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primeiro prêmio david baldacci Luann Tyler é mãe solteira, amarrada a uma existência precária da qual parece não haver saída - até que um audacioso golpe na lotaria nacional a toma mais rica do que ela alguma vez sonhara ser possível. Porém, a certa altura, incapaz de se reconciliar com a fraude, Luann decide tudo arriscar a fim de recuperar o domínio sobre a sua própria vida. Só que o malévolo autor da trapaça tem outras ideias, bastante mais sinistras. Ganhar a lotaria contra todas as probabilidades e conseguir um jackpot de cem milhões de dólares. Quem não sonhou já com isso? a realizar-se. PRIMEIRA PARTE JACKSON relanceou o olhar pelo extenso corredor do centro comercial, observando mães fatigadas a conduzirem cadeirinhas de bebés carregadas e o grupo de pessoas da terceira idade a passear pelo centro com o duplo objectivo de fazer exercício e conversar. Com um fato cinzento de risquinhas, o atarracado Jackson fixou a sua atenção na entrada norte do centro comercial. Era com toda a certeza a que ela ia usar, pois a paragem de autocarro ficava mesmo em frente. Ele sabia que a

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Page 1: visionvox.com.br · Web viewJACKSON relanceou o olhar pelo extenso corredor do centro comercial, observando mães fatigadas a conduzirem cadeirinhas de bebés carregadas e o grupo

primeiro prêmio

david baldacci

Luann Tyler é mãe solteira, amarrada a uma existência precária da qual parece não haver saída - até que um audacioso golpe na lotaria nacional a toma mais rica do que ela alguma vez sonhara ser possível. Porém, a certa altura, incapaz de se reconciliar com a fraude, Luann decide tudo arriscar a fim de recuperar o domínio sobre a sua própria vida. Só que o malévolo autor da trapaça tem outras ideias, bastante mais sinistras.

Ganhar a lotaria contra todas as probabilidades e conseguir um jackpot de cem milhões de dólares. Quem não sonhou já com isso? a realizar-se.

PRIMEIRA PARTE

JACKSON relanceou o olhar pelo extenso corredor do centro comercial, observando mães fatigadas a conduzirem cadeirinhas de bebés carregadas e o grupo de pessoas da terceira idade a passear pelo centro com o duplo objectivo de fazer exercício e conversar. Com um fato cinzento de risquinhas, o atarracado Jackson fixou a sua atenção na entrada norte do centro comercial. Era com toda a certeza a que ela ia usar, pois a paragem de autocarro ficava mesmo em frente. Ele sabia que a jovem não tinha outro meio de transporte. A carrinha do namorado, que vivia com ela, fora apreendida pela quarta vez em igual número de meses.

Aquilo devia estar a tornar-se um pouco aborrecido para a rapariga, pensou Jackson. A paragem de autocarro ficava na estrada principal. Ela teria de caminhar quase dois quilómetros até lá, mas fazia-o muitas vezes. Que outra opção tinha? O bebé havia de vir com ela. Jackson estava convencido de que ela nunca deixaria a criança com o namorado.

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Embora ele usasse sempre o nome de Jackson em todas as suas actividades, dali a um mês mudaria por completo de aparência, deixando de ser o homem pesado de meia-idade que era agora. As feições seriam alteradas; perderia peso, ganharia ou perderia altura. Homem ou mulher? Novo ou velho? Era frequente apoderar-se de características de pessoas que conhecia, adoptando por completo a personalidade de uma ou tirando fios a várias e cosendo-os até fabricar uma delicada manta de retalhos. No liceu, a Química fora uma das suas disciplinas preferidas. Combinando o gosto que tinha pela representação e a facilidade com que raciocinava em termos científicos, conseguira um duplo bacharelato, em Arte Dramática e Engenharia Química, o que lhe servia agora muito bem. De facto, o que diriam os seus antigos colegas se o vissem agora?

Correspondendo à personagem do dia - homem pesado, de meia-idade -, a transpiração perlou-lhe de súbito a testa. Os lábios retorceram-se-lhe num sorriso. Agradava-lhe aquela reacção física, para a qual contribuíam os chumaços que usava a fim de esconder a sua própria figura delgada. No entanto, era mais do que isso. Ele orgulhava-se de se transformar por completo na pessoa que fingia ser.

Levou um lenço à testa e alisou a fibra sintética da cabeleira bem penteada. Abriu então a porta para o espaço que alugara no centro comercial e entrou. A zona estava limpa e arrumada - pareceu-lhe mesmo que em demasia. Faltava-lhe o aspecto de um verdadeiro local de trabalho. A recepcionista sentada à secretária do vestíbulo ergueu o olhar para Jackson. De acordo com as instruções que dele recebera, nada disse. Não fazia ideia de quem era aquele patrão nem do motivo da sua presença ali. Assim que aparecesse a pessoa com entrevista marcada, as suas instruções iam no sentido de se afastar. Não tardaria a apanhar a carreira para fora da cidade, com a carteira um pouco mais recheada em paga pelo incómodo.

O telefone ao seu lado estava silencioso, a máquina de escrever próxima, por usar. Sim, sem dúvida tudo demasiado bem organizado. Jackson pôs uma folha de papel na máquina e fez rodar o carreto. Atravessou a seguir a pequena zona de recepção e entrou no gabinete interior, onde se sentou atrás de uma secretária de madeira em segunda mão. Num canto da divisão havia um pequeno televisor. Recostou-se na cadeira e afagou o bigodinho escuro. Também este era de fibra sintética, colado à pele com goma dissolvida em éter. Uma base acinzentada realçava as sombras do seu nariz delicado e direito, fazendo-o parecer volumoso e um pouco torto. Os seus dentes alinhados tinham sido cobertos por esmalte acrílico para ficarem com aspecto irregular. Estas características seriam recordadas mesmo pelo observador mais distraído. Assim, quando as retirasse, desapareceria a sua essência. Que mais poderia desejar uma pessoa empenhada de todo o coração em actividades ilegais?

Em breve, se as coisas corressem de acordo com o planeado, tudo começaria de novo. Só tinha de fazer uma pergunta a Luann Tyler. Por experiência anterior, ele tinha quase a certeza de

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qual seria a resposta, mas nunca se sabe. Desejava ardentemente, para bem dela, que a resposta fosse a certa. De contrário ... Bem, o bebé não chegaria a conhecer a mãe, pois ficaria órfão.

O VENTO AGRESTE varria a estrada de terra batida ladeada de bosques densos. Algumas árvores estavam a morrer, inclinadas pelo vento e pela doença para posições que pareciam de sofrimento, mas na maioria eram direitas que nem fusos, com ramos ascendentes e frondosos. Do lado esquerdo da estrada abria-se uma clareira, um semicírculo de lama entremeada com manchas de erva primaveril. Aninhados nessa clareira, havia peças de motor a enferrujarem, montes de lixo e uma colina de latas de cerveja. A meio da ilha semicircular repousava uma caravana sobre uma base de tijolos a esboroarem-se. A caravana parecia um furúnculo no meio do nada. Os ocupantes haviam de concordar com esta descrição: o meio do nada também se lhes aplicava.

Dentro da caravana, LuAnn Tyler contemplava-se no espelhinho empoleirado em cima da cómoda. Inclinava a cabeça para um dos lados, pois a escalavrada peça de mobiliário estava torta, uma vez que uma das pernas se partira. A sua beleza era o único bem de que dispunha - isso fora-lhe martelado na cabeça desde que se lembrava -, embora um dentista pudesse ainda melhorá-la. Nunca ter posto o pé no consultório de um contribuíra para o estado dos seus dentes.

Esperteza nenhuma, claro, repetira-lhe o pai vezes sem conta. Esperteza nenhuma - ou ausência de oportunidades para a demonstrar? Ela nunca discutira o assunto com Benny Tyler, que entretanto morrera há uns bons cinco anos. A mãe, Joy, falecida quase há três anos, nunca fora tão feliz como após a morte do marido. Tempo mais do que suficiente para que LuAnn deixasse de ter em conta a opinião de Benny Tyler sobre a sua capacidade intelectual, mas as rapariguinhas têm tendência para acreditar no que os pais lhes dizem.

Relanceou o olhar para a parede, onde estava pendurado um relógio. Era a única coisa que herdara da mãe - uma espécie de património familiar, pois fora oferecido a Joy Tyler pela sua própria mãe no dia em que casara com Benny. Não tinha valor intrínseco, mas LuAnn encarava-o como um tesouro. Em criança, escutara noite dentro o lento tiquetaque metódico, sabendo que na escuridão o relógio a embalaria e de manhã a saudaria. Com a passagem dos anos, o mecanismo fora-se desgastando, e agora produzia sons extraordinários. Antes de morrer, Joy dissera a LuAnn que o levasse, e ela agora guardava-o para a filha.

Puxou para trás a espessa cabeleira ruiva e tentou fazer um carrapito. Insatisfeita com o aspecto, fez tranças e prendeu-as no alto da cabeça com uma legião de ganchinhos. Com um metro e setenta e cinco, tinha de se baixar para se ver ao espelho.

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A intervalos de segundos, relanceava o olhar para a pequena trouxa na cadeira ao seu lado. Sorria ao contemplar os olhinhos sombrios e as bochechas rechonchudas. Oito meses e a crescer bem depressa, a filha já começara a gatinhar, com o divertido balancear para trás e para diante, características da primeira infância. Em breve, passaria a andar. LuAnn deixou de sorrir ao olhar em volta. Lisa não demoraria muito tempo a conhecer os limites daquele lugar. O interior, apesar dos esforços de LuAnn para o manter limpo, assemelhava-se ao exterior, em grande parte devido às crises temperamentais do homem estendido em cima da cama. Duane Harvey tivera um ou dois espasmos desde que entrara em casa a cambalear, às 4 da manhã, e se metera na cama, permanecendo imóvel o resto do tempo. A jovem recordou com carinho a única noite, no princípio do seu relacionamento, em que Duane não chegara ébrio a casa. Lisa fora o resultado. As lágrimas brilharam por um instante fugaz nos olhos cor de avelã de LuAnn, mas ela não tinha tempo nem paciência para lágrimas, principalmente as suas. Aos vinte anos, achava que já chorara o suficiente para a vida inteira.

Voltou-se de novo para o espelho e arrancou os ganchos. Atirou o cabelo para trás e depois deixou que as madeixas lhe caíssem para a testa. Era o penteado que usara na escola, pelo menos até ao sétimo ano de escolaridade, quando se juntara a muitas das suas amigas na desistência dos estudos para procurarem trabalho e o cheque de pagamento que o acompanhava. Metade do salário de LuAnn servia para ajudar os pais, cronicamente desempregados, com a outra metade pagava as coisas que os pais não podiam dar-lhe, como alimentação e vestuário.

A jovem relanceou o olhar para Duane ao desabotoar o roupão esfarrapado. Não vislumbrando nele sinais de vida, apressou-se a enfiar a roupa interior. Ao crescer, o desabrochar da sua figura fora uma verdadeira revelação para os rapazes da terra. LuAnn Tyler, a futura "actriz-supermodelo", epíteto com que a haviam presenteado os residentes de Rikersville, na Geórgia, e que carregava o contrapeso de expectativas impossíveis. Ela não se atardaria muito tempo por ali, proclamavam as mulheres da terra, enrugadas e obesas, no tribunal dos seus largos alpendres periclitantes. Nova Iorque ou talvez Los Angeles atrairiam LuAnn. Só que a jovem ainda ali continuava, sempre na mesma terra onde passara toda a vida.

LuAnn examinou o conteúdo do seu pequeno roupeiro. Só tinha um vestido adequado para a entrevista: o azul-escuro, de mangas curtas e com vivo branco. Recordou-se do dia em que o comprara. Um salário inteiro desperdiçado. Sessenta e cinco dólares inteirinhos. Fora há dois anos, e ela não repetira tão louca extravagância. Ficara a pé até tarde, a pintar as esfoladelas do seu único par de sapatos de salto alto. Eram castanho-escuros e não davam com o vestido, mas tinham de servir.

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PRIMEIRO PRÉMIO

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Chinelas ou ténis, as outras únicas opções, não davam para aquele dia, embora levasse estes para a caminhada de quase dois quilómetros até à paragem do autocarro.

LuAnn abriu o fecho de correr da bolsa interior da sua carteira e desdobrou um papelinho. Escrevera os elementos durante a chamada telefónica de um tal Mr. Jackson, chamada que estivera quase para não atender depois de cumprir o turno da meia-noite às 7 como criada no Number One Truck Stop.

Quando o telefone tocara, LuAnn estava sentada no chão da cozinha da caravana a dar de mamar a Lisa. Os dentinhos desta estavam a despontar, e a mãe sentia os mamilos em fogo, só que o leite em pó para bebés era muito caro e esgotara-se-lhes o leite de pacote. A princípio, apetecera-lhe não atender o telefone. O emprego no popular retiro de camionistas não lhe deixava um momento de descanso, com Lisa instalada em segurança por baixo do balcão na cadeirinha de bebé. Por sorte, o gerente do restaurante simpatizava o suficiente com LuAnn para lhe permitir aquele esquema sem prejuízo do emprego.

Não recebiam muitas chamadas. Era quase sempre o amigalhaço de Duane à procura dele para irem beber ou roubar peças a carros que se tivessem avariado na estrada. Mas ao terceiro toque, por qualquer razão, LuAnn atendeu. O homem pedira para falar com ela pelo nome e depois oferecera-lhe emprego. A rapariga respondera que já tinha, e o interlocutor perguntara-lhe quanto ganhava. LuAnn começara por se

recusar a responder, mas depois tinha-lhe dito, não sabia porquê. Mais tarde, havia de pensar que fora uma premonição do que viria depois.

Fora então que o homem mencionara o ordenado. Cem dólares por dia útil, com duas semanas garantidas. E não iam ser dias completos. Ele mencionara um máximo de quatro horas por dia. O emprego no retiro de camionistas nem sequer seria afectado. O trabalho, dissera o interlocutor, implicava dar a opinião dela sobre coisas. Uma espécie de sondagem. Análise demográfica, fora o que o homem dissera. Cem dólares por dia para dar opiniões - uma coisa que ela fazia de graça em quase todos os minutos da sua vida.

Era demasiado bom para ser verdade, com franqueza. LuAnn pensara isso várias vezes desde o telefonema. Não era tão estúpida como o pai pensara. Na realidade, para lá do rosto bonitinho ficava um intelecto mais valoroso do que o falecido Benny Tyler podia ter imaginado, complementado por uma astúcia que lhe permitia viver há anos sem depender de quem quer que fosse.

Ela olhou para Lisa. Os olhinhos da garota percorriam o quarto até pousarem com alegria na cara da mãe. O olhar desta correspondeu ao da filha. Dobrou o papelinho e voltou a pô-lo na

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carteira. Fazendo deslizar uma caixinha dentro de uma gaveta, tirou o dinheiro suficiente para o bilhete de autocarro. Pegou em Lisa e saiu da caravana.

BATERAm à porta com força. O homem à secretária levantou-se. - Entre - pronunciou em voz firme e nítida. A porta abriu-se, e LuAnn entrou no gabinete. Na mão esquerda segurava a pega do porta-bebés onde Lisa estava deitada. Ao ombro direito transportava um grande saco. O homem observou a veia que descia pelo longo braço musculoso de LuAnn ao encontro de um emaranhado de outras no antebraço, igualmente musculoso. Via-se que ela era fisicamente forte. E quanto ao carácter? Seria também forte?

- Mr. Jackson? - perguntou a recém-chegada. - Exacto. - Estendeu-lhe a mão, que ela apertou com firmeza. -

Queira fazer o favor de se sentar, Ms. Tyler. - Ele próprio sentou-se.

LuAnn pousou Lisa e o saco, de onde tirou um conjunto de chaves de plástico que deu à filha para brincar. Endireitou-se de novo e olhou em redor com curiosidade.

Jackson reparou que ela esquadrinhava o gabinete. - Passa-se alguma coisa? - perguntou-lhe. - Isto é um escritório estranho, é só. - Que quer dizer? - Bem, não tem relógio, nem calendário, nem telefone. E a senhora da recepção não tem a mais pequena ideia do que está ali a fazer. -

LuAnn captou a expressão de espanto no rosto do interlocutor e mordeu o lábio. Já muitas vezes se metera em sarilhos por falar demais, e aquela era uma entrevista que não podia dar-se ao luxo de desperdiçar. - Não tem importância nenhuma - apressou-se a corrigir. - E só falar por falar. Devo estar um bocadinho nervosa, mais nada.

Jackson esboçou um sorriso contrafeito. - É muito observadora. - Tenho dois olhos como toda a gente. - LuAnn fez um sorriso bonitinho, refugiando-se no que sempre resultava.

O interlocutor ignorou-lhe o olhar. - Lembra-se das condições de que lhe falei ao telefone? A jovem regressou ao tom formal: - Cem dólares por dia durante duas semanas. De momento, estou a trabalhar até às sete da manhã. Se puder ser, gostava de vir fazer isto ao princípio da tarde. Por volta das duas horas? E posso trazer a minha menina? Ela costuma fazer a sesta a essa hora; não causa problemas nenhuns. - Num movimento automático, LuAnn baixou-se, apanhou do chão as chaves de brincar que a pequenita para lá atirara e devolveu-as a Lisa.

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Jackson levantou-se. - Tudo bem. Você é filha única e os seus pais já morreram, não é verdade? - A jovem estremeceu perante a abrupta mudança de assunto. Hesitou e acabou por confirmar com um aceno de cabeça, ao mesmo tempo que franzia os olhos. - E vive com um tal Duane Harvey, de momento desempregado, numa caravana no lado ocidental de Rikersville. Harvey é o pai da sua filha, Lisa, que tem oito meses. Você deixou de estudar no primeiro ano do terceiro ciclo de ensino básico e desde então tem tido numerosos empregos sem futuro. É excepcionalmente inteligente e possui admiráveis capacidades de sobrevivência. Nada é mais importante para si do que o bem-estar da sua filha. Está desesperada por mudar de vida e também por deixar Mr. Harvey. De momento, não sabe como irá conseguir isso. Sente-se encurralada, e tem razão para tal. Está mesmo encurralada, Ms. Tyler.

- Como é que sabe tudo isso a meu respeito? - indagou LuAnn. Jackson contornou a secretária e empoleirou-se na beira desta. - Tenho o máximo interesse em saber tudo o que puder sobre uma

pessoa com quem estou prestes a fazer um negócio.

- O que é que saber coisas a meu respeito tem a ver com opiniões, inquéritos e coisas dessas?

- É muito simples. Para saber como avaliar as suas opiniões, preciso de ter pormenores íntimos sobre quem você é, o que pretende, o que sabe. E o que não sabe. Peço desculpa se a ofendi. Por vezes, falo sem papas na língua; porém, não queria fazê-la perder tempo, Ms. Tyler. Posso tratá-la por LuAnn?

- É o meu nome - redarguiu ela com brusquidão. O homem baixou o olhar para a secretária, passando as mãos com lentidão pela sua superfície irregular. Até que fitou a jovem.

- Já alguma vez sonhou ser rica, LuAnn? Tão rica que você e a sua filha pudessem fazer tudo o que quisessem na vida?

- Quem não sonhou com isso? Jackson afagou o queixo por segundos antes de retomar a palavra. - LuAnn, costuma jogar na lotaria? A interlocutora ficou surpreendida com a pergunta, mas não deixou de responder de imediato:

- As vezes. Aqui, toda a gente joga. Contudo, pode tornar-se caro. Duane joga todas as semanas, às vezes gasta metade do que ganha. Joga sempre com os mesmos números. Diz que os viu num sonho. Cá para mim, é estúpido que nem uma porta. Porque quer saber?

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- Alguma vez jogou na lotaria nacional? - Refere-se à que dá para o país todo? Ele acenou com a cabeça. - Sim, é mesmo a essa que me refiro. - De vez em quando. No entanto, as probabilidades são tão poucas que tenho mais hipóteses de ir à Lua do que de ganhar a lotaria.

- Tem razão. De facto, neste mês a probabilidade de ganhar é mais ou menos de um em trinta milhões. - O homem humedeceu os lábios

com a língua. - Mas ... e se eu pudesse melhorar as suas probabilidades? Se pudesse transformá-las em certeza? Que faria?

- Isto é alguma brincadeira? Que tem isso a ver com o emprego? - Não é brincadeira nenhuma, LuAnn. Ela levantou-se da cadeira. - De certeza que o senhor está a cozinhar alguma, e eu não quero participar nisso. Não quero mesmo! Cem dólares por dia ou não - declarou, com o desagrado a misturar-se com a desilusão por depressa se

desvanecerem os planos que já começara a fazer para o dinheiro que esperara ganhar. Pegou em Lisa e no saco e virou-se para sair.

O tom calmo de Jackson provocou-lhe um arrepio nas costas: - Garanto-lhe um prémio mínimo de cinquenta milhões de dólares.

A rapariga parou. Embora o cérebro lhe mandasse escapulir-se dali * mais depressa possível, deu por si a rodar com lentidão para enfrentar * homem. Ele tinha dito cinquenta milhões de dólares? Deus do Céu!!

- Preciso de uma resposta à minha pergunta. Quer ser rica? - É louco? - LuAnn passou o porta-bebés com Lisa da mão direita para a esquerda. - É completamente impossível garantir uma coisa dessas. Portanto, vou limitar-me a sair daqui e ligar para o manicómio para virem buscá -lo.

Em resposta, Jackson olhou para o relógio e foi ligar o televisor.

- Dentro de um minuto vão girar os números diários nacionais. O prémio é só de um milhão de dólares, mas serve para demonstrar o que pretendo. - LuAnn fitou o ecrã. Viu começar a extracção da lotaria, com as máquinas das bolas a serem accionadas. Jackson relanceou o

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olhar para ela. - Os números sorteados vão ser: oito, quatro, sete, onze, nove e seis, por esta ordem. - Tirou da algibeira uma caneta e papel, escreveu os números e entregou-lhe o papel.

Ela quase soltou uma gargalhada. Parou contudo assim que o primeiro número anunciado foi o oito. Em rápida sucessão, foram expelidas as bolas do quatro, sete, onze, nove e seis. Pálida, LuAnn fitava o papel.

O homem desligou o televisor. - Talvez agora possamos regressar à minha proposta. Ela fitou o aparelho. Não viu fios especiais que pudessem ter contribuído para a previsão do resultado. Não havia vídeo. Havia apenas uma ligação à tomada de parede. Voltou a olhar para Jackson.

- Como é que fez aquilo? - As palavras saíram-lhe num tom baixo, temeroso.

- Limite-se a responder à minha pergunta, por favor. Ela respirou fundo, tentando acalmar os nervos em franja. - Está a pedir-me que faça uma coisa errada. Recuso terminantemente. Sou pobre, mas não sou criminosa.

- Quem diz que há alguma coisa errada? - Desculpe, mas garantir que se ganha na lotaria parece-me fraude. Acha que sou burra?

- Pelo contrário, tenho a sua inteligência em grande conta. Porém, alguém tem de ganhar todo aquele dinheiro, LuAnn. Porque não você?

- Porque não está certo. - Ela virou-se e pôs a mão na maçaneta da porta.

Era aquele o momento que Jackson esperava. Elevou o tom de voz: - Então, Lisa vai crescer numa caravana no meio do bosque. A sua filha vai ser de uma beleza extraordinária se sair à mãe. Chega à idade perigosa, os rapazes interessam-se por ela, desiste dos estudos; segue-se um bebé, e o ciclo recomeça. - Fez uma pausa. - Como você. -

LuAnn rodou sobre si própria, com os olhos chamejantes. Jackson fitava-a com compaixão. - É inevitável, LuAnn. Vai viver na pobreza e

morrer na pobreza, e o mesmo acontecerá à sua pequenita. Estou a proporcionar-lhe uma saída.

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Ela encostou-se à porta. Sentia o coração a bater descompassado. - Porquê eu? Porque veio bater à minha porta? - Boa pergunta. Mas não estou em condições de lhe responder. - Então, que sucede se eu colaborar e perder? - Perder o quê? - Os dois dólares que custa o bilhete, claro! Pode não lhe parecer muito, mas serve para pagar o autocarro durante quase uma semana!

Jackson extraiu do bolso duas notas de dólar e entregou-lhas. - Pode considerar esse risco eliminado. - Quero saber o que ganha o senhor com isso. Já não tenho idade para acreditar em fadas. - Os olhos de LuAnn estavam agora límpidos e bem focados.

- Volta a ser uma boa pergunta, mas só se justifica se e quando concordar participar. Tem razão, no entanto. Não faço isto desinteressadamente. - Um sorrisinho escapou-se-lhe por entre os lábios. - É uma transacção comercial.

LuAnn fez deslizar o dinheiro para dentro do saco. - Se quiser a minha resposta neste preciso momento, é não. - Dou-lhe um tempo para pensar. - O homem escreveu um número verde num papelinho e encaminhou-se para ela. - Porém, não demasiado. A extracção da lotaria mensal realiza-se dentro de quatro dias. Preciso da sua resposta até às dez da manhã de depois de amanhã. Com este número, atendo onde quer que esteja.

- E se daqui a dois dias eu continuar a dizer que não, que é o mais provável?

Jackson encolheu os ombros. - Então, outra pessoa ganha a lotaria, LuAnn. - Pôs-lhe o papel na mão. - Lembre-se, um minuto depois das dez da manhã e a proposta caduca. Para sempre. - Claro que o homem não mencionou o facto de que, se ela recusasse, mandava matá-la de imediato. Enquanto ela saía a porta, Jackson acrescentou: - Obrigado por ter vindo, LuAnn. E passe um muito bom dia.

- Porque será que eu acho que Jackson não é o seu verdadeiro nome? - perguntou a jovem com um olhar penetrante.

- Espero ter notícias suas, LuAnn. Gosto de ver coisas boas acontecerem a pessoas que merecem. - Fechou a porta devagarinho nas costas dela.

Em VEz de apanhar a carreira para casa, LuAnn levou Lisa a visitar a sua amiga Wanda. Precisava de tempo para pensar e não suportava a ideia de regressar à caravana onde Duane Harvey estava encafuado à espera delas, de certeza de mau humor.

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Ao fim do dia telefonou para o emprego a dizer que estava doente e passou a noite sem dormir, de olhos fixos na lua cheia, enquanto a sua mente analisava a proposta de Jackson. Se ela ganhasse mesmo a lotaria, podia fazer tudo o que quisesse. Tudo! Só de pensar nisso sentia ganas de gritar de alegria. Gostava de viajar pelo mundo fora. Nunca saíra de Rikersville, povoação conhecida principalmente pela sua feira anual e os seus matadouros fedorentos. Podia contar pelos dedos de uma mão as vezes em que andara de elevador.

O único inconveniente era que a proposta de Jackson tresandava a ilegalidade, a fraude, o que era um inconveniente de monta. E se ela alinhasse e fosse apanhada? Podia ir parar à prisão. Então que seria de Lisa? Sentiu-se de súbito infeliz. Como a maior parte das pessoas, já muitas vezes sonhara em encontrar um tesouro, o qual, todavia, nunca

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PRIMEIRO PRÉMIO

estivera ligado a correntes e prisões. Acabou por resolver não tomar decisões enquanto não estivesse mais informada.

NA MANHÃ SEGUINTE, LuAnn foi à biblioteca municipal. Há anos que lá não ia, mas lembrava-se, dos tempos da escola, que arquivavam ali diversos jornais em microfilme. Localizou o arquivo de um dos jornais mais importantes e procurou as caixas com as películas referentes aos últimos seis meses. Sentou-se a um terminal e inseriu a primeira película na máquina. Com Lisa empoleirada no colo, percorreu a primeira página com o olhar. Não demorou muito a encontrar o que queria: VENCEDOR DA LOTARIA ARRECADA QUARENTA E CINCO MILHõES DE DóLARES. Tirou uma manta do saco, colocou-a no chão com uns brinquedos e depositou Lisa em cima dela antes de voltar de novo a atenção para o

título. A extracção da lotaria nacional realizava-se no dia quinze de cada mês. As datas que visionava correspondiam aos dias de dezasseis a vinte. Passou ao mês seguinte.

Passadas duas horas, já completara a análise dos últimos cinco vencedores: Judy Davis, vinte e sete anos, mãe de três filhos pequenos, a

viver da Segurança Social; Herman Rudy, cinquenta e oito anos, camionista inválido, com pesadas contas de medicamentos; Wanda Tripp, sessenta e seis anos, viúva, a subsistir com quatrocentos dólares por mês pagos pela Segurança Social; Randy Stith, trinta e um anos,

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viúvo ' que perdera o emprego numa linha de montagem, e Bobbie Jo Reynolds, trinta e três anos, empregada de mesa.

LuAnn enterrou-se na cadeira. E LuAnn Tyler, vinte anos, mãe solteira, com a escolaridade incompleta, sem perspectivas, sem futuro. Enquadrava-se perfeitamente naquele grupo. A cara de Jackson veio-lhe à ideia. "Alguém tem de ganhar. Porque não você?" Sentiu-se começar a deslizar por cima de uma barragem imaginária. Não tinha era a

certeza sobre o que a aguardava na profundidade das águas lá em baixo. Olhou para Lisa. Não conseguia afastar a imagem da sua menina a crescer numa caravana, sem escapatória possível, com os lobos a rondarem.

ERAm 8 HORAS da manhã do dia. LuAnn acabara havia pouco o seu

turno no restaurante. Ela e Lisa tinham apanhado o autocarro, como de costume. Quando se apearam, LuAnn olhou em frente, para os campos suavemente ondulados, e a sua disposição tornou-se ao mesmo tempo sombria e expectante. Passou com lentidão sob o arco do portão e pelo letreiro que anunciava a entrada no Cemitério dos Campos Celestiais. Os longos pés esguios levaram-na automaticamente até à secção 14, talhão 6. Pousou o porta-bebés de Lisa no banco de pedra perto da sepultura da mãe e pegou na pequenita. Ajoelhando-se na relva orvalhada, afastou raminhos e terra da placa de bronze da lápide. A mãe, Joy, não vivera muito tempo - trinta e sete anos. Mas o tempo parecera simultaneamente breve e uma eternidade a Joy Tyler; LuAnn sabia isso. Os

anos com Benny não tinham sido agradáveis.

- É aqui que está a tua avó, Lisa. - LuAnn ergueu a filha e apontou para o terreno sobreelevado. - Não pode falar connosco; mas se fechares os olhos com toda a força, como os passarinhos pequeninos, e

escutares com muita atenção, é como se a ouvisses. Diz-te o que pensa sobre os assuntos. - LuAnn levantou-se e sentou-se no banco, com Lisa ao colo. O silêncio do cemitério deserto era tranquilizador, e a jovem fechou os olhos com força, como os passarinhos pequeninos, e escutou com o máximo de atenção de que era capaz.

LuAnn ia ali com frequência pôr flores no lugar de descanso eterno da mãe e conversar. Acreditava comunicar de facto com a mãe. Por vezes, naquele lugar, a euforia ou uma tristeza

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profunda apoderavam-se dela, e ela sentia que era a mãe a estender-lhe a mão. A rapariga estava hoje com esperança de receber alguma comunicação que a esclarecesse sobre o que devia fazer. Mas nada aconteceu. Preparava-se para se ir embora quando foi dominada por uma sensação que nunca experimentara. Os seus olhos eram atraídos por outro talhão a quinhentos metros de distância. Algo a puxava para lá, e LuAnn não tinha qualquer dúvida sobre o que era. Agarrou Lisa bem junto a si e começou a descer o sinuoso caminho asfaltado. Ao aproximar-se do local, o céu pareceu escurecer. O vento assobiava em torno dos gastos monumentos funerários. Com o cabelo todo para trás empurrado pelo vento, a rapariga acabou por parar e olhar para baixo. A placa de bronze era semelhante à da mãe, e o apelido era o mesmo: BENJAMIN HERBERT TYLER. Ao fitar o nome do pai, foi de súbito acometida pela intensa sensação que não conseguira obter junto da campa da mãe. Era quase como se avistasse os fios de uma ténue membrana a rodopiarem sobre a sepultura, qual teia de aranha apanhada pelo vento. Não fechara os olhos com força,

como os passarinhos. Nem sequer se pusera à escuta com atenção. Porém, o discurso imortal de Benny Tyler chegou até à sua filha única: "Pega no dinheiro, miúda. É o que te diz o teu paizinho. Usa os poucos miolos que tens. Fá-lo pelo teu pai."

LuAnn virou-se e desatou a fugir. Apertando Lisa contra o peito, pegou no porta-bebés e saiu pelo portão do cemitério a toda a velocidade. As suas pernas compridas galgavam o terreno, com uma passada simultaneamente maquinal na sua precisão e maravilhosamente felina na sua graciosidade.

Tinha o peito a arder. Abrandou. Lisa já berrava a plenos pulmões, e

a mãe acabou por parar para abraçar com força o seu bebé, sussurrando-lhe palavras meigas ao ouvido enquanto descrevia grandes círculos lentos pela estrada de terra batida até o choro terminar por fim.

LuAnn fez a pé o resto do caminho para casa. As palavras de Benny Tyler tinham-na ajudado a tomar uma decisão. Ia fazer as malas com o que pudesse transportar da caravana e depois pedia a alguém que fosse buscar o resto. Ficava por uns tempos em casa da amiga, Beth. Ela já antes lho propusera. Tinha urna casa velha, mas com muitas divisões, e

a sua única companhia era um par de gatos que Beth jurava serem mais malucos do que ela própria. LuAnn levava Lisa para as aulas, se fosse preciso, mas havia de conseguir terminar a escolaridade obrigatória e

até talvez se inscrevesse em algumas cadeiras do secundário. Mr. Jackson podia arranjar outra pessoa que a substituísse. Todas estas respostas aos seus dilemas tinham-se abatido tão de

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rompante sobre ela que a rapariga mal conseguia evitar que a cabeça lhe voasse de cima dos ombros de alívio. Talvez a mãe tivesse comunicado com ela de uma forma indirecta, porém a magia resultara.

LuAnn abrandou ao aproximar-se da caravana. Estava um carro estacionado à entrada. Um descapotável preto-brilhante, grande e largo, com pneus pintados de branco dos lados. A velha Ford de Duane fora apreendida. Nenhum dos amigalhaços dele guiava nada que se parecesse com aquela máquina louca. Que se passaria? Examinou o veículo. Os assentos eram de cabedal branco. As chaves pendiam da ignição. Um telefone repousava num dispositivo montado no tablier

LuAnn subiu à pressa os degraus da caravana. - Duane? - Bateu na porta com força. Não obteve resposta. A jovem pousou a agitada Lisa na cadeirinha de bebé e percorreu a caravana. - Duane, estás aí? - Entrou no quarto, mas o companheiro não se encontrava lá. Os olhos cravaram-se-lhe no relógio de parede. Só precisou de um instante para o meter no saco. Não ia deixá-lo a Duane. Saiu do quarto e percorreu o corredor. Parou a acalmar Lisa e pousou o saco ao lado do bebé.

Viu Duane caído no sofá puído. Em cima da mesinha estava um recipiente de asas de frango todo engordurado. Ela ignorava se aquilo fora o pequeno-almoço dele ou se eram os restos do jantar da véspera.

- Olha lá, Duane, não me ouviste? Ele voltou a cabeça com lentidão. LuAnn ficou de cenho carregado. Outra vez bêbado. Ela deu um passo em frente.

- Duane, temos de conversar. E não vais gostar, mas paciência, porque... - Não pôde continuar, pois uma manápula tapou-lhe a boca. Um braço poderoso rodeou-lhe a cintura, prendendo-lhe as mãos aos lados. Com os olhos em pânico a percorrerem a divisão, ela reparou pela primeira vez que a frente da camisa de Duane estava manchada de vermelho. Enquanto o fitava, horrorizada, ele caiu do sofá com um gemido fraco e não voltou a mexer-se.

A mão atirou-se-lhe ao pescoço e puxou-lhe o queixo para cima com tanta força que LuAnn pensou que lhe ia quebrar o pescoço. Viu outra mão a segurar uma lâmina que descia em direcção ao seu pescoço. No entanto, o homem cometera um erro. Com uma das mãos a firmar-lhe o queixo e a outra a empunhar a navalha, líbertara-lhe os braços. Talvez tivesse pensado que ela ficaria paralisada de medo. Longe disso. Com o calcanhar, LuAnn escoiceou-lhe o joelho, ao mesmo tempo que lhe enfiava o cotovelo ossudo na barriga balofa, comprimindo-lhe o diafragma.

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A força do golpe de LuAnn fez a mão do homem desviar-se, e a navalha resvalou pelo maxilar da jovem. O atacante caiu no chão, ofegante, e a navalha tombou sobre o tapete. LuAnn correu para a porta, mas o atacante agarrou-lhe uma perna de passagem e a rapariga caiu no chão a pouca distância dele, que lhe rodeou o tornozelo com dedos grossos e a puxou na sua direcção. O homem era o dobro de LuAnn. Esta sabia não ter hipóteses em termos de força, por isso, em vez de resistir, atirou-se contra ele, gritando a plenos pulmões. O berro e o pulo repentino sobressaltaram-no. Desequilibrado, soltou-lhe a perna. No segundo seguinte, ela enfiou-lhe os indicadores nos olhos. A uivar, o homem atirou-se para trás, ricocheteando na parede como uma bola e indo embater às cegas em LuAnn. Ambos caíram para cima do sofá. Na queda, a

mão dela apanhou um objecto. Não viu bem o que era, mas era sólido e duro, que foi o que lhe interessou quando desferiu um golpe na cabeça do homem imediatamente antes de chegar ao chão.

O telefone desfez-se em pedaços ao embater no crânio espesso. Aparentemente inconsciente, o atacante jazia de borco no chão, com sangue a jorrar de um ferimento na cabeça. Após um momento, LuAnn sentou-se. Tinha o braço dormente no ponto em que embatera na mesinha, e a blusa rasgada e suja de sangue. Limpou a cara e tocou no corte, irregular e sangrento. Embora o atacante ainda respirasse, LuAnn não tinha a mesma certeza em relação a Duane. Arrastou-se até ele e procurou sentir-lhe o pulso. Se o coração ainda batia, não conseguiu senti-lo.

- Oli, meu Deus, Duane, que fizeste tu? - Fitou os destroços do telefone. Não tinha hipótese de chamar uma ambulância, embora talvez o melhor fosse recorrer à Polícia. Descobrir quem era o outro homem, qual a razão para ter esfaqueado Duane e tentado matá-la.

Quando se levantou para sair, reparou num montinho de pacotes de plástico que ficara escondido atrás do balde de frango. Caíra de cima da mesa durante a luta. Pegou num pacote: continha uma pequena porção de pó branco. Droga.

Ouviu então choramingar. Oli, não, onde estava Lisa? Havia ainda outro som. LuAnn rodou de um salto sobre si própria e olhou para baixo. O homenzarrão começara a levantar-se. Ia direito a ela! LuAnn largou o pacote e correu para a saída. Arrebatando Lisa com o braço intacto, saiu disparada porta fora. Passou pelo descapotável, deteve-se e voltou atrás. As chaves pendentes tinham um brilho tentador à luz do Sol. LuAnn hesitou por um instante; no momento seguinte, Lisa e ela estavam dentro do carro. A jovem ligou o motor e ziguezagueou até à estrada. Duane devia ter começado a vender droga. Só que, com certeza, se tornara ambicioso, retendo uma quota exagerada para si próprio. Idiota! LuAnn tinha de chamar a Polícia. Se Duane estivesse vivo, não podia deixá-lo para ali a morrer.

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Ao entrar na estrada principal, relanceou o olhar para Lisa. A garotinha estava de olhos esbugalhados no porta-bebés. Ela pousou o braço magoado sobre a filha, mordendo o lábio para não gritar com a dor que aquele simples movimento lhe provocou. Nessa altura, reparou no telefone celular. Encostou à berma, pegou no aparelho e começou a ligar o

número das emergências. No entanto, quando lhe ocorreu que podia ser implicada em tudo aquilo, largou o telefone. Tanto quanto sabia, apesar de ter começado a mexer-se, o tipo podia ter voltado a cair para trás, morto. Se assim fosse, teria sido homicídio em legítima defesa. Ela sabia disso, mas alguém acreditaria? Um traficante de droga. LuAnn ia no carro dele. Seguiu estrada fora.

A Polícia acreditaria na sua ignorância dos negócios de droga de Duane? De algum modo, ele conseguira esconder-lho, mas alguém acreditaria? Até a ela lhe custava a acreditar. A realidade avassalou-a como um fogo numa casa de papel. Parecia não haver escapatória. No entanto, talvez houvesse. O olhar recaiu-lhe no relógio do tablier Passavam cinco minutos das 10 horas. "Caduca. Para sempre", dissera Jackson. LuAnn encostou uma vez mais à berma e pousou a cabeça no volante, desalentada. Que aconteceria a Lisa enquanto ela estivesse na prisão?

747

DAVID BALDAM

Ergueu devagar a cabeça e olhou para o outro lado da rua, esfregando os olhos a fim de conseguir focar a imagem - uma dependência bancária, atarracada, sólida, de tijolo maciço. Quando o olhar lhe vagueou até à frontaria do banco, o seu estado de espírito mudou de repente. O relógio lá instalado marcava quatro minutos para as 10. Agarrou de imediato no telefone, a procurar freneticamente no bolso o papelinho com o número. Houve apenas um toque antes de a chamada ser atendida.

- Estava a começar a interrogar-me a seu respeito, LuAnn - declarou Jackson.

A jovem obrigou-se a respirar com normalidade. - Acho que me distraí com as horas. E agora? - Não está a esquecer-se de uma coisa? - De quê? - Fiz-lhe uma proposta, LuAnn. Para termos um acordo legal, preciso da sua aceitação.

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- Aceito. - Óptimo. Agora, vá comprar um bilhete de lotaria. - Com que números jogo? - Isso não tem importância. - Não percebo. Pensei que ia dizer-me com que números havia de jogar. Os números ganhadores.

- Não precisa de perceber nada, LuAnn. - A voz de Jackson subira de tom. - Quando tiver o bilhete, volte a ligar-me e diga-me os números. Eu trato do resto.

- Então, quando é que recebo o dinheiro? - Haverá uma conferência de imprensa ... - Conferência de imprensa?! Jackson soou, exasperado: - Nunca viu? O vencedor vai a uma conferência de imprensa em Nova Iorque, que é transmitida pela televisão para todo o país. Tiram-lhe a fotografia com um cheque simbólico na mão, é urna publicidade estupenda para a Lotaria.

- Tem de ser? Eu não quero aparecer na televisão. - Bem, lamento, mas não tem escolha possível. Vai ganhar pelo menos cinquenta milhões de dólares. Em troca desse dinheiro, a Lotaria espera que seja capaz de aguentar uma conferência de imprensa. E parece-me razoável, se quer que lhe diga.

Ela exalou um suspiro. - Quando recebo o dinheiro? - Será transferido para uma conta indicada por si.

- Eu não tenho conta. Nunca tive dinheiro suficiente para abrir uma. - Eu trato disso. A única coisa que você tem de fazer é ganhar. Vá a Nova Iorque com Lisa, segure no grande cheque, sorria e depois passe o resto da vida na praia.

- Como é que chego a Nova Iorque? - Apanha um autocarro para a Estação Ferroviária de Atlanta. Pertence à linha do Crescent da Amtrak. A viagem é comprida: umas dezoito horas; porém, durante uma grande parte vai estar a dormir. Pode partir para Nova Iorque assim que andar a roda.

As figuras caídas de Duane e do homem que tentara matá-la passaram pela mente da jovem.

- Não posso apanhar o comboio ainda hoje? - Não a quero em Nova Iorque assim tão depressa. - Por favor! - Só um minuto. - Jackson pôs a chamada em espera. Quando voltou à linha, informou: - O Crescent passa por Atlanta às sete e um

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quarto da tarde e chega a Nova Iorque à uma e meia da tarde de amanhã. Atlanta fica a umas duas horas de autocarro de onde você está. Precisa de dinheiro para o bilhete e fundos adicionais para despesas de viagem. Há um escritório da Western Union perto da estação. Vou transferir para lá cinco mil dólares em seu nome. - LuAnn engoliu em seco ao ouvir a quantia. - Só precisa de mostrar um documento que a identifique ...

- Não tenho nenhum. - Carta de condução ou passaporte é quanto basta. Ela quase soltou uma gargalhada. _ Passaporte? Não preciso de passaporte para ir do restaurante ao centro comercial, pois não? E também não tenho carta de condução.

- Bem, não pode receber o dinheiro sem um documento de identificação.

Ocorreu a LuAnn uma ideia repentina. Pousou o telefone e revistou à pressa o interior do carro. A pasta de cabedal castanho que encontrou debaixo do banco da frente não a desiludiu. Continha dinheiro suficiente para comprar o bilhete de comboio.

- Uma senhora com quem trabalho ... o marido deixou-lhe dinheiro quando faleceu. Posso pedir-lhe um empréstimo - inventou. - Não preciso de identificação se pagar com dinheiro, pois não?

- O dinheiro é rei, LuAnn. Decerto que a Amtrak aceita. Só não use o seu verdadeiro nome e ponha qualquer coisa que lhe esconda a cara para não ser reconhecida. Agora, vá comprar o bilhete de lotaria e volte a telefonar-me.

LuAnn pousou o telefone. Tinha de desfazer-se do carro. Só não sabia onde. Teve uma ideia e fez inversão o de marcha. Passados vinte minutos, estava a estacionar em frente da caravana, com o frio do medo a dominá-la ao sentir de novo as mãos do homem em redor do pescoço. Tirou um toalhete do saco de Lisa e esfregou com ele as superfícies do carro em que tocara. Depois, apeou-se, enfiando por baixo do forro da cadeirinha de Lisa o maior número de notas possível tiradas da pasta de cabedal. Endireitou o melhor que pôde a blusa rota e, segurando Lisa

com o braço bom, afastou-se pela estrada de terra batida.

De dentro da caravana, um par de olhos escuros assistiu à partida apressada de LuAnn. O casaco de cabedal escuro que o homem tinha vestido estava fechado até meio com fecho de correr, e a coronha de uma pistola de nove milímetros aparecia dentro do bolso interior. Ele passou por cima dos dois homens caídos no chão, tendo o cuidado de evitar as poças de sangue. Aparecera no momento oportuno. Ficara com os despojos de uma batalha que nem

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sequer tivera de travar. Ao apanhar os pacotes de droga, reparou no tecido rasgado que estava no

chão. Era da blusa da rapariga. Enfiou-o no bolso. Ela devia ter aparecido a meio daquilo, deduziu o desconhecido. O homem gordo dera cabo do pequeno, e LuAnn conseguira de algum modo acabar com o gordo. A admiração que já sentia por ela aumentou ao observar a envergadura do homem.

Corno se sentisse estar a ser observado, o gordo mexeu-se. O recém-chegado baixou-se, recorreu a um pano para apanhar a navalha e a seguir mergulhou-a repetidas vezes no tronco do homem. Depois, virou Duane e tentou determinar se o peito deste se movia. Por uma questão de segurança, aplicou alguns golpes criteriosos para se assegurar de que Duane Harvey se juntava ao gordo no além.

Passados poucos segundos, saía porta fora. Tinha o carro estacionado numa vereda lateral que serpenteava pelo bosque. Quando entrou, o

telefone do veículo estava a tocar. Atendeu.

- Os seus deveres terminaram - declarou Jackson. - A caçada foi suspensa.

Anthony Romanello interrogou-se se havia de referir a Jackson a existência de dois cadáveres na caravana, acabando por decidir não o

fazer. Podia ter tropeçado em algo interessante.

- Vi a miúda raspar-se daqui a pé, mas não parece ter recursos para ir muito longe - informou Romanello.

Jackson soltou uma risadinha. - Acho que o dinheiro vai ser o menor dos problemas dela. - A comunicação foi de imediato cortada.

Romanello ponderou por instantes a questão. O seu trabalho terminara. Contudo, passava-se ali qualquer coisa estranha. Mandarem-no para lá do sol-posto para matar uma saloia qualquer e a seguir ser-lhe dito que não o o fizesse; depois, a referência passageira de Jackson

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a dinheiro. Os dólares sempre tinham despertado o interesse de Romanello. Decidiu-se e engatou a primeira. Ia seguir LuAnn Tyler.

A JOVEM parou nas instalações sanitárias de uma bomba de gasolina e limpou-se o melhor que pôde. Tirou um penso rápido do saco das fraldas de Lisa e cobriu o corte no maxilar. Depois, comprou o bilhete de lotaria numa loja de conveniência. Ligou para Jackson de uma cabina telefónica próxima e disse-lhe quais eram os dez algarismos do bilhete.

- Repita-os - pediu o homem. Ela assim fez, e Jackson leu-lhe o que tinha escrito e concluiu: - Bom, muito bem. Agora, meta-se no comboio. Alguém irá esperá-la a Penn Station. - Fez uma pausa. -

Presumo que não tenha incluído Duane nos seus planos de viagem.

LuAnn engoliu em seco ao recordar as manchas de sangue na camisa do companheiro.

- Duane não vai - confirmou.

O AUTOCARRO deixou LuAnn e a filha na Estação Ferroviária de Atlanta. Após o telefonema para Jackson, parara no Wal-Mart para comprar coisas indispensáveis para ela própria e para Lisa, que levava num saco ao ombro. A blusa rota fora substituída por urna nova. Um chapéu de vaqueiro e um par de óculos escuros escondiam-lhe a cara. Foi à bilheteira comprar o bilhete para o comboio. E foi nessa altura que cometeu um grande erro.

- O seu nome, por favor - pediu a funcionária. LuAnn estava afadigada com uma Lisa inquieta, por isso respondeu automaticamente: - LuAnn Tyler. - Susteve a respiração assim que acabou de o pronunciar. Olhou para a empregada, que inseria atarefadamente as informações no computador. Já não podia emendar a mão sem levantar suspeitas. Rezou para que a distracção não viesse a causar-lhe problemas mais tarde. A empregada recomendou a carruagem-cama, dado a cliente viajar com um bebé. Ergueu o sobrolho ao ver LuAnn tirar notas do forro da cadeirinha de Lisa para pagar o bilhete. A jovem reparou no olhar da mulher, pensou rapidamente e sorriu-lhe.

- As minhas poupanças para a adversidade. Afinal, apeteceu-me usá-las enquanto posso divertir-me. Vou a Nova Iorque ver as vistas.

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A funcionária olhou para trás da cliente.

- Onde tem a bagagem? - Ah, gosto de viajar com pouco peso. Além disso, temos lá família. - LuAnn virou-se e dirigiu-se para a zona de partidas.

A empregada ainda estava a vê-Ia afastar-se quando outra pessoa lhe apareceu à frente.

- Um bilhete de ida para Nova Iorque, por favor - pediu Anthony Romanello com delicadeza, logo olhando de relance para o lado na direcção de LuAnn. Vira-a comprar o bilhete de lotaria através do vidro da montra na loja de conveniência. Depois, observara-a a fazer o telefonema da cabina pública. O facto de ela ir agora a caminho de Nova Iorque agradava-lhe, pois acontecia que vivia lá. Podia ser que ela fosse apenas a fugir dos cadáveres da caravana, mas também podia ser mais do que isso. Pegou no bilhete de comboio e encaminhou-se para a plataforma.

O COMBOIO sofrera atrasos em diversos pontos do percurso, pelo que eram quase 3.30 da tarde quando LuAnn e Lisa se apearam no frenesi da Penn Station, em Nova Iorque. Em toda a sua vida, a jovem nunca vira tanta gente num único lugar. Jackson dissera que ia alguém esperá-la, mas como é que uma pessoa podia encontrá-la no meio daquele caos?

Estremeceu quando um homem lhe tocou ao passar. Levantou os olhos e deparou com os olhos castanho-escuros de um desconhecido de bigode grisalho e nariz largo e achatado. Com cinquenta e poucos anos, tinha a cara num estado que atestava que era um ex-praticante de boxe.

- Miss Tyler? - A voz era baixa, mas nítida. - Mr. Jackson mandou-me vir buscá-la.

A interpelada estendeu a mão. - Trate-me por LuAnn. Qual é o seu nome? O homem ficou um instante surpreendido. - Isso não é importante. Queira ter a bondade de me seguir, tenho um carro à espera. - Começou a afastar-se.

- Gosto de saber os nomes das pessoas - declarou ela sem se mexer.

Ele voltou para trás. - Está bem, pode tratar-me por Charlie. Que tal? - óptimo, Charlie. Suponho que trabalhe para Mr. Jackson. Usam os nomes verdadeiros um com o outro?

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O interpelado não respondeu, abrindo antes caminho até à saída. - Quer que leve a menina? Isso parece pesado.

- Não há problema. Saíram da estação de caminho de ferro, e Charlie abriu a porta de uma enorme limusina para LuAnn entrar. Ela ficou um bom minuto de olhos arregalados para o veículo antes de entrar. Charlie sentou-se em frente dela.

- Chegamos ao hotel dentro de uns vinte minutos. Quer comer ou beber alguma coisa entretanto? - indagou.

- Estou com fome, mas não quero obrigá-lo a parar. - Não é preciso parar. - O homem estendeu a mão para um frigorífico, de onde tirou água tónica, cerveja e sanduíches. A seguir, abriu uma secção do painel interior da limusina e fez deslizar uma mesa. -

Sabia que vinha com um bebé, por isso mandei aprovisionar a limusina de leite, biberões e coisas dessas.

LuAnn preparou um biberão para Lisa, que aninhou num braço e alimentou com uma das mãos, enquanto com a outra devorava uma sanduíche.,Charlie observou as maneiras ternas que tinha para com a filha.

- E gira. Como se chama? - Lisa. Lisa Marie. Sabe, como o nome da filha do Elvis. - Você parece demasiado nova para ser admiradora do Rei. - De facto, não ouço esse tipo de música, mas a minha mãe era uma grande admiradora. Fi-lo por ela, que morreu antes de Lisa nascer.

- Ali, lamento. - O homem ficou por momentos em silêncio. -

Bem, de que tipo de música gosta?

- Clássica. Até nem percebo nada desse tipo de música, só gosto da forma como me faz sentir, é assim a modos que limpa e graciosa.

Charlie sorriu. - Nunca pensei nisso dessa maneira. O jazz é a minha música. Até toco um pouco de trompete. Tirando Nova Orleães, Nova Iorque tem alguns dos melhores clubes de jazz. Até os há relativamente perto do hotel.

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- Para que hotel vamos? - interessou-se a jovem. - Waldorf-Astoria. The Towers. LuAnn acabou a sanduíche. - Sabe a razão de eu estar aqui? O interlocutor fitou-a com atenção. - Digamos que sei o suficiente para não fazer muitas perguntas. -

Fez um sorriso breve.

Antes de saírem da limusina, Charlie agarrou numa gabardina preta e num chapéu de aba larga a condizer e estendeu-os à jovem.

- Por motivos óbvios, não queremos que seja observada por enquanto. Pode deixar o chapéu de vaqueiro. - LuAnn vestiu a gabardina, pôs o outro chapéu e apertou o cinto. - Vou à recepção dizer que chegou. A sua suite foi reservada no nome de Linda Freeman, executiva americana em viagem com a filha.

- Executiva? Espero que ninguém me faça perguntas. - Não se preocupe. Ninguém faz. A suite à qual Charlie depois a acompanhou era monumental. LuAnn olhou em redor, encantada com a decoração elegante, e quase

caiu ao ver a opulência da casa de banho.

Dirigiu-se à janela e afastou as cortinas, deparando com uma fatia do horizonte nova-iorquino.

- Nunca na minha vida vi tantos prédios. Como raio é que as pessoas os distinguem? A mim parecem-me todos iguais.

Charlie abanou a cabeça. - Sabe, você tem mesmo graça. Quase me convenço de que é a

maior saloia do Mundo.

Ela baixou o olhar. - Sou a maior saloia do Mundo. Pelo menos, a maior que você tem probabilidades de conhecer.

O homem encarou-a. - Ouça, não foi por mal. Uma pessoa cresce aqui e desenvolve uma certa atitude em relação às coisas. Percebe o que quero dizer? -

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Fez uma pausa momentânea a observar LuAnn, que fora afagar a carinha de Lisa. Depois, encaminhou-se para a porta. - Volto amanhã de manhã. Entretanto, se tiver apetite ou qualquer coisa assim, ligue para o room service. Basta-lhe assinar a conta como Linda Freeman. Tem aqui dinheiro para gorjetas. - Charlie tirou um maço de notas da algibeira e entregou-lho. - No geral, não dê nas vistas. Não se ponha a passear pelo hotel nem nada disso. _ Não se preocupe. Sei que não falo como uma executiva. -

Procurou soar descontraída, embora a pouca conta em que se tinha fosse tão evidente como o tom magoado pela observação de Charlie.

- Não é isso, LuAnn. Não quis dizer... - Encolheu os ombros. Olhe, eu mal acabei o liceu, e tenho-me saído bem. Claro, nenhum de nós pode passar por licenciado em Harvard, mas que importância tem isso? - Tocou-lhe no ombro. - Durma bem. Amanhã saímos para ir ver as vistas. Que tal?

Ela animou-se. - Isso seria óptimo. - Prevê-se frio para amanhã, portanto vista roupas quentes. A jovem baixou de imediato os olhos para a blusa e as calças de ganga amarrotadas.

- Hum, isto é a única roupa que tenho. Eu ... bem, saí de casa uni

bocado à pressa. - Parecia embaraçada.

Charlie avaliou rapidamente as medidas de LuAnn.

- Cerca de um e setenta e cinco, certo? Tamanho trinta e seis? -

Ela confirmou com um aceno de cabeça. - Amanhã trago umas roupas e também compro umas coisas para Lisa.

- Obrigada, Charlie. Fico-lhe mesmo muito grata. Após a partida do homem, LuAnn deu banho à filha na enorme banheira e vestiu-lhe o pijama. Depois de deitar a criança na cama e lhe pôr almofadas dos dois lados para não cair, LuAnn reflectiu se havia de experimentar também a banheira. Foi nessa altura que o telefone tocou. Ela atendeu:

- Está?

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- Miss Freeman? - Não, deve ser en... - Deu um pontapé mental em si própria. -

Sim, fala Miss Freeman - apressou-se a emendar, tentando parecer uma profissional.

- Para a próxima, seja mais rápida, LuAnn - disse-lhe Jackson. - Como vão as coisas? Estão a tratá-la bem?

- Sem dúvida. Charlie é maravilhoso. - Charlie? Ah, sim. Tem papel e caneta? - Ela tirou papel e caneta de uma secretária junto da janela, e Jackson prosseguiu: - O bilhete vencedor será anunciado amanhã às seis da tarde. Pode assistir pela televisão no seu quarto de hotel. Oficialmente, tem trinta dias para reclamar o prémio, portanto aí não há problema. A propósito, era por isso que queria que você esperasse para vir, não parecia bem se as pessoas descobrissem que você tinha vindo para Nova Iorque antes de ser anunciado o número vencedor. Vai ter de permanecer incógnita até estarmos em condições de a apresentar como vencedora.

LuAnn garatujou notas o mais depressa que conseguiu. - Lamento, mas não podia mesmo esperar, Mr. Jackson - desculpou-se.

- Não tem importância, LuAnn. Dentro de dias, vai estar muito longe de Nova Iorque.

- Onde é que vou estar concretamente? - Você é que escolhe. Europa? Ásia? América do Sul? Ela pensou por um momento. - Tenho de decidir já? - Claro que não. No entanto, se quiser partir logo a seguir à conferência de imprensa, quanto mais depressa me informar, melhor, até porque não tem passaporte nem outros documentos de identificação e têm de ser todos preparados.

- Pode conseguir-me um passaporte com outro nome? Quero dizer, com a minha fotografia, mas um nome diferente?

Jackson indagou com lentidão: - Porque quer isso, LuAnn? - Bem, por causa de Duane. Quando ele descobrir que ganhei esse dinheiro todo, vai tentar encontrar-me. Achei que era melhor desaparecer, começar tudo de novo. Novo nome e tudo. Claro, se for complicado demais para si ... - Ela susteve a respiração.

- Não é - retorquiu Jackson. - De facto, até é bastante simples, desde que se tenha os contactos certos, que é o meu caso. Bem, suponho que não tenha pensado no nome que quer, ou pensou? - LuAnn surpreendeu-o ao debitar de imediato um, assim como o local de onde devia

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ser originária a pessoa fictícia. - Parece que já andava a pensar nisto há algum tempo. Se calhar, com ou sem dinheiro da lotaria. Certo?

- O senhor tem segredos, Mr. Jackson. Porque não hei-de tê-los eu também?

- OK. Não há dúvida de que o seu pedido não tem precedentes, mas vou ocupar-me disso. - Ela ouviu~o suspirar. - Porque será que estou de súbito a preocupar-me com a ideia de vir a lamentar tê-la seleccionado para esta aventurazínha?

Qualquer coisa no tom de voz do homem provocou um arrepio à jovem.

NA MANHÃ SEGUINTE, Charlie apareceu com vários sacos do Bloorningdale's e da Baby Gap. Durante uma hora, LuAnn, entusiasmada, experimentou diversos conjuntos.

- Obrigada, Charlie. Acertou em cheio nos tamanhos. - Depois de se decidir por um casaco creme com uma saia preta às pregas, vestiu Lisa à última moda da Baby Gap e colocou-a no porta-bebés. Virou-se para Charlie. - Está pronto?

- Quase. - Ele abriu a porta da suite e olhou para trás para a jovem. - Feche os olhos. - LuAnn fitou-o com ar de estranheza. - Vá lá, faça-me isso - insistiu ele com um sorriso.

Ela obedeceu. Segundos depois, Charlie disse: - Pronto, já pode. Quando a jovem abriu os olhos, deparou com um carrinho de bebé novinho em folha e muito caro.

- Oli, Charlie. - Se continuar a transportar essa coisa para todo o lado - comentou ele, apontando o porta-bebés -, ainda acaba a arrastar as mãos pelo chão.

LuAnn deu-lhe um abraço, instalou Lisa e partiram.

- NÃo SE PODE DIZER que tenha comprado muita coisa. - Charlie observava os poucos sacos em cima da chaise longue do quarto de hotel.

- Também me divirto só a ver as montras. Além disso, nem consigo acreditar nos preços de cá.

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- Mas eu pagava - protestou o interlocutor. - Não quero que gaste dinheiro comigo, Charlie. Ele sentou-se numa cadeira e fitou-a. - LuAnn, o dinheiro não é meu. Já lhe disse que é uma conta para despesas. Tudo o que quisesse podia ter.

- Foi o que Mr. Jackson disse? - Mais ou menos. Chamemos-lhe um adiantamento em relação a

ganhos futuros. - Sorriu-lhe.

- Já fez isto antes? Quer dizer, ocupar-se de pessoas que ... Mr. Jackson conheceu?

- Há uns tempos que trabalho para ele, sim, embora não o conheça pessoalmente. Comunicamos apenas por telefone. Paga-me bem. E ocupar-me de pessoas instaladas em bons hotéis não é nada desagradável. - Depois, acrescentou com um grande sorriso: - Mas nunca me ocupei de ninguém com quem me divertisse tanto.

LuAnn ajoelhou-se ao lado do carrinho de bebé e tirou do tabuleiro de baixo um embrulho de presente, que entregou a Charlie.

A boca dele abriu-se de surpresa. - O que é isto? - Comprei-lhe um presente. Uma oferta minha e de Lisa. Eu andava à procura de uma coisa para si, e ela começou a apontar para isso e a soltar gritinhos.

- LuAnn, não tinha de ... - Eu sei - apressou-se ela a interromper. - É por isso que se chama um presente; é por não ser obrigatório.

Enquanto Charlie arrancava o papel de embrulho, ela tirou a filha do carrinho e ficaram ambas a vê-lo levantar a tampa da caixa e extrair um chapéu de feltro verde-escuro.

- Vi-o experimentá-lo na loja. Pareceu-me que lhe ficava mesmo bem, mas você voltou a pô-lo no lugar. Percebi que o fez contra-vontade.

- LuAnn, isto custou muito dinheiro. - Eu tinha umas poupanças. Espero que goste. - Adoro, obrigado. - Abraçou-a, e a seguir pegou no punho de Lisa, fechado em bolinha. Com delicadeza, fingiu dar-lhe um formal aperto de mão. - E obrigado, senhorinha. Tem um gosto excelente. - Fez deslizar o chapéu para cima da cabeça, observou-se ao espelho e sorriu. - Nada

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mal. - Depois, tirou-o e voltou a sentar-se. - Nunca recebi nenhuma prenda das pessoas de que tenho tomado conta.

Ela apressou-se a aproveitar a oportunidade: - Então, como é que começou a fazer este trabalho? - Presumo que queira ouvir a história da minha vida. - Charlie recostou-se na cadeira. Apontou para a cara. - Aposto que não adivinhou que em tempos eu mostrava as minhas habilidades nos ringues de boxe. - Sorriu. - Servi quase sempre de parceiro nos treinos de esperanças ... saco de treino. Depois, dediquei-me ao futebol semiprofissional. Fui treinador, casei, vagueei de um lado para o outro, sem eira nem beira, sabe como é.

- Conheço muito bem essa sensação - respondeu ela. - Então, a minha carreira sofreu uma grande reviravolta. - Que sucedeu? - Passei algum tempo como hóspede do Governo dos EUA. -

LuAnn fitou-o com curiosidade, sem perceber o que o homem queria dizer. - Estive numa prisão federal.

Ela ficou atónita. - Porquê, Charlie? - Fuga aos impostos. O Ministério Público chamou-lhe fraude fiscal. E era verdade. Eu estava farto de pagar. Nunca havia o suficiente para viver, quanto mais para ceder uma fatia ao Governo. Esse erro custou-me três anos e o meu casamento.

- Lamento, Charlie. Ele encolheu os ombros. - Talvez fosse a melhor coisa que me aconteceu. Deu-me tempo para reflectir sobre o que queria fazer da vida. Quando saí, fui trabalhar para o meu advogado como uma espécie de detective. Ele sabia que eu

era do tipo honesto, de confiança, apesar da condenação. Foi um bom biscate, gostei do trabalho.

- Então, como é que aparece ligado a Mr. Jackson? O interlocutor pareceu pouco à vontade. - Digamos que, por acaso, ele telefonou certo dia. Eu estava com um pequeno problema. Nada de grave, contudo ainda estava em liberdade condicional e podia ter que voltar dentro por mais algum tempo. Jackson ofereceu-se para me desenrascar, e eu aceitei.

- Foi mais ou menos o que aconteceu comigo - contou LuAnn

com agrura na voz. - É complicado recusar as ofertas dele.

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Charlie fitou-a de relance, com uma súbita fadiga nos olhos. - Pois é. Jackson matava-me se soubesse que estamos aqui. - "Aqui" era na

sede da Lotaria Nacional dos Estados Unidos, localizada num arranha-céus em agulha na Park Avenue. O enorme auditório estava apinhado. Havia correspondentes das cadeias noticiosas espalhados por todo o

lado de microfones em punho.

Perto do palco, LuAnn tinha Lisa aninhada de encontro ao seu peito. Estava com um boné de basebol com a pala para trás, e a sua notável silhueta encontrava-se escondida pela grande gabardina.

- Eu tinha de vir, Charlie. Nunca seria o mesmo visto pela televisão.

A jovem fitava o palco, onde a máquina da lotaria fora montada sobre uma mesa. Consistia em dez grandes tubos, cada um ligado a um

cesto com bolas de pingue-pongue. Cada bola tinha um número pintado. Quando a máquina era activada, o ar fazia circular as bolas até uma chegar ao minúsculo alçapão e cair no tubo. Então, activava-se o cesto seguinte. E assim sucessivamente, até serem revelados os dez números vencedores.

As pessoas olhavam com nervosismo para os seus bilhetes de lotaria; muitas tinham pelo menos uma dúzia deles na mão. LuAnn não precisava de olhar para o seu. Decorara os números: 0810080521, que correspondiam ao dia de anos dela, ao de Lisa e à idade que ela própria faria no próximo aniversário.

Apareceu um homem no palco. A multidão fez silêncio. Até certo ponto, LuAnn esperara ver Jackson, mas aquele homem era mais novo e muito mais atraente. Ela interrogou-se sobre se ele faria parte da tramóia. Uma loura de mini-saia juntou-se ao homem, postando-se ao

lado da máquina de aspecto sofisticado. O parceiro deu as boas-vindas a todos e depois, olhando a multidão com ar teatral, anunciou que o 1.1 prémio oficial era um novo recorde de cem milhões de dólares! Um arfar colectivo fez-se ouvir pela multidão ao ser mencionada a gigantesca soma. Até LuAnn abriu a boca de espanto.

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Era de facto o maior 1.º prémio de sempre e ia ser ganho por uma

pessoa com uma sorte incrível, declarou o homem da lotaria com um sorriso radioso. Fez um gesto na direcção da acompanhante, que carregou no botão que accionava a máquina. LuAnn observou as bolas do

ie ao primeiro cesto começarem a saltitar. Apesar da presença de Charlie ao seu lado, sentiu de repente que estar ali era uma loucura. Como podia Jackson ou qualquer outra pessoa controlar o que as bolas rodopiantes iam fazer?

Abraçou Lisa com força, e uma das mãos vagueou até aos dedos de Charlie, que apertou. Sentia o coração aos pulos. Uma bola jorrou pela abertura e entrou no primeiro tubo. Era o O. Foi mostrado num grande ecrã suspenso sobre o palco. Passados poucos segundos, também o segundo cesto decretou um número vencedor: o 8. Em rápida sucessão, passaram mais seis bolas. Estava-se agora em 08100805. LuAnn não emitia qualquer som ao desenhar com a boca os algarismos conhecidos. A testa perlou-se-lhe de suor, e as pernas começaram a fraquejar-lhe. Fosse de que maneira fosse, Jackson conseguira. Ela assistiu, completamente hipnotizada, ao oscilar do nono cesto de bolas. Por fim, a bola com o número 2 saiu para o nono tubo. Já não havia rostos esperançosos na multidão. Só um.

O último cesto foi accionado, e a bola com o número 1 foi quase direita ao alçapão do último tubo. Depois, como um balão furado que ex-

pele ar, precipitou-se para trás, para o fundo, sendo substituída perto do alçapão pela bola com o número 4, de repente cheia de energia. Com movimentos convulsivos, aproximava-se cada vez mais do caminho aberto para o último tubo, embora parecesse ser repelida repetidas vezes dessa abertura. O sangue escoou-se das faces de LuAnn, que apertou os dedos de Charlie com tanta força que ele quase gritou de dor.

O coração do próprio Charlie estava sobressaltado. Nunca dera por um falhanço de Jackson, mas, bem, nunca se sabe. Levantou a mão livre e tacteou o espesso crucifixo de prata que usava por baixo da camisa quase desde que se lembrava. Esfregou-o para dar sorte.

Com uma lentidão impressionante, as duas bolas, como numa coreografia, voltaram a trocar de posição. Após uma colisão momentânea, a bola com o número 1 acabou por passar pela abertura para o décimo e último tubo.

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LuAnn mal conseguiu conter-se e não gritar a plenos pulmões de puro alívio, mais do que com a excitação de ter acabado de ganhar cem milhões de dólares. Ela e Charlie fitaram-se, de olhos muito abertos, rostos encharcados de transpiração. Ele inclinou a cabeça na direcção da companheira, como que a perguntar: "Ganhou, não é verdade?" LuAnn esboçou um ligeiro aceno de cabeça. Charlie conduziu-a para fora da sala, e poucos minutos depois caminhavam rua fora em direcção ao hotel. A noite estava fresca e bela.

LuAnn inspirou o ar doce apesar de frio e deu a Lisa um beijo terno na bochecha. De repente, deu uma cotovelada a Charlie, com um sorriso travesso nos lábios.

- O último a chegar ao hotel paga o jantar. - Arrancou como um raio, com a gabardina a abrir-se na sua esteira, qual pára-quedas.

Ficando para trás, Charlie ouviu os berros de alegria de LuAnn. Sorriu e precipitou-se atrás dela.

Nenhum dos dois teria ficado tão feliz se tivesse visto o homem que os observava do outro lado da rua. Romanello achara que seguir a rapariga talvez resultasse em algo interessante. Porém, até ele tinha de admitir que as suas expectativas haviam sido excedidas.

- TEM A CERTEzA de que é para aí que quer ir, LuAnn? Ela respondeu com seriedade para o bocal do telefone: - Tenho, sim, Mr. Jackson. Sempre quis ir à Suécia. A família da minha mãe veio de lá. Dá muito trabalho?

- Tudo dá trabalho, minha jovem. É só uma questão de graus. Ela olhou para Charlie, que brincava com Lisa. Sorriu-lhe. - Tem mesmo jeito para isso - comentou. - O quê? - interrogou Jackson. - Desculpe, estava a falar com Charlie. - Passe-mo. LuAnn trocou o telefone por Lisa. Charlie falou em tom baixo, de costas para ela. Depois, desligou.

- Está tudo bem? - perguntou ela.

- Claro, está tudo óptimo. Tem de ir esta tarde à Lotaria mostrar o

bilhete premiado. Validam-no e entregam-lhe um recibo oficial. A seguir, vamos para outro hotel, onde pode registar-se como LuAnn Tyler. Está pronta para se tornar podre de rica, minha senhora?

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A interlocutora respirou fundo antes de responder: - Estou.

LuANN SAIU DO EDIFício da Lotaria, seguiu rua abaixo e virou uma esquina, onde encontrou Charlie num lugar previamente combinado. Ele ficara-lhe com Lisa.

- Ela esteve entretida a olhar para todos os lados com muita atenção. É uma espertalhona - declarou ele, repondo a garota no carrinho de bebé. - Então, que tal correu?

- Trataram-me como uma pessoa especial. Uma senhora perguntou-me se queria contratá-la para secretária particular. - Soltou uma gargalhada.

- É melhor habituar-se a isso. Quando vai ser a conferência de imprensa?

- Amanhã às seis, disseram eles. - Tome. - Charlie entregou-lhe o passaporte novo. Ela olhou solenemente para o nome lá escrito. O livrinho azul representava a porta para outro mundo, um mundo que não tardaria a abarcar. - Encha-o de carimbos, LuAnn. Viaje pelo Mundo inteiro. Você e Lisa.

A rapariga ergueu o olhar para ele. - Porque não vem connosco, Charlie? Ele fitou-a de olhos arregalados. - O quê?! - Agora, tenho este dinheiro todo - retorquiu ela rapidamente. -

E nunca estive em lado nenhum, e ... bem ... gostava que viesse.

- É uma proposta muito generosa, LuAnn - reflectiu Charlie. -

Mas é estabelecer um grande compromisso com uma pessoa que de facto não conhece.

- Conheço o suficiente - teimou a jovem. - Sei que é boa pessoa. E Lisa gostou de si logo à primeira, isso conta muito para mim.

- Porque é que não damos mais algum tempo para pensarmos no assunto, LuAnn? Depois, conversamos.

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Ela encolheu os ombros. - Não estou a propor-lhe casamento, Charlie, se é isso que pensa. - Ainda bem, uma vez que eu tenho quase idade para ser seu avô. - Sorriu-lhe.

Mas gosto muito de tê-lo por perto. Sei que posso contar consigo. E meu amigo, não é?

- Sou - respondeu Charlie com a voz embargada. Depois, tossiu e assumiu um tom mais neutro: - Vamos registá-la no novo hotel. Voltamos a falar disso depois da conferência de imprensa, LuAnn. Prometo.

CHARLIE instalou LuAnn e Lisa na nova suite de hotel e a seguir saiu para tratar de uns assuntos. Ela acabara de deitar a filha para uma sesta quando bateram à porta.

- Room service - anunciou uma voz. Ela espreitou pelo óculo na porta. O homem do outro lado estava com o uniforme do hotel.

Eu não pedi nada - declarou ela. É um bilhete e um pacote para a senhora. De quem? Não sei. Um senhor pediu-me no átrio que lhe entregasse isto.

LuAnn entreabriu a porta. Estendeu o braço pela fresta e o empregado entregou-lhe o pacote. Ela fechou de imediato a porta, rasgou o sobrescrito e desdobrou a carta.

LuAnn, como está Duane? E o outro tipo, bateu-lhe com quê, afinal? Ficou mais morto que uma pedra. Esperemos que a Polícia não descubra que você lá esteve. Vamos conversar dentro de uma hora. Apanhe um táxi para o Empire State Building. Deixe o homenzarrão e a criança em casa.

LuAnn rasgou o papel castanho do pacote e caiu um jornal: Journal and Constitution, de Atlanta. Tinha uma página marcada com um papelinho amarelo. Abriu o jornal nessa página e os seus olhos devoraram a história. Dois homens mortos. Droga envolvida. Ela leu à pressa, até que parou ao deparar com o seu próprio nome. A Polícia andava naquele preciso momento à procura dela, embora o artigo não revelasse se era acusada de algum crime.

LuAnn sentou-se e tentou recompor-se. No entanto, bateram novamente à porta e ela quase saltou da cadeira.

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- LuAnn? - Charlie? - Ela respirou fundo. - Quem havia de ser? - Só um instante. - Levantou-se de um salto, rasgou à pressa a notícia do jornal e enfiou-a na algibeira. Fez deslizar a carta e o resto do jornal para debaixo do sofá e só então foi abrir a porta.

Charlie entrou com duas grandes malas e sorriu perante o ar de surpresa dela.

- Não fazer a sua grande viagem sem bagagem adequada. Uma das malas já está feita com coisas para Lisa, encarreguei disso uma amiga minha. Mas temos de fazer mais compras para encher a outra.

LuAnn afagava nervosamente o artigo que tinha na algibeira. Sentia o coração na garganta, porém conseguiu agradecer a Charlie, dando-lhe Um abraço. Quando o fitou, tinha o rosto calmo.

- Quero arranjar o cabelo, Charlie. Com a conferência de imprensa a ser transmitida para todo o país, gostava de estar com bom aspecto.

- Claro. Procuramos um cabeleireiro chique na Lista Telefónica ... - Há um aqui no hotel - interrompeu a jovem. - Eu vi quando entrámos, pareceu-me bom.

- Então, ainda melhor. - Pode tomar-me conta de Lisa? - Podemos descer e fazer-lhe companhia.

- Charlie, os homens não entram em cabeleireiros a ver o que lá se passa. São segredos para nós, mulheres. Se vocês soubessem o que custa pormo-nos bonitas, não era tão especial. Além disso, tem um trabalho para fazer.

- E qual é? - Pode soltar "Olis!" e "Alis!" quando eu voltar e dizer-me que bonita que estou.

Charlie riu-se. - Acho que consigo fazer isso. - Não sei quanto tempo vou demorar. Posso não ser atendida logo. Está um biberão no frigorífico para Lisa quando ela tiver fome. -

LuAnn abriu a porta, a tentar esconder a ansiedade. - Volto logo que estiver despachada.

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- Leve o tempo que for preciso. Não tenho mais nada marcado. Uma cerveja, televisão por cabo - foi buscar Lisa ao carrinho de bebé - e a companhia desta senhorinha fazem de mim um homem feliz.

LuANN SAIu do táxi e levantou os olhos para a imponência do Empire State Building. Sentiu um braço deslizar em redor do seu.

- Venha por aqui para conversarmos. - A voz era delicada, reconfortante, mas fez-lhe eriçar os pêlos do pescoço.

LuAnn libertou o braço e fitou o homem. Alto, de ombros largos, estava bem barbeado, tinha o cabelo escuro e grosso como as sobrancelhas.

- O que é que quer? - perguntou a jovem. - Há uma pastelaria do outro lado da rua. Sugiro que vamos até lá. - Porque havia eu de fazer uma coisa dessas? - Temos coisas a discutir. - Romanello olhou em redor. - Quer que toda a gente daqui saiba dos nossos assuntos?

Ela relanceou o olhar para os transeuntes, acabando por se encaminhar para o estabelecimento que o homem indicara.

Lá dentro, descobriram um compartimento isolado. Romanello pediu café e a seguir olhou para LuAnn.

- Interessa-lhe alguma coisa da ementa? - Nada. - O olhar da jovem quase o trespassava. Depois de a empregada se afastar, indagou: - Como se chama?

- Porquê? - quis ele saber, surpreso. - Invente um nome. Parece ser o que toda a gente faz. - De que está a fa ... - Deteve-se e pensou por instantes. - Está bem. Chame-me Rainbow.

- Rainbow? Não é parecido com nenhum arco-íris que eu já tenha visto.

- Ora aí é que está enganada. - Os olhos do homem cintilaram. - O arco-íris indica onde há tesouros escondidos, e você é o meu tesouro, LuAnn.

- Nunca fui boa em adivinhas, Mr. Rainbow, portanto diga o que tem a dizer e acabemos com isto.

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Romanello esperou um momento enquanto a criada regressava com

o café. Depois de ela se afastar, inclinou-se por cima da mesa.

- Eu estive na sua caravana, LuAnn. Vi os cadáveres. Ela retraiu-se. - Que foi lá fazer? O homem recostou-se. - Calhou passar por lá. - Isso são balelas, sabe muito bem. - Talvez. A questão é que a vi chegar à porta da caravana num carro. Vi-a tirar um maço de notas do porta-bebés da sua filha na estação de caminho de ferro. Vi-a fazer uma quantidade de telefonemas.

- E depois? Não posso fazer telefonemas? - A caravana tinha dois mortos e uma quantidade de droga. Ela semicerrou os olhos. Rainbow seria um polícia enviado para fazê-la confessar?

- Não sei de que está a falar. - Enfiou a mão na algibeira e tirou de lá o artigo. - Tome, e vá meter medo a outra pessoa.

Romanello meteu a notícia no bolso. Quando a sua mão voltou a ser visível, LuAnn mal conteve um arrepio ao ver o pedaço de blusa rasgado e ensanguentado.

- Reconhece isto? Ela esforçou-se por manter a compostura. - Parece uma camisa com manchas. E depois? O homem sorriu-lhe. - Depois, como já disse, você é o meu tesouro. - Não tenho dinheiro - apressou-se ela a declarar. Ele quase soltou uma gargalhada. - Porque está em Nova Iorque, LuAnn? Ela esfregou as mãos com nervosismo. - Está bem, talvez eu soubesse o que se passou na caravana. Contudo, não fiz nada de mal. Tive de fugir porque achei que a coisa podia ficar feia para mim. Nova Iorque pareceu-me um sítio tão bom como qualquer outro.

- Que vai fazer com o dinheiro todo, LuAnn? Ela quase ficou com os olhos tortos. - Que dinheiro?

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DAVID BAIDAM

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- Vejamos, qual é hoje em dia o preço para chantagem? Dez por cento? Vinte? Cinquenta? Mesmo com metade, você ainda fica com milhões na sua conta bancária.

- Você está mas é doido. Tenho de ir-me embora. - Levantou-se. - Não seja tola, LuAnn. Eu vi-a comprar o bilhete de lotaria. Estive na extracção e vi o seu grande sorriso, a maneira como desatou a correr rua fora, aos berros e gritos. Se se vai embora, eu ligo para o xerife do Podunk County e conto-lhe tudo o que vi. E depois envio-lhe este bocado de blusa. Quando eu lhe disser que você acabou de ganhar., a lotaria e que talvez seja melhor apanhá-la antes que desapareça, bem pode despedir-se da boa vida.

- Eu não fiz nada de mal. - Pois não, fez foi uma estupidez: fugiu. E quando se foge, os polícias consideram-nos culpados. Portanto, em que é que ficamos?

Devagar, centímetro a centímetro, ela voltou a sentar-se. - Não posso pagar-lhe metade. O rosto do homem ensombrou-se. - Não seja gananciosa, minha senhora. - Não tem nada a ver com isso. Posso pagar-lhe. Só não sei quanto. Mas antes de concordar seja com o que for, quero que me responda a uma pergunta e quero a verdade, se não até pode ir chamar os polícias que eu não me importo.

Romanello fitou-a com desconfiança. - Que pergunta é? LuAnn inclinou-se sobre a mesa. - O que é que foi fazer à caravana? Era relacionado com a droga que Duane traficava?

Ele já estava a abanar a cabeça. - Eu não sabia nada da droga. Duane já estava morto. Talvez andasse a servir-se do que não devia e o outro tipo o tivesse apanhado. Quem sabe?

- Que aconteceu ao outro tipo? - Foi você que o atingiu, não foi? Como eu disse no bilhete, mais morto não podia estar.

- Não respondeu à minha pergunta. E, se não o fizer, não recebe' um tostão meu.

Romanello hesitou, porém a ganância sobrepôs-se à reflexão: - Fui lá para a matar a si - disse simplesmente. - Porquê? - quis ela saber. - Eu não faço perguntas. Limito-me a desempenhar as tarefas que me pagam para desempenhar.

- Quem o mandou matar-me? O homem encolheu os ombros. - Não sei, recebi um telefonema. O dinheiro chegou às minhas mãos com antecedência pelo correio.

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- Ainda estou viva. - É verdade, mas só porque a ordem foi cancelada. - Quando? - Eu estava na sua caravana. Vi-a sair do automóvel e pôr-se a mexer. Fui para o meu carro e nessa altura recebi o telefonema. Deviam ser umas dez e um quarto.

Ela recostou-se na cadeira ao dar-se conta da verdade: Jackson. Então era assim que ele lidava com quem se recusava a cooperar.

QUANDo RoMANELLO E LuANN saíram da pastelaria, ela apanhou um táxi e regressou ao hotel, onde, para dar credibilidade à história que inventara, passou as horas seguintes no cabeleireiro. O homem seguiu rua fora em sentido contrário, a assobiar baixinho de si para consigo. A combinação que fizera com LuAnn não oferecia quaisquer garantias, contudo o instinto dizia-lhe que ela havia de honrar a sua palavra. Se a primeira prestação não estivesse na sua conta dali a dois dias, ele telefonava para a Polícia de Rikersville. Ela havia de pagar. Tinha a certeza.

Romanello apanhou o metro para o seu apartamento. Ao chegar a

casa, meteu a chave à porta, que fechou e trancou depois de entrar. Ia tirar o casaco quando ouviu um ruído atrás de si.

Jackson surgiu das sombras da sala. Vestido de ponto em branco, fitava o dono da casa por detrás de um par de óculos escuros.

- Quem diabo é você e como é que entrou? Jackson fez deslizar os óculos. - Assim que desliguei, percebi que o meu lapso ao telefone havia de se revelar desastroso. Mencionei LuAnn Tyler e dinheiro no mesmo contexto, e o dinheiro, como muito bem sabe, provoca reacções estranhas nas pessoas.

- A que se refere em concreto? - Mr. Romanello, o senhor foi contratado para desempenhar uma

tarefa para mim. Assim que essa tarefa foi anulada, a sua participação nos meus assuntos terminou. Ou devia ter terminado.

- E terminou. Eu não matei a mulher. À medida que enumerava os pontos seguintes, Jackson contava-os com um dedo nos da outra mão:

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- Seguiu-a até Nova Iorque e enviou-lhe um bilhete. Encontrou-se com ela e, apesar de eu não ter participado na conversa propriamente; dita, pelo aspecto o tema não era agradável.

- Como sabe tudo isso? - Há muito pouca coisa que eu não saiba, Mr. Romanello. Jackson voltou a pôr os óculos. - Desobedeceu às minhas instruções e, ao fazê-lo, pôs em risco os meus planos. Já decidi qual o castigo apropriado, que de resto tenciono aplicar-lhe de imediato. - Dois dardos para atordoar foram disparados de uma arma que Jackson tinha na mão, atingindo Romanello em pleno peito. Jackson continuou a apertar o gatilho, enviando uma carga de 120.000 volts pelos fios metálicos li-,: gados aos dardos. Romanello caiu redondo no chão. - Isto vai incapacitá-lo durante pelo menos um quarto de hora, mais do que o suficiente para os meus objectivos. - Jackson ajoelhou-se ao lado de Romanello, soltou com cautela os dois dardos e voltou a guardar tudo no bolso. Abriu a camisa do meliante. - Que peludo, Mr. Romanello. O médico---legista nem vai detectar os orificiozínhos no seu peito.

Sem qualquer sensação física nos membros, Romanello pensou que tinha sofrido um ataque de coração. No entanto, ainda via, e foi com horror que assistiu à verificação metódica que Jackson fez à agulha hípodérmica que tinha na mão.

- E quase só uma inócua solução salina - explicou o intruso, como se leccionasse uma aula de Ciências. - Digo quase só porque também contém prostaglandina, uma substância produzida naturalmente pelo corpo. Os níveis normais medem-se em microgramas. Vou ministrar-lhe uma dose milhares de vezes superior. Quando esta dose chegar ao seu coração, fará contrair as artérias coronárias, desencadeando aquilo que os médicos designam por enfarte do miocárdio, também conhecido como ataque cardíaco. Tal como a prostaglandina aparece naturalmente no organismo, também com a mesma naturalidade é eliminada pelo metabolismo. Não restarão vestígios anormalmente elevados que um médico-legista detecte e lhe: despertem suspeitas. - Jackson mergulhou a agulha na veia jugular de Romanello. - Vão encontrá-lo aqui, um homem robusto, ainda novo, derrubado por causas naturais na plenitude das suas forças. - Sorriu e deu uma palmadinha suave na cabeça de Romanello. Depois, do seu saco extraiu uma lâmina de barbear. - Ora bem, um médico-legista arguto pode detectar a picada da agulha hipodérmica. - Utilizando a lâmina, fez um golpezinho no sítio exacto em que a agulha penetrara. Uma gota de sangue perlou à superfície da pele. Jackson repôs a lâmina no saco e tirou de lá um penso rápido. Comprimiu este contra o golpe acabado de fazer.

Ia erguer-se quando reparou na ponta do artigo de jornal que saía do bolso do casaco de Romanello. Puxou-o e leu a história dos dois homicídios, droga, desaparecimento de LuAnn e procura desta pela Polícia. As feições alteraram-se-lhe. Aquilo explicava muito. O tipo estava a fazer chantagem com ela. Se Jackson tivesse descoberto aquela informação no dia anterior, teria de imediato executado LuAnn Tyler. Agora, já não podia fazê-lo, e detestava perder o domínio da situação. Ela fora confirmada como detentora do bilhete premiado. Dobrou a

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notícia e enfiou-a na algibeira. Quer gostasse, quer não, estava amarrado a LuAnn Tyler, mas havia de recuperar o domínio. Dir-lhe-ia exactamente o que devia fazer, e se ela não seguisse as suas instruções com todo o rigor, matava-a.

CHARLIE RELANCEOU O OLHAR pelo auditório apinhado. Teria preferido estar em cima do palco com ela para lhe dar apoio moral. Porém, tinha de permanecer na sombra. Despertar suspeitas não fazia parte das especificações do seu trabalho. Havia de estar com LuAnn após a conferência de imprensa, e nessa altura tinha de lhe dizer se ia com ela ou não. O problema é que ainda não decidira. Se fosse, tinha a certeza de que apreciaria a companhia dela e de Lisa, com a vantagem adicional de ser uma figura paterna para a garotinha. Contudo, que aconteceria ao fim dos primeiros anos?

Era inevitável que a bela LuAnn, com a nova riqueza e o requinte que esta lhe proporcionaria, se tornasse alvo das atenções de alguns dos homens mais desejáveis do Mundo. Havia de casar com um. E então que seria dele? A certa altura, sentir-se-ia obrigado a deixá-las. Afinal, não era da família nem nada que se parecesse. E quando essa ocasião chegasse, seria doloroso. Depois de passar apenas uns dias com elas, já sentia com LuAnn e Lisa uma ligação superior à que tivera com a mulher em dez anos de casamento. Conseguiria simplesmente afastar-se da criança e da mãe sem ficar com o coração destroçado? Abanou a ca-

beça. Afinal, que raio de piegas era ele? Mal conhecia aquelas sulistas simplórias, e ali estava a confrontar-se com uma decisão que mudaria toda a sua vida enquanto tentava imaginar as respectivas consequências futuras.

Sabia que seria amigo dela para o resto da vida, mas ignorava se aguentaria uma proximidade diária com a consciência da hipótese de um fim abrupto. Tudo se resumia a pura inveja, concluiu. Inveja do tipo que com certeza acabaria por conquistar o amor de LuAnn, um amor, que ele não duvidava seria eterno, pelo menos da parte dela. E Deus protegesse o desgraçado que viesse a traí-Ia. Ela era uma gata selvagem, era evidente. Uma espalha-brasas com coração de ouro.

Charlie interrompeu a sua meditação e levantou os olhos para o palco quando as câmaras começaram a zunir e LuAnn apareceu. Trazia um vestido azul-claro pelo joelho, com sapatos a condizerem e penteado e maquilhagem impecáveis. Alta, soberba e calma, entrou com graciosidade no campo de visão dos presentes. Charlie abanou a cabeça de admiração. Ela acabava de tornar a sua decisão ainda mais difícil.

O XERIFE Roy Waymer quase cuspiu a cerveja que lhe enchia a boca até ao outro lado da sala no momento em que viu LuAnn Tyler acenar-

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-lhe do televisor. Olhou para a mulher, Doris, que por sua vez tinha os olhos pregados no ecrã.

- Andas à procura dela por todo o lado, e aí está ela, na cidade de Nova Iorque! - exclamou a mulher. - O descaramento da rapariga. E acaba de ganhar aquele dinheiro todo. - Doris pronunciou aquilo com

amargura. Vinte e quatro bilhetes de lotaria rasgados moravam no seu

caixote do lixo.

Waymer extraiu do sofá a sua considerável gordura e encaminhou-se para o telefone.

- Nunca pensei que fosse para Nova Iorque. Afinal, a rapariga nem carro tem. Pensei que se limitasse a fugir para casa de alguma amiga.

- Bem, parece que te escorregou mesmo por entre os dedos. -

Doris apontou para LuAnn no televisor.

- Bom - começou ele a explicar à mulher -, não temos aqui propriamente o pessoal do FBI, mãe. Com Freddie de baixa por causa das costas, só tenho dois agentes fardados de serviço. - Pegou no auscultador. - Vou falar para a Polícia de Nova Iorque para a caçarem.

- Achas que fazem isso? - Mãe, ela é uma possível suspeita na investigação de um duplo homicídio - declarou ele com ar importante.

Doris fitou-o com ansiedade. - Achas que LuAnn matou Duane e o outro rapaz? Waymer levou o auscultador ao ouvido e encolheu os ombros. - Ela teve uma briga. Foi vista- naquele dia por mais de uma pessoa com um adesivo na cara.

- Foi tudo por causa da droga, de certeza - comentou Doris. -

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Aposto que LuAnn era o cérebro. Ela é uma espertalhona, todos sabemos isso. E sempre foi boa demais para nós, não se enquadrava no nosso ambiente. Queria pôr~se a mexer, mas não tinha condições. Dinheiro da droga... foi o que lhe deu condições. Fixa o que te digo, Roy.

O xerife Waymer não respondeu. Estava a tentar a ligação para a Polícia de Nova Iorque.

UMA VEZ TERmiNADA a conferência de imprensa, LuAnn foi acompanhada para fora do palco. Apressou-se a mudar para umas calças largas e uma blusa, levantou o cabelo para o enfiar dentro de um chapéu de vaqueiro e pegou em Lisa, que ficara a cargo de alguém do pessoal da Lotaria. Olhou para o relógio. Não tinham passado mais de vinte minutos desde que fora apresentada ao Mundo como a nova vencedora da lotaria. Contava que o xerife Roy Waymer já estivesse a entrar em contacto com a Polícia de Nova Iorque. Toda a gente da sua terra assistia à extracção da lotaria. Não tinha tempo a perder.

UMA GRANDE LIMUSINA PRETA aguardava-a à saída do edifício. O motorista levou a mão ao boné e abriu-lhe a porta. Ela entrou e instalou a filha no lugar ao seu lado.

- Bom trabalho, LuAnn. O seu desempenho foi impecável -

cumprimentou Jackson enquanto a limusina descia a rua.

Ela virou-se para trás e fitou a escuridão no canto mais afastado do habitáculo. Todas as luzes interiores estavam apagadas, à excepção da que ficava mesmo por cima da sua cabeça. Sentiu-se como se estivesse de novo no palco. Mal distinguia a forma do homem cuja voz chegava até si:

- Para dizer a verdade, temi que fizesse figura de parva. Não tenho nada contra si, claro, mas qualquer pessoa atirada para uma situação desconhecida tem mais probabilidades de falhar do que de se sair bem, não concorda?

- Tenho tido muita prática. O interlocutor inclinou-se um pouco para a frente. - Prática de quê? Ela fixou o olhar na escuridão. - De situações desconhecidas. - Sabe, LuAnn, às vezes espanta-me mesmo. Em determinados casos, a sua perspicácia rivaliza com a minha, e não digo isto de ânimo leve. - Abriu uma pasta de onde tirou vários papéis. - Está na hora de discutirmos as condições.

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- Primeiro temos de falar de outra coisa. O homem ergueu a cabeça.

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DAVID BALDAM

- Sim? E de quê? Ela exalou um profundo suspiro. Interrogara-se sobre se Jackson precisava de saber do suposto Rainbow, chegando à conclusão de que ele não podia deixar de descobrir. Era melhor ser informado por si própria. _ Veio ontem um homem falar comigo. Queria que eu lhe desse dinheiro.

Jackson desatou a rir. - LuAnn, toda a gente vai querer dinheiro seu. - Não, não foi isso. Queria metade do que eu ganhei. - Que absurdo! - Não, nem por isso. Tinha informações a meu respeito Fez uma pausa. - Posso beber qualquer coisa? - Um dedo enluvado saiu da escuridão e apontou uma porta incrustada num dos lados da limusina. Ela abriu-a e tirou uma coca-cola. Bebeu um grande trago, limpou a

boca e continuou: - Aconteceu-me uma coisa imediatamente antes de eu telefonar a aceitar a sua proposta.

- Seriam os dois mortos na sua caravana? A droga que lá estava? O facto de a Polícia andar à sua procura?

A princípio, ela nem respondeu, com a admiração estampada no rosto. - Eu não tive nada a ver com a droga. E o homem tentou matar-me, agi em legítima defesa.

Eu devia ter percebido que se passava qualquer coisa quando você quis fugir dali tão depressa, mudar de nome e tudo isso. -

Jackson abanou a cabeça com tristeza. - Pobre LuAnn. Suponho que também eu me tivesse afastado à pressa se fosse confrontado com tais circunstâncias. E quem havia de pensar uma coisa daquelas de Duane. Droga! Que feio. Mas vamos combinar uma coisa. Devido à bondade do meu coração, por esta vez não vou responsabilizá-la. Contudo - o tom tornou-se extremamente imperativo -, nunca mais tente esconder de mim seja o que for.

- Mas o tal homem ... - Isso já está resolvido - interrompeu Jackson, impaciente. -

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Pode ter a certeza de que não vai dar-lhe dinheiro nenhum.

LuAnn fitou a escuridão, com o espanto de novo a espalhar-se-lhe pelo rosto.

- Mas como é possível? - É o que as pessoas estão sempre a perguntar a meu respeito. -

Jackson falava em voz baixa. - Eu consigo fazer tudo, LuAnn. Não percebeu já?

- O homem contou-me que o tinham mandado matar-me, mas que depois isso fora cancelado.

- Que coisa terrivelmente esquisita. - Calculo que o cancelamento tenha sido logo a seguir a eu ter ligado para si.

- A vida está chefinha de coincidências, não está? - O tom de Jackson tornara-se trocista.

As feições de LuAnn assumiram um brilho de ferocidade.

- Quando me mordem, não me fico. Retribuo a sério. É só para nos entendermos, Mr. Jackson.

- Acho que nos entendemos na perfeição, LuAnn. - Ela ouviu o restolhar de papéis. - Mas isto complica o assunto.

- Porquê? - Impostos, LuAnn. Por cem milhões de dólares, você fica a dever cerca de cinquenta milhões em impostos sobre o rendimento, tanto estaduais como federais. A lei estipula que o imposto tem de ser pago em prestações iguais ao longo de dez anos. Isso equivale a cinco milhões de dólares por ano. Além disso, todo o dinheiro que ganhe através do investimento do capital é sujeito a imposto. E devo confessar-lhe que tenho planos para esse capital ... planos mesmo grandiosos. Vai ganhar muito mais dinheiro nos próximos anos; contudo, será quase sempre rendimento sujeito a imposto. Em circunstâncias normais, isso não constituiria problema, pois os cidadãos cumpridores da lei que não andam a fugir à Polícia podem fazer as suas declarações de rendimentos, pagar a percentagem justa e viver muito bem. Ora, isso já não pode vir a passar-se consigo. Se a minha gente entregasse a declaração de rendimentos em nome de LuAnn Tyler com a sua morada do momento, não lhe parece que a Polícia talvez lhe fosse bater à porta?

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- Bem, não posso pagar os impostos com o meu nome novo? - Ali, potencialmente uma solução brilhante; no entanto, as finanças têm tendência para ter uma grande curiosidade quando a primeira declaração de rendimentos de uma pessoa acabada de sair da adolescência inclui tantos zeros.

- Então, que fazemos? Quando Jackson voltou a falar, o tom fez LuAnn apertar Lisa. - Você vai fazer exactamente aquilo que eu lhe disser. Tem bilhete para um voo internacional e nunca mais regressa aos Estados Unidos. Aquela confusão na Geórgia vai obrigá-la a uma vida em movimento, receio bem que para sempre. Percebe?

Ela insistiu com teimosia: - Não gosto que me digam o que devo fazer. - Ali, não? Bem, então porque não tenta sair do país pelos seus próprios meios? Quer? - Sei tomar conta de mim. - Não é isso que está em causa. Fez um acordo comigo, LuAnn. Um acordo que tem de honrar. Posso mandar parar a limusina aqui mesmo, pô-la fora a si e à criança e telefonar à Polícia para vir buscá-la. A escolha é sua. Decida. Já!

Ela percorreu com um olhar desesperado o interior da limusina e acabou por fixá-lo em Lisa. A filha fitava-a com os grandes olhos doces e absolutamente confiantes. LuAnn soltou um suspiro profundo. Que opção tinha afinal?

- Está bem. Jackson mexeu uma vez mais nos papéis que tinha na mão. - Há um certo número de documentos para assinar, mas deixe-me apresentar-lhe primeiro os termos do acordo: acaba de ganhar cem milhões de dólares. Esse dinheiro foi colocado numa conta aberta em seu nome pela Lotaria. A propósito, arranjei-lhe um número da Segurança Social com o seu novo nome. Quando tiver assinado estes documentos, o meu pessoal fica em condições de transferir os fundos dessa conta para outra que vou controlar na totalidade.

- Então, como é que eu chego ao dinheiro? - protestou LuAnn.

- Paciência, menina. Tudo será explicado. O dinheiro será investido como eu achar melhor e por minha própria conta. Todavia, esses investimentos garantem-lhe um mínimo de vinte e cinco por cento ao ano, o que corresponde a vinte e cinco milhões de dólares. - Levantou um dedo admoestador. - Compreenda que isso é apenas o rendimento do capital. Nos cem milhões nem se toca. Controlo-os durante dez anos e invisto~os corno quiser. Ao fim de dez anos, você recebe de volta os cem milhões de dólares. Todos os rendimentos ao longo dos dez anos continuam a ser seus e também lhos investimos de graça. Qualquer projecção razoável lhe dirá que ao fim dos dez anos a sua fortuna ascenderá a várias centenas de milhões de dólares. - Os olhos do homem chisparam. - É melhor do que cem dólares por dia, não é, LuAnn? - Riu com gosto. - Para começar, adianto-lhe cinco milhões de dólares. Isso deve chegar-lhe enquanto não começarem os ganhos dos investimentos. - Da escuridão, estendeu-

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lhe os documentos e uma caneta. - Está marcado com nitidez onde é necessária a sua assinatura. - Ela hesitou. - Algum problema? - indagou Jackson.

LuAnn abanou a cabeça e apressou-se a assinar os documentos. - As suas malas estão no porta-bagagem. Tenho comigo os bilhetes de avião e as reservas de hotel. Planeei o seu itinerário para doze meses e acedi ao seu pedido de ir à Suécia, terra dos seus antepassados maternos. Engendrei-lhe um disfarce complicado. Em resumo, saiu dos Estados Unidos em criança, casou com um estrangeiro rico e, para efeitos das finanças, o dinheiro era dele. Os fundos estarão só em bancos estrangeiros e em contas offshore. Os bancos dos EUA são obrigados a

fazer declarações às finanças. Nenhum do seu dinheiro será alguma vez

mantido nos Estados Unidos, nunca por nunca. - Ela estendeu a mão para os bilhetes. - Ainda não, menina. Temos medidas a tomar. A Polícia - lembrou, incisivo. - Não se admire de que os valorosos agentes de Nova Iorque estejam neste preciso momento postados em

todos os aeroportos e estações de camionagem e caminho de ferro. Como é uma criminosa que atravessou em fuga várias fronteiras estaduais, é provável que até já tenham recorrido ao FBI.

Enquanto o interlocutor falava, LuAnn sentiu a limusina parar. Ouviu um barulho lento, metálico, como uma cancela a ser levantada. Quando deixou de se ouvir o barulho, a limusina passou para se deter logo a seguir.

O homem bateu com a mão no assento. - Agora, preciso que se sente ao pé de mim. Feche os olhos e dê-me a mão para eu poder guiá-la - ordenou, estendendo a mão da escuridão.

- Porque é que tenho de fechar os olhos? - Faça-me a vontade, rapariga. Não consigo resistir a um pouco de teatro na vida.

Ela pegou-lhe na mão e fechou os olhos. Jackson instalou-a junto de si. LuAnn sentiu uma luz a incidir-lhe na cara. Estremeceu ao aperceber-se de que uma tesoura lhe cortava o cabelo.

- Aconselho-a a não tremer - disse o homem. - Já basta a dificuldade de fazer isto num espaço tão diminuto. Não estou nada interessado em desfigurá-la. - Continuou a cortar até o cabelo de LuAnn lhe dar pelas orelhas. Uma substância húmida foi-lhe passada pelas madeixas que restavam, secando de imediato. Jackson recorreu a uma escova

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para manipular as madeixas de acordo com os seus desejos. A seguir, montou um espelho portátil na extremidade da consola que havia na limusina. Aplicou então uma substância maleável no nariz da rapariga, amassando-a e comprimindo-a até criar uma forma satisfatória. - O seu nariz é comprido e direito. Contudo, um pouco de massa mais um pouco de sombra e temos uma espessa cartilagem torta que não fica tão bem, mas é apenas temporária. - Recorrendo a um sombreado subtil, fez que os olhos dela parecessem mais próximos e, com a ajuda de pós e cremes, tornou-lhe o queixo menos saliente.

Ela sentiu que o homem lhe examinava o corte no maxilar. - Que golpe feio. Recordação da sua experiência na caravana? - Como LuAnn não respondeu, Jackson prosseguiu: - Vai precisar de pontos. Mesmo assim, é provável que fique com uma cicatriz. Não se preocupe. Quando sair das minhas mãos, estará invisível. Mas talvez acabe por querer uma cirurgia plástica. - Soltou uma risadinha e acrescentou: - É a minha opinião profissional. - Depois, pintou-lhe os lábios. - Demasiado finos, pense em recorrer a colagénio.

Pouco faltou à jovem para dar um salto e fugir dele aos gritos. O homem parecia um cientista louco a fazê-la ressurgir dos mortos.

- Agora, estou a pontilhar-lhe o nariz e as faces de sardas. - Por fim, Jackson guiou-a de regresso ao lugar que antes ocupara. - Há um espelhinho no compartimento ao seu lado - informou-a.

LuAnn tirou o espelho e pô-lo em frente da cara. Susteve a respiração. A devolver-lhe o olhar, estava uma ruiva de cabelo curto e espetado muito sardenta. Os lábios estavam pintados de um vermelho profundo, o que fazia a sua boca parecer enorme. O nariz era muito mais largo e tinha uma curva nítida para a direita. Estava completamente irreconhecível para ela própria.

O companheiro atirou-lhe qualquer coisa para o colo. Ela baixou os olhos: era um passaporte. Abriu-o. A fotografia com que deparou era da mesma pessoa que vira ao espelho.

- Um trabalho estupendo, não acha? - interrogou-a Jackson. Quando ela levantou o olhar, ele carregou num interruptor e ficou iluminado. Ou iluminada, pois LuAnn teve um segundo sobressalto. Sentada à sua frente, estava a sósia da mulher em que ela própria acabava de se transformar. O mesmo cabelo ruivo curto, o nariz torto, tudo. A única diferença era que ela própria estava de calças, e a sua gémea, de vestido.

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Jackson bateu as palmas silenciosamente. - Já me tinha disfarçado de mulher, mas acho que é a primeira vez que me disfarço de um disfarce. A propósito, essa fotografia é minha. Tirei-a esta manhã. - Sorriu perante o ar chocado da companheira. -

Não precisa de aplaudir. Todavia, tendo em consideração que o trabalho foi feito numa garagem subterrânea, acho que merece palmas.

A limusina retomou o andamento, e em pouco mais de meia hora chegaram ao Aeroporto JFK. Antes de o motorista abrir a porta, Jackson virou-se para LuAnn.

- Não ponha o chapéu nem os óculos, pois isso sugere uma tentativa de esconder as feições. Lembre-se da regra número um: ao tentar esconder-se, dá o mais nas vistas possível. Apresente-se abertamente. Ver gémeos adultos juntos é bastante raro, contudo as pessoas (mesmo a Polícia), ao repararem em nós, não vão ter qualquer suspeita. A Polícia

procura uma mulher. Quando virem duas, e gémeas, embora com uma criança, não vão ligar-nos nenhuma. - Estendeu a mão para Lisa. LuAnn interpôs-se. - Minha amiga, estou a tentar pô-la a si e a esta criança fora do país. Dentro em pouco, você vai ter de passar por um batalhão de polícias e de agentes do FBI. Pode crer que não tenho qualquer interesse em ficar com a sua filha, no entanto preciso dela por um motivo muito específico.

Ela acabou por ceder. Saíram da limusina, De saltos, Jackson era um pouco mais alto do que LuAnn, mas ela teve de convir que a sua estrutura esguia ficava bem com a roupa de marca. Ele vestiu um casaco preto sobre o vestido escuro.

- Venha - disse à companheira, que se contraiu ao ouvir o novo tom de voz. Soara tal e qual como ela própria.

- Onde está Charlie? - perguntou LuAnn ao entrarem no terminal poucos minutos depois, seguidas por um bagageiro roliço com as malas.

- Lamento, mas os deveres de Charlie para consigo terminaram. - Ali. - Não se preocupe, ele está em muito melhores mãos - garantiu Jackson.

LuAnn engoliu em seco ao avistar um quarteto de polícias que perscrutavam todos os presentes no aeroporto apinhado. Passaram por eles, que de facto as fitaram, mas, tal como Jackson previra, logo perderam o interesse, focando a atenção noutras pessoas que entravam no terminal.

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Jackson e LuAnn pararam perto do balcão da British Airways para o check-in de voos internacionais.

- Vou eu fazer o check-in enquanto você espera naquele snack-bar - Jackson apontou para o outro lado do vasto corredor do terminal. -

Dê-me o seu passaporte, o que acabei de lhe entregar.

Ela obedeceu e ficou a ver Jackson oscilando numa das mãos o porta-bebés com Lisa e caminhando no passo elástico dela até ao balcão, com o bagageiro atrás. O homem até copiara aquele seu maneirismo. LuAnn abanou a cabeça, atónita.

Jackson estava na pequena fila para a primeira classe, que avançou rapidamente. Poucos minutos depois, regressara para junto de LuAnn.

- Até agora, tudo bem. Entretanto, recomendo que não mude de aspecto durante alguns meses. Quando as coisas sossegarem e o seu cabelo voltar ao primitivo, pode usar o primeiro passaporte que lhe preparei.

Pelo canto do olho, Jackson viu dois homens e uma mulher, todos de fatos completos, a percorrerem o corredor com os olhos a varrerem

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DAVID BALDAM

toda a área. LuAnn relanceou o olhar para lá. Avistou o seu próprio retrato nas mãos de um deles. Ficou tensa.

- São agentes do FBI - esclareceu-a o companheiro. - Todavia, lembre-se de que não está nada parecida com aquela fotografia. É como se fosse invisível. - O tom confiante acalmou-lhe os temores, e Jackson prosseguiu: - O seu voo parte dentro de vinte minutos. Venha comigo. - Passaram pela segurança, desceram até à porta de embarque e sentaram-se na zona de espera.

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Jackson entregou-lhe o novo passaporte com um envelope. - Tem aí dinheiro, cartões de crédito e uma carta de condução internacional, tudo no seu novo nome. - Segurou~lhe na mão por um momento e até lhe deu uma palmadinha no ombro. - Boa sorte. Se em qualquer ocasião se encontrar em dificuldades, tem aqui um número de telefone para me contactar em qualquer parte do Mundo, de dia ou de noite. Devo contudo avisá-la de que, se não houver problemas, você e eu nunca mais nos encontraremos nem falaremos uni com o outro. Entregou-lhe um cartão com o número.

LuAnn baixou o olhar para o cartão, esperando nunca ter de o usar. Por ela, preferia nunca mais pôr a vista em cima de Jackson. Quando ergueu de novo os olhos, o homem desaparecera na multidão.

LuAnn suspirou. Estava cansada de fugir, mas encontrava-se no início de uma vida inteira a fazer precisamente isso. Abriu o passaporte e fitou a fotografia estranha e o nome que tinha por baixo: Catherffie Savage, de Charlottesville, Virgínia. A mãe nascera em Charlottesville, e ela achara apropriado que a sua nova identidade também tivesse essa cidade como local de nascimento. O novo nome fora igualmente bem pensado. Savage, selvagem, era o que ela era, e selvagem continuaria a ser, apesar da enorme fortuna ao seu dispor. Olhou uma vez mais para a fotografia e sentiu pele-de-galinha ao recordar-se de que era Jackson a retribuir-lhe o olhar. Fechou o passaporte e guardou-o.

Como os passageiros da primeira classe podiam embarcar à vontade, LuAnn encaminhou-se para o Jetway. O comissário saudou~a efusivamente:

- Por aqui, Ms. Savage, por favor. A sua filha é linda. Foi acompanhada ao lugar. Olhou com admiração para o amplo espaço e reparou que cada lugar dispunha de televisor e telefone incorporados. Nunca na vida entrara num avião. Era uma forma principesca de fazer a experiência pela primeira vez. A escuridão ia-se adensando enquanto os outros passageiros entravam no compartimento da primeira classe.

Vinte minutos após a descolagem do avião, ela estava de auscultadores, a oscilar suavemente ao ritmo de música clássica. Endireitou-se, sobressaltada, quando uma mão lhe pousou no ombro e a voz de Charlie chegou filtrada até ela. Estava com o chapéu que ela lhe oferecera. O seu sorriso era aberto e genuíno, mas havia um evidente nervosismo na linguagem corporal. LuAnn tirou os auscultadores.

- Valha-me Deus! - sussurrou Charlie. - Se não tivesse reconhecido Lisa, tinha passado por si sem dar por nada. Que raio sucedeu?

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- É uma longa história. - Ela apertou-lhe o pulso. - Isto significa que vai finalmente dizer-me o seu verdadeiro nome, Charlie?

POUCO DEPOis da descolagem do 747, começou a cair uma chuva miudinha. Caminhando por uma rua da Baixa de Manhattan, um velhote de gabardina preta parecia nem reparar na inclemência do tempo. O aspecto de Jackson modificara-se drasticamente desde o seu último encontro com LuAnn. Envelhecera no mínimo quarenta anos. Tinha grandes papos nos olhos, uma orla de cabelos brancos circundava-lhe a parte de trás da cabeça calva. Ergueu o olhar para o céu nublado. O avião devia estar naquele momento a sobrevoar a Nova Escócia na sua rota convexa para a Europa.

E ela não fora sozinha. Charlie partira com ela. Jackson deixara-se ficar para trás depois de se despedir de LuAnn e vira-o embarcar no avião. "Boa viagem para ambos", murmurou entredentes. "E que Deus vos ajude se alguma vez me traírem."

Levantou a gola e caminhou rua fora a reflectir intensamente. Chegara a altura de fazer planos para o vencedor do mês seguinte.

SEGUNDA PARTE Dez Anos Depois

O PEQUENO JACTO PARTICULAR aterrou na pista do Aeroporto de Charlottesville-Albemarle e rolou até parar. Três pessoas saíram rapidamente do aparelho e entraram numa limusina, que partiu de imediato para sul pela Estrada 29.

Dentro da limusina, a mulher tirou os óculos e passou o braço pelos ombros da menina. Então, LuAnn Tyler recostou-se no assento e respirou fundo. Estava de regresso. Voltara finalmente aos Estados Unidos. Já há algum tempo que em pouco mais pensava. Relanceou o olhar para o homem sentado no banco em frente, virado para trás. Com os dedos grossos, ele martelava no vidro da janela um ritmo sombrio. Chaffie estava preocupado, mas conseguiu esboçar um sorriso tranquilizador. Pôs as mãos no colo e endireitou a cabeça na direcção dela.

- Estás com medo? LuAnn acenou com a cabeça afirmativamente e a seguir baixou os olhos para Lisa, que, com os seus dez anos, se recostara no colo da mãe e adormecera, exausta. Fora uma longa viagem.

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- E tu? - perguntou. Charlie encolheu os ombros. Observou Lisa para se assegurar de que ela dormia. Convencido disso, desapertou o cinto, sentou-se ao lado de LuAnn e falou em voz baixa:

- Jackson não sabe que regressámos. - Não podemos ter a certeza, Charlie - sussurrou ela. - Se soubesse, achas que nos deixava chegar até aqui? Demos a volta mais complicada possível. Cinco mudanças de avião, quatro países, andámos aos ziguezagues por meio mundo até chegarmos aqui. E, mesmo que saiba, não vai ligar. Passaram dez anos. O acordo terminou. - Charlie recostou-se no assento.

LuAnn fez-lhe uma massagem suave no ombro. - Tens razão. Afinal, não vou propriamente anunciar ao mundo que estou de volta. Vamos viver urna vida tranquila e agradável.

- Num luxo considerável. Viste as fotografias da casa. Ela anuiu com um aceno de cabeça. - Parece linda. - Uma propriedade antiga. Há muito que estava para venda, mas a pedirem seis milhões de dólares não admira que tivessem levado tanto tempo a vender. Acabámos por comprá-la por três milhões e meio. Claro que enterrámos outro milhão em obras.

- E é isolada?

- Muito. Mais de cento e vinte hectares. Nunca vi tanta relva junta. Tem cavalariça com três boxes e uma piscina. Lisa vai adorar. Há espaço de sobra para um campo de ténis. Tem tudo o que pode desejar-se. E é rodeada de densa floresta. É como se fosse um fosso de castelo em floresta. Já comecei à procura de uma firma que construa uma vedação de segurança.

- O meu nome não está nos registos de propriedade? - Catherine Savage não aparece em lado nenhum. Da caderneta predial passou a constar o nome da firma que montei. - Quem me dera ter podido mudar outra vez de nome, só para o

caso de ele andar à procura. _ O teu disfarce de Catherine Savage já é suficientemente complicado para ainda lhe acrescentarmos outra camada.

- Eu sei. - LuAnn suspirou. - Lisa está inscrita num colégio? Charlie confirmou de cabeça. - St. Anne's-Belfield. Bastante selecto, mas os resultados escolares de Lisa são excepcionais. Ela fala diversas línguas, viajou por todo o Mundo.

- Não sei. Talvez devesse ter contratado professores particulares. - Ora, LuAnn, isso é o que tens feito desde que ela começou a andar. A garota precisa de conviver com outras crianças.

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Vai ser bom tanto para Lisa como para ti. Bem sabes a importância de termos tempo para nós próprios.

Ela dirigiu-lhe de repente um sorriso malicioso. - Sentes claustrofobia connosco, Charlie? - Claro. Vou começar a sair à noite. Até talvez arranje passatempos, como jogar golfe. - Sorriu a LuAnn para lhe mostrar que estava na brincadeira.

- Foram uns bons dez anos, não foram? - A voz dela soou ansiosa.

- Não os trocava por nada deste mundo - respondeu Charlie. LuAnn encostou a cabeça ao ombro dele. Os últimos dez anos só tinham sido bons para ela se se definisse bom como andando sempre de um lado para o outro, com medo de ser descoberta e com complexos de culpa sempre que comprava qualquer coisa, devido à forma como obtivera o dinheiro. Enquanto a limusina prosseguia viagem, LuAnn fechou os olhos e procurou repousar. Precisava disso. A sua segunda nova

vida estava prestes a começar.

T~As DONOVAN estava sentado em frente ao computador na frenética sala de redacção do Tribune de Washington. Nas paredes do seu

apinhado cubículo tinha vários prémios jornalísticos, incluindo um

Pulitzer que ganhara antes de fazer trinta anos. Agora, aos cinquenta e

poucos, Donovan ainda possuía o ímpeto e o fervor da juventude.

Uma sombra apareceu na sua secretária. - Mr. Donovan? Ele levantou os olhos para um paquete. - Sim? -Acaba de chegar isto para si. Acho que é uma investigação que pediu.

Donovan pegou no pacote e meteu a mão lá dentro, ansioso. A reportagem que estava a elaborar sobre a lotaria tinha um potencial imenso. A lotaria nacional arrecadava milhares de milhões de dólares por, ano. O Governo insistia em que os pobres não gastavam no jogo uma parcela desproporcionada dos seus rendimentos, mas Donovan tinha provas de que uma larga proporção dos que jogavam estava no limiar da pobreza e desperdiçava senhas de alimentação e tudo o resto a que podia deitar mão para apostar na possibilidade de uma vida fácil, embora as probabilidades fossem tão poucas que se tornavam uma farsa. E não era tudo. Donovan

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descobrira que uns surpreendentes setenta e cinco por cento dos vencedores acabavam por ficar falidos. Uma média de nove em cada doze vencedores anuais acabava por ficar falida. O ângulo da sua investigação incidia sobre companhias gestoras de fundos e

outros oportunistas, que se agarravam a essas pessoas e praticamente as espoliavam.

O Governo arcava com igual grau de culpabilidade, considerava Donovan, porque, em vez de cobrar de imediato os impostos referentes aos prémios de lotaria, autorizava os vencedores a estruturarem eles próprios os pagamentos do imposto. Quando esses vencedores não eram suficientemente astutos para montarem um sistema sofisticado de escrita, os cobradores de impostos acabavam por sugá-los até ao último tostão em impostos propriamente ditos e em juros de mora, deixando-os mais pobres do que antes. O público pensava que o dinheiro da lotaria se destinava à educação e à manutenção das estradas, mas muito dele acabava noutros lados. Os funcionários da Lotaria recebiam ordenados chorudos. Políticos que eram favoráveis à lotaria viam fundos ilimitados fluírem para os seus estados. Tudo aquilo cheirava a esturro, e Donovan considerava ser mais do que tempo de revelar a verdade.

Dedicou a sua atenção ao pacote de documentos. Testara a sua teoria do índice de falências nos últimos cinco anos. Os documentos que agora recebera recuavam mais sete. Ao folhear as páginas referentes a

todos esses anos de vencedores da lotaria, verificou que a média de falências se mantinha nos nove em cada doze por ano. Espantoso. O seu palpite acertara em cheio.

Até que, de repente, parou a olhar uma página. Era a lista dos vencedores da lotaria de havia precisamente dez anos. Herman Rudy, Bobbie Jo Reynolds, LuAnn Tyler - a lista continuava: doze vencedores seguidos. Nenhum falira. E, no entanto, todos os outros períodos de doze meses, à excepção daquele, tinham resultado em nove falências.

Donovan tinha de verificar algumas fontes, e queria fazê-lo com mais privacidade do que a permitida por uma sala de redacção cheia de gente. Enfiou o dossier na sua velha pasta e saiu do jornal. Como não era hora de ponta, chegou em vinte minutos ao seu pequeno apartamento na Virgínia. Duas vezes divorciado e sem filhos, Donovan centrava toda a sua vida no trabalho. Tinha uma relação em fogo lento com

Alicia Crane, conhecida figura da sociedade de Washington, oriunda de uma família rica. Nunca se sentira muito à vontade no círculo dela; todavia, Alicia era-lhe devotada, e, na realidade, pairar no limiar da luxuosa existência dela não era desagradável de todo.

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Instalou-se no escritório de casa, pegou no telefone e ligou o número de um contacto que tinha na Tesouraria da Fazenda Pública. Deu a essa pessoa os nomes dos doze vencedores consecutivos da lotaria que não tinham aberto falência. Duas horas depois, recebeu a chamada de resposta. Onze desses vencedores tinham entregue declarações de impostos durante todos os anos. Um, não. De facto, essa pessoa desaparecera por completo. Donovan tinha uma vaga recordação do motivo. Dois homicídios - o namorado e outro homem na Geórgia rural. Havia droga envolvida. A mulher desaparecera depois de ganhar cem

milhões de dólares, e o dinheiro desaparecera com ela. Com os seus proventos da lotaria, podia muito bem ter mudado de identidade durante a fuga devido à acusação de homicídio e inventado uma vida completamente nova.

Donovan sorriu. Talvez tivesse uma forma de descobrir a nova identidade de LuAnn Tyler. Pelo menos, podia tentar.

No dia seguinte, telefonou ao xerife de Rikersville, na Geórgia, que era a terra de LuAnn. Roy Waymer morrera há cinco anos. Por ironia do destino, o actual xerife era Billy Harvey, tio de Duane, que foi muito prolixo ao ser abordado o tema LuAnn.

- Foi ela a causa da morte de Duane - declarou, irado. - Tenho tanta certeza de que o envolveu naquilo da droga como de que estou a

falar consigo.

- Soube alguma coisa dessa rapariga nos últimos dez anos? Harvey fez uma pausa momentânea. - Bem, enviou dinheiro aos pais de Duane. Não lho pediram, garanto-lhe.

- Mas ficaram com ele? - Bem, já são velhotes e uns pobretanas. Ninguém vira costas a

uma quantidade de dinheiro daquelas.

- De quanto estamos a falar? - Duzentos mil dólares. Donovan assobiou baixinho. - Tentou verificar de onde provinha o dinheiro? - Nessa altura, não era eu o xerife, mas sim Roy Waymer, e ele fez isso. Até cá vieram uns rapazes do FBI para ajudar, mas não descobriram nada de nada.

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- Mais alguma coisa? - Sim. Se alguém falar com ela, diga-lhe que a família Harvey nunca esqueceu, nem passados todos estes anos. O mandado de captura por homicídio continua válido. Se a apanharmos na Geórgia, fazemo-la passar um bom tempo connosco. Refiro-me a qualquer coisa entre os vinte anos e a prisão perpétua.

- Eu digo-lhe, xarlíe, obrigado. Ali, pode mandar-me um exemplar do dossier? Relatórios de autópsias, de observações no local dos crimes, tudo isso? - Deu a Harvey o número da caixa postal do Tribune e depois desligou.

Passou a semana seguinte a vasculhar todos os recantos da vida de LuAnn. Através de cópias dos obituários dos pais na Gazette de Rikersville, ficou a saber que a mãe nascera em Charlottesville, na Virgínia. Por meio de conversas com agentes da Polícia e do FBI em Nova Iorque, descobriu que meia hora após o aparecimento de LuAnn na televisão nacional já havia um dispositivo policial montado nas estações de camionagem e caminho de ferro, assim como nos aeroportos, e contudo a mulher não dera qualquer sinal de vida. Isso intrigara muito o

FBI, que queria saber como fora possível ser fintado por uma mulher de vinte anos, com a escolaridade incompleta e oriunda da Geórgia rural - ainda por cima com um bebé. O instinto de Donovan dizia-lhe que a rapariga saíra do país. Se fora de avião, tinha por onde começar a investigar.

JACKSON ESTAVA SE~o numa cadeira da sala às escuras de um luxuoso apartamento num edifício que dava para o Central Park de Nova Iorque. A aproximar-se da casa dos quarenta, ainda era magro, embora os anos lhe tivessem deixado umas rugas em redor dos olhos e da boca. Levantou-se e passeou lentamente pelo apartamento. A decoração era

ecléctica: antiguidades europeias à mistura com arte e escultura orientais.

Entrou na sua sala de maquilhagem e oficina. No tecto, havia nichos que forneciam iluminação indirecta. Espelhos múltiplos ocupavam a

divisão a toda a volta. Erfi frente dos espelhos maiores, encontravam-se duas cadeiras reclináveis estofadas a cabedal. Cabeleiras e madeixas alinhavam-se junto a uma das paredes. Armários feitos por medida continham toucas de borracha, dentes acrílicos, bem como outros materiais sintéticos e massas. Uma enorme unidade de armazenagem dispunha de algodão absorvente; acetona; cola dissolvida em éter; pós; escovas; bases; argila para moldar; colódio para fazer cicatrizes e marcas de varíola; cabelo de crepe para barbas, bigodes e sobrancelhas; e centenas de outras substâncias destinadas a remodelar o aspecto de qualquer pessoa. Havia três suportes de cabides com roupas de todos os tipos e, numa estante construída para o

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efeito, mais de cinquenta conjuntos de documentos de identificação que permitiam a Jackson viajar tanto como homem como como mulher.

Ele sentou-se e olhou-se a um espelho. O que via não era o seu reflexo a retribuir-lhe o olhar, eram feições em branco à espera de serem manipuladas, pintadas e massajadas para se tornarem noutra pessoa. Porque havia de se limitar a uma identidade física durante toda a vida, pensava, quando podia viver tantas outras experiências lá fora? Podia ir onde quisesse, fazer o que quisesse. Dissera isso a todos os seus doze vencedores da lotaria. E eles tinham acreditado o mais completamente possível, até porque era verdade.

Durante os últimos dez anos, ganhara centenas de milhões de dólares para cada um deles e milhares de milhões para si próprio. Por irónico que parecesse, Jackson crescera num meio abastado, e o dinheiro da família já vinha de trás. Os pais tinham morrido há muito. O pai fora ao mesmo tempo arrogante e inseguro. Político, bem integrado na sociedade de Washington, aproveitara-se ao máximo dos seus conhecimentos, até que a certa altura a sua ascensão parara. Nessa altura, tinha estoirado o dinheiro da família na tentativa gorada de recuperar o ímpeto ascendente. E então o dinheiro acabara. Ao longo dos anos, Jackson, o filho mais velho, sofrera muitas vezes a ira do velho. Aos dezoito anos, descobriu que o extenso fundo que o avô lhe deixara tinha sido objecto de tantos raides ilegais por parte do pai que nada restava. A raiva e os maus tratos físicos que o velho passara a descarregar sobre Jackson depois de este o confrontar com o que descobrira tinham perturbado psicologicamente o filho. As sequelas físicas acabaram por sarar, mas a raiva interior de Jackson parecia crescer exponencialmente a cada ano que passava.

Podia parecer trivial a outros. Perdeu a fortuna? E depois? Jackson, porém, contara com aquele dinheiro para se libertar da tirania do pai. Em vez disso, recebera uma conta bancária vazia e os murros carregados de ódio de um louco. E aguentara. Até certo ponto, mas a certa altura deixara de aguentar.

O pai morrera inesperadamente. Todos os dias há pais que matam filhos pequenos sempre sem qualquer razão. É raro os filhos matarem os pais, e quando acontece, costuma ser com causas excelentes. Uma experiência química de principiante administrada no whisky do pai resultara na ruptura de um aneurisma cerebral. Como em qualquer ocupação, tem de se começar por algum lado.

O filho mais velho sentira-se obrigado a recuperar a fortuna da família. Uma bolsa de estudo para uma universidade de prestígio e o curso terminado com as melhores notas do ano tinham sido seguidos pelo cultivo cuidado dos antigos contactos familiares, pois essas brasas não podiam extinguir-se para que o plano a longo prazo de Jackson tivesse êxito. Ao longo dos anos, passara a dominar uma variedade de talentos, o que lhe permitiu realizar o seu sonho de riqueza e de poder. E fê-lo permanecendo completamente invisível a qualquer escrutínio.

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Apesar do seu gosto pela representação, não ansiava pelas luzes da ribalta, como acontecera com o pai. Construíra, pois, um império invisível, embora de maneira absolutamente ilegal.

Sorriu ao pensar naquilo e continuou o seu passeio pelo apartamento. Tinha um irmão e uma irmã mais novos. Tal como o pai, o irmão esperava que o mundo lhe proporcionasse o melhor, sem que ele desse em troca algo de valor comparável. Jackson dera-lhe dinheiro suficiente para viver com comodidade. Se o esbanjasse, não havia mais. A irmã era diferente. Jackson gostava imenso dela, apesar de a jovem ter adorado o velhote com a fé cega que é frequente as filhas terem nos pais. Jackson instalara-a em grande estilo, mas nunca a visitava. Não desejava mentir-lhe quanto ao seu modo de vida.

Mesmo assim, Jackson tratara bem a família. Não era como o pai. Permitira-se uma recordação do velho - o nome que usava em todas as suas actividades: Jackson. O nome do pai era Jack, cujo patronímico dá Jackson.

Parou junto a uma janela e olhou para um espectacular fim de tarde sobre Nova Iorque. O apartamento era o mesmo em que crescera, embora o tivesse esventrado depois de o comprar, com o fim ostensivo de o modernizar e tornar adequado às suas próprias necessidades. A motivação mais subtil fora a de obliterar o passado.

Um elevador exclusivo servia-lhe para entrar e sair do apartamento, no último andar. Nunca autorizava a entrada fosse de quem fosse. Todo o correio e outras entregas ficavam na portaria. Jackson criara um disfarce para a sua verdadeira identidade e usava-o sempre que saía do apartamento. Horace Parker, o idoso porteiro, era o mesmo que tantos anos antes tirava o boné ao tímido garoto amante dos livros. A família de Jackson saíra de Nova Iorque na adolescência dele, pelo que o envelhecido Parker aceitara aquela modificação de aspecto como simples amadurecimento. Agora, com a imagem falsa firmemente implantada

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PRIMEIRO PRÉMIO

na mente das pessoas, Jackson estava confiante de que nunca seria identificado. Ouvir o seu verdadeiro nome a Horace Parker era ao mesmo tempo reconfortante e perturbador. Não era fácil fazer prestidigitação com tantas identidades, e chegava a haver ocasiões em que dava por si a não responder quando o interpelavam pelo verdadeiro nome. Com o capital ilimitado de que dispunha, todo o Mundo lhe servia de recreio. Os fundos eram aplicados em empresas tão diversas como as suas identidades, desde actividades de guerrilha em países do Terceiro Mundo até à monopolização de mercados de metais preciosos nos países industrializados.

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Também exibia um lado benevolente, canalizando vastas somas para causas humanitárias por todo o Globo. Exigia sempre o domínio absoluto, mesmo que invisível, e obtinha-o.

Entrou numa sala mais pequena, forrada de computadores do chão ao tecto. Os monitores planos informavam-no de como estavam os seus interesses em todo o Mundo. Ali analisava tudo, desde o mercado de fundos até às últimas notícias. Tinha uma ânsia infinita de informações, que absorvia como uma criança de três anos a aprender uma língua estrangeira.

Entrou noutra divisão, maior, onde guardava recordações de projectos passados. Tirou um álbum e abriu-o. Continha fotografias e informações sobre os antecedentes das suas doze barras de ouro - os vencedores que lhe tinham permitido recuperar a fortuna de família. Folheou-o ao acaso. Escolhera-os com cuidado, indo buscá-los a listas do subsídio de desemprego e de falências, pessoas desesperadas, dispostas a tudo para mudarem de vida.

A lotaria fora extraordinariamente fácil de falsificar. Acontece muitas vezes assim. As pessoas limitam-se a partir do princípio de que instituições dessas estão acima da corrupção. Devem ter-se esquecido de que as lotarias governamentais foram banidas em certos países devido ao alastramento de corrupção. A História tem de facto tendência para se repetir. Se Jackson aprendera alguma coisa ao longo dos anos, era que nada, absolutamente nada, está acima da corrupção, desde que haja seres humanos envolvidos, pois, na verdade, a maior parte das pessoas não está acima da atracção pelo dinheiro.

Ao examinar uma página do álbum, sentiu uma emoção que quase nunca experimentava: incerteza. Fitava o semblante verdadeiramente notável de LuAnn Tyler. Dos doze vencedores da lotaria, fora de longe a mais memorável. Havia perigo naquela mulher, perigo e uma volatilidade muito definida que atraía Jackson como um íman. Há dez anos que não a via nem falava com ela; no entanto, era raro decorrer uma semana sem a recordar. A princípio, mantivera-se atento aos seus movimentos, mas, à medida que o tempo passava e ela continuava a andar de país em país, tal como ele desejava, a diligência de Jackson esmorecera. Da última vez que soubera do seu paradeiro, LuAnn estava na Nova Zelândia. Nunca regressaria aos Estados Unidos. Disso tinha a certeza.

DONOVAN ESTAVA SENTADO à mesa da casa de jantar, perscrutando as páginas que tirara da pasta. Levara dois meses a acumular as informações que agora esquadrinhava.

De início, a tarefa parecera destinada a fracassar simplesmente devido à quantidade: no dia em que LuAnn Tyler desaparecera, tinham partido duzentos voos internacionais do Aeroporto JFK. Donovan reduzira os parâmetros da pesquisa de modo a incluir apenas mulheres entre@ os vinte e os trinta anos que tivessem viajado entre as 7 da tarde e a 1 da manhã. A conferência de imprensa durara até às 6.30, e Donovan duvidava de que ela tivesse

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conseguido embarcar num voo às 7 horas, mas preferia não correr riscos. Isso significava que tinha de verificar sessenta voos e cerca de quinze mil passageiros. Todavia, enquanto quase todas as companhias aéreas mantêm no activo os registos de passageiros até cinco anos, só o FBI podia obter os de dez anos antes.

traves e um conhecimento no Bureau, Donovan conseguira obter o que pretendia. Fornecera ao seu contacto os parâmetros exactos da sua pesquisa, incluindo o facto de a pessoa que procurava ter provavelmente viajado com um passaporte acabado de obter e com um bebé. Só três pessoas correspondiam a esses critérios muito específicos. Recorrendo a uma agência nacional de identificação, conseguira que lhe fossem fornecidos os números da Segurança Social das três pessoas em questão, assim como os últimos endereços registados. Comparara estes com os que constavam das listas das companhias aéreas. Duas das mulheres tinham-se mudado, o que não era para admirar, dadas as idades que tinham dez anos antes; naquele intervalo, deviam ter avançado em carreiras e casamentos. Só uma, Catherine Savage, continuava a vi-

ver na Virgínia. Donovan ligara para a companhia dos telefones, mas não havia número correspondente àquele nome e direcção.

O jornalista recorrera então a algo mais sério, preenchendo um formulário 2848 das finanças, "Procuração e Declaração de Representante" - um formulário relativamente simples e que, no entanto, conferia' um poder extraordinário. Com ele, podia obter todos os documentos confidenciais referentes aos impostos da pessoa que estava a investigar. Implicava uma pequena falsificação de assinatura, mas os seus motivos eram puros, pelo que ficou de consciência tranquila. No formulário, incluiu o nome da mulher, a última morada conhecida e o número da Segurança Social, declarou-se seu representante para efeitos fiscais e enviou o documento pelo correio.

Numa excitação contida, Donovan estava agora a devorar o conteúdo da correspondência que recebera das finanças. Catherine Savage era uma mulher riquíssima, e a sua declaração de impostos do ano anterior, abrangendo quarenta páginas, reflectia essa riqueza. Ele pedira cópias í

de três anos, porém só lhe tinham enviado aquela pela simples razão de ser a única entregue. O mistério dissipara-se rapidamente, visto Donovan, como suposto representante de Catherine Savage, ter conseguido entrar em contacto com as finanças e fazer praticamente todas as perguntas que quis sobre aquela contribuinte.

O jornalista consultava as notas tomadas durante a conversa com o fiscal. Catherine Savage nascera em Charlottesville, Virgínia, e saíra do país em criança. Vivendo em França, conhecera um rico homem de negócios alemão com quem casara. O marido morrera há dois anos, e a

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fortuna passara para a jovem viúva. Agora, como cidadã americana e na posse plena dos bens, passara a pagar impostos à pátria.

Donovan recostou-se na cadeira. O fiscal fornecera-lhe outra informação. As finanças tinham recebido recentemente a indicação de uma mudança de residência de Catherine Savage, que aparentemente regressara aos Estados Unidos. Na realidade, regressara à cidade natal - Charlottesville, Virgínia -, a mesma de onde era originária a mãe de LuAnn Tyler. Era demasiada coincidência para o jornalista, que estava agora convencido de que LuAnn Tyler tinha voltado a casa. @1@i Chegara a altura de se conhecerem.

SENTADO NA CARRINHA que estacionara na valeta, Matt Riggs pesquisava a área com binóculos. Os oitocentos metros de estrada particular asfaltada que serpenteavam à sua direita desembocavam na estrada em que ele próprio se encontrava; para lá, ficava uma grande propriedade rural com uma bela vista sobre as montanhas próximas. O terreno arborizado e com grandes desníveis era impenetrável, constatou ele com o seu olhar profissional, o que o fazia interrogar-se sobre a razão de o dono querer uma dispendiosa vedação de segurança em todo o perímetro da propriedade, quando esta já dispunha da melhor protecção natural.

Riggs encolheu os ombros e vestiu o casaco. O vento fresco fustigou-o assim que saiu da carrinha. Passou uma das mãos pelo cabelo castanho-escuro, despenteado, e espreguiçou o corpo musculoso. Devia levar cerca de uma hora a percorrer o lado fronteiro da vedação. As especificações eram de urna vedação de mais de dois metros de altura com sensores electrónicos espalhados ao acaso. Uma câmara de vídeo, um sistema de intercomunicador e uma tranca electrónica no portão assegurariam que nada o abriria sem autorização do dono, que ele nem conhecia. Todas as negociações tinham sido feitas com um intermediário. Calculava que quem quer que pudesse dar-se ao luxo de ter uma vedação daquelas devia ter coisas mais importantes a fazer do que sentar-se a conversar com um mero empreiteiro. Não que ele disso se queixasse, pois bastava-lhe aquele trabalho para assegurar que aquele seria o seu ano mais rentável. Com o binóculo pendurado ao pescoço, avançou pela estrada até encontrar uma estreita vereda para o bosque.

O BMW saiu da garagem e começou a descer o caminho, que era ladeado por uma vedação de madeira pintada de um branco imaculado. Às 7 da manhã, o silêncio do dia permanecia por quebrar. Aqueles passeios de automóvel madrugadores tinham-se transformado num ritual apaziguador para LuAnn. Olhou de relance para a casa através do espelho retrovisor. Construída de pedra da Pensilvânia e tijolo maciço, com uma fila de colunas brancas a intervalos no vasto pórtico, tinha uma elegância refinada, apesar das dimensões imponentes.

Quando o carro saiu do caminho de acesso e a casa deixou de ser visível, LuAnn voltou de novo a atenção para a estrada e travou de repente. Um homem acenava-lhe para que parasse. Ela

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assim fez. O desconhecido aproximou-se da janela do lado do condutor e fez-lhe sinal para a baixar. Pelo canto do olho, LuAnn viu um Honda preto estacionado na erva que bordejava a estrada. Olhou para o homem com profunda desconfiança, mas não deixou de carregar no botão, e o vidro desceu um pouco. O aspecto dele era inocente: meia-idade, fraca figura, barba a ficar grisalha a toda a volta.

- Que deseja? - perguntou a jovem. - Acho que estou perdido. Esta é a antiga propriedade Brillstein? LuAnn abanou a cabeça. - Viemos para cá há pouco tempo, mas não é esse o nome dos donos anteriores. A propriedade chama-se Wicken's Hunt. Quem procura?

A cara do homem encheu-lhe a janela. - Talvez a conheça. LuAnn Tyler, da Geórgia. Ela ficou sem respiração. Era impossível esconder o espanto que se

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PRIMEIRO PRÉMIO

lhe estampara na cara. Thomas Donovan inclinou-se ainda para mais perto.

- LuAnn, gostava de falar consigo ... Ela carregou no acelerador, e o jornalista teve de dar um salto para trás, a fim de evitar que os pneus do automóvel lhe pisassem os pés.

- Ei! - gritou. O carro já quase desaparecera. Pálido, Donovan correu para o seu automóvel, rodou a chave e arrancou a toda a velocidade estrada fora.

Ele decidira que a abordagem directa seria a melhor. Vigiara a casa durante uma semana, reparara na rotina dos passeios matinais e optara por aquele dia para estabelecer o contacto. Embora quase fosse atropelado, tivera a satisfação de ver confirmadas as suas suspeitas. Fazer a

pergunta de chofre era a única maneira segura de obter a verdade. Conseguira. Catherine Savage era LuAnn Tyler. O aspecto mudara consideravelmente desde as fotografias tiradas há dez anos. Se não fosse a expressão de espanto e a fuga inopinada, o jornalista não a teria reconhecido.

Focou a atenção na estrada, avistando o BMW cinzento lá muito à frente. No entanto, na ziguezagueante estrada de montanha o seu

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Honda, mais pequeno e manobrável, estava a ganhar terreno. Não apreciava aquele estilo de capa e espada, mas tinha de fazê-la compreender o que pretendia.

MATT RIGGs examinava o terreno. A parte mais difícil do trabalho seria transportar o equipamento pesado até ali. Ia tirar do casaco o mapa com o levantamento da propriedade para o estudar em pormenor quando ouviu uma explosão de som. Levou de imediato o binóculo aos olhos. Por entre as árvores, avistou dois carros que se precipitavam pela estrada que passava pela propriedade, com os motores no máximo de rotações. O automóvel da frente era um grande BMW O de trás era mais pequeno. Aquilo que Riggs viu a seguir fê-lo virar-se e correr rapidamente de regresso à sua carrinha. O olhar de pavor na cara da mulher que conduzia o BMW e o semblante sisudo do homem que a perseguia bastaram para reavivar nele os antigos instintos que desenvolvera na sua vida anterior. Carregou no acelerador e entrou na estrada.

De súbito, os dois carros apareceram à sua frente na estrada principal. O BMW descreveu a curva quase só sobre duas rodas antes de estabilizar, logo seguido pelo outro automóvel. Agora, porém, em linha recta, os mais de trezentos cavalos do BMW não tardaram a abrir um espaço entre a mulher e o perseguidor. Não era para durar, sabia Riggs, pois aproximavam-se a grande velocidade de uma curva assassina. Esperou que a mulher soubesse isso; se não soubesse, o BMW ia despistar-se. Carregando a fundo no acelerador, aproximou-se do que via agora ser um Honda preto. O condutor parecia estar concentrado apenas no

BMW, pois quando Riggs o ultrapassou pela esquerda, nem sequer olhou, a não ser quando a carrinha se enfiou de repente à sua frente, reduzindo drasticamente a velocidade. Lá à frente, Riggs viu a mulher olhar pelo retrovisor, assistindo à luta pela supremacia na estrada entre a carrinha e o Honda. Como os anéis de uma cascavel, os dois veículos oscilavam de um lado para o outro na estrada estreita, com o condutor do Honda a procurar ultrapassar a todo o custo. Todavia, na sua carreira anterior Riggs tivera muita experiência de condução perigosa a alta velocidade, pelo que respondia com presteza a todas as manobras do outro. No minuto seguinte, contornaram a curva quase em V, com uma parede rochosa elevando-se à esquerda e um precipício quase a pique à direita. Riggs respirou de alívio quando a estrada passou a ser novamente a direito.

Estendeu a mão para o porta-luvas e tirou o telemóvel. Ia ligar o número de emergência quando o Honda embateu na traseira da carrinha. O telefone saltou-lhe da mão e partiu-se contra o tablier Riggs agarrou-se ao volante, reduziu e abrandou ainda mais, com o Honda a bater repetidas vezes na carrinha. Aconteceu o que ele esperava: o pára-choque dianteiro do Honda enganchou-se no traseiro, mais resistente, da carrinha. Riggs espreitou para o espelho retrovisor e viu a mão do homem deslizar para o porta-luvas. Não ia esperar que aparecesse uma arma. Travou a fundo, engatou a marcha atrás e os dois recuaram, rugindo, pela estrada.

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O homem do Honda agarrou-se ao volante em pânico. Riggs abrandou ao chegar à curva e descreveu-a, para logo de seguida voltar a engatar a marcha à vante. Ao regressar à recta, girou de repente o volante para a esquerda, atirando o Honda contra a parede rochosa. A colisão separou os veículos. O condutor parecia não ter ficado ferido. Riggs voltou a acelerar e desapareceu estrada fora. Foi olhando para trás durante uns minutos, mas não voltou a ver o Honda. Ou ficara inutilizado ou o condutor decidira não prosseguir a sua acção insensata.

Não avistando sinais do BMW e com o pára-choque a chocalhar atrás de si, Riggs abrandou e estacionou na berma da estrada. Arrancou uma caneta do bolso da camisa e escreveu as matrículas do Honda e do BMW num bloco que mantinha afixado ao tablier Fazia uma boa ideia de quem ia no BMW Alguém da casa grande. A mesma casa grande para que fora contratado para rodear com uma vedação de segurança de alta tecnologia. Agora, o pedido do dono começava a fazer muito mais sentido.

O BMW PARARA numa estrada secundária. A porta do lado do condutor estava aberta, o motor, a trabalhar. De braços apertados com força em torno de si própria, LuAnn caminhava em pequenos círculos frenéticos no meio da estrada. Raiva, confusão e frustração perpassavam-lhe pelas feições.

Com trinta anos, ainda guardava a energia impulsiva e os ágeis movimentos felinos da juventude. Os anos haviam enxertado nela uma beleza mais completa e madura. O corpo estava mais esguio, o que a fazia parecer ainda mais alta. O cabelo era agora muito mais louro do que fulvo, cortado de um modo sofisticado que lhe realçava as feições mais definidas. Os dentes estavam perfeitos, tendo beneficiado de anos de trabalho de dentista. No entanto, não seguira o conselho de Jackson quanto ao ferimento de navalha no maxilar Fora cosido, mas deixara ficar a cicatriz. Sempre que se via ao espelho, aquilo recordava-lhe vivamente as suas origens e como ela chegara onde estava. Nunca disfarçaria aquilo com uma plástica. Queria lembrar-se do desconforto, do sofrimento.

Por instantes, focou as ideias no homem da carrinha. Seria apenas um bom samaritano ou algo mais? Inspirou longa e profundamente, interrogando-se pela centésima vez se cometera um erro crasso ao regressar aos Estados Unidos.

RIGGS conduziu a carrinha maltratada pela estrada particular. Calculou que ir à casa fosse o modo mais rápido de chegar a um telefone e talvez também de conseguir uma explicação para os acontecimentos daquela manhã. Descreveu uma curva, e a mansão de três andares deparou-se-lhe de súbito. A sua carrinha parecia um feio rebocador atarracado saído da Guerra das Estrelas. Estacionou no caminho que rodeava a casa. Quando chegou à porta da frente, uma voz falou-lhe por um intercomunicador na parede:

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- Que deseja? - Era uma voz masculina. - Sou Matthew Riggs. A minha firma foi contratada para construir a vedação do perímetro da propriedade. Precisava de telefonar.

- Lamento, mas não é possível. - Bem, devia ser, uma vez que acabo de chocar com um carro que perseguia um BMW cinzento, que, quase de certeza, saiu desta casa. Quero assegurar-me de que a senhora que conduzia o carro está bem. Parecia bastante assustada da última vez que a vi.

A porta abriu-se. O homem de idade que apareceu correspondia ao metro e oitenta e cinco do próprio Riggs, mas tinha os ombros e o peito muito mais largos.

- O que é que se passou? Riggs apontou na direcção da estrada. - Estava a fazer a prospecção do terreno quando apareceu o BMW a toda a velocidade na estrada, com uma senhora ao volante e, pelo que vi, apavorada. Era seguida por outro carro, um Honda Accord preto.

- A senhora ... está bem? - Tanto quanto julgo saber. Eu meti-me entre os dois e desviei o Honda. Fiquei com a carrinha toda amolgada.

- O arranjo da carrinha fica por nossa conta. Onde está a senhora? - Não vim queixar-me por causa da carrinha, Mr ... ? - Charlie. Chame-me Charlie. - O homem estendeu a mão, que Riggs apertou.

Ao retirar a sua própria mão, o empreiteiro observou as marcas nos dedos causadas pelo aperto quase de torniquete do outro homem. _ A mim tratam-me por Matt. Como disse, a senhora afastou-se e, tanto quanto sei, está bem. Todavia, não quero deixar de participar.

- Participar? - À Polícia. O tipo do Honda estava a infringir várias leis, algumas do foro criminal.

- É polícia? A expressão de Charlie tornara-se sombria, ou era Riggs que estava a imaginar coisas?

- Fui uma coisa parecida. Há muito tempo. Tenho as matrículas dos dois carros. Presumo que o BMW pertença cá a casa e à senhora.

Charlie hesitou, contudo acabou por confirmar com um aceno de cabeça.

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É ela a dona. E o Honda? Nunca o vi. Então, ouviu-se um motor e, no segundo seguinte, Riggs voltou-se e viu o BMW parar atrás da carrinha. LuAnn apeou-se, relanceou por instantes o olhar para a carrinha e subiu depois os degraus, passando por Riggs com a atenção focada em Charlie.

- Este senhor diz que tiveste um problema - comentou o amigo, apontando o desconhecido.

- Matt Riggs - apresentou-se este, estendendo a mão. A impressão de excepcional beleza que tivera ao vê-Ia através dos binóculos foi aumentada pela proximidade. O cabelo era comprido, com madeixas louras. A cara e a pele eram impecáveis, à excepção de uma cicatriz ao longo do maxilar. Reparou no corpo esbelto, elegante. No entanto, a

partir das ancas e da cintura estreita desenvolvia-se uma largura de ombros que sugeria uma força física excepcional. Quando a mão da jovem se fechou em redor da sua, ele susteve a respiração. O aperto quase não se distinguia do de Charlie.

- Espero que esteja bem - disse Riggs. - Tenho a matrícula do Honda. Ia comunicá-la à Polícia, mas o meu telemóvel partiu-se quando o tipo chocou contra mim. Eu vi-o bem. Devemos conseguir que o prendam, se agirmos com rapidez.

LuAnn aparentou ficar confusa. - De que é que está a falar? Riggs pestanejou. - Do carro que a perseguia. Ela olhou de relance para Charlie. - Eu vi uma carrinha e um carro aos ziguezagues, mas não parei para fazer perguntas. Não era nada comigo. - Virou-se para Riggs. -

Mas como o senhor está na minha propriedade, acho que tenho o direito de saber o que faz aqui.

- É o senhor que vai construir a vedação de segurança - interveio Charlie.

Ela fitou Riggs com firmeza. - Então, sugiro veementemente que se concentre nisso. Ele corou. Ia começar a dizer qualquer coisa, mas decidiu conter-se. - Muito bom dia, minha senhora. Voltou-se e reencaminhou-se para a carrinha. LuAnn passou por Charlie e entrou rapidamente em casa. Enquanto Riggs subia para a carrinha, outro veículo apareceu no caminho de acesso. Era guiado por uma mulher mais velha. O banco traseiro do automóvel estava pejado de mercearias. A mulher era Sally Beecham, a governanta de LuAnn. Olhou para Riggs e, como de costume, deu a volta para a garagem encostada à casa. A porta interior desta dava

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directamente para a cozinha, e Beecham era uma pessoa eficiente que detestava desperdiçar esforços. Ao afastar-se, Riggs olhou uma vez mais de relance para a imponente residência. Com tantas janelas a devolverem-lhe o olhar, não detectou a que emoldurava LuAnn Tyler, de braços cruzados sob o peito, a fitá-lo com uma expressão resoluta, num misto de preocupação e culpa.

A LAREIRA ESTAVA ACESA na espaçosa biblioteca de grande pé-direito, com estantes de ácer a forrarem três paredes, do chão até ao tecto, e convidativo mobiliário estofado. LuAnn estava aninhada num sofá de couro em cima das pernas encolhidas. Charlie ocupava o lugar ao seu lado.

- Vais ou não contar-me o que sucedeu? - Como a interpelada não respondesse, ele pegou-lhe numa das mãos. - Estás fria como gelo. - Levantou-se para avivar o fogo e a seguir fitou-a na expectativa. - Não posso ajudar-te se não me disseres o que se passa, LuAnn.

Durante os últimos dez anos, estabelecera-se entre os dois uma ligação muito forte. Desde que Charlie tocara no ombro da rapariga quando o 747 se elevava no céu até ao regresso à América, nunca se tinham separado. Embora o primeiro nome dele fosse Robert, ele optara por Charlie. Não estava longe da verdade, pois Charles era o seu segundo nome. Tornara-se o melhor amigo e confidente de LuAnn - de facto, era o unico, dado haver coisas que ela nem à filha podia contar.

Ao voltar a sentar-se, Charlie fez um esgar de dor. Sabia que tinha de abrandar. A diferença de idade entre os dois era agora mais pronunciada do que nunca. Mesmo assim, ele faria tudo pela jovem, enfrentaria qualquer perigo, confrontar-se-ia com qualquer inimigo com todas as forças que lhe restassem. Foi a expressão nos olhos de Charlie, onde LuAnn leu estes pensamentos, que a fez contar-lhe por fim o que o homem do Honda fizera naquela manhã. Quando acabou, tremia visivelmente.

- Tenho nervos fortes, Charlie, como tu sabes, mas têm limites - declarou. - Estava precisamente a começar a sentir-me bem aqui. Jackson não apareceu, Lisa gosta da escola, e isto é tão bonito.

- E o outro tipo? Riggs. A história dele é verdadeira? LuAnn levantou-se e começou a caminhar de um lado para o outro. Passou a mão por uma fila de romances lindamente encadernados que repousavam nas prateleiras. Lera praticamente todos os livros que havia naquela sala. Dez anos como autodidacta tinham-na transformado numa mulher requintada e cosmopolita, muito diferente da que fugira daquela caravana, daqueles cadáveres. Agora, essas imagens sangrentas não lhe saíam do pensamento.

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- É. Ele meteu-se mesmo no meio. Ajudou-me, e eu teria gostado de lhe agradecer, mas não podia fazê-lo, pois não?

Charlie coçou o queixo, analisando a situação. - Sabes, por lei, a fraude na lotaria prescreveu. O tipo não pode apanhar-te por aí.

- E a acusação de homicídio? Isso não prescreve. Eu matei mesmo o homem, Charlie. Foi em legítima defesa, mas quem é que acreditaria nisso agora? - Luann tremia. Ser presa não era a sua preocupação principal. Sentou-se de novo. - O meu pai talvez nunca me tenha dito uma única palavra que fosse verdadeira. Jurei a mim própria nunca por nunca mentir a qualquer filho que tivesse. E sabes que mais? Tudo o

que sempre contei a Lisa é mentira. Se esse homem descobriu o meu passado e o revelar, então a minha filha vai ficar a saber que a mãe lhe contou mais mentiras do que provavelmente o meu pai sequer imaginou, e eu perco a minha menina ... mais certo do que o Sol nascer todos os dias. - Luann estremeceu, com um brilho fatalista no olhar. - Se perder Lisa, deixo de ter razão para viver. Apesar de tudo isto. -

Indicou a sala com um movimento dos braços. - Fico sem razão nenhuma. - Esfregou a testa.

Charlie quebrou por fim o silêncio: - Riggs tem a matrícula. Dos dois carros. - Depois, acrescentou: - Ele é ex-polícia, Luann. - Com a cabeça entre as mãos, Luann fitou o amigo, que prosseguiu: - Não te preocupes. A única coisa que ele pode obter através da tua matrícula é o nome Catherine Savage e

esta direcção. A tua identidade não tem falhas.

- Acho que tem de haver uma grande falha, Charlie. O tipo do Honda.

Charlie teve de concordar com um aceno de cabeça. - Sim, mas eu estou só a falar de Riggs. Em relação a ele, não tens problemas.

- Mas se ele conseguir dar com o outro tipo ou até falar com ele? - Então, talvez tenhamos um grande problema - anuiu Charlie. - Achas que Riggs fará isso? - Não sei. Contudo, sei que não engoliu a tua história de não saberes que estavas a ser perseguida. Dadas as circunstâncias, não te critico por não o confirmares, no entanto, tratando-se de um ex-polícia ... De certeza que está desconfiado. Não me parece que possamos contar com o desinteresse dele.

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Luann sacudiu o cabelo dos olhos. - Então, que fazemos? Charlie pegou-lhe com delicadeza numa das mãos. - Tu não fazes nada. Deixas o velho Charlie ver o que consegue descobrir.

MArr Riggs SUBIU à pressa os degraus da velha casa vitoriana que restaurara cuidadosamente durante o último ano. Entrou no escritório e fez um telefonema para um velho amigo de Washington, DC. O Honda tinha matrícula de lá. Riggs tinha quase a certeza de que era alugado ou

roubado. O BMW devia ser diferente. Pelo menos, havia de descobrir o nome da mulher. Nem o homem que se intitulara Charlie nem ela própria o tinham mencionado.

Meia hora depois, tinha as respostas. O Honda era alugado. O vulgaríssimo Tom Jones fora o nome dado por quem o alugara.

"Espertalhão!", pensou Riggs. A morada devia ser igualmente falsa. A seguir fitou o nome da mulher, que escrevera num papel: Catherine Savage. Idade: trinta anos. O número da Segurança Social conferia.,' Solteira. Cadastro limpo. Nada que fizesse desconfiar. E todavia ...

Voltou a olhar para a idade. Trinta anos. Recordou a casa. "Como é que uma mulher tão nova tem dinheiro para mais de cento e vinte hectares de excelente terreno na Virgínia? Ou o dinheiro seria de Charlie?" Não eram marido e mulher - percebia-se à légua. Ela podia ter herdado uma fortuna de família ou ser viúva de algum velhote babado. Ao lembrar-se da cara dela, achou isso bem possível. Muitos homens estariam dispostos a dar-lhe tudo o que tivessem.

Então, que fazer? Olhou pela janela do escritório para a beleza das árvores circundantes, com a vibração das cores outonais. As coisas corriam-lhe bem. O passado infeliz ficara para trás; tinha um negócio florescente num sítio que adorava. Segurou ao nível dos olhos o papel com o nome dela. Embora não tivesse qualquer incentivo material para se preocupar minimamente com ela, a sua curiosidade fora despertada.

- ESTÁS QUASE PRONTA, querida? - Luann espreitou à porta e olhou com ternura para a menina que acabava de se vestir.

Lisa virou-se para a mãe. - Falta pouco. Pouco depois, Charlie encontrou-se com elas no andar de baixo. - Ena, como estamos bonitas esta manhã - cumprimentou. - Vai buscar o casaco.

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Espero por ti no carro. - Depois de a criança se afastar, Charlie dirigiu a LuAnn um olhar sério. - Vou verificar umas coisas assim que deixar Lisa no colégio.

- Achas que consegues encontrar o tipo? Ele encolheu os ombros, enquanto abotoava o sobretudo. - Talvez. LuAnn acenou de cabeça. - E quanto a Riggs? - Esse fica para depois. Se lhe fosse agora bater à porta, ele podia ficar com mais suspeitas do que já tem.

LuAnn ficou a ver os dois entrarem no Range Rover de Charlie e

partirem. Mergulhada nos seus pensamentos, vestiu um casacão, percorreu a casa e saiu pelas traseiras. Passou pela piscina olímpica. O Court de ténis apareceria com toda a probabilidade no ano seguinte. Nenhuma das duas actividades lhe interessava em particular. Lisa é que era uma ávida nadadora e tenista, pelo que, à chegada a Wicken's Hunt, pedira com ardor um Court de ténis.

A única actividade a que LuAnn começara a dedicar-se durante as suas viagens era a que ia agora mesmo praticar. A cavalariça ficava uns quatrocentos e cinquenta metros atrás da mansão. Com a sua passada larga, chegou lá num instante. Foi buscar os arreios à respectiva divisão e selou a égua, Joy, a que dera o nome da mãe. Uma das razões para ela e Charlie se terem decidido por aquela propriedade era o facto de conter uma miríade de trilhos para cavalgar. Começou a trote e não tardou a deixar a casa para trás. A frescura da manhã ajudou-a a aclarar as ideias, a pensar nas coisas.

Já por muitas vezes considerara a hipótese de regressar à Geórgia e

contar a verdade, mas nunca conseguira fazê-lo. Embora tivesse matado em legítima defesa, as palavras do homem que se intitulara Rainbow não lhe saíam do pensamento. Fugira. Desse modo, a Polícia presumira o pior. Além do mais, ela tinha feito algo de absolutamente errado. O animal que montava, as roupas que vestia, a casa onde vivia - tudo fora pago com dinheiro que efectivamente era roubado. A sua existência quotidiana oscilava entre o medo da queda total da fina camada de verniz que lhe cobria a verdadeira identidade e um imenso sentimento de culpa pelo que fizera. No entanto, se para alguma coisa vivia, era para garantir que a vida de Lisa não fosse prejudicada pelas acções passadas ou futuras da mãe.

A pequenita estava convencida de que o pai fora um rico financeiro europeu que morrera quando ela era bebé, deixando a mãe como uma das mulheres mais ricas do Mundo. E uma das mais generosas. Metade do rendimento anual de LuAnn era doado anonimamente a um grande número de obras de caridade. Ela estava decidida a fazer todo o bem que pudesse com

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o dinheiro, a fim de, pelo menos em parte, compensar a maneira como o adquirira. Mesmo assim, ele entrava muito mais depressa do que era possível gastá-lo.

Após uma revigorante cavalgada pelo campo, LuAnn dirigia-se de novo para a cavalariça quando a cara de Matthew Riggs lhe apareceu à frente. O homem arriscara a vida por ela, e a sua melhor resposta fora acusá-lo de mentiroso. Ponderou um momento e acabou por incitar Joy a apressar-se.

De regresso a casa, foi directa ao escritório de Charlie. Folheando o

arquivador de cartões dele, descobriu o que queria e tirou-o para fora. Foi tomar duche, vestiu saia e camisola pretas, pôs aos ombros um casaco comprido e desceu à garagem. Não sabia se o que estava a planear seria positivo ou negativo, mas sempre preferira a acção à passividade e

não ia mudar agora. Além disso, o problema era dela, não era de mais ninguém. Algum dia teria de o enfrentar.

JACKSON ESTAvA na sua sala de maquilhagem quando tocou o telefone que usava para negócios. Atendeu de imediato:

- Estou? - Acho que temos aqui um problema - respondeu a voz. - Estou a ouvir. - Jackson sentou-se. - Há dois dias transferimos os rendimentos do último trimestre para a conta de Catherine Savage nas ilhas Cayman, no Banco Internacional, tal como sempre. Recebi posteriormente um telefonema da secção de transferências desse banco a confirmar que tinham transferido todo o dinheiro das contas de Savage para o Citibank de Nova Iorque.

"Nova Iorque!" Enquanto tentava absorver aquela notícia surpreendente, Jackson indagou:

- Por que razão ligaram para si se a conta era dela? - Por engano. Acho que o tipo das transferências é novo. Deve ter visto o meu nome e número de telefone na papelada e calculou que eu fosse o detentor da conta creditada, em vez de estar do outro lado da transferência.

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- Obrigado. - Jackson desligou. Nenhum do dinheiro de LuAnn devia acabar nos Estados Unidos. Aqui, o percurso do dinheiro podia ser seguido. Voltou a pegar no telefone e ligou um número.

- Está? - O nome da contribuinte é Catherine Savage - disse Jackson. -

Descubra se ela apresentou declaração de rendimentos ou preencheu qualquer outro documento das finanças. Preciso da informação dentro de uma hora.

Quarenta e cinco minutos depois, o telefone tocou. A voz soou, seca:

- Catherine Savage apresentou a declaração de rendimentos no "1@1 ano passado e entregou há pouco um impresso de mudança de residência.

- Dê-me a nova morada. - Jackson escreveu a direcção de Charlottesville, Virgínia, num papel que enfiou na algibeira.

- Ainda outra coisa - continuou a voz. - A minha fonte descobriu que foi arquivado recentemente um formulário 2848 relacionado

200

PRIMEIRO PRÉMIO

com a contribuinte Savage. Corresponde a uma procuração desta para uma terceira pessoa.

- Quem é essa terceira pessoa? - Um tipo chamado Thomas Jones. Segundo o processo, ele já foi informado sobre a relação dela com as finanças, incluindo a mudança de residência e a declaração de rendimentos do ano passado. Consegui obter cópia do formulário 2848 que ele preencheu. Posso enviar-lho de imediato. _ Faça isso.

Jackson desligou, e um minuto depois tinha o fax nas mãos. Olhou para a assinatura de Catherine Savage. Foi buscar os originais dos documentos que LuAnn assinara dez anos antes. As assinaturas nem sequer eram parecidas. Uma falsificação. Quem quer que fosse "Thomas Jones", preenchera aquele documento sem o conhecimento dela.

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Jackson sentou-se numa cadeira, de olhos fixos na parede, enquanto a mente se expandia em círculos de pensamento cada vez mais vastos. LuAnn regressara aos Estados Unidos apesar das suas instruções explícitas em sentido contrário. Desobedecera-lhe. E agora havia outra pessoa interessada nela. Qual seria a razão? Onde estaria essa pessoa? Se calhar, no mesmo sítio para onde Jackson estava prestes a dirigir-se: Charlottesville, Virgínia.

LuANN parou o carro em frente da casa. Não viu a carrinha em lado nenhum. Ia-se embora, mas a beleza simples da residência de Matt Riggs fê-la sair do BMW e subir os degraus de madeira. As linhas graciosas da velha estrutura, o cuidado e a perícia evidentes postos na recuperação fizeram-na desejar explorar o local, mesmo na ausência do dono.

Bateu à porta da frente sem obter resposta. Hesitou, até que tentou rodar a maçaneta. Conseguiu-o sem qualquer dificuldade, Entrar na casa do homem sem conhecimento dele era capaz de complicar a questão. Contudo, talvez obtivesse informações úteis a respeito dele, algo que pudesse usar para se libertar do desastre em potência.

Empurrou a porta. O mobiliário da sala de estar era simples, mas de excelente qualidade. LuAnn percorreu as outras divisões, parando aqui e ali a admirar o trabalho. Chegou ao escritório e espreitou para o interior. Ao aproximar-se da secretária, viu o papel em que Riggs anotara as informações a seu respeito. A seguir, relanceou o olhar para o apontamento referente ao Honda. Era evidente que Riggs tinha fontes sofisticadas, o que era preocupante. LuAnn ergueu a cabeça e espreitou pela janela larga para o pátio das traseiras. Havia lá uma espécie de celeiro cuja porta estava aberta. Ela saiu, aproximou-se sorrateiramente da porta e espreitou para o interior, que era iluminado por uma luz no tecto. As prateleiras que ocupavam duas paredes continham madeira e ferramentas. Ela viu uma escada ao fundo. Noutros tempos, teria conduzido ao sótão da forragem, mas Riggs não tinha animais. Que haveria ali'?

LuAnn subiu os degraus com lentidão e descobriu urna pequena zona de escritório e observação. Tinha estantes, uma cadeira de cabedal coçado e uma velha salamandra. Um telescópio espreitava por uma enorme janela nas traseiras do celeiro. Quando LuAnn olhou pela janela, o seu coração começou a bater descompassado. A carrinha de Riggs estava ali atrás.

Ao virar-se para fugir escadas abaixo, deu por si a olhar para a boca dos canos de uma caçadeira de calibre 12.

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Quando Riggs viu quem era, baixou devagar a arma. - Que diabo está você aqui a fazer? Ela tentou passar por ele, mas o homem agarrou-lhe o braço. LuAnn soltou-se com igual rapidez.

- Pregou-me um susto de morte - queixou-se. - É assim que costuma receber as pessoas em sua casa?

- As pessoas costumam entrar pela porta da frente, e só depois de eu a abrir.

Ela olhou em redor, até que voltou a enfrentar a expressão irada de Riggs.

- Isto é um sítio óptimo para se vir meditar. Importa-se de me construir qualquer coisa assim lá em casa?

Ele encostou-se à parede. - Eu pensaria que quisesse ver o meu trabalho da vedação antes de me contratar para outras coisas, Ms. Savage. - Ela fingiu surpresa ao ouvir o seu nome, mas não o suficiente para contentar Riggs. - Então, , encontrou no meu escritório mais alguma coisa de interesse, além do trabalho de casa que fiz a seu respeito?

Um pouco enervada, LuAnn afastou da cara uma madeixa de ca-. belo.

- Olhe, Mr. Riggs ... - Os meus amigos chamam-me Matt. Não somos amigos, contudo concedo-lhe o privilégio - interrompeu ele com frieza.

- Prefiro chamar-lhe Matthew. Não quero infringir regras. O homem pareceu ficar surpreendido por instantes. - Como queira. - Charlie disse que você era polícia. - Eu não disse isso. - E então, era ou não era? - Na verdade, aquilo que eu era não é da sua conta. E ainda não me explicou o que está a fazer aqui.

- O que sucedeu esta manhã é um pouco mais complicado do que parece. - Fez uma pausa e levantou para ele o olhar, procurando-lhe os olhos. - Agradeço o que fez. Ajudou-me, e nada o obrigava a isso, portanto vim agradecer-lhe. - Riggs ficou um pouco mais descontraído. - Vim também pedir-lhe que esqueça o incidente. Se se envolver, as coisas podem tornar-se mais complicadas para mim.

O interlocutor cofiou o queixo. - Sabe, o tipo amolgou-me a carrinha. Por isso, J a me sinto envolvido.

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LuAnn aproximou-se. - Eu ficava-lhe extremamente agradecida se se limitasse a esquecer. - Os olhos da jovem pareciam aumentar a cada palavra.

Riggs sentiu-se muito próximo dela, embora não se tivesse movimentado fisicamente sequer um centímetro.

- Vamos combinar urna coisa. Se o tipo não me causar mais problemas, esqueço o que aconteceu.

Os ombros tensos dela descaíram de alívio. - Obrigada. - Contornou-o a caminho da escada. O cheiro do perfume dela envolveu Matt, que sentiu um arrepio de interesse como

não lhe sucedia há muito. - A sua casa é linda - comentou LuAnn. - Fez tudo sozinho?

- Quase tudo. Tenho muito jeito de mãos. - Porque não vai amanhã até lá a casa para conversarmos sobre mais trabalhos para mim?

- Ms. Savage ... - Por volta do meio-dia? Posso ter o almoço pronto. Riggs dirigiu-lhe um olhar inquiridor e acabou por encolher os ombros.

- Pode ser. - Quando ela começou a descer a escada, ele chamou-lhe a atenção: - Relativamente ao tipo do Honda: não presuma que ele vai desistir.

Ela olhou de relance para Matt. - Eu já nunca presumo nada, Matthew.

- BEM, É UMA BOA CAUSA, John, e ela gosta de contribuir para boas causas. - Charlie recostou-se na cadeira e saboreou o café quente. Estava na sala de jantar da Estalagem Boar's Head, um pouco a ocidente da Universidade da Virgínia. Dois pratos continham os restos do pequeno-almoço. O homem à sua frente estava radiante.

- Nem sei como dizer-lhe o que isso significa para a comunidade. - Vestido com um caríssimo fato assertoado, John Pemberton era um dos mais bem-sucedidos e relacionados agentes imobiliários da região. Também fazia parte dos conselhos de administração de numerosas organizações caritativas locais. Sabia quase tudo o que se passava na zona, sendo

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precisamente essa a razão de Charlie o ter convidado para o pequeno-almoço. Além disso, a comissão pela venda da casa a LuAnn aterrara em seis algarismos na algibeira de Pemberton, pelo que este se tornara um amigo para sempre. Agora, apareceu-lhe um sorriso tímido no rosto agradável. - Temos esperança de um dia vir a conhecer Ms. Savage.

- Ali, mas com certeza, Jolin, não tenha dúvidas. Só que vai demorar um certo tempo. Ela é uma pessoa muito reservada.

- Compreendo. Por falar em reserva, constou-me que Matt Riggs vai montar-vos uma vedação de segurança. - Reparando no ar surpreendido de Charlie, Pemberton sorriu. - Apesar do seu aspecto cosmopolita, Charlottesville não passa de uma pequena cidade. Pouca coisa acontece sem que quase toda a gente tome conhecimento logo a seguir.

Perante estas palavras, a disposição de Charlie piorou muito. Riggs já teria contado a alguém? Com esforço, afastou a ideia.

- Claro. Bem, o tipo tem óptimas referências. - Sim, o trabalho dele é muito bom. Está cá há cinco anos e nunca ouvi dizer mal dele.

- De onde veio? - De Washington, DC. - Então, começou a carreira de empreiteiro lá? - Não. Obteve um alvará depois de vir para aqui. - Pemberton olhou em torno da sala. Quando voltou a falar, foi em voz mais baixa. - Consta que antes de se mudar para Charlottesville tinha uma posição importante em Washington. - Fez uma pausa para criar expectativa. - Nos serviços secretos.

Charlie esforçou-se ao máximo por aparentar calma. - Serviços secretos? Quer dizer, como espião? Pemberton ergueu as mãos. - Quem sabe? Só fala do passado em termos vagos. Em todo o

caso, não deixa de ser um construtor excepcional. Vai fazer-vos um bom trabalho. - Pemberton riu. - Desde que não comece a bisbilhotar. Sabe, se foi espião, é capaz de ter dificuldade em perder o hábito. Tenho tido uma vida bastante imaculada, porém todos temos esqueletos nos armários, não é verdade?

Charlie aclarou a voz antes de responder: - Uns mais do que outros. - Inclinou-se para a frente, com as mãos unidas em cima da mesa. - John, tenho um pequeno favor a pedir-lhe.

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O sorriso de Pemberton acentuou-se. - Considere-o feito, Charlie. -Apareceu lá em casa um homem no outro dia a pedir um donativo para uma fundação de caridade a que afirmou presidir. Não era de cá, e pareceu-me tudo um pouco de desconfiar. Percebe o que estou a dizer?

- Perfeitamente. - Uma pessoa na posição de Ms. Savage tem de ter cuidado. Há por aí muitas falcatruas. O tipo disse que ficava algum tempo por cá e pediu uma nova reunião. Achei provável que tivesse alugado um sítio qualquer por aí, em vez de se aboletar num hotel, que fica caro para quem vive de expedientes.

- E gostava que eu descobrisse onde está o homem? - Exacto. Quero saber com quem estou a lidar. - Descreva-me o homem. Charlie assim fez, pondo a seguir dinheiro na mesa para pagar a refeição e levantando-se.

- Ficamos-lhe muito gratos, John.

THOMAs DONOVAN percorreu as ruas de Georgetown à procura de um sítio para estacionar. Guiava outro carro alugado, um Chrysler, último modelo. Não devolvera o Honda porque não queria ter de explicar as amolgadelas no pára-choque. Acabou por aproveitar um espaço numa rua lateral não muito longe do lugar a que se dirigia. Começou a cair uma chuva miudinha enquanto ele se encaminhava para um bairro chique com imponentes residências. Parou junto a uma casa de três andares cercada por um muro de tijolo até ao nível da cintura, a que se sobrepunha um gradeamento de ferro forjado negro. Inseriu uma chave na fechadura do portão e subiu o caminho de acesso. Outra chave deu-lhe entrada pela porta principal.

Uma governanta pegou-lhe no casaco molhado. - Vou dizer à menina que o senhor chegou, Mr. Donovan. Ele concordou com um aceno de cabeça e foi para a sala, onde se aqueceu em frente da lareira antes de preparar uma bebida no bar a um canto.

Apareceu uma mulher, que se aproximou de imediato dele e o beijou com ardor.

- Tive saudades tuas - declarou. O homem conduziu-a para o grande sofá. Os joelhos de ambos tocaram-se quando se sentaram muito perto um do outro. Alicia Crane era pequenina, estava a meio da casa dos trinta, tinha feições delicadas e o cabelo comprido e grisalho. Estava com um vestido caro, e as jóias que, lhe ornamentavam os pulsos e as orelhas eram igualmente caras. A sua face estremeceu um pouco ao ser acariciada por ele.

- Também tive saudades tuas, Alicia. Muitas.

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- Não gosto nada que tenhas de viajar. - Bem, faz parte da profissão. - Donovan sorriu-lhe. - Todavia, tu estás a torná-la muito mais difícil de exercer. - Ele sentia-se de facto atraído por Alicia Crane. Embora não fosse a estrela mais brilhante do Universo, ela era boa pessoa, sem as manias e ares que o seu nível de, riqueza costuma estampar em quem o possui.

- Vais ter de voltar a partir em breve? Estava a pensar que podíamos ir às Caraibas. São lindas nesta época do ano.

- Seria óptimo, mas acho que tem de ficar para outra altura. Parto já amanhã.

A desilusão foi visível no rosto da companheira. - Ah, compreendo. O jornalista pôs uma das mãos sob o queixo dela e fitou-a nos olhos. - Alicia, hoje descobri uma coisa importante. Arrisquei-me, mas foi compensador. - Recordou a expressão assustada dos olhos de Luann Tyler ainda nessa manhã.

- Que bom, Thomas. Mas espero que não tenhas estado em perigo. Que faria eu se alguma coisa te acontecesse?

Ele recostou-se, a recordar a manhã audaciosa. - Sei tomar conta de mim. Mas vou prometer-te uma coisa: quando eu completar esta investigação, fazemos umas longas férias. Em qualquer sítio quente. Só tu e eu. Que te parece?

Ela pousou a cabeça no ombro de Donovan. - Uma maravilha.

- CONVIDASTE-O para almoçar? - Charlie fitava LuAnn com um misto de zanga e frustração na cara. - Importas-te de me explicar porquê? Eu disse-te que tratava do assunto.

Estavam no escritório de Charlie. Ele sentara-se em frente da secretária de mogno enquanto ela se empoleirara no braço da cadeira dele. A expressão de LuAnn era de desafio. _ Não consegui deixar-me ficar sem fazer nada. Achei que, se

abordasse Riggs antes de ele ter a oportunidade de fazer fosse o que fosse, lhe pedisse desculpa e a seguir o convencesse a esquecer o assunto, ficávamos livres e ilibados.

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O homem abanou a cabeça e passou-lhe um braço pela cintura. - LuAnn, esta manhã tive uma conversa com John Pemberton. Ele vai tentar localizar o tipo do Honda.

LuAnn levantou-se. - Não lhe contaste ... - Inventei uma história para disfarçar. Também conversei com ele sobre Riggs. Pemberton acha que ele foi espião.

- Espião? CIA? - Como é que hei-de saber? Com certeza o tipo não vai publicitar a

que organização pertenceu.

LuAnn estremeceu, a lembrar-se das informações que Riggs obtivera sobre ela com tanta presteza. Assim, fazia sentido.

- Bem, convidá-lo para almoçar é uma forma de ficarmos a saber mais sobre ele. Parece que também tem os seus segredos - comentou ela. - Quando contas que Pemberton te dê notícias?

- Não ficou nada combinado. Pode ser hoje, pode ser para a semana.

- Informa-me quando souberes alguma coisa. - Será a primeira a tomar conhecimento, minha senhora. LuAnn virou-se para se ir embora. - Ah, por acaso, estou convidado para esse almoço de amanhã? -

indagou Charlie.

Ela olhou para trás, a analisar-lhe a expressão. Haveria ali uma ponta de ciúme?

- Estava a contar contigo, Charlie.

RIGGS VESTIRA calças de algodão, uma camisa com botões no colarinho e uma camisola de lã. Chegara num Jeep Cherokee que pedira emprestado enquanto a sua carrinha estava na oficina para a reparação do pára-choque. Passou a mão pelo cabelo recém-lavado para o alisar e subiu os degraus da entrada.

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A porta foi aberta por uma empregada, que o acompanhou à biblioteca. A atenção dele recaiu sobre as fotografias que ornamentavam a cornija da lareira, fotografias de Charlie e de uma garotinha muito parecida com Catherine Savage, mas nenhuma da própria Catherine. Virou-se ao ouvir a porta dupla da biblioteca abrir-se. O primeiro encontro com a mulher no seu sótão adaptado não o preparara para o segundo. O cabelo dourado dela caía sobre os ombros largos de um atraente vestido preto. Os sapatos eram pretos, a condizerem, e de salto raso. Ocorreu a Matt a imagem de uma esbelta pantera musculosa. Por estranho que parecesse, a pequena cicatriz no maxilar tornava-a mais atraente.

- Ainda bem que conseguiu vir - comentou a dona da casa, avançando em passo ligeiro e estendendo a mão, que Riggs apertou. - O almoço está pronto dentro de minutos. Quer beber qualquer coisa antes?

- Por mim, estou bem. - Apontou as fotografias. - E sua filha? Ou irmã mais nova?

Ela corou, instalando~se no sofá antes de responder: - Minha filha, Lisa. Tem dez anos. - Então, devia ser extremamente nova quando a teve - opinou Matt.

- Mais nova do que se calhar devia, no entanto não a trocava por nada deste mundo. Tem filhos?

Matt apressou-se a abanar a cabeça. - Nunca tive essa sorte. LuAnn reparara na ausência de aliança, mas presumira que uni homem cujo trabalho quotidiano era manual a não usasse por uma questão de segurança.

- A sua mulher ... - Sou divorciado. - Matthew enfiou as mãos nos bolsos. - E a senhora?

- Viúva. - Lamento. Ela encolheu os ombros. - Já sou há muito tempo - disse apenas. - Ms. Savage ...

- Trate-me por Catherine. - Fez um sorriso travesso. - Todos os meus amigos me chamam assim.

O homem sentou~se ao lado dela. - Presumo que o seu marido tivesse sido muito bem-sucedido na vida. Ou então foi a senhora. Não quero parecer politicamente incorrecto, mas ou foi isso ou um dos dois ganhou a lotaria. - Riggs sorriu.

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A mão dela apertou com força a beira do sofá. - O meu marido deixou-me muito bem. - Conseguiu pronunciar isto com aspecto descontraído. - E você? Sempre viveu aqui?

- Vim da capital para cá há cinco anos. Aprendi o ofício com um empreiteiro local. Quando ele morreu, montei o meu negócio.

- Pelo que vejo, gosta do que faz. - Por vezes, é uma chatice, mas gosto de montar coisas. E tenho tido sorte, os trabalhos têm-se seguido a bom ritmo.

- Ainda bem que a sua mudança de carreira resultou. Matt recostou-se, a digerir as palavras da interlocutora, até que soltou uma risadinha. - Deixe ver se adivinho. Ouviu dizer que eu era espião da CIA ou assassino.

- Na verdade, não ouvi a versão de assassino. - Trocaram breves sorrisos. LuAnn olhou para o relógio. - O almoço deve estar quase pronto. Achei que depois talvez pudesse dar uma vista de olhos ao sítio onde estou a considerar a hipótese de lhe encomendar a construção de um estúdio. - Levantou-se, e o convidado fez o mesmo, aparentemente aliviado por aquela conversa ter acabado.

- ENTÃo, Marr, de quanto tempo vai precisar para construir a vedação? - perguntou Charlie. Ele e Riggs estavam no terraço das traseiras, que dava para o terreno da propriedade. O almoço acabara, e

LuAnn fora buscar Lisa à escola. Pedira a Matthew que aguardasse o

seu regresso para conversarem sobre a construção do estúdio.

- Conto com uma semana para escavar as fundações das sapatas dos postes. Duas semanas para limpar o terreno, montar e instalar a vedação. Mais uma semana para colocar o portão e os sistemas de segurança. Um mês ao todo. Foi mais ou menos o que estipulei no contrato.

Charlie analisou-o com o olhar. - Eu sei, mas muitas vezes o que está no papel não se verifica na realidade.

- Isso acontece frequentemente no negócio da construção - as-

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sentiu o interlocutor -, mas havemos de a montar antes das geadas, e a

disposição do terreno não é tão má como pensei a princípio. - Fez uma pausa e fitou o outro homem. - Depois do que se passou ontem, gostava de poder montá-la ainda hoje. Tenho a certeza de que você pensa o mesmo.

Era um convite à troca de impressões, e Charlie não o desiludiu. - Catherine contou-me a vossa pequena altercação de ontem. - Calculei que sim. No entanto, ela não devia andar a bisbilhotar as casas dos outros, nem sempre é bom para a saúde.

- Foi isso mesmo que eu lhe disse. Talvez não se note, mas ela é bastante teimosa.

Os dois homens trocaram risadinhas de entendimento. - Pode crer que lhe estou grato por concordar em não aprofundar as investigações - continuou Charlie.

- Disse-lhe que, se o tipo não me incomodasse, eu também não o incomodava a ele.

- Agradeço. - E então, conseguiu descobrir quem era o tipo do Honda? - interessou-se Matt. - Estou a tentar. Já pus alguns investigadores em campo. - Se o descobrir, que pensa fazer? Charlie fitou-o. - Que faria você? - Depende das intenções dele. - É isso mesmo. Portanto, enquanto não o encontrar e não souber quais são as intenções dele, não sei o que vou fazer. - Havia laivos de hostilidade no tom de Charlie.

Os dois homens mantiveram-se em silêncio até ouvirem os barulhos da aproximação de LuAnn e Lisa. Em pessoa, Lisa Savage parecia-se ainda mais com a mãe do que na fotografia.

- Lisa, este é Mr. Riggs. Ele estendeu-lhe a mão. - Podes tratar-me por Matt, Lisa. Muito gosto. A garota correspondeu ao aperto de mão. - Também tenho muito gosto, Matt. - Tens um aperto de mão bem forte. - Matthew relanceou o olhar para LuAnn e Charlie. - Deve ser de família. - A isto, Lisa sorriu. _ Matthew vai-me construir um estúdio, Lisa. Algures na propriedade. - LuAnn apontou para os terrenos da parte de trás.

A pequena ergueu os olhos para a casa, nitidamente embasbacada. - A casa já não é suficientemente grande? - Todos os adultos desataram a rir à gargalhada, logo imitados por Lisa. - Para que serve o estúdio? - perguntou.

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- Bem, pode vir a ser uma espécie de surpresa - respondeu a mãe. - Mas talvez te deixe usá-lo de vez em quando. - A filha sorriu alegremente ao ouvir isto. - Agora, vai para dentro, que já vou ter contigo depois de tratar do assunto com Matthew. Miss Sally tem o teu lanche pronto.

LuAnn e Riggs percorreram calmamente as traseiras da propriedade. Charlie pediu para ser dispensado. Tinha coisas a fazer, declarou. Depois de verem o terreno, o empreiteiro apontou uma clareira com vista desimpedida para a serra.

- Parece-me um bom sítio. Na verdade, com tanta terra há várias localizações potenciais. A propósito, se soubesse para que vai servir o

estúdio, talvez conseguisse escolher melhor o sítio.

- Quero uma disposição parecida com a sua. Dois andares. O primeiro pode ser atelier para os meus passatempos ... quer dizer, quando conseguir ter passatempos. No segundo, quero uma salamandra, um telescópio, mobiliário cómodo. Quando pode começar?

- Este ano já não, Catherine. - Está assim tão ocupado?

- Não é isso. O terreno não tarda a gelar, e não gosto de fazer fundações depois disso. O clima pode ser muito duro por estas bandas. Isto é sem dúvida um projecto para a próxima Primavera.

- Ali! - Ela ficou profundamente desapontada. Na Primavera seguinte ainda lá estariam?

Reencaminharam-se para a casa, e Charlie foi ao encontro deles na

entrada das traseiras. Havia nos modos do homem mais velho um entusiasmo contido, e os olhares que dardejou a LuAnn disseram-lhe porquê: Pemberton descobrira onde estava alojado o homem do Honda. Embora não o demonstrasse, Matt captou a comunicação subtil.

Após a partida dele, Charlie e LuAnn foram para o escritório e fecharam a porta.

Onde está o tipo? - perguntou LuAnn. É nosso vizinho. O quê? Uma casinha alugada, a menos de seis quilómetros e meio daqui pela Estrada 22. Em tempos, foi uma grande propriedade, mas só ficou a casinha do feitor. Lembras-te de por lá termos passado há uns tempos?

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- Lembro-me muito bem. Tem-se acesso, a pé ou a cavalo, pelos trilhos das traseiras. Já experimentei.

Chaffie abriu uma das gavetas da secretária e tirou a arma de calibre 38.

- Que vais fazer? - indagou ela, alarmada. - Vou verificar. - Eu vou contigo. - Não, LuAnn. Se acontecer alguma coisa, não convém de maneira nenhuma que sejas envolvida. - Tocou-lhe com ternura na face. -

Quero que tu e Lisa fiquem em segurança.

Ela viu-o abrir a porta. - Charlie, por favor, tem cuidado. O amigo olhou para trás. - Sabes que tenho sempre cuidado, LuAnn.

Assim QUE CHARLIE chegou à estrada principal, Riggs começou a segui-lo no Cherokee. Considerara que havia cinquenta por cento de probabilidades de acontecer qualquer coisa assim que saísse. Um amigo contara-lhe que vira Pemberton e Charlie a tomarem o pequeno-almoço no dia anterior. Fora uma atitude inteligente da parte de Charlie; era provavelmente o que ele próprio teria feito para identificar o homem do Honda. Isso e o aspecto entusiasmado de Charlie haviam sido o suficiente para convencê-lo de que se passava qualquer coisa. Manteve o Range Rover debaixo de olho quando este virou para a Estrada 22. Tinha a espingarda no assento ao seu lado.

CHARLIE ESTACIONOU o Range Rover sob a protecção de um renque de árvores. Dali avistava a casinha. Apeou-se e abriu caminho por entre as árvores, detendo-se primeiro numa pequena arrecadação localizada por detrás da casa. Limpando com a mão o pó no vidro da janela, conseguiu vislumbrar o Honda preto no interior.

Esperou cerca de dez minutos. A casa parecia desocupada, mas a presença do carro na arrecadação contrariava aquele facto. Charlie, avançou com cautela. Olhou de relance em volta, mas não avistou Riggs, agachado atrás de uns arbustos de azevinho à esquerda da casa.

Matt baixou os binóculos e pesquisou a área. Tal como Charlie, não detectara qualquer movimento ou som com origem na casa, mas isso não queria dizer nada. O tipo podia lá estar à espera de que Charlie aparecesse. Do género de disparar primeiro e fazer perguntas depois. Matthew apertou a arma e ficou a aguardar.

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A porta da rua estava trancada. Charlie bateu, mas não obteve resposta. Olhou para a fechadura e extraiu dois objectos da algibeira do casaco - uma gazua e um tensor. Numa questão de segundos, aquilo que aprendera durante a estada na Penitenciária Federal fez maravilhas, e ele abriu a porta.

La dentro, um corredor ia desde a frente até às traseiras, dividindo a casa ao meio. A cozinha ficava na parte de trás, à esquerda; a pequena casa de jantar situava-se em frente. À direita, havia uma salinha modesta. Uma simples escada de madeira dava acesso a quartos no andar de,, cima. Charlie quase não reparou nisso, pois a sua atenção ficou detida na casa de jantar. Fitava, siderado, um computador, uma máquina de,. fax e pilhas de caixas de arquivo. Os olhos rodaram-lhe a seguir para., um quadro onde estavam afixadas fotografias da imprensa. A cara de LuAnn destacava-se entre elas. Estava ali toda a história: os homicídios, LuAnn a ganhar a lotaria, o seu desaparecimento. Charlie percorreu toda a divisão, pegando com cuidado em papéis, examinando as,' caixas de arquivo, procurando qualquer coisa que servisse para identificar a pessoa ali instalada; todavia, nada encontrou. Pensou ligar o computador, mas a sua perícia naquela tecnologia era nula. Estava prestes a começar a pesquisa pelo resto da casa quando o seu olhar foi atraído por uma caixa solitária no canto mais afastado.

Quando Charlie levantou a tampa, os seus olhos começaram a pestanejar descontroladamente, e até as próprias pernas ameaçaram ceder.

Era um simples papelinho com uma lista de nomes escritos com nitidez. O de LuAnn era um deles, assim como os de outros vencedores da lotaria - Herman Rudy, Wanda Tripp, Bobbie Jo ReynoIds. Charlie fora o acompanhante pessoal de muitos deles, tal como de Luann. Sabia que todos tinham ganho as suas fortunas com a ajuda de Jackson. Pousou a mão trémula no parapeito da janela. Contara descobrir provas de que o homem estava a par dos homicídios e do envolvimento de Luann. Não contara ficar a saber que a fraude na lotaria fora descoberta. Como? Como podia o tipo ter dado com aquilo? Quem diabo seria ele? Charlie tapou de novo a caixa, virou-se e saiu porta fora. Correu para o Range Rover e afastou-se.

Ao VER CHARLIE afastar-se, Riggs só captou um vislumbre da sua cara, mas foi o suficiente para se aperceber de que se passava qualquer coisa. E, fosse o que fosse, era mau. Depois de o Range Rover desaparecer, Matt voltou-se e ficou a olhar para a casinha. Devia fazer também uma tentativa de revista à residência? Talvez obtivesse respostas para muitas perguntas. Quase decidira deitar uma moeda ao ar quando viu um Chrysler chegar à porta. Ia um homem inclinado sobre o volante, mas Matthew não teve qualquer dificuldade em reconhecê-lo. Com reflexos rápidos, correu de volta ao Cherokee. Se quisesse investigar a

casa, tinha de ser noutra altura.

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No seu escritório, frente a Luann, as feições de Charlie tinham uma expressão assombrada.

- Ele sabe dos homicídios e da fraude na lotaria. Vi nomes. Uma lista deles, por sinal, onde o teu estava incluído. - Fez uma pausa, e a

interlocutora preparou-se para o pior. - Herman Rudy e Wanda Tripp também constavam. Eu acompanhei-os a todos em Nova Iorque.

Um desalento penoso apoderou-se da jovem. - Temos de fugir, Charlie. Temos de fazer as malas e ir embora. Hoje.

Ele considerou a hipótese. - Tenho estado a pensar nisso. Podemos fugir, como já temos feito. Só que agora há uma diferença.

Luann seguira-lhe o raciocínio. - O tipo sabe que a lotaria foi viciada, e sabe que Luann Tyler e Catherine Savage são uma e a mesma pessoa. O nosso disfarce já não vai resultar. - A jovem começou a andar de um lado para o outro. -

Que é que ele quer, Charlie? - Não sei. Talvez dinheiro - respondeu ele, abanando a cabeça. - Mas não tentou fazer chantagem, não pediu nada. Quem me dera saber porquê. - Ficou por um momento imersa nos seus pensamentos.

- Então, que é que fazemos? - suspirou Charlie. - Esperamos - acabou por ser a resposta que saiu dos lábios dê' Luann. - Mas prepara tudo para sairmos do país a qualquer instante.

- OBRIGADO por me receber sem marcação, Mr. Pemberton.

- John, por favor, trate-me por John, Mr. Conklin. - Pemberton" apertou a mão do outro homem, e ambos se sentaram no gabinete do,@ mediador imobiliário.

- Por mim, sou Harry - disse o outro. Disfarçadamente, Pemberton analisou Harry Conklin: na casa dos sessenta, roupas caras e um ar de autoconfiança que levaram Pembertorí, a avaliar rapidamente a potencial comissão.

- Constou-me que está especializado no segmento mais alto do, mercado daqui - recomeçou Conklin.

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- É verdade. Conheço todas as propriedades que vale a pena conhecer.

Conklin assumiu um ar descontraído. - Deixe-me falar-lhe um pouco de mim. Trabalho na Wall Street e ganho bem, sem falsas modéstias, mas aquilo também é actividade para@ jovens, e isso eu já não sou. Estou a pensar sair de Nova Iorque e simplificar a minha vida. E isto aqui é praticamente do mais bonito que há.

- Tem toda a razão - interveio Pemberton. - Ora bem, recebo muita gente, por isso a casa tem de ser grande. No entanto, também quero sossego. Algo elegante. Um amigo disse-me, que uma propriedade denominada Wicken's Hunt talvez correspondes-@ se a estas exigências.

Pemberton fez estalar a língua. - Wicken's Hunt - repetiu com ar deprimido. - Uma bela propriedade. Infelizmente, já não está no mercado. Eu próprio a vendi há cerca de dois anos, embora as pessoas só lá estejam a viver há uns meses. Precisou de grandes obras de restauro.

Conkfin fitou-o com uma expressão arguta, erguendo as sobrancelhas. - Acha possível que queiram vender? A mente de Pemberton percorreu rapidamente todas as possibilidades. Revender uma propriedade daquelas ao fim de dois anos? Que maravilhoso impacto na sua carteira.

- Tudo é possível. Já os conheço razoavelmente bem ... ou melhor, conheço um deles. Por acaso, acabámos de tomar o pequeno-almoço juntos.

- Então, é um casal de idade, como eu, calculo. Wicken's Hunt não é com certeza uma casa de quem está a começar a vida.

- Na verdade, não é um casal. E o homem, Charlie Thomas, é mais velho, mas a propriedade não lhe pertence a ele, é da senhora.

Conklin inclinou-se para a frente. - A senhora? Pemberton olhou em redor por instantes, levantou-se, foi fechar a

porta do gabinete e depois voltou a sentar-se.

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- Como deve calcular, o que vou contar-lhe é confidencial. Uma hora depois, os dois homens apertaram as mãos, e Conklin despediu-se.

DE REGRESSO À ESTALAGEM campestre onde estava instalado, Harry Conklin entrou na casa de banho e fechou a porta. Quinze minutos depois, a porta abriu-se e surgiu Jackson, com os restos de Harry Conklin enfiados num saco de plástico. A conversa com Pemberton fora muito esclarecedora. O mediador imobiliário relatara tudo o que sabia sobre a dona de Wicken's Hunt. Mencionara até um amigo que, ao dirigir-se para o trabalho, certa manhã, assistira por acaso à perseguição do carro de Catherine Savage por outro, a grande velocidade, conduzido por um homem com o nome obviamente falso de Tom Jones. A pedido de Charlie, Pemberton localizara o homem, que se encontrava instalado numa casinha que ficava a uns dez minutos de Wicken's Hunt.

Jackson sentou-se na cama e abriu um grande e pormenorizado mapa da região de Charlottesville, memorizando as indicações que Pemberton lhe dera para localizar a casinha. Depois, fechou os olhos, mergulhado nos seus pensamentos. Pemberton referira outro homem que parecia ter-se envolvido também na perseguição automóvel. Um empreiteiro local que Luann contratara para instalar uma vedação de segurança em redor da propriedade. Segundo Pemberton, Matt Riggs nem sempre fora empreiteiro. Na opinião do mediador, Riggs trabalhara para o Governo em qualquer coisa secreta. Quem seria?, interrogara-se Jackson, e logo pedira a Pemberton uma descrição exacta do homem.

Riggs ESPERARA um dia antes de regressar à casinha. Foi lá armado e de noite. Não se via o Chrysler em lado algum. Com a lanterna, iluminou a arrecadação através da janela. O Honda continuava lá. Matt subiu até à porta da frente e interrogou-se pela centésima vez se não devia simplesmente ignorar aquele assunto. Catherine Savage parecia rodear-se de coisas perigosas. Em todo o caso, não conseguiu resistir, e a sua mão rodou com cuidado a maçaneta da porta, que se abriu, e ele entrou devagar.

Tinha quase a certeza de que a casa estava vazia. Foi iluminando a sala a toda a volta com a lanterna. Havia um interruptor na parede, mas não ia usá-lo. No que fora a casa de jantar, distinguiu padrões de poeira no pavimento, a denunciarem que alguns objectos tinham sido retirados. Avançou para a cozinha, onde pegou no auscultador do telefone. Não obteve sinal de rede. Regressou à casa de jantar. Quando os seus olhos percorreram a divisão, passaram sem se deter pela figura toda de preto que se encontrava dentro do armário com a porta meio aberta.

Jackson apertou o cabo da navalha. Não fora aquele o homem que alugara a casa. Esse fora-se embora havia muito. Este viera fazer um reconhecimento, tal como ele próprio. Devia ser Riggs, concluiu Jackson. Após a conversa com Pemberton, procedera a investigações preliminares sobre os antecedentes de Riggs. O facto de pouco haver para descobrir intrigara-

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o profundamente. Quando o desconhecido passou a pouco mais de um metro dele, Jackson considerou a hipótese de o matar com a lâmina afiadíssima. Todavia, o impulso homicida passou-lhe com a mesma velocidade com que lhe percorreu o organismo. Matar Riggs não servia qualquer objectivo. A mão que segurava a navalha descontraiu-se. Riggs podia viver um pouco mais. Se voltassem a encontrar-se, eci iu Jackson, o resultado talvez fosse diferente. Não gostava de pessoas intrometidas nos seus assuntos.

OBSERVOU POR UMA JANELA o desconhecido a sair da casa e a encaminhar-se para o Cherokee. Do fundo do armário, tirou o que parecia uma maleta de médico. Dirigiu-se à casa de jantar e extraiu da maleta O conteúdo de um estojo para impressões digitais. Aproximou-se então do interruptor da luz e fez incidir sobre ele, de vários ângulos, um laser portátil. Sob esses raios, surgiram diversas impressões latentes. Jackson passou pela zona um pincel de fibra de vidro que mergulhara num pó preto. A bancada da cozinha, o telefone e as maçanetas das portas foram sujeitos ao mesmo processo. Jackson sorriu. A verdadeira identidade de Riggs não permaneceria um mistério por muito mais tempo. Recorrendo a fita enrolada à pressão, tirou as impressões de todas as áreas, transferiu-as para fichas e colocou estas em bolsas separadas, Em poucos minutos, arrumou o estojo e foi-se embora.

- gosto de Mr. Riggs, mãe. - Bem, na verdade não o conheces, pois não? - LuAnn sentou-se na beira da cama da filha.

- Tenho intuição para estas coisas. Mãe e filha trocaram sorrisos. - Sim? Bem, talvez possas partilhá-la comigo. - Agora a sério, ele volta cá? - Lisa, podemos ter que nos ir embora dentro de pouco tempo -

interrompeu LuAnn com um suspiro.

O sorriso esperançado da criança desvaneceu-se perante tão abrupta mudança de assunto.

- Ir embora? Para onde? - Ainda não sei bem. O tio Charlie e eu estamos a discutir o assunto.

- Estavam a pensar incluir-me nessas conversas? O tom estranho na voz da filha surpreendeu LuAnn. - Que queres dizer com isso? - Quantas vezes nos mudámos nos últimos seis anos? Oito? Não é justo. - A garota tinha o rosto corado, e a voz tremia-lhe.

LuAnn apressou-se a abraçá-la. - Sei que é difícil para ti, meu bebé. - Eu não sou bebé, mãe, já há muito tempo. E gostava mesmo de saber de que fugimos,

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LuAnn endireitou-se, com os olhos fitos em Lisa. - Não fugimos de nada. De que havíamos de fugir? - Gostava que me dissesse. Eu gosto disto aqui, não quero ir-me embora, e se não conseguir dar-me uma explicação mesmo boa para termos de ir, não vou.

- Lisa, tu tens dez anos. Apesar de seres muito inteligente e crescida, ainda és uma criança. Portanto, para onde eu for, tu vais.

A filha virou a cara para o outro lado.

- Eu tenho uma conta grande no banco para quando for crescida? - Tens, porquê? - Porque, quando fizer dezoito anos, vou ter a minha própria casa e vou lá ficar até morrer. E não quero que me vá visitar. - Deitou-se na cama e puxou os cobertores quase a taparem-lhe a cabeça. - E agora gostava de ficar sozinha.

LuAnn abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas decidiu calar-se. Mordendo o lábio, correu para o seu quarto, onde se deixou cair em cima da cama. Estava tudo a desmoronar-se. Levantou-se, entrou na casa de banho e abriu o chuveiro. Arrancou as roupas e colocou-se debaixo da água escaldante. Fechando os olhos, procurou convencer-se de que ia correr tudo bem, de que, na manhã seguinte, o amor de Lisa por ela permaneceria intacto. Ao fim de uns minutos, deixou que a água apaziguadora a envolvesse.

Quando reabriu os olhos, outra imagem lhe invadiu os pensamentos: Matthew Riggs. Era um homem muito atraente. Forte, honesto, corajoso. E também havia segredos no seu passado. No entanto, ela não procurava uma relação. Como podia? Como podia sequer contemplar a ideia de um envolvimento com outra pessoa? Havia de ter medo de falar, não fosse contar algum segredo. Apesar de tudo, a imagem de' Matthew Riggs permaneceu-lhe na cabeça. Fechou de novo os olhos , e@ uma grande lágrima rolou-lhe pela face. O último homem com quem; dormira fora Duane Harvey, e isso fora há mais de dez longos anos. '

Fechou a água, secou-se com uma toalha e foi para o quarto. Entre,,, os adereços dispendiosos, estava um objecto familiar - o relógio que a' mãe lhe dera. Ao som do seu tiquetaque, os nervos de LuAnn começaram a acalmar. Falhava uma pancada em cada três, mas era como um@ velho amigo. A jovem vestiu roupa interior e reentrou na casa de banho, para secar o cabelo, ao mesmo tempo que recordava as palavras de,"" Lisa. Não podia deixar que aquele ressentimento refinasse durante a noite. Tinha de ir conversar novamente com a filha ou pelo menos tentar. Regressou ao quarto para vestir o roupão.

- Olá, LuAnn. Ela ficou tão atónita que teve de estender a mão e agarrar-se à ombreira da porta para não cair no chão.

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- Há muito que não nos víamos. - Jackson afastou-se da janela e' sentou-se na beira da cama.

- Que é que quer? - Ela obrigou as palavras a saírem. - Temos muito que conversar, e sugiro que o faça na comodidade' de alguma roupa. - Fitou-a.

Ela teve extrema dificuldade em desviar os olhos do homem. Estar,' seminua à frente dele era bem menos perturbador do que ter de lhe virar as costas. Acabou por abrir a porta do armário, tirar um roupão que lhe dava pelo joelho e vesti-lo. Voltou a rodar sobre si própria. Os olhos de Jackson percorriam todo o quarto, detendo-se por breves instantes sobre o relógio de parede. Examinou em seguida a aparência alterada de LuAnn.

- Muito bem. O tom é chique e sofisticado. Parabéns. - Indicou por gestos à jovem que se fosse sentar a uma escrivaninha encostada a uma parede, e ela assim fez. - Agora, vamos conversar. Pelo que sei, teve uma visita. Um homem perseguiu-a de carro.

- Como sabe isso? - interpelou LuAnn, irritada. - Porque não aceita o facto de que não pode sonegar-me informações? Como o facto de ter regressado aos Estados Unidos em desobediência às minhas instruções mais explícitas.

- Os dez anos já passaram. Não pode controlar a minha vida. Jackson ergueu-se. - Primeiro, vamos ao que importa. Esse seu perseguidor descobriu-lhe a identidade em parte recorrendo às suas declarações de rendimentos. Tem alguma razão para pensar que ele saiba do esquema da lotaria?

- Não - respondeu ela após breve hesitação. - Está a mentir. Diga a verdade, se não mato toda a gente desta casa.

A ameaça abrupta fê-la suster a respiração. - Ele tem uma lista. Uma lista com doze nomes, eu, Herman Rudy, Bobbie Jo ReynoIds e outros.

Jackson assimilou a informação. - E o homem chamado Riggs? - Para que é que ele é aqui chamado? - Tem um passado misterioso e apareceu por acaso quando você precisava de ajuda. É isso que me preocupa.

- Não me parece que passasse de uma coincidência. Foi contratado para me fazer um trabalho. Era naturalíssimo que estivesse por ali quando o outro homem começou a perseguir-me.

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- Não gosto disso - contrariou Jackson, abanando a cabeça. -

Eu vi-o esta noite. - LuAnn ficou visivelmente tensa. - Na casinha alugada pelo outro. Estive a esta distância dele. - Abriu os braços pouco mais de meio metro. - Pensei matá-lo ali mesmo.

O rosto da jovem empalideceu. - Não há razão para isso. - Nunca se sabe. Vou investigá-lo, e se descobrir no passado dele algo que faça prever problemas, elimino-o. É tão simples como isto.

- Deixe-me obter as informações. - O quê? - Jackson pareceu espantado. - Riggs gosta de mim, já me ajudou. É natural da minha parte demonstrar gratidão, tentar conhecê-lo melhor.

- Não. Não gosto disso. - Riggs não tem nada a ver com isto. Porquê preocupar-se com ele?

Jackson examinou-a por instantes. - Está bem, LuAnn, faça isso. Porém, é bom que me comunique de imediato quaisquer informações que obtenha, de contrário tomo eu conta do assunto. Entendido?

- Entendido - assentiu ela com um grande suspiro. - Quanto ao outro homem, é claro que tenho de o encontrar. Não deve ser muito difícil.

- Não faça isso. - Ela lembrou-se de Mr. Rainbow. Não queria mais uma morte na consciência. - Se ele voltar a aparecer, leva-nos a fugir do país.

É evidente que você não compreende a gravidade da situação- ripostou Jackson. - Se o homem estivesse apenas a investigar o seu caso, talvez essa solução simplista resolvesse o assunto, pelo menos temporariamente. Todavia, ele dispõe de uma lista com mais oito pessoas que trabalharam comigo.

- Mas não pode provar nada! E mesmo que pudesse, nuca conseguiria chegar até si.

Jackson levou algum tempo a afagar a colcha com a mão espalmada. - Tem aqui um belo trabalho de agulha - comentou. - hidialio, não é?

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Distraída pela pergunta, LuAnn deu subitamente por si a olhar para o cano de uma pistola de nove milímetros com silenciador.

- Uma solução potencial seria eu matar os doze. Sem dúvida que isso constituiria um esplendoroso beco sem saída para o nosso amigo inquiridor. Lembre-se de que o prazo dos dez anos acabou. O capital-base que ganhou na lotaria já foi devolvido a uma conta em nº 110111C na Suíça. Desaconselho-a vivamente a transferir esse dinheiro pai-a os

Estados Unidos. - Extraiu da algibeira um papelinho que pôs em cima da cama. - Aqui estão os códigos e outras informações que lhe permitem o acesso à conta. A proveniência dos fundos não pode ser descoberta. Aí tem. Como combinado. No entanto, agora já não tenho, qualquer incentivo para a manter viva, pois não? - Avançou para a jo- --

vem, que recuou contra a parede. - O mais prudente da minha parte,: seria matá-la neste preciso momento. Na verdade, que se lixe. Apontou a arma à cabeça dela e premiu o gatilho.

LuAnn deu um salto para trás, fechando com força os olhos. Quando os reabriu, Jackson estudava-lhe a reacção. Ela tremia incontrolavelmente; o coração batia-lhe por todo o lado; estava sem fôlego. Jackson abanou a cabeça.

- Os seus nervos não parecem tão fortes como quando nos encontrámos pela última vez, LuAnn. E os nervos, ou a sua falta, são o verdadeiro busílis. - Olhou por um momento para a pistola, accionou a patilha de segurança e continuou a falar com toda a calma: - Não vou matá-la, pelo menos por enquanto. Nem sequer depois de me ter desobedecido, pondo tudo em questão. Está interessada em saber porquê?

Ela manteve-se encostada à parede, com medo de se mexer. Jackson interpretou o silêncio como concordância.

- Porque, em grande medida, você é uma criação minha. Estaria a

viver nesta casa se não fosse eu? Claro que não. Ao matá-la, estaria na prática a matar parte de mim. Isso é uma coisa que me desagrada. Porém, não deixe de ter em conta que um animal selvagem, ao ver-se encurralado, acaba por sacrificar qualquer membro, desde que isso lhe permita fugir e sobreviver. Não pense que eu não serei capaz desse sacrifício. Se pensar, é parva. Espero sinceramente que consigamos libertá-la deste pequeno problema, e conto consigo para desempenhar o seu papel. - O tom de Jackson tornou-se profissional: - Comunicar-me-á qualquer futuro contacto com o nosso misterioso desconhecido. O número de telefone que lhe dei há dez anos continua válido. Quaisquer instruções adicionais que

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venha a dar-lhe terão de ser seguidas à risca. Entendido? - Ela respondeu com um aceno de cabeça. - Estou a falar a sério, LuAnn. Se me voltar a desobedecer, mato-a. Agora, vá para a

casa de banho e recomponha-se.

Ela começou a virar-se.

- Ah, LuAnn! - Ela olhou para trás. - Lembre-se de que, se não conseguirmos resolver este problema e eu tiver de a eliminar, não haverá qualquer razão para me ficar por aí. - Com ar ameaçador, olhou de soslaio na direcção da porta que dava para o corredor e para o local onde, a menos de seis metros, Lisa estava deitada a dormir.

LuAnn correu para a casa de banho, trancando a porta atrás de si. Agarrou-se ao mármore frio do lavatório, trémula. Sabia claramente o perigo em que ela própria se encontrava, mas esse estava longe de ser o

seu maior medo. O facto de Jackson poder considerar Lisa para os seus

objectivos homicidas causava-lhe um terror delirante.

Curiosamente, foi com este pensamento que as feições da jovem as-

sumiram por sua vez uma determinação mortífera. Se Jackson alguma vez tentasse maltratar Lisa, teria de a matar primeiro, ou ela a ele. Não havia alternativas. Abriu a porta e teve a certeza do que ia encontrar quando regressasse ao quarto.

Nada. Jackson desaparecera. Precipitou-se pelo corredor para ir ver Lisa. A respiração compassada da criança convenceu-a de que a filha dormia. A seguir, dirigiu-se ao

quarto de Charlie e acordou-o com suavidade. - Acabo de ter uma visita. - O quê? De quem? - Devíamos saber que ele havia de descobrir - afirmou ela com ar fatigado.

Charlie sentou-se muito direito na cama. - Santo Deus! Jackson esteve cá? Como nos descobriu? - Não sei, mas a verdade é que ele sabe tudo. - Contou o que se passara, incluindo o facto de Jackson parecer muito desconfiado em relação a Riggs e ter ameaçado matá-lo. Pegou depois na mão do amigo. - Quero que leves Lisa daqui para fora.

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- Não vou de maneira nenhuma deixar-te sozinha com esse tipo. - Vais, sim, Charlie, porque sabes que tenho razão. Sozinha, fico bem. Mas se ele se apoderasse de Lisa... - Não precisou de completar o pensamento.

- Porque não vais com ela e me deixas tratar disto aqui? Ela abanou a cabeça. - Não resulta. Se eu fugir, Jackson vai atrás de mim. Enquanto eu continuar por aqui, ele não andará longe. Entretanto, vocês dois podem desaparecer.

- Isso não me agrada. Não quero abandonar-te neste momento, LuAnn.

Ela rodeou-lhe com os braços os ombros possantes. - Não vais abandonar-me, vais tomar conta do bem mais precioso, que possuo A voz embargou-se-lhe.

Está bem. Quando queres que vamos? - acabou ele por concordar.

Já. Vou aprontar Lisa enquanto fazes as malas. Para onde havemos de ir? Escolhe tu. Telefona quando lá chegares. E tu? Que vais fazer? Tudo o que for preciso para garantir a sobrevivência de todos nós.

E Riggs? Ela fitou-o de frente. - Principalmente de Riggs.

- DETESTO ISTO, mãe. Detesto mesmo. - Lisa batia os pés pelo quarto, de pijama, enquanto a mãe lhe fazia as malas à pressa.

- Lamento, Lisa, mas vais ter de confiar em mim. - Confiar, hem? Essa é boa, vinda de quem vem. - Esse tom não me agrada nada, minha menina.

222

PRIMEIRO PRÉMIO

- E isto também não me agrada. - A garota sentou-se em cima da cama e cruzou os braços, obstinada. - Amanhã temos uma festa na escola. Não podemos ao menos esperar até depois?

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LuAnn fechou a mala com força. - Não, Lisa, não podemos. - Quando é que vai parar de me arrastar por todo o lado? A mãe passou a mão trémula pelo cabelo e sentou-se ao lado da criança, rodeando-a com um braço. Tinha a percepção nítida do sofrimento que percorria o corpinho da filha. A verdade magoá-la-ia mais do que aquilo? Falou com lentidão:

- Prometo contar-te tudo em breve. Está bem? - Mas porque ... A mãe pousou a mão com ternura sobre a boca da criança, silenciando-a.

- Quando te contar, vais ficar chocada. Pode ser que lamentes ser

minha filha, mas, seja o que for que sintas, quero que saibas que eu fiz o que na altura me pareceu melhor para ti. Era muito nova e não tinha ninguém que me ajudasse a tomar uma decisão. - Pôs a mão sob o queixo de Lisa e levantou a cara da filha para a sua. Os olhos da garota estavam marejados de lágrimas. - Não quero mandar-te embora, mas

estou disposta a morrer para que nada te aconteça. E o mesmo se passa com o tio Charlie.

- Está a meter-me medo, mãe. LuAnn agarrou a criança com as duas mãos. - Adoro-te, Lisa. Adoro-te mais do que tudo na vida. - Também não quero que lhe aconteça nada. - A garota tocou na

face da mãe. - A mãe fica bem?

LuAnn conseguiu fazer um sorriso tranquilizador. - A mãe fica lindamente.

NA MANHÃ SEGUINTE, LuAnn levantou-se cedo após uma noite de insónia. Despedir-se da filha fora a coisa mais dolorosa que alguma vez fizera, mas fora invadida por uma enorme onda de alívio ao ver o Range Rover desaparecer estrada fora.

Fez café na kitchenette que havia ao lado do quarto de vestir. Depois, vestindo um roupão de seda e segurando numa das mãos uma chávena de café fumegante, saiu pela janela de sacada para a varanda do seu quarto, no andar de cima. Empoleirou-se na balaustrada de mármore e contemplou a propriedade. O que viu quase a fez cair da varanda.

Matthew Riggs estava ajoelhado na relva perto do sítio onde ela queria construir o estúdio. LuAnn observou-o, espantada, a desenrolar um conjunto de plantas e a olhar em redor. LuAnn viu estacas espetadas em diversos pontos. Saltou da balaustrada e atravessou o quarto a

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correr, nem sequer parando para se calçar. Desceu as escadas a dois e dois e destrancou a porta das traseiras. Correndo descalça pela relva orvalhada, chegou ao local onde Riggs estivera e olhou em redor. Para onde fora ele?

- Bom dia. LuAnn rodou sobre si própria, vendo-o aparecer de uma zona arborizada.

- Que anda a fazer? - perguntou ela em tom surpreso. - Corre sempre cá para fora dessa maneira? Ainda apanha uma. pneumonia. - Ele fitou-a e depois desviou o olhar discretamente quando os raios do sol-nascente tornaram o fino roupão translúcido.

- Não costumo ver gente na minha propriedade logo de madruga-, da a cravar estacas no chão.

- Só estou a cumprir ordens. Queria que eu lhe construísse um estúdio.

- E você disse que não havia tempo antes da chegada do Inverno. - Bem, admirou tanto o meu trabalho que tive a ideia brilhante de@' adaptar o mesmo projecto para este. Isso poupa muito tempo. - Matt fez uma pausa e olhou para LuAnn, que tremia de frio, pelo que tirou o,' casacão e lho pôs em redor dos ombros. - Sabe, não devia mesmo andar descalça cá fora.

- Não tem de fazer isto, Matthew. Acho que já me intrometi demasiado no seu tempo e paciência.

- Não me importo, Catherine. Há coisas muito piores do que passar algum tempo com uma mulher como você.

Ela corou, mordendo o lábio inferior com nervosismo, enquanto" . ci Riggs enfiava as mãos nos bolsos e fixava o olhar no vazio. F are lani,,, dois adolescentes a apalparem mutuamente terreno, nervosos, num primeiro encontro.

- E se tomássemos o pequeno-almoço? - acabou ela por sugerir. - Já tomei, mas obrigado na mesma. - E café? - LuAnn equilibrava-se num pé nu, e logo no outro,. com o frio a morder-lhe a pele.

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Matt observou-lhe os movimentos, para a seguir dizer: - Isso aceito. - Virou-se de costas e agachou-se. - Suba. - Como? - Suba. - Deu uma pancadinha nas costas. - Basta fingir que sou um cavalo.

LuAnn não se mexeu.

- Não me parece. Matt virou-se para ela, - Vá lá. Eu não estou a brincar relativamente à pneumonia. Para mais, faço isto com multimilionários vezes sem conta.

LuAnn soltou uma gargalhada, embrulhou-se bem no casacão de Matthew e pôs-se às cavalitas dele, passando-lhe os braços em volta do pescoço. A meio caminho, cutucou-lhe de brincadeira as coxas com os calcanhares.

- Para que foi isso? - Estou a fingir, tal como você disse. Portanto, arre burriquito! - Não abuse - resmungou ele para trás, sorrindo em seguida.

RIGGS BEBIA uma chávena de café na cozinha enquanto LuAnn mastigava uma torrada com manteiga. Ela levantou-se e preparou nova chávena de café para si, além de voltar a encher a de Matt.

Ele não conseguiu evitar fitá-la enquanto ela estava de costas voltadas. O roupão que se lhe colava ao corpo fazia-o pensar em coisas que provavelmente não devia. Acabou por desviar os olhos, corado.

- Os outros ainda estão todos a dormir? - Charlie e Lisa foram de férias. - Sem si? LuAnn sentou-se e falou com aparente descontracção: - Tenho umas coisas que fazer. Talvez precise de ir à Europa em breve. Se assim for, vou lá ter com eles. A Itália é linda nesta época do ano. Já lá esteve?

- A única Roma que conheço fica no estado de Nova Iorque. - Conheceu-a na sua vida passada? - A minha vida passada não é assim tão excitante. Tenho um palpite de que os seus segredos são muito mais interessantes do que os meus.

Ela fingiu-se surpreendida. - Não tenho segredos. Matt pousou a chávena. - Nem posso crer que consiga dizer isso com esse à-vontade. Quem era o tipo do Honda? - Ela levantou-se e virou-lhe de repente as costas. - Catherine, eu estou a tentar ajudá-la. - Ele pôs-se por sua

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vez em pé e pousou uma das mãos no ombro dela, voltando-a para si. - Sei que está assustada. E também sei que tem nervos mais fortes e mais ânimo do que praticamente qualquer pessoa que eu jamais conheci, portanto presumo que o quer que esteja a passar seja bastante mau. E quero ajudá-la, se me deixar. - Pôs-lhe a mão sob o queixo. - Estou a ser honesto consigo, Catherine. De verdade.

O. LuAnn retraiu-se um pouco ao ouvir o nome. O seu nome falso. Acabou por erguer a mão e acariciar com leveza os dedos de Riggs com

os seus.

- Sei que sim, Matthew. Eu sei. - Ergueu o olhar para ele, e ficaram ambos de olhos fixos um no outro enquanto os dedos trocavam carícias que de súbito electrificaram os corpos de ambos.

Ele engoliu em seco e puxou-a para si. LuAnn gemeu, ele beijou-lhe o pescoço; a seguir, ela rodeou-lhe o pescoço com os braços ao ser erguida no ar.

Seguindo as instruções que ela ia sussurrando, Matt percorreu às cegas o corredor até ao quartinho de visitas do rés-do-chão. Abriu a porta

com um empurrão. LuAnn libertou-se dele e atirou-se para cima da cama. As pesadas botas de trabalho de Riggs embateram com estrondo no chão de madeira, logo seguidas pelas calças. LuAnn puxou-lhe a camisa, arrancando alguns botões. Não se preocuparam com a roupa da cama, embora Matthew ainda conseguisse fechar a porta com o calcanhar antes de cair nos braços dela.

JACKSON ESTAVA sentado a uma mesa da grande suite que alugara na hospedaria e estudava o pequeno monitor do computador portátil. Na noite anterior, pagara a conta de Harry Conklin e depois reentrara com outro nome. Não gostava de ficar demasiado tempo com cada identidade. Além disso, encontrara-se com Pemberton como Conklin e não queria que aquele voltasse a vê-lo. Agora, tinha um boné de basebol na cabeça, e o cabelo grisalho alourado apanhado num rabo-de-cavalo a sair pela parte de trás do boné. Parecia um hippie a envelhecer.

Duas horas antes, passara com o scanner para o disco rígido um

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conjunto de impressões digitais recolhidas na casinha, transmitindo depois essa informação, via modem, para um dos seus contactos. Agora sorria ao ver o monitor encher-se de dados. Uma fotografia digitalizada de um homem acompanhava os pormenores pessoais. Thomas J. Donovan. O nome até era conhecido de Jackson. Tratava-se de um jornalista do Tribune de Washington. Cerca de um ano antes, elaborara um extenso artigo sobre a carreira do pai de Jackson como senador dos Estados Unidos. O próprio Jackson considerara-o uma pieguice, que não desvendava nem de perto nem de longe o lado pessoal do pai nem o

seu comportamento monstruoso.

Recostou-se na cadeira e ficou por instantes a meditar. Não havia dúvida de que Donovan estava no rasto de uma reportagem bombástica, e não ia parar enquanto não atingisse o seu objectivo. Ou enquanto não fosse detido. Era um desafio interessante. Limitar-se a matá-lo podia despertar suspeitas. Além disso, Donovan talvez tivesse falado das suas investigações a outras pessoas. Jackson teve uma ideia repentina. E se o

jornalista não obtivesse de LuAnn o que pretendia e tentasse entrar em contacto com os outros vencedores da lotaria? Pegou na sua agenda telefónica e começou a fazer chamadas. Comparados com LuAnn, os outros onze eram carneiros. O que lhes dizia para fazerem, eles faziam. Agora, se Donovan mordesse o isco, a armadilha seria accionada.

Jackson abriu a pasta e sacou umas fotografias que tirara com uma

teleobjectiva logo no seu primeiro dia em Charlottesville. Sally Beecham, de quarenta e tal anos, era a empregada interna de LuAnn. Ocupava uma suite no piso térreo da mansão. Analisou as duas fotografias seguintes. As duas jovens hispânicas constituíam o pessoal da limpeza. Jackson observara com atenção cada uma delas. Um pequeno microfone captara-lhes as vozes. Era possível que nenhuma das informações que recolhera com tanto cuidado sobre a vida quotidiana de Catherine Savage viesse alguma vez a ser utilizada. Porém, estava preparado para a hipótese de lhe serem úteis. Repôs as fotografias dentro da pasta.

LuANN OBSERvAvA Riggs a dormitar deitado a seu lado. Fez um sorriso rasgado. Afagou-lhe o ombro e ele acordou, virando-se para ela com um sorriso agarotado que lhe desenhou rugas na cara.

- O que é? - perguntou ela. - Estou a tentar lembrar-me de quantas vezes disse "Oh, garota". - Acho que foi mais vezes do que eu disse "Sim, sim" - comentou LuAnn -, mas só porque me faltou o fôlego. - Aninhou-se no peito de Matt. - Sabes, se vieres todos os dias trabalhar no estúdio, podemos fazer disto uma coisa regular. - Sorriu, para quase de imediato se conter.

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Que hipóteses havia de aquilo acontecer? O impacto daquele pensamento foi de tal forma desmoralizante, que ela se afastou do companheiro e começou a levantar-se.

Matthew não pôde deixar de reparar naquela transformação abissal. - Foi alguma coisa que eu não disse? LuAnn arrancou a colcha e embrulhou-se nela. - Tenho muito que fazer hoje. Riggs sentou-se na cama. - Bem, desculpa. Não era minha intenção atrapalhar as tuas actividades. Suponho que fiquei com o horário das seis às sete da manhã. Que se segue? O clube de jardinagem?

- Olha lá, eu não mereço isso. Matt começou a vestir-se. - Está bem, só que eu tenho dificuldade em mudar de engrenagem tão rapidamente como tu. A passagem automática da paixão mais intensa de que me lembro para a conversa sobre a carga de trabalhos diária, como que me perturbou.

LuAnn baixou os olhos. - Comigo também foi extraordinário, Matthew - confessou baixinho. - Até me custa dizer-te há quanto tempo não fazia isto. - Após uma pausa, murmurou quase de si para si: - Há anos.

Ele fitou-a, incrédulo. - Deves estar a brincar. Ela não respondeu, e Matt sentiu relutância em quebrar o silêncio. Foi o toque do telefone que o fez. LuAnn atendeu, na esperança de ser Charlie, e não Jackson.

- Está? Não era um nem o outro. - Vamos conversar, Ms. Tyler, e vamos fazê-lo hoje - declarou Thomas Donovan.

- Quem fala? - exigiu LuAnn saber. Riggs contemplava-a. - Encontrámo-nos por instantes no outro dia durante o seu passeio, de carro.

- Quem lhe deu este número? Não vem na lista. - Ms. Tyler, não há informações interditas a quem sabe pro-@ curá-las.

- Que pretende? - Como já disse, eu quero conversar. - Matt aproximou-se do telefone e segurou no auscultador juntamente com ela. LuAnn tentou` afastá-lo, mas Matthew resistiu. - A senhora está envolvida numa história sumamente importante, e eu quero deslindá-la. Se falar comigo@, dou-lhe quarenta e oito horas para abandonar o país antes de eu publicar seja o que for. Se não o fizer, então, assim que desligar, mando para` publicação tudo o que tenho. Os homicídios não prescrevem, LuAnn.

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Riggs fitava-a de olhos arregalados. - Onde? - perguntou ela. - Michie's Tavern - marcou o jornalista. - Com certeza sabe onde é. À uma hora. E não traga ninguém consigo, porque, nesse caso, não há acordo e telefono de imediato para o xerife da Geórgia. Entendido?

Ela arrancou o auscultador da mão do companheiro e pousou-o à bruta. Matt enfrentou-a. - Importas-te de me pôr a par da história? És acusada de matar quem? Alguém na Geórgia?

228

PRIMEIRO PRÉMIO

LuAnn empurrou-o para se afastar, corada devido à abrupta revelação do seu segredo, mas ele agarrou-lhe o braço com brusquidão.

- Que diabo, conta-me o que se passa! LuAnn rodou sobre si própria e, rápida com um raio, socou-lhe o queixo com o punho direito fechado, atirando a cabeça de Matthew para trás, contra a parede.

Quando recuperou a consciência, Riggs estava deitado na cama. Ela sentara-se ao seu lado e aplicava-lhe uma compressa fria no queixo magoado.

- Desculpa, Matthew. Não era minha intenção magoar-te. Só ... Ele esfregou a cabeça, incrédulo. - Nem consigo acreditar que me tenhas posto KO. Eu não sou machista, mas custa-me a crer que uma mulher me tenha deitado ao chão

com um simples soco. - Sentou-se. - Quando voltarmos a discutir e pensares passar a vias de facto, diz-me primeiro que eu rendo-me logo. Combinado?

LuAnn tocou-lhe com delicadeza na face e beijou-o na testa. - Não vou voltar a bater-te. Matt olhou para o telefone. - Vais encontrar-te com o homem? - Não tenho outra opção ... pelo menos, não vejo nenhuma. - Eu vou contigo. - Ouviste o que ele disse - recusou ela, abanando a cabeça. - Não acredito que tenhas morto seja quem for - suspirou Riggs. LuAnn inspirou fundo e decidiu contar-lhe: - Não foi um assassínio, foi em legítima defesa. O homem com quem vivia há dez anos estava envolvido na droga. Suponho que se abotoasse com algum, e eu apareci no meio.

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- Então, mataste o teu namorado? - Não. Matei o homem que o matou a ele. - E a Polícia ... - Não fiquei por lá tempo suficiente para descobrir o que a Polícia ia fazer.

Matthew olhou em redor do quarto. - Droga. É daí que provém tudo isto? LuAnn sentiu vontade de rir. - Não. O dinheiro da droga não teve nada a ver com isto. Ele estava desesperado por saber mais, mas sentiu que ela já divulgara o suficiente para uma só vez. Em vez disso, frustrado, viu-a levantar-se com lentidão e dirigir-se para a porta do quarto, arrastando a colcha atrás de si.

- LuAnn? É esse o teu verdadeiro nome? Ela virou-se para o olhar e esboçou um aceno afirmativo de cabeça. - LuAnn Tyler. - Franziu o sobrolho, baixou os olhos e saiu do quarto.

ENVERGANDO um cAsAco comprido de cabedal preto, LuAnn postou-se no exterior de uma velha construção de madeira que fazia parte da Michie's Tavern, um edifício histórico do século XVIII. Eram horas de almoço, e a casa estava a abarrotar. No interior, o lume ardia na lareira,' e ela, que chegara cedo para analisar o ambiente, deixara-se envolver' pelo calor das chamas antes de decidir esperar por Donovan do lado de fora. Ergueu o olhar quando o homem se encaminhou na sua direcção.

- Vamos - disse ele. - Vamos para onde? - perguntou LuAnn, enfrentando-o

- Siga-me no seu carro. Se eu vir que alguém nos persegue, pego no meu telemóvel e você vai para a prisão.

- Não vou atrás de si para parte nenhuma - declarou ela. - Disse 1 que queria encontrar-se comigo. Bem, aqui estou, e foi você quem escolheu o sítio.

- É verdade. - Donovan olhou para uma fila de clientes que abria@' caminho até ao restaurante. - Mas eu tinha em mente um pouco mais, de privacidade do que isto.

- Então, combinamos o seguinte: vamos dar um passeio no meu carro. - Ela fitava-o com ar carrancudo e falava em tom baixo. - Mas não tente nada, porque, se tentar, arrepende-se.

O jornalista bufou de desprezo, mas parou subitamente ao fitá-la nos olhos. Foi percorrido por um arrepio involuntário. Seguiu-a até ao carro.

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LuANN ENTROu na Interestadual 64 e seleccionou o comando de velocidade de cruzeiro do BMW Donovan virou-se para ela.

- Sabe, você lá atrás ameaçou-me. Se calhar, assassinou mesmo O, tipo da caravana.

- Eu não assassinei ninguém. Ao retomar a palavra, o tom do jornalista era mais suave: - Eu não andei à sua procura para lhe destruir a vida, LuAnn. Ela olhou-o de relance.

- Então, para que foi? - Conte-me o que aconteceu na tal caravana. Li as notícias do jornal e gostava de ouvir a sua versão.

- Duane traficava droga - começou LuAnn com um suspiro profundo. - Eu não sabia. Só queria sair daquela vida e fui à caravana para lhe dizer isso. Duane tinha sido esfaqueado. Um homem agarrou-me e tentou cortar-me a goela. Bati-lhe com o telefone, e ele morreu.

- Bateu-lhe com o telefone? - Donovan parecia intrigado. - Com toda a força, devo ter-lhe rachado o crânio. Donovan cofiou o queixo, pensativo. - O homem não morreu disso. Ele foi apunhalado. O BMW quase saiu da estrada antes de LuAnn recuperar o domínio. Ela fitou o jornalista.

- O quê? - arquejou. - Eu li os relatórios da autópsia. Tinha de facto um ferimento na cabeça, mas morreu de punhaladas múltiplas. Indubitavelmente.

LuAnn não precisou de muito tempo para perceber a verdade: "Rainbow." Fora Rainbow quem o matara e depois mentira-lhe. Abanou a cabeça.

- Durante todos estes anos, andei convencida de que o matara. - É uma coisa terrível para se viver com ela. Ainda bem que pude aliviar-lhe a consciência.

- De certeza que a Polícia já não está interessada em nada disto -

reflectiu ela.

- Aí é que você teve uma pouca sorte incrível. O tio de Duane Harvey é o actual xerife de Rikersville.

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- Billy Harvey é xerife? - exclamou, atónita. - É um dos maiores vigaristas lá do sítio.

- Se calhar, achou que a melhor maneira de evitar ter problemas com a Polícia era tornar-se ele próprio polícia. Segundo ele, a família nunca recuperou da morte do pobre Duane. Resumindo e concluindo, ele não vai descansar enquanto não a levar a julgamento. Afirma que você é que estava envolvida no tráfico de droga porque queria ver-se livre de Duane e da vida chata. O rapaz morreu a tentar protegê-la; depois, você assassinou o outro tipo, seu alegado sócio.

- Isso é um chorrilho de mentiras. Donovan encolheu os ombros. - Você sabe que sim. Eu também. Mas quem vai decidir é um júri lá de Rikersville, Geórgia. - O jornalista avaliou a roupa cara da sua interlocutora. - Não recomendo que use esse fato no julgamento. Pode influenciar as pessoas no sentido contra- indicado. Duane a servir de pasto às flores nestes últimos dez anos e você a viver à grande e à francesa não deve ser coisa que agrade ao pessoal lá da terra.

- Isso já eu sei. - LuAnn fez uma pausa. - Portanto, se eu não' falar, você propõe-se entregar-me a Billy Harvey?

- Estou-me nas tintas para isso tudo - redarguiu Donovan. - Então, para que é que não se está nas tintas? - Para a lotaria. - Ele debruçou-se sobre ela. - Como é que ganhou?

- Comprei um bilhete. Como é que havia de ser? - Não é a isso que me refiro. Deixe-me informá-la de uma coisa. Investiguei os vencedores ao longo de vários anos. Há uma taxa constante de declarações de insolvência por parte desses vencedores. Nove: dos doze em cada ano, uma regularidade impressionante. Depois, encontro doze vencedores consecutivos que conseguiram evitar a falência, e você está mesmo no meio deles. Como é isso possível?

- Como quer que eu saiba? - perguntou ela, olhando-o de lado, - Tenho bons gestores de contas. Talvez o mesmo se passe com os restantes.

- Você não pagou impostos em nove dos últimos dez anos. Isso também deve ajudar. 41,

- Então, ligue para as finanças e denuncie-me. - Não é essa a história que procuro. - História? - Sim. Esqueci-me de ínformá-la da razão da minha visita. Chamo-me Thomas Donovan, sou jornalista do Trib de Washington. Há algum tempo, decidi fazer uma peça sobre a lotaria

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nacional. Durante a investigação, descubro esta coincidência interessante sobre todos os vencedores do seu ano. Procuro o seu paradeiro, e aqui estou. O que@@"'1' quero é simples: a verdade.

- E, se não lha contar, acabo numa prisão na Geórgia? - Não vou fazer chantagem consigo - redarguiu Donovan. - Eu não funciono assim. Se o xerife Billy a apanhar, não será com a minha@, ajuda. Pessoalmente, espero que ele nunca o consiga.

- Obrigada.

- Porém, se não me contar a verdade, eu descubro-a noutro lado qualquer. E quando escrever a história, se não me tiver dado a sua versão dos acontecimentos, não posso garantir que a apresente sob uma luz favorável. Se falar comigo, o seu lado será ouvido. Então, que é que me diz?

LuAnn permaneceu alguns minutos em silêncio, com os olhos fixos na estrada. Por fim, relanceou o olhar para o companheiro de viagem. - Eu quero dizer-lhe a verdade. - Inspirou fundo. - Mas não posso.

- Porque não? - Você já corre um perigo enorme. Se eu falar consigo, pode ter a

certeza absoluta de que morre. Quero que fuja do país. Eu pago. Escolha o sítio.

- É assim que lida com os problemas? Mandando as pessoas para longe? Desculpe, mas tenho a minha vida aqui.

- O problema é esse. Se ficar, deixa de ter vida. - Vai mesmo ter de se esforçar por fazer melhor do que isso. Se cooperar comigo, podemos conseguir qualquer coisa. É só conversar comigo. Confie em mim.

- Não vou contar-lhe nada, que é para preservar a sua segurança. - Se colaborar comigo, ambos ganhamos. - Para mim, ser assassinada não é ganhar. Para si, é? Se lhe contar o que sei, é o mesmo que encostar-lhe uma pistola à cabeça e premir o gatilho.

- Então, porque não me leva de regresso ao meu carro? - suspirou o jornalista. - Você cresceu no meio da pobreza, criou uma filha sozinha e depois teve esta sorte extraordinária. Pensei que talvez fosse uma pessoa mais empenhada.

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LuAnn começou a falar muito baixo, como se temesse ser ouvida: - Mr. Donovan, anda alguém à sua procura neste preciso momento. Esse alguém disse-me que vai matá-lo porque talvez o senhor saiba demasiado. E é perfeitamente capaz de o fazer. A menos que fuja de imediato, ele encontra-o de certeza, e quando isso acontecer, não vai ser bonito. Essa pessoa é capaz de tudo. De tudo.

O jornalista bufou e depois imobilizou-se subitamente quando lhe ocorreu a solução:

- Tudo, incluindo tornar rica uma mulher pobre? - Viu-a estremecer um pouco ao ouvir estas palavras e então arregalou os olhos. -

É isso, não é? Disse que esse homem é capaz de tudo. Fê-la ganhar a lotaria, não é verdade?

- Mr. Donovan, por favor. - Santo Deus, a lotaria nacional foi falsificada. - Mr. Donovan, tem de esquecer o assunto. - Nem pensar, LuAnn. Esse disfarce complicado que arranjou na Europa. Os seus gestores de contas perfeitos. Foi esse tipo que montou tudo, não foi? - Virou-se de lado no assento. - Não foi você a única, Pois não? Os outros onze que não entraram em falência? Talvez mais. Acertei? - Por favor, pare. - LuAnn abanava a cabeça com força. - Ele não o fez de graça. Deve ter ficado com parte dos ganhos@ Mas como é que falsificou a lotaria? Não pode ser só um tipo. -

perguntas acumulavam-se. - Quem, o quê, quando, porquê, como? Agarrou o ombro dela. - Está bem, aceito que se trate de um indivíduo' perigoso, mas não subestime o poder da imprensa, LuAnn. Já deu cabo de maiores vigaristas do que esse tipo. Podemos conseguir o mesmo se trabalharmos em conjunto. - Perante a ausência de resposta da jovem, o jornalista soltou-lhe o ombro. - Só lhe peço que pense no assunto, LuAnn. - Otiando pararam junto do automóvel dele, Donovan apeou-Se. - Este número é o meu contacto.

Estendeu-lhe um cartão, mas ela ignorou-o. - Não quero saber corno entrar em contacto consigo. É preferível para sua própria segurança.

O jornalista insistiu em dar-lhe o cartão. A seguir, entrou no seu carro e afastou-se. Ela ficou a vê-lo, tentando acalmar os nervos em franja.,, Jackson ia matar aquele homem se ela não fizesse nada. Mas que podia fazer? Pelo menos, podia não contar a Jackson o encontro com. Donovan. No entanto, ao afastar-se, não fazia ideia de que, debaixo do seu assento, tinha um pequeno transmissor fixado ao chão. Toda a conversa com o jornalista acabara de ser ouvida, não por Jackson, mas por outra pessoa.

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RIGGS DESLIGOU o receptor, silenciando os sons do BMW de LuAnn que lhe chegavam pelos auscultadores. Tirou estes, recostou-se na cadeira e exalou um profundo suspiro. Fitou o telefone, hesitou e acabou , por lhe pegar. O número que ia ligar fora-lhe dado há cinco anos para emergências. Bem, decidiu enquanto premia os algarismos, aquilo era, uma emergência,

Surgiu na linha uma voz mecânica. Matt deixou uma série de números e depois deu o seu nome. Pousou o auscultador. Um minuto depois o telefone tocou.

- Foi rápido - comentou Riggs, atendendo. - Aquele número desperta-nos a atenção. Estás com problemas? - Não directamente. Mas preciso de verificar uma coisa. - Pessoa, sítio ou coisa propriamente dita? - Pessoa. - Estou a postos. quem é? Matthew hesitou. Sabia que muito provavelmente a sua investigação atrairia agentes federais a Charlottesville. Inspirou em silêncio e rezou para estar a fazer o que devia. - Preciso de informações sobre uma pessoa chamada LuAnn Tyler.

O TELEFONE no carro de LuAnn tocou no regresso a casa. - Está? - A voz do outro lado fê-la respirar com mais à vontade. - Charlie, como está Lisa?

- óptima. - Falava baixinho. - Estamos ambos bem. - Onde está ela? - A dormir que nem uma pedra. Viajámos toda a noite, e ela não conseguiu adormecer por muito tempo, só olhava pela janela.

- Onde estão? - Num motel nos arredores de Gettysburg, na Pensilvânia. Tivemos de parar, eu estava em risco de adormecer ao volante.

- Algum sinal de terem sido seguidos? - Mudei várias vezes de estrada e analisei todos os carros que me

pareceram remotamente conhecidos. Ninguém nos seguiu. Como estão as coisas do teu lado? Juntaste-te a Riggs?

- Pode dizer-se que sim - replicou ela, corando. Fez uma pausa e a seguir contou a Charlie o encontro com Donovan.

- Não me agrada nada que estejas sozinha a enfrentar isso - comentou o interlocutor.

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- Estou a aguentar-me. Olha, tenho de desligar. Dá-me o número daí.

Ele assim fez, despediram-se, e ela desligou o telefone.

LuANN CHEGARA há poucos minutos a casa quando qualquer coisa lhe atraiu a atenção para a janela. Viu uma figura a encaminhar-se para a estrada principal junto à linha das árvores. Os passos eram furtivos e precisos como os de um animal. Não sentiu temor ao ver Jackson descer a encosta. Sabia que se tornara o foco das atenções daquele homem, e isso era como passear pela orla do próprio túmulo. Lisa estaria mesmo em segurança fora do alcance dele? A resposta era tão evidente que a atingiu como uma violenta bofetada na cara. Correu ao andar de cima. Nem quis saber se estava a tomar a decisão certa ou não. Precisava de ajuda. Abriu uma caixa que tinha fechada à chave no armário e colocou na carteira uma Magnum .44 carregada. Depois, dirigiu-se à garagem.

O BMW PAROu em frente da casa. LuAnn saiu e subiu a escadaria vitoriana. Riggs ouviu-a chegar. Estava precisamente a acabar o seu telefonema, com o papel que tinha perante si cheio de apontamentos. Abriu a porta assim que ela bateu.

- Então, que tal correu? - indagou. Ela foi para a salinha, instalou-se no sofá e encolheu os ombros. - Nada bem, de facto. - A voz dela estava apática. - Conta-me - pediu Matt, sentando-se na cadeira à sua frente. - Porquê? Porque havia eu de te envolver em tudo isto? Ele fez uma pausa para meditar no que estava prestes a dizer. Podia afastar-se. Era evidente que LuAnn estava a dar-lhe a oportunidade para isso. Podia limitar-se a responder: "Tens razão", acompanhando-a a seguir à porta, por onde ela sairia da sua vida. Contudo, ao fitá-la, tão fatigada, tão só, falou com voz tranquila e intensa:

- A lotaria foi falsificada, não foi? Ela endireitou-se de um salto, para no entanto soltar quase de imediato um suspiro de alívio.

- Foi. - Com esta simples palavra era como se os últimos dez anos da sua vida se tivessem evaporado. Era uma sensação purificadora. - Como descobriste? - perguntou.

- Tive quem me ajudasse. - Ela ficou tensa e ergueu-se devagar. Teria acabado de cometer o maior erro da sua vida? Matt apercebeu-se da súbita mudança e prosseguiu com calma: - Mais ninguém sabe. Obtive informações de variadas fontes e deu-me para adivinhar. -

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Hesitou antes de acrescentar: - Além disso, pus um microfone escondido no teu carro. Ouvi toda a tua conversa com Donovan.

- Quem és tu? - sibilou LuAnn, de olhos fixos nele. - Sou alguém muito parecido contigo - foi a surpreendente resposta. Ele levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos. - O meu passado é secreto; o meu presente é todo inventado. Uma mentira. Mas por uma boa razão. - Ergueu o sobrolho. - Tal como é o teu caso. - Ela estremeceu, sentiu uma fraqueza nas pernas e sentou-se no chão. Ele", apressou-se a ajoelhar-se ao seu lado e pegou-lhe na mão. - Não temos muito tempo, portanto não vou adoçar a pílula. Fiz investigações a teu respeito. Fui discreto, mas isso não deixará de fazer ondas. -

Olhou-a com atenção. - Estás disposta a ouvir o que vou dizer-te?

LuAnn engoliu em seco e assentiu de cabeça. - O FBI interessa-se por ti desde que fugiste do país. O caso esteve adormecido durante algum tempo, mas isso não vai durar muito. Sabes como foi falsificada a lotaria? - Ela abanou a cabeça, e Riggs continuou: - Há algum grupo, uma organização, por detrás disso?

- Não, é só uma pessoa, tanto quanto sei. - Que é que sabes acerca dessa pessoa? - Intitula-se Jackson. - Quando o nome lhe saiu pelos lábios, LuAnn fechou os olhos e imaginou por um momento o que aquele homem lhe faria se fizesse ideia do que ela estava a revelar. - Está cá. Vi-o no meu jardim há três quartos de hora.

- O quê? - Não sei bem o que pretendia, mas presumo que estivesse a preparar-se para algum plano que esteja prestes a pôr em prática.

- Que espécie de plano? - Para começar, vai matar Donovan. Depois, é provável que venha atrás de nós. - LuAnn escondeu a cara entre as mãos.

- Bem, não vais voltar a vê-lo. - Estás enganado, Matthew. Tenho de me encontrar com ele. - LuAnn, não ... - Jackson apareceu de repente no meu quarto ontem à noite. Tivemos uma conversa bastante prolongada. Ele ia investigar-te. Ia verificar os teus antecedentes e disse que, se encontrasse alguma coisa preocupante, te matava. Portanto, eu propus-lhe proceder à investigação em vez dele. Não queria que te acontecesse alguma coisa por minha causa.

- Mas afinal porquê? - continuou Riggs. - Qual a razão para falsificar a lotaria? Deste-lhe parte dos teus ganhos?

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- Tudo. - Matt fitou-a sem perceber, mas ela prosseguiu: - Ele ficou com o dinheiro durante dez anos. O prazo expirou há pouco. Jackson procedeu a investimentos e pagou-me os dividendos.

- Ele tinha cem milhões para investir. Quanto ganhaste por ano? - Cerca de quarenta milhões. - Isso é um rendimento de quarenta por cento - comentou Riggs, de boca aberta.

- Eu sei. E Jackson ganhou muito mais do que isso, tenho a certeza. - Que aconteceu ao fim dos dez anos? - Recebi os cem milhões de volta. Ele esfregou a testa. - E se vocês foram doze a uma média de, digamos, setenta milhões de dólares cada, o tipo teve quase mil milhões de dólares para investir.

Ela viu linhas de preocupação na cara do amigo, - Que estás a pensar? - Noutra coisa que tem feito espécie ao FBI. Há anos que eles sabem da existência de quantias tremendas canalizadas para montes de actividades por todo o Mundo, umas legais, outras não. A princípio, pensou-se ser dinheiro dos cartéis da droga. Afinal, não era. Apareceram pontas soltas aqui e ali, mas nunca levaram a nada. Uma pessoa com tanto dinheiro consegue esconder-se muito bem. Talvez essa pessoa seja Jackson. - Tens a certeza de que a Polícia Federal não sabe nada da lotaria?, - Se sabe, não foi por mim - replicou ele com ansiedade na voz.

- Mas se descobriram por eles, então teremos à perna tanto Jackson como o Governo Federal. Certo?

- Certo - assentiu Riggs, fitando-a nos olhos. Ficaram a olhar um para o outro, com ideias semelhantes a passarem-lhes pelas cabeças. Duas pessoas contra tudo aquilo.

- Tenho de ir-me embora - declarou LuAnn. - Estou convencida de que Jackson tem seguido os meus movimentos de bastante perto., Deve saber que nos encontrámos. Até talvez saiba que falei c~ Donovan. Se eu não o contactar já, a coisa fica preta.

Matt apertou-lhe os ombros com força. - LuAnn, esse tipo é um psicopata, mas também tem de ser brilhante. Isso torna-o ainda mais perigoso. Eu preferia chamar a cavalaria, preparar-lhe uma armadilha e apanhá-lo.

- E eu? Ouviste o que Donovan disse: lá na Geórgia querem linchar-me.

- E provável que consigas um acordo com as autoridades - aventou ele com pouca convicção. - Os federais podem... - interrompeu-se ao perceber que nada era garantido. - Está bem, mas escuta, porque não lhe telefonas? Não precisas de te encontrares com ele pessoalmente.

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Ela considerou a hipótese por instantes. - Vou tentar - prometeu. Levantou-se e olhou para baixo, para ele. Tinha um aspecto forte, ágil, confiante. - Apesar dos milhões de. dólares e de ter viajado por todo o Mundo, não passo de uma província-' na da Geórgia, mas talvez te surpreendas um pouco com aquilo de que, sou capaz quando me decido. - Evocou em pensamento a cara de' Lisa. - E tenho muito a perder. Demasiado. Portanto, não vou perder.

GEORGE MASTERS tinha os olhos fixos num processo. Encontrava-se,, sentado no seu gabinete do Edifício Hoover, em Washington. Masters, estava no FBI há mais de vinte e cinco anos, dez dos quais passados no' escritório de Nova Iorque. Agora, fitava um nome muito familiar: LuAnn Tyler. Participara na investigação federal ao desaparecimento de Tyler, e embora essa investigação tivesse sido oficialmente encerra-@ da há anos, ele nunca perdera o interesse, em particular porque nada da-@ quilo fazia sentido. Agora, acontecimentos recentes tinham transforma-' do as brasas do seu interesse numa chama de vastas proporções. Matthew Riggs fizera perguntas referentes a LuAnn Tyler. Masters Conhecia Riggs - ou quem este fora - muito bem. Se uma pessoa como Riggs estava interessada em Tyler, então Masters também estava.

Após não terem conseguido impedir Tyler de fugir de Nova Iorque, Masters e a sua equipa tinham passado um tempo considerável a reconstituir os acontecimentos dos dias anteriores ao desaparecimento da jovem. Calculara que ela tivesse ido da Geórgia para Nova Iorque de carro ou de comboio. Na Estação Ferroviária de Atlanta, saiu-lhe a sor-

te grande: LuAnn Tyler apanhara o Crescent, da Amtrak, para Nova Iorque no dia em que as autoridades estavam convencidas de terem sido cometidos os crimes. Aquilo exacerbara a curiosidade de Masters.

Agora que voltara a focar a sua atenção em LuAnn Tyler, ele instruíra o seu pessoal no sentido de consultar os registos da Polícia de Nova Iorque à procura de acontecimentos invulgares que se tivessem dado na época do desaparecimento de LuAnn. Eles tinham acabado de descobrir que um tipo chamado Anthony Romanello fora encontrado morto no seu apartamento de Nova Iorque na noite anterior à conferência de imprensa em que LuAnn fora anunciada como vencedora da lotaria. A descoberta de um morto em Nova Iorque não constituía propriamente notícia; porém, Romanello tinha cadastro e suspeitava-se de que fosse um assassino a soldo. Ele e uma mulher cujas características correspondiam às de LuAnn Tyler tinham sido vistos num restaurante pouco antes da morte dele. E a seguir vinha o facto decisivo: o recibo de um bilhete de comboio fora encontrado na pessoa de Romanello. Ele estivera na Geórgia e regressara a Nova Iorque no mesmo comboio que LuAnn. Haveria relação?

Fosse como fosse, Romanello e Tyler tinham apanhado o comboio para Nova Iorque antes de a rapariga ter ganhado a lotaria. Estaria ela a fugir de uma possível acusação de homicídio,

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escolhendo Nova Iorque para se esconder, tendo, por acaso, ganhado cem milhões de dólares? Se assim era, devia ser a pessoa com mais sorte do Mundo. George Masters não acreditava que pudesse ter-se tanta sorte. Devia tratar-se de uma coisa planeada com antecedência. E para isso só havia uma conclusão: LuAnn Tyler sabia que ia ganhar na lotaria.

As implicações deste último facto fizeram estremecer o agente carrancudo. Nem acreditava que não tivesse vislumbrado aquela possibilidade há dez anos, porém, nessa altura, apenas procurava uma potencial assassina. Consolou-se com o facto de dez anos antes não ter o ângulo Romanello para explorar. Pegou no telefone.

- Ligue-me ao director - pediu.

JACKSON ESTAvA de volta à sua suite, de olhos fixos no computador portátil. Sabia que LuAnn se encontrara com Riggs. Ia conceder-lhe umas horas para telefonar. Não lhe instalara uma escuta no telefone, distracção que considerou não valer a pena remediar agora. Ela apanhara-o um pouco de surpresa ao mandar Lisa embora tão depressa. O colaborador que contratara para seguir os movimentos de Luann fora obrigado a ir atrás de Charlie e Lisa. Portanto, Jackson ignorava que ela' já se encontrara com Donovan.

Considerara a ideia de convocar mais gente para cobrir todas as hipóteses, mas demasiados forasteiros na terra eram capazes de levantar suspeitas. Queria evitar isso tanto quanto possível. Em especial por haver uma carta solta no baralho em relação à qual não tinha certezas: Matt Riggs. Transmitira as impressões digitais dele para a sua fonte de informações e estava à espera de resposta.

Jackson ficou boquiaberto quando as informações começaram a aparecer no visor. Aquelas impressões digitais não pertenciam a nenhum Matthew Riggs. Por instantes, Jackson interrogou-se sobre se não se teria enganado ao recolher as impressões digitais na casinha. Porém, isso era impossível; marcara com exactidão os pontos em que o, outro tinha tocado. Ligou um número e falou longo tempo ao telefone. Depois de desligar, voltou a olhar para o visor.

Daniel Buckrnan: falecido. Agora, tudo fazia sentido.

HAvIAM PASSADO menos de três minutos desde a partida de LuAnn quando Riggs recebeu um telefonema. A mensagem foi concisa:

- Alguém acaba de aceder sem autorização à tua ficha de impressões digitais. Toma muito cuidado. Estamos neste momento a verificar'

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o que se passa.

Matt atirou com o auscultador e pegou no seu receptor. Da gaveta da secretária, tirou duas pistolas e um coldre para o tornozelo. Enfiou a@'@ pistola maior no bolso, enquanto a mais pequena foi para o coldre, este,, atado ao tornozelo. Esperava que LuAnn não tivesse descoberto e desligado o transmissor que lhe colocara no automóvel.

DO TELEFONE DO CARRO, a jovem ligou o número que Jackson lhe dera. Ele fez a chamada de resposta menos de um minuto depois.

- Precisamos de conversar - declarou. - Vou comunicar-lhe o que aconteceu, tal como pediu. - Com certeza. Deve ter muito que contar. Mas quero que o faça pessoalmente.

- Porquê? - Porque não? - ripostou Jackson. - E tenho uma informação que talvez lhe interesse.

- Sobre quê? - Sobre quê não, sobre quem. Matt Riggs. Tenho o verdadeiro nome dele, os verdadeiros antecedentes e a razão por que você deve ter muito cuidado com ele.

- Pode dizer-me tudo isso pelo telefone. - LuAnn, se calhar não me ouviu bem: eu disse que vamos encontrar-nos pessoalmente.

- Porquê? - Vou dar-lhe uma razão óptima: porque, de contrário, vou atrás de Riggs e mato-o dentro da próxima meia hora. Se você lhe ligar a avisá-lo, vou à escola da sua filha e assassino quem quer que lá se encontre.

Pálida e trémula perante aquela investida, ela percebeu que era a sério.

- Onde e quando? - Encontramo-nos dentro de meia hora na casa onde o nosso amigo bisbilhoteiro se acoitou. Sabe onde é, não sabe?

Ela recordou a conversa que tivera com Charlie. Sabia que era capaz de encontrar a casa.

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- Lá estarei - declarou. Ele desligou o telefone e procurou com a mão o punhal de cabo curto que tinha escondido dentro do casaco.

A quinze quilómetros de distância, LuAnn destrancou a patilha de segurança da sua .44.

COMEÇARA A ESCURECER quando LuAnn entrou pelo caminho de terra batida ladeado de árvores. A casa ficava ao fundo. Não viu qualquer carro, mas sabia que isso nada significava. Jackson parecia ser capaz de aparecer e evaporar-se a seu bel-prazer. Estacionou o BMW em frente da estrutura periclitante e apeou-se. Ele já lá estava, tinha a certeza. Era como se tivesse um odor que só ela conseguia detectar. O cheiro era a sepulcro, bafiento e húmido. LuAnn entrou na casinha.

- Vem cedo. - Jackson apareceu das sombras. A cara era a mesma que usara em todos os seus encontros face a face. Ele apreciava a coerência. Estava de blusão de cabedal e calças de ganga. Cruzou os braços e encostou-se à parede, de lábios contraídos. - Pode começar- ordenou.

LuAnn manteve as mãos nos bolsos, com um punho fechado em

torno da pistola. Movimentou-se um pouco para poder ficar de costas para uma parede e falou aos repelões:

- Encontrei-me com Donovan, que é o homem que me seguiu, Thomas Donovan. - Ela presumia que Jackson já tivesse verificado a identidade do jornalista. Decidira contar quase toda a verdade, mentindo só em aspectos críticos. - Ele é repórter do Tribune de Washington, e está a preparar um artigo sobre a lotaria. Doze dos vencedores de há dez anos - fez um gesto de cabeça na direcção do interlocutor você sabe quais são, estão todos com finanças florescentes.

- E então? - Então, Donovan queria saber como, uma vez que tantos dos três vencedores abriram falência numa percentagem sempre constante, segundo ele. Portanto, os seus doze dão nas vistas. - LuAnn c t nas feições do homem um ligeiríssimo vestígio de dúvida em relação si próprio, o que foi reconfortante para ela.

- Que é que você lhe disse? - Expliquei-lhe que tinha uma excelente firma de investimento& Dei-lhe o nome da firma que você usou. Presumo que seja legal.

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- Completamente - confirmou Jackson. - Pelo menos à superfície. E Donovan sabia do seu problema na Geórgia?

- Foi o que começou por lhe chamar a atenção a meu respeito, suponho. - LuAnn inspirou de alívio ao ver que o interlocutor esboçava um aceno de cabeça perante aquela observação. - Deve ter pensado" que eu ia confessar-lhe estar envolvida numa grande conspiração.

- Ele mencionou alguma teoria? Por exemplo, de a lotaria ter sido falsificada?

Hesitar agora seria desastroso. Ela sabia-o e mergulhou de cabeça: - Não. Embora pensasse que tinha deparado com uma grande história. Eu disse-lhe que falasse directamente com a firma de. investimentos, porque eu não tinha nada a esconder, e isso pareceu desincentivá-lo.

- Como é que acabou a conversa? - Ele agradeceu-me por me ter encontrado com ele e até pediu des@. culpa por me ter incomodado.

Jackson bateu palmas. - Gosto de um bom desempenho, e acho que você se desenvencilhou muito bem, LuAnn.

- Tive um bom professor. - Como? - Há dez anos, no aeroporto, quando você se disfarçou de um disfarce. Disse-me que a melhor maneira de uma pessoa se esconder é da, nas vistas, e eu recorri a esse princípio. Demonstrando a maior abertura, cooperação, honestidade, fazemos que até as pessoas mais desconfiadas pensem de outra maneira.

- É uma honra para mim que você se tenha lembrado de tudo isso. LuAnn sabia que um pouco de adulação resultava com a maior parte dos homens, e Jackson não era excepção. - Você é um pouco difícil de esquecer. Agora, fale-me de Riggs. - Bem, comecemos pelo verdadeiro nome dele: Daniel Buckman. - Buckrnan? Porque havia de ter um nome diferente? - Estranha pergunta, vinda de quem vem. Porque será que as pessoas mudam de nome, LuAnn?

- Porque têm alguma coisa a esconder. - Exacto. - Era espião? - Não propriamente - respondeu ele com uma gargalhada. - Na verdade, ele não existe. Morreu.

- Morreu? - O corpo dela gelou. Jackson teria morto Matthew? - Obtive as impressões digitais dele, fi-las passar por uma base de dados, e o computador disse-me que ele morreu.

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- O computador está enganado. - O computador só transmite o que lhe dizem. Alguém quis fazer parecer que Ríggs morreu para o caso de surgir quem o procurasse. - Na ausência de comentário da interlocutora, Jackson prosseguiu: - Já ouviu falar do Programa de Protecção e Realojamento de Testemunhas?

- Não. Devia ter ouvido? - Viveu tanto tempo no estrangeiro que suponho que não teve oportunidade para isso. É um programa do Governo para proteger pessoas que testemunham contra criminosos ou organizações, pondo-se em risco. Dão-lhes novas identidades, novas vidas.

- Riggs ... Buckrnan ... foi testemunha? De quê? - Quem sabe? - disse Jackson com um encolher de ombros. - E que é que isso interessa? O que estou a dizer-lhe é que Riggs é um criminoso, ou foi. Talvez ligado à droga, talvez informador da Mafia. A Protecção a Testemunhas não é oferecida a assaltantes de esticão.

LuAnn encostou-se à parede para não cair. Riggs era um criminoso. - Espero que não lhe tenha confidenciado nada - continuou Jackson. - Nunca se sabe quais poderão ser os interesses dele.

- Não contei nada - conseguiu ela articular. - Então, que é que tem para me dizer acerca dele? - Nada que se pareça com o que acaba de me contar. Ele não sabe mais do que antes. Não está a insistir no assunto. Pelo que acaba de revelar, percebe-se que ele próprio não queira atrair as atenções.

- E verdade. E isso convém-nos na perfeição. - Ouça, os dez anos já passaram - pronunciou LuAnn abruptamente. - Você fez o seu dinheiro. Porque não encerramos o assunto? Dentro de trinta e seis horas, posso estar nos antípodas. Siga o seu caminho, que eu sigo o meu.

- Parte de imediato? - Basta que me dê tempo para fazer as malas. Jackson cofiou o queixo, a considerar a proposta. - Você desobedeceu-me. Dê-me uma razão para não a matar neste preciso momento.

Ela já estava preparada para uma coisa daquele género. - Donovan pode achar estranho que, logo a seguir a ter falado comigo, eu vire cadáver. Quer mesmo um sarilho desses?

- Vá fazer as malas. - Ele indicou-lhe a porta com um gesto. - Saia você à frente - replicou ela sem desviar os olhos. - Saímos juntos. Aproximaram-se ao mesmo tempo da porta. No preciso momento em que ele punha a mão na maçaneta, a porta abriu-se de rompante e apareceu Riggs, de arma apontada a Jackson. Antes de conseguir disparar, o outro puxou LuAnn para a sua frente, ao mesmo tempo que baixava a mão.

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- Matthew, não - gritou ela. Matt olhou para ela. - LuAnn ... Esta sentiu, mais do que viu, Jackson a levantar o braço para arremessar o punhal. Movimentou a mão para fora, colidindo em parte com o antebraço dele. No instante seguinte, Riggs soltou um gemido de dor, com o punhal cravado no braço. Caiu no chão. LuAnn sacou a arma do bolso e rodou sobre si própria, tentando apontar a Jackson. Ao mesmo tempo, este puxou-a para trás, contra si próprio.

O ímpeto combinado atirou-os a ambos através do vidro de uma janela. Ela aterrou em cima dele quando os dois tombaram pesadamente no alpendre. A pistola de LuAnn saltou-lhe da mão. Cada um sentiu a força do outro enquanto lutavam sobre os estilhaços escorregadios, a' tentarem obter vantagem. Agarrando-se mutuamente, levantaram-se devagar. LuAnn reparou que escorria sangue de urna ferida aberta na mão do adversário. Portanto, Jackson não podia exercer a sua força a cem por cento. Com um súbito impulso, ela soltou-se, agarrou-o pela frente da camisa e atirou-o com a cara contra a parede da casa, o que o fez cair, momentaneamente atordoado. LuAnn saltou para diante, encavalitou-se-lhe nas costas, agarrou-lhe o queixo com ambas as mãos e puxou para trás, a tentar partir-lhe o pescoço. Quando o adversário gritou de dor, as mãos dela escorregaram de repente, e LuAnn caiu para trás. Levantou-se, imobílízando-se logo ao baixar os olhos. Tinha a cara de Jackson nas mãos.

Ele levantou-se com dificuldade. Pela primeira vez, LuAnn contemplava o seu verdadeiro rosto. O homem tocou na face, sentiu a sua própria pele, o seu próprio cabelo. Agora, ela podia identificá-lo. Tinha de morrer. A mesma ideia ocorreu a LuAnn. Mergulhou na direcção da arma ao mesmo tempo que o adversário se atirava a ela. Deslizaram os dois pelo alpendre.

- Largue-a! - gritou Riggs. LuAnn virou-se e viu-o à janela, com a camisa vermelha e a arma nas mãos trémulas. Jackson saltou por cima do varão do alpendre. Matt disparou com um instante de atraso, e as balas atingiram madeira em vez de carne. Matt gemeu e caiu de joelhos, desaparecendo do campo de visão de LuAnn.

- Matthew! - exclamou ela, saltando para a janela. Entretanto, Jackson desaparecera no bosque. LuAnn entrou a correr pela porta, já a tirar o casaco; num instante, estava ao lado de Riggs. Com os dentes, rasgou em tiras a manga do ca-

saco. A seguir, rompeu-lhe a camisa e expôs o ferimento. Tentou estancar o sangue com os panos, mas não conseguiu. Palpou sob a axila de Matt e aplicou pressão com o dedo no ponto certo. O fluxo de sangue acabou por parar. Com tanto cuidado quanto possível, ela puxou o punhal enquanto ele lhe apertava o braço.

- Matthew, põe o teu dedo aqui. - Guiou-o até ao ponto de pressão por baixo do braço. - Tenho um estojo de primeiros socorros no carro. Vou fazer-te um penso o melhor que puder. Depois, tenho de levar-te a um médico.

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LuAnn apanhou a arma do alpendre, e ambos se encaminharam para o BMW, onde ela tratou do ferimento. Quando estava a cortar com os dentes o último pedaço de ligadura para aplicar sobre a gaze, Riggs fitou-a.

- Onde aprendeste a fazer estas coisas? - A primeira vez que vi um médico foi quando Lisa nasceu - resmungou LuAnn. - Quem vive no campo e sem dinheiro tem de aprender a fazer isto por uma questão de sobrevivência.

Quando chegaram a um centro de urgências num desvio da Estrada

29, Matt entrou sozinho, ficando LuAnn à espera dele no automóvel. Trancou as portas e recostou-se no assento. Matthew fora em socorro dela; não podia propriamente criticá-lo por isso. No entanto, no mo-

mento anterior, LuAnn acabara de convencer Jackson de que tudo estava bem. Mais um minuto e teriam ficado livres. Era possível que conseguisse explicar a súbita presença de Riggs armado: preocupara-se com

a segurança dela e seguira-a. Mas Matt fizera uma coisa que ela não podia explicar: em frente de Jackson, chamara-lhe LuAnn. Aquele facto

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DAVID BALDAM

destruíra tudo. Agora, Jackson tinha conhecimento de que ela lhe mentira quanto ao que Matthew sabia. Ela não tinha dúvidas sobre qual se..@

ria o castigo.

JACKSON COMPRIMIU um pano contra a palma da mão. Cortara-se bem fundo no vidro. Maldita mulher. Riggs estaria morto se LuAnn não lhe tivesse atingido o braço uma fracção de segundo antes de ele atirar o punhal. A rapariga confidenciara a Riggs os seus segredos - era evidente. Ele sabia o verdadeiro nome dela. Uma vez que mentira relativamente a Riggs,

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também podia ter mentido a respeito de Donovan. Jackson tinha de presumir que o repórter estava a aproximar-se da verdade. Tinha igualmente de ser detido.

O telemóvel de Jackson tocou. Ele atendeu, escutou, deu instruções e, ao desligar, uma expressão de profunda satisfação surgiu-lhe nas feições verdadeiras. A altura não podia ser melhor. A sua armadilha acabava de funcionar.

O HELICóPTERo Bell Ranger aterrou num relvado onde o esperavam três' viaturas governamentais negras. George Masters apeou-se do helicóptero, logo seguido por outro agente, Lou Berman. Entraram num dos, carros e arrancaram.

s,' Vinte minutos depois, a procissão parou em frente da casa de Rig As portas dos automóveis foram abertas com celeridade, e homens aspecto ameaçador e armas em riste rodearam a casa e o celeiro.

Masters subiu até à porta principal. Na ausência de resposta ao seus toques, fez sinal a um dos homens. O possante agente atirou um contra a fechadura, e a porta abriu-se de imediato. Revistaram a cas em pormenor, convergindo para o escritório de Riggs. Masters sentou. -se à secretária, e os olhos recaíram-lhe nos apontamentos do dono di casa sobre LuAnn Tyler e uma pessoa de nome Catherine Savage.@ Masters ergueu o olhar para Berman. 1 1

- Tyler desaparece e reaparece Catherine Savage. E o disfarce.. Descobre a morada de Savage, já.

Berman assentiu com a cabeça e pegou num telemóvel. Masters percorreu com o olhar o escritório de Riggs, interrogando-se sobre qual seria o papel do amigo em tudo aquilo. Naquele mesmo dia, Masters estivera na Casa Branca com o presidente, o ministro da Justiça e o director do FBI. Quando explicara a sua teoria, vira os rostos dos outros empalidecerem. Um escândalo de proporções horrendas: a

lotaria oficial falsificada. O povo americano havia de ficar convencido de que o Governo estava envolvido. Como evitar essa reacção? O presidente anunciara o seu apoio à lotaria, chegara mesmo a aparecer num anúncio televisivo a propagandeá-la. Se se revelasse que o jogo fora falsificado, teriam de rolar cabeças, e todos seriam afectados do presidente para baixo. Assim, Masters recebera instruções explícitas no sentido de capturar LuAnn Tyler custasse o que custasse e fossem quais fossem os meios utilizados para isso. Era o que tencionava fazer.

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- COMO TE SENTES? Riggs entrou no carro. Tinha o braço direito imobilizado. - Bem, deram-me analgésicos suficientes para já não saber de que terra sou. Então, conta lá, até que ponto te estraguei as coisas?

- Eu não estou a culpar-te, Matthew. - Eu sei, mas achei que ias cair numa armadilha. - Porquê? - perguntou ela, fitando-o. - Assim que saíste, recebi uma chamada. - Sim? E que é que tinha a ver comigo? - Antes do mais, o meu verdadeiro nome não é Matthew Riggs -

suspirou ele.

- Bem, pelo menos aí empatamos. Ele forçou um sorriso. - Daniel Buckrnan. - Estendeu a mão. - Dan para os amigos. LuAnn não lha apertou. - Para mim, és Matthew. Os teus amigos também sabem que tecnicamente estás morto e foste integrado no Programa de Protecção a Testemunhas?

Ele retirou devagar a mão. - Fiquei convencido de que foi Jackson a bisbilhotar a minha ficha. Por isso, segui-te. Se ele sabia de mim, a reacção dele era uma incógnita. Achei que podia matar-te.

- Há sempre essa possibilidade com aquele homem. - Ela deslizou com nervosismo as mãos sobre o volante. - Disse-me que eras um criminoso. O que é que fizeste?

- Acreditas em tudo o que esse tipo te diz? - Estás a dizer-me que não estás na Protecção a Testemunhas? - Não, mas o programa não é só para os maus. - Riggs inclinou-se e arrancou o microfone de sob o assento de LuAnn. - Contei-te que pus uma escuta no teu automóvel. - Mostrou o sofisticado aparelho. - Quase nunca dão equipamento deste a criminosos. - A interlocutora fitava-o de olhos arregalados, e ele prosseguiu: - Até há' cinco anos, fui agente especial do FBI. Trabalhava sob disfarce, infiltrando-me em bandos que operavam no México e ao longo da fronteira com o Texas. Eram tipos que faziam de tudo, desde extorsão a tráfico de droga e a assassínios contratados. Quando o caso chegou a tribunal, fui a principal testemunha de acusação. Demos cabo de toda a operação e conseguimos que uns tantos fossem parar à cadeia para o resto da vida. Contudo, os grandes chefes lá na Colômbia não gostaram que eu os tivesse privado de quatrocentos milhões por ano. Sabia que me queriam' apanhar a todo o custo. Por isso, pedi para desaparecer.

- E? - E o Bureau recusou. Disseram que eu era demasiado valioso em trabalho de campo. Tiveram no entanto a delicadeza de me enviar para,, outra terra. Depois de instalado, casei-me. O nome dela era Julie.

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- Era? - pronunciou LuAnn baixinho. Ele abanou a cabeça.

- Uma emboscada na Auto-Estrada Costeira do Pacífico. O ca caiu por uma ribanceira crivado de balas. Julie morreu no tiroteio. Eu apanhei dois balázios; nem sei como, nenhum deles atingiu órgãos vitais. Fui cuspido do automóvel e aterrei numa saliência rochosa.

- Oli, Matthew, sinto muito.

- Os tipos como eu, se calhar, não deviam casar. Não foi coisa que,.@ eu procurasse. Aconteceu. Sabes como é, conhece-se uma pessoa, apaixonamo-nos, queremos casar. Se eu tivesse resistido a esse impulso, Julie ainda estava viva e era professora primária. - Baixou os olhos para as mãos. - Em todo o caso, foi nessa altura que os manda-chuvas@, do Bureau decidiram que eu talvez quisesse reformar-me e mudar de`@ identidade. Oficialmente, morri na emboscada.

Ela apertou-lhe a mão. Riggs retribuiu o aperto e continuou: - É duro apagar tantos anos de vida. Tentar não pensar em pessoas`,@' e lugares, em coisas que foram importantes durante muito tempo.,, Sempre com medo de um deslize.

LuAnn ergueu a mão, fez-lhe uma festa na cara e comentou: - Nunca tinha percebido até que ponto temos coisas em comum. Beijaram-se, e os seus corpos abraçaram-se com força, instintiva-', mente, como duas peças de um molde que por fim se encaixam. Quando se afastaram, Riggs inspeccionou o parque de estacionamento, centrando a sua atenção no problema que tinham em mãos.

Vamos a tua casa para fazeres as malas com o que precisares. A seguir, vamos à minha. Deixei lá apontamentos a teu respeito em cima da secretária. Não quero fornecer pistas a ninguém.

RIGGS SENTOU-SE na cama de LuAnn enquanto esta enfiava umas

coisas numa maleta de viagem.

- Tens a certeza de que Lisa e Charlie estão bem? - perguntou. - A certeza possível. Estão muito longe daqui. Ele foi até à janela que dava para a frente da casa. O que viu no caminho de acesso fê-lo sentir os joelhos a fraquejarem. Agarrou em LuAnn pela mão e desceram as escadas a correr.

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As VIATURAS NEGRAS pararam em frente da casa, e os homens apearam-se de imediato. George Masters pousou a mão no capô do BMW

- Está quente. Ela tem de se encontrar por aqui algures. Descubram-na.

Os homens espalharam-se ao redor da casa.

LuANN E RIGGS ENTRARAm na cavalariça. Enquanto ela preparava Joy, Riggs tirou uns binóculos da parede e foi até lá fora. Instalando-se no meio de espessos arbustos que escondiam os estábulos da casa, focou os binóculos. Quase deu um salto para trás. Há cinco anos que não via aquele homem. George Masters não mudara muito. Riggs correu de regresso à cavalariça, onde LuAnn estava a arrear Joy.

- Pronto? - perguntou ela. - Tem de ser. Assim que descobrirem que a casa está vazia, vão revistar a propriedade.

Ela colocou um caixote de madeira ao lado de Joy, montou e estendeu a mão ao companheiro.

- Sobe para o caixote e agarra-te a mim. Riggs conseguiu montar e passou o braço são em volta da cintura dela.

- Vou o mais devagar possível, mas mesmo assim vamos baloiçar um bocado - avisou ela.

- Prefiro umas dores a ter de explicar as coisas ao FBI. Começaram a seguir o trilho, e LuAnn comentou: - Então era isso? Os teus velhos amigos? - Pelo menos um era meu amigo - confirmou ele com um aceno de cabeça. - George Masters. Foi o tipo que disse que eu era demasiado valioso em trabalho de campo.

- Matthew, não há qualquer razão para fugires deles. Não fizeste nada de mal. E se eu for apanhada e estiveres comigo? - Bem, basta não sermos apanhados. - Ele estremeceu com a dor, no braço direito. - A primeira coisa de que precisamos é de um carro.

- Tenho outro lá em casa. Serve-nos de muito. - Espera lá. Temos carro. - Onde? - Vamos depressa até à casinha de Donovan.

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QUANDO LÁ CHEGARAM, Riggs abriu as portas do barracão e entrou. Na escuridão, ela não percebeu o que ele estava a fazer, até que ouviu um motor ser ligado e começar a funcionar. No momento seguinte, o Honda preto de Donovan, ainda com o pára-choque dianteiro esfacelado, apareceu à porta. Riggs parou-o no exterior e saiu.

- Que queres fazer à égua? - Ponho-a aí no barracão e mando alguém vir buscá-la. -

Desmontou e conduziu o animal para dentro da arrecadação. Reparou que havia ao fundo um bebedouro e dois fardos de palha. - É perfeito. O inquilino anterior a Donovan deve ter usado isto como estábulo.

1 Após retirar a sela e a cabeçada, prendeu Joy a um gancho na parede, recorrendo a uma corda que encontrou. Desencantou um balde e foi buscar água a uma torneira que havia no exterior, enchendo o bebedouro, além de espalhar palha em frente da égua. Fechou as portas e foi sentar-se ao volante do Honda' enquanto Riggs se instalava do outro lado.

Não havia chave na ignição. LuAnn olhou de soslaio para baixo da coluna do volante e viu um emaranhado de fios à mostra.

- Ensinam a fazer ligações directas no FBI? - Aprende-se muita coisa na vida. - A quem o dizes! - comentou ela, engatando a primeira. Seguiram por momentos em silêncio, até que Rigs se mexeu no lugar.

- Podemos ter só uma hipótese de sair disto mais ou menos intactos. - E qual é ela? - O FBI não trata mal quem coopera. - Mas, Matthew ... - E é positivamente adorável para quem forneça coisas realmente importantes.

- Estás a sugerir o que eu penso? - Basta-nos entregar-lhes Jackson. - Que bom. Por instantes, pensei que fosse alguma coisa difícil.

ERAM 10 DA MANHÃ. Donovan espiava pelos binóculos uma grande mansão colonial sulista situada em McLean, na Virgínia, uma das zonas

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PRIMEIRO PRÉMIO

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residenciais mais dispendiosas dos Estados Unidos. Era necessário um substancial à-vontade financeiro para uma casa daquelas.

Enquanto Donovan olhava, um Mercedes novinho em folha aproximou-se dos portões da propriedade. Pelos binóculos, ele viu a mulher ao volante. Na casa dos quarenta anos, ainda correspondia à imagem da fotografia de há dez anos, quando ganhara a lotaria. O jornalista olhou para o relógio. Chegara cedo para dar uma vista de olhos. Verificou a arma para ter a certeza de que estava bem carregada. Levara a sério o aviso de LuAnn Tyler. Seria tolo se não percebesse que havia por detrás de tudo aquilo forças consideráveis. Esperou mais uns minutos para conduzir o carro até ao portão e falar por um intercomunicador. O portão abriu-se, e pouco depois já ele estava dentro do vestíbulo.

- Ms. Reynoids? -

Bobbie Jo ReynoIds confirmou com um aceno de cabeça. Estava vestida de uma forma que Donovan descreveria como impecável. Ninguém diria que, dez anos antes, era empregada de mesa. Agora, estava perfeitamente integrada na alta sociedade de Washington. Ele interrogou-se de súbito sobre se conheceria Alicia Crane.

Após o fracasso com LuAnn, Donovan contactara os outros onze vencedores da lotaria. ReynoIds fora a única a concordar em recebê-lo. Cinco dos outros tinham-lhe desligado o telefone na cara. Os restantes nem se haviam dado ao trabalho de responder às suas mensagens.

Reynolds acompanhou-o à sala, que estava cheia de antiguidades caras. Sentou-se numa poltrona de orelhas e indicou a Donovan a poltrona em frente.

- Quer um café? - Torcia as mãos com nervosismo. - Não, obrigado. - Ele extraiu um gravador do bolso. - Ms. ReyrioIds, importa-se que lhe chame Bobbie Jo?

- O meu nome é Roberta - respondeu ela com afectação. Havia uma tal semelhança entre aquela mulher e Alicia que o jornalista se sentiu tentado a perguntar se se conheciam. Decidiu esquecer esse impulso.

- Muito bem, Roberta, quero falar do passado. - Referiu isso ao telefone. A lotaria. - Passou a mão trémula pelo cabelo. - Ganhei há dez anos. Já não é notícia, Mr. Donovan.

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- Trate-me por Tom. - Prefiro não o fazer. - Muito bem, Roberta, contudo converse comigo. Sabia que ia ganhar a lotaria, não é verdade?

A mulher pareceu ficar surpreendida. - Eu ... eu ... - A história vai tornar-se pública, Roberta - insistiu o jornalista - É só uma questão de tempo. O que está em causa é: quer cooperar talvez sair relativamente pouco afectada de todo o processo, ou prefere ser arrastada para o fundo com todos os outros? Proponho-lhe um acordo: conte-me tudo o que sabe, eu escrevo a história e entretanto voe tem tempo de resolver o que fazer. Como fugir, por exemplo.

- Que quer saber? - perguntou ela com um suspiro. Donovan ligou o gravador.

- A lotaria foi falsificada? - A interlocutora respondeu com u aceno afirmativo de cabeça. - Preciso de uma resposta audível, Roberta

- Foi. - Como? - Qualquer coisa com produtos químicos. - A mulher tirou u lenço da algibeira e enxugou as lágrimas.

- Não sou cientista, Roberta. Conte-me com simplicidade. A mulher apertou o lenço com força. - Todas as bolas menos uma, a ganhadora, eram aspergidas co um produto químico. E o tubo por onde cai a bola era aspergido co qualquer coisa. Não posso explicar com exactidão, mas isso assegura que apenas a única bola que não fora aspergida conseguia passar.

- Os outros vencedores sabem disso? - perguntou ele, siderado - Como era feito? E por quem?

- Não, nenhum dos vencedores sabia. Donovan pousou o olhar no gravador, ao mesmo tempo que reflectia nas palavras da interlocutora.

- Essa afirmação não é muito precisa, Roberta, porque você sabia; Acaba de mo contar. Vamos lá, diga toda a verdade.

A pancada violenta que recebeu na parte de cima do torso atirou jornalista por cima da poltrona. Aterrou duramente no chão de carvalho. Sem fôlego, sentia costelas partidas soltas no peito. Reynolds apareceu no seu campo de visão.

- A verdade é que só a pessoa que teve a ideia sabia como aparecia. - O cabelo e rosto femininos desapareceram, e a cara de Jack fitava o ferido de cima.

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A mão de Donovan esgueirou-se para a algibeira à procura da arma. Os membros quase não lhe obedeciam.

- É evidente que não está a sentir-se bem. Deixe-me ajudá-lo. -

Jackson ajoelhou-se e, com um lenço, retirou a arma do bolso do outro homem. Pontapeou-o com malvadez na cabeça, e os olhos do repórter fecharam-se. Jackson extraiu da sua própria algibeira umas algemas d plástico, com as quais se apressou a prender o jornalista.

Tirou o resto do disfarce, guardou-o na mala que tirou de baixo do sofá e subiu a escada a dois e dois. Abriu a porta do quarto, na outra ponta do corredor. Bobbie Jo ReynoIds estava deitada em cima da cama, de braços e pernas amarrados e com fita gomada na boca. Ergueu o olhar para Jackson, encolhendo o corpo de medo.

Ele sentou-se ao seu lado. - Obrigado por ter seguido as minhas instruções com tanta precisão. Deu folga ao pessoal e marcou encontro com Mr. Donovan tal

como eu pedi. - Deu-lhe uma palmadinha na mão. - Eu sabia que podia contar consigo. - Fitou-a com olhos doces, tranquilizadores, até ela parar de tremer. Desapertou as tiras e tirou com cuidado a fita gomada. - Mr. Donovan e eu saímos dentro em pouco. Deixe-se ficar aqui até nos irmos embora. Percebe?

A interpelada respondeu com um aceno de cabeça espasmódico, ao

mesmo tempo que esfregava os pulsos.

Jackson levantou-se, apontou-lhe a arma do repórter e premiu o gatilho. Ficou por momentos a observar o sangue a espalhar-se pelos lençóis.

Regressou depois ao andar de baixo, pegou no estojo de maquilhagem e passou os trinta minutos seguintes a pairar em redor do outro homem. Quando este recuperou por fim a consciência, parecia-lhe que a cabeça lhe estalava, mas ao menos ainda estava vivo. O coração quase lhe parou quando deu por si a olhar para ... Thomas Donovan. O tipo até tinha o casaco dele e o chapéu dele.

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Jackson ajoelhou-se. - Parece surpreendido, mas garanto-lhe que sou perito nisto. Pós, cremes, borracha, goma dissolvida em éter, massa. - Agarrou o jornalista por baixo das axilas e ergueu-o para o sofá.

- Preciso de um médico. - Donovan conseguiu emitir as palavras por entre os lábios em que o sangue coagulara.

- Lamento, mas não. Todavia, nos próximos minutos explico-lhe umas coisas. Acho que lhe devo isso. Foi muito engenhoso a tirar deduções da percentagem de vencedores falidos. Confesso que tal nunca me tinha ocorrido.

O repórter tossiu. - Como seguiu a minha pista? - Sabia que LuAnn não ia contar-lhe praticamente nada. Que faria você a seguir? Desencantaria os outros. Avisei todos os meus outros vencedores de que talvez você telefonasse. A dez deles dei instruções para o mandarem às urtigas. A Bobbie Jo ... desculpe, Roberta, ... disse que marcasse encontro consigo.

- Onde está ela? - Não interessa. - Jackson sorriu. - Continuemos. A substância aplicada a nove das dez bolas era acrílica, transparente, uma solução de, siloxano polidimetílico. Cria um forte campo de electricidade estática e aumenta as dimensões da bola em cerca de vinte e cinco centésimos de milímetro sem lhe alterar significativamente o peso. Eles pesam mesmo as bolas, sabe, para se assegurarem de que são todas iguais. Em cada receptáculo, a bola com o número ganhador não era aspergida. Cada tubo pelo qual a bola ganhadora teria de passar recebeu também uma pequena aplicação da solução de siloxano polidimetílico. Assim, as nove bolas com carga estática não podiam entrar num tubo que tivesse uma película da mesma substância. Portanto, nunca fariam parte da combinação vencedora. Só a bola limpa estava em condições disso.

- Como obteve o acesso? - O jornalista começava a entaramelar as palavras em consequência dos ferimentos.

O sorriso de Jackson tornou-se maior. - Arranjei emprego como mecânico na firma que fornecia as má-' quinas das bolas e procedia à sua manutenção. Ninguém se preocupava

com um insignificante mecânico. Era como se eu nem sequer lá estives-, se. Aspergia as bolas com o que todos pensavam ser uma solução para tirar o pó. Bastava-me segurar na mão a bola ganhadora enquanto fazia isso. A solução seca de imediato. Devolvo sub-repticiamente a bola ganhadora ao receptáculo e pronto. - Jackson calçou um par de luvas espessas. - Acho que está tudo.

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Colocou as mãos dos dois lados da cabeça do jornalista e torceu-a de repente. O barulho de ossos a estalarem foi inconfundível. Jackson' pegou no morto ao ombro. Levou-o para a garagem, abriu a porta da, frente do Mercedes e apertou os dedos de Donovan sobre o volante, o tablier e o relógio. Por fim, apertou a mão do morto em volta da arma que usara para matar Bobbie Jo Reynolds. Embrulhando o corpo num cobertor, enfiou-o no porta-bagagem. Foi buscar a sua mala e o grava-,,,, dor de Donovan, e, passados poucos minutos, o automóvel afastava-se ' do bairro tranquilo. Jackson parou na berma da estrada, abriu a janela e,

atirou a arma para os arbustos. Ia esperar até ao cair da noite, e nessa altura uma certa incineradora local que descobrira numa visita anterior tornar-se-ia o local de repouso eterno de Thomas Donovan.

Enquanto prosseguia viagem, Jackson pensou por instantes em comO,,,, havia de lidar com LuAnn Tyler e Riggs. Em breve, dedicaria toda a sua atenção a esse problema; primeiro, contudo, tinha outras preocupações.

JACKSON ENTROu no apartamento de Donovan e dedicou um momento a examinar as instalações. Um jornalista tinha arquivos, e era isso que Jackson procurava. Não tardou a encontrá-los. Empilhou as

respectivas caixas no meio do pequeno vestíbulo.

Preparava-se para sair quando reparou no atendedor automático da sala. A luz vermelha estava a piscar. Carregou no botão para ouvir. A voz que gravara a mensagem fez que Jackson baixasse a cabeça para captar bem todas as palavras. Alicia Crane parecia nervosa e assustada:

- Onde estás, Thomas? - implorava. - Não me telefonaste. O que estás a investigar é perigosíssimo. Por favor, por favor, telefona-me.

Jackson rebobinou a fita e voltou a ouvir a voz de Alicia. A seguir, carregou noutro botão da máquina. Por fim, pegou nas caixas e saiu do apartamento.

LuANN OLHOU para o Memorial a Lincon ao passar sobre a

Memorial Bridge. A água do rio Potomac estava escura e agitada.

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- Nem posso crer que estamos a fazer isto - comentou enquanto prosseguiam caminho.

- Confia em mim, LuAnn. Sei o que estou a fazer. Há duas coisas que sei: como construir coisas e como funciona o Bureau. Esta é a única forma de agir. Se foges, eles acabam por te encontrar.

- Já antes consegui fugir - recordou ela em tom confiante. - Tiveste ajuda e um avanço inicial. Agora, não conseguias sair do país. - Olhou pela janela. - Cá estamos. - LuAnn parou num lugar vago junto ao passeio. Riggs saiu. - Lembras-te do plano? - A companheira confirmou com um aceno de cabeça. - Óptimo. Até breve.

Enquanto Riggs ia até um telefone público, ela ergueu o olhar para o grande e feio edifício. Tinha escrito na fachada: EDIFíCIO J. EDGAR HOOVER - a sede do Federal Bureau of Investigation. Aquela gente andava à sua procura por todo o lado, e ali estava ela, estacionada a três metros da porta. Metendo a primeira, sentiu um arrepio e procurou dominar o nervosismo. Esperava que Matthew soubesse o que estava a fazer.

RIGGS FEZ O TELEFONEMA. Poucos minutos depois, estava dentro do Edifício Hoover à espera numa sala de reuniões. Quase sorria. Regressara a casa, por assim dizer.

A porta abriu-se e entraram dois homens de camisas brancas e gravatas parecidas. George Masters estendeu a mão. Era corpulento, estava a ficar careca, mas ainda tinha um porte atlético. Lou Berman tinha o cabelo cortado à escovinha e modos severos.

- Há tanto tempo, Dan. - Agora, sou Matt - corrigiu ele, correspondendo ao aperto de mão. - Dan morreu, lembras-te, George?

George Masters pigarreou com nervosismo e fez sinal ao antigo co lega para que se sentasse à mesa de reuniões. Depois de todos sentados Masters inclinou a cabeça para o outro homem.

- Lou Berman dirige a investigação de que falámos ao telefone. Berman esboçou um aceno de cabeça para Riggs. - Dan ... - Maste deteve-se, corrigindo-se: - Matt foi um dos melhores agentes infiltra@ dos que alguma vez tivemos.

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- Sacrifiquei muito em nome da justiça, não é verdade, George? - Riggs relanceou o olhar para Berman. - Aqui o George pode contar-lhe que fiquei em jogo para lá do tempo regulamentar. Certo George?

- Ossos do ofício, Matt. - Isso é fácil de dizer por quem não viu a mulher ser morta devido à profissão do marido. Como está a tua mulher, George? E tens três fi' lhos, não é? Ter filhos e mulher deve ser agradável.

- Está bem, Matt. Já percebi. Lamento. Riggs engoliu com dificuldade. Não contara ter as emoções tão flor da pele.

- Isso teria tido muito maior significado se o tivesses dito há cinco anos, George.

O olhar de Riggs era tão intenso que Masters acabou por ter de desviar o seu. Quando levantou os olhos, avistou o braço do outro ao peito@

- Acidente? - A construção civil tem muitos perigos. Estou aqui para fazer um' acordo, George. Um acordo satisfatório para ambas as partes.

Os olhos de Berman dardejaram para a cara de Riggs. - Porque havemos de fazer um acordo? LuAnn Tyler é criminosa.,' - Quem diz isso? - O estado da Geórgia. - Consultou de facto o processo? As minhas fontes ... - As suas fontes? - Berman quase soltou uma gargalhada. - As minhas fontes dizem que é uma treta. - Eu consultei o processo, Matt - interveio Masters. - É provável que tenhas razão. - Deitou a Berman um olhar chamejante. -

mesmo que não tenhas, o problema é da Geórgia, não é nosso.

Berman recusou-se a desistir. - Também é um caso de fuga aos impostos. Ganhou cem milhões de dólares e depois desapareceu durante dez anos.

- Pensei que você era agente do FBI, e não contabilista - retorquiu Riggs.

- Vamos lá a acalmar, rapazes - propôs Masters.

Riggs inclinou-se para diante. - Seja como for, pensei que estivessem mais interessados na pessoa que mexe os cordelinhos. O tipo invisível, com milhares de milhões de dólares a

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girarem pelo planeta, a fazerem das suas e a tornarem infelizes as vossas vidas. Ora bem, querem apanhá-lo ou preferem interrogar LuAnn Tyler acerca dos pormenores da declaração de impostos?

- Qual é a tua sugestão? - Fazer como nos velhos tempos, George - comentou Riggs, recostando-se. - Deitamos o anzol aos peixes grandes e deixamos os pequenos em paz. Nós entregamos o homem, e LuAnn Tyler fica livre. E refiro-me a tudo: questões federais, tributárias e do estado da Geórgia.

- Não podemos garantir isso, Matt - redarguiu Masters. - Os tipos das finanças têm códigos próprios.

- Bem, ela pode pagar algum dinheiro, mas nada de prisão. Tens de fazer desaparecer a acusação de homicídio.

- Supondo que alinhamos, qual é a ligação entre Tyler e essa outra pessoa?

- Ele tinha de arranjar o dinheiro em algum sítio. - A lotaria? - perguntou Masters, de olhos reluzentes. - Foi falseada?

- Talvez - replicou Riggs, tamborilando com os dedos em cima da mesa.

- Escuta, Matt, se a lotaria foi falseada, isto tem de ser tratado com

o máximo cuidado.

Riggs soltou uma risadinha. - Tradução: se alguma vez for do conhecimento público, metade dos funcionários públicos de Washington vai ter de procurar novo em-

prego. Portanto, o que sugeres é um enorme encobrimento.

Masters bateu com o punho na mesa. - Tens alguma ideia do que sucederia se se tornasse público que a

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lotaria foi falsificada? Era quase como se o país declarasse bancarrota. Não se pode permitir. Não será permitido.

- Então, que sugeres, George? O outro acalmou de imediato. - Trazes cá LuAnn Tyler. Interrogamo-la, obtemos a colaboração dela. Deitamos a mão às pessoas ...

- Pessoa, George - interrompeu o interlocutor. - É só um, mas

deixa-me avisar-te que é muito especial.

- Está bem.- Então, com a ajuda dela, apanhamo-lo. - E que sucede a LuAnn Tyler? Masters abriu as mãos, como que indefeso. - Repara, Matt, existe um mandado estadual de captura em nome,, dela por homicídio. Não paga impostos há quase uma década. Tenho de presumir que estava a par da tramóia na lotaria. Tudo isso dá para somar várias vidas na prisão, mas eu contento-me com uma.

Riggs olhou Masters bem nos olhos antes de falar: - Se achas que ela vai entrar por aqui dentro, arriscar a vida para ajudar a caçar o tipo e depois receber como recompensa uma vida na prisão, deves estar tolo da cabeça. Deixa-me lembrar-te de que ela é que tens as cartas na mão. Portanto, ligas para a Geórgia e dizes-lhes que LuAnn Tyler já não é lá procurada por homicídio nem seja pelo que for. Se tiver alguma multa de trânsito por pagar, fica sem efeito. A seguir, entras em contacto com as finanças e dizes-lhes que ela paga o que deve, mas que nem pensem em penas de prisão. Quanto à fraude da lotaria, se não tiver prescrito entretanto, as acusações desaparecem igualmente.

- Se não ... ? - pronunciou Masters baixinho, de olhos fitos no antigo colega.

- Se não, nós vamos para os jornais, George. Se ela vai presa para o resto da vida, tem de arranjar passatempos que lhe preencham os dias: estou a pensar em participações em programas de televisão, como o 60 Minutes, Prime Time Live, talvez mesmo a Oprah. Pode desabafar as, suas mágoas sobre a falsificação da lotaria, o interesse do presidente c,, ` do FBI em encobrirem os factos e a estupidez que demonstraram ao deixarem escapar um mestre do crime para que uma jovem que cresceu,'@I na miséria fosse parar à prisão por ter feito o que qualquer um de nós faria sem hesitar! - Riggs e Masters ficaram de olhos fixos um no outro.,... - Que dizes, George? Temos acordo? Ou vou já falar para a Oprah?

Devagar, quase imperceptivelmente, Masters acenou a sua concordância.

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- Gostava mesmo de te ouvir dizê-lo, George. Berman ia intervir, mas o olhar do chefe silenciou-o. - Sim, temos acordo - afirmou Masters. - Nada de prisão. - Nem na Geórgia? - Nem na Geórgia. - óptimo. Agora, chama o director e o ministro da Justiça, porque quero ouvi-los dizer a mesma coisa.

- Não confias na minha palavra? - Digamos apenas que os teus antecedentes não me inspiram confiança. - Riggs indicou o telefone com um gesto de cabeça. - Faz a chamada.

Foi preciso fazer algumas alterações de calendário, mas meia hora

258

PRIMEIRO PRÉMIO

depois o director do FBI e o ministro da Justiça dos Estados Unidos estavam sentados em frente de Riggs. Este propôs-lhes o mesmo acordo e extraiu-lhes as mesmas promessas. Finalmente, levantou-se.

- Obrigado pela vossa cooperação. Berman levantou-se também. - Perfeito. Se agora vamos trabalhar em conjunto, traga Tyler. Podemos colocar-lhe umas escutas, arranjar uma equipa e ir caçar a tal quadrilha de um homem só.

- Nada disso, Lou. O acordo foi que eu o caçava, e não o FBI. Berman parecia prestes a explodir. - Escute, você ... - Cale-se, Lou! - Os olhos do director do FBI fulminaram-no. A seguir, fitou Riggs. - Acha mesmo que consegue?

- Alguma vez os desiludi? - indagou Matt com um sorriso. Atravessou a sala em direcção à porta, mas a voz esterttória do ministro da Justiça ainda fez uma última pergunta:

- A lotaria foi falsificada, Mr. Riggs? - Pode crer - replicou Riggs, virando-se para trás. - E quer saber o melhor? Parece que a lotaria dos Estados Unidos foi usada para financiar os planos de um dos mais perigosos psicopatas que já alguma vez vi em pessoa. Espero sinceramente que isto nunca chegue aos noticiários. - O seu olhar captou as expressões de pânico crescente nos

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rostos de cada um dos circunstantes. - Passem muito bem. - Saiu da sala e fechou a porta atrás de si.

CAMINHANDO RUA FORA, Riggs olhou para o relógio. A peça onde se

inseria o mostrador era na realidade um sofisticado aparelho de gravação; as minúsculas perfurações na correia de cabedal constituíam o microfone. Pelo menos, o seu acordo com o Governo não ficara apenas registado na memória dele. Em operações assim, não confiava em ninguém.

Entrou numa loja de conveniência e comprou o jornal. Na primeira página estavam duas fotografias. Reconheceu uma das pessoas: com

um cartão de imprensa ao pescoço, Thomas Donovan parecia acabado de sair de um avião, vindo da cobertura noticiosa de algum acontecimento importante do outro lado do Mundo. A mulher da fotografia ao

lado da sua era identificada como Roberta Reynolds. A reportagem revelava que o seu brutal assassínio roubara a Washington uma grande benfeitora. Uma linha do artigo referia a fonte da sua riqueza: sessenta e cinco milhões de dólares ganhos na lotaria há dez anos.

Fora assassinada - alegadamente, comunicava a notícia, por um certo Thomas Donovan. Havia uma mensagem dele a solicitar uma entrevista no atendedor automático da morta. A pistola que parecia ter sido utilizada para assassinar Roberta ReynoIds e o Mercedes dela haviam sido encontrados a pouco mais de quilómetro e meio de sua casa, e em ambos abundavam as impressões digitais de Donovan, Fora passado um mandado de captura em nome dele, e a Polícia estava confiante,,, em que não tardaria a prendê-lo.

Riggs dobrou o jornal. Sabia que a Polícia estava completamente enganada. Donovan não matara Reynolds, e era muito provável que ele próprio também já estivesse morto. Respirou fundo e pensou em como havia de dar a notícia a LuAnn.

ENQUANTo RIGGs negociava com o FBI, LuAnn fora de carro até um telefone público. Deixou o Honda a trabalhar, pois não partilhava a liabilidade dele a fazer ligações directas. Fez uma chamada para um determinado número. O telefone tocou várias vezes, até que uma voz atendeu. LuAnn mal reconheceu a voz devido à má qualidade da ligação.

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- Charlie? - LuAnn? - Onde estão? - Na estrada. A partir da Pensilvânia, atravessámos a parte ocidental da Virgínia, depois entrámos no Kentucky, circundámos o Tennessee e agora vogamos de novo em direcção à Virgínia. Espera lá. Há uma pessoa que te quer falar.

- Mãe? - Olá, pequenina. - A mãe está bem? - Estou bem, querida. Eu disse-te que ficava bem. - Tenho saudades suas. Podemos voltar em breve para casa? Casa? Onde era agora a sua casa? - Acho que sim, pequenina. Estou neste preciso momento a fazer' os possíveis por resolver isso.

- Gosto muito de si. - Oli, meu amor, também gosto muito de ti. Ouve, Lisa. - Sim? - Eu vou cumprir a promessa, vou contar-te toda a verdade. Certo? - Certo, mãe. - A vozinha soou fraca, um pouco assustada. -

Vou passar ao tio Charlie.

Ele reapareceu ao telefone, e LuAnn informou-o dos últimos acontecimentos, incluindo o plano de Riggs e os verdadeiros antecedentes dele.

Charlie mal conseguiu conter-se: - Estás louca? Deixas Riggs, um ex-agente do FBI, entrar no

Edifício Hoover e fazer um acordo em teu nome? Como podes ter a certeza de que ele não está neste momento a entregar-te aos lobos?

- Confio nele. Charlie ficou por momentos em silêncio. Por tudo o que acabava de lhe contar, era provável que Riggs estivesse do lado dela. Charlie pensava saber a razão: o tipo estava apaixonado por LuAnn. Seria correspondido por ela? Porque não haveria de ser? E onde é que isso deixava

a sua pessoa? O facto é que Charlie queria Riggs fora da vida deles. No entanto, Charlie adorava LuAnn. E adorava Lisa. Sempre pusera os seus próprios interesses em segundo plano em relação aos delas.

- Confio na tua intuição, LuAnn - acabou por declarar. - Só não te esqueças de manter os olhos bem abertos.

- Não esqueço, não, Charlie, e obrigada. - LuAnn desligou. Se tudo corresse conforme planeado, não tardava a encontrar-se com Riggs.

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O HOMEM FORTE olhou à sua volta para as outras residências dispendiosas daquele bairro de Georgetown. Com cerca de cinquenta anos, pálido e de bigodinho muito bem aparado, tocou à campainha. Alicia Crane abriu a porta com uma expressão ansiosa.

- Sim? - Alicia Crane? - Sou. O homem abriu e fechou de imediato a carteira com a identificação. - Hank Rollins, inspector de homicídios, Fairfax County, Virgínia. Conhece Thomas Donovan?

Alicia mordeu o lábio. - Conheço. Rollins esfregou as mãos uma na outra. - Minha senhora, tenho umas perguntas a fazer-lhe. Podemos ir tratar do assunto para a esquadra ou a senhora pode convidar-me a entrar antes que enregele. É sua a opção.

- Claro. - Alicia deu-lhe entrada. - Desculpe. Na sala, o homem instalou-se no sofá, e ela perguntou-lhe se queria café.

- Aceito, com certeza, minha senhora.

Assim que a dona da casa saiu da sala, Rollins levantou-se de u salto e olhou em redor. Um objecto atraiu-lhe de imediato a atenção uma fotografia de Donovan, de braço em torno de Alicia Crane, Pareciam felicíssimos. Rollins tinha a fotografia na mão quando Alici reentrou com um tabuleiro em que pusera duas chávenas de café, nata, e dois pacotinhos de adoçante. Pousou o tabuleiro na mesinha de ca

- Não consegui encontrar o açúcar. A governanta foi fazer um recado. Deve voltar dentro de cerca de uma hora, e não costumo... -

olhos recaíram-lhe na fotografia. - Importa-se de me devolver a fotografia? - pediu.

O homem apressou-se a aceder ao pedido e voltou a sentar-se. - Vou direito ao assunto, Ms. Crane. Presumo que leu o jornal. - E um chorrilho de mentiras. - O olhar dardejou-lhe por instantes. - Thomas nunca faria mal a ninguém.

Rollins pegou numa chávena de café e misturou-lhe natas. Provou e resultado e acabou por deitar na chávena o conteúdo de um pacotinho de adoçante.

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- Mas foi a casa de Roberta Reynolds. Alicia cruzou os braços e dardejou o olhar para ele. - Foi? - Nunca lhe referiu que ia encontrar-se com ela? - Não me contou nada. Rollins ponderou aquilo por instantes. - Minha senhora, ouvi a sua voz no atendedor automático de Donovan. Essa voz disse-me duas coisas. Primeira, que estava assusta da com o que pudesse acontecer-lhe; segunda, que a senhora sabe mui to bem por que razão estava assustada. Ora, já falei com uma pessoa d Tribune. Essa pessoa contou-me que Donovan estava a trabalhar num.', reportagem sobre vencedores da lotaria, e Roberta Reynolds foi um das vencedoras. Não sou repórter, mas quando há tanto dinheiro envolvido, talvez haja quem tenha motivos para assassinar.

Alicia piscou os olhos diversas vezes. Rollins esperou pacientemente enquanto ela tomava a sua decisão.

- A lotaria foi falsificada - acabou ela por dizer. - Falsificada? - Thomas telefonou há dois dias e contou-me. Fez-me promete que não dizia nada a ninguém. - As mãos dela esticavam a bainha d saia, ansiosas. - E agora estou preocupadíssima com ele. Devia te voltado a ligar, mas não ligou.

- Ele disse-lhe quem procedeu à falsificação? - Não, mas disse que era um homem. Uma pessoa muito perigosa Tenho a certeza de que essa pessoa está envolvida na morte da tal senhora. - Rollins fitou-a com tristeza e engoliu um trago de café quente. - Pedi a Thomas que fosse contar à Polícia o que sabia - continuou ela.

- E ele foi? - perguntou Rollins, inclinando-se para diante. - Não! - replicou ela, abanando a cabeça desesperadamente. Um grande suspiro escapou-lhe dos pulmões. - Implorei-lhe. Se alguém tivesse falsificado a lotaria ... quer dizer, deve haver quem mate por todo esse dinheiro. O senhor é polícia, não acha que tenho razão?

- Conheço pessoas capazes de arrancar corações por um punhado de dólares - foi a resposta arrepiante de Rollins. Baixou os olhos para a chávena vazia. - Tem mais?

Alicia estremeceu. - O quê? Ali, sim. Fiz uma cafeteira cheia. - Saiu da sala. Quando voltou uns minutos depois com o tabuleiro de madeira, vinha de olhos pregados na chávena cheia para não entornar café. Ao erguê-los, arregalou-os de descrença e deixou cair o tabuleiro ao chão. - Peter?

Os restos do detective Rollins - cabeleira, bigode, máscara facial - estavam na poltrona de orelhas. Jackson, aliás Peter Crane, o irmão mais velho de Alicia Crane, devolvia-lhe o olhar com uma expressão profundamente perturbada. Ao reparar que Bobbie Jo Reynolds se

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assemelhava a Alicia Crane, Donovan acertara em cheio. Fora a personalidade disfarçada de Peter Crane, Jackson, a fazer-se passar por Bobbie Jo ReynoIds que se parecera com Alicia Crane. A semelhança familiar era notável.

- Olá, Alicia. - Que significa tudo isto? - perguntou ela, olhando para os vestígios do disfarce. - Quase tive um ataque cardíaco. Porque me fizeste todas aquelas perguntas?

- Não era minha intenção perturbar-te - redarguiu Jackson. -

Todavia, precisava de saber o que Donovan te contara. - Rodeou-lhe a cintura com um dos braços e guiou-a até ao sofá.

Ela afastou-se de repelão. - Thomas? Como sabes de Thomas? Há três anos que não falava contigo.

- Há tanto tempo? - comentou ele, evasivo. - Não precisas de nada, pois não? Bastava pedires.

- Os teus cheques chegam com uma pontualidade britânica - declarou a irmã com alguma amargura. - Não preciso de mais dinheiro. Teria sido agradável ver-te de vez em quando. Sei que tens a vida muito ocupada, mas afinal somos irmãos. - Eu sei. - Baixou por instantes o olhar. - Sempre disse que tomava conta de ti, e sempre o farei. A família está primeiro.

- A propósito, falei no outro dia com Roger. - E como está o nosso decadente irmão mais novo, que nada merece?

- Precisava de dinheiro, como sempre. - Espero que não lho tenhas mandado. Já lhe dei o suficiente para, uma vida inteira. Ele só tem de se manter dentro dos limites de um orçamento razoável.

- Mandei. Não podia deixar que o pusessem na rua - respondeu ela, nervosa.

- Porque não? - Ele não sobrevivia. Não é forte como o pai. Jackson conteve-se perante a referência ao progenitor. Em relação a

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isso, o passar dos anos não tinha aberto os olhos à irmã.

- Esquece. Não vou perder tempo a falar de Roger. Quando é que conheceste Donovan?

- Quase há um ano. Ele escreveu um artigo sobre o pai, um testemunho maravilhoso. - Jackson abanou a cabeça. Era a visão da irmã: o oposto da verdade. - Então, convidei Thomas para lhe agradecer.... Almoçámos juntos, depois jantámos e, bem, tem sido maravilhoso., Thomas é um homem nobre, com um propósito nobre na vida.

- Parecido com o pai? - Jackson fez um sorriso trocista. - Muito - respondeu Alicia, indignada. - O Mundo é pequeno. - Ele abanou a cabeça perante a ironia. - Porque dizes isso? Ele levantou-se e abriu os braços num gesto que abarcava a sala. - Alicia, de onde pensas que veio tudo isto? - Ora, do dinheiro da família, claro. - O dinheiro da família? O dinheiro da família sumiu há que anos., - Que estás para aí a dizer? Sei que o pai teve umas dificuldades financeiras, mas recuperou. Recuperava sempre.

Ele fitou-a com desprezo. - Não recuperou coisa alguma, Alicia. Ele era uma fraude e um falhado.

A irmã ergueu-se de um salto e esbofeteou-o. - Como te atreves? Deves-lhe tudo o que tens! Jackson passou devagar a mão pela cara onde ela lhe batera. A sua verdadeira pele era pálida, macia, como se tivesse vivido sempre num templo, como os monges budistas, o que em certo sentido era verdade.

- Há dez anos, eu defraudei a lotaria nacional - informou baixinho, com os olhos escuros a chamejarem, fixos na cara atónita da irmã. - Tudo o que tens provém desse dinheiro. Deves-mo a mim. Não ao querido paizinho.

Os lábios de Alicia começaram a tremer. - Onde está Thomas? - Não prestava para ti, Alicia. Não prestava mesmo. Era um oportunista. Tenho a certeza de que gostava imenso de tudo isto, de tudo o que te dei.

- Não prestava? Que lhe fizeste? Ele fitou-a, procurando alguma qualidade redentora nas feições da irmã. Mantendo-se afastado, imaginara uma visão idílica da sua única irmã. Frente a frente com ela, porém, descobria que essa imagem era insustentável.

- Matei-o, Alicia. - Ela ficou por um instante imóvel, especada, até que começou a cair ao chão. Jackson agarrou-a e deitou-a no sofá. As lágrimas manchavam o rosto dela. - Vais ter de fugir

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do país, Alicia. Apaguei a tua mensagem para Donovan para despistar a Polícia, mas a vossa relação deve ser do conhecimento de outras pessoas. A Polícia há-de cá vir. Não tens experiência nenhuma destes assuntos e extraem-te a verdade num instante. Vou tratar de tudo. Que tal a Nova Zelândia.? Ou talvez a Áustria. Passámos lá óptimas temporadas em pequenos.

- Pára! Pára com isso, seu animal! Ele virou-se, deparando corri a irmã levantada. - Alicia ... - Eu não vou para lado nenhum. - Ela bateu-lhe com os punhos tão violentamente quanto foi capaz. Jackson não ficou afectado no aspecto físico, mas os golpes fizeram-no recordar as confrontações violentas com o pai. - Eu amava Thomas - berrava-lhe a irmã na cara.

Peter focou os olhos em Alicia. - Eu também amei uma pessoa - informou. - Uma pessoa que devia ter correspondido ao meu amor, no entanto não o fez. - Apesar dos anos de sofrimento, o filho de Jack ainda nutria pelo velho sentimentos há muito recalcados. Sentimentos que nunca até então analisara, nem sequer verbalizara. O reaparecimento de tão profunda tempestade emocional exerceu nele um impacto tremendo. Agarrou a irmã pelos ombros e atirou-a à bruta para cima do sofá. - Tens de fugir do país. Ouviste?

- Peter ... - Alicia fitou-o nos olhos e estremeceu de súbito até ao mais profundo do seu ser, com o terror a substituir a ira. Apressou-se a mudar de tom, falando corri a tranquilidade possível. - Sim, Peter, está bem. Vou ... vou já fazer as malas.

O rosto de Jackson assumiu uma expressão de desespero quando os seus dedos agarraram uma enorme almofada de cima do sofá. O queixo::@ da irmã tremia descontroladamente enquanto ela observava a almofada a aproximar-se.

- Peter. Por favor. Por favor, não! As palavras dele soaram com precisão: - O meu nome é Jackson, Alicia. Peter Crane já não mora aqui. -

Numa arremetida súbita, estendeu-a em cima do sofá, com a almofada a cobrir-lhe por completo a cara. A irmã debateu-se violentamente, com pontapés e arranhões, mas era demasiado pequena, demasiado fraca; ele quase não a sentia a lutar pela vida. Depressa acabou. Os movimentos violentos diminuíram até parar de todo.

O homem retirou a almofada e baixou por uma última vez o olhar para Alicia. Havia ali uma paz, uma serenidade, que lhe dava ânimo, como se o que acabava de fazer não fosse assim tão terrível. Não precisava de ter acabado assim. Agora, o único membro da família que lhe., restava era o inútil Roger. Devia ser dele o corpo ali caído, e não o da. sua querida irmã. Imobilizou-se por um instante quando lhe ocorreu uma ideia. Talvez o irmão pudesse desempenhar um papel secundário naquele espectáculo.

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Reuniu os elementos do disfarce e reaplicou-os com método, deitando de vez em quando olhares de soslaio à irmã morta. "Lamento,', Alicia. Não devíamos ter chegado a isto." Tão inesperado desenrolar '-

dos acontecimentos quase o imobilizara por completo, o que não sol lembrava de alguma vez ter acontecido. Acima de tudo, gostava de, ter domínio completo das situações, e isso fora-lhe de súbito arrancado. Ao, baixar os olhos para as mãos, que tinham sido o instrumento da morte 1

da irmã, concentrou a mente na pessoa que considerava nitidamente', responsável por tudo aquilo: LuAnn Tyler.

RIGGs deixou-se cair num banco da avenida e ergueu o olhar Monumento a Washington, enquanto o vento frio açoitava o vast a ço aberto que se estendia desde o Memorial a Lincoln até ao Cap o io., O céu estava carregado de nuvens; não tardaria a chover. O próprio a

cheirava a chuva. Uma mão tocou-lhe no pescoço, e LuAnn instalou-s ao seu lado, enfiando o braço no dele.

- Vamos à procura de um sítio quente onde te possa pôr a par dos, acontecimentos e onde possamos discutir o nosso plano de ataque -

sugeriu Riggs. - Que achas?

- Estou à tua disposição. Abandonaram o Honda, que estava a começar a falhar, e alugaram outro carro. Quando chegaram aos arredores da parte ocidental do Fairfax Courity, pararam para almoçar num restaurante quase vazio. Durante a viagem, Riggs dera conta à companheira do resultado da reunião no Edifício Hoover. Passaram pela zona do bar e foram sentar-se a uma mesa de canto. Ela observou distraidamente o barman de roda do televisor, na tentativa de melhorar a imagem da telenovela da tarde. Pediram a comida, e só depois Riggs mostrou o jornal. Não pronunciou palavra enquanto LuAnn não acabou de ler toda a história.

- Achas que Jackson matou Donovan? - perguntou ela. Riggs respondeu com um aceno afirmativo. A companheira pousou a cabeça nas mãos, e ele tocou-lhe com delicadeza.

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- Ouve, LuAnn, tu tentaste avisá-lo. Não podias fazer mais nada. - Podia ter dito não a Jackson há dez anos. - Se o tivesses feito, ele ter-te-ia matado logo. LuAnn limpou os olhos à manga. - Então, agora tenho esse grande acordo com o FBI, e, para o levar a bom termo, basta-nos deitar a rede a Lúcifer. Importas-te de me dizer como vamos fazer isso?

- Se conseguirmos descobrir quem ele de facto é, talvez consigamos fazer alguma coisa. - Fez uma pausa à chegada da refeição. Quando a empregada se afastou, ele pegou na sua sanduíche e falou entre dentadas: - Não te lembras de nada do tipo? Coisas que nos possam levar a descobrir a sua verdadeira identidade?

- Sempre o vi disfarçado. - Os documentos financeiros que te enviou? - Eram de uma firma na Suíça. Tenho alguns lá em casa, mas suponho que não posso deitar-lhes a mão. Nem com o nosso acordo, pois não?

- É melhor não, LuAnn. Se os federais te apanhassem agora, eram capazes de esquecer todos os acordos. E Charlie? Terá alguma ideia?

- Não me parece. Charlie contou-me que nunca chegou a encontrar-se com Jackson cara a cara. Foi sempre tudo tratado pelo telefone.

Riggs baixou por um momento o olhar, pensativo. Quando voltou a olhar para ela, a sua expressão impediu-o de falar.

- LuAnn? - Oh, não! - A voz era de pânico.

- O que é? Ela não respondeu. Olhava para qualquer coisa por cima do ombro dele. Riggs rodou no assento, esperando ver Jackson a aproximar-se empunhando armas mortíferas em ambas as mãos. Percorreu o restaurante com o olhar, até que este lhe recaiu no televisor, onde estava a ser dada uma notícia de última hora. Um rosto de mulher ocupava todo o ecrã. Duas horas antes, Alicia Crane, conhecida figura na sociedade de Washington, fora encontrada morta em casa pela empregada. As circunstâncias sugeriam homicídio. Os olhos de Riggs esbugalharam-se ao ouvir, o jornalista mencionar que Thomas Donovan, o principal suspeito do assassínio de Roberta Reynolds, tinha uma relação com Alicia Crane.

LuAnn não conseguia desviar os olhos daquela cara. Vira aquele olhar fixo nela no alpendre da casinha de campo. A verdadeira cara do homem. Levantou um dedo trémulo na direcção do ecrã.

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- É Jackson - pronunciou num fio de voz. - Vestido de mulher. Riggs fitou o ecrã. Não podia ser Jackson, pensou. Voltou-se de novo para ela.

- Como sabes? - Na casa de campo, quando lutámos, a cara dele ... o plástico, a borracha ou lá o que era ... soltou-se. Vi-lhe a cara verdadeira. Era' aquela cara.

O primeiro pensamento de Riggs foi correcto. Família? A ligação a Donovan não podia ser coincidência, pois não? Correu para o telefone.

- ONDE ESTÁS? - exigiu Masters saber. - Escuta só. - Riggs recontou a história das notícias. - Achas que é da família de Alicia Crane? - perguntou o outro. - Pode ser. Talvez irmão. Não sei. - Vamos verificar a família. Não deve ser muito difícil. O pai foi 'Í senador dos EUA. Se ela tiver irmãos, primos, o que for, convocamo-los para interrogatório.

Tem cuidado, George. O tipo pode ter acabado de matar uma pessoa de família. Não gostava nada de ver o que ele é capaz de fazer a quem não pertença à família.

O PORTEIRO, Horace Parker, olhou em redor, curioso, quando o pequeno exército de homens com impermeáveis do FBI tomou de assalto,, o elevador particular que levava ao último andar. A coisa parecia séria, e eles traziam o armamento que comprovava isso. O porteiro saiu e olhou para um lado e outro da rua. Parou um táxi, e Jackson apeou-se.: Parker foi de imediato ter com ele. Conhecera-o quase toda a vida. Para ganhar um dinheiro extra, tomara conta tanto de Peter como do irmão mais novo, Roger, quando eram crianças. Ao surgirem as dificuldades financeiras para os Cranes, a família saíra de Nova Iorque. Peter Crane, porém, regressara e adquirira o último andar. Parecia ter-se saído muito bem na vida.

- Boa noite, Horace - cumprimentou Jackson com amabilidade. - Boa noite, Mr. Crane - retribuiu o porteiro, levando a mão ao boné. Peter continuou a avançar. - Desculpe, mas estão uns homens no seu apartamento. FBI, com armas e tudo. Acho que estão à espera de que o senhor chegue a casa.

A resposta de Jackson foi tranquila: - Obrigado pela informação, Horace. Não passa de um mal-entendido. - Estendeu a mão, que Parker apertou. Depois, Crane virou-se e afastou-se.

Quando o porteiro abriu a mão, tinha nela um maço de notas de cem dólares. Guardou-o no bolso e assumiu o seu lugar junto da porta.

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Jackson desceu a rua e telefonou ao irmão. Disse a Roger que fosse de imediato ter com ele em frente do Teatro St. James. Peter não tinha a certeza de como a Polícia descobrira a sua identidade, mas não podia garantir que não aparecesse também a qualquer momento em casa de Roger. Depois, ligou para o piloto do seu jacto particular.

O FBI FOI de facto ao apartamento de Roger Crane, mas um pouco tarde demais. No entanto, o que mais confundiu os agentes foi o que descobriram no andar de Peter Crane: as salas de maquilhagem e arquivo de Jackson e o seu centro de comando computorizado. Enquanto técnicos do FBI recolhiam provas, George Masters compulsou o livro de recortes que Jackson mantinha em relação aos vencedores da lotaria. Ao olhar para a página referente a LuAnn Tyler, percebeu os motivos por detrás das acções dela. Por diversas razões, Masters começou a sentir-se imensamente culpado.

E" QUASE MEIA-NOITE quando Riggs e LuAnn pararam num motel. Depois de se instalarem, Riggs telefonou a George Masters. O agente do FBI acabara de regressar de Nova Iorque e contou em pormenor o que sucedera desde a última chamada do amigo. Riggs desligou e relanceou o olhar para uma jovem muito ansiosa.

- Que aconteceu? Que te disse ele? - Como era de esperar, Jackson não estava lá - respondeu Riggs, abanando a cabeça -, mas encontraram provas suficientes para o manterem na prisão para o resto da vida. Incluindo um livro de recortes referentes a todos os vencedores da lotaria.

- Então, sempre era da família de Alicia Crane. - Era o irmão mais velho, Peter - confirmou ele com um aceno grave de cabeça.

- Então, assassinou a própria irmã - disse LuAnn, de olhos esbugalhados.

269

DAVID BALDAM

- Parece que sim. LuAnn estremeceu. - Onde achas que ele está? - Há um milhão de lugares para onde ele pode ir - respondeu Riggs, encolhendo os ombros.

- Enquanto Jackson não for apanhado, a minha vida não vale nada - comentou a jovem com um suspiro. - Nem a tua. Nem a de Charlie. - Os lábios dela tremeram. - Nem a de Lisa. - Levantou-se de um salto e pegou no telefone.

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- Que vais fazer? - indagou Riggs. - Tenho de ver a minha filha. Preciso de saber que está a salvo. - Espera lá. Que lhe vais dizer, e a Charlie? - Que podemos encontrar-nos algures. Quero-a junto de mim. Nada lhe vai acontecer a ela sem me acontecer a mim primeiro.

- Ouve, LuAnn ... - Este assunto não está aberto a discussão. - Pronto, pronto, tudo bem. Onde estão eles? - Da última vez que tive notícias, regressavam à Virgínia. - Que carro conduz Charlie? - O Range Rover - Estupendo. Dá para todos nós. Encontramo-nos com eles amanhã onde quer que estejam. Largamos o carro alugado e vamo-nos em-,@, bora. Instalamo-nos em qualquer lado e esperamos que o FBI faça o seu trabalho. Liga para Charlie enquanto tomo duche.

Passados minutos, quando saiu do chuveiro, Riggs perguntou: - Conseguiste? - Estão num motel nos arredores de Danville, na Virgínia. Disse-lhes que chegávamos lá à uma, da tarde de amanhã.

- Muito bem. Deslizaram para dentro da cama, e Riggs passou o braço bom em` torno da cintura fina dela. Tinha a nove milímetros debaixo da almofada e uma cadeira a servir de cunha sob a maçaneta da porta. Desatarraxaram uma lâmpada, partira-a e espalhara os estilhaços em frente da porta. Se viesse a acontecer alguma coisa, queria ter o máximo de pré-aviso possível. Mesmo assim, ali deitado, ainda estava ansioso.

LuAnn reparou e voltou-se de frente para ele. - Não estás arrependido de te teres envolvido em tudo isto? - Porque havia de estar? - perguntou ele, puxando-a mais para si. - Bem, posso enumerar uma lista: foste apunhalado; anda um psicopata atrás de nós para nos matar; arriscaste-te por mim perante o FBI e deste cabo do teu disfarce. Chega?

Riggs afagou-lhe o cabelo e achou que era preferível dizer-lhe já: podia não ter nova oportunidade.

- Esqueceste-te da parte de eu me ter apaixonado por ti. - Ela ficou sem fôlego. Tentou dizer qualquer coisa, mas não foi capaz. Riggs preencheu o silêncio: - Sei que talvez seja a altura menos apropriada, mas queria que soubesses.

Oli, Matthew - conseguiu LuAnn articular por fim. A voz tremia-lhe; tudo nela tremia. Procurou os lábios dele na escuridão.

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CHARLIE esfregou os olhos para afastar o sono e levantou-se do sofá. Os joelhos doíam-lhe mais do que de costume. Foi ao quarto ao lado verificar como estava Lisa. Dormia a sono solto. O toque do telefone sobressaltou-o. Olhou para o relógio: quase 2 da manhã. Arrebatou o auscultador.

- Charlie? Matt Riggs - apresentou-se uma voz. - Riggs? Onde está LuAnn? Está bem? - Está melhor do que bem. Apanharam-no! Apanharam Jackson! - O tom era de alegria sem peias.

- Aleluia! Onde? - Em Charlottesville. O FBI montou uma armadilha no aeroporto, e ele e o irmão foram lá direitinhos. Estou convencido de que viria a vingar-se de LuAnn. O FBI quer que ela vá de manhã a Washington prestar depoimento. É por isso que estou a ligar. Quero que você e Lisa se encontrem connosco em Washington, no Edifício Hoover. Se partirem já, podemos tomar o pequeno-almoço juntos.

- Lá estaremos. Onde se meteu LuAnn? - Está no outro telefone a falar com o FBI. Diga a Lisa que a mãe gosta muito dela e está ansiosa por vê-Ia.

- Certo. - Desligou e começou a fazer as malas. Achou melhor pôr tudo no carro antes de acordar Lisa. Mais valia deixá-la dormir o máximo possível. Quando soubesse que ia ter com a mãe, a garotinha ficaria incapaz de voltar a adormecer. Parecia que Riggs sempre conseguira resolver tudo.

Mais descontraído do que em alguma ocasião dos últimos anos, levando uma mala debaixo de cada braço, Charlie abriu a porta da frente. Imobilizou-se de imediato. Estava um homem na soleira com a cara tapada por uma máscara negra de esqui e uma pistola na mão. Com um grito de raiva, Charlie atirou-lhe uma das malas para cima, fazendo-o largar a arma. A seguir, agarrou o homem pela máscara e atirou-o para dentro da sala, onde ele foi bater numa parede, caindo. Antes de o intruso conseguir levantar-se, Charlie estava em cima dele, socando-o com golpes da esquerda e da direita, numa exibição de boxe, como se nunca tivesse abandonado o ringue. O homem ficou caído a gemer. Charlie virou a cabeça ao sentir uma segunda presença na divisão. _ Olá, Charlie.

Assim que reconheceu a voz, Charlie precipitou-se sobre Jackson surpreendendo-o com a rapidez. Os dois dardos da arma para atordo atingiram Charlie no peito, mas não antes de ele fazer colidir o seu punho maciço contra o queixo de Jackson, atirando-o contra a porta. Todavia, Jackson continuou a puxar o gatilho, descarregando a forte co rente eléctrica para o corpo de Charlie. Ele caiu de joelhos, tentando impelir-se para a frente, mas o corpo recusava-se a cumprir as suas ordens. Ao tombar lentamente no chão, viu Lisa, aterrorizada, à porta do quarto. Tentou gritar-lhe que fugisse, mas só emitiu uns sussurros. Horrorizada, viu Jackson correr para a pequenita e comprimir-lhe qualquer coisa contra a boca. A criança debateu-se,

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mas de nada lhe serviu. Quando as suas narinas absorveram o clorofórmio, ela caiu no chão ao lado de Charlie Jackson limpou o sangue da cara e levantou à bruta o seu colaborador.

- Leva-a para o carro. Charlie assistiu, indefeso, enquanto o homem levava a inconsciente. Lisa. Jackson ajoelhou-se ao lado dele e, falando numa voz que era imitação perfeita da de Riggs, repetiu:

- Apanharam Jackson! Apanharam-no! - A seguir, soltou um gargalhada.

Charlie ficou calado enquanto o outro tirava um punhal de dentro do casaco, guardando a arma para atordoar; deixou, no entanto, ficar o dardos. Desta vez, não estava preocupado com as provas que deixasse

- Passaste para o lado errado. - Ao dizer isto, o criminoso rasgo até ao ombro a manga da camisa de Charlie.

Tão devagar quanto possível, este procurou flectir as pernas. O rosto contorceu-se-lhe um pouco. Doía, mas ao menos sentia qualquer coisa. O que Jackson não sabia era que um dos dardos atingira o espesso crucifixo do oponente antes de se lhe alojar no peito, pelo que a voltagem que transmitira fora muito inferior ao que Jackson pensava.

- O efeito desta carga é de um quarto de hora - explicou ele. -

golpe que vou executar deverá fazê-lo esvair-se em sangue em dez nutos. Não vai sentir nada do ponto de vista físico. Sob o aspecto me tal, bem, deve ser bastante enervante assistir-se impotente

à morte. - Enquanto falava, Jackson fez um golpe profundo no braço`rJJ Charlie. Quando o sangue da vítima começou a jorrar, levantou-se. Adeus, Charlie. Vou transmitir a LuAnn os seus cumprimentos imediatamente antes de a matar. - Sorriu e saiu da sala.

Centímetro a centímetro, numa progressão agonizante, Charlie ergueu as mãos fortes até as fechar em volta dos dardos. Puxou com quanta força tinha e, pouco a pouco, eles foram-se soltando. Isso não lhe diminuía o entorpecimento, contudo não deixava de o fazer sentir-se melhor. Com o pouco domínio que tinha sobre os seus membros, deslizou para trás até à parede e foi erguendo o tronco até se sentar. Sentia as pernas em fogo, como se tivesse um milhão de agulhas escaldantes nelas espetadas, e o corpo estava coberto de sangue, no entanto conseguiu exercer um impulso suficiente para se levantar. Mantendo-se encostado à

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parede, deslizou até ao armário. Agarrou um cabide de madeira para fatos e arrancou-lhe a barra usada para pendurar as calças. Impelindo-se para longe da parede, atirou-se para dentro do quarto. Com os dentes e uma das mãos, fez o lençol em tiras, pois já conseguia trabalhar mais depressa, com os membros a voltarem a uma aparência de mobilidade normal. Enrolou acima do golpe uma tira comprida, usando então a fina barra de madeira como torniquete. Apesar de improvisado, este exerceu a sua magia salvadora, e o fluxo de sangue estancou. Charlie deu um encontrão ao auscultador para o soltar do gancho e premiu o número de emergência antes de perder os sentidos.

LuANN sentou-se de repente muito direita na cama, como se tivesse os nervos em chama. A respiração era ofegante e tinha o coração aos pulos. Riggs sentou-se também e abraçou-a.

- Que é? - Aconteceu qualquer coisa a Lisa. Ele apanhou-a. Tem a minha pequenina. Oh, meu Deus, estava a tocar-lhe. Eu vi.

- LuAnn, não se passa nada com Lisa. Tiveste um pesadelo. Ela levantou-se de um salto e começou vasculhar no meio da mesa que havia ao lado da cama.

- Onde está o telefone? - Ao dizer isto, descobriu-o. Os dedos premiram as teclas correspondentes ao número do telemóvel. Esperou. - Não atendem.

- E depois? Se calhar, Charlie desligou o telefone. Sabes que horas são?

- Ele não faria isso. - LuAnn tentou de novo, com o mesmo resultado. - Aconteceu qualquer coisa. Passa-se qualquer coisa de mal.

Riggs aproximou-se dela. - Ouve, LuAnn, Lisa está bem. Tiveste um pesadelo. - Rodeou-a COM um braço. - Vamos vê-los amanhã, e vai correr tudo bem. Certo? - Continuou a sussurrar-lhe ao ouvido, e o tom tranquilizador acabou Por surtir efeito. LuAnn permitiu que ele a arrastasse de regresso à cama. Porém, enquanto Riggs se instalava para voltar a dormir, ela ficou a olhar para o tecto, a rezar em silêncio para que tudo não tivesse facto passado de um pesadelo. Havia, no entanto, qualquer coisa no s íntimo que lhe dizia que não era esse o caso.

OS DOIS AGENTES do FBI destacados para a estrada que conduzia a cas de LuAnn bebiam café quente e gozavam a tranquilidade matinal. ' 11 horas, um carro aproximou-se da barreira que tinham montado e d teve-se. A janela desceu do lado do condutor. Sally Beecham olho para um dos agentes, e este acenou-lhe com o braço que passasse. A sair, duas horas antes, para ir

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às compras, a mulher estava muito nervosa. O FBI esclarecera-a de que ela não estava envolvida em qualquer problema, e ao passar desta vez a governanta já parecia mais à vontade

O veículo seguinte a aparecer na estrada e parar atraiu uma atenção especial. O homem mais velho, que conduzia a carrinha, explicou ser jardineiro. O mais novo, no lugar do passageiro, era o seu ajudante Apresentaram documentos de identificação, que os agentes verificara meticulosamente, tendo a seguir aberto a parte de trás da carrinha q confirmaram estar de facto carregada com ferramentas. Deixaram p'@sS

LuANN E RIGGs estavam no parque de estacionamento do motel n arredores de Danville, na Virgínia. Riggs falara com o gerente. Polícia fora chamada na noite anterior. O senhor do quarto 112 tinha sido apunhalado, ficara gravemente ferido e fora evacuado por um helicóptero dos serviços médicos. O gerente não sabia que o homem está com uma criança.

LuAnn cerrou os olhos. Sabia o que sucedera. Sentia-se completamente incapacitada só de pensar em Jackson a tocar em Lisa, a faze -lhe mal, tudo por causa do que ela, LuAnn, fizera ou deixara de faz Riggs viu-a começar a andar de um lado para o outro.

- Precisamos de informações, Matthew. Já. - Anda. - Riggs pegou-lhe na mão e dirigiram-se ao escritório d motel, de onde ele ligou para Masters e explicou a situação.

- Espera um minuto - disse-lhe o outro. Quando regressou ao telefone, o tom de voz era baixo e nervoso. - O helicóptero levou o homem que foi apunhalado no motel para as urgências do Hospital

274

PRIMEIRO PRÉMIO

Universitário de Charlottesville. Estava inconsciente, perdeu muito sangue. Ao princípio da manhã, ainda não tinham a certeza se sobreviveria.

- Houve alguma referência a uma garota de dez anos que o acompanhava?

- Perguntei. O relatório diz que o homem recuperou os sentidos durante uns segundos e começou a gritar um nome.

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- Lisa? Riggs ouviu George pigarrear. - Sim. É a filha dela, não é? O tipo apanhou-a, não foi? - perguntou o a&ente do FBI.

- E o que parece - conseguiu Riggs articular. - Vocês dois podem ser os próximos, Matt - disse Masters com veemência. - Pensa nisso. Podemos proteger ambos, têm de se entregar.

- Não sei. - Olha, podem voltar para casa dela. Tenho a entrada sob vigilância vinte e quatro horas por dia. Se ela estiver de acordo em regressar, encho aquilo de agentes.

- Espera um pouco, George. - Riggs encostou o telefone ao peito e olhou para a companheira. Os seus olhos diziam-lhe tudo o que ela precisava de saber.

- Charlie? - Inconsciente. Um helicóptero evacuou-o para o Hospital Universitário, em Charlottesville.

- Está em Charlottesville? - indagou ela. - Por via aérea, é o que fica mais perto de Danville - assentiu Riggs - e tem um serviço de urgência de primeira escolha. Ele vai receber o melhor tratamento possível. É provável que Jackson tenha raptado Lisa. - Prosseguiu à pressa: - LuAnn, o FBI quer que nos entreguemos. Para nos poderem proteger ...

Ela arrebatou-lhe o telefone da mão e gritou para o bocal: - Não quero protecção. Ele tem a minha filha, e eu vou descobri-Ia. Vou recuperá-la. Ouviram?

- Presumo que seja LuAnn Tyler... - começou Masters. - O senhor limite-se a não se intrometer. Ele mata-a de certeza se vier sequer a suspeitar de que vocês andam por perto.

- Ms. Tyler, a senhora não pode ter a certeza de que ele não lhe tenha já feito qualquer coisa.

A resposta foi surpreendente, tanto pelo conteúdo como pela intensidade:

- Eu sei que ele não lhe fez mal. Por enquanto. Sei muito bem o que ele quer, e não é Lisa. O senhor limite-se a ficar fora do caminho, homem do FBI. Se a minha filha morrer por vocês se intrometerem@` não haverá lugar da Terra onde eu não vos encontre.

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Sentado à sua secretária no bem guardado Edifício Hoover, George Masters sentiu um arrepio ao ouvir aquelas palavras. O barulho que ou. viu a seguir foi o do telefone a ser desligado.

O HospiTAL Universitário da Virgínia estava integrado na Faculdade de Medicina e tinha um centro de urgências de primeira escolha. LuAnn e Riggs apressaram-se corredor fora. Charlie estava num quarto particular. Ela empurrou a porta e entrou, com Riggs logo atrás de si.

LuAnn fitou o amigo deitado na cama. Como se sentisse a sua presença, ele olhou na direcção dela e um sorriso iluminou-lhe a face.,,' LuAnn pegou na grande mão entre as suas.

- Graças a Deus que estás bem. Charlie ia dizer qualquer coisa quando a porta se abriu e um homem de meia-idade com bata branca fez assomar a cabeça.

- Visita de rotina, meus amigos. - Tinha um bloco na mão. apresentou-se. Verificou os indicadores vitais do ferido enquanto falava. - Foi uma sorte Charlie ter tanto jeito para torniquetes.,

- Então, ele vai ficar bom? - indagou LuAnn com ansiedade. 1,1 - Ah, claro. Está fora de perigo. Fizemos-lhe uma transfusão por, causa do sangue que perdeu; o ferimento foi suturado. Só precisa de repouso.

- Sinto-me bem - disse Charlie, soerguendo-se. - Quando é que tenho alta?

- Vamos esperar uns dias até se ter em pé. - Foi claro que o doente não ficou agradado com a resposta. - Passo por cá amanhã de manhã - despediu-se Reese.

Assim que o médico saiu, Charlie sentou-se mesmo. - Sabe-se alguma coisa de Lisa? LuAnn fechou os olhos e baixou a cabeça. As lágrimas deslizaram-@ -lhe por sob as pálpebras. Charlie relanceou o olhar para Riggs.

- Pensamos que ele a raptou, Charlie - informou Riggs. - Eu sei que ele a raptou. Não entrou em contacto contigo, LuAnn? - Vou eu contactá-lo - respondeu ela, abrindo os olhos. - Só tinha de vir ver-te primeiro. Disseram que podias não resistir. - A voz tremeu-lhe, e a mão exerceu maior pressão sobre a dele.

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- Era preciso mais do que um golpe para mandar este teu amigo para o outro mundo. - Fez uma pausa, a debater-se com o que ia dizer a seguir. - Desculpa, LuAnn. O filho da mãe apanhou-a, e a culpa é minha. Ele telefonou a meio da noite a imitar a voz de Riggs. Disse que o FBI apanhara Jackson. Eu devia ter desconfiado de qualquer coisa, mas ele parecia tal e qual Matt.

LuAnn inclinou-se e abraçou-o. - Lisa vai ficar bem, Charlie. - Soou mais confiante do que se sentia. - Ele quer-me é a mim.

- Bem, não podes ir simplesmente entregar-te - comentou Charlie. Começou a levantar-se.

- Que diabo estás a fazer? - interveio ela, incisiva. - Vou vestir-me. - Desculpa. Não ouviste o que o médico disse? - Já sou velho; o meu ouvido foi-se. E eu também. Também me vou, quero eu dizer.

- Charlie ... - Ouve - interrompeu ele, zangado, cambaleando ao tentar vestir as calças. LuAnn agarrou-lhe o braço bom. - Não vou ficar deitado na cama enquanto Lisa está com aquele tipo.

Ela acenou a cabeça em compreensão e ajudou-o a vestir as calças. - És um grande e velho urso rabugento. Sabias? - Tenho um braço intacto. Deixa-me só passá-lo à volta do pescoço daquele tipo.

Riggs ergueu o seu próprio braço ferido. - Bem, entre nós temos dois braços aproveitáveis. Também tenho contas a ajustar com o tipo.

Passado pouco tempo, já os três se encontravam no carro. Chovia a cântaros, e entretanto escurecera quando LuAnn parou numa estação de serviço. Tiro@ um papelinho do bolso e declarou:

- Vou telefonar-lhe. - E depois? - quis Riggs saber. - Ele que me diga o que quer. - Sabes o que ele vai dizer - interveio Charlie. - Vai marcar um encontro, só tu e ele. E se fores, mata-te.

- E se não for, mata Lisa. - Mata-a de qualquer maneira - declarou Riggs violentamente. - Só se eu não lhe deitar a mão primeiro - replicou LuAnn, virando-se para ele.

- Minha querida, tenho muita confiança em ti - afirmou Riggs mas este tipo é do piorio.

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- É verdade, LuAnn - concordou Charlie. - Obrigada pelo voto de confiança, pessoal. - Ela tirou o telemóvel da carteira e marcou o número, após o que olhou para ambos. - Mas lembrem-se de que eu tenho dois braços aproveitáveis.

Riggs e Charlie observaram-na a falar para o bocal, deixando o mero do telemóvel. Desligou e ficou à espera. Não passaram mais três minutos até o telefone tocar. Antes de Jackson conseguir dizer fosse o que fosse, LuAnn inquiriu: - Onde e quando? - Nem um cumprimento? Nada de conversa fiada? Onde estão suas boas maneiras?

- Quero falar com Lisa. Já. - Lamento o que se passou com Charlie - disse ele. Ela não ia dizer-lhe que ele estava sentado mesmo atrás de si e vontade de torcer-lhe o pescoço.

- Quero falar com Lisa! - Pode falar com ela, mas como saberá que não sou eu a a voz? Posso dizer: "Mãe, mãe, venha ajudar-me." Posso dizer *i*@` coisas todas. Portanto, se quiser falar com ela, pode, mas fica sem ow.. tezas. Ainda quer?

- Quero - implorou LuAnn. - Só um momento. Ora então, onde é que eu terei metido a õwis ça?

Riggs esforçava-se por escutar a conversa. Exasperada, LuAnn acabou por abrir a porta e sair do automóvel. Procurava ouvir todos os barulhos de fundo.

- Mãe, mãe, onde está? - Querida, pequenina, é a mãe. Oli, meu amor, lamento imenso. - Ali, desculpe, LuAnn, ainda sou eu - declarou Jackson. - 4IM:

Til mãe, mãe, está? - repetiu a imitação exacta da voz de Lisa. LuAnn

ficou demasiado atónita para dizer fosse o que fosse. A voz que ouvi seguir foi mesmo a de Jackson, vivaz: - Deixo-a falar com ela, a *à 9@, mas quando acabar, vou dizer-lhe precisamente o que deve fazer. Se desviar das minhas instruções ...

Não acabou. Não era preciso. Ficaram ambos ao telefone em cio, só a escutarem a respiração um do outro.

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- Compreende? - Compreendo. - Mal acabara a palavra, ouviu um ruído: um barulho de fundo que lhe provocou ao mesmo tempo um sorriso e um esgar. Olhou para o relógio. Cinco horas. Nos seus olhos surgiu um de esperança.

No minuto seguinte, falou com Lisa, fazendo-lhe rapidamente perguntas cujas respostas só eram do conhecimento da garota. L Jackson voltou à linha e deu-lhe as instruções. Terminou a Ai . =so com uma certeza arrepiante: - Até breve. LuAnn reentrou no carro e falou com uma calma que assombrou os

dois homens:

- Tenho de ligar-lhe amanhã às dez da manhã. Nessa altura, diz-me o local do encontro. Solta Lisa se eu for sozinha.

- Então, troca-a por ti - comentou Matt. - É como vai ser. - LuAnn fitou ambos antes de meter a mudança e arrancar.

Ainda tinha uma carta para jogar. No entanto, Charlie e Riggs não iam ser convidados para o jogo. Já se tinham sacrificado demasiado por ela. Jackson quase matara os dois, e não ia permitir-lhe que voltasse a

tentar com qualquer deles. Competia-lhe a ela salvar a filha, e era assim que devia ser. Fora auto-suficiente quase toda a vida e, verdade fosse dita, era isso que preferia. Havia ainda outra coisa: ela sabia onde estavam Jackson e Lisa.

A CHUVA ABRANDARA por fim, mas os aguaceiros estavam longe de ter terminado. LuAnn pregara um cobertor a tapar a janela estilhaçada da casinha de campo. Charlie e Riggs tinham arrastado para baixo colchões tirados do quarto do piso superior. Haviam decidido ser ali o melhor sítio para passarem a noite.

Exaustos, os dois homens não tardaram a começar a ressonar alto. LuAnn olhou para o relógio; passava da meia-noite. Assegurou-se de que tinha a arma carregada, a seguir trepou pela janela, a fim de evitar o chiar da porta da frente. Deixando o carro, dirigiu-se à arrecadação. Joy ainda lá estava. LuAnn esquecera-se de telefonar a alguém que fosse buscar a égua. Selou o animal e montou. Conduzindo-o para fora da ar-

arrecadação, conseguiu entrar na mata quase silenciosamente. Quando chegou aos limites da sua propriedade, desmontou e levou Joy para a cavalariça. Dirigiu-se então com todo o

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cuidado para o lado da casa. Espreitando à esquina, reparou que o carro de Sally Beecham se encontrava estacionado à frente. Isso intrigou-a. Encolheu os ombros e encaminhou-se para a porta das traseiras.

O barulho que ouvira em fundo durante a chamada de Jackson conduzira-a ali - os ruídos característicos do velho relógio que herdara da mãe, que acabara assim por se revelar o bem mais valioso que possuía. Jackson ligara da sua própria casa, e LuAnn estava convencida de que Lisa se encontrava lá naquele momento.

Inseriu a chave na fechadura e abriu devagar a porta. Deteve-se por Momentos, apontando rapidamente a arma a toda a volta. Como nada ouvisse, avançou pelo corredor, até que se imobilizou. Ouvia vozes. Expirou com lentidão quando a música de um anúncio se tornou audível. Estava alguém a ver televisão. Uma faixa de luz aparecia por baixo da porta do quarto de Sally Beecham. LuAnn manteve-se mais uns segundos à escuta, empurrando depois a porta para dentro e apontando arma pela fresta. O quarto estava às escuras, sendo a única luz a que emanava do televisor. O que ela viu a seguir fê-la imobilizar-se d novo. Sally Beecham encontrava-se mesmo à sua frente a ver televisão Ou não estaria? A sua imobilidade era tal que LuAnn ficou na dúvida s ela estava viva ou não.

Os movimentos de LuAnn tinham produzido algum ruído, e Sall Beechani fitava-a com o horror estampado nos olhos. Ia começar a dize qualquer coisa quando a patroa levou um dedo aos lábios e murmurou:

- Chiu. Está cá gente em casa. Viu alguém? - SaIly parecia confusa. Abanou a cabeça.

Foi nessa altura que LuAnn se apercebeu de uma coisa e empalideceu: Sally nunca estacionava na frente da casa. Ia sempre para a garagem, que tinha comunicação directa com a cozinha. A mão de LuAm apertou a arma com mais força. Fitou novamente a cara. Era difícil de verificar com tão pouca luz, mas não ia correr riscos.

- Ouça, SaIly. Quero que vá para a copa. Eu tranco-a lá só por uma questão de segurança. - A mulher começou a puxar uma mão de trá., das costas. Ela assestou a arma. - E vai obedecer de imediato se na disparo aqui mesmo. Mostre-me a sua arma com a coronha para fora

Quando a pistola surgiu, ela fez sinal para o chão, e a arma emitiu um som metálico ao embater no chão de madeira.

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Quando a outra passou em frente de LuAnn, esta estendeu de súbito a mão e arrancou-lhe a cabeleira, revelando tratar-se de um homem Tinha cabelo curto escuro. Rodou sobre si próprio, mas LuAnn encostou-lhe a sua própria arma ao ouvido.

- Mexa-se, Mr. Jackson! Ou devo dizer Mr. Crane? Ao chegarem à cozinha, ela empurrou-o para dentro da copa e trancou a porta pelo lado de fora. Depois, precipitou-se pelas escadas a ma. Chegou à porta do seu próprio quarto, colocou a mão na maçaneta inspirou fundo e rodou-a.

UM RELÂMPAGO ziguezagueou pelo céu, seguido pelo estrondo ensurdecedor do trovão. No mesmo instante, o cobertor foi arrancado d janela e a chuva começou a entrar. Riggs acordou. Olhou à sua volta viu a janela aberta, deixando penetrar o vento e a chuva. Relanceou olhar para Charlie, que continuava a dormir. Depois, percebeu e levantou-se, cambaleante.

280

PRIMEIRO PREMIO

- LuAnn? LuAnn? - Os seus gritos acordaram Charlie. Num minuto, revistaram a pequena casa. - Não está cá - gritou Riggs.

Precipitaram-se para o exterior. O automóvel ainda lá estava. Riggs deitou um olhar à arrecadação. Tinha as portas escancaradas. Correu para lá e analisou a lama em frente do barracão vazio. Mesmo no meio do negrume, identificou as marcas dos cascos. Seguiu a pista até aos limites da mata. Charlie corria ao seu lado.

- Joy estava no barracão - explicou-lhe Riggs. - Parece que LuAnn regressou a casa. Porquê? O FBI está lá de guarda. Porque iria ela correr um tal risco?

O outro homem empalideceu e quase cambaleou. - Que é, Charlie? - Jackson disse uma vez a LuAnn que, se quer esconder-se uma coisa, o melhor é pô-la bem à vista que ninguém repara.

Foi a vez de Riggs empalidecer ao aperceber-se da verdade. Correram para o carro. Enquanto voavam estrada fora, Riggs pegou no telemóvel. Marcou o número do FBI local e sofreu um choque ao ouvir a voz de Masters na linha.

- Ele está cá, George. Crane está em Wicken's Hunt. Traz a artilharia toda.

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Assim QUE A PoRTA do quarto se abriu, LuAnn entrou como um raio. Mesmo no meio, estava Lisa amarrada a uma cadeira. O barulho que ela ouviu a seguir foi o tiquetaque complicado do seu maravilhoso relógio. Correu para a filha e abraçou-a, e então um laço de corda espessa rodeou-lhe o pescoço, foi apertado com força e cortou-lhe de repente a respiração. Deixou cair a arma. Lisa procurou gritar, num silêncio agoinizante, pois tinha a boca tapada com fita. Pontapeou a cadeira, tentando fazê-la cair num esforço para se aproximar da mãe.

Jackson assistira da escuridão ao lado do toucador, enquanto LuAnn se precipitara ao encontro da filha sem se aperceber da presença dele no quarto. Depois, actuara. A corda estava ligada a um pedaço de madeira, e Jackson apertava cada vez mais. A cara de LuAnn começou a ficar azul, e a vida esvaía-se-lhe à medida que a corda lhe penetrava no pescoço.

- Tiquetaque, LuAnn - sussurrou-lhe ele ao ouvido. - O tiquetaque do relógio. Como um íman, atraiu-a até mim. Bem lhe disse que sei tudo sobre cada pessoa com quem trabalho. Visitei a sua caravana em Rikersville. Escutei o barulho bastante característico deste aparelho @e medição do tempo. E depois vi-o na parede do quarto na noite em que a visitei. A sua reles herança de família. - Soltou uma gargalhada.

- Agora, não se esqueça da sua filha. Lá está ela. - Premiu um interruptor e fê-la rodar com violência para que ela visse Lisa a procurar a cançá-la. - Vai assistir à sua morte, LuAnn, e a seguir será a vez dei Você já me custou um membro da minha família, uma pessoa que e amava. Como se sente com a responsabilidade da morte dela? Puxava cada vez com mais força. - Morra, LuAnn. Faça-o por mim sibilou.

Os olhos da jovem estavam prestes a saltar-lhe das órbitas, os pulmões quase a rebentarem. Ao escutar aquelas palavras trocistas, foi arrastada de volta a um cemitério, a uma pequena lápide. Justamente pai onde ela ia. "Fá-lo pelo paizinho, LuAnn. É tão fácil. Vem ter com paizinho." Pelo canto do olho direito congestionado, mal avistava Lis a inclinar-se para ela do outro lado de um abismo a segundos de se tornar eterno. Nesse preciso momento e de um ponto tão fundo que a J( vem nem sabia possuí-lo, sentiu um poderoso ímpeto de força. Com u guincho, endireitou-se de um salto e logo se inclinou para a frente, erguendo por completo do chão um atónito Jackson. Rodeou as pernas deste com os braços, de modo que ele ficou às suas cavalitas, e precipitou-se para trás, atirando Jackson contra o pesado armário encostado parede. A aguçada aresta de madeira apanhou-o em plena coluna.

Ele soltou um grito de dor e largou a corda. Ao sentir afrouxar pressão, LuAnn dobrou o tronco para a frente, e Jackson voou-lhe por cima dos ombros, indo embater num espelho pendurado na parede. El cambaleou como ébria pelo quarto, a sorver o ar em grandes hausto" Levou a mão ao pescoço e arrancou a corda.

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Jackson esforçava-se por se levantar. Com um berro, LuAnn salto sobre ele, prendendo-o ao chão. Apertando as pernas em redor das dei imobilizou-o. Com as mãos, rodeou-lhe o pescoço. Jackson olhou, nos olhos e percebeu que nunca seria capaz de se libertar daquele a plexo. Fechou os dedos em torno de uma lasca do espelho estilhaçada Golpeou para cima, apanhando-a no braço e cortando através da roupa e da pele. LuAnn não o largou. Jackson retalhou-a vezes sem conta mas ela estava para além da dor. Não o soltava.

Por fim, com as suas últimas forças, ele tacteou sob o braço d LuAnn e pressionou com quanta força tinha. De repente, os braços d jovem perderam energia quando ele encontrou o ponto de pressão, LuAnn deixou de o apertar. Num instante, Jackson empurrou-a e atravessou o quarto a correr. LuAnn, horrorizada, viu-o agarrar na cadeira com Lisa e arrastá-la até à janela. Ela levantou-se e atirou-se na direcção dele, percebendo exactamente as suas intenções. Ele já levantava cadeira com a criança no momento em que a mãe mergulhou, fechando a mão em volta da perna da filha, e a cadeira bateu na janela que dava para o terraço de tijoleira, uns bons dez metros lá em baixo. LuAnn e Lisa caíram no chão no meio de vidros partidos.

Jackson tentou apoderar-se da arma dela, mas LuAnn desferiu-lhe uma potente direita em pleno queixo. Ele tombou. À distância, ouviram-se sirenes. Jackson praguejou em surdina, ergueu-se e correu porta fora.

LuAnn deixou-o fugir. A chorar de alívio, arrancou com cuidado a fita gomada e soltou as cordas que prendiam Lisa. Mãe e filha abraçaram-se com muita força. LuAnn enterrou a cara no cabelo da garota, inspirando todo o odor maravilhoso da sua menina. Até que se levantou, agarrou na arma e disparou dois tiros pela janela.

RIGGS, CHARLIE E OS AGENTES do FBI estavam embrenhados em animada discussão à entrada da estrada particular quando ouviram os tiros. Riggs engatou a primeira e subiu vertiginosamente pela estrada. Os agentes do FBI correram para o respectivo carro.

JACKSON ESPREITOU para o quarto de SaIly Beecham. Vazio. Avistou a arma caída no chão e apanhou~a. Foi nessa altura que ouviu bater. Correu à cozinha e destrancou a porta da copa, de onde saiu Roger Crane, trémulo e de olhos franzidos.

- Ela tinha uma arma, Peter. Meteu-me aqui. Eu ... fiz exactamente o que mandaste.

- Obrigado, Roger. Diz a Alicia que lhe mando cumprimentos. Ergueu a pistola e disparou à queima-roupa contra o irmão, saindo porta fora logo de seguida.

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Ao SALTAREm de dentro do automóvel, Riggs e Charlie avistaram Jackson e correram atrás dele, Riggs à frente, com Charlie imediatamente atrás. Quando os agentes chegaram, precipitaram-se para dentro de casa.

LuAnn cruzou-se com eles nas escadas. - Onde estão Matthew e Charlie? - indagou. Os homens entreolharam-se. - Vi alguém correr para a mata - respondeu um deles. Foi então que ouviram o estrépito de um helicóptero a aterrar no relvado da frente. O grupo precipitou-se para o jardim; LuAnn e Lisa chegaram primeiro junto do aparelho, do qual se apeaou George Masters, seguido por um grupo de agentes do FBI. Olhou para a jovem.

- LuAnn Tyler? - Ela confirmou com um aceno de cabeça. Masters dirigiu o olhar para a garota. - A sua filha? - Sim - disse a interpelada. - Graças a Deus! - Soltou um profundo suspiro de alívio e este deu a mão. - George Masters. FBI. Vim cá para interrogar Charlie Thomas, mas quando cheguei ao hospital, ele já lá não estava.

- Temos de apanhar Jackson ... quero dizer, Crane. Fugiu para mata - referiu ela. - Matthew e Charlie foram atrás dele, mas eu n posso deixar Lisa sem saber que ela fica em completa segurança.

Masters olhou de mãe para filha, imagens chapadas uma da outra. - Transportamo-la neste helicóptero para a sede do FBI aqui e Charlottesville. Ponho-a no meio de uma sala rodeada de meia dúzia d agentes armados até aos dentes. Chega? - Esboçou um sorriso.

- Chega. Obrigada - respondeu ela com um olhar de gratidão. - Também tenho filhos, LuAnn. Ela deu um último abraço a Lisa, depois virou-se e correu para mata, com um enxame de agentes do FBI logo atrás. Lesta de pernas como era e com a vantagem de conhecer o terreno, não tardou a deixá-los muito para trás.

RIGGS ouvia pés a voarem à sua frente. Charlie perdera um pouco terreno, mas ele ainda lhe ouvia a respiração ofegante a pouca distá cia. A mata estava mergulhada na escuridão, e a chuva continuava cair. Riggs destrancou a patilha de segurança da sua arma e deteve abruptamente quando o barulho à sua frente parou. Ouviu um ruído uma fracção de segundo demasiado tarde e foi pontapeado nas costa caindo para diante no chão. Embateu violentamente na terra molhada deslizou pela erva, detendo-se contra uma árvore, onde a arma bateu. impacto reabriu-lhe o ferimento do braço. Quando ele rodou sobre próprio, viu um homem a voar na sua direcção, de pé em riste para atingir com novo golpe demolidor. Nesse momento, Charlie atirou--,de lado contra Jackson, e caíram os dois esparramados.

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Furioso, Charlie desferiu uma série de socos violentos contra Jackson, puxando depois o braço atrás para o golpe que o incapacitaria, Porém, com a velocidade de uma enguia, o outro atingiu em cheio o ferimento de Charlie, o qual soltou um grito e se encolheu sobre si próprio. Caiu para o lado, soltando Jackson, e ficou no chão a gemer.

- Devia ter-te cortado as goelas no motel - cuspiu-lhe o outro. Ia pontapeá-lo selvaticamente na cabeça quando ouviu Riggs gritar-lhe:

- Afaste-se dele ou rebento-lhe a cabeça! Jackson virou-se e viu a arma de Riggs apontada. Afastou-se d Charlie.

- Conhecemo-nos por fim. Riggs, o criminoso. E se discutíssemos um acordo financeiro que o fará imensamente rico? - sugeriu Jackson.

- Não sou criminoso. Fui agente do FBI e testemunhei contra um cartel. Por isso, entrei para a Protecção a Testemunhas.

O outro descreveu um movimento circundante para se aproximar de Riggs.

- Ex-FBI? Bem, então ao menos fico com a certeza de que não me

vai abater a sangue-frio.

- Aí é que se engana - declarou Riggs. Puxou o gatilho, mas a

arma não disparou. O impacto com a árvore inutilizara-a.

Jackson sacou de imediato da sua própria arma e apontou-a a Riggs, que largou a pistola inútil e recuou perante o avanço do inimigo. Parou quando sentiu o vazio atrás de si. Olhou para trás: um precipício. Lá em

baixo corria água, um ribeiro de caudal muito aumentado, que desceria um caminho tortuoso pela propriedade de LuAnn.

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Jackson disparou. A bala bateu no chão em frente dos pés de Riggs, que deu um passinho atrás, ficando a oscilar na borda do precipício.

- Vamos ver como é que nada sem braços. O tiro seguinte atingiu o braço bom de Riggs, que se dobrou sobre si próprio, agarrado a ele e a tentar manter o equilíbrio.

- Apanhe o tiro ou salte - troçou Jackson. - A escolha é sua. Riggs só teve um instante. Ao encolher-se, enfiou o braço que acabara de ser atingido pela ligadura que tinha ao pescoço a sustentar o outro. O que ia fazer já lhe salvara a vida nos seus tempos de agente secreto. Desta vez, não lhe salvaria a vida, mas salvaria a de outras pessoas, incluindo uma que prezava mais do que a sua própria: a de LuArin. A mão fechou-se-lhe em volta da coronha de uma arma compacta presa por fita gomada dentro da ligadura. O cano estava apontado a Jackson à distância de pouco mais de um metro.

- Riggs! - berrou Charlie. - Tu és o próximo, Charlie - disse Jackson sem tirar os olhos de Matt.

Riggs disparou e atingiu Jackson na cara. Ele deixou cair a arma, assombrado. Riggs continuou a puxar o gatilho até o cão bater no vazio. E durante todo esse tempo a expressão de Jackson continuou a ser de total descrença, enquanto o sangue se misturava com a cabeleira e a pele postiças; cremes e pós mutaram-se em carmesim-baço. O efeito geral era fantasmagórico, como se ele estivesse a dissolver-se. Jackson caiu de joelhos e depois para a frente, de cara no chão, imóvel. Fora a

sua última representação.

Nessa altura, devido ao coice repetido dos disparos, Riggs perdeu de vez o equilíbrio. Ouviu Charlie gritar mais uma vez o seu nome, e., então bateu na água e foi ao fundo. Charlie arrastou-se até à borda do precipício, e estava prestes a mergulhar quando uma sombra passou por ele e saltou.

LuAnn fendeu a superfície da água num mergulho limpo e reapareceu quase no mesmo instante. Olhou à sua volta pela superfície da água' em movimento que a arrastava.

- Matthew! - gritou. Nada. Mergulhou. Vinte segundos depois, voltou à superfície.

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- LuAnn! - berrou Charlie. Na margem, tropeçava por entre as árvores e arbustos espessos, a tentar manter-se a par dela.

Ela ignorou-o e mergulhou de novo. Quando reapareceu, agarrava, Riggs pelo peito, e eram ambos arrastados pela corrente. Ele tossia e, cuspia água enquanto os seus pulmões lutavam para funcionar. Ela tentou nadar perpendicularmente à corrente, mas o avanço era reduzido.@' Estava a gelar. Mais um minuto e podia muito bem ficar incapacitada por hipotermia. Riggs era um peso morto, e LuAnn sentia as forças a faltarem-lhe. Pôs as pernas em tesoura a rodearem a parte superior do tronco do companheiro, num ângulo que mantivesse a cara deste acima da água.

Olhou desesperadamente à procura de uma saída. Avistou uma forte, ramada suspensa sobre a água. Talvez conseguisse. Preparou-se, calculando distâncias e alturas. Apertou as pernas em redor de Riggs e deu' então um impulso. As mãos fecharam-se-lhe em volta do ramo e aguentou firme. Içou-se, puxando ambos parcialmente para fora de água.,,.. Baixou os olhos e viu-o a olhar para ela com a respiração entrecortada. Depois, horrorizada, percebeu que Riggs estava a tentar soltar-se das, suas pernas.

- Matthew, não! Por favor! - Não havemos de morrer os dois, LuAnn - tartamudeou ele por entre os lábios azulados. Redobrou os esforços, obrigando-a agora a lutar contra ele, contra a corrente e contra a penosa dor nos seus membros. Pela primeira vez na vida, LuAnn perdeu as forças e largou-se, , começando a cair. O braço possante que lhe rodeou o corpo impediu, que a queda se consumasse, e logo a seguir ela sentiu-se a ser arrancada, às águas juntamente com Riggs.

Encavalitado num tronco de árvore, Charlie, indiferente ao braço ferido, roncou e bufou e lá conseguiu pô-los em segurança numa estreita faixa de terra na margem, onde todos os três tombaram, exaustos. As pernas de LuAnn continuavam enroladas em torno de Riggs. Ela deitou-se para trás, com a cabeça sobre o peito de Charlie, que arfava devido ao esforço. LuAnn deslizou então a sua mão direita até Riggs, que lhe pegou e a encostou à face. Com a esquerda, LuAnn apertou o ombro de Charlie. Este cobriu a mão dela com a sua. Nenhum disse palavra.

- PRONTO, ESTÁ TUDO TRATADO - informou Riggs ao desligar o telefone. Estavam no escritório dele: LuAnn, Charlie e Lisa.

No exterior, a neve caía. O Natal aproximava-se a passos largos. - E que tal? - quis LuAnn saber. Ela e Charlie estavam recuperados. Riggs já não tinha o braço ao peito, e o gesso que tivera de usar por causa do osso que a bala de Jackson partira já fora removido há pouco tempo.

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- Não é grande coisa. As finanças acabaram os cálculos dos impostos atrasados que devias. Com multas e juros de mora, monta a todo o dinheiro que tinhas, todos os teus investimentos e todas as tuas propriedades, incluindo Wicken's Hunt. - Conseguiu esboçar um sorriso. - De facto, ainda tinhas que pagar mais sessenta e cinco cêntimos que eu adiantei sem cobrar nada por isso.

- Não posso crer - resmungou Charlie. - Depois de tudo por que ela passou. Desmantelou a organização criminosa de Crane; o FBI faz figura de herói; confiscaram os bens dele (milhões de dólares para o Tesouro), e LuAnn fica sem nada. Não é justo!

LuAnn pousou uma das mãos no ombro do furibundo Charlie. - Deixa lá, meu amigo. Eu não merecia nada daquele dinheiro e quis pagar o que devia. Só quero voltar a ser LuAnn Tyler. Foi o que eu disse a Matthew. Mas não matei ninguém. Todas as acusações contra mim foram retiradas, certo? - Olhou para Riggs a pedir confirmação.

- Certo. Federais, estaduais, tudo. Estás livre como um passarinho. - Pois, e pobre como um rato de sacristia - acrescentou Charlie. - As finanças ainda me podem vir pedir mais dinheiro? - Não, mas, mesmo que viessem, não tens mais dinheiro. - Talvez pudéssemos mudar-nos para aqui, mãe - disse Lisa, apressando-se logo a acrescentar: - Quero dizer, por algum tempo.

A mãe sorriu-lhe. Contar a verdade à filha fora a coisa mais difícil que alguma vez fizera, mas a garota aceitara as revelações de maneira admirável. Agora, ao menos, a relação entre as duas podia assumir uma

aparência de normalidade.

Riggs olhou para LuAnn. - Eu próprio estava a pensar mais ou menos isso. Desculpam-nos por um minuto? - perguntou a Charlie e Lisa.

Pegou no braço de LuAnn, e saíram os dois da sala. Charlie e Lisa olharam para eles e trocaram sorrisos.

RIGGS FEz LuAnn sentar-se à lareira e postou-se à sua frente. - Adorava que se mudassem para cá. No entanto - No entanto, o quê? - interrogou ela. - Estava a pensar numa coisa mais permanente. Quero dizer, ganho bem a vida e ... bem, como já não tens aquele dinheiro todo ... Ela inclinou a cabeça, interessada. - Eu nunca quis que pensasses que andava atrás da tua fortuna. Isso era uma espécie de barreira que eu não conseguia contornar, mas agora que

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já não és rica, quero que saibas ... - Não foi capaz de continuar, subitamente assustado pelas águas pro fundas em que se aventurara.

- Amo-te, Matthew - declarou LuAnn com simplicidade. As feições de Riggs descontraíram-se. Já não parecia atemorizado Na realidade, nem se lembrava de alguma vez se ter sentido tão feliz.

Também te amo, LuAnn Tyler. Já foste à Suíça? - inquiriu ela. Não - retorquiu Riggs, surpreso. - Porquê? Sempre pensei lá passar a lua-de-mel. É tão romântica, tão bonita. Em particular na época do Natal.

- Bem, querida - Riggs parecia de novo perturbado -, eu trabalho bastante, mas os empreiteiros de província não ganham o suficiente para esse tipo de coisas. Lamento. - Humedeceu os lábios, nervoso.

Em resposta, ela abriu a carteira e tirou um papelinho com o número de uma conta num banco suíço. A conta fora aberta com cem milhões de dólares: a devolução do capital inicial por parte de Jackson Estava lá todo à sua espera. Só em juros, dava seis milhões por ano

Afinal, sempre ficara com o prémio da lotaria. E desta vez não se sentia minimamente culpada. Parecia-lhe mesmo que o merecia. Passara últimos dez anos a tentar ser quem não era, fora uma vida de grande fausto e grande infelicidade. Agora, ia passar o resto da vida a ser que de facto era e a apreciá-lo. Tinha uma filha bonita e saudável e dois homens que a adoravam. Não haveria mais fugas nem esconderijos p LuAnn Tyler. Sentia-se verdadeiramente abençoada. Sorriu ao companheiro e afagou-lhe o rosto.

- Sabes que mais, Matthew? - Não. - Acho que não vamos ter problemas - redargiu ela imediatamente antes de o beijar.

APós ANOS a escrever ficção enquanto exercia advocacia, David Baldacci tornou-se famoso literalmente de um dia para o outro quando foi publicado o seu primeiro romance, Poder Absoluto, em 1996. Como ele próprio recorda:

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- Enviei o livro numa segunda-feira, a Warner Books aceitou-o de imediato e fiquei rico na terça-feira.

Seguiram-se mais dois best sellers em anos consecutivos, Controle Total e agora Primeiro Prémio. Assim, David Baldacci ficou em condições de abandonar a advocacia.

Visto que em três anos publicou três best sellers, estará a tornar-se um hábito um best seller por ano?

A resposta d autor é um rotundo "Não", e justifica:

- Se há coisa que quero evitar, é uma fórmula fixa de escrita. Quero ser capaz de escrever sobre qualquer tema que me interesse, e há muitas coisas que me interessam.

Relativamente a este seu primeiro aparecimento nas Selecções do Livro, David Baldacci declarou:

- Eu disse aos meus pais que fiquei com a certeza de que era um escritor bem-sucedído quando soube que um dos meus romances ia integrar um volume das Selecções do Livro. Eu cresci com estes livros, foram eles que me deram a conhecer grandes vultos da literatura e ajudaram a fazer de mim um ávido leitor para toda a vida.

O autor vive na Vírgínia com a mulher, Michelle, e os dois filhos.