse água.

Com sua surpresa, Anna conseguiu comer a pimenta vermelha sem aparente difi-culdade. Observando o que Absu fazia, viram que era comida com colheirinhas min-úsculas (feitas de chifres de pulpul) de uma vasilha que se encontrava no centro da mesa, alternada com porções de coração de pulpul, muito resistente e amargo. Rus-sell bebeu bastante água, que lhe era oferecida a toda hora por uma mulher diminu-ta, morena e quase nua que ficou agachada a seu lado, mantendo as mãos nos om-bros dele com um gesto bastante familiar. A mulher chamava-se Yasal e era belíssima até pelos padrões terrestres. Nenhum outro membro do clã de Absu tomou parte no repasto.

Quando terminaram de comer, Russell estava num pileque total. Sabia estar bêba-do e se sentiu muito ridículo.

Absumes Marur fitou-o com ar solene: - Esperava que essa noite falaríamos mais uma vez nos problemas que nos preocu-

pam a ambos, Russell. - Lançou um olhar à vasilha de pimenta vermelha. - Receio, porém que a jornada nos proporcionou um cansaço que é diferente para cada um de nós. Vamos adiar nossa troca de pensamentos graves para a hora em que levantare-mos juntos com o sol e já descansados. Entretanto, sendo isso nosso costume, mi-nha mulher aquecerá as peles de sua cama e sua mulher aquecerá as peles da mi-nha.

Apesar da névoa que estava invadindo seu cérebro, Russell percebeu que a hospi-talidade desse senhor de clã medieval incluía costumes bastante surpreendentes. Olhou para Anna, que por sua vez observava Absumes Marur com expressão impassí-vel.

Falou então para o amigo: - Absu, meu irmãozinho... temos um problema. - Parou um instante, procurando as

palavras mais apropriadas. - Na minha terra não costumamos... trocar de mulheres... Bem, pelo menos não muito... entre amigos...

Absu sorriu. - Nós também não costumamos fazer isso, Russell, meu amigo - com uma exce-

ção: a primeira noite da primeira visita. Assim é o costume das torres, quando existe

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um vínculo. Sempre foi assim. Sem dúvida, assim sempre será... Pessoalmente, não sinto muito entusiasmo por uma mulher tão alta e com aparência de fantasma, e que não conhece a maneira certa de expressar respeito na presença de seu senhor. Mas os costumes das torres são sagrados, e receio que você passará bem melhor do que eu.

Anna Markova não era mulher que pudesse ser intimidada por um autocrata medi-eval estrangeiro, tosco e atrasado. Tomou um grande gole de água após a última co-lheirinha de pimenta vermelha, para ter o tempo de pensar numa resposta apropria-da.

Aquele gole de água chegou em péssima hora. Os vapores misteriosos da pimenta vermelha reagiram imediatamente e de seu estômago subiram-lhe na mesma hora para o cérebro, tornando-se candentes e impedindo qualquer pensamento racional.

- Ouça e fique sabendo, Absus mes Marur -, disse com a língua enrolada -, que toda mulher russa livre vale dez destas bruacas não emancipadas que sua gente acredita serem fêmeas. Não é do meu feitio deitar com pigmeus sedentos de sangue, mas no interesse do relacionamento internacional - perdão, quero dizer interplanetá-rio, vou aquecer as peles de sua cama de tal maneira, que você não vai esquecer essa noite pelo resto de sua vida.

Russell ficou assustado, os olhos de Yasal se arregalaram pela surpresa e Absu co-meçou a dar tantas gargalhadas que os outros começaram a temer que fosse se sen-tir mal.

- Pelo manto sagrado, pela rainha branca e pela rainha preta, essa mulher-fantas-ma tem um brio extraordinário -, disse a Russell. - Mas, meu amigo, fique sabendo que ela está contando muita vantagem. O calor do sangue dela está muito longe do calor de suas palavras.

Anna levantou-se, com alguma dificuldade, e olhou com desdém para o Sir de Gren Li.

- Bárbaro -, ela proferiu, procurando insultos mais apropriados. - Selvagem. Impe-rialista. Fascista. Vou lhe ensinar a respeitar os que lhe são moral e intelectualmente superiores, nem que seja a última coisa que...

Seus olhos se fecharam. Esforçou-se desesperadamente para mantê-los abertos, mas suas pálpebras não lhe estavam mais obedecendo. Ondulou levemente e depois, sem dizer mais nada, caiu ao chão e ficou imóvel.

Absumes Marur gargalhou. - É como eu disse que ia ser, Russell. Você passará muito melhor do que eu.- Agar-

rou Anna por um traço e pelos cabelos e arrastou-a com alguma dificuldade até um monte de peles. - Ainda bem que dessa maneira ela não vai me importunar muito.

Mas Russell, tentando virar para o outro lado, também caiu e ficou imóvel.Absumes Marur lançou a Yasal, a preferida das suas companheiras noturnas, um

olhar perplexo. - Eles são meus amigos, mas não conhecem nossos costumes. Você sabe o que

deve fazer, minha filha. Faça-o.

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No fim da tarde do dia seguinte, Russell e Anna com as cabeças ainda doendo um pouco, começaram a viagem de volta para casa, escoltados por dois guerreiros de Absu - e estranhando um pouco o fato de terem começado a pensar no Erewhon Hil -ton como “casa”. Os quatro estavam montados em pulpuls e a viagem foi rápida e sem incidentes.

Enquanto procediam saltitando, segurando firmemente e de maneira um pouco ri-dícula os chifres-guidão, ladeados pelos guerreiros Gren Li, Russell ficou revolvendo em sua mente a conversa com Absu naquela mesma manhã - logo após tomar gran-des copos de água, acompanhados por estranhos flocos de uma substância que re-sultou ser pão ázimo, para acabar com os efeitos da ressaca.

No grupo de sequestrados da caravana da pimenta vermelha encontrava-se um homem que Absu chamava de descobridor de caminhos. No Reino Superior e no Rei-no Inferior, onde o comércio dependia de rotas seguras para as caravanas, em terre-no difícil e que frequentemente mudava de característica, a arte de encontrar trilhas era uma profissão muito antiga e respeitada, limitada a algumas poucas famílias que eram conscientes e ciumentas de tanta honra.

O descobridor de caminhos de Absu era também um explorador e sabia fazer ma-pas. Logo após a chegada do grupo à Torre de Marur, o homem foi mandado para o norte onde a região parecia cheia de colinas que poderiam ser mais agradáveis que a planície. Absumes Marur e seu povo em geral preferiam as colinas, se a região não revelasse sérias dificuldades, estavam preparados a se mudar para lá, abandonando a Torre de Marur e construindo uma outra num local mais apropriado.

O descobridor de caminhos saiu sozinho e ficou ausente durante três dias. Quando voltou trouxe algumas informações curiosas. Ao norte havia fartura de animais selva-gens, o que mostrava que aquelas terras eram ótimas para caçar. Explicou, porém, que alguns animais que vira poderiam se constituir numa ameaça para os pulpuls. Isso era um obstáculo muito sério, porque qualquer ameaça contra os pulpuls se transformava numa ameaça contra a própria existência do grupo.

O descobridor de caminhos explicou também ter visto selvagens e algo que ele descreveu como um enxame de demônios providos de asas, cujos rostos pareciam cobertos por longos cabelos dourados. Não tivera a oportunidade de estudá-los em todos os detalhes e mais demoradamente, porque os demônios estavam voando bai-xo, mas a grande velocidade e por isso desapareceram rapidamente.

O descobridor devia ser um homem muito corajoso porque, apesar dessa experiên-cia, não deixou de transpor as colinas que agora estavam em sua frente. Do outro lado viu uma planície levemente ondulada onde a vegetação, ao contrário da região do outro lado das colinas, era muito pobre e se constituía, sobretudo, de capim. A planície parecia o segmento de um vasto círculo e estava limitada em sua extremida-de por algo que se assemelhava a uma muralha imóvel de névoa ou vapor.

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O descobridor de caminhos tinha enorme orgulho de sua profissão e isso o ajudou a superar a tentação de virar as costas e voltar rapidamente para trás. Atravessou a planície a pé, deixando o pulpul amarrado num arbusto. Fora obrigado a isso porque o pulpul, que normalmente é um animal dócil e obediente, recusou-se a continuar.

O homem não levou muito tempo para alcançar a muralha de névoa. Ele estava convencido que, em se aproximando, aquela estranha barreira perderia seu aspecto de muralha. Mas estava enganado. Havia uma leve brisa soprando, mas assim mes-mo a barreira de vapor continuou imóvel, mantendo sua forma rígida.

A curiosidade do descobridor de caminhos mostrou-se mais forte do que seu pavor na presença daquele estranho fenômeno. Esperava poder passar de alguma maneira por aquela esquisita muralha de nevoeiro branco e descobrir o que havia do outro lado. Mas antes de tentar penetrar nela, ficou parado por algum tempo, observando aquela névoa e reparando em alguns curiosos pormenores.

A “superfície” da muralha não era fofa ou irregular como seria lógico em qualquer condensação de neblina produzida pelo solo ou pelo mar. O vapor não parecia se misturar ou se agitar na atmosfera, e dava quase a impressão de estar contido na mesma posição por alguma película rígida e invisível. Aos dois lados do descobridor de caminhos, aquela parede se estendia na distância e ele conseguiu ver que a cur-vatura era absolutamente regular.

Sendo um homem inteligente e cheio de iniciativa, começou logo a fazer alguns cálculos complicados baseados na possibilidade que a curvatura fosse constante e que a parede não tivesse um fim. Nesse caso, ele raciocinou, ele, seu clã, e a terra em que se encontravam, estariam dentro de um círculo com um diâmetro de talvez cinquenta ou sessenta - varaks- . (Durante uma troca de explicações com Absu, Rus-sell conseguiu estabelecer que um quilômetro era mais ou menos equivalente a um varak e meio).

Após examinar todas as implicações contidas nessa possibilidade, o descobridor de caminhos chegou à conclusão que era seu dever tentar penetrar névoa adentro. Era corajoso, mas também cauteloso - como, aliás precisava ser em sua profissão - e an-tes de penetrar na névoa com todo o corpo, começou enfiando sua mão.

A mão desapareceu como se tivesse sido cortada na altura do pulso. O homem manteve sua mão na névoa por algum tempo e começou a sentir um estranho formi-gamento nos dedos. Quando finalmente retirou a mão, percebeu que ela estava bas-tante mais fria que o resto de seu corpo. Por algum tempo o descobridor de caminho ficou meditando sobre suas descobertas. Elas nada tinham que pudesse encorajá-lo a continuar. Se a névoa era tão opaca que a mão desaparecia completamente à vis-ta, como poderia ele se orientar dentro da névoa, quando já estivesse dentro dela?

Uma pedra-ímã fazia parte de seu equipamento normal, mas além dela também le-vava um rolo de corda, feita de pelo de pulpul, longa, um quarto de varak. Prevendo a possibilidade de uma falha no funcionamento da pedra-ímã - e ninguém poderia prever o efeito daquela esquisita névoa sobre uma simples pedra-ímã - o descobridor de caminhos plantou firmemente sua lança no solo, amarrou uma ponta da corda na lança e a outra ponta em sua própria cintura.

Todas essas precauções resultaram inúteis. Não conseguiu penetrar profundamen-te dentro do nevoeiro, e foi muito fácil encontrar o caminho para voltar. Não conse-guiu penetrar muito, porque a cada passo que dava a temperatura se tornava mais baixa, de forma evidente e desagradável. Após meia dúzia de passos sentiu o gelo se formando sobre a pele; três passos mais adiante não conseguiu mais mexer os de-dos; com mais dois passos sua boca imobilizada por uma camada de gelo e sentiu que seus olhos estavam se congelando também. Foi muito fácil encontrar a saída.

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Bastou procurar a temperatura mais quente.O descobridor de caminhos era profundamente consciente de seus deveres com o

senhor do clã, e por isso tentou penetrar na muralha por um outro lugar. Como da primeira vez, teve que desistir por causa do frio intenso. Tentou pela terceira vez, e mais uma vez teve que voltar. Sendo um homem de bom senso, não insistiu mais. Voltou ao lugar onde deixara seu pulpul e tomou o caminho da Torre de Marur para fazer seu relatório e desenhar um mapa primitivo da região explorada.

Russell ouviu toda essa história de Absu, após se recuperar de sua ressaca de pi-menta vermelha. Pediu para falar pessoalmente com o descobridor de caminhos, mas o homem saíra a procura de Absu antes da volta deste e ainda não aparecera.

Russell ficou pensando no significado do relatório do descobridor de caminhos en-quanto voltava com Anna e os dois guerreiros para o Erewhon Hilton.

Supondo que a hipótese do zoológico estava certa, e supondo que a muralha de névoa continuava até formar um amplo círculo, chegava-se à conclusão que apesar da área da reserva ser muito vasta (e poderia chegar a ter quase novecentos quilô-metros quadrados), os donos do zoológico não mostravam a menor intenção de per-mitir que seus “animais” escapassem. Por outro lado, as conclusões do descobridor de caminhos poderiam ser erradas, e a névoa poderia não passar de um fenômeno local.

Russell lembrou-se, porém, do relato de John Howard após a segunda expedição, e achou que o descobridor de caminhos de Absu interpretara de maneira correta o propósito da barreira de névoa. Enquanto Howard estava observando o Povo do Rio com seu binóculo, percebeu uma alta muralha de névoa na distância, que ficava completamente imóvel, do outro lado do rio. Era de se supor que essa muralha e a do descobridor de caminhos eram a mesma. O descobridor de caminhos fora para o norte, enquanto a expedição de John Howard fora para o sul; isso servia para refor-çar a hipótese de que a muralha era um círculo bastante grande.

Nesse caso, poderiam ser deduzidas várias e interessantes possibilidades...Russell percebeu de repente que Anna estava tentando lhe falar.- Estamos perto de casa agora, Russell. Acredito que nossos amigos guerreiros não

precisam chegar conosco até nossa base - e lançou um olhar significativo aos dois cavaleiros impassíveis. - Talvez seria mais interessante se andássemos a pé durante o último trecho, de um ou dois quilômetros.

- Acho que você está certa -, respondeu Russell compreendendo o que ela estava pensando. Absumes Marur conhecia perfeitamente o Erewhon Hilton, mas não havia razões para deixar que seus belicosos guerreiros vissem com seus próprios olhos até que ponto o prédio era indefensável do ponto de vista militar. Isso poderia dar-lhes ideias

Parou seu pulpul e falou aos guerreiros. - Meus amigos, o Sir Absu generosamente permitiu que vocês nos escoltassem até

nossa própria terra. Sentimo-nos muito agradecidos. Desejamos, porém, terminar nossa jornada caminhando. Devolvemos com agradecimentos os pulpuls que esta-mos cavalgando. Digam ao seu senhor que apreciamos muito a companhia de tão valentes guerreiros durante a viagem, e que agradecemos a ele e a vocês a proteção que recebemos durante o caminho.

Desceu com muito cuidado de seu pulpul, percebendo que se caísse do animal perderia o respeito dos guerreiros, e ajudou Anna a desmontar.

- Sir Russell,- falou um dos guerreiros, - ouvimos suas palavras e estamos prontos a obedecer. Você sabe, porém, que o senhor de nosso clã nos ordenou a levá-los se-

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guramente até sua torre. Se alguma coisa acontecer com você, seremos castigados por não ter cumprido nossa missão.

- Nada poderá nos acontecer,- respondeu Russell. - Podem dizer ao Sir Absu que eu lhes dei ordens para voltar daqui mesmo.

Os guerreiros saudaram à sua maneira, batendo a mão espalmada na lâmina da espada.

- Assim seja, pelo manto sagrado. Boa viagem.- Em nome da Rainha branca e da Rainha preta,- replicou solenemente Russell,

tentando se manter dentro das fórmulas daquele estranho povo. Desejo-lhes uma volta tranquila.

Os guerreiros viraram suas montarias e os dois pulpuls sem cavaleiros os seguiram obedientes; o grupo se afastou galopando pela mesma trilha seguida até aquele pon-to.

Russell e Anna começaram a caminhar de mãos dadas. Era uma tarde quente e ainda faltava bastante até o crepúsculo. Não havia necessidade nenhuma de se apressar.

Após algum tempo sentiram-se cansados pelo verde da savana e pelo ar quente e parado. Encontraram um lugar em que o capim parecia relativamente baixo e senta-ram para descansar. Finalmente deitaram e ficaram olhando para o céu em que nave-gavam algumas pequenas e fofas nuvens, cuja aparência era absolutamente normal.

Anna foi a primeira a interromper o silêncio. - Russell... durante a noite passada... você acabou confraternizando-se com aquela

pequena e atraente selvagem?Ele a encarou com expressão perplexa. - Quer saber de uma coisa? Juro que não consigo me lembrar. Você não acha es-

quisito?Anna sorriu. - Pensei que ela não poderia ser facilmente esquecida.- Assim mesmo, não consigo me lembrar... Aquela pimenta vermelha misturada

com água tem um efeito poderoso. Em comparação, uma vodca polonesa de 140° parece limonada... E você, Anna? Você... hum... confraternizou com Absu?

O rosto dela permaneceu calmo. - Eu também não lembro de nada... Mas tive a impressão... Não sei, não. Mas pen-

so que talvez... Aquela pimenta vermelha é potente!Russell deu uma gargalhada. - A última coisa que eu me lembro é que você o xingou com uma porção de nomes

feios e logo depois caiu no chão.Anna enrubesceu. - Estou tentando falar seriamente -, respondeu um pouco seca. - Afinal, se qual-

quer um de nós confraternizou, isso poderia acarretar um certo número de possibili-dades genéticas.

Russell prorrompeu em mais uma gargalhada. - Não faça assim, estou ficando com desejo de você... Desculpe, meu bem. Vou

tentar me manter sério.- O assunto não me parece merecer gargalhadas,- ela observou.- Eu sei. Mas está fazendo muito calor, passamos por uma aventura maluca, esta-

mos perto de casa e você é muito desejável. - Colocou uma mão sobre o seio dela.Ela torceu o nariz. - Você está querendo confraternizar? - perguntou com ar solene.- Minha querida, vamos fazer isso mesmo.

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Sem sentir necessidade de mais palavras, fizeram amor em meio ao grande silên-cio verde da savana. Em seguida se levantaram e começaram a caminhar lentamente em direção ao Erewhon Hilton. Era um dia que não poderiam esquecer.

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Russell organizou uma reunião geral naquela mesma noite, na sala de jantar. Con-tou a seus companheiros tudo o que acontecera, omitindo somente o pequeno e agradável interlúdio com Anna no fim da jornada.

Todos ficaram confusos, e ao mesmo tempo divertiram-se, pelas experiências do casal. Antes que pudessem começar a discutir seriamente o assunto, ambos tiveram que aguentar um bombardeio de perguntas e comentários maliciosos. Quando isso terminou, John Howard dirigiu a conversa para um nível mais construtivo.

- Acredito que você pensa que precisamos considerar nossa situação à luz dessas recentes revelações,- falou.

Russell assentiu. - Continuamos sabendo muito pouco, e o que sabemos ainda não dá para tirarmos

qualquer sentido. Apesar disso acho que devíamos pensar no assunto e ver se che-gamos a alguma dedução razoável. Se eu não me engano, pela aparência das coisas teremos que ficar aqui por um tempo imprevisivelmente longo. Nossa sobrevivência - e, aliás, qualquer coisa que nos diga respeito - pode depender de nossa maneira de reagir em base às informações que recebemos hoje.

Marion Redman perguntou:- Você acha realmente que essas criaturas são seres humanos?Russell encolheu os ombros. - Qual é a maneira de definir um ser humano, Marion? Trata-se de criaturas que vi-

vem exclusivamente na Terra? - e assim dizendo, quero dizer a nossa Terra. - Nesse caso Absumes Marur e seu povo não são seres humanos. Mas a aparência deles e meu instinto afirmam que eles são, sem nenhuma dúvida, seres humanos. Evidente-mente, humanos extraterrestres, mas assim mesmo humanos. E a resposta vai além de sua pergunta.

- É possível que Anna possa nos dar uma resposta mais certa daqui a nove meses,- sugeriu Mohan das Gupta com ar solene.

- Isso é possível.- Russell piscou para Anna. - Mas o que vai acontecer se o neném se parecer com um político inglês esquerdista?

Simone Michel saiu-se com uma ideia nova. - E que tal se eles não existem? - perguntou. - Não podemos supor que estamos

sendo vítimas de uma alucinação em massa? Ou qualquer outra coisa parecida?- Pois sim. Podemos até supor que ainda estamos no avião que nos leva de Esto-

colmo a Londres,- observou John Howard seco. - Estamos todos tomando parte num sonho comunitário bem confortável, mas logo logo teremos que enfrentar a alfânde-ga em Heathrow... Assim não vai. Se começamos a admitir esse tipo de estranho ra-ciocínio, podemos chegar a toda espécie de teorias do tipo mais extravagante.

- Mas isso é possível,- insistiu Simone, sacudindo seus longos cabelos escuros. - Eu sei que é uma loucura. Por outro lado, tudo o que aconteceu conosco é uma verda-deira loucura. Daí, é possível.

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- As ideias de Simone,- observou Paul Redman. - Transmitidas com admirável lógica gaulesa, que pode ser facilmente destruída,-

acrescentou John.- Infelizmente, acho que no meio de tantos elementos imponderáveis, somos obri-

gados a levar em conta o princípio que reza que a explicação mais simples é possi-velmente a explicação mais correta. Em suma... Fomos fisicamente removidos de um avião a jato em pleno voo, estamos num lugar que é real, as coisas que aconteceram conosco são reais. Não podemos esquecer que Gunnar e Marina morreram. E não podemos esquecer que as pessoas que encontramos também são reais. Partindo dessas premissas, podemos começar a deduzir, para chegar às conclusões.

- Não podemos esquecer o Povo do Rio,- disse Robert Hyman.- E as aranhas metálicas,- acrescentou Selene Bergere, estremecendo.- E as fadas de Paul,- disse Tore Norstedt. - Por favor, quem levou minha garrafa

de whisky?- Um pouco de ordem, senhoras e cavalheiros, por favor. Essa discussão está indo

água abaixo... John, você tem a expressão de alguém que está em ponto de falar. Que tal? Você poderia nos dar sua interpretação dos fatos.

John sorriu. - Isso vai levar muito menos tempo do que vocês pensam, porque devo confessar

que estou perplexo como todos vocês. Temos porém alguns fatos e algumas teorias interessantes e talvez tenha chegado o momento para nos arriscarmos em algumas especulações. Até não conseguirmos algo melhor, a teoria do zoológico parece-me a mais plausível de todas. Vamos aceitá-la por enquanto. Mas quem é que dirige esse zoológico? Não sabemos nada a esse respeito. Sabemos que há robôs envolvidos nis-so, porque temos provas positivas. Mas não consigo acreditar que esses robôs sejam mais do que instrumentos a serviço das pessoas ou criaturas que nos trouxeram até aqui. É possível que as aranhas-robôs sejam controladas por máquinas mais comple-xas, como também é possível que toda essa operação seja controlada por computa-dores sofisticados a um ponto que não podemos sequer começar a imaginar. Toda-via, prefiro a explicação mais simples, ou seja: que todo esse projeto é obra de uma espécie biológica e não de uma espécie eletromecânica, se é assim que podemos de-fini-la.

- Acredito que as fadas que eu vi são realmente nossos amos -, falou Paul Redman muito sério.

A observação suscitou um coro de gargalhadas. Mas eram gargalhadas nervosas.- Vou falar nas fadas daqui a um minuto -, disse John. - Pessoalmente não penso

que a ideia seja tão louca como a maioria de vocês parece estar pensando. Mas pro-curem seguir meu raciocínio por mais um pouco. Sabemos que estamos sendo obser-vados, mas não temos contato nenhum com os observadores. Isso poderia significar que eles são naturalmente misteriosos, ou que um contato direto conosco poderia in-validar a experiência ou a operação, ou então que eles temem ser vistos, ou, final-mente, que pensam que poderíamos ficar assustados vendo-os. Pode ser qualquer uma dessas possibilidades e cada um pode escolher a que acha mais plausível. Pes-soalmente acredito que eles pensam que um contato conosco poderia afetar a opera-ção. Temos uma única certeza: eles estão muito preocupados com o nosso conforto, porque chegaram aos requintes mais extremos para nos proporcionar um ambiente agradável e o tipo de alimentação que é normal para nós.

- Existe mais uma possibilidade -, observou Robert Hyman seco. - É possível que todo esse projeto não seja mais do que uma variante do sistema de engorda de gan-sos na época do Natal.

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- Canibalismo?- gritou Selene, arregalando seus olhos enormes.- Não, não acredito que possamos tomar isso ao pé da letra -, retrucou John de

uma forma um pouco misteriosa. - Sim, Robert, existe realmente a possibilidade de sermos considerados cobaias, mas não acredito que seja para fins de vivissecção, ou outros métodos para averiguar nossa resistência à destruição... O que realmente sa-bemos, até agora? Sabemos que há pelo menos dois grupos sociais diferentes, isto é, estranhos a este planeta: o nosso e o do povo de Gren Li. Não temos a menor ideia de onde apareceu o contingente de Gren Li, porque eles ainda pensam estar em seu próprio mundo -, eu suponho que esta seja uma possibilidade remota - que eles acreditam seja plano e o centro do cosmos. Sabemos que eles, como nós, foram submetidos a uma manobra incrível que não nos permite estabelecermos comunica-ção, no que concerne a linguagem. Também sabemos - ou assim pensamos - que eles são humanos... E, ainda que não tenhamos estabelecido contato com o Povo do Rio, estou convencido de que eles também tenham compartilhado dessa experiência comum e que aparentemente possam falar inglês, sueco, ou a linguagem de Gren Li, conforme a ocasião.

- Eles parecem muito hábeis com estacas pontiagudas e buracos profundos,- ob-servou Andrew Payne severo.

- Certamente. Provavelmente a caça é seu objetivo mais importante. Parece que os buracos são originalmente feitos para animais e não para humanos... Agora que for-mulamos hipóteses sobre o Povo do Rio, temos aqui três grupos sociais completa-mente diferentes, de mundos diversos, capazes de se comunicar entre si e cercados na mesma área. Como o guia de Absumes suspeitou, creio que a muralha de névoa se estende num círculo completo e representa, de fato, as barras de nossa enorme gaiola... Dentro desta gaiola temos amostras da cultura da Idade da Pedra, da cultu-ra medieval e da cultura tecnológica. Talvez alguém só quer ver o que acontece... O que me leva de novo às fadas de Paul ou, se vocês preferem, aos demônios alados do guia de Absu.

- John -, disse Mohan das Gupta, - você é um bom sujeito, mas agora exagerou. Por que invocar essas fadas ou demônios, ou o que quer que seja?

- Porque -, disse John Howard comovente, - obviamente, eles são as únicas criatu-ras, até agora encontradas, que podem atravessar a muralha.

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Durante alguns minutos a discussão se tornou confusa, pois todo mundo queria dar ao mesmo tempo sua opinião a respeito da existência da natureza, do propósito ou do potencial das assim chamadas fadas, que também tinham o apelido de demô-nios. Russell viu que não seria possível chegar a qualquer conclusão pelo simples fato de não existirem provas objetivas que pudessem ser discutidas de maneira cons-trutiva. Paul só vira as criaturas durante um instante; e a mesma coisa acontecera com o descobridor de caminhos de Gren Li. Era até possível, mas não provável, que cada um deles tivessem visto criaturas aladas de natureza diferente. Até que aqueles seres não fossem visíveis de perto ou durante um tempo mais prolongado, ou em ambas as circunstâncias juntas, qualquer conversa a respeito não passava de extra-vagante conjetura. As criaturas aladas existiam e possivelmente eram capazes de so-brevoar e transpor a muralha. Mas isso não provava nada, apesar das convicções de John Howard a respeito. Se as fadas, ou os demônios que fossem, eram observado-res inteligentes, eram também muito discretos em sua tarefa.

Por isso Russell continuou bebericando sua gim-tônica e esperou que todo mundo se acalmasse.

Finalmente julgou ter chegado o momento de sua própria contribuição.- Posso dizer algumas palavras a respeito? - começou. - John fez uma série de ob-

servações bastante sensatas, mas por enquanto não nos levou a lugar nenhum. Gos-taria que vocês voltassem comigo para a Terra, ou pelo menos para nosso pequeno zoológico de Erewhon. Vamos supor que o Povo do Rio está exatamente na mesma situação em que estamos, e em que também se encontra o povo da Torre de Marur. Dessa forma, como John sugeriu, temos três tipos de cultura na mesma jaula - e to-das elas humanas, já que não temos uma palavra melhor para defini-las. Quem quer que seja que organizou tudo isso, está interessado em saber o que vamos fazer uns com os outros - e eu também estou muito interessado. Tenho certeza de uma coisa: nós não poderemos nos isolar. Teremos que unir nossas forças, nossos recursos e nossa experiência até com o povo da Idade da Pedra, se isso for possível.

- Tenho a impressão que aquele pessoal é muito tosco -, comentou Paul Redman com ar preocupado. - Em se tratando de tipos da legítima Idade da Pedra, devem es-tar apinhados de toda espécie de tabus e provavelmente sedentos de sangue, e ain-da por cima xenófobos. A primeira pessoa que se atrever a estender-lhe a mão em sinal de amizade poderá levar de troco uma boa bordoada na cabeça.

- Isso é possível -, admitiu Russell. - Mas nesse caso teremos que aprender o mais possível a respeito deles antes de tentar qualquer aproximação. Teremos que obser-vá-los durante muito tempo à distância, e coisas assim. Se for preciso, poderemos pedir ajuda a nossos amigos medievais... Mas existe mais um projeto que precisaría-mos discutir e, na minha opinião, é um assunto muito importante.

- De que se trata?- perguntou Mary Howard.- Evasão -, disse Russell.

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- Uma evasão de Erewhon?- Uma evasão do zoológico. Temos suficiente espaço e realmente poucos motivos

para nos queixarmos. Acontece que eu não aprecio a ideia de estar preso; e ainda mais, gostaria de saber o que é que há do outro lado dessa barreira que parece im-penetrável.

- Se podemos acreditar no que dizem os medievais, o tal descobridor de caminhos passou por uma experiência angustiante -, observou Robert Hyman. - Acho que pes-soalmente não desejo sentir meus olhos se congelarem.

- Eu já pensei a respeito disso -, continuou Russell. - Acredito que existe uma ma-neira de sairmos e também de entrarmos à vontade, sem muito perigo... Sabemos que há um rio passando por nossa pequena reserva e...

- Mas é claro!- gritou John Howard.Russell riu. - Por favor, John, deixe que eu mesmo explique minha ideia O rio em questão tem

um tamanho razoável e estou pronto a apostar que ele não nasce entre aquelas pe-quenas colinas que conhecemos. Teremos que averiguar isso, mas acredito que o rio atravessa a muralha de névoa em dois pontos diferentes. Existe uma entrada e uma saída. Assim, se construirmos um barco ou uma balsa, poderíamos sair do zoológico usando somente a força da corrente.

- E o que você faria a respeito da rápida queda de temperatura? - perguntou Tore Norstedt.

- Isso sem dúvida é um problema -, concordou Russell. - Mas não acho que seja insolúvel. O descobridor de caminhos de Absu não estava preparado para enfrentar o que achou. Nós sabemos o que teremos que enfrentar, e por consequência podere-mos pensar em como nos proteger de forma mais eficiente. Se for necessário, acho que até poderíamos pensar em fechar totalmente o barco e em nos cobrir com mon-tanhas de roupas. Se minha teoria estiver certa e a barreira de nevoeiro não for mui-to larga, poderíamos atravessá-la antes de sentir realmente os piores efeitos do frio.

- Existe um meio bastante seguro para averiguá-lo -, interrompeu John Howard muito excitado.

- De que forma?- Precisamos encontrar o lugar em que o rio entra debaixo da barreira de névoa.

Teremos que medir a temperatura ali, e depois compará-la com as temperaturas à jusante. Se medirmos a rapidez da corrente e tomarmos medições de temperatura a diferentes profundezas, podemos ter uma aproximação bastante correta sobre a es-pessura da barreira, ou pelo menos quanto tempo um barco levaria para atravessá-la.

- Deus seja louvado por todos os professores de ciências -, falou Russell em tom reverente. - Se o projeto é viável, teremos um bocado de coisas a fazer. Em primeiro lugar precisamos entrar em contato com o Povo do Rio e assegurá-los de nossas in-tenções amistosas, pois nosso barco terá que atravessar o território deles. Precisa-mos encontrar os lugares em que o rio entra e sai debaixo da barreira. Em seguida teremos que fazer os planos para o barco e construí-lo, além de equipar os valentes exploradores, se é que teremos voluntários.

- Para o diabo com isso -, falou Mohan molemente. - Por que não esquecemos de tudo e ficamos esperando até que alguma coisa aconteça? Afinal, mais cedo ou mais tarde alguma coisa terá que acontecer. Os caras que nos trouxeram para cá, qual-quer dia desses vão se cansar de nos mandar suprimentos. Mais cedo ou mais tarde irão querer ver os resultados do investimento.

- E é com isso que eu estou me preocupando -, retrucou Russell. - Sendo eu decla-

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radamente um pseudointelectual ocidental e decadente -, piscou para Anna, - eu também prefiro de longe o conforto e a segurança. Mas ao mesmo tempo gostaria de descobrir - se isso for possível - qual é o intuito de tudo isso, antes que alguém decida de repente mudar de canal.

- E que tal se atrás daquela maldita barreira não há nada mais do que outras mal-ditas planícies, cheias de capim, e florestas e colinas a perder de vista?

- Acho que até esse tipo de informação poderia ser muito útil.- E que tal se uma ou mais pessoas acabam se machucando ou morrendo na ten-

tativa de evasão?Russell encolheu os ombros. - Vamos ter que correr esse risco. Gostaria que a eventual expedição não tivesse

mais do que duas pessoas; e eu seria uma delas.Mohan sorriu e encheu o copo. - Russell, você tem a desgraça de ser um maldito herói. O arquétipo britânico - o

que gosta de condecorações.- A minha desgraça -, disse Russell, - é que eu, como o Filho do Elefante, tenho

uma curiosidade sem limites.

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Durante as semanas que se seguiram aconteceram numerosas coisas interessantes e algumas também assustadoras. Russell percebeu que o moral de seus treze com-panheiros melhorara de maneira visível desde sua sugestão de concentrar todos os esforços para vencer a barreira e sair da reserva, para explorar o mundo que se en-contrava além dela. Até aquele dia todo mundo tivera a impressão de estar à mercê de uma situação incompreensível e irremediável. Agora, porém todos tinham um alvo - um alvo real, apesar de ser limitado. Era o suficiente para vencer a letargia mental que tinha se apossado deles sorrateiramente, desfalcando suas energias e sua força de vontade.

Uma das coisas que aconteceram, e que em seguida acabou se tornando impor-tante, foi obra de uma das estudantes inglesas. Janice Blake conseguiu criar frangos. Ela crescera numa pequena granja da Anglia Oriental e tinha uma enorme saudade de casa. Um dia lembrou-se que talvez alguns dos ovos que eram pontualmente en-tregues no supermercado pelas incansáveis aranhas metálicas noturnas poderiam ser férteis. Fabricou então uma caixa cheia de palha, acondicionando-a com uma lâmpa-da fraca que, envolvida em panos, ia providenciar o calor necessário para a incuba-deira. Colocou a caixa cheia de palha num dos quartos vazios do Erewhon Hilton. To-das as manhãs acrescentava dois ovos aos que já se encontravam na caixa, tiran-do-os de uma remessa diferente do supermercado. No vigésimo terceiro dia teve sua recompensa: um pintinho furou a casca. Mais um apareceu no trigésimo quarto dia, e dois no quadragésimo dia. Mais tarde ela descobriu que um dos pintinhos era um galo, e no fim a experiência de Janice revelou-se muito útil, trazendo benefícios im-previstos.

Entretanto, Robert Hyman elegeu-se sozinho armeiro oficial. Já fizera arcos para os homens, mas resultou que nem todos tinham talento suficiente para ser arqueiros. Ninguém sabia usar o arco de maneira eficaz, a não ser o próprio Robert. Então ele decidiu projetar uma besta simplificada, que lançasse um dardo curto e pesado. A besta foi construída de tal forma que poderia ser usada de maneira eficaz até pelas mulheres; e quando encontrou a melhor combinação entre eficácia e facilidade de manejo, começou a produzir as bestas em larga escala. Passava quase a totalidade dos dias numa das pequenas oficinas ao lado do hotel, fabricando uma dúzia de bes-tas e uma grande quantidade de dardos. À noite, antes do jantar, o grupo inteiro treinava tiro ao alvo, instruído por ele. Após algum tempo até as mulheres se de-monstraram capazes de atingir um alvo do tamanho de um homem a trinta passos de distância.

Quando se convenceu que todo mundo seria capaz de usar as bestas de maneira eficiente, Robert começou a trabalhar num projeto muito mais ambicioso. Começou a desenhar uma balista grande, mas que pudesse ser transportável. Falara a esse res-peito com Russell. Bestas, machados e facas eram armas ótimas para combate corpo a corpo ou proteção pessoal; mas poderia surgir uma ocasião, como, por exemplo,

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uma séria divergência com os guerreiros da Torre de Marur, em que uma arma ofen-siva de longa distância seria muito útil. A balista que Robert pretendia construir po-deria ser servida e transportada por três homens, sendo capaz de lançar um projétil de dez libras a uma distância de meio quilômetro. Poderia, em suma, servir contra um alvo grande que fosse fora do alcance de tiro das bestas.

Russell lembrava-se de sua visita à Torre de Marur e tinha certeza absoluta de que o povo de Gren Li só usava armas leves. Estava, porém, a favor de uma arma que poderia conferir alguma vantagem estratégica, e considerava a balista uma espécie de seguro. Esperava, de fato, que a amizade e o vínculo que o ligavam a Absumes Marur pudessem evitar qualquer divergência de maior envergadura, mas não sendo um ingênuo, não confiava completamente nisso. Afinal, alguma coisa poderia aconte-cer com Absu, e seu sucessor poderia não se achar obrigado a respeitar o vínculo. O povo de Gren Li estava condicionado a ser feroz e belicoso pelo próprio ambiente em que vivia. Se acontecesse alguma briga corpo a corpo, eles dominariam facilmente os terrestres.

Foi por isso que a balista começou a ser construída.Quase ao mesmo tempo John Howard fez uma descoberta importante. Por um

acaso encontrou uma vasta extensão de terreno naturalmente saturado de salitre. Dedicou-se durante vários dias ao árduo trabalho de extraí-lo do solo, fazendo uma solução e, finalmente, evaporando o líquido para recolher os cristais; após muito ca-vocar, lavar e separar conseguiu cinco quilos de salitre quase puro. Foi bastante fácil encontrar o enxofre. Estava no supermercado, na seção farmacêutica. Estava-lhe fal-tando somente o carvão, que poderia ser obtido aquecendo a madeira dentro de um recipiente fechado.

A primeira mistura de pólvora foi grossa demais e só chegou a emitir algumas fa-gulhas. Em seguida, Mary conseguiu moer o carvão com o enxofre até obter um pó muito fino - essa realmente era a parte mais difícil da fabricação - e com esse pó John conseguiu produzir uma pólvora bastante eficaz. Era uma pólvora que poderia até servir para fabricar granadas de tipos simples. As granadas, como a balista, eram um seguro adicional.

Na realidade, no grupo, não predominavam só as atividades bélicas. Com método e com muito cuidado, foram organizadas explorações especialmente para o sul e em direção ao território do Povo do Rio. Russell não achava que os tempos já fossem propícios a um contato com um povo tão primitivo. Pensava que eles iriam lutar pri-meiro e fazer perguntas depois. Queria, por isso, ter certeza absoluta de que os ter-restres estariam prontos a lidar com uma agressão antes de se arriscar a oferecer a mão em sinal de amizade.

Mas isso não excluía a observação. O Povo do Rio era sem dúvida mais forte e mais acostumado a lutar na floresta, e por isso mais perigoso onde havia muita ve-getação; mas se os terrestres ficassem em terreno descoberto e fizessem uso de bi-nóculos, os riscos de um encontro de surpresa poderiam ser reduzidos ao mínimo. Paul e Marion Redman, Andrew Payne e Selene Bergere treinaram juntos e formaram uma força-tarefa semipermanente de exploração. Paul e Andrew se aperfeiçoaram bastante com as bestas e Selene, que tinha uma escassa inclinação para tudo que era mecânico ou semimecânico, desenvolveu sua própria arma. Era uma derivação das bolas sul-americanas - duas pedras de bom tamanho unidas por um metro de corda. Selene aprendeu a lançá-las com surpreendente habilidade, e chegou a derru-bar com elas um homem correndo a até quarenta metros de distância.

Dessa maneira a força-tarefa armada de bestas, bolas e machados para se prote-ger contra homens e animais acabou fazendo três expedições coroadas de sucesso

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para observar o Povo do Rio. Como da primeira vez que avistaram o Povo do Rio, mantiveram-se a prudente distância, espionando-os somente com os binóculos. Pelo que foi possível ver, calcularam que havia dez adultos e quatro crianças crescidinhas.

O Povo do Rio andava de cabelos tão emaranhados, que era praticamente impossí-vel distinguir homens de mulheres. Durante o dia mantinham-se ao redor da ponte feita de choças, ocupados em tarefas simples, descansando ou dormindo, e às vezes até ocupados com brincadeiras. Era evidente que se tratava de caçadores - e quase certamente caçadores noturnos. Era de se assumir que estivessem comendo também todo tipo de frutas e verduras do mato que eram comestíveis, mas o alimento princi-pal parecia ser a carne vermelha.

Durante a segunda expedição, os terrestres conseguiram ver um dos animais apa-nhados pelo Povo do Rio. Enquanto estavam observando a ponte de choças de uma elevação bastante próxima, ouviram uma violenta movimentação num bosque que se sobressaía da floresta perto do rio. Paul e Andrew decidiram investigar. Encontraram um animal que se parecia muito com um javali extremamente feroz. O bicho estava suspenso na rede de uma armadilha esticada entre duas árvores novas. O javali - se era mesmo um javali - tinha uma companheira que estava grunhindo e pulando, ten-tando alcançar o macho. Quando percebeu a aproximação dos dois terrestres, inves-tiu diretamente contra eles e só parou porque foi atingida por um tiro certeiro da besta de Paul. O dardo desapareceu completamente no peito do animal, que assim mesmo não morreu, e os dois homens tiveram que acabá-lo com os machados.

Selene Bergere, descobriu de uma forma bastante assustadora, que o Povo do Rio não era de hábitos exclusivamente noturnos. Aconteceu durante a terceira expedi-ção. Afastou-se um pouco do grupo para atender a necessidades pessoais e encon-trou uma pequena clareira onde achou que poderia estar à vontade. A floresta era muito silenciosa e foi provavelmente esse detalhe, junto ao fato que no chão havia uma grande quantidade de folhas secas, que salvou a vida de Selene.

O homem da Idade da Pedra chegou correndo atrás das costas dela com uma ve-locidade muito maior da de qualquer terrestre. Selene, porém ouviu o farfalhar das folhas secas e teve só o tempo suficiente para se virar e lançar suas bolas. A corda enrolou-se nas pernas do homem que caiu emitindo um grunhido. Selene fugiu aos berros. Quando os outros chegaram perto dela, e isso só demorou poucos segundos, voltaram todos juntos para a pequena clareira. Não havia mais sinal algum do ho-mem e nem das bolas.

Enquanto os outros estavam ocupados com atividades excitantes, Tore Norstedt estava construindo um barco bastante sólido e de fundo achatado, para ter o mínimo de calado. Poderia levar quatro pessoas no máximo, e seria impulsionado por remos curtos, como pás. Em águas tranquilas e para percursos demorados os remos con-vencionais seriam mais eficientes. Mas o rio e suas características eram ainda desco-nhecidos. Com certeza haveria áreas secas e corredeiras, e as pás poderiam ser mais práticas.

Tore lembrou-se que o barco ia carregar sua tripulação através da barreira de né-voa, cuja espessura e temperatura mínima também eram desconhecidas. Fabricou então uma pequena cabine desmontável cujas paredes internas seriam revestidas com palha e cobertores.

Enquanto trabalhava na construção do barco, Tore um belo dia teve uma ideia que até aquele momento não ocorrera a ninguém. Ou talvez alguém já pensara nisso, mas rejeitara o plano por ser demais arriscado.

Como todo mundo sabia, o supermercado era frequentemente visitado pelos robôs que traziam os mantimentos que estavam em falta. Ninguém conseguira ver essas

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máquinas, apesar do patrulhamento contínuo, até a noite em que Andrew Payne en-controu sem querer uma das aranhas. Em seguida as “grandes aranhas” descritas por Andrew foram fotografadas - e os terrestres foram punidos pela sua curiosidade com uma temporária falta de cigarros no supermercado. A ausência de cigarros foi a única medida punitiva. Não houve castigos drásticos.

Desde aquele tempo o patrulhamento noturno continuava. Mas ninguém mais viu as aranhas metálicas. Esse detalhe parecia a Tore a confirmação de sua primeira teo-ria a respeito, ou seja, que os donos do zoológico tinham um meio de “desligar” os terrestres de uma maneira qualquer toda vez que assim quisessem.

Tore imaginou que as aranhas eram obrigadas a trazer os mantimentos atraves-sando de uma forma qualquer a barreira de névoa - a menos que não tivessem al-gum armazém subterrâneo. Pensou que se fosse possível segui-las após sua saída do supermercado, seria talvez possível encontrar uma fácil saída do zoológico.

Imaginou então uma armadilha como daquela vez com a máquina fotográfica. Dessa vez, porém, o despertador não ia ficar no quarto de Tore, mas estaria junto com ele no supermercado, e a corda amarrada à sua cintura. O despertador só servi-ria para o caso dele adormecer em seu esconderijo.

Da outra extremidade da corda estariam laços múltiplos. As aranhas tinham quatro pernas e quatro braços. Tore tinha certeza que poderia colocar os laços de tal manei-ra que seria praticamente impossível que um dos robôs não ficasse com pelo menos uma de suas pernas presa. Se isso acontecesse, Tore poderia seguir a aranha para qualquer lugar que ela fosse, mesmo numa noite escura e em terreno difícil.

Essa era a teoria de Tore. Ele preferiu não falar do assunto com Russell e nem com outra pessoa qualquer. Estava com uma vontade louca, e um pouco infantil. de poder chegar perto de todo mundo, na hora do desjejum, e dizer com ar indiferente: - Ah, meus queridos, antes que eu esqueça... descobri de onde vem os robôs, e vi que existe uma maneira muito cômoda para atravessar a barreira de névoa.

Fabricou com muito cuidado sua corda de fio de arame bem resistente, confeccio-nou os laços, e uma noite, numa hora já bastante avançada, inventou uma desculpa para Janice e Andrea, dizendo que tinha que fazer um serviço de guarda especial. Ja-nice e Andrea viviam com ele, e parecia que o triângulo amoroso estava se desenvol-vendo de maneira muito satisfatória para todas as partes interessadas.

Em seguida atravessou a rua, entrou no supermercado e colocou a armadilha. Fi-cou esperando escondido discretamente atrás de uma prateleira de cereais.

Na hora em que saiu do hotel, trocou algumas palavras com Anna Markova que es-tava voltando de um breve passeio.

Esta foi a última vez que alguém o viu vivo.

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Absumes Marur e seu descobridor de caminhos, um homenzinho magro, de pele mais escura e de traços mais mongóis do que seu amo, chegaram ao Erewhon Hilton com os despojos de Tore Norstedt. Vieram montados em seus pulpuls, no fim de uma tarde, enquanto uma brisa agradável movimentava os montinhos de pequenas sementes acumuladas na rua, apesar das frequentes tentativas de varrê-las.

O corpo quase irreconhecível, muito machucado e quase cortado em dois pedaços, de Tore Norstedt, estava jogado no lombo do pulpul do descobridor de caminhos, atrás do cavaleiro. Janice foi a primeira a vê-lo e felizmente desmaiou logo, após lan-çar um grito lancinante.

Todos os terrestres saíram correndo do hotel e Absu falou: - Russell, meu amigo, mande suas mulheres se afastarem. O que eu estou trazen-

do, cheio de tristeza, é demais até para os olhos e para o estômago de um homem. John Howard já estava providenciando a levar as mulheres para dentro.

- Temos um lugar em que já enterramos uma nossa companheira -, disse Russell fazendo um esforço para olhar os despojos de Tore. - Eu lhe seria muito grato, Absu, se pudéssemos levar o corpo de nosso amigo para lá. Acho que vamos querer enter-rá-lo o mais rápido possível.

Absu e o descobridor de caminhos apearam e seguiram Russell e John Howard até o lugar em que estava enterrada Marina; o descobridor de caminhos conduziu o pul-pul com sua carga triste e horrível.

As sementinhas voadoras da savana tinham quase coberto o túmulo de Marina. Só a ponta da cruz aparecia acima da massa fofa e esbranquiçada. Russell teve dificul-dade em achar o túmulo. Pensou tristemente que talvez estivesse chegando a hora de demarcar um cemitério regular.

Andrew Payne, carregando duas pás, juntou-se ao grupo. Debaixo do braço tinha um lençol. Abriu-o no chão e Tore foi deitado em cima dele.

Absu falou: - Sir Russell, meu criado Farn zem Marur descobriu o corpo desse seu guerreiro.

Cumprimente-o, para que ele possa contar como foi. - Em seguida virou-se para o descobridor de caminhos. - Saúde o Sir Russell Grahame -, disse solenemente. - Membro do Parlamento, Voz do Povo da Rainha, Criador de Decretos Reais e homem de muitas honrarias em sua própria terra.

Farn zem Marur ajoelhou-se, apanhou uma adaga dentro de seu jaleco, colocou a ponta em seu próprio peito e ofereceu o cabo a Russell.

- Sir Russell Grahame, sou Farn zem Marur, descobridor de caminhos e guerreiro, se minha vida for requisitada.

- Seja bem-vindo -, disse Russell, sem saber o que fazer. - Você trouxe uma triste carga, mas assim mesmo seja bem-vindo.- Estendeu a mão para apanhar o cabo da adaga e devolvê-la ao descobridor de caminhos. Sabia que Absu fazia muita questão de cerimônias e esperava estar fazendo a coisa certa.

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Mas não estava.- Não toque naquela arma -, avisou Absu, - a menos que você queira matá-lo. Ele

só quer saber se você vai requerer a vida dele.- Levante-se, Farn zem Marur -, falou Russell muito sério. - Não estou querendo

sua vida.O descobridor de caminhos levantou-se com expressão de alívio. - Sir, posso falar?- Pode falar.- Sir, descobri o corpo de seu guerreiro a muitos varaks ao norte da Torre de Ma-

rur. O senhor de meu clã ordenou-me desenhar todas as terras em que vivemos ago-ra, para que os desenhos fossem copiados e entregues a você... Sir, não sei o que di-zer a respeito da morte de seu guerreiro. Em volta dele não havia nenhum rastro e nenhum cheiro de animais selvagens. Ele não mostrava ferimento nenhum que pu-desse ter sido ocasionado numa luta... É possível que pereceu por ser um joguete dos demônios.

- Meus companheiros e eu gostaríamos de nos defrontar com estes demônios -, Russell falou entre dentes cerrados.

- Palavras valentes -, comentou Absu. - Mas um homem não pode pensar em se defrontar com demônios, Russell... Se estes demônios, porém, por acaso, forem de carne e osso, as lanças da Torre de Marur estarão prontas e alegres por entrar em combate!

- Sir -, disse o descobridor de caminhos, - o corpo deste homem, quando eu o achei, estava coberto por moscas e por outros pequenos animais. Deduzi que a mor-te não era recente. Procurei encontrar a pista de quem o poderia ter matado, mas nada achei. Estava enfiado entre duas rochas de tal maneira que retirá-lo daquele lu-gar foi bastante difícil.

Enquanto o descobridor de caminhos falava, John Howard esforçou-se para obser-var o corpo de Tore. Apanhou algo que levantou, e olhou para Russell, tremendo.

- O que você acha disso?Russell observou o fio de arame retorcido e ensanguentado. Viu o ponto em que

parecia penetrar no corpo quase cortado a meio. - Isso explica como aconteceu que quase foi cortado em dois pedaços -, observou

Russell com dificuldade. - Algum bastardo o estava arrastando. Ficou preso entre as duas rochas, e quem estava na outra extremidade do fio de arame fez de conta que não estava percebendo.

- Ou talvez não estava equipado para poder perceber -, observou John num rasgo de intuição. - Russell, a última vez que alguém viu Tore vivo, foi naquela noite em que contou às moças que tinha um turno de guarda especial.

- Mas nós sabemos que isso não era verdade.- Certo. Ele pretendia fazer alguma coisa que só poderia ser feito à noite... você

não adivinha o que foi?Andrew Payne estremeceu e sua mão tocou a cicatriz do pescoço. - Aranha -, ele disse.- Isso mesmo. Tore queria colocar uma armadilha para as aranhas. Talvez quisesse

seguir umas delas para ver em que direção iria. Como seria possível perdê-la de vista por causa da escuridão, Tore achou um meio para ficar amarrado à maldita coisa.

Russell fez um esforço para examinar mais de perto aqueles despojos ensanguen-tados.

- Os outros ferimentos podem ter sido provocados pelo fato de ter sido arrastado, eu acho... Talvez tropeçou e não conseguiu mais se levantar. Ou então aquele maldi-

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to robô estava andando muito depressa e ele não conseguiu se desamarrar.- Acho que foi assim mesmo!- Eu também acredito que sim... Vamos enterrar o coitado do Tore. Não há mais

nada que possamos fazer por ele. Acho que os outros gostariam de se despedir dele, mas é melhor que essa parte fique para amanhã. - Virou-se para Absu. - Permita-nos enterrar agora nosso companheiro. Estaremos mais aliviados após colocá-lo no lugar de seu último descanso, como é o nosso costume. Em seguida poderemos conversar e oferecer-lhes refrescos.

- Por que vocês não o queimam?- perguntou Absu. - Em Gren Li costumamos quei-mar nossos mortos. Dessa forma seus espíritos podem voltar ao ar que os vivifica.

- Em nosso país também às vezes queimamos os mortos -, respondeu Russell. - Mas aqui, nesse mundo tão estranho, achamos que é mais fácil enterrá-los.

- Seus costumes admitem a presença de estranhos?- Sua presença é bem aceita.- Dessa forma nosso vínculo se tornará mais estreito -, comentou Absu. Observou

os movimentos de Andrew que estava começando a remover a terra com uma pá, enquanto Russell e John envolviam o corpo na mortalha improvisada. Viu a outra pá e acenou para o descobridor de caminhos.

- Farn zem Marur, trouxemos um motivo de luto para esse clã e para o senhor des-se clã. Cave um buraco bem fundo para que o amigo de nossos amigos, e a grande dor provocada por essa morte, possam ficar para sempre escondidos da vista dos ou-tros homens.

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O senhor do clã Marur e seu descobridor de caminhos deixaram suas armas perto da entrada em sinal de confiança e sentaram em volta de uma mesa do bar no Erew-hon Hilton, olhando com admiração para a quantidade de luzes elétricas. Ambos to-maram os primeiros goles da primeira gim-tônica de suas vidas com o devido respei-to. Onze terrestres também estavam no bar. Janice e Andrea que amavam Tore e partilhavam alegremente suas atenções, estavam sozinhas em algum lugar para po-der chorar a vontade e se consolar mutuamente nos limites do possível.

Farn zem Marur desenrolou sobre a mesa uma pele de pulpul curtida e acamurça-da. Era mais escura e mais áspera do que pergaminho, mas servia muito bem aos desenhos e às escritas do povo de Gren Li. Farn pintara sobre a pele um mapa pictó-rico de todo o zoológico. Russell achou muita graça quando percebeu que a Torre de Marur estava retratada em todos os seus detalhes. Também estavam muito bem re-produzidas as choças do Povo do Rio, formando uma ponte. Mas o Erewhon Hilton e o que estava em sua volta eram representados por três círculos concêntricos, nos quais se viam letras miúdas que pareciam árabes.

- O que é que isso quer dizer? - perguntou Russell.Absu sorriu e espirrou. Não estava acostumado com as bolhinhas da água tônica. - Isso significa: Aqui moram os mágicos. Vocês provaram que são mesmo mágicos.Russell suspirou. - Absu, nossas capacidades são limitadas. Você viu que não foram suficientes para

evitar a morte de nosso amigo.- Todos os homens são mortais -, retrucou Absu. - Os mágicos também. O destino

não escolhe... O que você acha da obra de meu descobridor de caminhos?- Acho que ele desenhou um mapa excelente.- Russell virou-se para o lado de

Farn. - Você esteve pessoalmente em todos os lugares que você desenhou?- Sim, Sir Russell Grahame. Eu vi tudo o que eu desenhei aqui. Quando voltei à

Torre de Marur e descobri com muita alegria que meu senhor, cujo rastro eu estava procurando, já voltara antes do mim mesmo, recebi a ordem de sair mais uma vez. Meu senhor Absu queria um mapa completo das terras em que vivemos, dentro do círculo de vapor. Foi uma longa jornada e passei por alguns perigos; perdi meu pul-pul e quase perdi minha vida.

- O que foi que aconteceu?- perguntou Russell.- Eu estava atravessando a floresta que se encontra perto do povo que mora sobre

o rio. Parei e apeei do meu pulpul para poder marcar meu progresso sobre essa pele que estava comigo... Sir, foi bom eu ter desmontado. No mesmo instante minha montaria caiu morta, transpassada por uma tosca lança. Pelo manto sagrado, foi um arremesso poderoso! Não tive porém o tempo de pensar nisso, porque a criatura que arremessara a lança chegou gritando e agitando um machado e minha espada saiu de sua bainha. A situação pareceu-me desesperada porque o guerreiro, apesar de maltrapilho e mal armado, era muito grande e mostrava ter bastante coragem. Feliz-

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mente possuo alguma habilidade no manejo das armas. Caso contrário, meu senhor Absu poderia ficar contrariado com minha definitiva ausência.

- Então você matou o estranho?O descobridor de caminhos sorriu. - Sir Russel Grahame, a verdade é que o estranho matou a si mesmo. Não sei se

ele menosprezou minha arma, ou se estava decidido a morrer. Correu e ficou trans-passado pela minha espada, parecendo estupefato quanto eu pelo acontecido. Não posso dizer qual de nós dois ficou mais admirado. Em seguida caiu de joelhos e a morte começou a se apoderar dele, enquanto ele falava. Mais uma vez fiquei admira-do, ele falava meu próprio idioma - como você também fala, Sir, e os outros mágicos do clã - mas os movimentos dos lábios dele eram estranhos e muito feios.

- O que foi que ele disse?- perguntou Russell.- Sir, as palavras eram no idioma de Gren Li, mas não tinham sentido nenhum. Não

consegui entendê-las.Absu falou severamente, - Descobridor de caminhos, não seja negligente. O Sir Russell Grahame fez uma

pergunta. Sacuda sua memória e repita as palavras que o estranho pronunciou em sua agonia. É uma ordem.

Farn zem Marur pareceu infeliz. - Sir, eram palavras sem sentido de um homem que estava à morte.- Pois fale, se não quiser chegar à mesma condição.O rosto de Farn zem Marur mostrava que ele não se sentia à vontade. Começou a

falar hesitando: - Sir, o guerreiro falou assim: Ele-coisa-aguda-dura-aguda. Ele-coisa-não-pedra.

Ele-faz-sono-escuro. Escuro-escuro-escuro.O descobridor de caminhos encolheu os ombros como para se desculpar. - Sir Absu, eu obedeci. As palavras foram essas, mas foram ditas por um homem

com a morte nos olhos.- Foi boa coisa você ter se lembrado -, Absu disse calmo.Seguiu-se um breve silêncio. Todos estavam pensando na estranha sequência de

palavras do selvagem que correra em cima da espada do descobridor de caminhos.De repente John Howard falou com uma certa ex-citação: - Mas é claro! O Povo do Rio foi submetido à mesma cirurgia como nós. Mas é um

povo ainda primitivo, e seus pensamentos e conceitos são primitivos. Isso explica as sequências de palavras e o sentido obscuro... O coitado nada sabia a respeito de me-tais e, enquanto estava morrendo, tentava encontrar uma descrição da coisa que o matara. Devia ser um cara muito inteligente dentro dos limites de sua cultura.

- Isso me lembra a maneira de falar dos Pápuas -, disse Paul Redman. - Vocês sa-bem, a maneira em que os aborígenes australianos juntam várias palavras quando no idioma deles não existe uma palavra que possa expressar corretamente o que eles querem dizer... Pensando bem, o Povo do Rio possivelmente está no mesmo ní-vel de cultura dos Pápuas.

- Sem dúvida o assunto que seus companheiros estão discutindo deve ser muito interessante -, observou Absu com ar condescendente. - Mas essas criaturas que você chama o Povo do Rio não são muito melhores que os animais na floresta. Não só atacaram meu descobridor de caminhos, mas infligiram um vexame a uma das mulheres da Torre que foi imprudente e se afastou muito sem escolta. A mulher não tem nenhuma importância, mas acho que meu clã foi gravemente insultado. Por isso, proponho atacar esse povo. É possível que os guerreiros sejam corajosos, mas seu número não é maior que o dos nossos. Acredito que poucos terão a sorte de poder

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contar a seus filhos a respeito das lanças do clã Marur.- Absu -, disse Russell tomando muito cuidado em escolher as palavras, - sei que

você tem boas razões para achar que o Povo do Rio é seu inimigo, e sei também que você muito se orgulha de observar da forma mais correta seu próprio código de hon-ra. Mas confesso que eu ficaria muito triste se você destruísse o Povo do Rio antes que tivéssemos uma oportunidade de oferecer-lhes amizade.

- Amizade!- explodiu Absu. - Amizade! Russell, eu sei que vocês os mágicos são pessoas cheias de truques. Mas nem mágicos poderiam oferecer amizade a animais selvagens. E estes que você chama de homens não passam de animais.

- Deixe que eu tente explicar meu pensamento -, respondeu Russell com muita pa-ciência. - Vamos supor que entre você e eu não exista nenhum vínculo. Vamos supor também que eu o ofendi. O que é que você faria?

- Pela Rainha branca e pela Rainha preta -, exclamou Absu, - eu resolveria o as-sunto com a máxima urgência, usando a lança, a espada e a adaga.

- Certo. Mas vamos supor -, continuou Russell, - que durante nossa luta estejamos cercados por uma matilha de lobos - ou seja, animais que se alimentam de carne hu-mana. O que é que você faria nesse caso?

Absu sorriu. - A lei do manto sagrado prevê um caso desse gênero. Você e eu, Russell, tería-

mos que declarar um armistício até matarmos ou escorraçarmos essas criaturas que você chama lobos. Em seguida poderíamos reassumir nosso combate.

- Pense bem, agora -, continuou Russell. - Você não acha possível que estejamos cercados por lobos?

- Como assim?Russell acenou para a pele de pulpul em que se encontrava o mapa. - Todos nós

aqui, e vocês da Torre de Marur e, eu acredito, o Povo do Rio, fomos levados de nos-sos mundos - quero dizer de nosso países. Estamos vivendo num lugar que, como seu descobridor de caminhos marcou naquele mapa, está completamente cercado por uma alta barreira de névoa. Nossa prisão - porque estamos vivendo numa prisão - tem um diâmetro de mais ou menos sessenta varaks, ou pelas nossas medidas, quarenta quilômetros... Quem pode nos dizer, Absu, de que maneira chegamos aqui? Quem poderá dizer se estamos ou não cercados por lobos? Acho que seria loucura arriscar em reduzir o número de nós todos, até descobrirmos se estamos ou não cer-cados por lobos, ou demônios ou fadas.

Absu continuou bebericando com expressão pensativa. Quando esvaziou o copo, Marion Redman trouxe-lhe outro cheio. Ele o aceitou sem tomar conhecimento da presença dela.

- Você fala com uma língua muito ágil, mágico -, disse friamente. - Como você já ouviu, ninguém poderá passar pela barreira. Por isso essa terra em que vivemos deve ser a nossa terra, até que os Poderes das Trevas nos tirem desse estranho des-terro. As coisas estão assim, e por isso pretendo atacar o Povo do Rio, pois sei que pela lei do vínculo, você não poderá barrar o meu caminho.

- Não pretendo nem tentar, Absu. Aliás, se você chegasse a concordar com o meu ponto de vista, eu e mais alguns de meu povo poderíamos acompanhar você. Mas em primeiro lugar preciso dizer-lhe que nós, os mágicos, pensamos que existe um meio de transpor aquela muralha de névoa. A mais, fabricamos algumas armas muito poderosas, para o caso que alguém tentasse barrar nosso caminho.

Russell levou algum tempo para explicar a maneira em que John Howard pretendia realizar as medições de temperatura no rio, e como poderia chegar a uma estimativa da espessura e da temperatura mínima da barreira de névoa, comparando essas me-

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dições com outras tomadas mais à jusante, junto a cálculos sobre a rapidez da cor-rente. Absu acabou entendendo os termos e a extensão do problema depois de al-gum tempo. Ao contrário, o descobridor de caminhos compreendeu muito depressa. Ele e John Howard estavam estudando o mapa na pele de pulpul, discutindo os pro-blemas práticos envolvidos na realização da experiência.

Quando Absu finalmente entendeu direito, Russell levou-o a ver o barco, quase terminado por Tore Norstedt antes de seu encontro fatal com a aranha-robô. Era o começo da noite e a rua em frente ao Erewhon Hilton estava iluminada por uma filei-ra de lâmpadas elétricas colocadas ali algum tempo antes, para providenciar uma ilu-minação noturna.

Absu e seu descobridor de caminhos ficaram admirados mais uma vez pela habili-dade dos mágicos de conseguir luz sem chamas. Insetos noturnos estavam esvoa-çando em volta das lâmpadas acesas; o pedaço de rua, o supermercado deserto, os dois carros inúteis, as folhas secas e as sementes levadas pelo vento continuavam a dar a impressão de se tratar do cenário abandonado de algum filme.

O resto dos terrestres ficou no hotel para estudar o mapa, discutir a maneira em que Tore tinha morrido e tudo quanto fora dito antes. Russell, John Howard. Absu e Farn zem Marur olharam atentamente o leve barco chato construído por Tore com muito cuidado.

Estava numa das oficinas debaixo de uma forte lâmpada desprotegida, com as fer-ramentas e pedaços de madeira em volta, exatamente como Tore o deixara. Olhando para todos aqueles sinais de uma atividade recente, Russell achou muito difícil se convencer de que o jovem sueco nunca mais voltaria para terminar sua tarefa.

- O barco parece bastante sólido -, admitiu Absu. - Em nosso clã Marur não temos muitos conhecimentos a respeito da maneira de viajar sobre a água, porque todas nossas viagens sempre são por terra. Mas acho que esse barco parece bastante sóli-do para navegar rio abaixo - se vocês forem bastante fortes para atravessar a né-voa... O que você acha, descobridor de caminhos?

- Meu senhor, o barco é forte, mas a névoa é muito fria. É possível que passem, mas que o preço da passagem seja a morte.

Absu sorriu com ironia. - Os mágicos sem dúvida devem saber como aquecer um homem enquanto passa

pelo gelo da morte.- Virou-se para Russell: - Meu amigo, você falou em armas pode-rosas. Se nossa prisão estiver realmente cercada por lobos, é possível que essas ar-mas se tornem necessárias. Mostre-as.

John Howard trouxe uma de suas granadas - feita com uma pequena garrafa re-pleta de pólvora, e envolvida por fio de arame.

Absu pegou-a na mão. - Essa coisa não parece feita para assustar um homem ou um animal.- Vamos para fora, Absu -, disse Russell, - e não se deixe impressionar por aquilo

que vai ver e ouvir. Quando, porém, eu lhe disser de se jogar ao chão, faça-o sem demora.

Quando chegaram a um ponto bastante afastado dos prédios, John Howard acen-deu o curto pavio e jogou a granada na savana escura.

- Para o chão!- gritou Russell. Os quatro homens caíram de bruços.Por um instante nada aconteceu e Absu estava começando a se mexer para se le-

vantar quando houve um clarão e um estrondo. A terra estremeceu e Russell ficou muito satisfeito com o barulho.

Absu mostrou pela sua expressão que estava profundamente impressionado. Ficou

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mudo. Farn zem Marur continuou deitado, cobrindo a cabeça com as mãos e murmu-rando conjurações contra os maus espíritos. Russell pensou que aquele era realmen-te um momento histórico - dois guerreiros medievais acabavam de conhecer os efei-tos da pólvora.

Finalmente Absu recuperou a palavra. - É verdade -, disse. - Essa arma pode provocar muito terror e muita destruição.

Pelo manto sagrado, Russell, estou muito satisfeito que você e eu sejamos unidos pelo vínculo. Um homem pode enfrentar armas de metal com coragem e alegria; mas não poderia, se não correr desse raio com trovão, e assim perderia muito de sua honra.

- Se ele não correr -, falou Russell com toda seriedade, - ele e sua honra poderiam morrer juntos... Já é muito tarde, Absu. Você e seu descobridor de caminhos ficarão conosco durante a noite. Vou também explicar a você que, apesar de ser muito fácil destruir o Povo do Rio, eu acho que precisamos atacá-los, não para matá-los, mas para fazer prisioneiros, se isso for possível.

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A expedição contra o Povo do Rio foi efetuada dez ou doze dias após aquele em que Absu mes Marur e seu descobridor de caminhos trouxeram os despojos de Tore Norstedt e viram pela primeira vez na vida o terrível poder dos explosivos. A expedi-ção foi coroada pelo êxito. Não houve derramamento de sangue e o Povo do Rio caiu em sua própria armadilha - ou pelo menos duas pessoas caíram.

O ataque foi precedido por uma missão de reconhecimento de três dias, efetuada por John Howard e Farn zem Marur. John mostrou ao descobridor de caminhos como usar os binóculos, e, se alternando, conseguiram manter uma observação quase que ininterrupta. Tiveram a confirmação do relato de Paul Redman e seu grupo a respeito dos hábitos noturnos do grupo primitivo. Descobriram também que toda vez que um deles se afastava da ponte de choças para ir até a floresta num ou no outro lado do rio, sempre tomava o mesmo caminho. Isso permitiu que o ataque fosse levado a termo mediante uma estratégia simples e óbvia.

Ficou estabelecido que seria ao meio dia, quando o Povo do Rio estaria presumi-velmente mais descontraído e também mais sonolento. Só participariam seis ho-mens, divididos em dois grupos. Russell e Andrew Payne serviriam para iniciar o ata-que e o grupo encarregado de tomar prisioneiros estaria composto de John Howard, Farn zem Marur e mais um guerreiro Gren Li, sob o comando de Absu.

O barco construído por Tore foi acabado e testado na água, onde se portou de ma-neira satisfatória. O barco era necessário à operação. Teria que transportar as gran-des e pesadas redes que as mulheres da Torre de Marur levaram muitos dias para confeccionar e serviria também a Russell e Andrew para atravessar o rio a cerca de dois quilômetros da montante das choças, num ponto em que o rio era muito largo.

No dia escolhido para o ataque, Russell e John sincronizaram seus relógios. As duas partes do grupo saíram logo quando clareou. Russell e Andrew começaram a remar, levando o barco carregado de redes para o ponto de encontro a jusante, en-quanto Absu, completamente armado e couraçado, parecendo um São Jorge mongol de pele queimada, guiava um pequeno bando de pulpuls do Erewhon Hilton através da savana para a floresta mais ao sul.

A corrente do rio era um pouco mais rápida do que esperado e Russell e Andrew chegaram ao ponto de encontro um pouco antes de Absu e dos outros. Descarrega-ram as redes, vistoriaram as granadas, colocaram os pavios e logo em seguida Absu chegou.

O plano era simples. Russell e Andrew atravessariam o rio e, procurando fazer o menos barulho possível, tentariam chegar até cinquenta ou sessenta metros da pon-te feita de choças sem ser percebidos. Nesse momento o comitê de recepção já esta-ria em seu lugar na margem oposta.

Quando tudo estivesse pronto, Russell e Andrew fariam o máximo de barulho e lançariam suas granadas o mais perto possível da ponte sem provocar danos. Em te-oria, o Povo do Rio teria que ficar tão aterrorizado por algo que interpretariam como

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uma manifestação de forças supernaturais que se retirariam o mais depressa possí-vel, como era de se esperar, para a outra margem do rio, onde Absu e seu pequeno grupo estariam à espreita.

Felizmente a teoria e a prática coincidiram.As granadas deram um estrondo duplo muito satisfatório, dando a impressão que

o céu estava vindo abaixo e também lançaram para o ar uma grande quantidade de pedras e terra solta. Como o tempo era bastante seco, isso levantou uma grande nu-vem de poeira, dando aos moradores das choças a impressão que a noite estava caindo ao meio dia.

A manhã tinha sido ensolarada, quente e tranquila. De repente ouviram-se aqueles dois terríveis estrondos, seguidos por uma chuva de terra e pedregulho e urros ater-rorizantes. Em circunstâncias idênticas até pessoas civilizadas teriam ficado tomadas pelo pânico. O Povo do Rio perdeu a cabeça e correu.

Por um reflexo instintivo, se afastaram depressa da aparente fonte de destruição e barulho e foram diretamente para as redes esticadas por Absu e seus companheiros, entre as árvores que beiravam a costumeira trilha na floresta. Se uma das redes não tivesse enguiçado quando sua corda foi puxada, vários componentes da colônia do Povo do Rio teriam sido apanhados.

Mas aconteceu que quando Farn zem Marur e John Howard puxaram as cordas, dois primitivos caíram ao chão, gritando e esperneando. O resto, vendo que criaturas estranhas desciam das copas das árvores, e sem dúvida aterrorizados pela aparição de Absu, com armas e couraça, sentado no lombo de um pulpul, fugiram gritando pela floresta. Quando conseguiram se acalmar, os atacantes e seus prisioneiros já ti-nham sumido, deixando para trás duas pequenas crateras na outra margem do rio, como prova e lembrança dos poderes mágicos envolvidos.

Os prisioneiros pareciam ter uma reserva inexaurível de energia e se recusaram fi-car quietos, até mesmo depois de amarrados e imobilizados. Farn zem Marur, com muito bom senso, aplicou-lhes uma bordoada na cabeça. Em seguida cada um deles foi jogado no lombo de um pulpul para serem levados dessa maneira ao Erewhon Hilton. Só quando perderam os sentidos e foram amarrados em cima dos animais, descobriu-se que uma das criaturas era, sem dúvida nenhuma, uma mulher. Estava coberta por peles de animais iguais à de seu companheiro, seus cabelos eram longos e emaranhados, da mesma maneira e suas feições eram só um pouco mais suaves e mais limpas. Viram que era uma mulher quando seu busto cheio apareceu entre as dobras das peles abertas enquanto se debatia na rede.

A pequena expedição, tendo conseguido seus prisioneiros, procedeu em direção norte o mais rápido possível, atravessando a floresta. Absu teria preferido ficar e lu-tar, se por acaso o inimigo assustado se recuperasse de sua confusão, mas promete-ra a Russell que evitaria matar se isso fosse possível. E Absu podia ter muitos defei -tos, mas sempre mantinha a palavra dada.

Entretanto, Russell e Andrew estavam trabalhando duramente. Descer pelo rio era fácil e dependia sobretudo do uso das pás para dirigir o barco. Subir contra a corren-te era mais difícil, e requeria um esforço muito duro para conseguir resultados míni-mos. A noite estava chegando quando amarraram o barco na margem no ponto mais próximo ao Erewhon Hilton.

Caminharam os poucos quilômetros até o hotel e, quando chegaram, Absu e seu grupo já estavam confortavelmente instalados e seus prisioneiros, que sem dúvida deviam estar com uma desagradável enxaqueca, já tinham recuperado os sentidos e estavam esperando, mudos e soturnos.

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A iluminação elétrica, os utensílios de vidro, os móveis modernos e as roupas à moda do século vinte, que deixavam estupefatos o povo de cultura medieval, esta-vam aterrorizando profundamente as duas criaturas da Idade da Pedra, que se en-contravam agora num ambiente completamente além de sua compreensão. Foram levados para a sala de estar do Erewhon Hilton onde estavam sendo observados por treze terrestres e três guerreiros da Torre de Marur.

Suas mãos e seus pés continuavam atados, mas assim mesmo estavam colocados sobre duas poltronas da forma mais confortável possível. Davam a impressão de es-tarem mais assustados das poltronas que de qualquer outro dos fantásticos objetos que os cercavam. Talvez estivessem temendo estar em cima de algum altar sacrifici-al, ou então de alguma coisa que os engoliria de repente.

Era patético ver como tentavam se aproximar um do outro para sentir um pouco de conforto. Russell interpretou corretamente aquelas tentativas inúteis e mandou que as poltronas fossem colocadas lado a lado.

- Eu-não-correr, você-não-correr, eu-você-ver-não-dor, não-frio-dor -, o homem rosnou com bastante coragem.

- Eu-não-frio-dor -, gemeu a mulher. - Frio-dor-vem. Não-correr, não-comer, não-tocar-abraçar-forte. Frio-dor-vem.

Ele tentou colocar um braço em volta dela, lembrou-se que não podia fazer isso, e tentou lamber-lhe o rosto. Mas isso também estava fora do alcance. Conseguiu então colocar a testa sobre o peito dela. A mulher pareceu se acalmar pelo contato.

- Não-frio-dor-vem -, murmurou inseguro. - Não-frio-dor-vem. Eu-você-rir-comer. Não-frio-dor-vem.

Russell ficou ouvindo e observando por algum tempo. Era bastante fácil entender aquela maneira de falar, porque eram pensamentos simples. Frio-dor obviamente sig-nifica morte.

- Não-frio-dor-vem -, Russell disse a título de experiência. - Você-ela, não-frio-dor-vem.

O homem estremeceu, bateu as pálpebras e rosnou descobrindo os dentes como um animal. A mulher gemeu.

- Você-ela, fiquem quietos, descansem -, continuou Russell com voz suave. - Não-dor. Você-comer, ela-comer, não-dor.

O homem rosnou mais uma vez, mas não parecia muito feroz. Estava olhando con-fuso para a multidão de rostos em sua volta. Levantou os olhos para as luzes acesas e estremeceu.

- O coitado está completamente arrasado por tudo isso -, falou Russell sem olhar para ninguém em especial. - Acho que aqui tem gente demais e as luzes devem estar incomodando-os bastante. Será que temos algumas velas? Acho que eles poderão entender melhor a luz produzida por uma chama.

- Eu pessoalmente também apreciaria muito mais uma iluminação feita com cha-

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mas, em vez dessas esferas incandescentes -, declarou Absu em tom solene. - Vocês, os mágicos, têm bastante truques para confundir gente civilizada, Russell. Imagine só, essas criaturas embrutecidas!

Marion Redman trouxe quatro velas e as acendeu. Robert Hyman desligou as lâm-padas ao mesmo tempo e a súbita mudança deixou as duas criaturas da Idade da Pedra assustadas, se mexendo e gemendo na tentativa de se libertar de suas amar-ras. Mas logo pareceram se acalmar.

- Absu e Anna, fiquem comigo -, disse Russell. Virou-se para os outros: - Gostaria muito se todos vocês fossem tomar um drinque ou qualquer coisa assim. Vamos ter bastante tempo para observar nossos prisioneiros, se conseguirmos não matá-los de susto.

- Sir -, Farn zem Marur falou a Absu, - qual é sua ordem para mim e para Grolig, seus fiéis vassalos?

Absu acenou com a cabeça. - Descansem, meus filhos, mas fiquem ao alcance de minha voz. Acho que não

vou precisar de suas espadas.- Russell, você não acha que devíamos dar alguma comida a esse pessoal?- per-

guntou Simone.- Talvez... Precisaria ser alguma coisa muito simples. Uma carne assada e água

fresca para beber, eu acho.Absu, Anna e Russell finalmente ficaram a sós com os prisioneiros.- Não-dor -, disse Russell. - Nós-vocês-não-dor.Virou-se em direção a Absu: - Que tal você cortar as cordas que seguram as mãos da mulher? Vamos ver o que

ela vai fazer.Quando o homem viu Absu apanhar sua adaga e se aproximar da mulher, começou

a se remexer como um louco. Russell falou-lhe suavemente, mas sem nenhum efeito. Enquanto Absu estava cortando as cordas que imobilizavam a mulher, seu compa-nheiro conseguiu tomar impulso, dobrando-se sobre si mesmo e depois deslanchan-do-se, como impulsionado por uma mola, e afundou os dentes no braço de Absu.

Absu deixou cair a adaga e com a mão livre aplicou-lhe um pescoção que o deixou tonto. Pegou mais uma vez a adaga e acabou de cortar as amarras.

A mulher gemeu, olhou para seu companheiro e logo começou a acariciar sua ca-beça. O homem viu que os braços dela estavam livres e que ninguém a estava ata-cando; logo, os olhares que lançava em sua volta se tornaram menos ferozes.

- Não-dor -, repetiu Russell. - Nós-você-não-dor. Faz-mão-mexer. Não-dor.Absu se aproximou do homem da Idade da Pedra e começou a cortar as cordas. O

homem voltou a rosnar, mas ficou quieto até que sentiu os braços livres. Então, com um gesto improviso, agarrou a lâmina da adaga, urrou, e largando-a olhou com es-panto para o sangue em sua mão.

- Cristo!- exclamou Russell. - Vai ser uma noite muito longa e muito trabalhosa.

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A noite realmente foi longa e difícil, mas os resultados foram satisfatórios. Conse-guiram finalmente estabelecer uma espécie de comunicação com os dois prisioneiros e dar-lhes um mínimo de tranquilidade. Russell conseguiu, mediante um procedimen-to complicado, saber os nomes deles e explicar como cada um se chamava. A mulher se chamava Ora e o homem Ireg.

Mais tarde Russell percebeu que o fato de todo mundo se chamar pelo nome tinha provocado a esperada mudança psicológica. Até aquele momento Ora e Ireg ficaram agindo como se cada instante fosse o último de suas vidas. Tornaram-se um pouco mais calmos quando receberam carne recém-assada. Comeram avidamente. Mas foi um erro oferecer-lhes copos cheios de água. Ora ficou segurando o dela com expres-são estupefata, sem compreender que devia ser usado para beber.

Anna apanhou o copo e mostrou como devia ser feito. Logo em seguida Ireg le-vantou o dele, aplicou uma vasta mordida e passou os próximos cinco minutos cus-pindo sangue misturado a lascas de vidro. Finalmente trouxeram uma bacia cheia de água e os prisioneiros começaram a beber apanhando a água nas mãos fechadas em concha, sugando-a ou lambendo-a como gatos.

Russell não demorou em descobrir que a Ora e Ireg não faltava inteligência. Ti-nham uma extraordinária capacidade de aprender. Russell pensou que, num certo sentido, poderia se comparar o nível intelectual deles ao de um garoto inteligente de aproximadamente dez anos de idade, que não tivesse sido educado, ou que tivesse crescido num lugar selvagem. Lembrou-se que muito tempo antes, ainda na Terra, ouvira a respeito de crianças perdidas em florestas e que conseguiram sobreviver.

Mas essas duas criaturas não eram mais crianças. Eram adultos amadurecidos, membros de uma pequena tribo em uma fase ainda primitiva de desenvolvimento. Por isso, se fosse possível instruí-los, se fosse possível aumentar seu reduzido voca-bulário ao ponto de transmitir-lhes pensamentos mais complicados, poderia até ser possível elevá-los de seu nível de cultura da Idade da Pedra, até o ponto em que aprenderiam os rudimentos da ciência e da tecnologia. Seria realmente uma tarefa fascinante!

O primeiro problema a ser superado era o da comunicação. Russell começou a se convencer que era menos difícil do que imaginara. Após as apresentações dos no-mes, Absu acabou cortando as cordas que imobilizaram as pernas de ambos.

- Não-corre -, avisou Russell. - Você-ela-caminha, olha, ver-coisas. Não-corre. Vo-cê-come, ri, descansa. Russell fala, Ora fala, Ireg fala. Todo mundo fala.

Ora ficou confusa, mas Ireg sorriu. - Você-homem-coisa-boa -, falou incerto. - Russell-homem-coisa-boa, Ireg-homem-

coisa-boa. Não-dor.Ireg levantou-se devagar e com muito cuidado, para mostrar que não tencionava

correr ou lutar. Em seguida estirou-se, e todos os músculos de seu corpo imponente se contraíram e se relaxaram.

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Absu falou em tom solene: - Você-homem-coisa-grande. Duro-grande. Duro-faz-frio-dor. Bom.Russel ficou olhando para ele, surpreso.- Não precisa ficar tão surpreso assim -, disse Absu seco. - Eu também preciso

aprender a falar usando esse estranho grupo de palavras. Pode acontecer que no fim Ireg e Absu acabem por se compreenderem muito bem. Afinal, cada um de nós, à sua maneira, é um guerreiro.- Soltou uma gargalhada. - Pensei muito em você, Rus-sell, e em seus mágicos. Uma vez você me disse que vinha de um mundo além das estrelas e do outro lado do sol. É muito difícil para mim acreditar nisso, porque eu sei que o mundo é achatado e que além do fogo e do sol e da luz das estrelas nada mais existe que um homem possa compreender, sem antes receber o dom da loucura - ou talvez o dom de uma grande sabedoria. - Mas estou convencido de que você nunca me enganaria; e que estranhas coisas devem ter acontecido para que todos nos encontrássemos aqui, vindos de terras tão diferentes. É possível que Ireg e seu povo também tenham sido trazidos para cá de uma terra distante. Nesse caso você não acredita que podemos nos considerar todos irmãos na desgraça? Existem muitas coisas que eu preciso tentar compreender.

Russell falou: - Absu, meu amigo, eu já sabia que você era um homem muito valente. Agora es-

tou vendo que você também é muito sábio.Entretanto, Ora também se levantou e começou a andar pela sala examinando cu-

riosamente todos os objetos grandes e pequenos. Apanhou um cinzeiro de vidro e emitiu sons que pareciam os de uma criança satisfeita ao ver a luz das velas refleti-das no objeto. Quando colocou mais uma vez o cinzeiro em seu lugar, usando muito cuidado, Anna o apanhou e ofereceu-o a ela.

- Isso-você-fica.- falou Anna. - Anna-dar-Ora-essa-coisa-fica. Essa-coisa cinzeiro.- Ora-essa-coisa-fica -, disse a mulher sorrindo. - Toma-fica. Olha-ri... Cinzeiro.Ireg olhou para o cinzeiro com inveja. - Ireg-coisa- fica -, falou. - Ireg-essa-coisa-fica. Olha-ri.Anna olhou em volta. Numa mesa baixa havia um cinzeiro de aço polido. Deu-o a

Ireg. Ele o examinou com manifesta alegria, mas o deixou cair quando viu seu pró-prio rosto refletido na superfície.

Anna apanhou o cinzeiro no chão e o devolveu ao homem. - Não-dor -, falou com voz macia. - Ireg-toma-fica. Olha-ri. Não-dor.Russell percebeu de repente que estava cansadíssimo. Sem dúvida os outros tam-

bém deviam se sentir exaustos. Ora e Ireg eram na verdade criaturas acostumadas a uma vida noturna, mas muitas coisas tinham acontecido com eles durante as últimas horas. Suas mentes deviam estar confusas pelas muitas experiências sem dúvida as-sustadoras e aparentemente inexplicáveis. Achou que seria uma coisa ótima se todo mundo descansasse um pouco.

A situação evidentemente tinha seus problemas. Falou com Anna e Absu.- Acho que todo mundo precisa descansar um pouco, mas não penso que seria

oportuno deixá-los sozinhos. Eles poderiam ser tomados pelo pânico e acabar destru-indo tudo, ou então tentar fugir e se machucar - ou então machucar alguém. Tam-bém me repugna a ideia de amarrá-los mais uma vez. - Sorriu. - Acho que eles se sentiriam muito infelizes. O que é que vocês acham?

- Podemos deixar alguém de guarda -, disse Anna.Russell refletiu um pouco, mas acabou sacudindo a cabeça. - Eles estão começando a se acostumar conosco. Alguém ficando de guarda - es-

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pecialmente se fosse uma pessoa armada - poderia parecer uma provocação.- Nesse caso, me parece que só existe uma solução: teremos que dormir todos

juntos aqui -, falou Absu - Não fique preocupado, Russell. De fato, eu também estou um pouco cansado porque hoje vi muitas coisas interessantes. Mas eu costumo ter o sono muito leve, como todo guerreiro deve ter. Não acredito que nossos amigos sel-vagens poderão fazer qualquer movimento sem que Absu mes Marur o perceba.-

- Confesso que eu também pensei na mesma coisa -, disse Russell. - Só espero que seja possível explicar a coisa a Ora e Ireg.

Ireg já estava acostumado com a sua própria imagem refletida no cinzeiro de aço polido. Parecia até estar bastante satisfeito com ela, e começou a experimentar uma série de expressões ferozes ou cômicas. A luz das velas suas feições toscas e um pouco achatadas pareciam mais suaves, ao ponto que, não fosse pelos cabelos áspe-ros e suas roupas feitas de peles de animais, poderia se parecer - pensou Russell - com alguns dos mais relaxados espécimes masculinos do século vinte que perambu-lavam na King's Road em Chelsea. Só que, contrariamente ao que acontece com os típicos frequentadores da King's Road, os olhos de Ireg expressavam sentimentos humanos. Russell sentiu-se invadido por um estranho sentimento de simpatia por esse inocente, jogado por acaso ou de propósito num mundo que talvez nunca che-gasse a compreender.

- Ireg, você dormir Ora-dormir. Russell e Anna dormir. Absu dormir. Descansar. Coi-sa-boa-dormir. Dormir-feliz.

- Dormir?- perguntou Ireg. - Dormir? Como-dormir-você-mostrar?Russell sentou numa das poltronas, fechou os olhos e tentou roncar. - Assim-dormir. Faz-bom-forte. Faz-feliz. Ora riu. - Quente-escuro-bom. Faz quente-escuro-bom. Ora-Irega deita-quente-bom.- Isso mesmo -, falou Anna. - Olha Anna-dormir. Russell-dormir. Não-dor. Quen-

te-escuro-bom. - E sentou-se numa outra poltrona.As velas estavam encurtando e a sala estava repleta de sombras suaves e móveis.

Ireg tentou sentar numa poltrona, mas não gostou. Tomou a mão de Ora e deitaram juntos no chão. Absu sentou-se de pernas cruzadas um pouco mais adiante e deixou cair a cabeça.

Ireg, porém, parecia ter ideias bem claras a respeito da forma correta de dormir. Quando Ora ficou deitada ao seu lado, a mão dele posou sobre o seio nu da mulher. Segurou o bico e o apertou delicadamente entre os dedos. Ora não abriu os olhos, só mexeu o corpo. Ireg insistiu mais um pouco. Ora continuou de olhos fechados, mas seu corpo se estirou mostrando seu agrado, e uma espécie de gorgolejo começou a lhe sair da garganta.

Russell, Anna e Absumes Marur estavam fingindo dormir, mas não perdiam um único gesto. As carícias de Ireg eram rudes, mas demonstravam um evidente cari-nho. Ora continuou de olhos fechados, mas quando seu corpo mostrou que estava completamente descontraído, Ireg se jogou em cima dela, fazendo amor de maneira enérgica e ao mesmo tempo alegre, sem se importar com as outras pessoas que es-tavam fazendo o possível para ocultar que estavam observando.

Ora rolava de um lado para o outro, estremecia e fingia querer resistir, tudo isso mantendo os olhos firmemente fechados. Gemeu e riu um pouco. Em seguida o casal da Idade da Pedra adormeceu estreitamente abraçado. Nenhum deles tinha pronun-ciado uma única palavra durante aquele ato breve e vigoroso.

Enquanto ficava a observá-los com olhos semicerrados, Russell refletiu que assim deviam ter se passado as coisas no Paraíso. Olhou para Anna e viu que ela o estava

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observando. Ele a queria. Estava excitado por ter assistido a cópula de dois selva-gens, e agora a queria. Ela parecia compreender os pensamentos dele, e ele perce-beu que ela também estava excitada.

Mesmo assim não fizeram amor. Só ficaram a se olhar. Não fizeram amor porque não estavam sozinhos.

Já quase adormecido, Russell refletiu que isso estava a demonstrar a diferença en-tre a inocência e a experiência. Ora e Ireg faziam tudo o que queriam, todas as ve-zes que ficavam com vontade de fazê-lo, sem se preocupar com nada. Eles ignora-vam o que era a moral, a sofisticação e a intimidade.

Só conheciam suas próprias necessidades. E talvez fossem felizes.Pensando bem, talvez estas eram as únicas coisas realmente importantes...

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Ora e Ireg ficaram no Erewhon Hilton como “hóspedes” durante seis dias. Em se-guida foram acompanhados até um ponto próximo à ponte de choças e soltos. Du-rante o tempo em que ficaram no hotel não fizeram nenhuma tentativa de fugir, e Russell esforçou-se em dar-lhes um curso intensivo de expressão linguística. Também aprenderam um monte de outras coisas; mas sem um considerável aumento de vo-cabulário ou capacidade de entender e lembrar fatos e conceitos estaria muito limita-da. Durante aqueles seis dias de estada no hotel, foram obrigados e ajudados a con-seguir um progresso intelectual que os homens da Idade da Pedra na Terra levaram milhares de anos para conseguir. Só que os homens da Idade da Pedra na Terra não tiveram professores.

Russell ficou estupefato em constatar a inteligência daquelas duas criaturas primiti-vas. Estava muito além de quanto esperava. Ora era brilhante e conseguia entender o sentido de uma palavra nova ou de um conceito muito antes de Ireg. Por outro lado, Ireg era mais lento, mas também mais metódico. Quando conseguia apreender algo, logo percebia como aplicar este novo conhecimento de maneira mais eficiente do que Ora.

No terceiro dia a conversação já era muito menos difícil para todos. À medida que o vocabulário aumentava a necessidade de juntar palavras para expressar um concei-to diminuía sempre mais. Frio-dor, por exemplo, foi traduzido com a palavra “morte” . Deitar-abraçar-escuro-perto-rir-chorar, virou simplesmente - fazer amor- . E frio-dor-não-dor-comer-dor, virou - fome.

Absu ficou somente durante o tempo necessário para observar o que os mágicos estavam fazendo com os prisioneiros e voltou em seguida para a Torre de Marur para se ocupar de todos aqueles problemas domésticos que são da competência de um suserano feudal. Deixou Farn zem Marur no Erewhon Hilton como observador, mas levou consigo o outro guerreiro Gren Li. Explicou a Russell que voltaria dali a alguns dias para constatar o progresso conseguido e para continuar as discussões a respeito de uma tentativa de atravessar a muralha de névoa.

Russell, Anna, John Howard e todos os outros se dedicaram com entusiasmo à ins-trução de Ora e Ireg. Farn zem Marur ficou a observar com seus olhos brilhantes e inteligentes. Ele também estava aprendendo muitas coisas, e estava começando a compreender a respeito dos mágicos muito mais coisas do que eles poderiam imagi-nar.

Uma tarde Russell estava sentado nos degraus de entrada do hotel - um de seus lugares favoritos para meditar - junto a Ireg e ao descobridor de caminhos Gren Li. Ora estava no interior do hotel em companhia de Andrea e Janice que a estavam ins-truindo a respeito das roupas e da maquilagem da mulher moderna. Para as duas jo-vens estudantes isso não passava de uma brincadeira divertida, mas para Ora tudo pareceu uma sucessão de extraordinários milagres.

Durante algum tempo os três homens ficaram em silêncio. Tinham almoçado bem

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- e Ireg parecia capaz de comer qualquer tipo de alimento e estavam satisfeitos, cada um seguindo seus próprios pensamentos. O descobridor de caminhos Gren Li estava usando sua adaga para esculpir um pequeno símbolo de fertilidade em madei-ra, que pretendia oferecer ao senhor do clã dos mágicos em sinal de respeito. Ireg estava praticando fazer contas com dez pedrinhas. Russell estava com seus pensa-mentos a uma distância de milhares de anos-luz, alimentando sua saudade com lem-branças de Londres na hora do rush numa cinzenta tarde de novembro.

De repente Ireg disse: - Russell-amigo dar palavras a Ireg. Ireg não dar. Não dar nada. Ireg muita-dor,

escuro-dentro.- Russell já estava bastante familiarizado com a maneira de falar de Ireg para com-

preender todos os detalhes. Traduziu para si mesmo as palavras de Ireg dessa ma-neira:

- Você está me ensinando, mas eu não posso ensinar nada a você. Não sei porque você está me ensinando e estou triste porque não posso lhe oferecer nada.

Russell pensou um pouco a este respeito e disse: - Ireg dar grande coisa a Russell-amigo. Ireg dar sua mão-atira-pedra.- Estendeu

sua própria mão e ficou esperando.Ireg, visivelmente surpreso, esticou sua própria mão, aquela que mais usava para

caçar e lutar. Russell a apertou, sacudindo-a com muita solenidade. Aquela mão cheia de calos e asperidades mais parecia a pata de algum animal gigante. Quando os dedos de Ireg começaram a apertar, Russell soltou um gemido de dor. Ireg perce-beu, compreendeu e soltou a mão.

- Apertar a mão -, explicou Russell, - quer dizer Ireg não machuca Russell, Russell não machuca Ireg. Nunca, nunca machuca. Ireg-amigo e Russell-amigo. Ora e todo povo de Ireg amigo. Anna e todo povo de Russell amigo. Nunca, nunca dor. Essa coi-sa grande. Ireg dar... - Para dar mais ênfase, acrescentou: - Russell rir, muito feliz, muito bom. Aperta mão, calor fica, Russell-Ireg faz grande coisa boa.

- Grande coisa -, repetiu Ireg compreendendo de forma vaga. Não entendia por-que um povo que lutava de maneira tão terrível com todos aqueles estrondos, as re-des, as cordas e objetos lustrosos muito mais aguçados do que pedras, fazia questão de não querer lutar com ele e com seu povo. Mas a vontade dos deuses é misteriosa. Se era assim que aquelas criaturas de cheiro estranho se sentiriam felizes, assim se-ria. - Nunca, nunca dor. Grande coisa. Povo Ireg, povo Russell, nunca, nunca dor.

Sua expressão se tornou alegre. - Isso Ireg dar?- Havia uma interrogação em seus olhos.- Isso Ireg dar -, confirmou Russell. - Coisa grande boa. Coisa maior do que pala-

vras que Russell dar a Ireg.Ireg levantou-se e começou a bater em seu próprio peito. - Grande coisa Ireg dar! - gritou em direção à rua deserta, como se quisesse co-

municar seu pensamento à savana. - Nunca, nunca dor. Grande coisa boa Ireg dar!- Sir -, disse Farn zem Marur parando de esculpir, - é direito que um senhor de clã

estabeleça um vínculo com um selvagem?- É direito -, respondeu Russell calmo. Em seguida perguntou em tom quase indife-

rente: - O que é que eu sou, um homem ou um animal?O descobridor de caminhos sorriu. - Você é o senhor de um clã de mágicos.- Homem ou animal? - insistiu Russell.Farn zem Marur ficou desnorteado: - Sir, um homem - pelo menos assim eu acredito. Talvez até mais do que isso.

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- E você, Farn, e seu senhor Absu - vocês são homens ou animais?Farn voltou a se sentir mais seguro. - Pessoalmente, posso dizer que sou um homem... Mas meu senhor Absu lança

uma sombra muito grande, toda vez que se defronta com alguém pelas armas.- Assim mesmo, ele é um homem?- Ele é muito homem.- E que tal o Ireg? Ele é um homem ou um animal?Farn zem Marur lançou um olhar de especulação à criatura da Idade da Pedra. - Sir, não sei se ele é um homem com o coração de um animal, ou um animal com

o coração de um homem... De qualquer forma, acho que prefiro tê-lo a meu favor a tê-lo como inimigo. Ele é muito forte e à sua maneira mostra ter muita coragem.

- Eu afirmo, descobridor de caminhos -, disse Russell, - que você eu e ele perten-cemos à espécie dos homens. Além daquela barreira de vapor que você conhece muito bem e que nos cerca, podem existir entidades que conseguem grandes feitos, e que assim mesmo não poderíamos chamar de homens ou de animais. Poderá che-gar a ocasião em que essas entidades desejem nos liquidar, ou em que nós mesmos desejemos nos defrontar com elas.

- Sir -, disse Farn zem Marur, - nesse caso seremos todos do mesmo clã.Russell sorriu. - Deu mais um passo, Farn zem Marur -, falou. - Em qualquer caso, somos todos

do mesmo clã.Ireg sorriu para ambos. - Coisa boa grande -, anunciou satisfeito.

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23

Era o começo da tarde. O sol ainda brilhava alto num céu salpicado de pequenas nuvens, mas apesar disso o ar parecia frio. Talvez não fosse o ar, pensou Russell sen-tindo um arrepio. Talvez o frio estivesse dentro dele - o frio do medo.

Anna, sentada ao seu lado no barco, estava remando com aparente tranquilidade. Russell pensou que ela era linda. Nunca antes reparara o quanto ela era linda. Mas refletiu que facilmente as pessoas não repararam o óbvio, até o momento em que começam a ter consciência da morte próxima.

Os compridos cabelos de Anna Markova estavam amarrados na nuca com um pou-co de barbante. Estava vestindo só uma camisa aberta e uma calça comprida bastan-te gasta. Todas as roupas pesadas estavam guardadas cuidadosamente na pequena cabine desmontável que Tore Norstedt construiu antes de morrer.

No teto da cabine estavam amarrados três pares de rodas de madeira e duas lon-gas varas. Eram obra de John Howard e serviriam para transformar o barco numa carroça miniatura para ser puxada em terra firme. Se chegassem a ter necessidade de viajar em terra firme, pensou Russell preocupado. Agora que a viagem de explo-ração estava em andamento, seu otimismo estava desaparecendo, começava a se convencer de que a façanha terminaria numa catástrofe.

A cabine estava bem ao centro do barco, separando o banco em que Russell esta-va com Anna do outro banco à proa em que estava Farn, mostrando-se muito efici-ente em remar à maneira dos índios, sua pá cortava continuamente a água de um lado e do outro do barco. Felizmente não precisava de muito esforço para movimen-tar o barco bastante carregado, porque estavam descendo o rio ao sabor da corren-te. As pás serviam, sobretudo, para manter o barco afastado das margens e para evi-tar eventuais obstáculos no centro do rio. Em alguns trechos a corrente que se movi-mentava sem pressa não era mais larga do que sete ou oito metros, mas em alguns pontos o leito se alargava bastante, apresentando bancos de areia. Algumas vezes o barco, apesar do pouco calado, passou raspando sobre a areia.

Russell observou os ombros sólidos e os movimentos eficientes de Farn zem Marur e sentiu-se satisfeito por Absu ter permitido ao seu descobridor de caminhos acom-panhá-los naquela jornada. Absu só não tinha se oferecido pessoalmente porque acreditava que sua obrigação mais importante era cuidar de seu clã. Por esse mesmo motivo não aprovava a participação de Russell. Cuidou, porém, de não manifestar seus sentimentos, pois reconhecia que os costumes dos mágicos eram diferentes dos costumes das outras pessoas.

Num primeiro momento Russell pensou em levar consigo Mohan das Gupta. Mas Anna o convenceu do contrário. Argumentou que se por uma qualquer mal-afortuna-da circunstância a expedição tivesse que terminar de maneira catastrófica, o Erew-hon Hilton se encontraria numa desagradável situação de desequilíbrio de sexos. Dois homens, Gunnar Rudefors e Tore Norstedt já estavam mortos. Marina Jessop também estava morta, mas a eventual perda de mais dois homens poderia levar a

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complicações que poderiam destruir de forma definitiva o resto do pequeno grupo - e, sobretudo diminuiria seu poder defensivo.

Russell estava decidido a ir - e sabia que, na eventualidade de um fracasso da ex-pedição, John Howard, seu vice, saberia lidar com os assuntos da comunidade tanto quanto ele, ou talvez melhor. Anna proclamou ser a companheira óbvia para este tipo de viagem. De fato, em muitas coisas Anna Markova valia praticamente tanto quanto um homem, mas Russell sabia que consentira por motivos puramente egoísticos. Re-almente, ele desejava que Anna o acompanhasse. Agora, apesar de se sentir feliz em sua companhia, já estava muito arrependido por essa fraqueza. Teria preferido saber que ela estava em companhia dos outros, em relativa segurança.

Absu prometera manter regularmente contato com John Howard durante todo o tempo em que Russell estaria ausente - e quem sabe quanto tempo isso seria. Em caso de complicações e dependendo da conveniência, estava previsto que o clã Ma-rur se instalaria no Erewhon Hilton ou os terrestres iriam para a Torre de Marur.

Russell não conseguia imaginar quais as circunstâncias que poderiam ocorrer para fazer essa união obrigatória, mas antes de iniciar a viagem pareceu-lhe oportuno fa-zer planos preventivos. Afinal, toda aquela situação parecia ridícula; não seria por demais surpreendente se as aranhas-robôs noturnas de repente tivessem algum cur-to-circuito em seus transistores, ou se as “fadas” repetidamente avistadas, mas que continuavam a se manter fora do alcance, decidissem se aproximar dos prisioneiros do zoológico com intenções sinistras.

Lançou mais um olhar em direção de Anna e viu que ela estava sorrindo. Ocultou seus temores e sorriu também. O desespero poderia se espalhar. A situação requeria uma atitude de indiferente otimismo.

Anna parou de remar por um instante e deu-lhe um beijinho sobre a orelha. De-pois murmurou:

- Estou feliz por estarmos juntos, Russell, mas continuo com muito medo... Você não tem medo nenhum?

Russell enxugou o suor da testa - era suor frio - e esboçou uma carícia no ombro dela.

- Você não está realmente esperando que um inglês à maneira antiga admita fren-te a uma mulher russa emancipada que ele está com medo?

- Mas se for a verdade!- Minha querida -, respondeu em tom de brincadeira, - você tem que me permitir

um mínimo de hipocrisia. Um cavalheiro nunca se mostra assustado na presença de uma dama.

Anna riu. - Você já conseguiu me reanimar. É engraçado como poucas palavras podem ter

um efeito tão importante.- É verdade. É engraçado -, concordou Russell - Você está lembrada da hora em

que passamos debaixo da ponte feita de choças? Todo mundo estava pulando e gri-tando, e por um instante fiquei assustado e pensei que Ora e Ireg não tivessem con-seguido convencer seu povo de nossos sentimentos de amizade - ou que então Ireg tivesse decidido que não estava precisando deles.

- Foi realmente assustador -, disse Anna. - Parece que já passou muito tempo, mas suponho que só fazem três ou quatro horas.

- Até menos, eu acho -, respondeu Russell. - Eu estava começando a acreditar que acabaríamos dentro de um caldeirão da Idade da Pedra, especialmente quando Ireg nos seguiu em sua canoa, falando palavras desconexas e segurando o machado na mão.

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Anna sorriu. - E ele deu-lhe seu melhor machado de presente.- Pois é. Você está lembrada de suas palavras? Ele disse: Ireg dar a Russell-amigo

coisa boa grande. Pedra coisa pequena, mas leva coisa boa grande. Segura forte, Russell-amigo. Vá depressa. Volta depressa. Depois Ireg-amigo e Russell-amigo pode rir-dor, comer-dor.

Anna voltou a remar. - Acho que foi um discurso muito complicado para Ireg. Possivelmente o mais

comprido que ele já fez.Russell apanhou o machado de pedra no fundo do barco e ficou olhando-o curiosa-

mente. - Não sei porque -, disse, - mas me senti bastante orgulhoso... Acho que ter con-

seguido a amizade de um homem como Ireg é um belo feito.O barco estava num ponto em que o rio era bastante largo. As margens eram bai-

xas e arenosas. De ambos os lados havia uma grande planície desprovida de árvores. A região era bastante diferente. Não se via mais o alto capim da savana e nem as ár-vores da floresta. A grama que cobria o terreno era tão curta e fechada que parecia aparada há pouco.

Um pouco mais adiante Russell viu ao longe um rebanho de animais pastando. Apanhou o binóculo na cabine e os observou demoradamente. Não fosse pelo único chifre que brotava no meio da testa, os animais poderiam parecer pacíficas vacas. Lembrou-se que conhecia muito pouco da fauna nativa - se é que aqueles animais eram nativos. A não ser pelos pulpuls, importados para uso do povo da Torre de Ma-rur, os animais selvagens pareciam se concentrar sobretudo na floresta, nas proximi-dades do Povo do Rio. Quem sabe, até os animais selvagens fossem importados, em benefício do Povo do Rio. E talvez aquele rebanho pastando, pacífico, podia ter sido importado para servir a mais outro grupo.

Havia muitas perguntas que pediam respostas. Havia muitas circunstâncias curio-sas a serem esclarecidas. Havia tantas coisas a saber! Russell passou distraidamente sua mão no pequeno galo perto da nuca - era tudo o que sobrava de uma operação milagrosa que parecia ter colocado todo mundo em condições de entender todo mundo.

Também era estranho constatar como todos estavam se adaptando ao novo ambi-ente, aprendendo a aceitar tudo que era milagroso, louco, grotesco e absurdo. Talvez isso não passasse de um prolongado e maluco pesadelo. Talvez Anna, aparentemen-te real e viva durante o dia, e deliciosamente quente e excitante durante a noite, não passasse de uma projeção de sua mente - uma ilusão de vida, que respirava e pulsa-va somente dentro de seu próprio cérebro. Talvez até Absu, a Torre de Marur, os pul-puls, o povo da Idade da Pedra, as aranhas-robôs e todo o resto. não passassem de fantasias - resquícios de loucura ou restos de um sonho que estava se acabando. Tal-vez o avião que ia de Estocolmo a Londres tinha caído, e naquele instante Russell Grahame, Membro do Parlamento, estava na mesa de cirurgia, suspenso entre a vida e a morte, protegido contra a dor pelos anestésicos e por um pesadelo de sua pró-pria invenção.

- Sir Russell -, falou Farn zem Marur interrompendo todas aquelas reflexões. - Acho que estamos a poucos varaks da barreira de névoa - não mais do que nove ou dez. Não seria melhor se parássemos agora para descansar, comer e nos refrescar um pouco antes de arriscar nossos corpos dentro do gelo da barreira?

- É uma sábia sugestão, descobridor de caminhos. Vamos nos aproximar da mar-gem e fazer nossos preparativos. Precisamos também tirar as roupas pesadas da ca-

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bine para poder vesti-las.Russell lembrou-se das medições comparativas de temperatura feitas por John

Howard alguns dias antes, muito mais ao norte. Pelos cálculos de John, a barreira de névoa devia ter uma espessura máxima de cinquenta metros. John, porém o preveni-ra que os cálculos eram muito relativos, pois faltava-lhe um dado importante: não sa-bia qual era a temperatura mínima da névoa em seu ponto mais central. Por motivos que Russell não entendia muito bem, John se baseara na presunção que a tempera-tura mínima não poderia ser inferior a cinquenta graus abaixo de zero. Partindo des-se pressuposto avaliou que a redução de temperatura do rio, no ponto em que pas-sava debaixo da barreira para entrar no zoológico, indicava uma espessura mínima de trinta metros, e uma máxima de cinquenta. Mas John poderia estar tragicamente errado. E se estivesse errado, o preço do erro seria, daqui a breve, três corpos soli-damente congelados.

Enquanto Farn zem Marur dirigia o barco para a ribanceira esquerda, Russell ob-servou mais uma vez a planície sem árvores com seu binóculo. Na distância, em dire-ção sul, uma muralha curva dava a impressão de se levantar tanto que em alguns pontos tocava as nuvens mais baixas. Era difícil estimar sua altura, mas Russell achou que a barreira de névoa devia ter pelo menos duzentos metros de altura e tal-vez chegasse até um máximo de quatrocentos.

Sendo tão alta, parecia impossível que tivesse somente uma espessura de cinquen-ta metros. Sentiu o coração apertado, e seu sangue esfriou ainda mais.

Não precisou mostrar a barreira de névoa a Anna e a Farn zem Marur. Apesar de estarem sem binóculos, ambos já estavam vendo a alta e distante muralha branca que demarcava os limites da prisão.

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O rio continuava largo. A barreira de névoa estava imóvel e apavorante a aproxi-madamente meio quilômetro, como um enorme penhasco de gelo. A largura do rio reduzia o risco do barco encalhar numa das margens com seus três tripulantes con-gelados, antes de ter transposto a barreira de gelo - se é que isso aconteceria. Mas o rio, sendo largo, aumentava o perigo dos bancos e das secas, porque a água era pouco profunda.

Russell observou a grande barreira e sentiu o suor a lhe escorrer pelo corpo. Senti-a-se frio por dentro, mas externamente transpirava visivelmente. Estava vestido com duas camisas, três pulôveres, duas calças, três pares de meias, e segurava na mão uma comprida echarpe de lã que pretendia enrolar em volta da cabeça.

Anna e Farn zem Marur estavam embutidos quase da mesma maneira. Observan-do-os, Russell lembrou-se de repente de um jogo que fizera num Natal, quando cri-ança. Não conseguiu se lembrar de todos os detalhes, mas sabia que vestira uma grande quantidade de roupas velhas, e tentara comer um tablete de chocolate com garfo e faca enquanto alguém jogava repetidamente os dados tentando um duplo seis.

A lembrança provocou uma gargalhada involuntária. Farn e Anna olharam para ele estupefatos.

- 'Sir Russell -, disse Farn, - acho que o que está em nossa frente não pode ser motivo de risos. O frio é tão intenso que nunca em minha vida provei nada igual. Se passarmos por aquela barreira e ficarmos com vida, acho que nunca mais vou querer repetir a experiência.

- Sinto muito, Farn -, disse Russell arrependido. - Pela maneira que estamos vesti-dos lembrei-me de uma brincadeira de meu tempo de criança... A cabine está com-pletamente vazia?

- Sir, coloquei tudo no topo da cabine, obedecendo à sua ordem.- Está bem. A cabine mal tem espaço para nós três.- Observou a pilha de apetre-

chos que estavam agora em seu teto.Todas as armas estavam juntas - a espada, a adaga e a curta lança do descobridor

de caminhos, as facas, as bestas, as aljavas com os dardos, as granadas de pólvora de Anna e Russell. Ao lado das armas havia caixas de alimentos enlatados e garrafas cheias de água de torneira do hotel, que Russell e Ana preferiam à água do rio. Lá estavam também o binóculo, a pedra-ímã de Farn zem Marur, dois rolos de corda, uma caixa de curativos e a máquina fotográfica polaroide

Que estranha mistura de objetos, pensou Russell. Alguém que organiza uma expe-dição desse gênero com dois homens, uma mulher e aquele mísero montinho de bu-gigangas deve ser meio louco ou meio candidato a a suicida, ou então ambas as coi-sas. Mesmo presumindo que conseguissem passar com vida para o outro lado da barreira de névoa (o que era muita presunção), não havia possibilidade de saber o que estava do outro lado.

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Que tal se o zoológico, a prisão, fosse um refúgio, uma reserva no meio de uma selva repleta de animais rapaces? Ou no meio de um deserto? Ou se aranhas-robôs, ou qualquer outro tipo de cão de guarda estivessem esperando, com a ordem de destruir a todos que tentassem fugir? Era possível fazer um sem número de suposi-ções desse gênero...

- Russell, me abrace -, disse Anna, que parecia uma gorda boneca de pano. - Abrace-me forte.

Russell olhou para a alta muralha de vapor que se erguia a não mais de cem me-tros. Imaginou que o frio já estava encrespando a pele de seu rosto.

- Vou abraçá-la quando estivermos na cabine -, disse. - Vou abraçá-la o mais forte que puder.

Virou-se para Farn zem Marur: - Descobridor de caminhos, vou dar-lhe minhas ordens. Na hora que eu o mandar,

todos entraremos na cabine, deitando muito perto uns dos outros, cobrindo nossas cabeças e usando nossa respiração para nos aquecer. Se ficarmos conscientes duran-te nossa viagem na névoa, como eu espero, e se o barco por acaso encalhar, pois a água é muito baixa, tentaremos deslocá-lo, em primeiro lugar balançando com os nossos corpos. Se isso não der resultado, você sairá da cabine e tentará empurrá-lo com um remo. Você não poderá abrir seus olhos. Se não conseguir, vou sair também para ajudá-lo. Se ambos não conseguirmos, a dama Anna virá ajudar-nos. Mas se os três não conseguirem, nossa viagem estará terminada.

- Sir -, respondeu o descobridor de caminhos, - ouvi suas palavras e estou satisfei-to.-

A grande barreira branca já estava a apenas vinte metros. Iluminada pelos raios brilhantes do sol, era ofuscante, hipnótica, e ao mesmo tempo já mostrava toda a in-tensidade de sua temperatura gelada.

Russell olhou pela última vez para se certificar que o barco estava no centro do rio e seguindo em linha reta. O resto já estava na mão dos deuses.

- Vamos entrar na cabine agora -, convidou. - A dama Anna ficará entre nós dois... Fique bem perto dela, Farn zem Marur, pois não há falta de respeito nisso. - Beijou Anna nos lábios. - Entre você primeiro, meu amor. Pelo amor de Deus, mantenha aquela camisola ou o que seja, em cima de sua cabeça.- Finalmente acrescentou em tom de brincadeira, - Espero que você não estranhe muito que dois cavalheiros to-mem essas liberdades com você.

- Acho que eu amo você -, disse Anna.- Espero que assim seja. O momento não é muito oportuno para você mudar de

ideia- Ficou a observá-la enquanto ela se espremia dentro da cabine, e com um ges-to mandou que Farn zem Marur entrasse rastejando.

- Sir Russell -, falou o descobridor de caminhos, - vamos esperar que essa seja uma façanha que poderá ser contada aos filhos de nossos filhos. Qualquer coisa que aconteça, saiba que me sinto muito honrado de estar em sua companhia.

- Vá andando, filho da mãe. Vamos viver para podermos nos embriagar até cair-mos debaixo da mesa. - A voz de Russell era alegre apesar da névoa que começava a envolvê-lo. Os primeiros cristais de gelo começaram a se formar em volta de seus lábios.

O barco já estava entrando na barreira branca e opaca quando ele se espremeu dentro da cabine, atrás de Farn, e abraçou o monte informe de roupas que envolvia Anna, mantendo-a imóvel num enérgico abraço.

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A penetração do frio foi como uma mordida. Tiveram a impressão que um enorme animal cego estava abocanhando-os com bilhões de dentes aguçados como agulhas. Era como um fogo e como a morte.

Suas cabeças estavam cobertas, os olhos fechados e os corpos rígidos pelo súbito e terrível ataque. Cristais de gelo começaram a se formar sobre os rostos; as lágri-mas congelaram antes de poder escorrer, soldando as pálpebras de maneira tão fir-me como se fossem lacradas com aço. A umidade nas narinas começou a congelar, diminuindo a capacidade de inspirar o ar que chegava aos pulmões como lâminas de facas.

O êxito era muito duvidoso, Russell pensou com esforço. Se o frio não os matasse primeiro, morreriam sufocados por terem as narinas e a boca congeladas. Tentou abraçar Anna com mais força, mas seus músculos não lhe obedeceram. A cabeça dela estava perto da sua e ele imaginou ouvir um gemido profundo vindo do corpo dela. Por um instante teve desejo de ver-lhe o rosto. Logo em seguida, sentiu-se feliz por não poder.

Havia um ranger surdo em algum lugar. A superfície do rio no centro da barreira de névoa devia ser coberta por uma sólida camada de gelo, e as águas mais quentes deviam estar passando por baixo dela. Nesse caso, o barco tão diminuto ficaria enca-lhado para sempre. Não tinha pensado nessa possibilidade antes da expedição. Ele devia ter pensado em muitas outras coisas.

Devia ter se lembrado que, apesar de todas as dificuldades, a vida era muito boa ao lado de Anna e na companhia dos outros. Devia ter-se lembrado que existiam coi-sas que era preferível não conhecer - e coisas que era melhor não tentar. Por exem-plo, era melhor não cair na loucura de querer transpor uma barreira criada por seres superiores, donos de uma ciência claramente superior, com o claro intuito de manter os prisioneiros confinados num certo lugar.

Sentiu o início da sonolência, seus pensamentos começaram a ficar confusos e a dor diminuiu, porque seu corpo congelado estava começando a ficar insensível. Teve a impressão que as imagens que se formavam em seu cérebro também estavam co-meçando a congelar, e não havia mais nada a não ser o frio sono da eternidade.

Desejou, já quase adormecido, ter falado com Anna que estava tão perto dele na escuridão, e ao mesmo tempo tão distante, presa dentro dos limites de seu próprio universo de sofrimentos. Desejava muito ter falado com ela. Mas o que poderia dizer-lhe?

Sinto muito, meu amor, pensou desesperado, sinto muito ter levado você para essa...

Em seguida não sobrou mais pensamento nenhum.Estava num limbo gelado, suspenso no tempo...De repente, o céu rasgou-se, o milagre aconteceu, o mundo - mas seria o mesmo

mundo? - estava berrante de cores, de calor, de cheiros e de sons. A volta dos senti-

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dos e o vertiginoso carrossel de sensações explodiram em seu cérebro como uma bomba.

Abriu os olhos, gritou de dor, fechou-os e os abriu mais uma vez. Viu o rosto de Anna acima do seu próprio, e atrás dela o azul intenso do céu. Tentou mexer os de-dos. Mexiam. Tentou mexer os braços. Também se mexiam, mas com dificuldade, com uma estranha rigidez. Sentou-se e começou a rir. Logo percebeu o som histérico de sua gargalhada e esforçou-se a controlá-la.

- Estamos vivos -, observou admirado.- Sim, Russell, estamos vivos. Descanse um pouco, quero ver o que posso fazer

por Farn. Receio que ele esteja muito pior do que nós.Farn zem Marur não demorou para sentar-se e, sem dúvida, devia estar provando,

com a volta dos sentidos, as mesmas fantásticas sensações que Russell provara.Russell olhou em volta. Estava apoiado num dos bancos. Anna era mesmo uma

mulher notável. Devia ter arrastado ambos os homens para fora da cabine. Ficou es-tupefato pensando em sua capacidade de resistência.

O barco tinha sido levado ou dirigido para a margem. A barreira de névoa se er-guia agora a duzentos metros a montante, continuando num arco regular aos dois la-dos do rio. Após passar através dela, continuando vivo, dava-lhe a impressão de que ela era ainda mais apavorante. Russell sentiu-se arrepiar pensando que de acordo com o plano original, eles teriam que empurrar o barco transformado em carroça ao longo do perímetro da barreira até o ponto em que o rio entrava debaixo dela no norte, para poder mais uma vez voltar à prisão.

Farn zem Marur voltou com muito barulho à terra dos vivos, gaguejando agradeci-mentos e esconjuros e invocando o manto sagrado, a Rainha branca e a Rainha pre-ta e outras entidades de Gren Li que Russell ainda desconhecia.

Continuava estupefato por Anna ter sido capaz de se recuperar mais rápido do que ele e Farn zem Marur.

- Se você é uma representante típica da mulher soviética -, falou sorrindo, - acho que a Rússia está fadada a dominar o mundo. Talvez eu tenha a sorte de não mais estar aqui quando isso acontecer... Como foi que você conseguiu se recuperar tão depressa? Ou será que você tem algum meio secreto?

Ela assentiu. - O cavalheirismo, meu amor. Fiquei cavalheirescamente amassada entre dois ho-

mens que se sentiram na obrigação de proteger o sexo mais fraco. Vocês ambos são ótimos isolantes.

Sorriu maliciosamente. - É também possível que você ainda não reparou que possuo uma camada de gor-

dura muito mais espessa do que qualquer um de vocês.- Louvado seja São Lênin e a Santa Mãe Rússia por uma graça recebida -, Russell

respondeu piamente.- Sir -, disse Farn zem Marur. - Estávamos como mortos e agora vivemos. Em ver-

dade, acontecem coisas muito curiosas. É possível que os filhos de nossos filhos pos-sam ainda ouvir falar dessa façanha.

- Amem -, disse Russell. - Agora que conseguimos sair da prisão, seria melhor des-cobrirmos que espécie de mundo é esse em que estamos. Uma coisa parece certa: deste lado da barreira de névoa devem existir muitas coisas estranhas que não exis-tem do outro lado. Caso contrário não haveria razões para sua existência.

Assim dizendo lançou um olhar ao redor, vendo que em aparência o terreno se pa-recia muito com o que havia do outro lado da barreira.

Foi assim que descobriu a coluna. Estava muito longe, talvez a uns dez quilôme-

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tros, e reparou nela, sobretudo porque os raios do sol, que já estava se deitando, se refletiam em sua superfície, transformando-a numa fina e reluzente lâmina de fogo.

Era óbvio que a coluna devia ser muito alta. Em seu topo havia algo que se parecia com uma grande bolha verde e transparente.

Russell continuou a olhar durante um instante, como que fascinado. Em seguida esfregou os olhos e começou a procurar o binóculo.

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A tarde já estava muito avançada e o sol não ia demorar a desaparecer atrás da planície a oeste, deixando o mundo de Erewhon no crepúsculo logo que se transfor-masse em escuridão.

Por causa da recente traumática passagem através da barreira de névoa, e tam-bém porque o dia já estava acabando, Russell achou que seria imprudente tentar qualquer exploração antes que os três tivessem descansado. De qualquer forma, via-jar por uma terra desconhecida durante a noite seria arriscado demais. Por isso apro-veitaram da última claridade do dia para puxar o barco sobre a areia da ribanceira, descarregar todo o equipamento e colocar debaixo dele dois pares de rodas e as duas varas para puxá-lo, de maneira a estarem prontos a partir bem cedo na manhã seguinte.

Quando a noite chegou, Russell explicou que duas pessoas poderiam dormir no barco enquanto a terceira ficaria de guarda. Se ninguém dormisse até muito tarde, considerando que ainda tinham que preparar o jantar, comê-lo e terminar uma série de pequenas tarefas, poderiam em seguida se alternar em turnos de guarda de duas horas até o clarear do dia.

Antes de acampar, Russell aproveitou a última claridade para vistoriar o terreno logo em volta deles e observar a misteriosa coluna com o binóculo. O terreno em vol-ta deles era plano e sem características, e não parecia oferecer esconderijos a ani-mais selvagens ou outras criaturas. De fato, não se via animal algum nas duas mar-gens do rio. Pela aparência do terreno, pareciam estar com sorte por terem achado um lugar ideal para passar a noite.

Vista através do binóculo, a coluna e sua bolha translúcida eram ainda mais miste-riosas e tentadoras do que a olho nu. O binóculo aumentava doze vezes, e por isso a coluna parecia a apenas um quilômetro dali.

Russell avaliou sua altura em possivelmente setecentos ou oitocentos metros - e logo em seguida achou ridícula sua própria estimativa. Com essa altura, o diâmetro da bolha devia ser de, pelo menos, cento e cinquenta metros. Uma construção desse tamanho não seria fantástica demais?

Por outro lado, todas as coisas acontecidas até agora no absurdo mundo de Erew-hon não estavam, também, além de qualquer imaginação racional? Então porque não poderia haver até uma floresta inteira de bolhas de cento e cinquenta metros de diâ-metro, situadas no topo de torres de oitocentos metros de altura?

Pelo que era dado ver, a coluna era metálica, circular e lisa. A essa distância, po-rém, os binóculos não seriam suficientes para distinguir qualquer decoração ou enfei-te da superfície, a menos que não fossem muito grandes. Na base da coluna havia algo parecido com uma aglomeração de construções; por outro lado, poderiam ser também formações de rochas. A luz era fraca demais para ver direito.

A parte mais extraordinária de todo aquele conjunto era a bolha. Era perfeitamen-te esférica; Russell podia - ou pensou que podia - ver através dela, percebendo for-

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mações indistintas de nuvens que se encontravam do outro lado. Não podia ter cer-teza se ela era transparente, mas via que era translúcida, iluminada e penetrada pe-los raios do sol que estava se deitando. Sobretudo, sua aparência dava a impressão dela ser levíssima, quase incorpórea - ao ponto que uma súbita rajada de vento po-deria levá-la, ou então que poderia explodir e sumir para sempre como uma bolha de sabão.

Quando a noite chegou, o ar ficou mais fresco e os três exploradores foram obriga-dos a vestir mais uma vez uma parte das roupas usadas para atravessar a barreira de névoa. Precisavam também de uma refeição, porque já se tinham passado muitas horas desde a última. Além das caixas de alimentos enlatados, o barco levava tam-bém alguns feixes de gravetos, que deviam servir sobretudo para acender uma fo-gueira. Mas não havia árvores por perto cujos galhos pudessem ser cortados e Rus-sell decidiu usar três feixes de gravetos para aquecer a refeição e alegrar um pouco o ambiente.

Foi um jantar muito simples, de feijão e sopa. Comeram em silêncio, mas logo em seguida Russell começou a falar na estratégia da exploração. Era óbvio que para vol-tar teriam que caminhar dando a volta da barreira de névoa até atingir o ponto ao norte em que o rio entrava por baixo da barreira para a zona que era sua prisão.

Essa marcha seria uma verdadeira façanha por si mesma, pois Farn zem Marur es-timava que a distância entre a entrada e a saída do rio era de cinquenta varaks, ou seja, trinta e cinco quilômetros. Considerando a curvatura da barreira de névoa, o barco-carroça teria que ser puxado ou empurrado por mais ou menos quarenta e cin-co quilômetros em terreno desconhecido, antes de poder voltar mais uma vez para o rio.

Essa era a distância calculada caso os exploradores se mantivessem muito perto da barreira, o que limitaria muito as possibilidades de descobrir alguma coisa. A curi-osa e gigantesca estrutura avistada à distância, e que não podia deixar de ser obra de criaturas inteligentes e tecnologicamente avançadas, levou Russell a sugerir uma mudança de planos.

- Se tivermos que levar o barco conosco em toda parte -, ele explicou, - vai ser muito difícil investigar de maneira eficiente antes de acabarmos todas as nossas ra-ções e nossas energias. Seria melhor, em minha opinião, deixá-lo aqui, enquanto in-vestigamos durante dois dias; e em seguida caminhar em direção norte, mantendo-nos perto da barreira. Aqui pelo menos sabemos que existe algo que vale a pena ser visto... O que é que você acha, Farn?

- Sir, a grande torre que vimos é realmente maravilhosa. Já enfrentamos algum pe-rigo para chegarmos até aqui. Se não pudermos enfrentar mais um pouco de perigo, todo nosso esforço será inútil. Viemos para aprender, pois então deixe que aprenda-mos, nem que o preço a pagar seja alto.

- Muito bem falado... E você, Anna? O que é que você acha? Deixando o barco aqui, existe o risco de ser destruído. Se o levarmos conosco teremos que ficar perto da barreira e só poderemos avançar de maneira muito vagarosa.

- Concordo com você e com Farn. Já arriscamos bastante para chegarmos até aqui. Estou disposta a arriscar mais um pouco para satisfazer minha curiosidade... Acredito que a torre faz parte de uma cidade. Se for assim, talvez consigamos nos defrontar finalmente com nossos sequestradores -, ela disse rindo, - nem que eles nos joguem logo a seguir num panelão. Ser prisioneira sem saber porque e sem co-nhecer quem guarda as chaves da prisão me deixa muito frustrada.

- Então, está decidido. De manhã tentaremos encontrar uma maneira de esconder o barco. Em seguida vamos levar os alimentos e as armas que podemos carregar

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sem que nos atrapalhem, e vamos sair para ver de perto aquele enorme pé de feijão.- Pé de feijão? - Farn zem Marur perguntou surpreso.- Na minha terra -, explicou Russell, - contam às crianças uma fábula a respeito de

uma planta de feijão muito alta em cujo topo morava um gigante muito feroz. - Per-cebeu a expressão alarmada de Farn zem Marur e acrescentou rapidamente: - Não acredito que na bolha haja gigantes. É possível que seja simplesmente uma grande máquina para captar energia radiante... Desculpe Farn, estou falando a respeito de coisas que você não pode entender.

- Sir, não há nada a desculpar. Estou muito orgulhoso que um grande mágico não despreze a companhia de um humilde descobridor de caminhos Gren Li numa jorna-da como essa. Já aprendi muitas coisas e, sem dúvida, pela graça do manto sagrado, vou aprender muito mais.

A minúscula fogueira que servira para aquecer os alimentos já estava se apagan-do. No céu claro, acima deles, a grande profusão de estrelas - constelações estra-nhas que começavam a se tornar familiares - anunciava uma noite bastante fria.

- Farn -, disse Russell, - está na hora de descansarmos. A dama Anna ficará de guarda para o primeiro turno. Eu vou rendê-la, e em seguida você vai me render, fi-cando com o último turno de guarda até clarear.

- Você acha melhor eu ficar com uma arma? - Anna perguntou em tom de brinca-deira.

- Sim. Acho melhor que você fique com uma besta e uma granada... De qualquer forma, se chegarem visitas mal intencionadas, não tome nenhuma atitude no sentido de iniciar algo que não seríamos capazes de levar a termo.

Farn e Russell foram descansar na cabine e Anna Markova começou seu silencioso turno de guarda. Fazia muito frio, mas não havia vento. Nenhum som dentro da noi-te provocou nela o menor alarme. De vez em quando dava uma breve volta. Às vezes procurava penetrar a escuridão, olhando em direção da torre, imaginando ver a imensa silhueta. Uma vez, quase no fim do turno, teve a impressão de vislumbrar uma intensa reverberação esverdeada, mas antes que seus olhos conseguissem re-gistrá-la a paisagem voltou a mergulhar na escuridão.

Quando chegou a hora foi substituída por Russell, que por sua vez acordou Farn zem Marur a aproximadamente duas horas e meia antes do levantar do sol. A noite passou-se sem incidentes. Parecia que os três estavam completamente a sós nesse estranho planeta.

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O que parecia uma cidade, mas que poderia ser também uma espécie de estação científica, era pequena e estranha, além de qualquer imaginação. Era parecida com uma cidade fantasma - mas apesar disso dava a impressão de ser muito limpa, de estar sendo usada, e também de ter sido recentemente ocupada. Sobretudo, trans-mitia a sensação de estar esperando por algum acontecimento. Russell tinha certeza que algo aconteceria - algo fantástico, ou maravilhoso, ou terrível. Havia muitos indí-cios. Os três exploradores tinham a sensação desagradável de estarem sendo obser-vados; aliás, os três sabiam que sua aproximação à grande coluna tinha sido vigiada.

A coluna era muito mais alta, mais impressionante e mais inexplicável do que Rus-sell esperava. Situava-se ao centro da cidade fantasma/estação científica, elevando-se para o céu por quase um quilômetro e sustentando a imensa e reluzente bolha verde que parecia uma flor monstruosa sobre um caule rígido de metal.

Os acontecimentos daquela manhã passaram rápidos pela mente de Russell en-quanto observava pasmado a coluna, convencendo-se sempre mais que ele próprio, Anna e Farn zem Marur eram os protagonistas principais (ou as vítimas?) de um dra-ma que estava prestes a começar.

Tomaram seu desjejum logo ao clarear, procurando em seguida um local apropria-do para deixar o barco-carroça. Encontraram-no a poucas centenas de metros adian-te, onde havia uma pequena depressão suficientemente profunda para ocultar o bar-co de olhos curiosos. Farn zem Marur se enfiou debaixo da canga afixada nas duas varas e arrastou o barco até o esconderijo. Em seguida, ele e Russell o desceram com muito cuidado pelo lado da ravina. Estava quase invisível a dez passos de dis-tância e seria difícil de achar até do lado do rio.

Escolheram com cuidado os alimentos e o equipamento que iriam levar. Seria lou-cura levar uma carga pesada demais, mas também seria bobagem viajar sem comida suficiente ou sem as armas necessárias. Russell percebeu que deviam ter trazido mo-chilas ou pelo menos malas - no Erewhon Hilton havia bastante. Mas, pelo plano ori-ginal, eles pretendiam arrastar o barco para qualquer lugar que visitassem. Assim, fi-zeram embrulhos com cobertores. Farn zem Marur, além de algumas roupas, levou sua espada, uma adaga e um embrulho com comida. Anna levou sua besta e algu-mas garrafas com água, bem embrulhadas para que não quebrassem batendo uma contra a outra. Russell levou sua besta, duas granadas, um rolo de corda, o binóculo e algumas latas de comida que enfiou nos bolsos.

Era uma linda manhã. O sol enviava seus raios quentes de um céu azul sem nu-vens. Quando ficaram prontos, o pequeno grupo começou a se locomover, indo em direção à alta coluna que parecia ainda mais curiosa à luz do dia e, sobretudo, dava a impressão de estar estranhamente viva.

Russell percebeu o primeiro movimento meia hora depois do início da caminhada através da planície coberta de grama. Parava à cada poucos minutos, sistematica-mente, para observar a paisagem com o binóculo; durante uma dessas paradas, per-

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cebeu uma reverberação irregular a dois ou três quilômetros de distância, como se a luz do sol estivesse se refletindo em algo lustroso.

Passou o binóculo para Anna. Anna em seguida cedeu-o a Farn. Qualquer coisa que estivesse provocando os lampejos estava se dirigindo a grande velocidade para o rio e à barreira de névoa. A descoberta era bastante interessante e Russell achou a ocasião propícia para um breve descanso. Os três deitaram sobre a grama para po-derem observar sem ser percebidos.

Mas o grupo já tinha sido avistado. Os lampejos se tornaram mais fortes e pareci-am estar se dirigindo diretamente para eles. Farn zem Marur segurou o cabo de sua espada, Anna enfiou um dardo na besta e Russell ficou segurando seu isqueiro a gás numa mão e uma das granadas de pólvora na outra.

Não demoraram em descobrir o que estava provocando toda aquela reverberação. Era um pequeno grupo de aranhas-robôs, e a luz do sol se refletia nas pequenas es-feras metálicas em que se encontravam os mecanismos sensores e de controle.

Era a primeira vez que Anna e Russell viam as aranhas-robôs em ação em plena luz do dia; e era a primeiríssima vez que Farn zem Marur estava se defrontando com elas. Russell sentiu-se aliviado quando percebeu que o descobridor de caminhos não se deixou dominar pelo pânico, nem quando as aranhas-robôs chegaram a cinquenta passos.

- Tanto vale ficarmos de pé -, observou Russell. - Elas sabem que estamos aqui... Vamos descobrir logo se elas têm ordens ou instruções a nosso respeito.

- Sir -, disse Farn zem Marur entre dentes cerrados, - uma espada não me parece a melhor arma para enfrentar esse gênero de criaturas.

Russell olhou para a granada que estava segurando. - Não, descobridor de caminhos, mas o que eu tenho aqui pode nos ajudar. Se os

robôs tentarem atacar-nos, algumas delas precisarão de peças sobressalentes mais tarde.

Havia cinco aranhas-robôs, e cada uma carregava uma caixa com seus quatro bra-ços cheio de juntas. As caixas pareciam conter suprimentos, provavelmente para o Erewhon Hilton. Os cinco robôs chegaram a uma distância de vinte passos dos três humanos, pararam durante um instante, viraram de repente como se tivessem rece-bido instruções suplementares. Russell ficou a observá-los enquanto se apressavam em direção à barreira de névoa que estava a dois quilômetros de distância e que na luz forte do sol parecia uma muralha de gelo compacto. Estava curioso em saber se os robôs passariam diretamente pela barreira de névoa gelada ou se havia um lugar especial para entrar e sair. Teria sido uma informação útil de descobrir, mas mesmo estando decidido a voltar atrás e segui-los, viu logo que seria impossível manter a mesma velocidade. Apanhou a besta e o rolo de corda e acenou para os outros, para que voltassem a caminhar. De repente percebeu que o suor estava a lhe escorrer pelo rosto e reconheceu que estivera muito assustado.

Observou Anna e Farn e sentiu uma satisfação perversa em notar os sinais do medo em seus rostos pálidos e em seus olhos arregalados.

- Quando a gente percebe o perigo -, observou, - parece muito mais difícil de aguentar quando nada acontece.- Deu uma gargalhada. - Parece, pelo menos, que não seremos castigados prematuramente por evadir-nos da prisão... Vamos até aquela torre para descobrir o que é afinal.

Voltaram a caminhar em silêncio, cada um deles preocupado com suas próprias dúvidas e angústias. De vez em quando Anna chegava perto de Russell e caminhava por um trecho segurando a mão dele, como para se certificar de sua presença ou para se reconfortar e receber mais forças através desse simples contato.

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Russell calculava que estavam terminando a primeira metade do percurso entre o rio e a coluna quando viram as “fadas” . Não conseguiam ainda distinguir qualquer detalhe da coluna ou da bolha verde além do que já tinha visto, mas seu tamanho enorme, a maneira com que dominava completamente a paisagem ao redor, deixava-os deprimidos e ao mesmo tempo excitados. Já dava para ver que as formas em vol-ta da base eram prédios de alguma espécie. Esse detalhe aumentou a esperança e ao mesmo tempo o medo de Russell que finalmente encontrariam a raça que era res-ponsável pela remoção que todos sofreram, de mundos que agora estavam muito distantes.

Farn zem Marur percebeu as “fadas” - na realidade, ele chamava aquilo de “demô-nios” - e ficou horrorizado demais para poder falar. Limitou-se a indicá-las com a mão trêmula.

As “fadas” que eram nove ou dez, estavam voando rapidamente a uma altura de cem metros. Pareciam se dirigir para a bolha verde, emitindo um curioso zunido bai-xo e persistente. Russell lembrou-se de um pião com assovio do qual se orgulhara nos dias de sua alegre infância.

Não houve tempo de observar e formar uma opinião, porque as “fadas” desapare-ceram de repente. Estavam em pleno voo e sumiram, como se alguém, à distância, tivesse de repente desligado um interruptor.

Russell esfregou os olhos, piscou e sentiu seus joelhos amolecendo. Arrependeu-se amargamente não ter trazido uma garrafa de conhaque.

- Você as viu?- perguntou a Anna, mas já sabia a resposta antes dela falar.- Eu vi.- A voz dela estava trêmula. - Eu vi... Russell. Russell, quero voltar para

trás.- A voz se fez estridula. - Por favor, leve-me de volta para perto de nossos ami-gos. Por favor, por favor, leve-me de volta! Se continuarmos em frente vamos todos ficar loucos... Vamos morrer e depois...

Russell deu-lhe um bofetão e a torrente de palavras estancou. Anna controlou-se. - Obrigada -, disse simplesmente. Quando ficou um pouco mais calma disse com

um leve sorriso: - Estou me lembrando que uma mulher russa também só é mulher.- Eu a machuquei?- Só o necessário. Russell virou-se para Farn zem Marur. - Descobridor de caminhos, vimos o que vimos. Você quer continuar apesar de ser

possível vermos coisas mais estranhas ainda?A voz de Farn zem Marur não era muito firme. - É meu desejo e meu dever seguir o Sir Russell Grahame, para não ser desonrado

perante o senhor de meu clã e perante mim mesmo.- Então, vamos. É possível que mais adiante encontremos a resposta das coisas

misteriosas que vimos.- Sir, não eram demônios?- Não, Farn, não eram demônios.- E também não eram fadas -, disse Anna. - Lembrei-me de algo... lembrei-me de

grandes libélulas... É possível que sejam somente grandes insetos.- Insetos que podem desaparecer de repente -, comentou Russell seco. - Agora

entendo porque Paul Redman pensou que fossem fadas. As asas brilhantes, os cabe-los dourados...

Anna riu, meia trêmula. - Não eram fadas. Não tinham varinhas de condão. Mas tive a impressão que ti-

nham quatro pernas.Quando o sol já andava alto no céu chegaram perto do primeiro grupo de constru-

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ções que se encontravam a mais ou menos um quilômetro da grande coluna. Eram construções baixas, sem janelas, em forma de iglu, feitas aparentemente de um plástico parecido ao dos “caixões” de onde Russell e os outros saíram em seu primei-ro dia em Erewhon.

Aproximaram-se com cuidado da primeira construção. Estavam ouvindo um zunido rítmico, como o que sai de maquinários muito poderosas. Perceberam a vibração pri-meiro nas solas dos sapatos, mas quando se aproximaram tiveram a impressão que o ar em volta estava como carregado de grandes impulsos de energia.

Não estavam muito animados, mas nem que o quisessem, não tiveram a possibili-dade de investigar a fonte da vibração. Protuberâncias parecidas com túneis, com a altura de um metro e largura de um metro, e que deviam servir de acesso, estavam fechadas. As portas eram metálicas e não se via nenhum meio para abri-las.

O próximo grupo de construções, de tamanho e forma muito parecidas, estava, porém aberto. Russell deixou seus companheiros do lado de fora e entrou no primei-ro, viu que era uma espécie de armazém. Havia prateleiras baixas e compridas, car-regadas de forma organizada de objetos de metal, plástico e cerâmica. Alguns des-ses objetos pareciam partes sobressalentes de alguma máquina, enquanto outros pa-reciam vasilhas. Examinou as prateleiras, mas não entendeu nada.

No segundo prédio, cuja porta estava aberta, descobriu um laboratório ou oficina em plena operação, sob o controle de aranhas-robôs. Russell viu que sua presença não passara despercebida, mas elas continuaram ignorando-o, indo e vindo no cum-primento de suas tarefas sem ligar a mínima. Ele ficou por algum tempo, tentando adivinhar o que estavam fazendo. Mas seus movimentos e o equipamento que esta-vam usando não faziam sentido algum.

Finalmente, quando ouviu a voz angustiada de Anna chamando-o, saiu para con-tar-lhe o que tinha visto. Mas foi somente quando tentou explicar o interior do prédio a Farn zem Marur, que percebeu não ter visto nenhuma fonte de luz. Assim mesmo, tudo estava iluminado e claramente visível, como se toda a estrutura fosse feita de vidro transparente e os iglus iluminados pela luz do dia.

O tempo estava passando e o sol já tinha transposto seu ponto mais alto. Russell começou a ficar impaciente para chegar perto da coluna com a grande bolha verde e translúcida no topo, enorme e impressionante, e ao mesmo tempo tão incorpórea que parecia a ponto de levantar voo com a primeira brisa. Antes porém de alcançar a coluna, viram mais um grupo de construções completamente diferentes das primei-ras. Eram cinco ao todo, cônicas e parecendo feitas de pedra ou de concreto. Tinham uma altura de aproximadamente trinta metros, com pequenas aberturas em V nas paredes perto da base. Russell rastejou através de uma delas - pois não era suficien-temente grande para deixá-lo passar ereto - e viu que o interior estava na penumbra. Quando seus olhos começaram a distinguir, viu que não havia mais nada do que uma série de varas de plástico, cravadas horizontalmente nas paredes, em ângulo reto e paralelas ao chão. Se todas as varas, que tinham um diâmetro de dez ou doze centí-metros, tivessem um comprimento maior, iam se encontrar no centro do prédio, como os raios de uma roda, cujo aro seria formado pela parede. Mas cada vara só ti -nha um comprimento de quatro ou cinco metros... E havia muitas. Demais, para po-der contá-las...

Isso também chamava-lhe algo à memória, mas não conseguiu se lembrar de que, até que saiu mais uma vez para fora, à luz do sol, e contou a Anna e Farn zem Marur o que vira.

Foi então que se lembrou. Aquelas varas pareciam poleiros num galinheiro. Não sabia se só estava imaginando a coisa, mas pareceu-lhe ter visto também traços de

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excrementos de cheiro adocicado no chão. Refletindo, sentiu que tivera a estranha consciência de uma presença recente, mas afastou o pensamento, achando que era muito fantasista - possivelmente estava sugestionado pelo fato das varas se parece-rem com poleiros.

Finalmente, chegaram à base da grande coluna que se erguia até uma altura verti-ginosa no céu, sustentando aquela enorme inflorescência surrealística e verde que lançava uma estranha penumbra sobre o terreno em volta. Russell passou em rese-nha os acontecimentos daquela manhã e percebeu duas coisas. A primeira era que, fora uma breve aparição das “fadas” ou “demônios”, o que fossem, até aquele ins-tante não tinham encontrado uma única criatura viva. A segunda era que em todas as tangíveis provas de civilização vistas até aquele momento não era, por enquanto, possível encontrar sentido algum.

Estava desanimado. Já não sentia mais medo algum, estava simplesmente desani-mado. Não sabia o que realmente tinha esperado encontrar. Com certeza, não espe-rara encontrar indiferença e vazio. Estava começando a pensar que teriam que voltar ao barco sem ter descoberto nada de interessante que pudesse lhes oferecer a opor-tunidade de estabelecer contato com seus sequestradores, ou que pudesse explicar, de uma forma qualquer, o mistério da situação em que se achavam.

A coluna e a bolha eram maciças, silenciosas, imperscrutáveis. Tinham que ser algo mais que um monstruoso e estranho cenotáfio, Russell pensou com amargura. Seria mesmo uma brincadeira de muito mau gosto se tivessem chegado até aqui só para encontrar um vasto monumento aos mortos de uma raça desconhecida!

Mas o que significariam nesse caso os armazéns, as aranhas-robôs e os poleiros? Percebeu que estava com enxaqueca e também muito cansado. Olhou para Anna e Farn zem Marur. Seus rostos também estavam marcados pelo cansaço e a decepção.

- Não estamos chegando a lugar algum -, disse. - Não conseguimos descobrir nada. Acho que talvez seria melhor comermos alguma coisa e tentarmos voltar para o barco antes do crepúsculo, se isso for possível. Chegando lá, estaremos precisando de uma boa noite de sono.

Naquele instante, enquanto estavam se virando para ir embora, ouviram um vio-lento trovejar à distância.

Em seguida, uma voz que parecia encher o mundo veio rolando pelo céu e falou com eles.

- Saudações!- falou a voz. - Saudações dos Vruvyir aos seus filhos!De repente, tudo em volta deles se transformou em luz e em movimento e o ar fi-

cou repleto de asas iridescentes.

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Russell compreendeu, de forma nebulosa, que os Vruvyir não eram fadas e nem demônios e nem libélulas. Eram gente. Tinham corpos flexíveis, como de serpentes, com ventosas em suas caudas, que costumavam firmar no chão, nos poleiros, ou em qualquer outra parte em que quisessem se apoiar. Tinham ainda dois pares de braci-nhos curtos, dois pares de asas transparentes e brilhantes e lustrosas gavinhas dou-radas, que caíam farta e desordenadamente em seus rostos. E os rostos se pareciam de forma esquisita aos de solenes cavalos marinhos.

Apesar disso eram gente.Eram gente, pois tinham uma sociedade e uma cultura - e também uma ciência e

uma tecnologia que as criaturas simples que constituíam a humanidade não poderi-am sonhar em alcançar. Mas eram gente, sobretudo porque tinham uma linguagem e o dom de conhecer todos os idiomas. Por consequência, estava claro que era gente formidável.

Russell não sentiu medo nenhum. Sentiu-se cheio de um enorme respeito.Pareciam ter-se materializado no ar ao redor deles. Agora estavam pousados em

volta da base da coluna, apoiados em suas caudas, imóveis, de vez em quando agi-tando aquelas asas maravilhosas e olhando com serena ternura para as três criaturas humanas que as estavam defrontando.

Farn zem Marur encarava-os com olhos arregalados num rosto cinzento e a espada na mão. Anna segurava sua besta com mãos trêmulas. Russell olhou para a granada em suas próprias mãos, sorriu e colocou-a no chão.

A voz que parecia encher o mundo veio mais uma vez rolando pelo céu e falou no-vamente. Russell olhou para os Vruvyir. Os rostos pareciam máscaras, os lábios do cavalo-marinho estavam imóveis. Assim mesmo a voz estava falando num inglês im-pecável, e imaginou que também estivesse falando russo impecável e Gren Li impe-cável - e a voz era real. O som parecia sacudir a própria terra em que estavam pisan-do.

- Os Vruvyir saudaram seus filhos e agora perguntam: Por que vieram para esse lugar?

Russell passou a língua nos lábios. Os rostos sem expressão e a voz que parecia vir de toda parte o enervavam. Quando falou, sua própria voz parecia um murmúrio. Não conseguia ouvir a si mesmo, mas estava convencido de que todas aquelas estra-nhas criaturas o estavam ouvindo perfeitamente.

- Porque existem muitas coisas que desejamos saber. Porque precisamos com-preender.

Uma gargalhada rolou pelo céu. - Crianças! Crianças! Vocês precisam compreen-der?

- Sim, nós precisamos compreender -, afirmou Russell. - Precisamos saber porque fomos tirados de nossos respectivos mundos. Precisamos saber porque fomos presos atrás de uma barreira de névoa. Precisamos saber que futuro pode haver para nós

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num mundo que não é o nosso.Uma nova gargalhada rolou pelo céu. - Crianças! O ratinho em sua gaiola precisa saber o propósito do cientista? A mi-

nhoca precisa compreender o equilíbrio ecológico? A ameba precisa saber a respeito da divisão das células?

Russell sentiu os olhos arderem pelas lágrimas e percebeu quando começaram a rolar pelas faces. De maneira absurda, sua mente estava muito longe. Estava ator-mentado por imagens. Lembrou-se de Absumes Marur estabelecendo o vínculo. Lem-brou-se de Tore Norstedt construindo o barco. Lembrou-se de Ireg dando-lhe seu machado de pedra de presente. Como alguém poderia comparar pessoas como essas a ratinhos?

- Nós não somos ratinhos, minhocas e amebas -, berrou. - E não somos crianças. É possível que nossa sabedoria e nossos feitos sejam pouca coisa, comparados com os seus. Mas temos orgulho, temos dignidade, temos curiosidade. Sabemos o que é a amizade, e não nos falta coragem. Vocês podem nos destruir, mas não podem nos derrotar.

- Bem falado, Sir -, murmurou Farn zem Marur. - É um privilégio para mim morrer em sua companhia. Basta uma palavra sua e minha espada responderá.

- Russell, murmurou Anna. - Estou feliz por termos tido o tempo de nos conhecer-mos. Valeu a pena fazer essa viagem.

A gargalhada voltou a rolar pelo céu. - Nós somos os Vruvyir. Vocês são nossos filhos - e vocês nos agradam muito.Russell sentiu-se cheio de fúria. Os Vruvyir estavam brincando com suas vítimas.

Atrás daqueles rostos inexpressivos de cavalos marinhos percebeu a gozação - esta-vam se divertindo à custa deles, por alguma extraordinária e esquisita brincadeira. Estava com vontade de quebrar algo, de apagar a ideia do divertimento em seus cé-rebros. Olhou para a granada a seus pés. Tocou o isqueiro no bolso.

- Então vocês são a raça dos dominadores! - berrou. - E nós somos os bárbaros que vocês atormentam por divertimento! Pois a brincadeira acabou. Nosso senso de humor é muito diferente. Vamos ver quem é que vai se divertir agora!

Fez um sinal a Anna e Farn zem Marur. Em seguida fez um gesto para apanhar a granada.

- Parado!- trovejou a voz. - Crianças, não se destruam a si mesmas! Vocês vieram para compreender. Assim seja. Mas o que vai acontecer se vocês não forem capazes de arcar com o peso do conhecimento?

Quando a voz falou em tom de mando Russell descobriu que não podia mexer seu braço, seu corpo ou suas pernas. Teve a impressão de estar dentro de um invisível bloco de gelo. Com muita dificuldade virou a cabeça - a única parte que podia mexer - e olhou para seus companheiros. Farn e Anna também estavam rígidos e imóveis. Sabia que seu próprio olhar estava idêntico ao deles: a estupefação e o choque, mis-turados com uma estranha resignação.

Virou de novo a cabeça e olhou mais uma vez o grupo dos Vruvyir. Enquanto res-pondia, percebeu que não havia mais de cinquenta daquelas estranhas criaturas. Algo continuava a voltar à sua memória, algo que... Afastou o pensamento insistente por achá-lo sem importância.

- Somos nós que temos que decidir se poderemos arcar com o peso do que vocês chamam de conhecimento -, ele disse calmo. - Vocês podem nos destruir, como eu já disse. Parece até que a tarefa será fácil, porque somos poucos e vocês são muitos. Vocês também tem poderes que nós nunca tivemos. Mas enquanto estivermos vivos, pretendemos exercer o direito de pensar, o direito de investigar e o direito de desco-

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brir a verdadeira natureza da situação em que estamos.- Palavras valentes!- disse a voz que enchia o céu. - Palavras cheias de soberba,

pronunciadas com o orgulho que nasce da ignorância. O animal carnívoro domina até encontrar o caçador, o caçador domina até encontrar o guerreiro, e o guerreiro domi-na até se defrontar com outro guerreiro mais poderoso... Assim é a vida. Crianças, vocês andam na floresta, mas não conhecem os perigos da floresta. Nós, os Vruvyir, dizemos a vocês: o conhecimento pode destruir, a compreensão pode destruir. Vocês ainda querem conhecer e compreender?

Russell esperou um instante e depois disse: - Sabemos o que significa destruição. Sabemos que é uma parte da vida... Mas é

melhor ser destruído no limite do desconhecido do que viver numa prisão feita de ig-norância e medo.

Dessa vez a gargalhada foi mais suave. Era possível que nos olhos audaciosamente colocados naqueles solenes rostos de cavalos-marinhos houvesse uma nova expres-são? Era compaixão?

Russell ficou a olhá-los e sentiu medo.A voz continuou a trovejar. - Minhas crianças, meus filhos, ouçam o que eu vou dizer e que vocês poderão

compreender só vagamente, se é que conseguirão... Pensem no tempo. Mas não me-çam o tempo num sentido pessoal, porque vocês são como as borboletas que vivem somente durante uma breve estação. Não pensem no tempo biológico, porque a vida, a simples vida, é passageira. Não pensem no tempo geológico, porque até a existência das rochas nada significa quando comparada à fusão das estrelas. Pensem no tempo cósmico. Pensem no nascimento da galáxia, nos grandes rodopios dos ga-ses que se transformaram em mil, milhões de sóis. Foi num tempo assim, no tempo que não é tempo, na demorada e poeirenta criação galáctica que a vida absoluta nasceu... Não começou em nenhum oceano planetário primitivo. Começou a se mani-festar como uma chama, nascida dos filhos do fogo, de poderio incandescente, cheio de promessa... As estrelas vivem, meus filhos. E às vezes sonham... e às vezes dão à luz...

Quando o mundo que vocês chamam Terra ainda não era nada, nem um caroço no ventre de uma estrela que era jovem demais para sonhar, já existiam milhões de pla-netas que envelheciam, nascidos de fogos mais rápidos e mais brilhantes. Os Vruvyir originais não nasceram de um desses planetas, meus filhos. Também não nasceram dentro do esquema normal do tempo. Eles nasceram de uma estrela que estava para morrer, consolidaram-se do fogo e tomaram forma em vórtices de energia pura. Eram pássaros de fogo sensitivos, o produto direto de uma procriação estelar. Eles dançavam e viviam, mudando de forma em continuação, movidos só pela alegria de produzir novas formas. Finalmente soltaram-se da estrela-mãe, lançando-se contra as trevas e o frio e contra a vagarosa erosão da entropia, que é o destino de todas as coisas nascidas do fogo.

Chegaram em um planeta onde começaram a sofrer com paciência, passando fome de calor para se acostumar à temperaturas incrivelmente baixas, assumiram formas permanentes e aprenderam os segredos da simples vida biológica. Estes, que foram os grandes, os nossos antepassados, congelaram-se propositalmente dentro do demorado ciclo da existência planetária até compreenderem que a forma escolhi-da estava à altura da tarefa a que eles se propunham. Qual era essa tarefa, meus fi-lhos? Eles seriam a fonte da vida à baixa temperatura.

A voz silenciou durante alguns instantes - e foi o suficiente para Russell perceber que sua cabeça estava doendo, seu cérebro andava à roda e sua imaginação estava

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paralisada. Olhou em direção de Anna. Estava pálida e desfigurada, com os olhos ar-regalados e sem expressão. Sentiu vontade de tocá-la, de consolá-la, mas não con-seguiu se mexer. Olhou para Farn zem Marur que estava rígido e como que ausente. Sentiu-se cheio de compaixão. A mente medieval de Farn zem Marur estava retroce-dendo - e talvez, dali a pouco tempo, as mentes mais sofisticadas dos dois terrestres do século vinte também chegariam a ficar entrevadas.

Sem prestar atenção; a imensa voz continuou.- A galáxia era um jardim, mas o jardim ainda não estava plantado. Os Vruvyir tra-

ziam a semente e se espalharam entre as estrelas férteis, alguns falharam em sua ta-refa e foram destruídos pelo fogo ou pelas trevas, e outros levaram movimento e pa-drões biológicos para mundos que até aquele instante permaneciam estéreis e onde a química da vida ainda não subvertera a vagarosa física da estagnação.

Meus filhos, eles chegaram em um planeta, aconteceu há dois milhões de anos, e o planeta era o terceiro planeta de uma estrela de tamanho médio. Viram que aquele mundo era desprovido de vida, mas que tinha um grande potencial. Os Vruvyir se es-tabeleceram e aceleraram o planeta. A aceleração se produziu simplesmente enquan-to eles defecavam nos oceanos ricos e despovoados. Foi assim, meus filhos, que a vida começou no planeta que vocês chamam Terra.

Os Vruvyir se afastaram e um período de tempo imensamente longo se passou. Menos de um milhão de anos-Terra atrás eles voltaram àquele minúsculo recanto do jardim. Regozijaram-se vendo que a vida estava florescendo. Ficaram muito anima-dos observando a forma de vida que estava destinada a predominar - um bípede ere-to que usava ferramentas, que estava começando a compreender a utilidade do fogo e que não receava sonhar.

Foram apanhadas amostras para serem distribuídas entre os mundos nos quais a aceleração original ainda não produzira uma forma de tamanho potencial. Essas amostras foram ali deixadas para que se desenvolvessem. Agora, neste mundo, fo-ram reunidas amostras da cultura original e também amostras das amostras, man-tendo cada uma no ambiente do seu próprio microcosmo familiar, para que os Vruvyir possam observar suas crianças e cogitar sobre seus destinos, e para que as crianças possam se conhecer umas às outras... pois por esse conhecimento elas po-derão forjar seus próprios destinos ... De fato, como costuma acontecer entre crian-ças, cada uma se desenvolveu de maneira e medida diferente. Para algumas já co-meçou a chegar a alvorada do conhecimento, enquanto outras ainda vivem à espera do anúncio da claridade... Dessa forma, os Vruvyir concedem o fardo do conheci-mento. Façam dele o que quiserem.

Fez-se o silêncio.O silêncio era tão absoluto que parecia mais clamoroso que a voz que rolara pelos

céus.Russell olhou para as fileiras dos Vruvyir. Suas asas estavam imóveis, seus rostos

de cavalos-marinhos desprovidos de expressão. Não eram tão numerosos como Rus-sell pensava - talvez só quarenta. Pareciam muitos, mas na realidade seu número era reduzido.

Havia algo nos recessos de sua mente. Era algo importante. Se ao menos tivesse a possibilidade de pensar... Se pelo menos suas faculdades não fossem embotadas e inutilizadas pelo impacto daquele encontro fantástico e daquela revelação esmagado-ra!

De repente, de forma irracional e intuitiva, Russell teve um rasgo de lucidez. Os poleiros vazios, a cidade silenciosa, a insignificância e a majestade... Tudo indicava uma única e desvairada solução.

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Olhou para Anna e Farn que estavam esgotados pela estupefação, traumatizados pelo conhecimento. Pensou em todos os seus companheiros do zoológico, arrastados para esse mundo e mantidos prisioneiros por um capricho dos Vruvyir, a raça domi-nante, a fonte da vida, os senhores da galáxia.

Arriscou-se e jogou.Era uma ideia louca. Mas, afinal, o que é que poderia ser definido como são, den-

tro daquele pesadelo? Só o absurdo poderia ter alguma ligação com a realidade.Então falou.- Vocês disseram que somos seus filhos. Se há alguma verdade nessa afirmação -

e porquanto ela pareça estranha, ela tem o som da verdade - vocês devem com-preender que crianças às vezes tropeçam sem querer na verdade e encontram a res-posta a perguntas que não foram feitas.

Ouviu-se mais uma vez aquela imensa gargalhada. A voz voltou a encher o céu.- Qual é a resposta à pergunta que não foi feita?Russell olhou aqueles rostos inexpressivos que estavam em sua frente.Respirou fundo. - Vocês nos chamam de amostras - e vocês nos trouxeram para cá, para que nos

encontrássemos, porque o tempo está se esgotando. Vimos sua cidade. É uma cida-de de fantasmas... Os Vruvyir estão morrendo.

Era uma suposição louca, baseada em muitas coisas: a falta de qualquer contato anterior, o número de “poleiros” naquele estranho galinheiro, a sensação de vazio originada pela paisagem que cercava a cidade...

A gargalhada pareceu sacudir o céu.Mais uma vez ouviu-se a voz dos Vruvyir, a voz do mundo.- Uma suposição válida, meu filho. Uma premissa interessante - mas fundamental-

mente errada. Os Vruvyir não estão morrendo. Eles já morreram.

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- Olhem para cima, meus filhos -, a voz continuou. - Olhem para a última Esfera da Criação dos mundos conhecidos. Ela não é maravilhosa?

Havia um torvelinho na mente de Russell. Não tinha mais consciência da presença de Anna e Farn zem Marur. Era como se nunca tivessem existido - ou como se não passassem de espectros de um sonho quase esquecido. Estava completamente só num mundo estranho. Estava sozinho com os cavalos-marinhos, com as fadas, os de-mônios, as libélulas e o segredo de todas as eras. Compreendia que se encontrava às raias da loucura, e a consciência disso proporcionava-lhe uma calma anormal. Era como se alguém tivesse mergulhado seu cérebro em água gelada. Como se alguém - ou alguma coisa - tivesse se apoderado do controle de sua vontade, de suas emo-ções, de seu raciocínio, de sua capacidade de aceitar e acreditar. Era como se al-guém o estivesse segurando para não deixá-lo cair.

Olhou para a grande coluna, lisa, hipnótica, imponente, maravilhosa. Olhou para a enorme bolha verde e translúcida mais acima, para a Esfera da Criação que parecia lançar uma penumbra esverdeada sobre o mundo inteiro.

- É maravilhosa -, sussurrou Russell, sem saber que estava sussurrando. - Acredito que é a mais maravilhosa entre todas as coisas.

- Esta é a última das grandes máquinas -, continuou a voz, - e ela é o último refú-gio dos Vruvyir. Quando a cinética falhar, os espectros dos espectros desaparecerão aos poucos, e os Vruvyir somente poderão viver dentro daqueles que virão em segui-da... Receiem, meus filhos, mas não receiem demais. O conhecimento é um fardo muito pesado.

Russell fez um esforço para controlar seus pensamentos desordenados. - Você diz que os Vruvyir estão mortos. Mas nós os vimos - ou pelo menos vimos

os que sobraram. Eles - vocês - estão falando conosco, explicando-nos a mais estra-nha história da criação. Vocês se apresentam como deuses, mas também afirmam que os deuses estão mortos.

Russell ouviu mais uma vez a imensa gargalhada, mas percebeu que havia nela uma infinita tristeza.

- Meu filho, somos fantasmas que falam com outros fantasmas. Você chegou até aqui. Há só mais um pouco de caminho percorrer. O preço desse caminho será pago em tempo biológico. Você está disposto a pagar esse preço?

- Nós queremos saber -, gritou Russell num tom quase histérico. - Queremos sa-ber. Suportamos muito, arriscamos a morte para descobrir porque estamos aqui e para saber como são vocês, nossos guardiões... Queremos saber! De que forma che-gamos aqui? Por que você diz que nós também somos fantasmas?

- Crianças, vocês ousaram fazer conjeturas, mas suas conjeturas são interessantes. As respostas que vocês estão procurando estão na Esfera da Criação. Vá buscá-las e fiquem satisfeitos.

Por um instante e de súbito o mundo escureceu.

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Em seguida a escuridão começou a regredir.Cedeu lugar a uma luz verde e suave que se afirmou em meio a um zunido macio

de energias. A claridade se manifestou dentro da Esfera da Criação.Russell estava caindo, ou flutuando, ou nadando. Não tinha mais senso de direção,

não tinha noção de tempo e só lhe sobrava muito pouca consciência de sua identida-de. Estava num oceano verde, ou numa nuvem verde, ou num vácuo verde. Não sa-bia se estava só ou se havia mais alguém. Só tinha certeza de estar existindo.

Não conseguia ver suas próprias mãos, seus braços, seu corpo. Não conseguia vis-lumbrar seus companheiros. Só tinha certeza de que estava existindo.

A luz verde aumentou de intensidade.Tornou-se uma luz azul.O azul tornou-se mais forte.Transformou-se em escuridão negra.Havia estrelas - e eram estrelas conhecidas. Eram as constelações visíveis da Ter-

ra.Em seguida as constelações ficaram obliteradas por um enorme disco, que parecia

preto na sombra, mas era fulgurante no sol - e que deslizou silenciosamente no es-paço.

Russell estava no interior do disco que não era um disco, mas uma nave espacial de dimensões extraordinárias, cheia de enormes e estranhos compartimentos. Estava numa câmara em que esquisitas máquinas pareciam produzir um zunido modulado e melancolicamente musical. Nessa câmara aranhas-robôs estavam se movimentando atarefadas, parecendo ignorar sua presença invisível e desprovida de substância.

De repente o chão da câmara se transformou em vidro - ou pelo menos em algo parecido com vidro. Lá embaixo, imóvel e colorido como um mapa em relevo esta-vam a Europa setentrional, o Mar do Norte e as ilhas britânicas.

O disco caiu como uma pedra. O Mar do Norte pareceu subir para engoli-lo, mas a fantástica precipitação parou sem nenhum choque ou vibração. Cem metros abaixo do chão transparente havia um avião de passageiros que parecia estar suspenso do disco por fios invisíveis.

O mar parecia estar escorrendo e o avião parecia estar parado. As velocidades es-tavam sincronizadas.

O chão transparente se abriu sem barulho nenhum. As aranhas-robôs arrastaram um tubo e p colocaram em sua posição sobre uma armação que se parecia, de ma-neira esquisita, com um pequeno telescópio astronômico. O tubo foi ajustado sobre essa armação até que ficou apontando diretamente para o avião.

Russel reconheceu o avião.Era o avião de passageiros que fazia o serviço entre Estocolmo e Londres.Uma irradiação esverdeada em forma de tubo, que parecia tão sólida quanto um

tubo de cristal, desceu em direção ao avião, ficou dançando em volta dele e acabou por envolvê-lo.

O avião ficou preso dentro de uma bolha verde.A bolha cresceu, aumentou seu brilho e cresceu mais ainda. A esfera transformou-

se numa espécie de ovo. O ovo começou a ficar apertado ao centro, como se tivesse uma cintura. A cintura continuou se afinando. Então se produziram duas bolhas translúcidas que se tocavam, uma colocada em cima da outra. Estranhas bolhas for-madas acima do mundo dos homens.

Na bolha inferior estava aprisionado o avião, imóvel.Na bolha superior havia... um vórtice de luzes, um torvelinho de energia, uma dan-

ça satânica de sombras, um estremecimento de linhas de contorno, uma ondulação

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de formas, um endurecimento de matérias.Um ato de recriação.Agora havia dois aviões idênticos contidos em duas grandes bolhas verdes. As ara-

nhas-robôs começaram então a descer lentamente, com propulsores a jato contidos em seus pseudo-membros, escrevendo breves mensagens de vapor no céu, e se co-locaram sobre o invólucro do segundo avião. Estavam rebocando dezesseis caixas de plástico verde que se assemelhavam a linguiças surrealistas. As caixas eram do ta-manho de um homem.

As aranhas-robôs abriram a porta do avião. Duas entraram. Após um instante co-meçaram a apresentar à porta bonecas de tamanho humano, rígidas e imóveis. As bonecas foram colocadas nas caixas com muito cuidado. As caixas, cada uma delas acompanhada por uma aranha-robô, foram retiradas da bolha verde e levadas para o grande disco que estava suspenso sobre o mundo.

Dezesseis caixas e dezesseis aranhas-robôs entraram no disco. Nesse instante a bolha superior explodiu, implodiu, desapareceu. Não havia mais nenhum segundo avião. Mais nada.

Então a bolha inferior estourou suavemente.O avião que fazia serviço entre Estocolmo e Londres continuou normalmente seu

vooA abertura do chão da grande nave espacial se fechou silenciosamente e o disco

subiu em direção às estrelas.As estrelas acabaram se dissolvendo e Russell mais uma vez se encontrou perdido

dentro do imenso espaço da Esfera da Criação. Não estava vivo e não estava morto... Não passava de um pensamento verde numa penumbra verde - um fio de consciên-cia no profundo e impossível silêncio da não-essência.

O fio estremeceu e o movimento se revestiu de um murmúrio...- É assim que os espectros criam outros espectros. Foi assim que conseguimos as

cópias. O que aconteceu com o avião, que de Estocolmo estava se dirigindo a Lon-dres, também aconteceu com a caravana da pimenta vermelha que estava saindo do Reino de Ullos para ir ao Reino Superior e Inferior de Gren Li. O mesmo procedimen-to foi aplicado no caso da colônia daqueles que vocês chamam de o Povo do Rio. Eles, como seus companheiros, foram englobados em Esferas de Criação projetadas. As cópias foram feitas enquanto os originais não percebiam nada do que estava acontecendo. As cópias foram confeccionadas molécula por molécula, batida de cora-ção por batida de coração, pensamento por pensamento... Por isso, Russell Graha-me, Membro do Parlamento eleito em Middleport North, voltou para Londres e pediu demissão do Partido Trabalhista Parlamentar. Anna Markova, que de vez em quando desfruta do privilégio de viajar de Moscou para Londres, continua publicando seus ar-tigos na imprensa soviética. E Farn zem Marur continua servindo a Absu mes Marur, gonfaloneiro das torres ocidentais numa terra distante, em nome da Rainha branca e da Rainha preta...

- O conhecimento é um fardo muito pesado, não é mesmo?- continuou a voz mur-murante. - Meu filho, como você vai encarar o fato que você e seus companheiros não passam de cópias daqueles que nunca suspeitaram que seus corpos e suas men-tes estavam sendo copiados para ir povoar um mundo desconhecido? Russel Graha-me está em um outro lugar, Anna Markova está em um outro lugar, Farn zem Marur está em um outro lugar. Todos que vivem atrás da barreira de névoa são os duplos de outros que continuam existindo num outro lugar. Esses duplos só têm uma modifi-cação mínima na área que diz respeito à fala. São duplos que recebem suprimentos duplicados, que têm animais duplicados e moradias duplicadas. Você poderá dizer

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agora que os Vruvyir arrancaram vocês de seus próprios mundos? Está demonstrado que eles nunca fizeram isso. Eles criaram vocês. E por isso, com certeza, podem con-siderar vocês como suas propriedades.

Seguiu-se o silêncio, um silêncio verde. O tempo parecia ter sumido. Os minutos, as horas, os dias, os anos, os séculos, se dissolviam no oceano verde e opaco que enchia a Esfera da Criação. A criatura que sempre pensara ser Russell Grahame qua-se se dissolveu também.

Mas ainda havia, em algum lugar, algo parecido com um grito de desafio, uma va-lente ação a salvaguardar da sanidade, um surto de afirmação.

- Mas eu sou! - gritou uma voz incorpórea. - Eu sou eu mesmo! Eu existo! Eu pen-so! Eu lastimo! Eu espero! Eu não sou propriedade de ninguém! Eu sou um homem!

O murmúrio se manifestou mais uma vez: - Criança, o que é isso? É magnificência ou é loucura? Você viu o que viu.- Eu sou eu mesmo! - urrou a voz. - Deixe então que eu seja destruído por quem é

capaz de fazê-lo! Ninguém poderá me possuir!- Filho -, afirmou o murmúrio, - você realmente está vivo. Você tem permissão

para saber disso. Você está vivo e tem a capacidade de produzir novas vidas. Por essa sua faculdade, você supera os que atravessaram os anos-luz para modelar você na imagem de um homem. Os Vruvyir estão mortos. Preencheram seu papel desde a alvorada da criação. Mas agora estão mortos. Você é a imagem viva de um homem e pode criar. Eles não passam de espectros de outros espectros, duplicados da mesma forma em que você o foi - porém não do original, mas pela imagem da imagem de uma imagem, durante épocas sem fim. Eles chegam a você do passado. Sua magnifi-cência e suas capacidades estão quase que esgotadas. Você e sua espécie - verda-deiros filhos deles - são um ato de fé, uma oferenda ao futuro... Filho, amanhã, ou no dia seguinte, ou no ano seguinte, ou no século seguinte, ou no milênio seguinte, a mnemônica falhará, a cinética falhará e a última Esfera da Criação não passará de uma lenda nas mentes das crianças. Deixe que os filhos dos filhos de seus filhos vi-vam para provar que os Vruvyir, lançando-se para longe de sua estrela original, não cometeram um ato inútil... Descanse agora, porque o fardo é muito pesado. Descan-se, e se prepare para pagar o preço por ter insistido em querer mergulhar nas pro-fundezas.

A atmosfera verde tremeu, tornou-se mais verde. Nada mais existia, dentro de toda a eternidade, a não ser a vertigem do cansaço absoluto. Nada mais existia, den-tro de toda a eternidade, a não ser o mais completo e negro esquecimento.

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30

A luz do dia foi avançando vagarosamente pela grande savana verde e revelou dois caixões plásticos plantados no meio da rua, entre o hotel e o supermercado. Um guerreiro da Idade da Pedra, vestido de forma absurda com um casaco de peles de animais, calças de tecido rústico e sandálias trançadas, com um machado de aço em uma das mãos e meia dúzia de frangos depenados seguros pelo pescoço e jogados por cima do ombro, saiu com passo decidido da savana e começou a caminhar pela rua em direção ao Erewhon Hilton.

Reparou nos caixões e parou.Parou no mesmo instante em que os ocupantes dos caixões empurravam as tam-

pas para cima.Russell saiu primeiro. Olhou em volta, piscou, cambaleou e levou a mão à cabeça.

Foi então que ouviu o gemido de Anna que ainda estava deitada a seus pés. Incli-nou-se e ajudou-a a se levantar. Abraçaram-se por um instante, apertando um ao outro, sem dizer uma única palavra - pois tinham coisas demais a dizer.

Olharam estupefatos para o hotel silencioso e finalmente repararam no guerreiro da Idade da Pedra.

O guerreiro soltou um grito, largou o machado e os frangos e correu para perto deles. Enquanto corria ouviu mais um grito que vinha do Erewhon Hilton.

- Russell, meu amigo! - disse Ireg. - Anna! Quanto tempo! Vocês vivem! Isso bas-ta! Meu coração está transbordando. - Passou a abraçá-los.

Russell e Anna ficaram a olhá-lo, desnorteados. Durante o último encontro o voca-bulário de Ireg não superava o de um selvagem muito primitivo.

- Quanto tempo?- perguntou ansiosamente Russell.Ireg abriu a boca num largo sorriso. - Tempo bastante para eu aprender muitas coisas. Minha cabeça está zunindo de

tanto aprender.Antes que Russell conseguisse insistir para que ele se explicasse melhor, o pessoal

começou a sair correndo do Erewhon Hilton. Eram rostos conhecidos. Vozes conheci-das. Assim mesmo...

Assim mesmo havia uma diferença.Estavam mais magros e mais vigorosos. Seus rostos estavam enrugados pelo sol e

pelo vento. Seus corpos eram musculosos pelo exercício e eretos pela confiança.Mas a maior diferença estava na idade.Os cabelos de John Howard eram cinza-prateados. Marion Redman estava na últi-

ma fase da gravidez. Robert Hyman tinha perdido um braço e o coto estava cicatriza-do. Selene Bergere estava carregando um neném no colo. Mohan das Gupta estava cego. Todos os outros apresentavam mudanças, nem que fossem mudanças sutis.

Russell passou a língua sobre os lábios. Olhou para Anna. Ela estava cambaleando. Estendeu o braço para sustentá-la.

Em volta deles as pessoas estavam falando, rindo, chorando, perguntando. Ele não

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ouvia nada, só o pensamento que rolava em seu cérebro e que parecia continuar tro-vejando: - Mas só foi anteontem... só foi anteontem...

Olhou para John Howard, reparou que os lábios dele estavam se mexendo e não conseguiu se concentrar o suficiente para entender as palavras. Antes das explica-ções, antes dos apertos de mão, antes dos beijos e dos abraços, precisava de uma resposta para aquela única, terrível e urgente pergunta.

Russell olhou para John Howard e interrompeu a torrente de palavras.- Quanto tempo? Quanto tempo faz, John?A algazarra parou.- Muito tempo -, John respondeu com cuidado. - Muito, muito tempo... Pensamos

que vocês tivessem morrido.- Quanto tempo?- Tenha calma, Russell -, ele respondeu. - Você não sabe?- Por Deus, estou perguntando!- Três anos e meio; do nosso tempo. - John Howard sorriu. - E quanto foi, no seu

tempo?Mas Russell não chegou a responder porque teve que segurar Anna que estava

desmaiando.Ao mesmo tempo John estava se recuperando do choque recebido. - Vamos, minha gente -, disse em tom enérgico. - Vamos levá-los para dentro para

que possam se recuperar. Não vai demorar, e todos vamos ficar sabendo o que foi que aconteceu. E vamos tirar aqueles malditos caixões dali. Eles trazem à tona um excesso de memórias.

Russell e Anna logo se encontraram instalados em duas cômodas poltronas da sala de estar do Erewhon Hilton. O desmaio de Anna foi muito breve. A cor estava voltan-do ao seu rosto, enquanto bebia vagarosamente um copo de água.

John pediu para todo mundo se afastar da sala, com exceção de Ireg e Marion Redman, que com o passar do tempo tinha se transformado na médica oficial do gru-po. John teria preferido que Ireg saísse também, mas Ireg não se deu por entendido. Russell e Anna não eram amigos dele? Não era ele quem os vira primeiro? John Howard achou mais prudente não insistir muito frente a um guerreiro da Idade da Pedra, só parcialmente civilizado, e que pesava mais de duzentas libras.

Marion perguntou, - Você está se sentindo melhor? Já é ruim chegar aqui, dentro de um caixão uma

vez; mas chegar dessa maneira duas vezes...Lançou a ambos um olhar carregado de compaixão.- Estou bem agora -, disse Anna. - Foi uma reação muito boba. Já estou bem. É

que - Pareceu procurar a expressão apropriada. Russell apanhou a mão dela, aper-tando-a.

- Não tem pressa -, disse John Howard. - Realmente, não tem pressa. Vocês gosta-riam de um resumo dos pontos altos do que aconteceu aqui, do nosso lado? Em se-guida, quando estiverem com vontade de falar, vocês poderão contar aos poucos o que foi que aconteceu com vocês. E podemos deixar todos os detalhes para mais tar-de.

Russell respirou fundo. - Gostaríamos muito disso- . Sorriu. - Mas faço questão de não sermos os únicos a

ficar desnorteados. Acho que é mais do que justo que você saiba que nós temos a impressão de que nossa ausência demorou somente dois dias.

John olhou para Russell, boquiaberto. Russell logo se sentiu melhor. - Tome um gole de água -, sugeriu. - Tenho a impressão que você está precisando

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de um.- Touché -, disse John. - Há choques para todos. Vou tentar controlar minha curio-

sidade até que vocês tenham ouvido nossa história... Mais ou menos dez dias após sua valente partida dentro daquele barquinho, começamos a ter sérias dúvidas. Após um mês, a maioria de nós estava pensando que vocês tinham sucumbido... A propó-sito, onde está Farn? Está vivo?

Russell e Anna se entreolharam estupefatos. Russel disse: - Não sabemos. Estou porém pronto a apostar que foi entregue por pacote regis-

trado à Torre de Marur, mais ou menos da mesma maneira em que nós chegamos aqui... Espero que esteja vivo. Daqui a um pouco vou contar tudo o que aconteceu - ou pelo menos tudo que achamos que aconteceu. Você ainda tem a palavra.

- Pois não, desculpe. O que é que eu estava dizendo? Sim, acabamos por acreditar que vocês tivessem morrido. Ficamos muito tristes. Mas a vida continua. Tínhamos que fazer alguma coisa, tínhamos que fazer planos, mesmo que não fosse por outro motivo senão evitar de ficarmos todos neuróticos. Mas nossos planos não incluíam nenhuma nova tentativa de passar pela barreira de névoa, pelo menos no começo, e não até sabermos mais e sermos mais equipados... Então decidimos um plano de fortalecimento e de educação. Isso não incluía somente nós -, olhou para Ireg, - mas qualquer outro ser humano na nossa mesma situação. Sentíamos que precisávamos encontrar uma base de compreensão e de aceitação mútuas. Pareceu-nos um proje-to de valia.

- É muito mais do que isso -, Russell disse sério. - É a nossa única esperança de sobrevivência e sanidade mental.

- Você está lembrado que Janice começou a criar frangos?- perguntou John.Russell sorriu. - Como se tivesse acontecido ontem.- Quando tudo começou não tínhamos a possibilidade de sabê-lo, mas a coisa se

tornou extremamente importante. Trouxe uma revolução social e histórica.Anna interrompeu. - Frangos nunca provocaram revoluções -, observou em tom cáustico. - Precisa de

pessoas - pessoas muito especiais.- Pois nesse caso, ambos resultaram indispensáveis -, disse John. - Em três anos

nossos amigos da Idade da Pedra - virou-se para Ireg: - Você não se importa se o chamamos Povo da Idade da Pedra?

- Não se preocupe, John -, Ireg disse rindo. - Nós chamamos vocês de Povo do Ali-mento Enlatado.-

- Muito apropriado, Ireg, velho amigo -, e Russell começou a rir.- Pois bem, dentro de três anos -, continuou John, - Ireg e seu povo se transfor-

maram em granjeiros de grande sucesso. Isso acabou por modificar as atitudes e toda a economia deles. Acharam um substituto local para o trigo - é um daqueles ca-pins altos e duros. As sementes tem um paladar que lembra milho temperado com vinagre. Também descobriram uma espécie de couve brava, e algo que parece e tem o paladar de um cruzamento entre a batata e a cebola. Para encurtar a história, eles agora têm uma cultura agrícola.

- E como foi que isso aconteceu?-- Janice - essa mulher notável que merece todo o meu respeito - foi morar com

eles. Ireg e Ora vinham nos ver com bastante regularidade e, depois de algum tem-po, ela decidiu ir morar com eles, levando uma dúzia de galinhas e um galo. Num primeiro tempo foi simplesmente para demonstrar-lhes como lidar com as galinhas e produzir ovos e frangos. Ficou na colônia do rio durante quinze dias mais ou menos.

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Então voltou para cá. Mas não conseguiu se acostumar. Tinha achado sua missão na vida. Por isso, voltou para a colônia do rio; e desde aquele tempo continua lá. Ensi-nou aos homens como cultivar a terra e às mulheres como praticar a economia do-méstica. E agora, que Deus nos ajude, está ensinando a eles como ler e escrever.

- ABCDEFGHIJ -, falou Ireg muito satisfeito. - Uma vezes dois igual a dois, duas vezes dois igual a quatro, três vezes dois igual a seis, quatro vezes dois igual a oito, cinco vezes dois igual a dez. Eu tenho dez dedos e dez artelhos e isso é igual a vinte. O que é que você acha, Russell?

- Eu acho -, disse Russell muito solene, - que você, Ireg, é um grande homem.- Vi-rou-se para John: - E que tal nossos amigos da Torre de Marur?

John sorriu. - É muito mais difícil lidar com eles do que com o Povo da Idade da Pedra. O fato é

que eles tem alguma sofisticação e alguma educação, e ao mesmo tempo uma ten-dência a ficar rigidamente presos à sua própria ortodoxia. Absu parece incapaz de compreender que não somos mágicos. Graças a Deus isso não lhe é um obstáculo e sempre coopera nos empreendimentos mais importantes. Mas continua acreditando que fazemos tudo com algum truque de espelhos.

- Que empreendimentos?- Nosso projeto número um é a construção de um planador.- Um planador? - Anna ficou estupefata.- Um planador que possa acomodar um homem -, explicou John. - Pensávamos

que vocês tivessem morrido. Imaginamos que tivessem ficado congelados no centro da barreira de névoa. Calculamos então que, se era impossível atravessar a névoa, poderíamos tentar passar por cima dela. Nessa nossa prisão temos fartura de bons ventos ascendentes. A pele de pulpul é muito mais leve e mais resistente de que ma-deira compensada, quando recebe um tratamento adequado. Fizemos pequenos mo-delos em escala e mostramos na prática a Absu como funciona o princípio do mais-pesado-que-o-ar. Dessa maneira agora estamos trabalhando juntos na construção de um planador para duas pessoas. Acho que poderá ficar pronto daqui a um ou dois meses.

- E como você se propõe de levantá-lo para o ar?- Grupo de pulpuls. Sabem correr como o vento quando é necessário.Houve um breve silêncio. Russell sentia-se zonzo. Havia muitas perguntas que ele

queria fazer, e havia muitas coisas que ele queria contar.- Escute aqui -, disse John calmo. - Temos tantas coisas a contar, que vamos levar

dias até contá-las todas. Como você deve ter reparado, já começamos a inaugurar a segunda geração. Tivemos alguns incidentes: Robert perdeu o braço cortando uma árvore e Mohan quase morreu numa explosão; mas vamos continuar com isso quan-do você estiver mais descansado, e depois de você ter contado o que foi que aconte-ceu pelo seu lado.

Russell suspirou. Quantas coisas aconteceram no tempo que ele e Alma tinham perdido. Mas também aconteceram muitas coisas no tempo só por eles conhecido. Eram muitas coisas, coisas assustadoras. E ao mesmo tempo, coisas maravilhosas.

Continuava a ouvir o eco de um murmúrio: “O conhecimento é um fardo muito pe-sado, não é mesmo?” - Realmente era um fardo pesado. O fardo maior era saber que não passava de uma cópia. Seria justo partilhar esse conhecimento e talvez destruir, em seus amigos, o sentimento de individualidade, imprescindível para a sobrevivên-cia? Nem ele nem Anna tinham conseguido ainda assimilar de fato ou aceitar os co-nhecimentos recebidos. Ambos ainda estavam em estado de choque. Talvez, mais tarde, eles não mais se importariam que Anna Markova, Mark I, estava em alguma

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parte da Europa, escrevendo seus artigos, ou que Russell Grahame, Mark I, tinha abandonado a carreira política e estava, quem sabe, se acabando na bebida nas pro-víncias ou então ganhando rios de dinheiro com uma indústria.

Interrogou Anna com os olhos, perplexo. Anna respondeu ao olhar com um sorri-so. A resposta estava nos olhos dela. Sentiu, por instinto, que era a resposta certa. Sentiu, por instinto, que não poderia arcar com a responsabilidade e a injustiça de esconder esses conhecimentos dos outros.

Russell falou primeiro com Ireg. - Ireg, meu amigo, perdoe-me. Estou lhe pedindo agora de deixar-nos sozinhos. O

que eu preciso dizer, vai ser difícil de dizer até ao meu próprio povo. Qualquer dia vou contar tudo a vocês também. Mas nesse momento os pensamentos são pesados demais e não poderia encontrar as palavras apropriadas.

Ireg despediu-se com dignidade. - Russell, é bom você ter voltado para ficar conosco. Eu... eu compreendo. Janice

diz que somos filhos dela e eu sei que há coisas que as crianças não podem saber. Vamos nos encontrar breve?

- Vamos conversar muito breve.Ireg, um pouco acanhado, apertou a mão de Russell.Quando saiu, Marion perguntou: - Você tem certeza que você está querendo falar agora? Vocês ambos estão muito

abatidos.- Acho melhor falar agora -, respondeu Russell. - Mais tarde poderia ser tarde de-

mais, porque já agora estou começando a duvidar um pouco de que tudo aconteceu ... Só quero perguntar uma coisa antes de começar. Vocês teem tido ou-tros encontros com as “fadas”?

- Foram vistas, mas já faz algum tempo.- disse John. - E sempre foram vistas vo-ando. E todas as vezes que alguém repara nelas, elas desaparecem.

- Elas tem rostos iguais aos dos cavalos-marinhos -, disse Russell.- Cavalos-marinhos?- Cavalos marinhos com uma expressão muito solene.- Que espécie de criaturas são essas?- Espectros. São nossos amos. Mas também são os espectros de espectros.John Howard respirou fundo. - Você não poderia começar pelo começo?- Claro, eu poderia -, respondeu Russell. - O começo foi a barreira de névoa.Enquanto falava, sentia o cansaço desaparecer. Sabia que mais tarde voltaria do-

brado. Mas enquanto falava, sentia algo novo, sentia compaixão. Compaixão pelos Vruvyir - a raça dos dominadores condenados que saíram das estrelas para semear a vida, pagando por ela com sua própria mortalidade. Percebeu que estava começando a compreender os Vruvyir. Sentiu que estava começando a ouvir a música deles. Ou tudo não passaria de uma ilusão? Porque, afinal, agora sabia que eles mesmos não passavam de meros fantasmas.

Contou a John e Marion a respeito da experiência de passar pela névoa. Falou no instante em que pela primeira vez avistou a grande coluna e a enorme bolha verde e translúcida que era a esfera da Criação. Falou no encontro com as aranhas-robôs e da caminhada até a cidade que não passava de um complicado mausoléu. Em segui-da tentou descrever a aparição/materialização/projeção dos Vruvyir. Finalmente, atropelando as palavras, procurando as expressões mais apropriadas sem achá-las, desejando transmitir a imagem certa, tentou descrever sua própria experiência den-tro da Esfera de Criação.

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Quando terminou, Russell sentiu-se exausto. Quando terminou, John e Marion es-tavam boquiabertos. Quando terminou, Anna estava chorando.

Enfim John perguntou: - Então nós também somos só espectros?- Espectros vivos -, retrucou John. - Doppelgaengers, com a habilidade de procriar.

Nós podemos criar a realidade. Os Vruvyir não podem. Eles podem duplicar-se, mas não podem procriar. Suas energias já estão esgotadas.

- E você está me dizendo que os Vruvyir criaram a vida sobre a Terra e em seguida semearam os outros planetas?

- Foi isso que eles nos explicaram -, disse Russell encolhendo os ombros. - Não es-tou pedindo que você acredite em nós, John. Estou simplesmente contando, talvez de uma maneira um pouco confusa, o que aconteceu entre nós e os Vruvyir e o que eu assisti dentro da Esfera da Criação.

- Minha experiência pessoal foi a mesma que a de Russell -, disse Anna. - Foi um acontecimento totalmente subjetivo. Pode perfeitamente ser uma alucinação. Mas para mim, isso realmente aconteceu.

John Howard suspirou. - Isso tudo contraria frontalmente meu treinamento científico, mas apesar disso,

acredito no que vocês ambos estão dizendo. Acredito até nas coisas que os Vruvyir disseram ou revelaram a vocês. Acredito, porque é fantástico. - Soltou uma gargalha-da soturna. - Se você tivesse me dado uma explicação mais ou menos racional para a nossa situação, acho que não teria acreditado em uma só palavra.

- O que é que eles querem de nós? - Marion perguntou de repente. - O que é que essas terríveis criaturas estão querendo de nós?

- Existe uma sentença que ficou gravada em meu cérebro -, respondeu Russell em voz baixa. - Deixe que os filhos dos filhos de seus filhos vivam para provar que os Vruvyir, lançando-se para longe de sua estrela original, não cometeram um ato inútil.

- Na Terra -, Anna disse, - existem armas nucleares suficientes para destruir a hu-manidade dezessete vezes. Talvez os Vruvyir saibam como tudo isso poderá acabar. Talvez eles desejem salvar alguma coisa; se há alguma coisa que vale a pena salvar... Talvez eles querem que cresçamos.

John franziu a testa e passou a mão nos cabelos prateados. - Então nós, os da Torre de Marur e o Povo da Idade da Pedra somos do mesmo

sangue?- Sempre foi assim -, respondeu Russell, - caso você não tivesse reparado antes.- E como vai ser o futuro?- O futuro é nosso, não pertence aos Vruvyir... Parece que aqui estamos e aqui fi -

caremos, para viver e para morrer. Qualquer dia não haverá mais Vruvyir. Acredito que qualquer dia não haverá mais nenhuma barreira de névoa, e as aranhas-robôs, tão cômodas, não entregarão mais nossos mantimentos. Teremos que fazer tudo so-zinhos. Somos os herdeiros.

- E o que é que vamos fazer? Vamos construir uma nova sociedade? Vamos nos in-tegrar? Criar Utopia em Erewhon? - Soltou uma gargalhada amarga. - Resta ainda a pergunta clássica: Você gostaria que sua filha se casasse com um selvagem da Idade da Pedra?

Russell estava cansado. - Já existe a resposta clássica: Gostaria que minha filha se casasse com um ho-

mem... Vamos tentar fazer tudo da melhor maneira. Não podemos fazer mais do que isso.

- Agora eles precisam descansar -, interveio Marion com energia. - Eles estão no li-mite da resistência e precisam urgentemente de descanso. Temos todo o tempo ne-

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cessário para falar nesse assunto numa outra ocasião. Agora eles estão precisando fi-car em paz.

Enquanto ela falava, Anna fechou os olhos. Russell colocou uma mão sobre o peito dela e também fechou os olhos. Dormiram durante o dia todo.

Naquela mesma noite, um pouco antes do crepúsculo, Absumes Marur chegou ca-valgando ao Erewhon Hilton. Ficou muito surpreso de encontrar Russell e Anna apa-rentemente normais.

- Farn zem Marur, descobridor de caminhos e guerreiro bastante valente, também voltou ao seu clã -, explicou Absu. E acrescentou de forma um pouco misteriosa: - Por isso, alegro-me muito de encontrar meus amigos como estão.

- Como está Farn?- perguntou Russell. - Está bem? Descansou bastante?Absu respondeu à pergunta com outra pergunta. - Sir Russell -, disse com a maior cerimônia. - Preciso saber como meu descobridor

de caminhos se portou. Ele fez alguma coisa que possa redundar em desonra para seu clã?

Russell ficou abalado. - Farn zem Marur, seu vassalo e nosso amigo e companheiro, é um homem valen-

te. Ele aturou muito, mostrando grande coragem.- Estão não há dívida a ser resgatada?Russell não conseguia entender. - Que dívida?Absu não escondeu seu alívio. - Não faz mal, Russell. A pergunta fazia parte de minhas obrigações. Estou satisfei-

to em saber que o descobridor de caminhos se portou como um homem. Isso é sufi-ciente.

- Como é que ele está?- Está morto.- Morto!- Ele voltou atormentado por visões -, explicou Absu. - Falou num sol verde e nas

vozes de dragões. Ele disse muitas coisas que eu não consegui compreender, e que, aliás, faço questão de não compreender. Finalmente teve um rasgo de lucidez e viu que estava doente, e então empalou-se sobre sua própria lança. Talvez seja melhor assim. Não poderia aturar vê-lo tão aflito.

- Absu -, disse Russell, - Farn zem Marur não era louco. Foi um companheiro valen-te, e não tenho dúvidas de que ele disse a verdade a respeito do que viu e ouviu. É muito difícil encontrar as palavras certas, mas quero explicar a você tudo o que acon-teceu.

Quando Russell terminou seu relato Absu ficou em silêncio durante muito tempo. Estava sentado com Russell e Anna nos degraus da entrada do hotel, olhando para as estrelas que revolviam, estranhas e distantes num céu ainda desconhecido.

- Parece-me evidente -, disse Absu, - que os Vruvyir são grandes mágicos.- Sorriu. - Mas vocês também são um clã de mágicos. Dessa maneira têm algumas boas pos-sibilidades.

Russell sacudiu a cabeça. - Não haverá nenhuma guerra, Absu. Não é uma questão de medir lanças com má-

gicos.- Eu sei disso, meu amigo. Temos uma tarefa. Nossa tarefa é mostrar que somos

homens.- Nossa tarefa -, disse Anna, - é mostrar que somos todos da mesma raça.

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- Sobretudo -, disse Russell, - precisamos crescer. Precisamos realmente crescer.Mas foi Absu mes Marur, o duplo de Absu mes Marur, senhor do clã Marur, gonfalo-

neiro das torres ocidentais, auriga das caravanas de pimenta vermelha, que resumiu tudo numa só sentença.

- Está escrito -, disse suavemente, - que se a semente for fértil e o tempo for cer-to, a colheita será farta. Assim está escrito na terra. Assim está escrito no céu.

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EPÍLOGO

No ano 741 D.V., o primeiro foguete orbital estava pronto sobre sua plataforma de lançamento em Port Grahame. O invólucro externo do foguete era um pirotitânio. De um lado estava pintado seu emblema: um cavalo-marinho alado vermelho.

A dois quilômetros de distância, dentro de uma casamata de concreto, construída no local onde antigamente havia um hotel, um homem e uma mulher estavam con-trolando a contagem regressiva.

Jansel Guptiregson tinha cabelos loiros compridos e um rosto lindíssimo que não deixava transparecer seus brilhantes dotes de matemática. Varn Graymark era calvo, baixo e muito viril. Era o técnico em telecomunicações. Eles se amavam. Além disso, gostavam de muita gente.

- Noventa segundos -, disse Varn. - Todos os sistemas estão operando. O que po-deria parar-nos agora? Aquele velho e maldito cavalo-marinho vai levantar

- Varn, os cavalos-marinhos não existem. Não entendo por que você insistiu tanto em tê-lo por símbolo. Por que você não quis um pulpul alado? Ou uma lança alada?

- Você não leu o livro de Howard?- Sessenta segundos. É claro que eu li o livro de Howard. Continua sendo matéria

obrigatória nas escolas médias. O que eu não entendo é por que eles não dedicam um pouquinho mais de tempo a religiões comparadas.

- No livro de Howard -, disse Varn, - há a história da Criação. Você deve estar lem-brada, com certeza, do encontro do Sir Russell com o cavalo-marinho alado no Globo da Vida.

- Daí?- Daí que eu gostei da ideia É absurda, é linda. Eu gosto... Quarenta e cinco se-

gundos.- Mas por que um mito? Por que não algo real. algo prático?Varn Graymark deu uma risada. - Logo você, uma matemática, fazendo pouco de mitos. O que mais você vai in-

ventar?- Trinta segundos -, disse Jansel. - Mito ou não, vou admitir que é uma criatura lin-

da. Possivelmente seu fascínio está em ser tão absurda.Varn riu mais uma vez. - Minha mãe continua acreditando que o Sir Russell foi o primeiro homem que con-

seguiu sair do Jardim de Erewhon. Todas as noites ela reza para o fantasma dele.- Você acredita em fantasmas?- Vinte segundos. Não, eu acredito em gente. Mas acho que todo mundo deveria

ter a capacidade de ter alguma extravagância espiritual.- Quinze segundos, disse Jansel. - E qual é a sua extravagância espiritual?Varn riu. - Quero encontrar um lugar que não existe -, disse. - Foi por isso que senti atração

pelos foguetes. Quero encontrar um planeta chamado Terra. A morada dos deuses.

Page 116: Edmund Cooper - Cavalo-marinho no Céu

- Dez -, disse Jansel. - Você é maluco.- Nove. Sou mesmo.- - Oito. Quero um filho de você.- Sete. Com muito prazer.- Seis. Como é que vamos chamá-lo?- Cinco. Absu.- Quatro. Por quê?- Três. Porque sim.- Dois. Não é resposta.- Um. Você me entendeu.- Zero. Entendi.- Saiu! - berrou Varn entusiasmado. - Está subindo e se afastando! O primeiro es-

tágio da jornada. Um cavalo-marinho de fogo lançando-se entre as estrelas.Olhou pela janela de vidro triplo, ouvindo o rugido modulado dos motores do fo-

guete. Era como a vibração de uma enorme corda musical aumentando no céu. Por um instante o cavalo-marinho vermelho pareceu estar sentado majestosamente so-bre sua cauda de chamas. Em seguida, como tendo tomado uma decisão, elevou-se com uma aceleração macia descrevendo o amplo arco que o levaria à sua elipse orbi-tal.

Varn Graymark ficou pensando e, como costumava fazer, seus pensamentos se ex-pressavam em imagens. Naquele dia uma chave estava abrindo uma fechadura. Na-quele dia estava se escancarando uma porta. Naquele dia estava aparecendo o co-meço de uma escada.

Sem dúvida, a ascensão às estrelas seria demorada e cheia de perigos. Mas, tam-bém sem dúvida, era da própria natureza do homem se arriscar nessas jornadas, da mesma forma que era da própria natureza do homem querer realizar um sonho.