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SISTEMA DO RESERVATÓRIO/LAGO CAPINGUI Razões da contaminação por poluentes Tau Golin 1 O Reservatório do Capingui abrange os municípios de Mato Castelhano, Marau e Passo Fundo. É formado pelas nascentes do rio Capingui (Rio de Baixo do Capim; ou Rio do Capim), do riacho Gojkusá (Rio Branco) e em torno de seis córregos, além de olhos d’água. Os fluxos principais não correm mais que 3 km com baixíssimo volume até chegar na formação da alagada. As nomenclaturas desta hidrografia testemunham o povoamento do território a 12 mil anos. Inicialmente pelos povos originários da família Jê (Kaingang contemporâneo) e, mais tarde, também Guarani. Capingui, ou Capigui, é um vocábulo Guarani; e Gojkusá, Kaingang. Antes da construção da barragem, as águas do Capingui e do Gojkusá, vindas do Noroeste e do Nordeste, respectivamente, encontravam-se ao sul da atual Ilha da Biruta (coordenadas 28 o 20’34.35’’S / 52 o 12’35.77’’O). Com a formação do lago, perderam o seu leito natural. No espaço do rio Capingui, hoje involucrado no reservatório, entre o canal do Balneário do Prado até o espaço sul da Ilha da Biruta existe uma depressão de até 10 metros em relação a elevação da calha geológica original do rio, onde foi edificada a taipa, com excepcional engenharia hídrica para a década de 1940. Com um projeto de arco- gravidade, feita em concreto simples e pouco cimento, foi concluída em 1949. Com problema de impermeabilidade, depois teve que receber injeções de calda de cimento. Por suposto, mesmo antes da construção da taipa, o rio Capingui somente tinha continuidade depois de encher a depressão, formando um lago em forma horizontal. 1 Jornalista, pós-doutor em História, mestre (Marinha do Brasil), instrutor (Federação Internacional de Vela e Motores). 1

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SISTEMA DO RESERVATÓRIO/LAGO CAPINGUIRazões da contaminação por poluentes

Tau Golin1

O Reservatório do Capingui abrange os municípios de Mato Castelhano, Marau e Passo Fundo. É formado pelas nascentes do rio Capingui (Rio de Baixo do Capim; ou Rio do Capim), do riacho Gojkusá (Rio Branco) e em torno de seis córregos, além de olhos d’água. Os fluxos principais não correm mais que 3 km com baixíssimo volume até chegar na formação da alagada. As nomenclaturas desta hidrografia testemunham o povoamento do território a 12 mil anos. Inicialmente pelos povos originários da família Jê (Kaingang contemporâneo) e, mais tarde, também Guarani. Capingui, ou Capigui, é um vocábulo Guarani; e Gojkusá, Kaingang.

Antes da construção da barragem, as águas do Capingui e do Gojkusá, vindas do Noroeste e do Nordeste, respectivamente, encontravam-se ao sul da atual Ilha da Biruta (coordenadas 28o20’34.35’’S / 52o12’35.77’’O). Com a formação do lago, perderam o seu leito natural.

No espaço do rio Capingui, hoje involucrado no reservatório, entre o canal do Balneário do Prado até o espaço sul da Ilha da Biruta existe uma depressão de até 10 metros em relação a elevação da calha geológica original do rio, onde foi edificada a taipa, com excepcional engenharia hídrica para a década de 1940. Com um projeto de arco-gravidade, feita em concreto simples e pouco cimento, foi concluída em 1949. Com problema de impermeabilidade, depois teve que receber injeções de calda de cimento.

Por suposto, mesmo antes da construção da taipa, o rio Capingui somente tinha continuidade depois de encher a depressão, formando um lago em forma horizontal.

Localizado no Planalto Meridional, o reservatório está em uma altitude relativa de 645 metros. Acima dele, a topografia sobe mais 90 metros, constituindo a parte mais elevada da região. Nela encontra-se a rede hidrográfica que ainda não encorpa até chegar nas águas retidas pela taipa, o que resulta em captação pouco expressiva.

1 Jornalista, pós-doutor em História, mestre (Marinha do Brasil), instrutor (Federação Internacional de Vela e Motores).

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De outro lado, a ocupação imobiliária tem terminado com pequenas nascentes que, no conjunto, são importantes para o sistema.

No passado já distante, o Reservatório do Capingui, de fato, era um paraíso. Por estar na parte mais elevada do Planalto Meridional, em seu ecossistema, topograficamente não era depositário de poluentes pela inexistência de rios a montante e baixa ocupação humana. Todavia, ainda no tempo da baixa presença demográfica e uma navegação incipiente, as pesquisas demonstravam a gradativa contaminação da água e solo do reservatório, em especial por coliformes fecais, óleos, graxas e pesticidas.

O sinal de que o paraíso estava sendo profanado apareceu no período de 2001/2002. Os biólogos Juliano Bonatti e Carla Tedesco detectaram que as águas não tinham mais o padrão de boa qualidade. As mostras de verão demonstraram a contaminação por coliformes fecais, óleos e graxas. Em 2003, em estudo com sedimento de profundidade (não realizado nas margens rasas), a química Clóvia Marozzin Mistura auferiu diferentes tipos de moléculas orgânicas associadas ao uso de agroquímicos, com algumas moléculas vinculadas a produtos proibidos há muitos anos. Ninguém se preocupou em sustar a tragédia anunciada por estes indicadores preliminares.

Para compreender a rápida degradação do Reservatório do Capingui é necessário observar a sua movimentação sistêmica, tendo claro o seu desenho formativo, as direções das correntes e o sistema de ventos predominantes.

O formato do Reservatório é de “Y”, com diversas enseadas de diferentes tamanhos, podendo-se considerar em torno de 20 as mais importantes. Ilustrativamente, pelas duas pernas superiores do “Y” entra a água; a saída é pela base. Este detalhe é fundamental. Compreender que a passagem da água não é pelo nível mais fundo da calha, que poderia aliviar um pouco o reservatório dos sedimentos, dos poluentes e da erosão. As duas únicas saídas são por cima da taipa e pelas comportas – à meia altura. O topo da taipa está a aproximadamente 20 metros acima da parte mais funda da barragem; e as bocas das duas comportas, a 12 metros. Na prática significa dizer que tudo que está abaixo das bocas das comportas (12 metros de profundidade) não sai mais do reservatório, pois a sua natureza é de “poço”.

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Um bom exemplo visível é o dos óleos dos motores e de cozinha. Qualquer criança sabe que os óleos flutuam na água, não se misturam, exceto em situações técnicas e químicas muito especiais executadas pelos humanos. Logo, se o reservatório estivesse em um rio de calha geométrica e margens paralelas, ainda haveria a possibilidade de parte do óleo ser levado para a taipa pela corrente e, em situações muitos raras, passar pela taipa (por cima, ou entrando nas bocas das comportas, quando a superfície da água estivesse no seu nível), indo contaminar a freguesia abaixo dela. Mas a Barragem do Capingui não é rio, é um reservatório/lago. Não tem correnteza.

As únicas correntes são as ondas de superfície produzidas pelo vento. E aqui está a outra causa que impede a “despoluição” de óleos. O regime de ventos predominantes constitui um escudo de superfície da taipa, formando ondas e correntes em direção as enseadas, onde deposita os poluentes.

Esta realidade chega a condição de crime ambiental e condenação presente/futura do reservatório quando entram em cena as embarcações com motores potentes, os jet-skis com jatos de turbos que vão a 10 metros de distância. Suas movimentações além de lançarem combustíveis na alagada revolvem o fundo, trazem sedimentos para a superfície, que envolvem os óleos e os depositam novamente. Os óleos aprisionados nos sedimentos (especialmente no lodo/barro) ficam para sempre. Tenha-se a consciência também que, no geral, os jet-skis possuem motores de “dois tempos”, poluentes, que lançam junto com o jato do turbo em torno de 10 (dez) litros de gasolina com óleo na água em aproximadamente 2 (duas) horas de tráfego. Conforme estudo da California Air Resources Board, órgão que controla a poluição nos Estados Unidos, os jet-skis jogam até 30% do combustível misturado ao óleo diretamente na água, sem queimar, aumentando consideravelmente os indicadores poluentes. Associe-se a esta desgraça a realidade que a maioria dos motores são desregulados e a maioria dos jet-skis em uso verdadeiras sucatas levadas

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para os ecossistemas. No geral, hélices potentes e jatos de motonáuticas são como misturadores dos poluentes com sedimentos que acabam decantados nos solos dos espaços aquáticos.

Esta é a realidade vigente que condenou o Reservatório do Capingui em poucos anos. Uma gota de óleo lançada em suas águas não sai mais. Vai ficar permanentemente nas enseadas ou misturado com os sedimentos do fundo.

Os danos dos óleos provocados no meio ambiente estão fartamente demonstrados pela ciência, pelos químicos, pelos biólogos, etc. Até um imbecil de parcas luzes pode perceber. Os óleos combustíveis necessitam longuíssimo tempo para decomposição na natureza. Em muitos casos, a exemplo do óleo de cozinha, são intermináveis. Não é coisa nem para nossos bisnetos...

Para quem já chegou a condição de homus sapiens deveria explodir como uma bomba de megatons de vergonha em seus cérebros o fato científico de que 1 litro de óleo pode poluir cerca de 1 milhão de litros de água. É o volume que um indivíduo bebe em 14 anos de vida.

É lindo e fuleiro as cozinhas que rodeiam as margens do Capingui. Mas aqueles que largam óleo de cozinha pelos encanamentos deveriam considerar que esta gordura atrai pragas que podem transmitir diversas doenças para humanos e animais, a exemplo da leptospirose, febre tifoide, cólera, salmonelose, hepatites, esquistossomose, amebíase e giardíase.

A diminuição vertiginosa de peixes no Capingui se deve objetivamente a navegação e a poluição. Mesmo na pior seca, comportas abertas, o reservatório ainda mantém um lago considerável de até 12 metros de profundidade. O peixe sumiu porque os hélices levantam os sedimentos que formam uma espécie de “liga” com o óleo. Esta pasta envolve ovas e alevinos e os levam para o fundo impedindo os ciclos de vida. O jet-ski destrói tudo que está na sua frente quando o seu turbo suga a água e moi dentro da engrenagem interna da motonáutica. Mas a barbaridade não fica por aí. Quando a água sai pelo jato que lhe dá propulsão destrói o que está atrás em até 10 metros, além de revolver grande extensão do fundo. Este crime chega a proporções alarmantes porque muitos motoqueiros da água, ao saberem que o jet-ski está proibido judicialmente no Capingui, não se expõem na alagada principal, em frente ao Clube Náutico), vão pilotar, fazer “cavalo-de-pau”, manobras radicais, nas enseadas mais escondidas e junto as nascentes, para onde os peixes vão para desovar durante a piracema.

Não fosse isto, o óleo que fica na superfície (e é possível vê-lo em grande quantidade em todas as enseadas) impede a passagem de luz e oxigênio, provocando a morte das espécies aquáticas, como o fitoplâncton (algas microscópicas que produzem oxigênio), responsável pela cadeia alimentar dos ecossistemas aquáticos e, estimam os cientistas, produzem em torno de 98% do oxigênio da atmosfera terrestre.

Associe-se a estes danos os entulhos deixados a granel no Capingui. Os filtros dos cigarros e os chicletes dos relaxados, levam 5 anos para se decomporem na natureza; o nylon, de 30 a 40; o copo plástico, de 200 a 450; as latas de cerveja e outros recipientes de alumínio, as tampas de garrafas, as pilhas, de 100 a 500; as garrafas e frascos de vidro e plástico, ou luvas de borracha, indeterminadamente; embalagem longa vida, alumínio, 100; pet, mais de 100; metais, 450; plásticos (embalagens e equipamentos), até 450 anos.

Mas conhecimento técnico não cria cidadão. Isto depende das convicções éticas e morais dos indivíduos, das noções de coletividade.

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De todas as posições recentes sobre o reservatório, inclusive daqueles que só reivindicam águas a níveis altos para continuar poluindo, cujo egoísmo, hipocrisia e baixa civilidade, a realidade é incontornável. E contra os fatos não há argumentos. As condições da natureza e do tipo de formação de reservatório/lago do Capingui requerem cuidados especiais e um gerenciamento fundamentado na legislação. Por razões muito menores diversos municípios e estados proibiram a navegação em barragens, lagos e lagoas. Apenas um exemplo, desde 2012, o Paraná proibiu embarcações movidas pela combustão de hidrocarbonetos (gasolina, diesel, querosene, entre outros) em reservatórios, permitindo somente embarcações como caiaques, veleiros e barcos movidos a eletricidade.

Por certo, em grande parte, as infrações se devem ao desconhecimento sistêmico do reservatório, causas de sua fragilidade e a necessidade de medidas especiais para protegê-lo e preservá-lo. O mesmo não se pode dizer do banditismo consciente, bárbara militância que considera tudo extensão de sua casa, sem a existência de espaço público civilizado. Então, quando no Capingui se formar uma comunidade cidadã, se reencontrará o paraíso perdido, ecossistema despoluído de coliformes fecais, óleos, pesticidas e barulho. Se terá a convivência harmoniosa nas águas, com embarcações condizentes com o meio ambiente de uma navegação limpa, o retorno seguro da criançada na água, dos nadadores e remadores. De tudo que fortalece a afetividade humana e combate a barbárie...

Os ventos predominantes formam correntes de superfície que empurram e mantêm os poluentes nas enseadas. Nestas áreas de menor profundidade, os hélices dos motores e os jatos dos jet-skis levantam os sedimentos que aprisionam os poluentes e os levam para o fundo, onde permanecem.

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Enseada entre o Clube Náutico Capingui e o antigo horto da CEEE completamente contaminada por óleo.

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Óleo que estava flutuante, com a baixa da água foi depositado sobre a superfície do fundo, já todo contaminado. Enseada Clube Náutico Capingui - Horto da CEEE

Óleo misturado com o sedimento na estratigrafia de fundo. Área de banhista do Clube Náutico Capingui.

Espuma “misteriosa” na costa produzida pela onda de superfície durante o vento Nordeste.

Taipa do Reservatório do Capingui cheio, o que é uma raridade.

Vídeo sobre contaminação da Barragem do Capingui:https://www.youtube.com/watch?v=hL16vDiGSwQ

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