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O VENTO SERÁ TUA HERANÇA Drama de tribunal indicado a 4 estatuetas no Oscar: melhor ator, Spencer Tracy (1900-1967), melhor roteiro adaptado, melhor fotografia em preto e branco e melhor edição; no BAFTA, mais 2 nomeações: melhor filme e melhor ator estrangeiro, Fredric March e Spencer Tracy; no Globo de Ouro, 2 indicações: melhor filme de drama e melhor ator de drama, Spencer Tracy; no Festival de Berlim, teve 3 nomeações: Urso de Ouro de melhor filme e vencendo os de melhor Urso de Prata de melhor ator, Fredric March (1897-1975), e melhor conteúdo adequado aos jovens para Stanley Kramer (1913-2001). O filme foi adaptado da peça homônima de Jerome Lawrence e Robert Edwin Lee, que é uma parábola que ficcionaliza um caso real ocorrido em 1925, Scopes "Monkey" Trial ("O Julgamento do Macaco"), como um meio de discutir o então vigente macartismo. O título do filme vem do Livro de Provérbios, 11:29: "O que perturba a sua própria casa herdará o vento". Este filme, ainda, teve mais 3 sequências: O vento será tua herança (65), O vento será tua herança (88) e O vento será tua herança (99). Ótimo filme em que os destaques principais vão pra Tracy e March, que dão um show de interpretações, sobretudo, nos confrontos de idéias no tribunal. Impossível não perceber as discretas e curiosas participações pequenas de Gene Kelly (1912-1996), longe de seus característicos filmes musicais; além de Dick York (1928-1992), onde ficou mais conhecido como o Darrin Stephens do seriado A Feiticeira (1964-1969) O Vento Será Tua Herança / Inherit the Wind DE: STANLEY KRAMER, EUA, 1960.

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Page 1:  · Web viewO VENTO SERÁ TUA HERANÇA Drama de tribunal indicado a 4 estatuetas no Oscar: melhor ator, Spencer Tracy (1900-1967), melhor roteiro adaptado, melhor fotografia em preto

O VENTO SERÁ TUA HERANÇA

Drama de tribunal indicado a 4 estatuetas no Oscar: melhor ator, Spencer Tracy (1900-1967), melhor roteiro adaptado, melhor fotografia em preto e branco e melhor edição; no BAFTA, mais 2 nomeações: melhor filme e melhor ator estrangeiro, Fredric March e Spencer Tracy; no Globo de Ouro, 2 indicações: melhor filme de drama e melhor ator de drama, Spencer Tracy; no Festival de Berlim, teve 3 nomeações: Urso de Ouro de melhor filme e vencendo os de melhor Urso de Prata de melhor ator, Fredric March (1897-1975), e melhor conteúdo adequado aos jovens para Stanley Kramer (1913-2001). O filme foi adaptado da peça homônima de Jerome Lawrence e Robert Edwin Lee, que é uma parábola que ficcionaliza um caso real ocorrido em 1925, Scopes "Monkey" Trial ("O Julgamento do Macaco"), como um meio de discutir o então vigente macartismo. O título do filme vem do Livro de Provérbios, 11:29: "O que perturba a sua própria casa herdará o vento". Este filme, ainda, teve mais 3 sequências: O vento será tua herança (65), O vento será tua herança (88) e O vento será tua herança (99). Ótimo filme em que os destaques principais vão pra Tracy e March, que dão um show de interpretações, sobretudo, nos confrontos de idéias no tribunal. Impossível não perceber as discretas e curiosas participações pequenas de Gene Kelly (1912-1996), longe de seus característicos filmes musicais; além de Dick York (1928-1992), onde ficou mais conhecido como o Darrin Stephens do seriado A Feiticeira (1964-1969)

O Vento Será Tua Herança / Inherit the Wind

D E :   S T A N L E Y K R A M E R , E U A , 1 9 6 0 .

Nota: 

O Vento Será Tua Herança, no original Inherit the Wind, é um daqueles grandes clássicos indispensáveis, fundamentais do cinema americano dos anos 40 até meados dos 60.

Lançado em 1960, com a grife do sempre ousado, progressista, liberal Stanley Kramer, o filme continua ainda forte, vívido, poderoso, impactante, apaixonante, 57 anos depois.

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Relata uma história real – o famosíssimo caso do julgamento, em 1925, em uma pequena cidade do sulista Tennessee, de um professor de ginásio que ousou desafiar a lei estadual que proibia o ensinamento da teoria da evolução nas escolas públicas. O caso – que chamou a atenção de toda a imprensa americana da época – ficou conhecido como The Scopes Monkey Trial, ou simplesmente The Monkey Trial – O Julgamento do Macaco.

Mas o filme não pretende ser um relato fidelíssimo do caso, uma reconstituição cuidadosa. Toma muitas liberdades. Para deixar isso claro, os nomes de todos os personagens e o da própria cidade foram alterados.

(O professor da vida real se chamava John T. Scopes, e no filme se chama Bertram T. Cates; o nome da cidade é Dayton, e no filme é Hillsboro.)

Nem tem a intenção de ser uma narrativa isenta, neutra – de jeito nenhum. É apaixonadamente contra a lei que proibia o ensino do evolucionismo, é perdidamente pró-Darwin.

Para muitos, poderá parecer anticristão, anti-religião, por ser tão veemente, tão espalhafatosamente a favor do respeito às Ciências. Mas não é, de forma alguma.

É sobretudo um panfletaço vigoroso, forte, poderoso – dos mais belos que o cinema já fez – a favor da liberdade de expressão, do respeito à divergência, ao contraditório.

E, neste sentido, o filme de 1960 é atualíssimo para o Brasil de hoje, um país de um povo que já foi tido como cordial e agora se divide entre os partidários de duas visões diferentes da política, da sociedade, da economia, num clima de beligerância, intolerância, irritabilidade, hostilidade – um clima de guerra em que um lado se recusa a ouvir os argumentos do outro com paciência, atenção, respeito.

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Tudo é exagerado, abertamente, entusiasticamente exagerado. É um circo

Três pontos me impressionaram demais, ao rever agora Inherit the Wind. Um deles foi essa coisa de como ele parece se dirigir às duas torcidas do Fla x Flu em que nós, brasileiros, nos dividimos. Um segundo ponto é muito forte, não dava para esquecer: a quantidade de belas frases,  diálogos inteligentíssimos, afirmações brilhantes.

Mas creio que o mais me tocou nesta revisão foi como Stanley Kramer encenou seu filme de maneira a fugir do realismo, do naturalismo, como o diabo da cruz, o vampiro da luz do dia, o fanático do raciocínio.

Nada é natural. Nada se parece com pessoas agindo na vida real.

O tempo todo o filme faz questão de dizer que estamos diante de uma encenação, um espetáculo, um teatro. Ou, melhor ainda, um circo.

Os atores exageram – e são grandes atores, em especial os três principais, três monstros, Spencer Tracy, Fredric March e Gene Kelly, e Kramer é um ótimo diretor de atores. Só para se ter uma idéia, nada menos que 14 diferentes atores tiveram indicações ao Oscar em filmes dirigidos por ele.

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Grandes atores, ótimo diretor de atores – e no entanto eles exageram. Caso flagrante de overacting – flagrante, e, é claro, propositado. É para realçar que tudo é um espetáculo, um circo.

O experientíssimo Fredric March interpreta Matthew Harrison Brady, um político conhecidíssimo que se oferece para ir à pequena cidade de Hillsboro para atuar junto com o promotor no julgamento do professor que ensinou a teoria da evolução na escola. March, dois Oscars, 3 outras indicações, exagera no exagero. Faz caretas como se estivesse no picadeiro do circo – caretas assombrosas, que é para elas serem percebidas lá longe, nas fileiras mais distantes.

Tudo bem: o personagem dele é ele mesmo um exagero, um populista, um sujeito feito para os palanques – antes de chegar a Hillsboro para a missão de defender a Bíblia e ajudar a condenar o herege aos quintos da prisão, havia sido três vezes candidato à Presidência dos Estados Unidos. Mas Kramer e March exageram no exagero. O cristão quase fundamentalista, fanático Matthew Brady faz caretas grotescas cada vez que ouve uma crítica à sua pessoa. E come. Come feito alguém que não via um prato de comida fazia dias. Come com um apetite pantagruélico, uma coisa horrorosa, sem jeito, impressionante.

Claude Akins, que faz o reverendo Brown, o líder espiritual da comunidade, também exagera dentro do exagero geral. Fala com sua filha, a simpática, pobre Rachel (Donna Anderson), dentro da paz sacrossanta do lar em que vivem apenas os dois, tendo a senhora Brown já partido para encontrar o Senhor, com a voz alta, tonitroante, como se estivesse no púlpito, falando para toda a congregação.

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Tudo é encenado, tudo é feito para realçar o exagero

Bem, Matthew Brady é um político e o reverendo Brown é também homem de falar em público, e então seria mesmo de se admitir que falassem em voz muito alta, empostada, com gestos largos.

Mas não são apenas os dois atores que representam o político e o religioso que estão over do over, o exagero do exagero. Tudo, absolutamente tudo no filme, na mis-en-scène, na forma de encenar é propositadamente distante da realidade, da naturalidade.

Tudo é circo, tudo é encenação afetada, exagerada. Desde a primeira sequência – quatro cidadãos importantes da comunidade, em roupas domingueiras, vão se reunindo e marcham quase em passo militar rumo à escola pública da cidade, onde naquele preciso instante o professor Bertram T. Cates (Dick York, um ator com tipo físico perfeito para o papel) está ensinando a seus alunos temas relatados por Charles Darwin em seu livro A Origem das Espécies, publicado em 1859.

Os cidadãos importantes – entre eles o prefeito (interpretado por Philip Coolidge de forma a atrair profunda antipatia do espectador) – levaram com eles um fotógrafo para documentar a cena, o momento em que Bertram T. Cates ouve a voz de prisão por ter desobedecido ao Tennessee Butler Act.

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Não se passaram sequer 5 minutos dos 128 do filme, e há uma reunião de todos os cidadãos importantes de Hillsboro para discutir o assunto. Estão em volta de uma mesa forrada com exemplares de jornais de todas as cidades mais importantes do país – as manchetes, especialmente dos grandes jornais do Norte, das metrópoles do Norte, falam depreciativamente do Julgamento do Macaco. O tom é que Hillsboro é uma cidade atrasada, retrógada – o que é a mais absoluta verdade, mas para os comerciantes, o banqueiro da cidade, aquilo não é nada bom.

Os cidadãos importantes da cidade – e é claro que o reverendo Brown é um deles – se dividem quanto ao que fazer.

Mas a forma com que Stanley Kramer filma a reunião – insisto nesse ponto – não tem absolutamente nada a ver com a realidade, o jeito natural. As pessoas fazem discursos emproados. A câmara faz composições cuidadosas dos grupos de rostos.

É tudo encenado, é tudo um espetáculo circense.

O filme quer realçar que democracia é a convivência de pensamentos díspares

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Essa opção de Kramer por essa mis-en-scène assim propositalmente anti-realista, anti-naturalista, poderá talvez assustar um pouco o espectador mais jovem que se dispuser a vez esta beleza de filme – ou até mesmo espectadores mais experientes. Confesso que fiquei um pouco assustado nos primeiros 10 minutos de filme, ao revê-lo agora, porque de fato não me lembrava desse tom não realista tão forte.

Mas rapidamente o espectador compreenderá que aquilo é planejado, é intencional, é proposital – e faz todo sentido.

Vejo assim esta opção de Kramer:

OK, o Scopes Monkey Trial, o Julgamento do Macaco, de 1925, na cidadezinha de Dayton, foi importantíssimo, foi um marco histórico – mas foi também um espetáculo, um grande circo, divulgado fartamente pela imprensa da época, dezenas e dezenas de jornais país afora e mais o então jovem e poderosíssimo rádio, que começava a ter cobertura nacional. A presença de repórteres e curiosos de todas as partes do país, de nomes famosos na acusação e na defesa, tudo transformou o julgamento em si em um grande show. Então um filme sobre aqueles fatos, ocorridos 35 anos antes, em que se discutia se era possível ou não falar nas salas de aula de um livro lançado 65 anos antes dos fatos, cem anos antes do filme, não deveria ser apenas um relato fiel, realista, naturalista.

Deveria, é claro, lembrar os argumentos usados no tribunal, as belas frases da defesa e tudo o mais, mas deveria ir além – para mostrar o próprio circo armado lá atrás nos anos 1920, e avançar na discussão, de modo a salientar que o importante, sempre, na democracia, é a convivência entre díspares, diferentes, o respeito absoluto que deve ter sempre o divergente, o contraditório.

Para Stanley Kramer, em 1960, num país que até cinco anos antes estivera mergulhado nas trevas absurdas do macarthismo – a caça às bruxas, a louca perseguição de comunistas ou simpatizantes dos simpatizantes do comunismo ou de qualquer um que insistisse um pouco em falar em justiça social –, era fundamental realçar no filme esse ponto específico: democracia é respeitar as diferenças, as divergências, os que pensam de jeito oposto ao seu.

Democracia é a necessária, fundamental, básica coexistência de idéias díspares – às vezes até mesmo frontalmente antagônicas.

O mais inflamado dos discursos de Henry Drummond, o advogado de defesa do professor que ensinava o evolucionismo – o papel do gigante Spencer Tracy – bate exatamente nessa tecla. A tecla básica, fundamental, que nos Estados Unidos da primeira metade dos anos 1950 esteve esquecida por causa da paranóia anticomunista. E que, infelizmente, neste Brasil da segunda década do novo milênio, faz uma falta danada.

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A peça que deu origem ao filme aborda claramente o macarthismo

Stanley Kramer não inventou sozinho – é claro, é óbvio – essa forma de contar, ou relembrar, o Julgamento do Macaco.

Baseou-se em uma peça de teatro que estreou em 1955, quando o macarthismo ainda estava no auge, e diretores, atores, roteiristas tinham seus nomes lançados na lista negra e os estúdios não podiam dar emprego a eles ou porque eram comunistas, ou tinham sido, ou tinham conhecido algum, ou tinham ido a uma reunião com alguns, ou tinham talvez algum dia sonhado que tinham conhecido alguém que tinha conhecido um comunista, ou a prima da empregada da concunhada tinha uma vez dado uma olhada num panfleto comunista.

A Wikipedia diz assim: “Inherit the Wind é uma peça americana de Jerome Lawrence e Robert E. Lee, que estreou em 1955. A história ficcionaliza o Julgamento de Scopes do ‘Macaco’ como uma maneira de discutir os então contemporâneos julgamentos de McCarthy. O debate sobre criacionismo versus evolucionismo tem ressonância ainda hoje, como evidenciam as numerosas reapresentações e adaptações para o cinema depois de sua temporada inicial no teatro.”

Os autores Jereme Lawrence e Robert E. Lee criaram na peça diversas situações para enfatizar a necessidade de respeito às diferenças, às

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disparidades – que, é claro, foram mantidas pelos roteiristas Nathan E. Douglas e Harold Jacob Smith, e são realçadas pelo diretor Kramer.

Assim, por exemplo, o professor Bertram T. Cates, que ensina o evolucionismo que uma lei estadual retrógada proibia, namora exatamente a filha única do reverendo Brown, Rachel. Cates não é “um nortista” (o desprezo das pessoas daquela comunidade pelos “nortistas”, os que os haviam derrotado na Guerra da Secessão, é mostrado diversas vezes), não é um estranho, um forasteiro – nem um comedor de criancinhas. É um membro daquela mesma comunidade, ama Rachel, a filha do pastor, e ela o ama – apenas acontece de ele pensar de forma diferente da maneira com que a maioria das pessoas ali pensa.

Quando é preso, é muito bem tratado por Mort Meeker (Paul Hartman), o funcionário da cadeia municipal, que também trabalha como o meirinho, o oficial de Justiça durante o julgamento. Mort passa as tardes jogando cartas e conversando com o único preso da cadeia – diacho, o professor da escola da cidadezinha, gente boa, que todo mundo ali conhece e sabe que não é um criminoso.

Acusador e defensor são velhos amigos, gostam um do outro, se respeitam

Mas o ponto mais fascinante que o filme realça, nessa sua defesa incisiva da necessidade da boa convivência entre díspares, entre pessoas que defendem

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pontos de vista antagônicos, é o relacionamento entre os dois figurões que vão para Hillsboro participar do julgamento, Matthew Harrison Brady e Henry Drummond – interpretados, como não poderia deixar de ser, por dois figurões do cinema americano, dois dos maiores de sua época e de todas as épocas, Fredric March e Spencer Tracy.

A peça em que o filme se baseia não inventou o fato de que dois figurões de projeção nacional foram para a pequenina cidade sulista participar do Julgamento do Macaco. Pode ter tido muitas liberdades, pode não ter sido rigorosamente fiel à verdade dos fatos, mas neste ponto foi, sim, exata: para participar da acusação, foi até à cidadezinha de Dayton o político William Jennings Bryan, três vezes candidato à Presidência dos Estados Unidos – exatamente como Brady, o personagem de Fredric March. E, do lado do acusado, atuou um advogado de defesa amplamente conhecido e respeitado, Clarence Darrow – que na peça e no filme ganhou o nome de Henry Drummond, o papel de Spencer Tracy.

A grande sacada da versão ficcionalizada da história real é que Brady e Drummond haviam sido grandes amigos, amigos íntimos. Drummond havia trabalhado em campanhas presidenciais de Brady; tinham respeito e admiração um pelo outro. O advogado e a mulher de Brady eram amicíssimos. É uma maravilha ver os diálogos amigáveis entre Drummond e Mrs. Brady – ela é interpretada por Florence Eldridge, a mulher de Fredric March na vida real, uma atriz com um porte de dama, de mulher fina, culta, bem formada. Há brilho nos olhos de Spencer Tracy e Florence Eldridge quando os dois conversam, saudosos um do outro, admiradores um do outro.

Num dos momentos mais belos deste filme cheio de diálogos maravilhosos, bem escritos, é quando Drummond e Brady sentam-se lado a lado na varanda do melhor hotel da cidade, em que estão todos hospedados, e conversam como dois velhos amigos que se reencontram após longo tempo sem se verem – depois de dias de discussões acaloradas dentro do tribunal. Brady pergunta por que os dois se distanciaram tanto, e Drummond responde que talvez tenha sido pelo fato de que Brady ficou parado onde estava, com as mesmas opiniões e posturas de sempre, ao passo que ele mesmo mudou, evoluiu.

Ao ver as sequências em que Drummond e Mrs. Brady demonstram imenso prazer por estarem juntos de novo, e essa em que os dois amigos conversam nas cadeiras de balanço na varanda do hotel, dá uma profunda tristeza pensar em como nós aqui no Brasil destes últimos anos perdemos tantos amigos porque uns de nós éramos Fla e outros eram Flu.

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Gene Kelly tem uma rara interpretação dramática como o jornalista presunçoso

Na peça e no filme, o professor Bertram T. Cates escreve cartas a um jornal de Baltimore pedindo ajuda – ele, naturalmente, não teria como pagar um bom advogado de defesa. O jornal do Estado de Maryland, seguramente progressista, a favor da causa do evolucionismo, é que contrata os serviços de Henry Drummond e o envia para a cidadezinha de Hillsboro.

O jornal envia para lá também, para cobrir não apenas o julgamento em si, mas todo o clima da cidade às vésperas do grande acontecimento, um repórter do seu primeiro time, um tal E.K. Hornbeck. O filme mostra esse repórter como um sujeito arrogante, cheio de si mesmo, metido, presunçoso, dono da verdade – uma figura que de fati não é rara na imprensa, essa coisa tão importante mas que é capaz de transformar profissionais em estrelas nacionais.

E.K. Hornbeck é sobretudo um fraseur, um criador de frases de efeito, impactantes, tonitroantes como as vozes de Brady e Drummond no tribunal. Representa o progresso, a luta contra as trevas, e ele demonstra saber muito bem disso – mas, a rigor, no fundo, é um chato de galocha.

O personagem foi inspirado em H.L. Mencken, que de fato cobriu o Julgamento do Macaco. Mencken (1880-1956) é uma figuraça fantástica, que mereceria uma belíssima cinebiografia. Culto, erudito, escreveu The American Language,

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um estudo de vários volumes mostrando como a língua inglesa foi sendo modificada através dos séculos nos Estados Unidos – entre algumas dezenas de livros sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis. Ele ficou popularmente conhecido por sua veia satírica, sacrílega, que não perdoava nada e ninguém.

H.L. Mencken, quer dizer, E.K. Hornbeck é interpretado por Gene Kelly. Este foi um dos poucos papéis dramático do genial ator, cantor, coreógrafo, dançarino, diretor – um dos poucos filmes não musicais de sua carreira. (Eu até achava que tivesse sido o primeiro, mas minha amiga Jussara Ormond, a maior especialista em Gene Kelly do Brasil, quiçá do mundo, me corrigiu.)

Consta que a princípio Gene Kelly recusou o papel que Stanley Kramer lhe ofereceu. Kramer insistiu muito – e, depois de algum tempo, argumentou que ele contracenaria com ninguém mais, ninguém menos, que Spencer Tracy e Fredric March. Diante disso, Gene Kelly topou – mas foi um risco danado que Kramer correu, porque, no momento em que fez a afirmação para Kelly, ele ainda não tinha a confirmação de que os dois veteranos atores aceitariam os papéis.

Dezenas de pessoas correram para ver March e Spencer duelando no estúdio

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Outros fatos, curiosidades, detalhes sobre o filme e sua produção, muitos tirados da página de Trivia do IMDb:

* O título do filme vem de uma citação que o personagem Matthew Brady faz da Bíblia, e, conforme explica Henry Drummond, vem do Livro de Provérbios, 11:29: “He that troubleth his own house shall inherit the Wind”. “Quem causa problemas à sua família herdará somente vento; o insensato será servo do sábio.”

* Consta que, atraídas pela informação de que Spencer Tracy e Fredric March estavam filmando aquele duelo entre dois grandes oradores, dezenas e dezenas de atores, extras, técnicos lotaram o estúdio em que Inherit the Wind estava sendo rodado. Algumas tomadas tiveram até que ser refeitas porque a audiência aplaudia os diálogos de um ou de outro.

* Deliciosa lembrança do IMDb: tanto Tracy quanto March interpretaram o médico e o monstro em versões cinematográficas de Dr. Jekyll and Mr. Hyde. March fez a versão de 1932, ao lado de Miriam Hopkins, dirigida por Rouben Mamoulian. Tracy fez a versão de 1941, dirigida por Victor Fleming e que tinha ainda no elenco – meu Deus do céu e também da terra – Ingrid Bergman e Lana Turner.

* Outra deliciosa lembrança do IMDb que não havia me ocorrido: este é um dos três filmes em que Stanley Kramer colocou atores consagradíssimos de musicais em papéis dramáticos. Exatamente como fez aqui com Gene Kelly, Kramer escalou Fred Astaire para interpretar um cientista inglês que está vivendo na Austrália em A Hora Final/On the Beach (1959). E deu a Judy Garland, já veterana, enfrentando sérios problemas de saúde, um belo papel em Julgamento em Nuremberg (1961).

* Este foi um dos quatro filmes de Stanley Kramer estrelados por Spencer Tracy. Os fizeram juntos também Julgamento em Nuremberg(1961), Deu a Louca no Mundo (1963) e Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967).

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A peça foi refilmada três vezes mais tarde. Não há lei que proibia refilmagem

* A encenação original da peça Inherit the Wind na Broadway, que estreou em 21 de abril de 1955, foi um grande sucesso, com 806 apresentações no total. Venceu dois prêmios Tony, o Oscar do teatro americano. Os atores foram Paul Muni como Drummond, Ed Bagley como Brady e Tony Randall como Hornbeck. (Mais tarde, Melvyn Douglas substituiu Paul Muni, afastado por doença.) A peça teria duas novas encenações na Broadway, em 1996 e em 2007.

* Como não há lei proibindo que sejam feitas refilmagens, houve três refilmagens de Inherit the Wind. A primeira foi feita para a TV em 1965, com o elenco da Broadway: Melvyn Douglas como Drummond, Ed Begley como Brady. Uma outra veio em 1988, com Jason Robards como Drummond, Kirk Douglas como Brady. E ainda houve uma terceira, em 1999, com Jack Lemmon no papel de Drummond, George C. Scott no de Brady e Beau Bridges como Hornbeck.

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Reflexões do filme: “O Vento será tua herança”.

Wladimir Jansen Ferreira

O filme é inspirado em um caso real, o "Processo do Macaco de Scopes", como foi chamado o caso do Estado do Tennessee contra o professor de biologia John Thomas Scopes, ocorrido na cidade de Dayton em 1925. O professor foi julgado por ensinar a teoria da Evolução de Darwin em uma escola pública. 

Alguns personagens tiveram o nome modificado, caso de Henry Drummond (baseado no advogado Clarence Darrow, interpretado por Spencer Tracy), Matthew Harrison Brady (baseado em Willliam Jenning Bryan, interpretado por Fredric March), o professor Bertram Cates (baseado em John Thomas Scopes, interpretado por Dick York) e o jornalista E. K. Hornbeck (baseado em H. L. Mencken ou Henry Louis, interpretado por Gene Kelly). A cidade também teve o seu nome modificado, de Dayton para Hillsboro.

O professor de Biologia foi preso porque estava ensinando “darwinismo e evolucionismo” aos alunos, infringindo uma lei local que dizia que os funcionários públicos não poderiam questionar o “criacionismo” ou trabalhar com os preceitos darwinistas. Ele é preso e seu caso ganha dimensão nacional, principalmente pela escolha dos polêmicos e famosos advogado de defesa (Henry Drummond) e pelo promotor (Matthew Harrison Brady).

Praticamente a cidade inteira ficou contra o professor e o advogado, pois os moradores possuíam uma cultura que estava sendo questionada, podendo vir a ser destruída ao cair em contradição.Os “criacionistas” baseavam sua visão de mundo e sua concepção de natureza na tradição judaico-cristã, tanto no Velho, como no Novo Testamento. Os “evolucionistas” eram chamados por estes de pagãos e ateus.

Importante perceber as posturas e reações do Reverendo Jeremiah Brown (interpretado por Claude Akins) e no prefeito Jason Carter (interpretado por Philip Coolidge) que eram fanáticos e intolerantes quanto à outras crenças religiosas e ao conhecimento cientifico dos “evolucionistas”. Importante é destacar a postura igualmente intolerante do jornalista ateu E. K. Hornbeck, parecendo ser fundamentalista e fanáticos por uma outra via. As ações do jornalista, do reverendo e do prefeito eram altamente negativas para a ocasião, “incendiando” a situação e manipulando os sentimentos dos moradores.

No inicio do julgamento, o advogado de defesa (Henry Drummond) pede para ser posto em “pé de igualdade” com o promotor (Matthew Harrison Brady), pois este segundo era tipo como herói de guerra e coronel. Esta igualdade ocorrerá pelas mãos do prefeito Jason Carter e do juiz Mel Coffey (interpretado por Harry Morgan)

Inicialmente a estratégia da defesa era  defender “o direito de ser diferente, de pensar e de ter conhecimento”. Já a estratégia da promotoria foi se utilizar o tempo todo do fanatismo religioso em conjunto com o ódio e a ignorância, chegando a pedir que a defesa “não confunda coisas materiais com realidade espiritual” e que “não se questionasse as verdades da Bíblia Sagrada”. A defesa se defende ao dizer que “deixar a Igreja não significa deixar Deus”.

No segundo dia de julgamento, a defesa tenta trazer cientistas evolucionistas para falar, sendo proibidos erroneamente pelo juiz. O advogado

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de defesa se revolta com tal situação e quase foi preso por desacato ao juiz. Com a confusão, a seção do dia foi cancelada.

No terceiro dia de julgamento, a estratégia do advogado de defesa foi falar com o promotor. Esta situação é bem irônica, pois “peritos em ciência” não puderam falar e um “perito em Bíblia” pode falar. Aos poucos, o advogado de defesa foi esmorecendo a imagem do promotor ao fazer este cair em contradição.

Inicialmente, o advogado de defesa pergunta se “tudo na Bíblia tem de ser levado ao ‘pé-da-letra’”, questionando as situações: “como um homem dentro de uma Baleia poderia sobreviver”, “como que o Sol poderia ser parado por um ser humano”, “o fato do sexo ser um pecado original e a humanidade ter nascido e espalhado com a procriação de Adão e Eva”, “o fato do planeta Terra ter sido feito em 5 dias, aonde o Sol só teria sido feito no segundo dia (sendo impossível se delimitar o tempo do primeiro dia)”. Depois deste massacre, a seção do dia é encerrada e o promotor vai para sua casa muito abalado, questionando “porque deus estaria sendo julgado”.

O quarto dia do julgamento foi só para se dar o veredicto, que foi unânime, decidindo por considerar o professor Bertram Cates culpado por violar as leis, mas tendo de pagar uma misera multa de U$ 100,00. a promotoria se revolta com o valor e a defesa diz que entrarão com um recurso no Supremo Tribunal Federal para não pagar esta multa.Depois do veredicto final, o promotor Matthew Harrison Brady tenta ler um texto criacionista, sendo ignorado pelos presentes. Ele enlouquece, tem um infarto do coração e morre no local. Podemos dizer que o promotor enlouquece porque sua cultura foi questionada e quando morre temos uma “alegoria” sinalizando o surgimento de “uma nova era” na cidade e no país, que seria de “não fanatismo religioso”.

Depois da morte de Brady, Hornbeck jocosamente faz planos para o obituário de Brady, usando as palavras que o orador invocara na reunião de orações. “Aquele que perturba sua própria casa herdará o vento". Quando Drummond cita a Bíblia e defende Brady como um grande homem, Hornbeck percebe que o famoso advogado de defesa é um crente e o execra como um hipócrita. Drummond responde que o cinismo do jornalista o deixou sem qualquer tipo de sentimento ou significado.

Depois que Hornbeck vai embora, Drummond embala seus pertences e se despede de Hillsboro, segurando o livro de Charles Darwin e sua Bíblia, lado a lado. Talvez uma outra alegoria, para demonstrar que talvez dê para se conviver com estas duas culturas, ou seja, a tolerância e a alteridade são possíveis.

Nós tivemos no filme um “choque cultural” entre “evolucionismo” e o “criacionismo”. Podemos refletir que a cultura da intolerância e do fanatismo é algo negativo, mas que deve ser respeitada. Aquela comunidade isolada e fechada tem o direito de existir e a existência das discussões evolucionistas foi algo negativo para a cultura hegemônica, ajudando a implodi-la.

Uma postura acertada é defender a tolerância e a alteridade cultural, pensando até na possibilidade de um hibridismo cultural.

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* Depois do julgamento, o professor John Thomas Scopes, que na peça e no filme virou Bertram Cates, foi procurado por representantes da Universidade de Chicago, que ofereceram a ele uma bolsa de estudos. Scopes, então, estudou Geologia na prestigiosa universidade, e depois teve destacado trabalho como geólogo da empresa Gulf Oil na Venezuela.

* Eis os 14 atores que tiveram indicações aos Oscar de melhor ator ou atriz em papel principal ou como coadjuvantes: Tony Curtis, Sidney Poitier, Theodore Bikel, Cara Williams, Spencer Tracy, Maximilian Schell, Judy Garland, Montgomery Clift, Oskar Werner, Michael Dunn, Simone Signoret, Katharine Hepburn, Cecil Kellaway e Beah Richards. Katharine Hepburn e Maximiliam Schell levaram as estatuetas para casa – ela por Adivinhe Quem Vem para Jantar (1967) e ele por Julgamento em Nuremberg (1961).

* Ainda o Oscar: três dos filmes de Stanley Kramer tiveram indicações para os prêmios de melhor filme e melhor direção: Acorrentados/The Defiant Ones (1958), Julgamento em Nuremberg (1961) e Adivinhe Quem Vem para Jantar (1967). Um quarto, A Nau dos Insensatos/Ship of Fools, teve indicação para o Oscar de melhor filme.

Esta anotação está gigantesca demais, até mesmo para os meus padrões, e então não vou transcrever aqui longamente outras opiniões. Só registro rapidamente que Leonard Maltin deu ao filme apenas 3 estrelas em 4, mas chamou-o de “uma adaptação absorvente” da peça, “um tour de force de atuações”, sobre “tema que é real e ainda relevante”.

Roger Ebert o inclui na sua lista de “Great Movies”.

O CineBooks’ Motion Picture Guide dá a cotação máxima de 5 estrelas.

Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, que não mexe com essa coisa menor de dar cotações, diz que o filme é “um trabalho danado de cru, totalmente desprovido de sutileza”.

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“Por que Deus nos deu a praga da capacidade de pensar?”

Entre os pontos em que a peça e o filme fogem da verdade dos fatos, o IMDb realça a personagem de Rachel Brown, a filha do reverendo Brown, namorada de Bertram Cates. A personagem – que tem grande importância dramática – é totalmente fictícia, invenção dos autores da peça.

Também não havia, segundo o IMDb, aquela grande oposição generalizada ao professor entre os moradores da pequena Dayton. Mas o filme mostra de fato que há gente que apóia o professor preso por ensinar o evolucionismo. Há o apoio aberto, claro, forte, de muitos dos próprios alunos de Cates, assim como há, durante o julgamento, o apoio do personagem Stebbins (Noah Beery Jr.) e do banqueiro da cidade.

O IMDb diz ainda que, na vida real, o julgamento de Scopes começou bastante chato, enfadonho, apesar da presença ali de dois homens nacionalmente famosos, um na defesa, outro na acusação. As coisas só pegaram fogo, na verdade, quando o advogado de defesa chamou o assistente da promotoria para depor.

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Esse é de fato um dos pontos altos do filme. Depois que o juiz se recusa a ouvir como testemunhas quatro ou cinco cientistas, dizendo que aquilo não interessava, já que o que estava em discussão era a Bíblia, Henry Drummond-Spencer Tracy chama Matthew Brady-Fredric March para depor, já que ele é um expert na Bíblia.

É nesse momento, ao questionar o defensor do criacionismo sobre frases da Bíblia, que o advogado de defesa destrói inapelavelmente os argumentos, ou melhor, a falta de argumentos da acusação.

Dá vontade de transcrever praticamente todos os diálogos do filme – mas é impossível deixar de registrar ao menos este trecho aqui:

Brady: – “Não podemos abandonar a fé. A fé é a coisa mais importante!”

Drummond: – “Então por que Deus nos deu a praga da capacidade de pensar? Mr. Brady, por que o senhor nega a única faculdade do homem que o eleva perante as outras criaturas da Terra? O poder de seu cérebro de raciocinar. Que outros méritos nós temos? O elefante é maior; o cavalo é mais rápido e mais forte; a borboleta é muito mais bela; o mosquito é mais prolífico. Mesmo a simples esponja é mais durável. Mas uma esponja pensa?”

Brady: – “Não sei. Eu sou um homem, não uma esponja.”

Drummond: – “Mas você acha que uma esponja pensa?”

Brady: – “Se o Senhor quiser que uma esponja pense, ela pensa!”

Drummond: – “O senhor acha que um homem deveria ter os mesmos direitos de uma esponja?”

Brady: – “É claro!”

Drummond (apontando para o réu): – “Então este homem deseja ter os mesmos direitos de uma esponja! Ele deseja pensar!”

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O problema não é a fé, nunca é – é o fanatismo

A perenidade desse Julgamento do Macaco, a perenidade da peça, tantas vezes reencenada e refilmada, seguramente se deve ao fato de que ela alerta – com força, com virulência, e com brilho – para o perigo representado pelo fundamentalismo.

Quando vi A Tentação/The Ledge (2011), um belo, sensível drama, escrevi:

“A ameaça do fundamentalismo cristão à vida em sociedade é uma preocupação presente entre muita gente boa nos Estados Unidos. Me lembro que minha sobrinha Valéria, que mora lá há anos, se apavora – como milhares e milhares e milhares de pessoas – com o intenso lobby dos fundamentalistas contra, só para dar um exemplo, o ensino do darwinismo nas escolas públicas. A ameaça do fundamentalismo cristão é grave, séria, perigosíssima – assim como a de qualquer outro fundamentalismo, seja muçulmano, seja comunista, seja fascista.”

E, sobre Criação/Creation (2009), um filme sobre uma época da vida de Charles Darwin, exatamente os anos em que ele escreveu A Origem das Espécies, anotei que eu, “que já fui cristão e depois ateu e depois agnóstico e hoje tenho cada vez menos certezas absolutas, entendo que essa guerra criacionistas x evolucionistas é sem sentido – como todas as guerras, aliás. Não consigo compreender que ciência e fé se excluam. Por que não aceitar a evolução, o big bang, e Deus antes de tudo isso que a ciência vai descobrindo e comprovando?”

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Como mostra perfeitamente este filme maravilhoso, nas palavras de Henry Drummond, a Bíblia não é para ser entendida ao pé da letra. Os sete dias em que Deus fez o mundo não são apenas sete dias – até porque, lembra o advogado, o Sol só foi criado no quarto dia, e então como seria possível contar que tinha havido três dias?

A Bíblia é um conjunto de parábolas. Só os fanáticos podem acreditar que cada palavra do que diz a Bíblia é literal.

E aí voltamos à velha questão de sempre. O problema não é a fé – é o fanatismo.

Anotação em novembro de 2017

O Vento Será Tua Herança/Inherit the Wind

De Stanley Kramer, EUA, 1960.

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Com Fredric March (Matthew Harrison Brady), Spencer Tracy (Henry Drummond), Gene Kelly (E.K. Hornbeck), Florence Eldridge (Mrs. Brady), Dick York (Bertram T. Cates), Donna Anderson (Rachel Brown), Harry Morgan (o juiz), Elliot Reid (Davenport, o promotor), Philip Coolidge (o prefeito), Claude Akins (reverendo Brown), Paul Hartman (Mort Meeker), Jimmy Boyd (Howard), Noah Beery Jr. (Stebbins), Gordon Polk (Sillers), Ray Teal (Dunlap), Norman Fell (o locator de rádio), Hope Summers (Mrs. Krebs), Renee Godfrey (Mrs. Stebbins)

Roteiro Nathan E. Douglas e Harold Jacob Smith

Baseado na peça de Jerome Lawrence e Robert E. Lee

Fotografia Ernest Laszlo

Música Ernest Gold

Montagem Frederic Knudtson

Produção Stanley Kramer, United Artists.

P&B, 128 min (2h08 min)

R, ****