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HORIZONTES BRANCOS Charles Kervern Portugália Editora BIBLIOTECA DOS RAPAZES I - A FLECHA NEGRA, R. L. Stevenson II - AVENTURAS DE Um RAPAZ NAS FLORESTAS DO Amazonas, Balantyne III - A ILHA DE CORAL, Ballantyme IV - O CAVALO PRETO, Anna Sewell V - O PIRATA, Marryat VI - O Rapto, R. L. Stevenson VII - PEDRO, PESCADOR DE BALEIAS, Ifingston VIII - AVENTURAS DE Tom SAWYeR, Mark Tuþain IX - HISTóRIA DUM MARINHEIRO, Marryat X - O –LTIMO MOICANO, Fenymore Cooper XI - VIAGENS DE GULLIVER, J. Swift XII - O ROBINSON SUí€O, R. Wysa XIII - A Vida e as Aventuras de ROBINSON CRUSOE, Daniel Defoe XIV - AVENTuRAS DE HUCKLEBERRY FINN, Mark Twain

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HORIZONTES BRANCOS

Charles Kervern

Portugália Editora

BIBLIOTECA DOS RAPAZES

I - A FLECHA NEGRA, R. L. Stevenson

II - AVENTURAS DE Um RAPAZ NAS FLORESTAS DO Amazonas,

Balantyne

III - A ILHA DE CORAL, Ballantyme

IV - O CAVALO PRETO, Anna Sewell

V - O PIRATA, Marryat

VI - O Rapto, R. L. Stevenson

VII - PEDRO, PESCADOR DE BALEIAS, Ifingston

VIII - AVENTURAS DE Tom SAWYeR, Mark Tuþain

IX - HISTóRIA DUM MARINHEIRO, Marryat

X - O –LTIMO MOICANO, Fenymore Cooper

XI - VIAGENS DE GULLIVER, J. Swift

XII - O ROBINSON SUí€O, R. Wysa

XIII - A Vida e as Aventuras de ROBINSON CRUSOE,

Daniel Defoe

XIV - AVENTuRAS DE HUCKLEBERRY FINN, Mark Twain

XV - VIAGENS DE TOM SAWER, Mark Twain

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XVI - DOM QUIXOTE DE LA MANCHA, Cervantes

XVII - O CAPITŽO FRACASSe, Théophile Gautier

XVIII - OS CA€ADORES DO ARCANSAS, Gustave Aimard

XIX - Um Pirata de Quinze Anos, Louis Garneray

XX - UM RApAZ ‘S DIREITAS, Odette de Saint-Maurice

XXI - MOBY DICK, Herman Melville

XXII - VIAGENS, AVENTURAS E COmBATES, Louis Garneray

XXIII - Matador de Leões,

XXIV - OS JOVENS CA€ADORES DO MISSISS‹PI, Mayae Reid

XXV - A ILHA DO TESOURO, R. L. Stevenson

XXVI - FéRIAS GRANDES, Odette de Saint-Maurice

XXVII - ROBIN DOS BOSQUES, Alexandre Dumas

XXVIII - O Cão CRUSOé, Ballantyne

XXIX - SCARAmOUChE, Rafael Sabatini

XXX - TOm BROWN NA ESCOLA, Thomas Hughes

XXXI - OS MERCADORES DE PELES, Ballantyne

XXXII - OS TRˆS MOSQuETEIROS, Alexandre Dumas

XXXIII - BENITO CEREnO, Herman Melville

XXXIV - HORNBLOyER ENTRA NA MARInHA, C. S. Forester

XXXV - AMIGOS, Odette de Saint-Maurice

XXXVI - HORIZONTES BRANCOS, Charles Kervern

XXXVII - OS CAVALEIROS DA Tábola REDONDA

XXXVI HORIzoNTES BRANCOS

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CHARLES KERVERN

Charles Kervern, de seu verdadeiro nome Charles Belbéolh, nasceu em Landerneau, na Finisterra (França).

Fez os seus estudos na Universidade de Paris, onde se licenciou em História. Matricula-se depois na Marinha Mercante e acaba o curso em 1934. Seis anos depois é nomeado chefe do Grupo Blindado de Reconhecimento, combate na frente francesa e é feito prisioneiro pelos alemães, com toda a sua unidade. O seu cativeiro dura cinco anos, durante os quais tenta trˆs evasões, sem resultado. Finalmente, em 1945, consegue voltar a França.

Fizera-se jornalista em 1935, especializado em assuntos marítimos. O livro que hoje apresentamos é nitidamente marcado pela sua vida aventurosa a que a guerra o Obrigou e a carreira de jornalista: tem uma maneira muito especial, muito sua, de tecer a trama dos seus romances, quase todos vividos no mar, com um enredo policial inteligentemente forjado para gente nova.

CHARLES KERVERN

HORIZONTES BRANCOS

ROMANCE

Tradução do francˆs

WANDA RUIVO

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Título original

LeS HORIZONS BLANCS

PORTUG†LIA Editora

LISBOA

PEQUENO GLOSSárIO DE TErmos MAR‹TImoS

QUE FIGurAM NO TEXTO

Adernar- inclinar-se o navio para um lado até a borda chegar à água, provocando o risco de naufrágio.

Adormecer-afocinhar o navio em andamento, mergulhando a proa demasiadamente na água e assim se conservando muito tempo, em risco de naufrágio.

Adriça - cabo empregado em içar velas, vergas, pavilhões, bandeiras e sinais.

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Amainar - (a vela) arriar ou apertar o pano, quando a força do vento faz perigar a navegação e é necessário diminuir a velocidade ao navio; (o vento) diz-se quando diminui a velocidade do vento.

Amarras - cabos empregados na manobra do navio, para ancorar ou atracar.

Amura - parte interior à proa de cada um dos bordos do navio.

Amurada - A borda interior do costado do navio em que se fixam os cabos que seguram os mastros.

Andar à rola - vogar sem governo, ao impulso das ondas.

Aparelhar - aprontar o navio para largar à primeira ordem.

Armador - proprietário de navios.

Armar - prover o navio de mastros; vergas, cabos, embarcações e todos os apetrechos necessários para a navegação.

Babugem - espuma causada em volta do navio pelo seu andamento.

Baleeira - embarcação larga, destinada a auxiliar a faina do navio no mar, como na pesca da baleia.

Baleeiro - navio de grande porte, comum nos mares do Norte, especialmente construído e aparelhado para a pesca da baleia.

Beliche - cama fixada em postes de madeira ou ferro, a um canto do camarote ou da coberta, podendo ser fixada mais de uma cama, uma sobre outra, para alojar o maior número de pessoas no mesmo espaço.

Bojo - a parte mais redonda e cheia do costado do navio.

Bolina - cabo que sustenta a vela para permitir manobrá-la conforme o vento.

Bombordo - o lado esquerdo do navio.

Braça - medida de comprimento, adoptada sobretudo para calcular a profundidade da água em que o navio se encontra.

Bujarrona - vela da proa envergada num pequeno mastro que sobressai da proa.

Cebo - toda a corda de linho ou aço que se emprega na manobra do navio ou na fixação dos mastros.

Cabrestante - aparelho instalado no convés para a manobra de lançar ou levantar a âncora ou içar as embarcações de bordo.

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Calado - a parte do casco do navio mergulhada na água.

Camarote - quarto na parte superior do navio, que também recebe o nome de câmara e de cabina.

Canoa - pequena embarcação semelhante à baleeira, destinada s•bretudo ao serviço dos oficiais de bordo.

Castelo - parte elevada do navio, que recebe o nome de castelo da proa, da popa (ou ré) e de meia-nau, conforme o ponto em que se encontra.

Cavername - conjunto de cavernas do navio, que são balizas arqueadas no interior, para fixar e consolidar o costado e o fundo.

Cavilha - haste de ferro ou madeira que serve para fixar cabos.

Chata - pequena embarcação de fundo chato, apenas com um ou dois remos.

Ciar - remar de forma a dar à embarcação um rumo contrário.

Clíper - navio de vela de grande tonelagem, de formas esguias à proa e à ré, de muitos mastros e velas, condições estas que lhe imprimem grande velocidade.

Coberta - convés interior do navio, destinado a acomodações da tripulação.

Convés - todo o pavimento ao longo do navio.

Costado - toda a parte lateral do casco do navio.

Coxia - espaço livre que forma corredor entre as obras do navio ou da carga arrumada.

Desarmar - retirar todo o aparelho de manobra, como mastaréus, vergas, cabos, do navio que deixa de navegar por qualquer motivo.

Dóri - pequena embarcação de fundo chato, curva na proa e popa, empregado pelos navios bacalhoeiros e baleeiros para o lançamento da linha de pesca.

Embarcação - designação genérica das baleeiras, escaleres, etc., transportados a bordo e destinados a pequenos serviços.

Embornal - abertura feita no convés para escoamento das águas.

Embricar - processo de construção que consiste na sobreposição das chapas do costado em vez de ajustá-las uma a uma.

Entreponte - passagem construída entre a ponte e o convés, donde é dirigida a manobra do navio.

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Equipagem - a tripulação do navio, excepto os oficiais.

Escaler - embarcação provida de leme, remos, mastro e vela, para auxiliar a faina do navio em pleno mar ou outros serviços entre o navio fundeado ao largo e a terra.

Escota - cabo usado na manobra da vela, para lhe dar a posição mais conveniente à direcção do vento.

Estibordo - o lado direito do navio.

Gajeiro - marinheiro de vigia na gávea.

Gávea - conjunto de vergas, velas e mastaréus num mastro.

Giba - vela içada na bujarrona.

Ginga - remo improvisado que, encaixado na popa de uma pequena embarcação, serve para a impelir.

Grumete - marítimo no inicio da sue carreira; na marinha mercante portuguesa, tem em comum a designação de moço de convés, de bordo, de cozinha, de câmara, etc.

Guinada - desvio súbito do navio, por erro de manobra, por força do mar ou por determinação do oficial de quarto.

Gurupés - pequeno mastro saliente na proa para armar vela.

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Ir - navio de dois mastros com vela latina, o da proa com leve inclinação para a frente.

Imediato - oficial de navegação logo abaixo do capitão e que o substitui no comando do navio.

Lastro - qualquer corpo pesado que se coloca no porão ou no fundo do navio, para lhe aumentar a estabilidade.

Linhe de água - linha traçada na pintura do casco em toda a volta, para marcar o ponto máximo em que o navio pode carregar sem perigo de se afundar.

Lugre - navio de trˆs mastros que usam vela latina.

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Manobra - todo o trabalho desenvolvido a bordo, quer para a largada, quer a navegar.

Mezena - vela do mastro da ré.

Milha - medida de superfície que corresponde aproximadamente a 1850 metros.

Nó - medida de velocidade igual à milha horária.

Ovém - cada um dos cabos que segura um mastro à borda do navio.

Pairar - flutuar no mesmo ponto, de ferro levantado, às vezes com o motor parado ou as velas amainadas.

Pau de carga - mastro semelhante a um guindaste, preso a outro mastro do navio, destinado à manobra de carga e descarga do porão.

Pavilhão - a bandeira do navio içada no mastro da mezena; também a insígnia do armador içada no topo do mesmo mastro.

Polé - roldana que serre para ligar e fazer correr os cabos.

Ponte - passagem na parte mais elevada do navio onde se encontram as dependˆncias reservadas ao comando.

P“r de capa - amainar o pano e dar ao navio uma posição que o faça receber a vaga pela amura a fim de resistir a um temporal.

Quilha - peça de madeira no fundo do navio, no sentido do comprimento, para fixação do cavername.

Rebentação - ondas que se chocam, ou com as rochas, ou com a areia, e se desfazem em espuma, quando o mar está agitado.

Roda da proa - peça de madeira ou-ferro que fecha com a quilha a construção do navio à proa.

Roda de leme - roda de madeira para facilitar a manobra do leme.

Rota - percurso que faz o navio; derrota.

Sereia - Aparelho do navio, instalado na chaminé, para a emissão de sinais sonoros.

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Socar um cabo - esticá-lo fortemente.

Telégrafo de bordo - aparelho instalado na ponte do comando, em ligação directa com a casa da máquina, para transmitir ordens sobre a velocidade a dar à máquina.

Timoneiro - marinheiro encarregado de manobrar e leme.

Tolda - espaço do convés à popa, reservado aos oficiais do navio e convidados de honra.

Toleteira - abertura semicircular na borda da embarcação, na qual giram os remos.

Través - cada um dos lados do navio, para suspender, içar ou arriar as embarçações de bordo.

I

GALTIER engolia a sopa em silˆncio; de quando em quando fitava furtivamente o jovem sentado à mesa, na sua frente e cujos olhos tristes erravam com lassidão sobre as paredes da sala.

- Então, meu rapaz, não comes?

- Não tenho fome.

- De que te serve amuares por o Altayr ter sido vendido, João Pedro? Bem sei que era um bom iate; mas que farias dele aqui, numa cidade interior onde não há mais que uma ribeira que corre com bastante dificuldade?

- T-lo-íamos, ao menos, para as férias.

- Tiago tem poucas férias naquele emprego de jornalista. preciso mais de uma semana para �armar a lancha, outra para a desarmar. Não ficaria tempo para navegar. Isso era bom quando viviam os dois à beira-mar,* mas em Rennes,

* Ver, do mesmo autor, Rumo: Norte, 88 Este.

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onde meterias o teu veleiro de nove metros com os seus dois metros de calado?

João Pedro tinha cruzado os braços sobre a mesa e apoiado o queixo na mão. Dir-se-ia um aluno teimoso, recusando obstinadamente admitir as admoestações do professor.

- Sinto raiva - disse ele. - mais do que raiva por viver numa cidade. Tenho vontade de passar por cima de tudo e embarcar como grumete em qualquer barco; mesmo que fosse um barco velho, estaria melhor do que aqui.

- Não, é preciso não fazer isso, garoto, não estaria bem. Jacques Biard recolheu-te porque eras orfão; o teu pai afogou-se ao querer salvar o dele e já não tinhas mãe. Há sete anos que se ocupa de ti como de um irmão, seria mal feito partires. Ele não era obrigado a educar-te, há orfanatos para isso. � preciso ver que tem apenas vinte e cinco anos e teria podido guardar o seu dinheiro para se distrair em vez de te alimentar, vestir e pagar-te os estudos. � sorte teres aquele rapaz como tutor. Vai mandar fazer uma casa com jardim, nos arredores. Com a tua idade, ter-me-ia sentido feliz assim.

- Eu sei tudo o que Tiago tem feito por mim, Galtier, e gosto muito dele. Por vezes quando reflicto no meu desejo de partir apesar de tudo, acho que sou um tipo sujo,

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sem vontade e que é mal feito ter ideias assim. Asseguro-te que já tentei não pensar mais no mar mas não sei o que se passa em mim; o desejo de embarcar invade-me constantemente. Quanto mais isto aumenta, mais me desagrada estar aqui. Não sei porquˆ. Aborreço-me de tudo, de toda a gente, mesmo de mim. Tu sentes-te bem na cidade?

- Claro, a mim também me agradaria mais estar a bordo de um barco qualquer. O meu ofício foi sempre o de marinheiro e não arrastar pedras e cimento para construir barracas.

- Se tu pedisses a Tiago, talvez ele me deixasse embarcar contigo?

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- Tiago nunca te deixaria partir assim, rapaz. �s demasiado novo, ainda não acabaste de aprender. Hoje uma pessoa não se torna capitão a passear sobre as águas. � preciso antes estudar uma porção de coisas nos livros.

- Mas se fosses tu a propor, talvez ele quisesse.

- Eu não lho perguntaria, não era honesto e além disso ainda não lhe paguei o que lhe devo. Tiago tem-me com ele desde o meu julgamento em Assises.

- Não foste condenado.

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- Quer dizer, deram-me a suspensão porque eu tinha circunstâncias atenuantes, como eles dizem; mesmo assim, apanhei dez anos.

- Não tinhas feito nada de mal, a culpa não era tua.

- Vai dizer isso a um patrão! Vai-lhe dizer que mataste alguém mas que não foi por tua culpa. vai explicar a um patrão que estás inocente quando o teu livrete mostra uma condenação de dez anos de prisão. Ele nem repara se tiveste uma suspensão! Vˆ a pena, pensa que és um condenado, diz-te até à vista e obrigado. Tiago manteve a swa confiança em mim, esforçou-se para me encontrar um emprego de pedreiro na empresa que lhe constrói a casa; ficarei com ele até que esteja pronta, um ano, dois, se for preciso. Devo-lhe isso. Foi ele que me livrou dos bandidos com quem eu estava embrulhado. Estendeu-me a mão para tirar-me de lá. Dar-lhe-ei todo o dinheiro que ganhar aqui. Tu sabes que uma casa custa caro; o preço do AltaYr não chegará.

- Sim, eu sei. Mas depois partirás - respondeu João Pedro -, retomarás o serviço num cargueiro ou num barco de pesca. Mas eu, eu ficarei aqui, na cidade, a estudar. Acabaram, para mim, o mar e a navegação!

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- Acabaram o mar e a navegação! São os velhotes que dizem isso aos sessenta, setenta anos. tu tens apenas catorze e sabes poucas coisas ainda.

- Sei muitas.

- Sei muitas, sei muitas. - replicou Galtier aborrecido. - Pensas de mais e farias melhor em não pensar tanto em tudo isso. Vamos! Por agora chega, come o teu jantar, oiço Tiago que aí vem; não vale a pena mostrar-lhe uma cara de pau. Também ele sente um peso no coração, por já não habitar na costa e ter sido obrigado a vender o seu clíper. Disso podes tu estar certo. Somente - acrescentou como uma desculpa, - é um homem e não o mostra. Acredita em mim, pequeno, não vás aumentar os seus desgostos.

Tiago tirou o chapéu, atirou-o negligentemente para cima do divã e foi sentar-se à mesa. Desdobrou o guardanapo e começou a comer. João Pedro e Galtier não tinham pronunciado uma palavra.

- Com mil diabos! Voltaram os dois de um enterro ou estão doentes do fígado?

João Pedro não respondeu. Levantou-se, abandonou a mesa e dirigiu-se para a porta.

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- Onde vais? - perguntou-lhe Tiago.

- Para o meu quarto.

- Não comes?

- Não, obrigado, não tenho fome.

Tiago ficou a vˆ-lo ir-se embora sem dizer nada.

Quando deixou de ouvir o ruído dos passos no corredor, confiou a Galtier:

- Há trˆs meses que isto dura. Já tentei tudo. Tudo falhou. Castigos, gracejos, doçura, remédios. O médico afirma-me que ele não tem nada. De qualquer maneira, não é só a venda do Altayr que o põe assim.

- Tentei chamá-lo à razão - explicou Galtier -, mas não ouve nada. Segue a sua ideia. Quanto a mim, não é somente o barco que lhe falta: é o mar. Viveu sempre perto do mar e a terra não lhe agrada.

Tiago traduziu a sua impotˆncia por um encolher os ombros e continuou a refeição.

Servia-se maquinalmente, comia com rapidez como alguém apressado ou preocupado com um assunto grave.

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Bruscamente, tirou o guardanapo dos joelhos e colocou-o, desdobrado, sobre a mesa.

- Crˆs realmente que é o mar, Galtier?

Talvez tenhas razão.

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- Que outra coisa poderia ser? Uma vez que o médico diz que não está doente. Também não é porque seja mau rapaz. Não é nada preguiçoso, por exemplo; é mesmo um belo rapazinho.

- Acabas de me sugerir uma ideia, meu velho; vou experimentar para ver o que dá.

Tiago subiu lentamente a escada e foi sentar-se numa cadeira, perto da cama onde o garoto se tinha estendido.

- � preciso que te decidas a dizer-me, francamente, o que é que não está bem, meu pequeno. Sabes como eu gosto de ti, João Pedro, e, quando te ralho ou aborreço, isso nunca me dá prazer. Tenho agido como o faria, seguramente, o teu pai ou um irmão mais velho. Já estás bastante crescido para compreender que, na vida, nem sempre se pode fazer o que se quer. Também eu gostava muito do AltaYr. Foi necessário vendˆ-lo, é lamentável, penoso, eu compreendo; mas mesmo assim não posso crer que seja este sacrifício indispensável que te põe nesse estado. Há bastante tempo que já não nos entendemos os dois. Realmente, é só porque o Altayr foi vendido?

- Creio que é só isso, Tiago, mas também estou farto de viver na cidade, estou farto de trabalhar, estou farto de tudo. Quero partir daqui.

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- Mas partir para onde? Isso é preguiça, fadiga ou já não queres viver comigo?

- Quero, sim, pelo contrário. Não sei, não compreendo. � uma grande tristeza que me invade. Não faço de propósito, asseguro-te mas lembro-me constantemente do ruído das vagas, do grito das gaivotas e, quando isso me acontece não consigo estudar, não tenho fome, apetece-me chorar ou morrer. Então quero partir, voltar para a costa. Tudo o que me dizem é igual; mas deixa-me, não te inquietes, talvez isto acabe por passar. Vou tentar modificar-me, prometo-te.

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Tiago observou longamente o rosto do rapaz. Nem um clarão de atrevimento no olhar; uns olhos francos, uma fronte atormentada, os lábios cerrados. Galtier tinha visto bem. Não era capricho, nem má vontade, e ainda menos maldade. João Pedro sofria dessa doença que mata lentamente certos seres sensíveis e que nenhum medicamento pode curar.

Sentia saudade, nostalgia. Faltava um elemento ao seu equilíbrio: o mar, à beira do qual nascera, onde patinhara como um alcatraz à procura de palurdas, camarões, peixes e conchas, deixados nas poças de água pela descida da maré; o mar onde aprendera a gingar em qualquer chata molhada,

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no porto; o mar sobre o qual navegara com o Altayr, ao longo das costas recortadas da Bretanha, com tempo ensoalheirado ou rude, e depois, no mar alto, a bordo do cargueiro Antinéa, em companhia de Tiago e de Galtier.

Agora o mar faltava-lhe como uma vitamina indispensável ao seu organismo de filho de marítimo, de uma linhagem de marinheiros. Faltava-lhe o horizonte sem fim, os aspectos sempre diferentes do Oceano, o movimento das ondas quebrando-se sobre a areia e retirando-se com um sussurro vivo. Faltava-Lhe aquele bálsamo cinzento e húmido de eflúvios salinos e iodados, necessário aos seus pulmões de filho da beira-mar.

Era tudo isso o que um instinto imperioso o empurrava a procurar, custasse o que custasse, como uma ave migratória que se obstina em alcançar os países do Norte e prossegue a sua viagem, qualquer que seja o tempo, qualquer que seja o vento, certo de que não haverá para ela salvação, excepto naquela região para a qual se sente irresistivelmente atraída.

Tiago continuava a observar João Pedro sem dizer nada. Descobrira o mal e procurava agora a melhor maneira de administrar o remédio que tinha imaginado.

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- Pois bem! Levanta-te, rapaz - disse finalmente. - vai sentar-te à minha secretária, procura uma folha de papel de carta, uma caneta, e espera por mim, eu já vou.

Tiago abriu o armário, tirou uma agenda, folheou-a, anotou uma morada e foi ter com João Pedro.

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- Vá! escreve: à esquerda, Rennes e a data; à direita Comandante Kermeur, Director da Companhia de Navegação N. V. S. - Narvik, Noruega.

- Escrevo ao comandante Kermeur? - perguntou o rapaz, interessado.

- Sim.

- Porquˆ?

- Já vais ver. Escreve lá, no meio da página:

Caro Comandante

A cidade onde vivo é grande e bem construída; mas sinto-me muito infeliz porque fica longe do mar e já não posso ir pescar nos rochedos, nem correr descalço sobre as grandes extensões de areia molhada; já não oiço os alcatrazes cinzentos chiarem ao vento.

O senhor sabe que Tiago foi obrigado a vendŠr o Altayr, o iate de nove metros de que eu gostava tanto. Foi-Lhe preciso para pagar a casa que tinha mandado construir.

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Já não temos barco, nem mesmo a chata, as férias grandes estão próximas e eu vou aborrecer-me durante trˆs meses...

Por acaso não teria um emprego de grumete, para mim, num dos seus cargueiros, durante o Verão?...

- Oh! Sim, estupendo! � uma ideia formidável! Tanto mais que as férias vão começar em Junho por causa da construção dos novos edifícios da escola.

- Vamos, continua.

- Não vale a pena, agora sei o que escrever, vou-Lhe pedir também para ti e para Galtier...

João Pedro saltou da cadeira e gritou na escada:

- Galtier! sobe, estou a escrever ao capitão Kermeur! Vou pedir-lhe para me embarcar durante as férias grandes. Digo-Lhe também para te embarcar a ti e a Tiago.

- Vais demasiado depressa - replicou este -, não estou certo de obter licença nessa data.

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- Oh! sim; tenta, seria estupendo. Tu achas que há imensas reportagens a fazer na Noruega. E depois veremos isso, eu vou pedindo.

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O rapaz voltou para a cadeira e aplicou-se a escrever.

Por momentos, deixava a caneta e esfregava as mãos repetindo:

- Oh! Inspiração!

Galtier olhou-o e depois seguiu Tiago que acabava de entrar no quarto.

- Creio que encontrou o que lhe faltava. Agora, com aquilo na cabeça, vai recompor-se depressa. E depois, não é má ideia. E se houvesse lugar para mim a bordo de um dos botes do tio Kermeur, isso não seria para recusar. Agradava-me mais o mar que fazer de amassador de cimento.

- Falta ainda que o comandante Kermeur aceite.

- Na minha opinião é coisa feita. Não é o velho, tal como o conheço, que vai recusar isso ao pequeno; sobretudo, se lhe explicar que ele não anda bem e que não é preguiça, nem fantasia, mas a saudade que o rói.

Quando terminou a carta, Tiago releu-a e, segurando o queixo de João Pedro entre o polegar e o indicador, disse:

- Vou p“-la esta noite no correio, mas não quero mais ver-te com esse ar de condenado à morte e exijo que o teu trabalho na escola volte ao normal. Creio que boa disposição é a divisa

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do teu clube, então, boa disposição! e bom trabalho! São as duas condições essenciais para a minha aceitação e será sem apelo. Previno-te de que não haverá ordem em contrário! Está compreendido?

- Farei o meu trabalho! - respondeu João Pedro, encantado, depois, admirando-se da transformação súbita que se tinha operado nele -, � engraçado, já não estou triste e creio mesmo que tenho fome.

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Expontaneamente, saltou ao pescoço de Tiago e abraçou-o com ardor.

21

II

‘ beira do cais, sentado no seu saco de marinheiro, João Pedro olhava para os grandes guindastes que levantavam, nas redes de sisal, cachos de fardos que se balançavam por cima da sua cabeça e desciam lentamente para os porões do cargueiro.

Em frente, um pequeno rebocador bojudo, com a chaminé e a tolda mesmo ao nível da água, esforçava-se por puxar uma lancha carregada de carvão. Atrás, a hélice fazia borbulhar a água lamacenta do Gironda.

Muito próximo - podˆ-lo-ia tocar com a mão - encontrava-se o cabo de aço do Frami, esticado como uma corda de violino. Amanhã, ao romper da aurora, será largado e o cargueiro deixará Bordéus, a caminho da Noruega.

João Pedro tinha vontade de subir a bordo; mas era preciso esperar por Galtier e Tiago, que andavam a fazer compras na cidade.

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- Então, pequeno, agrada-te este bote? - perguntou Galtier colocando o seu saco perto do de João Pedro.

- Trazes roupa nova! - notou o rapaz, contemplando com admiração a camisola de lã azul de gola alta e as calças de pano do marinheiro.

- Mais nova do que este pontão, com certeza! - resmungou Galtier. - Mas creio que a qualidade não é melhor. As costuras já esgarçaram debaixo dos braços. Aqui só tˆm vestuário para raquíticos. No armazém, a mulherzinha andava à minha volta como se eu fosse um animal estranho. "- Mãe Santíssima! - dizia ela -, mas este senhor tem um arcaboiço de hipopótamo!!! Nunca terei um tamanho que lhe sirva, meu filho!!!" Acabou por me vender esta camisola,

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estala por todos os lados. Não havia outra. As calças estão melhores mas pouco mais. Sinto-me apertado cá dentro.

Galtier tirou a bolsa do tabaco e p“s-se a enrolar um cigarro, os olhos fixos no navio que estava atracado ao cais.

- Bem! Não sei se te agrada; mas a meu ver não vale o peso da sucata, este tamanco!

Deve ter bem uns cinquenta anos e foi construído por piratas!

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João Pedro, decepcionado, olhou com atenção para o cargueiro, procurando descobrir-lhe os defeitos. Nada o chocava particularmente.

- Parece bem - disse. - Não achas?

- Bom! Não és exigente! Olha-me para essa linha de água! Levanta a garupa como se fosse um cavalo de tiro. A proa adormece debaixo de água, a popa está no ar. E não tem bojo, é estreito como um sapato de mulher. Digo-te que ele vai dançar est—pidamente e meter o nariz na babugem quando houver um pouco de ondulação. Enfim, estamos em Junho e não costuma haver muito mau tempo no mar, nesta altura do ano; mas sempre te digo que quem fez esta sucata não devia ter posto muitas vezes os pés num barco.

- Quando estiver carregado, aguenta-se melhor - disse João Pedro, que queria mostrar saber, pelo menos, o papel desempenhado pelo lastro.

- Sim, de acordo, se não meter água. Reparaste? Não são chapas soldadas, como se faz agora, mas placas embricadas. Não é mau quando está novo, somente, com o uso, é o diabo, a água entra como em sua casa. Olha! Aí vem Tiago, teve mais sorte que eu, encontrou fato para o seu tamanho.

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- Não tem boa cara, o nosso transatlântico, hem! - gritou Tiago na direcção de Galtier.

- Era o que eu estava a dizer ao João Pedro. Se toda a frota do pai Kermeur é deste modelo, não tem de que estar orgulhoso.

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- Contanto que nos leve a Narvik, é tudo o que se lhe pede - replicou Tiago. - Venham a bordo! Vamos apresentar-nos ao patrão.

O capitão Mercier estava encostado à amurada, a falar com um senhor muito idoso.

A pouca distância, uma rapariguinha de cabelos castanhos, curtos e frisados, vestida com uma blusa de marinheiro e umas calças, acariciava um soberbo cão de pˆlo branco e arruivado.

O oficial dirigiu-se para os recém-chegados.

- Creio que são os amigos do comandante Kermeur, director da nossa Companhia.

- Sim, comandante, e agradecemos-lhes muito o ter querido tomar-nos a bordo até Narvik - respondeu Tiago.

- Kermeur disse-me que já navegaram todos trˆs. �, sem dúvida, Tiago Biard, antigo tenente de longo curso, hoje jornalista?

- Exactamente.

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- Não sei que género de reportagem poderá fazer neste pobre velho Frami, mas visto que obteve uma licença do seu jornal para esse fim, estará a bordo como em sua casa. O seu alojamento é à popa; um marinheiro vai indicar-Lho imediatamente. Espero que se sinta aí suficientemente tranquilo para escrever. O senhor é Carrier, Callier?

- Galtier, comandante.

- Antigo arpoador baleeiro, não é verdade?

- Sim, comandante.

- E João Pedro é um grumete prometedor, ao que parece. Muito bem! Galtier e João Pedro partilharão a mesma cabina à proa. Talvez não fiquem alojados muito confortavelmente. Peço-lhes desculpa. O espaço é pouco, neste barco. Nesta viagem, levo igualmente uma parte da minha família: a minha filha Mónica, que passou um més em casa dos avós, em Bordéus, e o meu sogro, oficial aposentado da Marinha Nacional, que quis acompanhar a neta à Noruega para ver como ficamos lá instalados. Mone! Vem cumprimentar, se fazes favor.

A rapariguinha acorreu, colocou-se em frente do grupo e estendeu a mão a Tiago, a Galtier e a João Pedro, repetindo de cada vez, sem a menor timidez: "Mónica Mercier. Mónica Mercier. Mónica Mercier".

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Como João Pedro não dissesse o seu nome, perguntou-lhe:

- E tu? como te chamas?

- João Pedro.

A rapariguinha voltou-se, assobiou por entre os dedos e logo o cão acorreu.

- Este é o Loux - disse a João Pedro -, um husky. � mais forte que um homem.

- Penso que estes trˆs farão um bom grupo - disse o comandante Mercier designando Mónica, João Pedro e o cão. - Loux é muito dóçil com as crianças.

- � um animal explˆndido - notou Tiago.

- Um cão do Grande Norte - replicou o comandante Mercier. - Um marinheiro apanhou-o, uma vez, na Gronelândia e deu-o de presente à minha filha. Desde então tornou-se o seu companheiro inseparável. A bordo é uma segurança, tira-lhe um homem da água como um pointer faria a uma raposa ou a uma cerceta (1).

O capitão chamou um marinheiro que caminhava ao longo da coxia.

- Julião, conduz o Sr. Biard ao camarote número quatro.

- Eu vou levar João Pedro e o Sr. Galtier, Av“

*1 palmípede menor que um pato.

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A sua cabina fica ao lado da minha - prop“s Mónica, encaminhando-se para a proa num passo decidido com Loux atrás.

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Só Galtier se aborrecia a bordo do Frami; vagueava pelas coxias, desocupado, esperando pacientemente a noite. Viam-no encostado à amurada durante horas, os olhos perscrutando ao longe. Por vezes, parecia auscultar o navio como um fiscal do Bureau Véritas, examinando com atenção os mínimos pormenores.

Tiago escrevia ou lia durante todo o dia; apenas o viam na ponte um momento ou outro, na coberta, em companhia do comandante Mercier ou conversando com o capitão de navios de linha, o av“ de Mónica, que Lhe contava as suas recordações do mar.

João Pedro, Mone e Loux formavam um trio de bons amigos.

Aquele velho barco, com os seus escaninhos, o convés estreito, as múltiplas escadas, as pontes sobrepostas, tornava-se excelente para jogar às escondidas.

Primeiro, João Pedro fabricou um papagaio feito com duas tabuínhas em forma de cruz, Um cordel atava as extremidades

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e Mone tinha cosido com cuidado, sobre esta carcassa, um pedaço de tecido.

Munido duma cauda bem amarrada no ponto de equilíbrio, o engenho subia, com a força do vento na ponta duma linha, roubada pela filha do comandante na câmara de navegação. Quando o papagaio, baptizado com o nome de Cometa, atingia a sua altura máxima, enviavam-lhe mensagens: papéis recortados em forma de cone, ajustados sobre um pequeno cilindro de cartão que deslizava pela linha. O vento empurrava o papel, ao longo do fio, até ao papagaio.

A arte consistia em fazer mensagens rápidas e as duas crianças apaixonavam-se a descobrir a melhor forma possível de o conseguir.

Uma manhã, Mónica chegou triunfante à cabina de João Pedro.

- João Pedro! Vem ver. O cozinheiro deu-me um rato vivo que apanhou numa ratoeira.

Sabes o que lhe vamos fazer?

- Não.

- Vamos construir uma gaiola com uma lata de conserva e prendˆ-la ao papagaio.

- Oh sim, é uma ideia! Mas temos de fazer buracos para ele poder respirar e chumaços de lã para que não se fira. Espera, vou tratar da barquinha e tu arranjarás o interior.

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João Pedro crivava de buracos de arejamento uma caixa de folha, quando Mónica foi ter com ele à ponte superior. Estava sem f“lego por ter corrido.

- Olha, João Pedro, encontrei num caixote uma velha linha de pesca, vˆ o comprimento! Deve ter mais de um quilómetro!...

- Huuuuuut! Isso é um achado! Com esse cordão, o animalzinho vai fazer uma viagem interplanetária.

O lançamento foi movimentado. Loux tinha sentido na caixa um cheiro atraente. Enquanto os jovens donos a tiveram na mão, manteve-se à distância, como um cão disciplinado; mas logo que o papagaio foi atirado, saltava ladrando, querendo apanhar a barquinha que voava. Conseguiu agarrar a cauda do papagaio e provocaria uma catástrofe se Mone não tivesse intervido a tempo.

O Cometa, liberto, descreveu uma série de ziguezagues. João Pedro restabelecia o equilíbrio puxando e largando alternadamente o fio.

- Despacha-te! dá-lhe corda, vai ser asfixiado pelo fumo da chaminé. Já está, já está, bravo! Oh, atenção à antena da T. S. F.

Havia uns dez minutos que a caixinha se balançava a uns cinquenta metros acima do nível do mar, evolucionando ao sabor

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dos arabescos fantasistas descritos pelo papagaio, quando Pascal, o mestre da equipagem, chegou à ponte superior.

Baixou-se, apanhou um dos cabos que se arrastava pelo chão e apalpou-o entre o polegar e o indicador.

- Demónios! são as adriças do pavilhão!

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Aproximou-se de João Pedro e, vendo a bobina que ele desenrolava tranquilamente.

- Com mil diabos! a linha de sonda! Donde é que tiraram isso, miúdos?

- � uma velha linha de pesca que já não servia para mais nada - afirmou Mone com convicção.

- Linha de pesca! Quem te disse que era uma linha de pesca, garota?

- Tinha um chumbo na ponta e não tinha anzol.

- Pois muito bem! Para o futuro, trata de não tocar em linha de pesca como esta, ou terei que contar ao capitão e a coisa põe-se feia!

Vamos! Zarpem daí e vão a todo o pano procurar o chumbo da sonda para eu o atar outra vez.

Pascal puxou, com grandes braçadas, a amarra do papagaio, que dava guinadas à esquerda e à direita, acabando por pousar na água. Enquanto puxava a linha, ia repetindo:

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"-Ah! Eu vos darei as linhas de pesca!..." - João Pedro e Mone olhavam, com despeito e uma ponta de tristeza, para a caixinha de folha que se desprendia do papagaio desmantelado, andou alguns metros à deriva, e depois soçobrou com o seu infeliz passageiro.

Pascal foi discreto e o assunto do papagaio não teve continuação. Por outro lado, no dia seguinte, Mone e João Pedro descobriram outro jogo.

Um deles ia-se esconder e o outro, ajudado por Loux, esforçava-se por descobri-lo num tempo determinado.

João Pedro, sobretudo, tinha artes de índio para enganar o faro do cão: pitadas de pimenta, diversos objectos dispostos em falsas pistas, os pés envolvidos em trapos, passagens franqueadas com a ajuda de linhas.

Mone, que detestava perder, saltava como um bólide.

- Busca, Loux! Busca, busca! Ali! Ali!... Vamos, vamos, despacha-te!... despacha-te!...

A cauda em pluma, o nariz no chão, Loux não precisava de que o escitassem. Esta caça difícil apaixonava-o.

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Saltava da ponte superior, corria pelo convés, atirava-se de escantilhão pelas escadas, de língua fora da boca. Tanto pior se um marinheiro se encontrava no seu caminho. Não tinha nenhuma delicadeza, nem um olhar para os objectos mal equilibrados. Sobretudo a roupa.

Ah! a roupa a secar! a cabeça enfiava-se-lhe dentro, as patas raspavam por cima. Camisolas, calças, camisas, encontravam-se pela tolda num estado lastimável.

Nada mais contava que os dez minutos convencionados e o amigo de duas patas em frente do qual se tratava de ficar parado. Quando triunfava - o que era o mais frequente - tentava exprimi-lo com pequenos latidos agudos e os olhos brilhantes de satisfação:

- Viste. Agarrei-te, hem! Como um rato!...

Duma maneira geral, a equipagem divertia-se com essas perseguições movimentadas, que constituíam uma distracção inesperada no decorrer dessa longa e monótona viagem. Por vezes mesmo, aconselhavam o perseguido ou tentavam enganar os perseguidores.

Somente um marinheiro, chamado Celton, não apreciava esta cavalgada. O ruído dos passos precipitados, os latidos por cima da câmara, irritavam-no. A desenvoltura do cão

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enraivecia-o particularmente. Não perdia ocasião de lhe atirar um pontapé aos flancos ou de o castigar com a ajuda dum pau que tinha desencantado sabe Deus onde. e que escondia para esse fim debaixo do colchão do beliche. � certo que Loux, como que de propósito, já tinha sujado duas vezes a sua roupa, que secava numa corda ao pé do pau de carga.

Numa tarde em que o cão tinha vindo a ladrar ao encontro dos seus dois amiguinhos, Mone e João Pedro notaram que tinha uma ferida na coxa.

- Foi o rabugento que te fez isso, meu pobre Lulu? - disse-lhe Mone. - � um estupido.

- Vou lavar-lhe a ferida, isto não é profundo - declarou João Pedro depois de ter examinado a pata como o teria feito um veterinário.

Foi nessa tarde que, muito secretamente, João Pedro e Mone elaboraram um diabólico plano de represálias contra o rabugento Celton.

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Houve murmúrios de vozes na noite, pés descalços a pisarem sem ruído as pranchas de carvalho da ponte, puxadores de portas abrindo-se e fechando-se com uma suavidade fora do habitual, fantasmas circulando na sombra, dissimulando-se à passagem do homem de quarto.

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Por vezes, encontravam-se lado a lado duas cabeças, e, baixinho, muito baixinho.

- Isso vai bem, Mone?

- Não, não consigo atar o cabo.

- Espera, eu encarrego-me disso, fica aí e agita um lenço se vier alguém.

Uma hora depois, João Pedro esgueirava-se para a sua cabina e Mone, caminhando ao longo dos quartos, alcançava a sua.

- Isto vai às mil maravilhas! Está lá às seis horas em ponto, amanhã de manhã. Entendido?

- Entendido!

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III

ESTENDIDOS na coberta, os dois conjurados esperavam que o navio acordasse.

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O ar fresco da manhã dava-lhes arrepios; mas que importava. Ficaram ali, estendidos em cima das tábuas cobertas de geada, sem fazer o menor ruído, os olhos pregados na entrada da câmara da tripulação.

Loux não compreendia nada destes estranhos manejos. Onde diabo queriam chegar os jovens donos?

Logo, ao nascer do dia, tinham-lhe vestido umas calças de pano, que Lhe prendiam a cauda e as patas traseiras, e uma camisola de lã em cujas mangas lhe enfiaram as patas da frente. Um cinto, o mais incomodativo possível, ajeitava-lhe a roupa em volta dos rins.

O pior era esse boné de tela, preso em cima da cabeça com o auxílio dum elástico; arrepanhava-lhe os pˆlos do pescoço a cada movimento.

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Nunca a brincadeira tinha sido tão desagradável para ele, nem tão desesperadamente inactiva.

No entanto, uma coisa era clara para o seu rudimentar cérebro de cão; o seu papel devia ser capital, porque Mone dava-lhe, a intervalos regulares, pedaços de peixe fermentado cujo odor atraente aniquilava nele, imediatamente, qualquer ideia que não fosse a de devorar glutonamente aqueles pitéus escolhidos.

Sim, as funções que lhe reservavam seriam certamente de primeiro plano, porque sem isso a dona não lhe teria reservado tão grande quantidade daquele petisco, que fazia estremecer de apetite o seu robusto est“mago de cão esquimó.

Havia perto de duas horas que Loux esperava, o olho vivo, o nariz procurando avaliar a cada eflúvio a quantidade de peixe contido no embrulho de Mone, a boca semiaberta, pronta para engolir sem mastigar, aquele delicioso alimento.

Mas eis que João Pédro se volta para Mónica e lhe fala rapidamente, com gestos dissimulados. Geralmente, isso indica que os amigos decidiram qualquer coisa divertida.

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A hora da acção deve aproximar-se e o husky levanta as orelhas, pronto para manter-se dignamente no seu posto.

Com efeito, Celton acabava de sair da câmara. Subia agora, sem se apressar, a escada que dava acesso ao castelo da proa, onde a sua roupa estava a secar.

- Segura bem o cabo, Mone, atenção!... - murmurou-lhe João Pedro, ao ouvido.

No momento em que o marinheiro estendia a mão para apanhar a roupa, viu-a passar bruscamente por cima da sua cabeça.

Foram-lhe precisos alguns segundos para perceber o que se passava. João Pedro e Mónica torciam-se a rir... Tornaram a descer lentamente o aparelho, largando a corda.

Pela segunda vez, o marinheiro tentou apanhar as suas coisas mas as camisas, cuecas e camisolas tornaram a fugir. Celton, furioso, veio então até ao pé do pau de carga, seguindo com o olhar o percurso do cabo, que terminava na ponte superior, e compreendeu a farsa.

- Danados miúdos! - resmungou -, Já lhes vou mostrar como elas mordem! Esperem que eu lá chegue...

- Já está, Mone, eis o rabugento a rabiar, anda depressa! anda depressa!

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A rapariguinha despejou, duma só vez, um verdadeiro monte de peixes em decomposição sob o focinho estupefacto de Loux, enquanto João Pedro amarrava à coleira do animal a ponta do fio.

- Vamos! mexe-te! mexe-te! - repetia o rapaz.

Empurrou Mónica e desapareceram os dois a correr.

Loux estava entregue ao seu festim de rei quando Celton apareceu na ponte superior. Dois pares de olhos castanhos, cheios de malícia, espiavam silenciosamente a cena.

O marinheiro ficou paralisado no cimo da escada. Esperava tão pouco por este encontro que não sabia que atitude tomar; mas a cólera subia.

- Com mil demónios! São os meus fatos que ele tem às costas, este porco deste animal! A minha camisola, as minhas calças, o meu boné. Ah! é preciso que isto acabe, este carnaval! é preciso que isto acabe, meus rapazinhos!...

Loux não compreendeu muito bem a ameaça; mas percebendo que Celton não gostava dele, convenceu-se de que o homem Lhe vinha disputar o alimento. Havia ainda uma boa

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quantidade de peixe, do qual ele não teria cedido uma migalha a uma matilha de lobos esfomeados. Assim, sob o boné de tela, as suas pálpebras de fendas estreitas de cão husky deixaram passar clarões

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ferozes, os beiços tremeram por cima de duas fiadas de pontas aguçadas e emitiu um rosnar surdo e contínuo, que obrigou Celton a bater em retirada.

Ouvindo risos abafados, o marinheiro, vexado, disse em voz suficientemente alta para ser ouvida por João Pedro e Mónica, que adivinhava escondidos em qualquer canto:

- Ah! Querem zombar do Celton, meus patifes. Esperem pela resposta! Esperem para ver. Eu vou acariciar as costas do vosso lulu que deixará de ter vontade de se disfarçar, acreditem-me, e vocˆs também deixarão de rir por muito tempo!... Esperem para ver quem vai ganhar a partida!

Celton agarrou-se ao corrimão, galgou a escada e correu até ao camarote por onde enfiou como um pé de vento. Com gestos nervosos, remexeu a cama.

- Quem foi que me roubou o meu cacete? Deves ter sido tu, Marcel. Preciso dele imediatamente.

O grumete, a quem se tinha dirigido, aproximou-se do beliche de Celton e levantou completamente o colchão.

- Está ali a tua moca, trouxe-a esta manhã, não tens olhos na cara?

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O marinheiro apanhou-a sem dizer nada e partiu a correr para o tombadilho.

- Eh! rapazes! Venham até aqui - gritou o grumete -, O Celton partiu a todo o vapor para o tombadilho com o seu cacete.

Tenho a impressão de que vamos ter tourada! Despachem-se! Vamos divertir-nos.

Loux terminara o repasto e lambia, com a líng—a áspera o chão que lhe tinha servido de prato. Já não havia a menor gota do molho de peixe quando, pela segunda vez, o rabugento apareceu ao cimo da escada. Brandia um pau que lhe recordou imediatamente um ferimento pungente

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duma pata. Mesmo assim, uma vez que não havia alimento a defender e os donos estavam ausentes, Por que é que havia de expor-se ao risco de ser castigado quando era tão simples fugir?...

Deu quatro passos em frente, o que teve por efeito içar a roupa de Celton no cimo do pau de carga, onde ficou, mas a corda mantinha-o agora preso, não obstante os seus esforços vio lentos para se libertar. Com um olhar, divisou o cacete a poucos centímetros dos seus rins.

Reencontrou imediatamente a sua saudável lógica de cão: "seja ou não seja uma brinca deira tenho que me libertar deste maldito cabo."

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Voltou-se e zás! com um golpe seco da tremenda mandíbula seccionou, rente, o cordão de cânhamo.

- Agora, homem do pau, apanha-me se puderes...

No momento em que a tripulação chegava, Loux desabava como uma tromba pela escada abaixo, perseguido por Celton, que o injuriava.

- Estupor! Estupor.

Vendo um ajuntamento na sua frente, o animal receou qualquer armadilha, quis parar e mudar de direcção; mas as patas prenderam-se-lhe numa das pernas das calças, caiu e tornou a levantar-se. O boné escondia-lhe um olho e tapava-Lhe uma orelha. Loux quis desembaraçar-se de toda aquela tralha insuportável e enfiou o focinho nas calças... Só conseguiu fazer sair a bela cauda emplumada.

Os marinheiros choravam a rir com aquela impagável pantomima.

João Pedro e Mónica tinham saído do seu esconderijo para não perderem nada do espectáculo que os divertia acima de toda a previsão.

Bruscamente, a cena mudou. Vendo que toda a gente se ria dele, Celton largou o cacete.

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- Claro! Vocˆs riem-se porque não são as vossas coisas que estão estragadas; mas eu não tenho um tostão para comprar outras. Eu não sou filho de um capitão de longo curso. Não posso

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comprar coisas novas para divertir as crianças e vocˆs ainda são piores que elas! Estou-me nas tintas, vou procurar o patrão.

Pascal reteve-o.

- Não faças isso, Celton! Vamos lá!...

Depois, dirigindo-se a João Pedro:

- Tira a roupa ao cão e trá-la aqui imediatamente; Marcel, agarra num pau e vai tirar as coisas lá de cima.

João Pedro conseguiu apanhar, sem dificuldade, o cão que, farto de fazer de palhaço, se deixou despir sem opor resistˆncia. Em contrapartida, Marcel não conseguiu apanhar a roupa presa no cimo do mastro.

- Não se pode apanhar, está demasiado alta. Tinha de subir ao longo dos ovéns até à ferragem das polés e com este balancear do barco, é impossível.

- Por vida minha que é difícil - gemeu Celton. - Bem sei que as minhas coisas estão perdidas. Estão ali para mais de trˆs mil francos entre camisas, cuecas e camisolas interiores. Isso não é para a gente se rir. Uma vergonha, éoqueé!

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Mandado por Pascal, João Pedro fora passar por água as vestes que o cão vestira. Mónica compreendeu que a frase se dirigia a ela.

- Pois bem! Eu vou buscar a tua roupa e conseguirei apanhá-la - disse, com uma ponta de desprezo na voz.

- Não, fica onde estás, rapariguinha! - ordenou Pascal. - perigoso e tenho de dizer ao �comandante.

- Desse perigo me rio eu - disse ela e muda aos apelos de Pascal, começou a subir a escada do mastro perante o espanto da tripulação.

- Bem! Não é atrevimento o que falta à garota - notou Gilbert, o decano dos marinheiros. - Desobedecer ao mestre! Isto vai acabar mal.

Pascal cerrara os lábios e dirigiu-se imediatamente para os aposentos do comandante.

Galtier, encostado à amura da coberta, tinha seguido no rancho da proa o espectáculo; agora, olhava com interesse para a miúda de catorze anos que trepava à conquista da roupa.

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Dez metros acima da ponte, Mone tinha perdido toda a sua soberba e se não fossem aqueles olhares que a seguiam com ironia, teria tornado a descer.

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Por que é que fui tão estúpida! Dizer que iria buscar as camisas dele!... Agora estou pronta! Se me largo, parto a cabeça sobre as pranchas ou precipito-me no mar. Ah! meti-me num bom sarilho! - Lançou um olhar para baixo. - Meu Deus! como o barco é estreito, parece uma tábua! E este balancear odioso... Se ao menos aqueles imbecis quisessem ir-se embora, tornava a descer; mas continuam ali, de nariz no ar. Mone, se desanimas estás perdida -, disse a si mesma - a tua reputação fica liquidada e o teu pai desonrado. "Então foi vencida a sua filha, hem, capitão!" dirá Celton, zombando, "fui eu que a matei, a ela e ao seu cão sujo..."

Vamos, Mone! Coragem, minha filha, é preciso lá chegar. Trepa, trepa, não olhes para o ar nem para baixo, só mesmo em frente de ti, o pau de carga, assim faz menos medo..., Isto vai, vencerás, vencerás. Continuas a subir... Coragem! Pode chegar-se a tudo o que se quer.

Com os traços tensos pela contrariedade, o comandante, acompanhado por Pascal, Tiago e o Sr. Mayeux, veio, com passo sacudido, colocar-se perto de Galtier.

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Mónica encontrava-se escarranchada em cima da ferragem onde estava fixada a polé do pau de carga. Tinha soltado a roupa, mas não parecia disposta a descer.

- A marota conseguiu guindar-se até ali - disse o capitão Mercier, que parecia acalmado por esta proeza. - Pascal, diz-lhe que desça imediatamente e que venha falar comigo.

Enquanto o mestre da equipagem ia executar a ordem, o comandante Mercier disse para Tiago:

- Esta mulherzinha vale mais que a minha tripulação. Não faz aquilo quem quer.

Pascal tinha lançado o aviso pelo porta-voz, mas Mónica não parecia querer obedecer. Continuava a cavalo sobre o minúsculo assento, sem fazer o menor gesto.

- A viborazinha não parece disposta a obedecer - disse o comandante.

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- Salvo o devido respeito, capitão, � porque ela não se pode mexer - explicou Galtier. - O fundo das calças está preso na ferragem da polé. Agora, não poderá sair dali.

- Passe-me o meu binóculo, Pascal. Ah! sim, é exacto, tem razão. Isso complica singularmente o problema. Não tenho ninguém capaz de a ir soltar.

- Se mo permitir, eu vou lá - prop“s Galtier.

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- Não precisa de ter medo, os mastros conhecem-me e quando tiver soltado a pequena não a largarei antes de estar cá em baixo, fique descansado.

- Decerto que aceito. Obrigado, Galtier ; mas preste atenção, que a empresa é difícil.

Celton recebeu cinco mil francos do comandante pelos estragos causados no seu vestuário. João Pedro teve de ficar na cabina um dia inteiro, e Mónica metida na sua, a pão e água.

Um pouco envergonhado por ter recebido uma nota tão grande por estragos tão relativos e também por se sentir o causador da severa punição das crianças, Celton foi falar com o capitão Mercier. Embaraçado, rolando nas mãos o boné de oleado - o mesmo que tinha coberto a cabeça de Loux - pediu o perdão de Móníca e João Pedro. O comandante recusou-lho para servir de exemplo, principalmente por causa da filha, que cometera a grave falta de desobedecer ao mestre da equipagem.

- Então - disse Celton -, talvez me permita que lhe deixe a minha sobremesa. A verdade é que eu fui o primeiro a bater no cão. Além disso, são partidas de miúdos, não é verdade?

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Por altura do paralelo 65, o tempo modificou-se, o vento soprou do Norte, agitando o mar em ondas curtas, agressivas, que apanhando o Frami de través, o faziam oscilar rudemente.

Para a tarde, a chuva começou a cair, uma chuva cinzenta e fria que escorraçou toda a gente para as cabinas.

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O navio oscilava pesadamente de um bordo ao outro, com balanços bruscos, extremamente desagradáveis.

Era ainda na cama o sítio onde se estava melhor, e cada um tratou de se deitar o mais cedo que p“de.

Devia ser meia-noite e meia hora quando Galtier sentiu um choque do lado direito. Acordou sobressaltado, estendeu as mãos, tacteou na escuridão para encontrar o interruptor, Sentiu a madeira sob os dedos.

- Com um milhão de demónios! - resmungou. - Danado de barco, está a adernar! Era sabido...

No convés, a campainha de alarme tocava sem cessar.

- O que é que se passa? - perguntou João Pedro, que, lançando-se, com roupa e tudo, para fora da cama,

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procurava desenvencilhar-se dos cobertores.

Na escuridão não conseguia manter-se de pé sobre o soalho inclinado.

O marinheiro conseguiu, enfim, encontrar o interruptor e acendeu a luz. João Pedro compreendeu imediatamente que o FramiH estava deitado de estibordo, numa posição perigosa.

- O que é preciso fazer? - perguntou, inquieto.

- O teu saco, filhinho! e depressa ; mete dentro só o essencial e anda.

O rapaz enfiou rapidamente os fatos, as camisas e as camisolas no saco de lona e quis meter os sapatos.

- Não, deixa-os, não há tempo a perder - disse Galtier, empurrando-o na sua frente.

A chuva cessara mas a ponte continuava polvilhada de humidade. Galtier e João Pedro escorregavam a cada passo sobre esta superfície tão inclinada como o telhado de uma casa.

Próximo do porão da popa, a tripulação, reunida por Pascal, esperava ordens. Mone também já lá estava, ao lado do av“. Havia trˆs dias que o comandante Mayeux estava de cama a tratar dum princípio de bronquite.

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Pálido, ligeiramente enervado, esforçava-se por reprimir uma tossezinha seca e opressiva.

Loux, sentado, muito direito, sobre as patas traseiras, estava ao lado de Mónica. Não Lhe passava despercebida a forte inclinação da ponte, a campainha a tocar continuamente, aquele ajuntamento a uma hora a que habitualmente se dorme. Tudo indicava um acontecimento importante. Mas era um cão de boa raça e não manifestava o menor indício de medo...

Bruscamente, as campainhas de alarme calaram-se e ouviu-se, amplificada pelo altifalante, a voz calma do comandante Mercier.

- ‘s 0 h. e 45 minutos, o Frami adernou com um balanço forte. A situação é grave mas não desesperada. Uma mensagem de socorro foi lançada às 0 h. e 50 minutos e captada por um cargueiro norueguˆs, o Skrangel, que ruma na nossa direcção. Estará aqui dentro de duas horas. Enquanto esperamos, vai ser tentada uma manobra delicada para endireitar o navio. A tripulação ficará a bordo. Os passageiros embarcarão, por segurança, no escaler de salvamento n.o 1, que vai ser equipado e posto na água. O Sr. Mayeux tomará o comando. Deverá manter-se na posição actual do Frami. Mestre Pascal velará para que o escaler n§ 2 esteja pronto para ser

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imediatamente deitado à água, se a manobra de endireitamento do Frami falhar. Execução.

No momento em que os marinheiros iam virar os turcos para porem o escaler no mar, chegou Biard, com o aparelho fotográfico pendurado ao pescoço por uma correia de couro. Tinha um ar quase feliz.

- Até à vista, amigos! - gritou ele. - Coragem! Eu fico com o comandante Mercier para assistir à manobra. Encontrar-nos-emos daqui a pouco. Galtier, confio-te João Pedro. Faz com que ele te obedeça.

Um clarão de magnésio indicou que o repórter tinha tirado um instantâneo da evacuação dos passageiros.

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- Estes jornalistas - fez notar Mayeux -, tˆm uma espantosa concepção da vida. Para eles, as situações trágicas são boas oportunidades.

O prazer da informação oculta-Lhes o perigo. Tˆm sorte por verem as coisas desta maneira.

A princípio, João Pedro, Mónica e o av“ puxaram corajosamente pelos remos ; mas o comandante Mayeux, com setenta anos de idade, e, sobretudo, doente, esgotou-se depressa. Nem ele, nem os dois jovens marinheiros, a despeito

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dos seus esforços, puderam sustentar, por muito tempo, a remada de Galtier. Por outro lado, levantava-se vento e o escaler andava à rola.

- Creio que é melhor içar a vela - prop“s o comandante Mayeux -, não podemos lutar com o mar e o vento.

Galtier colocou o mastro e içou a vela.

- Estendam a vela! Estendam a vela, meus filhos! - disse, enquanto esticava a adriça.

Mónica, cheia de boa vontade, quis agarrar com as duas mãos a escota que batia como uma pá. Foi fustigada pela corda de cânhamo, que lhe feriu a face. Não obstante a dor pungente, manteve-a agarrada e esforçou-se por lutar com a vela.

- Assim não, Mone! - gritou-lhe João Pedro. - Passa a escota por debaixo da cavilha.

Demasiado tarde... O vento, enfunando a lona, projectava a rapariguinha contra a borda do escaler. João Pedro apanhou a escota que Mone continuava a segurar e passou-a solidamente sob a cavilha.

- Vamos! Oh! soca, oh! soca, oh! soca!

- Vai bem assim - disse o comandante Mayeug.

João Pedro e Mone estenderam igualmente a vela triangular.

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Quando terminaram, Galtier deu uma palmadinha amigável nas costas de Mónica.

- Muito bem, pequenina! Não engataste como era preciso mas não te rales, o ofício não se aprende todo num dia.

Para dizer a verdade, João Pedro e Mónica achavam muito divertido navegar a bordo do escaler de salvamento. Estavam próximos da água e ouviam-na chapinhar ao longo do casco com glu-glus precipitados de garrafa que se esvazia.

A parte activa que tomavam nas manobras constituía uma distracção inesperada. Também só devia durar algumas horas, o tempo de endireitar o Frami ou de embarcar no Skrangel.

Loux divertia-se menos. Aquele sobrado, movediço como uma balança, onde as patas deslizavam, os bordos que limitavam o seu horizonte a alguns metros, e enfim, aquele espaço demasiado estreito onde os pés duns e doutros lhe pisavam a cauda a cada instante, não lhe agradava nada; mas seria indigno dum cão da sua classe manifestar nervosismo ou aborrecimento. Por isso esperava estoicamente que os homens se decidissem a p“r fim àquela brincadeira de mau gosto.

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Galtier e o comandante Mayeux não sentiam nenhuma vontade de rir. Havia uma hora que aguentavam o mar numa baleeira que metia água.

Durante um momento, as evoluções difíceis do Frami, à luz pálida da madrugada, ocuparam a sua atenção. As hélices batiam mal, uma delas, meio saída da água, fazia saltar flocos de espuma, a outra obstruía o leme e o cargueiro não obedecia. Não conseguia virar-se para oferecer o outro bordo às ondas. Cada vez se afastava mais arrastando-se lamentavelmente, deitado sobre estibordo, como um animal ferido que tentasse, em vão levantar-se.

Agora, Galtier tinha os olhos pregados no fundo do escaler e o comandante Mayeux olhava alternadamente o horizonte, a vela, o mar...

- A embarcação fatiga muito, não tem uma quilha fixada a prumo - disse Galtier ao comandante Mayeux. - Se estivesse bem revestida de bordagens ainda se podia aguentar; mas está feita com pranchas sobrepostas, os rebites não tardam a comer a madeira, sobretudo esta porcaria de madeira, boa para caixotes... � uma vergonha fazerem chalupas como esta!

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- Com efeito não é grande coisa - respondeu o comandante Mayeux - andamos à rola como numa chata.

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Já esperimentei cerrar a bolina, mas é a mesma coisa. Não tenho nenhuma confiança na estabilidade do escaler desde que guina, por pouco que seja. Enfim, o Skrangel não deve tardar a chegar ; já deveria cá estar.

Vamos virar de bordo para evitar afastarmo-nos muito do ponto combinado.

Ao meio dia a bruma surgiu no horizonte,, branca, espessa, rente ao mar. Aproximava-se rapidamente, despedaçada pelo vento. Dir-se-ia um imenso polvo fantasma torcendo os gigantescos braços em busca de qualquer presa a devorar.

Em breve chegou, envolvendo a baleeira e os seus ocupantes, que se esforçavam por não deixar transparecer a angústia.

Até à noite, o comandante Mayeux esperou que ela fosse desfeita pela brisa que se mantinha. Acontece muitas vezes, nesta latitude, que a bruma sobrevenha e passe como uma nuvem. i Até à noite, aguçoú o ouvido, esperando surpreender os apelos do Skrangel, mas a escuridão veio ainda espessar a bruma lívida que se colava, como um sudário, aos infelizes náufragos.

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Para se abrigarem do frio que penetrava através da roupa, João Pedro e Mónica tinham-se sentado no fundo, um ao pé do outro. Galtier tinha-lhes distribuído biscoitos, uma caixa de atum em azeite e um quartilho de água. Comeram vagarosamente. Depois, escondendo, sob um silˆncio pesado, a inquietação que os afligia, acabaram por dormitar, encolhidos, tremendo como doentes tomados de grande febre. Por fim, Mone chamou Loux e fˆ-lo deitar-se entre João Pedro e ela. O pˆlo espesso do cão transmitiu-lhes um pouco de calor.

Desde o segundo dia, foi preciso tirar água do barco. De joelhos, os membros enregelados, João Pedro, Mónica, Galtier e o comandante Mayeux,esvaziaram, cada um por sua vez, com a ajuda dum tacho velho, a água que se infiltrava, cada vez mais, pelas juntas do fundo. De

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tempos a tempos, o rebentar das vagas fustigava-os com chapadas de água fria e salgada que lhes molhava os cabelos, o rosto e corria depois pelo pescoço. Para se aquecerem um pouco e terem uma ilusão de actividade, os náufragos amainavam a vela durante algumas horas e punham-se aos remos.

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Na noite do quarto dia, o vento, que soprava de Nordeste, correu com a neblina ; mas tão longe quanto a vista alcançava, o horizonte estava vazio. Não se viam mais que farrapos de nuvens esbranquiçadas arrastando-se, aqui e ali, sobre o mar.

O sol apareceu durante um instante, um sol brilhante cujos raios difundiam uma luz fria, quase penosa. Em breve o nevoeiro o dissimulou de novo e então foi a chuva, a chuva que se p“s a cair sem cessar.

Nos sítios onde a lona que servia de abrigo estava menos esticada, as enormes gotas atravessavam-na e pingavam com uma regularidade irritante.

A vida a bordo tornou-se, então, uma longa série de sofrimentos. O frio, a humidade, a fadiga e, sobretudo, a esperança que, dia a dia, diminuía mais.

Naquela tarde, depois de Mone e João Pedro adormecerem, como de costume, próximo de Loux, o comandante Mayeux disse a Galtier:

- � inútil esperar mais pelo Skrangel, já não virá. Contanto que encontre o Frami e consiga salvar os que estão a bordo... Nós só temos uma coisa a fazer: tentar alcançar a Islândia. Deve estar a cerca de 100 milhas para Oes-Sudoeste.

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O vento está favorável; se se mantiver alguns dias, o que é mais que certo, podemos atingi-la. Esperar mais tempo pelo socorro do Skrangel não seria razoável.

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Pouco tempo depois, o estado de saúde do comandante Mayeux piorou bruscamente. Acabava de esvaziar a água do fundo do barco, quando, ao querer levantar-se, de súbito se sentiu mal.

- Não se inquietem, isto passa - disse a Galtier que o amparava contra a borda do barco...

Mas as mãos escaldantes e húmidas, os olhos brilhantes e as feições contraídas diziam o contrário; e, de facto, não obstante os seus esforços para esconder a gravidade do mal que o atingira, não conseguiu deixar mais o fundo do escaler. Ficou para ali, encostado à borda do barco, a respiração ofegante, sufocada algumas vezes por longas crises de tosse.

Mónica ensopava biscoitos aum quartilho de água e tentava fazˆ-lo ingerir aquele magro alimento.

Falava pouco, somente algumas palavras para se informar acerca da rota que Galtier lhe indicava frequentemente com precisão; os olhos fatigados, injectados de sangue, às vezes

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surpreendiam as expressões de lassidão no olhar de Galtier e de pungente angústia no das duas crianças, principalmente quando o horrendo véu cinzento vinha em lufadas húmidas envolver o barco e aplicar-se contra os rostos.

- Aproximamo-nos - repetia, então, com uma voz calma. - Mais um pouco de coragem, se o vento continuar de feição, sairemos daqui, tenham confiança!

No entanto, sabia bem que aquela libertação já não seria para ele. Com os dois pulmões congestionados, sentia as forças diminuírem cada vez mais.

Uma noite, enquanto Mónica e João Pedro dormiam com o cão deitado entre eles, como de costume, Loux levantou-se de repente e veio colocar-se perto do doente que parecia repousar. Olhou-o duma maneira estranha, cheirou o ar repetidas vezes, à direita e à esquerda, e depois, sentando-se sobre as patas traseiras, lançuu um uivo lúgubre. Galtier desapertou o cinto e chicoteou-o.

Loux calou-se e recuou para a proa, admirando-se de ter sido castigado por uma acção que Lhe parecia perfeitamente inocente. Em breve repetiu o seu sinistro apelo.

- Quererás calar-te, cão do diabo! - resmungou o marinheiro,

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que ia bater outra vez no animal; mas o comandante Mayeux fez-lhe sinal para se aproximar.

- Deixe-o, Galtier - disse em voz fraca. - Está a prevenir-me de que a minha hora está próxima e que é tempo de ir pensando nisso.

Diga às crianças que venham até aqui. Não posso falar alto.

Quando João Pedro e Mónica lá chegaram, o comandante continuou, esforçando-se por tomar alento.

- Passo o comando ao Sr. Galtier. De agora em diante é a ele que devem obedecer. Galtier, confio-Lhos. Faça o melhor que puder. Penso que, mantendo o rumo, cerca dos 26 graus não tardarão a encontrar a costa da Islândia. Meus filhos, vão dormir outra vez até à hora do vosso quarto.

Mónica p“s-se a soluçar e enlaçou o avó com os dois braços.

- Tu não vais morrer, av“, não, não, não quero. Estamos a chegar e tu vais curar-te...

As mãos magras e finas do antigo oficial de marinha desprenderam os braços de Mone.

- Não chores, netinha querida, e faz o que te peço.

*1 Quarto de vigia na navegação.

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Agora quero estar só para me preparar para a grande viagem e comparecer diante de Deus. Vamos, adeus, minha filha, e sˆ corajosa.

Duas horas mais tarde, Galtier rasgava, com a lâmina da sua faca, os sacos onde se arrumava o velame e cobria, com eles, o corpo rígido do comandante Mayeux. Depois, com um cabo, amarrou cuidadosamente a lona em volta do cadáver.

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As duas crianças não dormiam. Seguiam com os olhos o marinheiro ocupado no arranjo do morto. Mone não parava de chorar e João Pedro dominava, com dificuldade, a sua emoção.

Ao terminar, Galtier levantou-se.

- Agora, de pé - disse. - João Pedro e Mónica, rezem uma oração.

Como o rapaz hesitasse e Mónica não parecesse ter ouvido:

- Então! - repetia. - Vocˆs não sabem orações?

- Sim.

- Bom, é preciso dizer uma em voz alta.

João Pedro e Mone recitaram o Padre-Nosso... Terminada a última frase, Galtier agarrou o cadáver nos braços e atirou-o pela borda fora. Ficou a olhar, por um momento,

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para o longo vulto branco que as ondas levavam. Não tinha encontrado nada para o lastrar e por isso ele flutuava à flor da água, As recordações sucediam-se na sua memória.

Reviu a mulher e o seu filhinho, que um dia encontrara esmagados sob os escombros da sua casa de Lorient, depois de um bombardeamento, no decurso da guerra 40-45; reviu o rosto, tão jovem e já paralisado pela morte, de M.lle Balin, a quem ele tinha, seguindo uma ordem criminosa, quebrado a piroga com a roda da proa do veleiro que timonava. Parecia ter sido ainda ontem...

Voltou-se para Mónica e João Pedro, que também seguiam, com os olhos tristes, o corpo recoberto de rude lona que vogava, como um destroço, sobre o mar cinzento, empurrado pelas vagas e pelo vento...

Desejava dizer-lhes que podiam contar com ele, que faria todo o possível por lhes substituir os pais... Não encontrou palavras para se exprimir. Limitou-se a ordenar:

- Vamos, João Pedro, toca a tirar água! Mónica, vai dormir. Os quartos serão feitos por escala.

*Ver, do mesmo autor, Rumo: Norte, 88 Este.

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A rota continua nos 26 graus, como disse o comandante Mayeux. Se o vento mudar, digam-me imediatamente.

Mónica retomou o seu lugar à proa, perto de Loux, e, com o rosto entre as mãos, recomeçou a chorar em silˆncio, com longos soluços regulares. Por vezes sentia que João Pedro a abraçava pelos ombros e a encostava à borda do barco.

- Mone, escuta-me... Diz-me, ouves-me?

Experimentava tirar-lhe as mãos do rosto.

- Quando o meu pai morreu, Jacques levou-me consigo. Foi como um irmão mais velho. Se quiseres, agora farei por ti o que ele fez por mim, serei o teu irmão. Queres?

Mone assentiu com a cabeça.

João Pedro sentiu-se emocionado; teve vontade de a abraçar mas, consciente das novas obrigações que lhe impunha o seu papel, receava enternecer-se e perder a autoridade.

- Seca as lágrimas e dorme, senão estarás morta de fadiga para o teu quarto da manhã. Está prometido. Agora somos, para sempre, irmão e irmã.

Ao despontar da aurora do décimo dia, a costa Leste da Islândia apareceu, barrando com um traço mais escuro o horizonte onde o mar e o céu se confundiam na monotonia cinzenta.

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- Vigiem à proa, pequenos! E avisem logo que houver rochedos.

Mas não se viam rochedos. Adivinhavam-se nos flocos de espuma branca que as ondas produziam ao quebrarem-se contra eles. Galtier, não conhecendo bem aquelas paragens, manobrava para os contornar de longe. Os escolhos eram tanto mais numerosos quanto mais o escaler se aproximava da margem.

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- Enfiem imediatamente os cintos de salvação.

João Pedro, que já tinha navegado em sectores perigosos, compreendeu logo que estavam sobre baixios e que podiam encalhar de um momento para o outro.

Lera, num livro de Tiago, que o infeliz Pourquoi-pas?, do doutor Charcot, naufragara assim ao largo da Islândia e que só um homem da tripulação conseguira Por milagre, chegar até à margem, que no entanto não estava muito longe. Atou, solidamente, o cinto de Mone e, depois, o seu.

- Não tenhas medo - disse à sua companheira. - Se tocarmos nos baixios e nos afundarmos, eu ajudar-te-ei.

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- Agora creio que já não tocaremos - respondeu Galtier. - O escaler não cala muito fundo e irá até à costa ; mas logo que entrarmos na praia é preciso saltar depressa para terra e abandonar o barco. Não podemos deixar-nos arrastar para não nos ferirmos na rebentação. Antes de uma hora, estará em bocadinhos. Aqui, as ondas rebentam por toda a parte.

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IV

GALTIER estava persuadido de que Bob Harris mentia e que nunca tinha telefonado para Reykjavik como pretendia.

Havia dez dias que estava em Lodmundarfjord e tivera tempo de sobra para reconhecer, por detrás dos olhos fugidios do seu hospedeiro, das suas maneiras amáveis e das suas generosidades, a velha táctica dos traficantes de marinheiros.

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Se estivesse num porto qualquer, o homenzinho não teria pesado muito entre as suas mãos. Mas ali, naquela região árida e desolada, habitada por alguns pescadores cuja linguagem não compreendia, onde nunca abordava um navio mercante, onde se estava separado do centro da ilha por montanhas selvagens cobertas de neve... as atitudes de força não teriam servido para nada.

Bob Harris sabia isso e portanto esperava, pacientemente,

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que o marinheiro aceitasse a sua oferta.

Harris não tinha nascido ontem, navegara muito tempo na marinha mercante e estabelecera-se depois nos bairros duvidosos de São Francisco. Uma história suspeita levara-o a deixar o país e a vir tentar a sorte, com uma espécie de loja, na ponta oriental da Islândia.

Quando Foerder, o seu empregado, esbaforido, viera anunciar-Lhe que um marinheiro e dois grumetes acabavam de dar à costa ao pé da grande falésia e se dirigiam para Lodmundarfjord, agarrou no binóculo e fixou o grupo que seguia pelo carreiro que levava à aldeia.

Aquele homem, com uma constituição de gladiador, e os dois miúdos, transportando os seus sacos às costas, não lhe deram a impressão de verdadeiros náufragos. Deviam antes ser membros da tripulação de qualquer chalupa fugidos de bordo após qualquer tolice.

Cheirava-lhe a bom negócio e ordenou a Foerder que lhos trouxesse.

Também, para onde iriam? Harris falava francˆs, tinha quartos vazios, camas, vestuário. Vendia de comer e de beber. Não gostavam dele; mas não podiam viver sem ele naquela região da costa e isso conferia-lhe grande autoridade.

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Gáltier foi discreto, limitou-se a aceitar a hospitalidade e a pedir a Harris que prevenisse as autoridades de Reykjavik para o seu repatriamento.

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Deveria ter recomendado a João Pedro e a Mone que segurassem a língua; mas não pensou nisso, e agora já era demasiado tarde. Harris tinha interrogado as crianças. Já sabia mais do que o suficiente para tirar um bom partido da situação sem o menor risco para si.

Ainda nessa manhã voltara à carga.

- Por que teimas em esperar, Galtier? São precisos bem trˆs meses, pelo menos, para que a administração faça o necessário para repatriar deste canto perdido do mundo. Mallard propõe-te um embarque, para a estação, no seu Titan. Em Outubro desarma; e até lá poderiam fazer os seus oitocentos barris de óleo! Os rorquais não faltam nas paragens de Jan Mayen. Fazes mal em continuar de braços cruzados. Como arpoador, se és tão lesto como pareces, podes ter o quinto da pesca e ter com que voltar para casa como turista e viver até ao fim do ano como um paxá... Não podes fazer outra coisa, meu rapaz! Os pescadores de Lodmundarfjord não tˆm barcos capazes de te levarem a Reykjavik. Pelas montanhas nem podes pensar, a não ser que

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pagues um guia, trˆs mulas, víveres, vestuário, e tu deves-me já mais de quinhentas coroas... Então! Vem esta noite quando os miúdos dormirem; conversaremos com Mallard acerca disso.

Longe das intrigas que se tramavam à volta de Galtier, Mone e João Pedro esperavam, sem grande impaciˆncia, pelo regresso a França.

O país tinha, para eles, a atracção do desconhecido. Havia falhas profundas nos rochedos donde saía uma água tão quente que os habitantes da região punham ali a cozer os alimentos.

Sobre a areia da praia, onde o mar sussurrava incessantemente, encontravam-se belas pedras raiadas, de origem vulcânica, que eles começaram a coleccionar.

Havia também curiosas conchas fósseis enterradas na terra cinzenta das falésias, que eles gostavam de escalar. Era tão agradável respirar o ar fresco que descia dos cimos nevados ou admirar, à noite, o vermelho acobreado deixado, ao Norte, pelo sol que nunca se punha!

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Pelas 21 horas regressavam, despreocupados, à loja onde os esperava a sopa quente de Bob Harris.

O mais feliz era certamente Loux. O espaço já não lhe era regateado, encontrara camaradas da sua raça e descobrira, à beira do pequeno porto de pesca rudimentar, formado numa cavidade natural das rochas do fiorde, resíduos de peixe que faziam as suas delícias.

Também ele não regressava senão à noite para abocar os restos do jantar. Depois deste agradável suplemento, ia estender-se em frente da porta do quarto da dona...

Isto durou até à noite em que Galtier teve uma entrevista tempestuosa com o capitão Mallard.

- Estou de acordo a respeito do quinto da pesca; mas não quero os miúdos - tinha declarado Mallard. - Arruma-os onde quiseres durante trˆs meses e encontrá-los-ás na volta.

- Assim não pode ser. Confiaram-mos. Embarcarão comigo ou vais procurar ou tro arpoador.

- Como quiseres, marinheiro, mas fazes-te difícil porque ainda não saíste do albergue. Harris não te vai dar crédito pelos teus belos olhos. Se te dá comida e tecto, a ti e aos miúdos, é porque espera cinco barris de óleo. Se não os tiver,

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põe-te fora e então, o que é que farás neste deserto onde nem mesmo consegues compreender uma palavra? O que é que farás num canto onde mesmo os miúdos da região tˆm dificuldade em não rebentar de fome?... Enfim, como quiseres, marinheiro!

Galtier deixou Mallard depois desta frase e subiu para se deitar.

- Traz-me o teu uísque - disse Mallard a Harris, assim que o marinheiro partiu -, e não tenhas medo de deitar.

- Encostaste o amigo à parede - murmurou-lhe o negociante ao ouvido enquanto Lhe enchia o copo. - Outros pagariam caro para embarcar aquele rapaz. � forte como um macaco, e vˆ a flecha que ele cravou na cortiça, há bocadinho, a seis metros do alvo; é preciso olho para dar no vinte, com uma ponta daquelas, ao primeiro golpe... O freguˆs sabe visar, está tranquilo. E os miúdos não são manetas, podes fazˆ-los trabalhar como homens, por um salário de grumetes. Se rebentarem no negócio, queres lá saber, nem mesmo sabem que eles estão vivos! Não penses que eu avisei Reykjavik... Não voltas a encontrar uma ocasião como esta!...

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Outrora, Mallard sentir-se-ia indignado com semelhante cinismo; mas agora já nada o revoltava.

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o álcool envilecera-o. Só uma coisa tinha importância a seus olhos: trabalhar o menos possível, justamente o indispensável para possuir uma boa reserva de uísque. Com o olhar embaciado e a voz pastosa, aquiesceu.

- Talvez tenhas razão. Diz ao marinheiro que embarco também os dois rapázes e que aparelhamos depois de amanhã, pela aurora.

� preciso que estejam a bordo desde a véspera, à noite.

Harris encheu de novo o copo do capitão.

Convinha-lhe que ele agora se embebedasse como um bruto para assinar o papel que tinha preparado. Dez barris de óleo de baleia que exigiria no regresso do Titan. Com os cinco que lhe devia Galtier e a carga do Titan, que esperava adquirir, faria uma bela somazinha, saberia tornar a vender a preciosa mercadoria por bom preço...

No momento em que Mónica e João Pedro subiam para se deitar, Galtier alcançou-os, agarrou-Lhes num braço e empurrou-os para o quarto. Desajeitadamente, veio sentar-se na borda da cama, as mãos espalmadas sobre os joelhos, sem saber como principiar.

- Não podemos continuar à espera - decidiu-se a dizer. - Com aqueles... enfim, com as autoridades, as coisas não andam...

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� preciso que ganhemos uns cobres para viver... Por isso vamos partir para a pesca, durante trˆs meses... A meu ver, foi Harris que se entendeu com Mallard para nos apanharem, visto não podermos falar esta língua, nem pagar seja o que for...

João Pedro e Mónica seguiam, no rosto de Galtier, as dificuldades que ele sentia em se exprimir. A sua fronte enrugava-se, os olhos rolavam, à direita e à esquerda, como os de um actor principiante a implorar o socorro do ponto.

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Compreenderam, então, que um fardo demasiado pesado vergava os largos ombros do marinheiro. No mar, quando o oficial marcou a rota, Galtier sabia todas as manobras que era preciso fazer. Não teria tido mesmo dificuldade em comandar ele próprio.

Em terra, num país estranho, onde não se podia fazer entender, as responsabilidades que lhe cabiam haviam-no esmagado. Farejara a armadilha mas sentia-se incapaz de a evitar.

Aquela confissão de impotˆncia do marinheiro pesava-lhes tanto como uma censura.

Um e outro confiavam inteiramente nele. Se o tivessem animado em vez de correrem pelo areal, ele ter-se-ia mantido mais forte; talvez mesmo Harris não se atrevesse...

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Nesse momento, Mónica pensava menos nas consequˆncias desse embarque do que na dor de Galtier, que ela pressentia muito infeliz. De boa vontade lhe deitaria os braços ao pescoço, como costumava fazer quando um desgosto ou uma inquietação qualquer ensombravam o rosto de seu pai, e lhe dizia que gostava muito dele porque tinha feito tudo o que lhe era possível. E que indiferente seria ao que quer que lhes acontecesse contanto que ele não enrugasse mais a testa e retomasse a cara habitual.

João Pedro sentia remorsos: Não era assim que Tiago agiria; mas que teria ele podido fazer? Nunca compreendera tão bem como agora quão poucas coisas sabia e a que ponto se encontrava desarmado perante a vida.

As aventuras apaixonantes em que os jovens vˆem tudo sorrir-lhes, existiam talvez nas histórias ilustradas; a realidade era diferente. As dificuldades pareciam surgir desde que aparecese a menor fraqueza. Um navio estava mal construído? O mar maltratava-o, invadia-o, soçobrava..., Um homem era pouco instruído? Um outro surgia, quase instantaneamente, para tirar proveito disso.

Tinha vontade de dizer qualquer coisa a Galtier para se desculpar; isso aliviaria a sua consciˆncia, mas não ousou,

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porque o marinheiro tinha-se erguido; retomara a expressão habitual. Terminada a explicação, a sua decisão tomáda, a vida tornava-se-lhe mais simples.

- Então, vai ser preciso estar a bordo do Titan amanhã à noite, às nove horas o mais tardar - disse. - Harris cortará rente os vossos cabelos. Mallard julga que são dois grumetes. Se vem a saber que há uma rapariga, recusará embarcá-la.

Com a mão sobre o puxador da porta, Galtier acrescentou:

- O capitão não quer cães a bordo.

Mónica lançou-lhe um olhar indignado:

- Ele quer que eu o deixe aqui, enquanto partimos por dois ou trˆs meses?

Galtier fingiu não ouvir e deixou o quarto. A incumbˆncia estava desempenhada; agora, aquele urso malcriado do Mallard que se arranje com Loux, Mónica e João Pedro! Afinal, é a ele que cabe velar pela execução das suas ordens.

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No dia seguinte à noite, ao dirigirem-se para bordo do baleeiro, que perfilava a sua robusta silhueta na água calma do fiorde, Galtier notou que Loux não estava entre eles. No entanto, não desgostaria de ver como se arranjaria o velho,

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para se livrar do animal. A cena diverti-lo-ia e, depois, também sabia quanto os grumetes o estimavam e sentir-se-ia feliz se conseguissem levá-lo com eles.

Olhou para Mónica e João Pedro; não pareciam sentir grande desgosto... Antes assim, era melhor que as coisas se passassem desta maneira.

Abordaram o navio e todos trˆs subiram a escada móvel amarrada à altura do portaló.

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Era noite, quando Mone se desembaraçou dos cobertores. Toda a gente dormia, no camarote.

Veio acordar discretamente João Pedro, que dormia no beliche por baixo do de Galtier.

Sem fazer ruído, abriram lentamente a porta para que não chiasse nos gonzos e, descalços, a fim de abafarem o ruído dos passos, àlcançaram a ponte.

A brisa de Nordeste era bastante fresca e pregueava a superfície sombria da água. Mone e João Pedro perscrutaram, atentamente, o mar. Observavam tanto ao longe como junto ao navio.

De repente, João Pedro pousou o braço sobre o de Mónica e, estendendo o dedo, disse:

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- Está ali, já o vejo, está muito próximo... Ali, olha... passa-me o gancho.

Mónica tirou da algibeira um fio de ferro recurvado, preso a um cordel, e o rapaz absorveu-se numa pesca delicada.

- Calculámos exactamente!... O vento e a corrente trouxeram-no mesmo aonde era preciso - disse, içando para bordo um conjunto de toros de madeira e de quadrados de cortiça, ao qual estava amarrada uma longa e grossa corda.

Mónica agarrou-a e começou a puxar. O cabo retesou-se.

- Devagar! Eh! Tu és louca! Se isso se parte estamos arranjados!

- Isto anda, isto anda - disse Mónica encantada, notando que o cabo se distendia molemente.

Alguns instantes mais tarde apareceu um caixote grosseiramente camuflado. Aproximava-se, lentamente arrastado pela corda. Em breve se encontrou próximo do navio e os dois grumetes começaram a içá-lo.

- Contanto que ele não ladre - disse João Pedro.

- � muito raro ladrar, ele nunca se lamenta quando sofre...

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Levantadas as tabuinhas, o cão saiu da prisão, de muito mau-humor. Sacudiu os pˆlos ensopados e aspergiu copiosamente os donos.

Teve mesmo, por um instante, a intenção de abandonar momentaneamente a sua companhia, com receio de sofrer nova clausura tão longa e desagradável como a que lhe tinham feito passar; mas Mone acabava de pór, perto dele, uma dezena de belos peixes fermentados mesmo como ele gostava, e a fome foi mais forte que qualquer outro sentimento.

Quando os restos do caixote foram lançados ao mar, Loux já tinha esquecido as horas de cativeiro; e, de cauda erguida, manifestou abertamente a sua alegria por voltar a encontrar os dois amigos.

- Loux! Vem cá - ordenou Mone -, e deixa-te de escapadas...

O cão dormiu ao pé da tarimba de Mónica até à hora de aparelharem.

Ela e João Pedro esperavam que a aparição do animal, só no momento das manobras da largada, lhe salvaria a vida. Ninguém teria tempo para se ocupar disso. Depois, quando o Titan estivesse no mar, seria demasiado tarde para o desembarcarem.

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Pouco faltou, no entanto, para que o pobre bicho não vivesse essa manhã a sua última hora.

A âncora acabou de deslizar, o cabrestante terminou de enrolar a corrente, e Mallard tinha já a alavanca do telégrafo de bordo na posição de ®à vante a toda a força¯, quando os seus olhos caíram sobre o cão, que passeava tranquilamente na coberta, julgando-se em país conquistado.

- Com mil demónios! - gritou o capitão. - Quem me trouxe este animal para bordo? Eu já te vou atirar por cima da amurada!

Desceu rapidamente a escada e chegou furioso à entreponte. Aproximou-se do animal, praguejando como um carroceiro. João Pedro e Mone, inquietos, deixaram precipitadamente a cozinha onde preparavam o café ; vieram colocar-se próximo de Loux, decididos a implorar o perdão para o amigo.

Este último, num abrir e fechar de olhos, tinha classificado o seu adversário. Praguejava exactamente como aquele Celton que lhe dava pontapés e, além disso, assim que chegaram as

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duas crianças, o seu cérebro de cão, incapaz de fazer distinções subtis, foi imediatamente dominado pela convicção de que o homem ameaçava, ao mesmo tempo, Mone e João Pedro.

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Desde então, corajoso como todos os da sua raça, firmou-se orgulhosamente nas quatro patas e preparou-se para combater.

Mallard deu ainda alguns passos, vociferando.

- Para a selha! cão lazarento! Espera aí se queres ver.

Avançou amão; mas deteve-se em fáce da atitude de Loux, que não fugira. Eriçara os pˆlos do pescoço e da espinha, o que lhe dava um aspecto de perigoso animal selvagem, e levantara os beiços, como se puxasse um cortinado, descobriu duas sólidas fiadas de dentes de marfim. Um rosnar uniforme rolava-lhe, em surdina, no fundo da garganta. Os olhos brilhantes, por detrás das pálpebras semicerradas como a seteira da torre dum carro de assalto, espiavam o menor gesto.

Não lhe seriam necessários cinco segundos para triturar os dedos grossos do capitão com as suas terríveis mandíbulas, se ele tivesse a ideia de os aproximar mais. Mas Mallard bateu em retirada, recuou até junto da tolda e pegou num utensílio de madeira terminado por uma aguda ponta de aço.

Aquele instrumento, que tem o nome de lança e serve para acabar com as baleias feridas, encontrava-se fixado na parede da entreponte com os arpões, as facas e os cinzéis...

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O capitão brandiu-o e voltou-se para Loux, ameaçando-o de novo.

Mone e João Pedro iam soltar um grito quando Daniel, o imediato, se interp“s. A tripulação agrupava-se a alguma distância e olhava a cena.

- Não faças isso - disse Daniel.

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- Procedo como me agrada - ripostou Mallard. - Quem manda aqui sou eu.

A luta já não era entre Loux e o capitão, mas sim entre este e o imediato; os homens, intrigádos, perguntavam a si próprios como é que Daniel sairia daquela situação delicada.

A bordo, a autoridade do segundo oficial era muito grande. Derivava do seu valor profissional e, sobretudo, da sua calma. Comandava com voz doce, como se pedisse um favor, e, se bem que o seu papel fosse difícil junto do capitão Mallard, intratável e frequentemente sob o império da bebida, raro era que ele não chegasse a aplanar as mais agudas divergˆncias.

Sem elevar a voz, com aquela tranquilidade que nunca abandonava, explicou ao capitão:

- Traz sempre desgraça matar o cão de bordo. Um veterano como tu não o ignora.

Mallard levantou os ombros. Sabia bem que Daniel acreditava,

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tanto como ele, naquela lenda; mas agora já não podia matar o cão. Se depois disso acontecesse a bordo o menor incidente, a tripulação lembrar-se-ia imediatamente das palavras do imediato, em quem tinham toda a confiança, e lançaria a culpa sobre o capitão, que passaria a ser odiado.

Daniel, mais uma vez, ganhou sem combate. Como de costume.

O capitão Mallard esforçou-se por sorrir e foi pendurar a lança.

- Bem, visto que estão todos decididos a apanhar uma carga de bicharia, fiquem lá com o animal!

Para não perder o prestígio, dirigiu-se quase logo ao imediato:

- Senhor Daniel, faça ocupar imediatamente os postos de pesca; os grumetes, para cima -, dirigia-se a João Pedro e Mone, apontando, com o indicador, para o posto de vigia na gávea.

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V

De início, Mone achou muito pesadas as longas horas de vigia naquele tonel situado quinze metros acima do convés. O balancear do barco sacudia-os como ameixas, sem que fosse possível tomar qualquer providˆncia em relação às contracções dolorosas de est“mago que, além da dor, provocavam contínuas náuseas.

Agora aquilo ia melhor. João Pedro, mais acostumado ao mar do que ela, ensinara-lhe um bom sistema: não se crispar, deixar-se ir ao sabor dos movimentos mais imprevistos, sem reacção, e, tanto quanto possível, olhar para longe. Infelizmente, uma pessoa cansava-se depressa de contemplar aquele mar monótono e cinzento sobre o qual o Titan traçava, havia quatro dias, um uniforme rasto de espuma que lhe seguia a popa, durante alguns metros, e depois se desvanecia absorvido pela imensidade líquida.

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De repente, Mone p“s-se a berrar:

- Está a assoprar! Está a assoprar! Ali! ali! ali!

Muito excitada, estendia o dedo na direcção em que acabava de descobrir uma baleia. Os seus olhos estavam cravados sobre aquelas colunas de água que descreviam belas curvas brancas, se desenvolviam em esplˆndidos penachos e tornavam a cair em finas gotículas.

João Pedro foi também imediatamente subjugado por aquele espectáculo, impossível de ver pela primeira vez sem experimentar uma estranha emoção.

Esquecendo as indicações dadas pelo imediato, não procurou determinár o género de baleia avistada, a distância a que se encontrava do barco, nem a sua situação.

Estendendo o braço como Mónica, gritou, também, com tódas as suas forças:

- Está a assoprar! está a assoprar! Ali! ali! ali!

Por debaixo deles, a ponte animava-se. Daniel, com a mão em viseira, olhava atentamente na direcção indicada pelos grumetes.

Galtier saiu precipitadamente do camarote e p“s-se a verificar o longo cabo de cânhamo que exigia uma atenção muito particular. Os primeiros sessenta metros, presos ao arpão,

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estavam enrolados com muito cuidado e metidos dentro duma cuba situada à proa, próximo do canhão; depois, o cabo entrava num sistema de polés de contrapeso, mesmo por baixo da gávea, e descia por uma estreita escotilha para uma câmara especial, à proa, onde estavam mil metros bem enrolados.

Quando o arpoador atirava os primeiros.

, metros desenrolavam-se à velocidade da projecção do arpão; depois, a baleia atingida fugia, arrastando o cabo que devia deslizar sem fazer nós. Quando o animal se empinava, os contrapesos afrouxavam automaticamente a corda e evitavam a sua ruptura. Se o menor incidente se opunha a este desenvolver contínuo e flexível, o cabo rompia-se inevitavelmente e baleia e arpão estavam então perdidos...

Quando o capitão Mallard chegou à ponte de comando, inteiramente descoberta como é costume nos baleeiros, os grumetes tiveram a impressão de que ele titubeava. Teve de se encostar trˆs oú quatro vezes ao parapeito antes de ir substituir o marinheiro Koublack, que estava ao leme.

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à altura do portaló, Gotborg, de pé na amurada, pendurado na enxárcia, gritava, em norueguˆs, algumas indicações para Waams, o chefe maquinista, cuja cabeça calva acabava de aparecer no cimo da escada de acesso à casa das máquinas.

O clin, clin - clin, clin, do telégrafo de bordo fˆ-lo desaparecer na casa da caldeira. As baleias tinham mergulhado.

João Pedro e Mone, de nervos tensos, perscrutavam o mar, ansiosos por saber onde iria de novo surgir o impressionante geyser.

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De cada lado da roda de proa do Titan, o debrum de espuma aumentara e, à ré, as hélices remexiam o mar em cachão.

A caça começara.

Bruscamente, a duzentos metros da proa, acabava de emergir uma espécie de rocha luzidia. João Pedro e Mone não puderam deixar de sentir um receio instintivo, vendo ondular aquela massa informe de que se adivinhava o tamanho gigantesco. Dois potentes jactos de água pulverizada elevaram-se quase imediatamente a seis metros de altura, alargando-se, ao cair, como um ligeiro véu de musselina.

Observavam, com o coração batendo, quando, de repente, a menos de cinquenta metros à ré, duas trombas de água subiram para o céu, acompanhadas de um ruído aterrador de monstro

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que sopra. As duas crianças ficaram mudas de emoção e medo.

Mónica pensara algumas vezes que sentiria pena das baleias, que aquela caçada lhe seria penosa; mas, agora, o seu tamanho desconcertava-a. Eram demasiado grandes para que pudesse experimentar outro sentimento que não fosse o receio.

João Pedro sentia uma espécie da embriaguez instintiva de caçador, misturada com uma parte de pavor, que procurava reprimir.

‘ proa, Galtier vigiava, por detrás do canhão donde saía a ponta articulada do arpão. Descalço, como de costume, com as pernas ligeiramente flectidas, seguia atentamente cada movimento do animal.

Agora já não era o capitão Mallard quem comandava, mas ele, o arpoador. Com os braços, fazia sinais convencionados para a ponte e o barco evolucionava à direita ou à esquerda, diminuía ou aumentava de velocidade.

Pareceu não dar atenção ao animal que aparecera à popa e acabava de mergulhar, mas não afastava o olhar do outro do qual o Titan se aproximava velozmente.

Em dado momento, Galtier estendeu o braço esquerdo;

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o barco não obedeceu imediatamente e o marinheiro manifestou irritação.

A baleia acabava de obliquar para bombordo e o baleeiro ficou mais distanciado. Foi-lhe preciso descrever um arco-de-círculo antes de retomar a perseguição. O enorme mamífero voltava a desaparecer.

No entanto, o arpoador continuava a dar as suas indicações mudas, como se pressentisse em que sítio exacto ele iria emergir. A bordo tudo se calava, era o instante crítico.

- Ti tch ch ch ch ch ch!... Como um submarino ao alcançar a superfície, o monstro surgiu, esguichando pelas narinas dois jactos grossos como punhos. Estava a cinquenta metros...

Galtier esperava-o, segurando a culatra do canhão. Apontou. Ia atirar, quando o Titan deu uma guinada brusca para bombordo e se afastou.

O arpoador voltou-se como uma mola e ficou um momento interdito; depois, vendo que o navio mudava resolutamente de rumo e que o telégrafo de bordo tocava a meia-força, veio até junto da ponte.

- Então? O que é que se passa? - gritou com mau humor na direcção de Mallard, que o observava de braços cruzados sobre

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o parapeito. - Fui admitido como arpoador ou como turista?

- Demasiado receosas, demasiado longe... - respondeu o capitão com uma voz espessa. - Perdemos o nosso tempo.

Galtier encolheu os ombros e, com os dentes cerrados, voltou para a câmara. Ao cruzar-se com Daniel, que subia a escada que levava à entreponte, disse friamente:

- O patrão está ainda bˆbedo. Por este andar, não ganharemos a nossa c“dea antes do Inverno.

Pela atitude de Galtier, Mallard compreendeu imediatamente que o arpoador não era um simplório, antes conhecia demasiado bem o seu ofício para que se lhe ensinasse alguma coisa sobre os hábitos das baleias ou a distância de tiro. Há animais bastante receosos que não se podem atingir, havendo um limite para lhes atirar - mas não era esse o caso.

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Galtier tinha adivinhado a verdade: o capitão estava ébrio. Aos seus reflexos entorpecidos pelo álcool, faltava rapidez e, no último momento, perdeu o equilíbrio, provocando uma falsa manobra ao apoiar-se à roda do leme.

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A partir desse dia, Mallard pareceu experimentar um surdo rancor pelo marinheiro que descobrira a sua deplorável mentira.

Por seu lado, Galtier também não tinha qualquer simpatia pelo chefe. Não podia estimar e respeitar um capitão que se embebedava no mar, sozinho na sua cabina. Já bem custava obedecer-lhe! Felizmente que, por outro lado, a equipagem tinha poucos contactos com ele. A maior parte das vezes era Daniel quem dava as ordens e distribuía o trabalho. E cada um recebia uma tarefa bastante grande para não ter tempo de flanar e lamentar-se, a um e a outro, da sua própria sorte.

O arpoador devia ocupar-se da manutenção de todos os instrumentos de pesca e de esquartejamento; Gotborg e os grumetes, na cozinha, da limpeza dos fornos e dos alguidares em que se fundia a gordura de baleia; Koublack, da limpeza da ponte e da lavagem dos barris destinados ao óleo. A Waams e a Klein, seu ajudante, cabia o cuidado das máquinas e do cabrestante.

Evidentemente que havia ainda as horas de quarto e a observação no posto de vigia que precisavam assegurar, cada um por sua vez, noite e dia. Oh! não era uma viagem de recreio! Mone e João Pedro, com os olhos avermelhados por dormirem pouco, pensavam às vezes, com amargura, nas belas férias

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que os seus camaradas deviam passar na longínqua terra de França.

O que os reconfortava era saberem que ganhavam a sua vida. As refeições que comiam, a cama onde se enfronhavam num sono profundo, eram-lhes devidos pelo seu trabalho; e a isso juntar-se-ia ainda, no fim da campanha, uma soma ganha por eles.

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Já não se abandonavam a Galtier como crianças despreocupadas e incapazes; ajudavam-no o melhor que podiam a reunir o dinheiro necessário para o seu repatriamento e sentiam Por isso, um legítimo orgulho, uma espécie de alegria que os fazia aceitar quase de bom grado os momentos difíceis da sua situação.

No entanto, a vida a bordo seria mais agradável se aquela bruma fria e lívida que envolvia o Titan quisesse dissipar-se. Havia mais de quarenta e oito horas que persistia e todos eram obrigados a roubar tempo ao seu repouso para duplicar as horas de quarto.

Uma tarde, a neblina desapareceu quase instantaneamente, varrida por um forte vento de Noroeste que encapelou imediatamente o mar e o cobriu, aqui e ali, de cristas agudas.

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Estava-se na hora em que o sol espalha no firmamento clarões de incˆndio, iluminando o horizonte como um eterno fogo de artifício de tons verdes e dourados.

Aquele astro invisível e fixo, cuja luz difusa iluminava de uma maneira estranha, em plena noite, a extensão deserta e sombria do mar, criava um ambiente trágico, um pouco aterrorizador.

- Devia ser assim no princípio do mundo - pensavam Mónica e João Pedro, que o balancear do barco sacudia cada vez mais fortemente no posto de vigia.

De repente, a duas milhas ao sul, a bombordo, de novo se elevou, para o céu acobreado, o sopro potente e majestoso das baleias.

O Titan, que fazia rumo ao Norte, animou-se imediatamente; Galtier trepou pela enxárcia e ficou a observar silenciosamente enquanto, em baixo, os homens, acordados precipitadamente, corriam para os seus postos depesca.

Desta vez as baleias vinham em rebanho, dirigindo-se para Oeste, quarto de Noroeste e nadavam depressa.

Galtier desceu para o convés, no momento em que Waams se enfiava na casa da caldeira.

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O arpoador não se dirigiu imediatamente para a proa: foi até ao pé da tolda, decidido a recusar-se a tomar as suas funções se Mallard ainda estivesse embriagado. Mas o capitão, mantinha-se de pé, ao leme, e, pela maneira como dava as ordens, Galtier viu que não tinha bebido.

Dirigiu-se então sem dizer nada para a plataforma onde estava montado o canhão do arpão.

No entanto, o olhar do marinheiro e o seu mudo significado não haviam escapado a Mallard. Teve um sorriso irónico. Aquele arpoador permitia-se fazer-Lhe censuras... Considerava-se tratado como turista... Aquela ocasião era escelente para lhe abater a soberba.

Com aquela forte ondulação de Noroeste, com o rebanho de baleias a correr a oito nós, a caçada ia ser extremamente difícil... Mallard queria dar-lhe uma lição de mestre diante de toda a gente, para lhe ensinar a julgar o seu capitão. Com calma, esperou os sinais de Galtier.

As baleias iam quase contra o vento, seguindo uma direcção SE.-NW, que fazia um ângulo de cerca de 40 graus com o rumo seguido pelo Titan, Bastava o barco diminuir a velocidade e ir por bom bordo, para as alcançar.

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No entanto, Galtier levantou o braço direito e descreveu um rápido molinete que significava: "leme a estibordo, velocidade máxima". Mallard fez uma careta; Galtier tinha evitado o erro clássico e comandado a manobra precisa. Isso já provava que conhecia as manhas do ofício.

Com efeito, as baleias não tˆm boa vista; em contrapartida, possuem um ouvido muito apurado. Se o Titan tivesse ido pela esquerda, não deixariam de perceber o ruído do motor, levado pelo vento, e o rebanho ter-se-ia dispersado; fugiriam apavoradas e não seria possível apanhar uma única.

A manobra por estibordo fazia-se contra o vento até ao momento do encontro e assim as baleias não podiam ouvir o Titan.

Do posto de vigia, os dois grumetes viram aparecer em breve, a duzentos metros da proa, os longos dorsos negros e brilhantes.

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A brisa, muito fresca, transformava os sopros em cortinas de chuva fina sob a qual os corpos imensos e maravilhosamente recortados avançavam com movimentos lentos e flexíveis.

Pequenos rastos de espuma branca, contra a pele de reflexos brilhantes, indicavam a sua velocidade.

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Agora o Titan aguentava as ondas de trˆs quartos, rolando e balouçando de proa à poPa.

A posição do arpoador tornava-se muito delicada, as vagas quebravam-se contra o flanco do barco e cobriam de borrifos a plataforma Por vezes, mesmo, ao rebentarem a proa desaParecia sob uma larga cortina líquida.

Mallard continuava a sorrir; Galtier não aguentaria muito tempo esta prova, ia dar ordem de diminuir a velocidade e, se afrouxassem, as baleias passariam à frente... Então ele interviria...

Espreitava o gesto; o arpoador não o fez.

No entanto estava completamente ensopado, a água pingava-lhe da camisola e das calças molhadas, moldava-lhe as coxas e as pernas musculosas, semiflectidas.

Eis que levanta o braço, reclamando à esquerda e a toda a força.

Daniel, de pé, por detrás do capitão, murmurou-lhe ao ouvido:

- Um bravo rapagão, tem olho. Encontrou o bom rumo; se acerta ao primeiro golpe, será uma boa vitória...

- Aquela vai tramá-lo - resmungou Mallard como resposta, vendo chegar uma onda, muito forte que cobriu inteiramente a proa.

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Mas não. O arpoador continuava de pé, as costas curvadas, as pernas afastadas, as sólidas mãos segurando com força a culatra do canhão. A tripulação estava muda e seguia apaixonadamente os últimos instantes daquela caçada difícil.

Os animais tinham mergulhado, iam emergir de um instante para o outro.

- Ti tch, ch, ch, ch, ch, ch Ali, a cem metros, um ruído de caldeira que rebenta, de vapor que se escapa... Uma massa sombria de reflexos castanhos parece rolar como um pneu gigantesco de que só se visse uma parte.

Galtier comanda, com o braço, mais alguns graus a bombordo. O Titan aproxima-se a toda a velocidade, oitenta... setenta... sessenta metros... Dentro de alguns segundos, a baleia passará mesmo à frente, depois afastar-se-á. Está pouco mais ou menos a quarenta metros.

- Demasiado longe, demasiado mar, vai falhar - diz Daniel em voz baixa.

No entanto, Galtier apontou para o vértice de uma onda, através de uma chuva de fustigantes borrifos... O tiro partiu...: O arpão bate num floco de espuma.

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Daniel, Mallard, toda a tripulação, notou que tinha penetrado mesmo atrás da comissura dos lábios. O ponto óptimo, o dos mestres arpoadores. A lição fora dada por Galtier...

Do tonel de vigia, os grumetes seguiram a cena.

Logo que o dardo de ferro picou, a baleia imergiu. Viram elevar-se, seis metros acima do nível das ondas, o terrível triangulo da barbatana caudal.

Agora, a grande polé que estava sob os seus pés, fazia vibrar o mastro. O cabo deslizava a toda a velocidade e mergulhava obliquamente no mar.

João Pedro e Mónica desceram a toda a pressa para a coberta.

Galtier continuava na proa; Daniel estava perto de Waams, que accionava o cabrestante Para ver se funcionava normalmente.

O cabo desenrolava-se, desenrolava-se sem cessar.

- O que é que se passa? - perguntou João Pedro a Daniel.

- Está a sondar - respondeu o imediato.

- Profundo?

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- Cinquenta, setenta, cento e cinquenta metros, talvez mais.

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� um rorqual velho, deve ter bem os seus trinta metros de comprimento.....

A fuga tornou-se em breve menos rápida, a amarra deixou de correr.

Galtier, que não abandonara a plataforma do canhão, gritou para Waams:

- Puxa! Iça outra vez.

O chefe maquinista enrolou logo o cabo de cânhamo no cabrestante e esticou-o. A baleia aproximava-se. A cabeça emergiu de repente e o seu sopro estalou como o jacto de um extintor de incˆndios, a quinze metros do barco. Tinha ainda força bastante para arrastar o Titan que afrouxara a velocidade.

- Larga! Larga! - comandou Galtier.

Waams parou imediatamente e o enorme cetáceo desapareceu de novo, arrastando o cabo.

Pela maneira como o fio corria agora, adivinhava-se que o animal se esgotava. Veio ainda à superfície a mais de vinte e cinco metros e ali, de repente, com um estertor que parecia o mugido da sereia dum cargueiro, a baleia soprou sangue pelas narinas. O penacho rosado, depois vermelho, inundou e coloriu o mar com uma mancha purpúrea.

Mónica desviou os olhos. Aquele espectáculo perturbava-a.

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Quis dizˆ-lo a João Pedro, mas o rapaz estava com os marinheiros e não parecia sentir o mesmo género de emoção. Sentira um pungente aperto no coração no momento em que a baleia tinha florido como dizem os marinheiros; mas dentro dele reinava uma espécie de alegria instintiva pela derrota do monstro.

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Participara na caçada e, agora, sentia-se orgulhoso por pertencer à equipa cuja destreza, técnica e harmonia tinham levado à captura daquele enorme animal.

- Puxa! Puxa! - gritou Galtier a Waams que manobrou de novo o sarilho, aproximando a baleia do Titan.

João Pedro e Mone contemplavam, um pouco espantados, aquela massa negra que se assemelhava à carlinga de um grande avião de transporte.

- Parece que tem vassouras na boca - notou Mónica.

- � a parte inferior das barbas - explicou-lhe Daniel. - As barbas são como que uma espécie de lâminas distando alguns milímetros umas das outras, com grandes pˆlos na parte que está voltada para o interior da boca.

João Pedro teria desejado fazer maior número de perguntas;

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mas Mallard acabava de chegar ao portaló e ordenou com voz forte:

- Waams e Klein, soprem! Koublac, entrança o cabo no segundo arpão com Galtier, imediatamente!

Gotborg subiu, descalço, para o largo dorso do rorqual e, com a ajuda de uma lança, fez um buraco pelo qual meteu um tubo.

- O que é que eles estão a fazer? - perguntou João Pedro ao imediato.

- Metem ar no interior da baleia para que possa flutuar. Vamos deixá-la à rola e prosseguir a caçada.

- E como a tornarão a encontrar?

- Espeta-se a bandeirinha do Titan em cima e marca-se a posição.

Os grumetes olhavam, com curiosidade, para os homens que insuflavam o ar, quando a voz do capitão os chamou à realidade.

- Os grumetes! Depressa para cima, para a gávea.

Mone e João Pedro treparam pela enxárcia até ao posto de vigia.

- Hoje, creio que não vamos dormir nada - disse Mónica, instalando-se.

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- Não tenho essa impressão - respondeu João Pedro. - Pelo menos, não é vontade o que me falta!

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Lançaram um último olhar para o cadáver que flutuava como um dirigível caído ao mar e em volta do qual adejavam já grandes pássaros marinhos, no céu rosado da manhã que rompia.

Ao longo dos costados, a água cinzenta fervilhava de orcas (1) e espadartes - esses inimigos jurados das baleias que se precipitavam Para devorar a língua do mastodonte, de que são particularmente gulosos.

- João Pedro, olha, ei-las! aí estão outras...

Está a assoprar! Está a assoprar a Es-Nordeste...

Está a assoprar! Está a assoprar!.

Duas horas mais tarde estava apanhada uma segunda baleia.

Mone e João Pedro desceram do mastro, enquanto Gotborg e Galtier preparavam a estivagem do cetáceo.

Mallard, no posto do timoneiro, manobrava para conduzir o Titan até junto do animal.

Havia ruídos de cadeias removidas, ordens gritadas, guinchos de aparelhos que gemiam.

Por fim a campainha do telégrafo de bordo ressoou na casa da caldeira e Waams engatou em: "à vante, devagar". O navio rodou e lá foi pesadameente em perseguição do rorqual.

*Cetáceos da família dos golfinhos.

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- Gotborg, KLein, de quarto! - Disse Daniel. - Todos os outros vão dormir.

Os grumetes não precisavam que lho dissessem.

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VI

QUANDo Gotborg foi acordar os grumetes, o Titan já pairava, havia muito tempo, com as duas baleias amarradas, uma a bombordo, outra a estibordo.

O vento tinha amainado e o sol brilhava alto no céu pálido, provocando lindos reflexos de um verde profundo à superfície do mar.

Os marinheiros não deviam ter dormido muito porque já estavam todos a trabalhar.

Koublack e Klein, descalços, em cima do dorso da baleia, trinchavam, a golpes de pás cortantes, grandes mantas de toucinho. Depois enfiavam num dos extremos daquelas mantas um gancho unido à talha que pendia ao longo do mastro. Com o sarilho, Waams operava uma tracção que despedaçava a talhada de toucinho. Era preciso em seguida cortá-la em bocados muito pequeninos para serem fundidos... Este era o trabalho de Gotborg e João Pedro.

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De pé, em frente de enormes mesas de grosso carvalho cortavam, incessantemente, as peças de gordura com a ajuda de facas de lâminas muito largas, semelhantes aos machetes dos carniceiros:

Os bocados eram lançados em bacias colocadas nas fornalhas de tijolo que Mónica tinha a seu cargo. Devia vigiar a fusão e alimentar com os detritos de toucinho de qualidade inferior.

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Este trabalho, menos duro que o de João Pedro, era repugnante e bem mais desagradável porquanto o cheiro da gordura de baleia fervida e queimada era infecto.

Sentado à maneira dos alfaiates, com as pernas cruzadas sob o corpo, Galtier limpava as peças desmontadas do seu canhão-arpão. Estavam dispostas em cima dum quadrado de lona e engraxava-as ou oleava-as com o maior cuidado.

Já havia sido esquartejado mais de um terço do primeiro cetáceo, quando o capitão Mallard chegou ao balaústre da ponte, apoiando os dois braços no parapeito. Tinha o rosto congestionado e os olhos inchados. Esteve a observar o trabalho dos marinheiros, durante um instante, e depois desceu até à coberta, esforçando-se, com dificuldade, por conservar o equilíbrio.

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Entretanto, chegou até junto do pau de carga e agarrou-se aos ovéns murmurando palavras incompreensíveis, como o fazem muitas vezes os homens embriagados. De repente, ao levantar a cabeça, notou perto dele, do outro lado da amurada, o marinheiro esquimó, Koublack, que o observava.

- Então!

- Bigodes de foca, cansa-te muito trabalhar?

O homem voltou a pegar no cabo da sua pá cortante e apressava-se a retalhar de novo quando Mallard o agarrou pelo ombro e empurrou brutalmente.

Koublack estava descalço, não esperava por aquela violˆncia, perdeu o equilíbrio e escorregou na pele viscosa de sangue e gordura da baleia. Ao cair, retalhou a coxa com o gume afiado da faca. Se tivesse caído ao mar, a perder sangue pelo ferimento que acabava de fazer, as orcas e os espadartes que giravam em torno do cadáver do cetáceo, tˆ-lo-iam imediatamente feito em pedaços. Felizmente Klein, que segurava, com uma das mãos, o gancho da talha, teve o reflexo de se lançar de barriga para baixo e segurar, com a mão livre, o fato do marinheiro. Colocado, ele próprio, em situação delicada por causa do peso do camarada que ameaçava arrastá-lo consigo, pediu ajuda.

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Waams galgou a amurada e foi socorrˆ-lo; Galtier também acorreu. Encontrou-se em face de Mallard no momento em que Koublack e Klein subiam.

- O que é que tens que te misturar aqui? - lançou-Lhe o capitão. - Volta para o teu trabalho.

Como seguisse, com olhar malévolo, o arpoador, que voltava para a proa, notou, de repente, o quadrado de lona onde estavam colocadas as peças do canhão desmontado.

- Com mil raios! Mas aquele julga que está na Feira da Ladra! - gritou.

O seu furor deu-lhe equilíbrio bastante para alcançar o marinheiro.

- Apanha-me esses berloques imediatamente! - ordenou. - Quem te disse para montar todas as peças de metal? O meu barco não é uma barraca de ferro-velho!

- Estou a limpar o mecanismo do canhão. Foi assim que me ensinaram a fazer nos barcos americanos.

- Aqui, não estamos num baleeiro americano e quero lá saber o que te ensinaVam os americanos, apanha isso depressa!

Mallard deu um estúpido pontapé no quadrado de lona.

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O seu estado de embriaguˆz não lhe permitiu medir a força e as peças espalharam-se pela coberta, o percutor e a mola rolaram até ao embornal e caíram ao mar.

- Vˆs! Vˆs o que acontece - berrou o capitão fora de si -, quando uma pessoa se põe a brincar aos mecânicos?

- A culpa é sua e não minha - ripostou o arpoador. - Eu fiz o que devia.

Mallard aproximou-se dele, contraindo os grossos lábios arroxeados pelo álcool, como se fosse lançar uma suprema injúria; depois pareceu mudar de ideias e, com as costas da mão, esbofeteou Galtier.

A tripulação, que seguira com os olhos toda a cena, compreendeu que iria passar-se qualquer coisa muito grave.

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Pálido, os traços endurecidos, Galtier esforçou-se por dominar a cólera. Mallard notou os punhos cerrados à altura dos bolsos, os braços potentes cujos músculos tufavam a lã da camisóla, o ar de terrível decisão.

Pareceu-Lhe discernir clarões de assassínio nos olhos do marinheiro e teve de repente a noção de que nada era, comparado com Galtier. Apavorado, procurou uma arma com o olhar.

O arpão estava-lhe ao alcance da mão; apoderou-se dele.

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Era uma peça formada por uma dupla haste de aço, com metro e meio de comprimento e trés centímetros de espessura, terminada, num dos extremos, por um dardo em forma de lança, aguçado como uma lâmina, feito para penetrar no corpo da baleia.

Mallard brandiu-o acima da cabeça... Não terminou o movimento. Galtier tinha-lhe agarrado rapidamente o punho e os seus dedos apertavam-no como tenazes.

Com a dor, Mallard teve de largar a presa. O marinheiro agarrou na arma com as duas mãos.

O capitão sentiu que um suor frio lhe perlava a fronte. A tripulação estava aterrada.

O arpoador levantou o joelho e, de um só golpe, partiu o arpão pelo meio como teria feito a um vulgar cabo de vassoura.

Um pouco acalmado por aquele gesto onde aplicara toda a força da raiva que sentia contra Mallard, Galtier articulou mesmo no nariz do adversário aterrorizado:

- Se eu quisesse, pedir-me-ias, de rastos, perdão, por aquela bofetada... Tens a sorte de ser capitão e estarmos no mar. Somente te vou dizer uma coisa: não és digno de ser capitão.

Galtier procurou uma outra frase para fustigar Mallard com o seu desprezo mas não encontrou nada mais desprezível do que

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o que acabava de pronunciar; e então, levantando os ombros, escarrou aos pés do comandante, em frente de toda a tripulação, e, voltando-lhe as costas, tornou para o seu posto na proa.

Mallard ficou por um momento embrutecido, como um lutador que acabasse de receber um rude golpe. Depois quis dirigir-se para a tolda.

O seu pé hesitante tropeçou numa corda e caiu pesadamente sobre a coberta. Ficou ali, estendido, sem fazer o menor esforço para se levantar.

Durante a primeira parte da altercação, Daniel encontrava-se na enfermaria ocupado com o curativo de Koublack; só viu o fim da cena e dirigiu-se, sem apressar o passo, para a proa. Chegou no momento em que Mallard estrebuchava.

- Gotborg e grumetes! - ordenou. - Levem o capitão para o camarote, se fazem favor.

Mallard deixou-se transportar como um cepo, sem opor a menor resistˆncia. Murmurava ininteligíveis murmúrios que se assemelhavam ao rosnar surdo de um animal.

Quando o deitaram no beliche, Daniel fechou a porta com o ferrolho e fˆ-los entrar, todos trˆs, num pequeno compartimento contíguo. Aquela divisão fora prevista para permitir ao capitão observar o trabalho ou o andamento do

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barco por uma vigia que dava para a ponte, ao mesmo tempo que tomava as refeições ou descansava.

- Sentem-se, vou-lhes oferecer qualquer coisa - disse o imediato, abrindo um pequeno armário donde tirou quatro copos e uma garrafa de porto.

Ao terminar a tarefa, disse simplesmente:

- Agradeço-lhes terem trazido o capitão para aqui.

Mónica fixou o imediato nos olhos e, sem a menor timidez, disse-lhe:

- � triste chegar àquele estado!

- Quase acreditei - acrescentou Gotborg -, que Galtier lhe ia limpar o sebo.

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- Eu sabia que ele não lhe tocaria - explicou João Pedro. - Um marinheiro nunca ataca um capitão, no mar.

Daniel olhou-o sem responder; e, como ninguém dissesse mais nada, replicou com uma ponta de amargura na voz:

- Se o tivessem conhecido há vinte anos, não se lembrariam de lhe faltar ao respeito. Era outro homem...

- Foi a bebida que o tornou assim? - perguntou João Pedro.

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- Sim, foi sobretudo a bebida e também o filho, um mau filho a quem cabe uma pesada responsabilidade.

- Que foi que ele fez? - perguntou Mone.

- Deixou-o um belo dia, sem mesmo dizer adeus, levando todo o dinheiro que tanto lhe custara a ganhar.

- E não o procurou?

- Não.

- Nunca mais o tornou a ver?

- Não. Soube somente que tinha levado uma vida desordenada e que morrera depois num acidente de automóvel. Foi então que começou a beber.

O imediato lançou um olhar pela vigia. Os homens deixaram de trabalhar e cercavam Waams. A discussão parecia animada. Daniel tornou a pegar no seu copo de porto, olhou-o como um objecto curioso e prosseguiu:

- Enquanto a mulher foi viva, as coisas foram andando menos mal; mas ela não p“de sobreviver à provação e morreu de desgosto dois anos mais tarde. Depois, deixou-se ir à deriva.

- Conhece-o há muito tempo, Sr. Daniel? - perguntou Gotborg.

- Casou com a minha irmã, há trinta anos, tinha eu vinte,

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pouco mais ou menos. Ele tem mais sete anos que eu. Somos ambos de Fécamp. Dantes, o Titan, armado para a pesca de arrasto, voltava ali regularmente. Mas desde que Mallard se meteu a pescar baleias, temos feito estadias cada vez mais prolongadas na Islândia.

O olhar de Daniel passava de tempos a tempos pelo vidro, ia e vinha, como os raios de luz dum farol. O seu rosto mantinha-se impassível. Estava sentado e conversava amigavelmente, tão calmo como se nada de grave tivesse acontecido ou se fosse passar.

Procurou na carteira e colocou, sobre a mesa, uma fotografia.

- Reconhecem-no?

- � ele? Nunca o acreditaria. Que idade tinha?

- Vinte e seis anos, e já comandava o brigue Fleurus. Não havia em toda a frota baleeira da época, fosse na dos americanos, dos russos ou dos noruegueses, um único arpoador que pudesse medir-se com ele. Fizera-se por si próprio, pelo seu trabalho e pela sua coragem, e para isso era necessário então um esforço maior do que hoje, acreditem-me.

Daniel observou durante um momento, pela vigia, Waams

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e o grupo que o cercava. E depois, sem manifestar o menor nervosismo continuou:

- Nessa época ainda não se conhecia o canhão-arpão; era preciso picar a baleia à mão, em doris de seis metros de comprimento por um metro e sessenta de largura... Por vezes eram projectadas no ar, a vinte pés de altura, com um golpe da cauda, e quebradas como cascas de noz.

- Isso aconteceu-lhe? - perguntou João Pedro.

- Sim, duas ou trˆs vezes, mas nunca esquecerei a primeira.

- Conte-nos, Sr. Daniel - pediu o grumete.

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O imediato reprimiu um ligeiro sorriso; previra aquele pedido, tinha-o mesmo subtilmente provocado; aquele relato que Gotborg e os grumetes não deixariam de repetir aos outros, talvez modificasse um pouco a opinião da marinhagem acerca de Mallard e lhe permitisse restabelecer depois a sua autoridade.

Em todo o caso, ia dar tempo para os homens que lá estavam em baixo reflectirem bem antes de tomarem uma resolução que Daniel sabia ser capital.

- Eu já navegara bastante mas nunca num baleeiro. Mallard,

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que estava noivo da minha irmã e devia desposá-la no regresso da campanha, prop“s-me embarcar no Fleurus, que ele comandava - um dos últimos baleeiros à vela. Já tinham sido apanhadas e esquartejadas quatro autˆnticas baleias. Isso não me havia impressionado nada. Desempenhava as funções de intendente e de enfermeiro de bordo e não participava na caçada. Vira os doris partir, e seguira com os olhos as suas evoluções e as peripécias da captura dos cetáceos. Isso passava-se ao longe. Logo que o conseguiam, os homens rebocavam, a remos, os animais até ao navio e procedia-se ao esquartejamento. Uma manhã, encontrava-se o Fleurus a trezentas milhas a Oeste de Nova Caledónia, a 4 graus de latitude Sul, quando o vigia assinalou um rebanho a uma milha de distância, com vento a favor. Os homens, todos antigos baleeiros, notaram imediatamente que se tratava de cachalotes.

- Como é que o podiam saber de tão longe? - inquiriu Mónica.

- Os cachalotes só tˆm uma narina, situada na ponta do nariz, enquanto que as baleias tˆm duas no cimo da cabeça; além disso o seu sopro tem uma inclinação de 5 graus a 55 para a frente, um sopro baixo, largo, potente. As baleias, pelo contrário, sopram a direito e mais alto. "Aparelhem os doris - comandou Mallard, e deitem-nas ao mar imediatamente...

Ninguém se moveu. Sabiam todos o que acontecera ao Essex e ao Ann Alexander com os cachalotes e não os queriam caçar.

- Porquˆ? - perguntou João Pedro. - Os cachalotes são mais perigosos que as outras baleias?

- Muito mais. Primeiro, porque tˆm uma goela enorme, armada de dentes com mais de dez centímetros de comprimento, no maxilar inferior, e no maxilar superior uns alvéolos onde eles se encaixam para melhor despedaçarem as suas presas.

- O que é que aconteceu ao Essex e ao Ann Alexander? - interrompeu Gotborg.

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- Acidentes que aqueles que nunca caçaram o cachalote tˆm dificuldade em acreditar. O Essex acabava de p“r na água os doris que se dirigiam para um rebanho de cachalotes, quando um dos animais carregou sobre o navio e o atingiu com a cabeça com tanta força que Lhe quebrou a falsa quilha. Os homens viram então uma enorme mandíbula tentando morder o costado; depois o monstro afastou-se até a um quarto de milha, virou-se

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e carregou a direito sobre a roda da proa. O Essex navegava a cinco nós com as velas colhidas. Sob o choque, recuou a uma velocidade de quatro nós, formando-se à ré uma enorme vaga. A água introduziu-se a bordo pelas janelas do castelo da popa e invadiu a construção. Os doris reuniram-se imediatamente, mas o navio estava perdido; um barco com uma capacidade de mais de trezentas toneladas! Felizmente a tripulação tinha conseguido apanhar um pouco de pão e água na entreponte e embarcar nos escaleres antes do Essex soçobrar...

- E ao Ann Alexander? - perguntou João Pedro.

- Aconteceu uma aventura semelhante; mas dessa vez foi depois do cachalote ter sido atingido.

- Que foi que ele fez?

- Não procurou fugir como fazem habitualmente as baleias; voltou-se para os doris que o tinham atacado e atirou-os de pernas para o ar. Depois, arremessou-se sobre o Ann Alexander e, às cabeçadas, arrombou os costados e o cavername até que o veleiro se afundou.

- � incrível! - interrompeu Mone.

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- Talvez seja incrível, mas é verdade. Uma vez, próximo do Georges Banks, um cachalote, depois de ter despedaçado um dori, enfiou, pela goela abaixo um dos homens que o tripulavam e engoliu-o, sob os olhares dos seus camaradas!

Daniel prosseguiu o seu relato:

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- Mallard era muito jovem e os homens do Fleurus, todos pelo menos mais velhos dez anos do que ele, esperavam fazˆ-lo ceder. Mas quando o viram passar o comando ao imediato, tomar no doris o lugar do arpoador e dar-me a mim, o novato, o governo do leme, não ousaram dizer mais nada. Quatro veteranos: Bourgneuf, Lebrec, Rotz e Heaton, completaram a tripulação sem protestar. A embarcação avançava com um bom andamento e em silˆncio, segundo o uso, os remos levavam, por cima, uma trança de cânhamo para evitar o ruído e ninguém conversava... Ao princípio, eu estava muito ocupado em segurar o leme e seguir as indicações que Mallard ia dando com os braços, para pensar em olhar ao longe; mas de repente

*Ver nota final,

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os animais emergiram a menos de cem metros e ouvi os seus sopros. Dir-se-ia o rugido de um trovão repercutindo de eco em eco (1). Não pude reprimir um estremecimento. Todos tínhamos notado uma coluna de bapor de água mais alta do que as outras e era para ela que Mallard nos dirigia. Soprava uma fraca brisa de Es-Nordeste. Instintivamente voltei-me para procurar, com os olhos, o Fleurus. Seguíamos suavemente, a uma milha de distância, com as velas da gávea, a giba, a bujarrona e a mezena desfraldadas. A trinta metros do cachalote, senti bruscamente medo e pânico, se estivesse sozinho teria dado meia volta. Sobre os rostos dos quatro remadores reflectia-se uma inquietação que também não conseguiam dissimular. Aproximávamo-nos. Aproximávamo-nos. As vagas quebravam-se sobre o negro flanco do cachalote cuja massa enorme avançava lentamente enquanto nos aproximávamos ainda mais.

- Crraac! crac. crac. crac. crac. crac!...

Uma erupção de água sob pressão foi projectada pela narina, inundando-nos de salpicos.

*Num artigo técnico sobre as baleias, aparecido em La France Maritime, o Sr. Jules Lecomte, testemunha ocular emprega a mesma comparação.

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Continuávamos a aproximar-nos. Ouvi o rebentar das ondas ao longo do corpo do animal. Aproximávamo-nos sempre. Mallard tinha posto o joelho na borda do convés e apanhado um arpão. Deus do céu, o seu braço nem mesmo atingia a grossura do jacto do cetáceo! Os remos detiveram-se no ar, prontos a fazer imediatamente marcha atrás. Os meus dentes batiam sem que eu conseguisse dominar-me. A quatro metros, Mallard lançou a arma com todas as suas forças. Mal atingira o animal debaixo das beiçadas, o remoinho aumentou perto da cauda do cachalote. Os remos moveram-se aos recuões enquanto a linha corria, desgastando-se contra a borda do barco. De repente, mesmo a tocar o dori, vi sair da água a impressionante superfície da cauda - posta em pé teria chegado à altura de um prédio de dois andares. Elevou-se e estalou no ar, acima das nossas cabeças, como uma detonação, depois a monstruosa barbatana desapareceu a algumas braças de nós, levantando uma onda de treze pés de altura. Mallard seguia o desenrolar do cabo com a mão sobre a machadinha.

- Porquˆ com a machadinha na mão? - perguntou João Pedro.

- Para cortar a linha logo que ela se enredasse,

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senão o cachalote teria arrastado o dori para o fundo e a nós também.

- Devia ter apanhado um susto enorme - disse Mone.

- Estava aterrorizado, e os outros também não estavam mais à vontade, mas não tínhamos tempo para reflectir, era preciso estar pronto para obedecer ao menor gesto e evitar o acidente. A linha penetrava quase a direito no mar.

- Está a sondar - disse Heaton, que estava próximo de mim. - Contanto que não venha à superfície mesmo por debaixo de nós.

- Aprontar os barris - ordenou Mallard.

Largaram-nos logo.

- Os barris?

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- Sim, para fatigar a baleia e impedi-la de mergulhar muito profundamente, prendíamos, às vezes, alguns barris na linha, o que aumentava a resistˆncia. A linha começou a afrouxar. O animal ia subir. Começámos a puxar novamente o cabo e a enroscá-lo a bordo. O cachalote emergiu a dez metros do escaler, e crrraac! crac! crac! crac! crrraac!... projectou no ar um sopro que se fundiu como um jacto de vapor. Pelos movimentos do seu enorme corpo, compreendemos que estava furioso. Procurou mudar de rota. mas tínhamos enrolado a linha

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em volta da cavilha e conseguimos mantˆ-lo. O animal rebocava-nos a toda a velocidade. O dori saltava clac, cla clac, clac, cla cla clac... como uma canoa atrás de um barco a motor:

- Puxem! Puxem para cima! - comandava Mallard.

Os homens esticavam o cabo para aproximar a embarcação do cachalote. Eu não conhecia a manobra, mas os outros já estavam habituados. Deviam colocar o dori mesmo no recorte da barbatana caudal, para Mallard poder feri-lo com a lança ou com a pá cortante. Uma operação delicada e perigosa; mas era a regra. A embarcação conseguiu em breve tocar a cauda. † direita e à esquerda da roda da proa, moviam-se os extremos da barbatana, levantando penachos líquidos que nos fustigavam e inundavam o escaler. Bourgneuf esvaziava a água, sem parar. O mestre do dori era então tudo para nós. Da sua coragem, da sua força e da sua competˆncia dependiam as nossas vidas.

- Vamos a ele! Vamos a ele! Dá-lhe! Dá-lhe! - gritei com os outros quando, com um forte golpe de lança, atingiu o monstro. Neste grito havia menos maldade do que medo e esperança de nos vermos desembaraçados, o mais cedo possível, daquele perigo constante. O capitão tinha atingido o cetáceo num sítio vital,

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obrigando-o a diminuir progressivamente a velocidade. Mallard enterrou então a lança, voltando-a em todos os sentidos. O animal ainda acelerou e depois parou bruscamente. Era preciso deter o andamento do dori e ciar com os remos. Os homens não manobraram suficientemente depressa. e a embarcação foi parar mesmo em cima da cauda. O animal

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debatia-se e teve nesse momento um sobressalto. Fomos projectados. Mallard caiu na água e os outros sobre o dorso viscoso do cachalote donde deslizaram para o mar. Eu fui estatelar-me contra o casco desmantelado do dori e quebrei o fémur. Agarrei-me, desesperadamente, a um destroço que flutuava a pouca distância do animal. Bourgneuf e Heaton tinham-se agarrado à linha do arpão, que continuava profundamente fixado no corpo do mamífero. Sentia uma dor muito forte na coxa; a minha vista turvava-se e, sentindo que ia perder os sentidos, chamei por socorro. Ouvi a voz de Mallard que designava os destroços aos marinheiros e lhes dizia que se mantivessem ali agarrados. Depois nadou para mim e passou-me o braço à volta do pescoço.

- Creio que estou pronto - disse-lhe eu.

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- Não, salvar-te-ei, está descansado; nunca te abandonaria.

Aquelas palavras de confiança tranquilizaram-me mas não me impediram de desmaiar por uns instantes. Quando recobrei os sentidos o cachalote soltava um estertor potente e rouco, penoso de ouvir, o supremo apelo de um ser gigantesco que vai morrer. No mesmo instante ejaculou sangue - uma coluna vermelha de quinze pés de altura que tombou sobre nós e nos salpicou abundantemente. Os homens acolheram este último acto com um urro de triunfo. Pode dizer-se que isso é selvajaria, mas quando se viveram minutos tão trágicos, tão cheios de perigo, em que os nervos sofrem uma dura prova, aquele é um grito de alívio. Exprime a alegria de ter vencido um inimigo cem vezes maior e mais forte, e também a de ter escapado a uma morte que se sentia muito, muito próxima de nós!

- E depois? - perguntou João Pedro.

- Mallard, embora também já estivesse esgotado, aguentou-me durante uma hora até que Fleurus nos recolheu. Aquela belíssima presa forneceu-nos cem barris de óleo. Da cabeça tiraram-se dez quintais de óleo especial. Do maxilar, dentes de grande valor, de oito a catorze centímetros de comprimento.

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Mas, ao começarmos o esquartejamento, esperava-nos uma boa surpresa que chegou para compensar os nossos trabalhos. O intestino continha âmbar cinzento.

- Julgava que o âmbar era resina de pinheiro petrificado. - interrompeu Mónica.

- Sim, o âmbar amarelo; mas o âmbar cinzento é uma matéria que se encontra nos intestinos de alguns cachalotes. � mole e não cheira muito bem, mas em contacto com o ar endurece e exala depois um odor muito agradável. O seu preço é extremamente elevado. Mallard tinha-me salvo a vida - prosseguiu Daniel. - Continuei a navegar com ele como marinheiro e, em breve, na qualidade de imediato. A minha irmã, que o amava profundamente, pediu-me antes de morrer que nunca o abandonasse.

Prometi e, aconteça o que acontecer, manterei a minha palavra.

Daniel n•tou que a tripulação que conversava lá em baixo, se tinha agrupado atrás de Waams e se dirigia para a ponte.

Levantou-se, deixou passar Gotborg e os grumetes, e depois encaminhou-se para o posto do timoneiro.

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VII

OS homens pararam a alguns metros da porta e deixaram Waams avançar sozinho.

- � a respeito do capitão - disse o chefe maquinista abordando Daniel. - A tripulação considera que ele ultrapassou os seus direitos e, dado o seu estado e os factos que se verificaram, recusa-se a continuar a obedecer-lhe. Pedimos-lhe para tomar o comando do barco. Como já não podemos pescar baleias sem o canhão, queríamos subir um pouco mais para o Norte, para caçar focas a tiro. Sem isso, apenas com os dois animais apanhados, nem mesmo teremos com que pagar o pão no Inverno.

- O Norte, no fim do Verão, é perigoso - disse Daniel - e além disso as focas são raras.

- Koublack conhece um ilhéu no Spitzberg, um pouco ao norte do Wijde Fjord. Parece que há ali muitas. Não teríamos necessidade de lá ficar muito tempo.

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Galtier é um óptimo atirador e depressa teríamos peles e óleo que nos indemnizassem.

Daniel foi até ao limiar da porta e colocou-se em frente dos marinheiros, que esperavam ansiosamente a resposta.

- O Sr. Waams - disse-lhes - deu-me parte da vossa deliberação. Sabem que é muito grave desapossar das suas funções um capitão em... pleno mar. No regresso tereis de responder por isso. Pergunto-vos se reflectiram bem e se mantˆm a vossa decisão.

- Sim, senhor - responderam eles.

- Quais são os que não estão de acordo?

Ninguém levantou a mão. Após um instante de silˆncio, Daniel replicou:

- � meu dever informar-vos de que as paragens para onde querem ir, ao norte do Spitzberg, se vão tornando cada dia mais perigosas. Nessa latitude, o mar não tardará a gelar. Os nevoeiros serão frequentes, os bancos de gelo numerosos...

- Sabemos isso mas preferimos tentar - disse Waams. - Não queremos voltar com as mãos vazias.

- Pela última vez, estão todos de acordo? - perguntou Daniel.

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- Sim, senhor.

- Bem - disse o imediato voltando-se para o chefe das máquinas -, De agora em diante o Sr. Waams substituir-me-á nas minhas funções. Peço-lhe que anote tudo isto no livro de bordo. E, agora, voltem para os vossos postos e retomem o esquartejamento.

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Uma manhã, numa estreita banda de azul pálido, apareceram os cimos nevados do Spitzberg. Cintilaram por um momento sob os raios do sol como diamantes encastoados nos vértices das rochas escuras e ocres, dominando o mar a mais de mil metros de altura, depois tudo se desvaneceu num instante. Uma cortina de bruma recobriu aquelas maravilhas com um véu opaco que se estendeu sobre o mar, envolveu os gelos eternos soldados às margens e atapetou c•m um branco monótono e triste as paredes sombrias das rochas nuas.

João Pedro e Mone vigiavam à proa, com Galtier. Era preciso redobrar de atenção naquelas paragens perigosas do Grande Norte.

Em dado momento, pareceu-Lhes que o mar se tornava espesso, vermelho e recoberto de partículas brilhantes como mica.

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- Atenção - gritou João Pedro -, devemos estar próximos da costa, a água está cheia de pontas de algas e areias brilhantes.

Galtier inclinou-se por cima da amurada:

- Não, não são algas nem sílica, miúdos, é comida de baleia.

- Comida de baleia? - interrogou Mone, admirada.

- Sim, as baleias não são como os cachalotes, não se alimentam de polvos, chocos e peixes, só comem plancton (1), pequenos moluscos moles e são estes animaizinhos que dão ao mar uma cor tão engraçada. Não sabes que as baleias nadam com a boca entreaberta e a garganta fechada. Toda esta comida entra pela abertura. A água sai pelos lados dos beiços. Mas as barbas e os pˆlos que se encontram debaixo das barbas seguram os alimentos que o animal engole depois com um movimento da língua, quando tem a boca cheia.

- O que sai pelas narinas é a água que ela tinha engolido?

*1 Os Noruegueses chamam Kril a esses pequenos crustáceos, tão numerosos no Verão e na Primavera, que tingem de vermelho grandes extensões de água. O Kril põe à superfície minúsculos ovos, transparentes e brilhantes, que também constituem um dos alimentos das baleias.

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- Dantes pensava-se que sim, mas isso não pode ser. Por onde passaria a água? Bem viste que a garganta não comunica com os pulmões. Aquele jacto é o seu sopro, a sua respiração...

O ilhéu de que Koublack tinha falado era na realidade um grande recife granítico situado ao largo da ilha Hoffen, a norte do arquipélago de Spitzberg.

O centro deste grupo rochoso elevava-se a cerca de 100 metros de altura. Estava cercado por enormes blocos de gelo que prolongavam o ar saturado de humidade e aquecido nos pulmões da baleia a 36 ou 38 graus, temperatura do sangue do cetáceo.

A temperatura de um peixe é muito menor mas a baleia não é um peixe, é um mamífero que vivia outrora em terra, ao que se crˆ, nas margens dos grandes rios e teria sido coagida a alcançar o mar alto na época glaciária, sem dúvida Para encontrar alimento. Certas partes do seu esqueleto, em particular a presença de uma bacia embrionária que parece hoje absolutamente inútil, a cauda situada no plano horizontal e não vertical como nos peixes, assim como outros detalhes parecem favorecer esta teoria. De qualquer maneira, o ar húmido contido nos pulmões da baleia sofre uma súbita perda de calor quando é soprado para o exterior, derivado da sua brusca dilatação, e já não pode conter tanta humidade. Esta condensa-se imediatamente, constituindo os penachos brancos a que os baleeiros chamam sopros. A este vapor juntám-se alguns litros de água que se encontram nas cavidades das narinas no momento em que o animal emerge.

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No declive, mais ou menos acentuado desde o seu cume.

Para o norte, os bancos de gelo difundiam uma pálida claridade que dava ao mar a sua cor opalina. Por vezes apareciam enormes bancos de gelo cobertos de colónias de guilhemotos, de gaivotas ou pinguins. Estes pássaros tinham unido a sua sorte à daquela ilha flutuante que corria à deriva, arrastada pelo vento e pela corrente até às margens desertas da Gronelândia.

O Titan fundeou muito ao largo, a leste do ilhéu, para evitar os escolhos mal assinalados no mapa, que mostravam aqui e ali as suas perigosas asperezas.

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Armados duma Mauser de repetição e acompanhados por Loux, que a visão do gelo tornava nervoso e impaciente, Daniel e a tripulação desembarcaram do escaler sobre o promontório gelado do recife.

- Não se vˆem muitas focas - fez notar Gotborg.

- Tu não as vˆs - respondeu Koublack -, mas o husky já sabe onde elas se encontram

olha para ele.

O cão farejava o vento e a sua cauda em penacho era animada por pequenos frémitos convulsivos.

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- Vou fazer um reconhecimento com ele - disse o esquimó. - Far-vos-ei sinal.

- Guia! guia! guia! Loux! guia! guia!

guia!...

O cão voltou a cabeça com um gesto vivo.

Por detrás das pálpebras fendidas em amˆndoa

os olhos do animal e os do homem dos gelos, tão semelhantes, trocaram um olhar que lhes bastou para se compreenderem.

- Guia! guia! guia! Loux! guia! guia!

guia.

Esta palavra gutural electrizava o cão, que deu alguns saltos em frente, depois, mais calmo e consciente do seu papel, avançou como os lobos, o corpo muito rasteiro, as omoplatas salientes.

Koublack seguiu-o rastejando, até a uma protuberância onde o gelo formava uma espécie de muro. Chegado ali, ergueu-se lentamente apoiado nos cotovelos, inspeccionou a outra parte do ilhéu e, depois, mantendo o husky deitado, fez sinal a Galtier para se aproximar sem se deixar ver.

As focas arrastavam pesadamente o seu ventre redondo sobre o espelho liso do gelo. Não receavam qualquer inimigo; mergulhavam, Perseguiam-se, nadavam de barriga para baixo,

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ou de costas, voltavam a içar-se com a ajuda das flexíveis barbatanas.

- � uma pena matá-las - disse Mone -, Tˆm um ar tão meigo como se fossem cães.

- Se não se matassem destruiriam em breve o peixe todo - disse Koublack -, Comem diariamente quilos dele.

- Não é para fazer fortuna que as matamos - replicou Galtier. - � para ganhar a nossa c“dea. Não são mais para lamentar que as sardinhas, os atuns ou os peixes de arrasto. Eu não sou muito piedoso mas a minha opinião é que se Deus os fez não foi para os deixarmos de lado quando precisamos.

Depois de contado o cardume, Daniel fixou em duzentos o número de animais que abateriam. Isso seria o suficiente para indemnizar largamente cada homem da tripulação.

A operação devia durar quatro a cinco dias: no primeiro, Galtier mataria os animais, no segundo e nos trˆs outros dias, uma parte dos marinheiros esfolava as focas e esquartejava-as enquanto a outra parte se ocuparia da fusão do toucinho.

Logo que possível, carregariam no escaler os barris e as peles de foca para bordo do Titan.

Era preciso andar o mais depressa possível porque a estação já ia muito avançada.

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Durante toda a tarde e uma parte da noite ecoaram os tiros. As falésias rochosas repercutiam ao longe o ruído das detonações que se sucediam com intervalos regulares.

Escondido por detrás da sua muralha de gelo, Galtier apontava sempre com uma precisão que fulminava a desditosa vítima.

Por outro lado, as focas constituíam uma caça relativamente fácil para o excelente atirador que o marinheiro era. O animal atingido na cabeça sucumbia quase sem sobressaltos. As outras, espantadas com o insólito ruído voltavam a cabeça para a direita e para a esquerda e,

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não vendo ninguém, não tentavam fugir. Só no fim, quando compreenderam que uma quantidade enorme de focas estava morta, se precipitaram, esbaforidas, para o mar.

As duas últimas balas levantaram uma coluna de água mas atingiram a cabeça, como acontecera às outras.

João Pedro, que tinha ficado perto de Galtier para lhe passar os cartuchos e segurar Loux, lançou um olhar de admiração ao marinheiro.

- Duzentas balas para duzentos animais! Nem uma perdida! Não houve uma foca que não tivesse sido morta ao primeiro tiro!

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Caramba! � mais forte que o Búffalo Bill!

- Agora não é altura para falarmos nisso - disse Galtier. - � preciso corrermos para apanhar aquelas duas que flutuam de barriga para o ar e vão ser arrastadas para o largo.

João Pedro soltou Loux que correu como uma lebre e foi cheirar as infelizes vítimas com um prazer evidente.

- Não são essas, são as outras, ali na água, que é preciso ir buscar - indicou o marinheiro.

Loux esforçava-se por compreender as palavras do arpoador. Os seus olhos castanhos palhetados de ouro seguiram a direcção do dedo e distinguiram os corpos à deriva.

- Vai, Loux!... guia! guia! guia! - gritou João Pedro.

O cão avançou e, sem hesitar, lançou-se ao mar.

- E ele vai, com mil demónios! - exclamou Galtier. - Mas não creio que seja capaz de as transportar. Aqueles animais tˆm um bom peso...

No entanto trouxe-as, uma após outra, até à margem, com uma paciˆncia e uma tenacidade incansáveis...

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- Olha para o cão! - disse Galtier a Gotborg. - Tem olho, sabe por onde deve agarrar. Puxa pela cauda como nós quando rebocamos uma baleia.

- Ele nada muito bem - notou João Pedro, entusiasmado.

- Estava convencido de que ele não teria força - replicou o marinheiro -, mas nadando assim seria capaz até de rebocar duas ao mesmo tempo. Estende as patas como um alcatraz e move-se lentamente, exactamente como deve ser.

Mone e Daniel tinham arranjado as fornalhas para a fusão da gordura de foca numa pequena praia de seixos, próximo do promontório de gelo, onde, durante os escassos dias do período quente, corria um ribeiro de neve derretida.

Durante esse tempo, Gotborg, o carpinteiro de bordo, e Koublack, o esquimó, confeccionaram um trenó destinado a facilitar o transporte dos animais abatidos, das peles e dos barris de óleo.

Os dias diminuíam cada vez mais rapidamente. O sol levantava-se tarde e punha-se mais cedo. Era muito raro que brilhasse num céú limpo de nuvens. O nevoeiro devorava-o

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e a maior parte do tempo, apenas se podia adivinhá-lo seguindo a sua curva no horizonte cada dia mais baixa e mais curta.

- Tu viste isto, Waams - disse Klein ao seu companheiro que o ajudava a esfolar as focas. - Todas as balas atingiram a cabeça; não será bom encontrar-se na linha de mira do arpoador.

- Nem ao alcance da sua mão - acrescentou Waams -, O velho teve sorte por ele não o agarrar no outro dia. Baldeava-o sem dificuldade pela amura.

- A propósito, não o tornámos a ver. As coisas devem ter aquecido entre ele e o imediato.

- Aquecido, não - replicou Waams. - Com Daniel as coisas nunca aquecem, tem sempre a última palavra pela doçura. Por outro lado, e de acordo com o que ele me disse, Mallard não passa muito bem desde essa história. Um dia estoira; está completamente cozido pelo álcool. Se lhe chegasses um fósforo ardia como uma tocha.

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O ajudante do maquinista, sentindo que os rins curvados se anquilosavam, endireitou-se por um instante e viu que um carro se dirigia para ele.

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- Olha para os grumetes! Descobriram um filão!

Loux fora preso ao trenó e puxava os arreios com uma alegria evidente, transportando sem esforço Mone e João Pedro, muito divertidos com aquela nova atracção. T-la-iam mesmo prolongado de boa vontade se Daniel não tivesse intervido...

- Vamos! Vamos! miúdos a carregar, a carregar; não é altura para brincadeiras. O sector não é bom e quanto mais depressa sairmos daqui melhor será para toda a gente.

Antes de voltar para bordo disse ao chefe maquinista:

- Ficará com eles, Sr. Waams, estabeleça um horário de trabalho alternado para a noite. Logo que seja possível mande carregar para bordo.

O clarão das fornalhas desenhava estranhos halos na bruma da noite e as silhuetas dos homens, aumentadas pela sombra, animavam essa claridade. Inclinavam-se sobre o fogo para o alimentar, deitavam os bocados de toucinho nas bacias ou descarregavam o trenó com gestos que se alongavam desmesuradamente sobre o gelo.

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Os miúdos dormiam muito próximo das fornalhas, enrolados em cobertores e oleados. Os barris tinham sido dispostos uns ao lado dos outros para os abrigarem do vento muito fresco que soprava de Leste.

Waams despertava-os às horas prescritas e outros se enfiavam nos lugares ainda quentes, para algumas horas de sono.

Por vezes alguns pássaros vinham cortar com um voo rápido aquelas auréolas de luz dispersa que os atraíam. Eram andorinhas cinzentas de cabeça cendrada, grandes mergulhões de asas curtas e corpos carnudos, gansos que passavam como flechas soltando gritos agudos ou

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nasalados e depois voltavam a reunir-se aos seus companheiros, cerrados uns contra os outros, sobre os picos nevados que dominam o mar.

Outras vezes, as focas que, esquecidas da matança da véspera, tinham voltado para os seus poisos costumados, lançavam apelos guturais que o eco ampliava.

Loux não os podia ouvir sem estremecer. O seu instinto de caçador despertava. Havia muitos séculos que os seus ancestrais ajudavam o homem a capturar aqueles animais que constituem a base essencial da alimentação no †rctico...

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Mas a despensa estava cheia; tinha tido uma grande ração de carne, os movimentos rápidos da sua cauda indicavam simplesmente a alegria de se encontrar naquelas regiões onde o ar gelado dilatava agradavelmente os seus pulmões de cão polar.

Que os seus donos repousassem, ele não. Sentia-se muito feliz fazendo deslizar o trenó com o esforço dos seus músculos, desporto apaixonante para um husky de raça nobre que se sabe o companheiro útil, indispensável, do seu grande amigo o homem.

Naquela noite, Loux sentia que dentro dele cresciam todas as aspirações, todos os desejos que os da sua linhagem tinham experimentado outrora, sobre aquele imenso império, sem limites, de horizontes imaculados.

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VIII

ESTAVA-SE na quarta noite, cerca das 10 horas, quando apareceu de repente, ao norte, um estranho e diáfano clarão.

João Pedro rolava um barril de óleo para o ponto em que se tinham reunido, no promontório, onde estava também Galtier, Koublack e Mone.

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Todos os outros conservavam-se a bordo do Titan, ocupados com a fusão.

Com efeito, Daniel decidira utilizar os fornos do baleeiro para apressar o trabalho; o escaler devia vir no dia seguinte buscar a tripulação, assim como as peles e os últimos barris de óleo que o grupo de terra reuniria, no decorrer da noite, num sítio onde o gelo era fácil de abordar.

Loux também devia ter notado o curioso fenómeno, porque deixou de pular em volta do grumete e voltou os olhos para o mesmo lado.

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Parecia que um novo dia ia nascer, que o sol surgiria de repente ali. Um instante mais tarde, um choque surdo e potente ergueu no ar todo o promontório, deixando-o inclinado. Abriu-se uma enorme brecha com um estalar sinistro. Mais de mil metros cúbicos de água jorraram imediatamente pela fenda e varreram o gelo, arrastando João Pedro, que tentou em vão segurar-se.

Ainda viu o barril de óleo que rolava e Loux, cujas patas afastadas procuravam uma aspereza onde se segurar com as garras.

Gritou:

- Socorro! Socorro! A mim! A mim! - enquanto deslizava para o mar, debatendo-se nos remoinhos gelados que lhe paralisavam os braços entorpecidos pelo vestuário ensopado.

Teve imediatamente a nítida sensação de que não conseguiria forças para se salvar, que apenas se aguentaria mais alguns minutos ao cimo da água. Depois, acabar-se-ia tudo.

Era o último momento, o momento de encomendar a sua alma a Deus. Nadava verticalmente, arrastado para o fundo pelo peso dos sapatos cheios de água, dos fatos que se Lhe colavam ao corpo como um revestimento de chumbo.

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A fenda alargava-se, o promontório de gelo, destacado do ilhéu, afastava-se cada vez mais e nunca ele conseguiria alcançá-lo; estava transido de frio e sentia-se enfraquecer.

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- Socorro! A mim! Depressa! Depressa!. Estou a afundar-me! Estou a afundar-me!...

Viu duas brasas que luziam na penumbra ao alcance da sua mão, e depois sentiu uns ganchos de marfim branco tactearem com precaução a gola do seu casaco antes de se fecharem solidamente sobre o tecido.

Logo se sentiu vigorosamente puxado.

- Loux, meu cão, meu querido cão! - balbuciou João Pedro, batendo os dentes.

Aquela intervenção dava-lhe esperança e inculcava-lhe uma força de que se julgava incapaz um momento antes.

Com a mão esquerda agarrou-se aos pˆlos do animal enquanto nadava com a direita para o ajudar.

- Vamos, meu Loux, vamos!

O cão não precisava de encorajamento. Conduziria João Pedro ou naufragava com ele. Um husky nunca abandona uma tarefa empreendida. Mas seriam precisas horas e horas de luta, e fadiga e esforço antes que Loux estivesse esgotado. Os seus músculos duros, indiferentes ao frio, moviam-se com maleabilidade e força.

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Os seus nervos de aço conservavam o equilíbrio mesmo nas piores dificuldades.

João Pedro sentia no pescoço o hálito quente do cão, que mantinha o nariz fora de água e batia as patas muito abertas com um plof plof regular, sem precipitações, com a braçada calma de animal habituado a nadar longas distâncias.

A beira do promontório aproximava-se, já se distinguiam ali umas sombras.

- Eh! João Pedro?

- Galtier! Galtier!

- Aguenta, meu rapaz! Pega a amarra!

O braço do arpoador descreveu um grande molinete, o cabo lançado assobiou e caiu, com um ruído de água atingida, mesmo em cima da cabeça de Loux. O grumete agarrou-o imediatamente.

- Agarra, meu filho! Agarra-te bem, que eu vou puxar.

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João Pedro foi rapidamente atraído, arrastando consigo Loux que, embora sentisse os seus movimentos impedidos, continuava energicamente, sem largar a presa com os maxilares cerrados.

Dois braços robustos içaram-no para fora de água, desembaraçaram-no do vestuário.

Um instante mais tarde, num estado de semi-inconsciˆncia,

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João Pedro sentiu as mãos delgadas de Koublack, untadas com óleo de foca, que lhe friccionavam os músculos, contraíam e dilatavam o tórax. Por momentos aquilo fazia-Lhe mal e ele gemia:

- Basta! Basta!

O esquimó não parava por isso a sua maçagem vigorosa. Quando terminou, enrolou o grumete em cobertores e numa lona encerada, só deixando uma pequena abertura para o rosto.

O rapaz entreviu Loux, tranquilamente sentado sobre as patas traseiras, com os pˆlos cobertos de geada. Mone veio perguntar-lhe:

- Sentes-te melhor?

Ouviu Galtier dizer a Koublack:

- Contanto que ele não apanhe uma pneumonia...

O esquimó, cujo brilho dos olhos negros notou através das estreitas fendas das pálpebras, respondeu com um sorriso:

- Oh! Não, o bom fogo entrou agora no seu corpo. Queimará todo o mal.

"queimará todo o mal, queimará todo o mal... queimará, queimará..."

Um benfazejo calor entorpecia-lhe os membros e dava-lhe uma intensa vontade de dormir. "Queimará, queimará..."

Os olhos fechavam-se-Lhe irresistivelmente.

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Arder todo não era uma tortura mas sim uma sensação agradável, repousante.

Então por que era que o carrasco se agitava em torno do fogo e gritava assim? Não sentia medo, ele tinha-o incendiado e deixava-o consumir-se lentamente sem se aproximar.

Como era doce morrer assim! Daí a pouco estaria no paraíso, já não tardava com certeza.

Mas o carrasco devia estar no inferno e terrivelmente infeliz, porque ouvia ainda os seus gritos desesperados.

- Oh oh oh! i i i oh oh oh...

- Não serve de nada esganiçares-te assim - disse Galtier ao esquimó -, o Titan está a quatro milhas com vento a favor, por detrás da muralha dos rochedos. Não podem ouvir-nos.

- Talvez vejam o nosso fogo - disse Mónica.

- Como queres que o vejam? Andamos à roda na mesma linha do ilhéu, como se fossem atrás de um guarda-vento. Não podem ver nada.

- Mas amanhã de manhã hão-de procurar-nos e certamente nos encontram - replicou Mone, angustiada.

- Amanhã de manhã, minha pobre filha, devemos estar a trinta milhas daqui, e em que estado...

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Galtier não esperou por nova pergunta de Mone. Aproximou-se de João Pedro.

- A este tanto se lhe dá, dorme como um abade. O que para aqui vai! Koublack esfregou-o com alma. Está encarnado como um camarão cozido.

Mónica aproximou-se do esquimó que, não obstante a opinião de Galtier, continuava a gritar os seus apelos.

- Koublack, achas que o Titan não nos encontrará?

- Não sei, talvez não encontre.

- Então este pedaço de gelo vai fundir-se pouco a pouco e afogar-nos-emos.

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- Quanto à fusão, não há grande risco nesta época; mas se continuarmos cá em cima, à rola isso é outra coisa. Não seríamos os primeiros a quem acontecia.

- Não compreendo como é que este enorme promontório se destacou de uma vez.

- Não viste o banco de gelo que nos atingiu? Uma massa como aquela não teve dificuldade em descolá-lo da costa. Mas vai cuidar do fogo. Eu continuarei a chamar. Deitaram com certeza uma baleeira à água.

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Galtier foi sentar-se num barril. Com o auxílio de uma concha, deitava lentamente óleo de foca sobre o fogo que ardia mal. As chamas crepitavam, soltando uma espessa fumaça de cheiro desagradável. O marinheiro tinha um ar cansado e abatido. Quando Mone chegou ao pé dele olhou-a com tristeza.

- Não devia ter-vos embarcado comigo no Titan - disse-lhe. - Nunca devia ter feito isso.

- Julgava que tinhas mais coragem - respondeu Mónica, com a garganta contraída pela emoção. Foi com esforço que acrescentou: - O senhor Daniel vai procurar-nos, há-de ver a fumaça. Não andamos muito depressa.

O arpoador manteve a cabeça baixa e continuou a deitar óleo na fornalha.

- Não te vou mentir, pequenita, mas com um vento como o que temos e a arrefecer desta maneira, antes de duas horas o mar vai encrespar-se e teremos a neve em cima de nós.

Mesmo o melhor marinheiro não poderá fazer outra coisa que p“r-se ao abrigo.

Enquanto ele falava, Mónica sentia que os seus olhos se tornavam húmidos, mas não queria chorar, lutava contra as lágrimas que lhe afogavam lentamente as pupilas, se penduravam

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nas pestanas e corriam já pelas faces.

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Galtier viu essas lágrimas, sentiu vontade de se aproximar dela, de fazer um gesto para a consolar, mas não ousou.

- Zut, zut! Fora com estas lágrimas! - disse de repente Mone, sacudindo a cabeça com um movimento decidido -, estúpida esta água que vem mesmo quando não se quer e molha tudo �- disse, enxugando os olhos. - Escuta-me, Galtier, mesmo que tenhamos de morrer aqui, fizeste bem em nos trazer. Estou muito contente por ter vindo; e também não estamos ainda mortos, há outras coisas a fazer em vez de pensarmos nisso.

- Valente rapariga! - exclamou Galtier, a quem aquela saída inesperada reconfortava e distendia um pouco. - Há alguém que se sentiria orgulhoso por saber que tu falas assim no momento presente. Tens razão, pequena, vai procurar Koublack para que se arranje imediatamente um abrigo.

Waams e Gotborg, cegos pela tempestade de neve, foram obrigados a navegar à bússola. Quando atingiram o sítio onde devia encontrar-se o promontório, pensaram primeiro

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que se tinham enganado; mas logo viram as fornalhas, as bacias e algumas ossadas de foca sobre a pequena praia.

Desembarcaram e procuraram durante uma hora os seus camaradas, chamando-os com todas as forças: Somente o eco respondeu às suas vozes angustiadas e foi com o coração muito pesado que se decidiram a embarcar na baleeira, regressando ao Titan.

Assim que o anexo abordou o navio, Daniel notou imediatamente que a tripulação não estava a bordo.

- Ainda não terminaram? - perguntou a Waams, logo que este p“s pé na ponte.

- Não foi isso. O promontório soltou-se da costa e deve ter partido à rola com eles em cima - explicou Waams. - Só ficaram ali os vestígios.

- Procuraram no ilhéu?

- Sim, não está ninguém.

O rosto de Daniel, geralmente tão calmo, crispou-se como sob o efeito de uma dor súbita. Dir-se-ia que tinha sido atingido por uma violenta crise e que se retesava para não gritar.

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- Não os podemos procurar hoje - disse após um curto silˆncio. - O tempo não o permite. Vão repousar; ao primeiro clarão levantaremos âncora e tentaremos encontrá-los.

Durante vinte e quatro horas aneve turbilhonou por cima dum mar agitado, semeado de cristas brancas, escavado em sulcos movediços de reflexos glaucos. Não eram os grandes flocos agradáveis e doces como os que caem sobre a terra de França; era um pó fino e gelado que o vento lançava em todos os sentidos como se fosse areia; estendia-se sobre o mar, embainhava de gelo os ovéns e a mastreação do Titan, amontoava-se nos ângulos das coxias, cobria de geada as vigias e as janelas, fustigava, picava, queimava, impedindo a visão a mais de trˆs metros.

Daniel, a fronte inquieta, não deixava a câmara dos mapas, espiando os primeiros sinais de acalmia que o barómetro deixava prever.

No outro dia, a borrasca não tinha terminado, mas a neve cessara e o vento, de tempos a tempos, abria largas clareiras nas nuvens. Um pedaço de céu de tons amarelo e verde-pálido apareceu então; depois o véu de vapor húmido tornou a fechar-se e fugiu em farrapos.

Era ainda arriscado fazer-se ao mar; no entanto o Titan aparelhou e, lentamente, prudentemente, tomou o rumo de Oeste,

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balançado pelo assalto incessante das ondas.

Daniel, Gotborg, Waams e Klein pesquisavam com o olhar o horizonte constantemente escondido pela neblina. A sereia ressoava a intervalos regulares.

Wou ou ou ou ou out!...

Wou ou ou ou ou out!...

Os pássaros, arrancados dos seus poleiros pelas rajadas de vento, passavam gritando por cima do navio:

Crieg! Crieg! Crieg!...

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Tentavam lutar, depois cediam e deixavam-se arrastar com os farrapos despedaçados de nuvens.

Quando o vento amainou, a bruma tornou-se mais espessa.

O Titan tacteava como um cego por entre o pack, isto é os pedaços de gelo flutuantes por onde se aventurara profundamente, em busca dos quatro náufragos.

Wou ou ou ou ou out!...

Wou ou ou ou ou out!...

Wou ou ou ou ou out!...

Wou ou ou ou ou out!...

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Foi assim durante trˆs dias. Havia súbitas abertas no nevoeiro, grandes espaços de mar livre, largos canais onde a roda da proa do baleeiro sulcava como uma relha a água esbranquiçada com reflexos de vidros quebrados.

Os vigias esquadrinhavam com os olhos tão longe quanto a vista alcançava. Lançavam foguetões que eclodiam no céu e se espalhavam em cascatas de estrelas vermelhas; depois a hidra voltava.

Era um longo charuto ou uma pesada cúpula que se aproximava a grande velocidade, se deformava, se alongava desmesuradamente, achatava-se e afogava tudo numa humidade viscosa, espessa, sem dimensões.

Respirava-se a água pulverizada em movimento, que passava, passava sem cessar, silenciosamente, sinistramente, como um monstruoso fantasma.

O banco de nevoeiro iluminava-se por momentos e o vestido vaporoso afastava-se em ondulações, como um véu de tule, descobrindo ao norte, explˆndidos sulcos de cobre, esmeralda negro. Pedaços de gelo, desgastados nos bordos, passavam à distância. Tinham figuras curvas e graciosas como gigantescos cisnes.

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- Hoé oh oh oh!

- Hoé oh oh oh!

As vozes dos gageiros perdiam-se na imensidão onde tudo parecia inerte, gelado, sem vida. E depois a bruma voltava.

No decorrer duma aberta, Gotborg foi advertir Daniel de que o mar começava a prender. A princípio eram milhares de pequenas palhetas brilhantes que apareciam na água como grinaldas enroladas nos ramos das árvores de Natal; depois formavam-se longas manchas, numa ligeira nuvem de fumo. Era o último sinal de alarme, tinham de fazer imediatamente rumo ao Sul e, mesmo assim, navegar com extrema prudˆncia, tomando pelos canais livres que só os marinheiros habituados ao Grande Norte sabem distinguir.

Daniel deu as suas indicaçäes a Gotborg e desceu ao camarote do comandante Mallard.

O capitão estava estendido em cima da cama. A doença arcara-lhe profundamente o rosto. Parecia indiferente, absorvido num sonho.

- O navio está em perigo - disse-lhe Daniel. - Galtier, Koublack e os grumetes andam à rola sobre um pedaço de gelo. Há seis dias que os procuramos. Não se pode continuar. preciso �deixar imediatamente o círculo polar,

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porque dentro em pouco todo o mar estará gelado... Retome o comando e conduza o barco.

- Então é isso - ripostou Mallard. - Depäe-se o capitão. Sobe-se para o norte em fim de estação e, quando se é apanhado na ratoeira com a bruma e os gelos a soldarem-se, vem-se ter comigo... Simplesmente, eu recuso. Pouco se me dá que estoirem sobre o seu bloco de gelo com esse maldito arpoador e todos vocˆs, presos nos bancos.

- Repito-lhe - replicou Daniel sem elevar a voz -, que o Titan está em grave perigo e só restam cinco homens a bordo.

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- E eu repito-lhe que me estou nas tintas. De qualquer maneira, estou perdido..., Uns dias mais cedo, que diferença me pode fazer!

Daniel aproximou-se do leito de Mallard e tirou da parede um pequeno medalhão contendo a fotografia de uma mulher de luto. Meteu-o na algibeira.

- Deixa isso aí! - ordenou Mallard, furioso.

- Não - respondeu calmamente Daniel. - Prometi-lhe fazer tudo por ti, não quero que assista a este último acto.

O imediato deixou o quarto de Mallard e entrou no seu camarote, contíguo ao do capitão. Ficou um momento de ouvido à escuta.

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Quando ouviu o cunhado levantar-se e vestir-se, dirigiu-se para a tolda.

O maquinista-chefe mantinha-se próximo de Gotborg, que estava ao leme.

- Senhor Waams - disse Daniel -, abra o diário de bordo, se faz favor, e anote com a data de hoje:

- Encontrando-se o Titan perigosamente avançado por entre os gelos, acima do paralelo 80, e começando o mar a prender, o Sr. Daniel pediu ao capitão Mallard que retomasse o comando. � tudo. De agora em diante, seguireis as suas indicaçäes. Entretanto, Gotborg, meta a rota a 14 graus.

O timoneiro ficou a ver Daniel dirigir-se para a proa com o seu passo tranquilo e medido.

- Não conseguiu nada - disse para Waams - assim que se viu atrapalhado teve de ir procurar o velho para nos tirar do lamaçal. Isso deve tˆ-lo humilhado.

- Daniel não tem necessidade de ninguém para libertar o Titan, podes acreditar-me - respondeu-lhe Waams. - Se ele entrou neste embrulho foi porque sabia como sair daqui.

Se passa agora o comando é para obrigar o patrão a reabilitar-se. Deve estar morto antes de chegarmos à Islândia;

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mas quando o baldearmos pela borda fora, cosido no seu saco, tu tirarás o chapéu e serás obrigado a dizer, como os outros, que ele se resgatou. Mallard em tempos,, salvou-lhe a vida. Hoje ele salva-lhe a honra e talvez a alma...

- � certamente muito belo; mas depois disto ele poderia sempre correr para obter o comando em qualquer armador.

- Aquele não tem necessidade nem de galäes nem de comandos para comandar de verdade. Onde quer que se encontre será sempre o mestre. Fará obedecer toda a gente, até mesmo o capitão, se for preciso, exactamente como aqui, porque com o seu ar doce e calmo sabe agarrar os homens e dobrá-los à sua vontade.

Durante quarenta e oito horas Mallard não deixou o leme e era preciso reconhecer que guiava o Titan por entre os blocos de gelo com uma espantosa habilidade. Seguia o seu caminho umas vezes a direito, outras em ziguezague; mas o navio encontrava sempre o mar livre à frente da sua roda da proa.

Gotborg, que não se podia impedir de duvidar das palavras de Waams a respeito de Daniel, aproveitou um momento em que se

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encontrava perto do imediato para lhe perguntar:

- Como é que o capitão faz para encontrar a rota por entre este dˆdalo e não enfiar o bote num beco sem saída? Não pode conhecer as passagens porque elas formam-se e desmancham-se dum dia para o outro.

O marinheiro estava convencido de que Daniel se sentiria embaraçado para responder e obrigado a confessar a sua incompetˆncia naquelas circunstâncias, ou então era um homem como não se encontra muitas vezes.

- Nem toda a gente é capaz de navegar aí dentro, meu amigo - respondeu tranquilamente Daniel. - � preciso um olho muito exercitado. Olhe bem para o céu, ali, na sua frente, não nota nada?

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- Não senhor.

- No entanto é ali que se lˆ a rota.

Gotborg, julgando que ele brincava, teve um sorriso céptico.

- Não estou a zombar; observe melhor. O céu tem reflexos diferentes por cima dos canais ou por cima do gelo.

- Eu não vejo nada.

- � preciso exercitar-se, Gotborg, sem isso nunca poderá comandar no µrctico. Repare que não o estou a enganar.

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A trˆs milhas daqui, o corredor que nós seguimos obliqua cerca de dois quartos para oes-sudoeste.

Daniel olhou para o relógio.

- Dentro de cerca de vinte e cinco minutos faremos rumo a 230 graus - 235 graus. E como Gotborg o escutasse, admirado:

- Fixe bem isso, Gotborg, e trate de notar melhor a diferença de tons cinzentos do céu. Servir-lhe-á para uma viagem futura, porque desta vez em breve estaremos livres dos gelos.

Assim que o Titan saiu dos bancos, Mallard abandonou a tolda, esforçando-se por se manter direito. Ao fundo da escada encontrou Daniel.

- Agora passo-te o comando - disse-lhe. - Para mim está acabado.

Olhou o cunhado bem nos olhos e perguntou:

- Tornaste a pendurá-la?

- Sim.

- Depois mete-a no saco, quero que esteja comigo quando me baldearem pela borda fora. Nunca a tornei infeliz, e se não tivesse morrido as coisas não se teriam passado assim.

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No momento de deixar o imediato, acrescentou:

- O barco é para ti, Daniel, é só ficares com ele.

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Imergiram o corpo do capitão Mallard ao largo de Jan Mayen, a 72 graus 11 minutos norte - 3 graus 7 minutos oeste.

Assim que Daniel recitou as preces dos mortos, Klein e Gotborg levantaram a tábua lisa. O saco de lona branca, lastrado, deslizou para o mar, depois a água triste e feia do µrctico tornou a fechar-se. Os homens cobriram-se.

Após um momento de silˆncio, Daniel voltou-se para o maquinista-chefe.

- Senhor Waams, ponha as máquinas em andamento. Gotborg fará o primeiro quarto na tolda; rumo a 95 graus.

- A 95?

- Sim, temos combustível suficiente para rumar directamente em direcção à Noruega. Os dois grumetes e Galtier tˆm parentes ou amigos em Narvik; devemos avisá-los; é uma questão de consciˆncia.

- Mas não estavam inscritos como fazendo parte da tripulação - interveio Waams. - Arriscamo-nos a arranjar conflitos com a capitania marítima e com os seguros.

- Bem sei, procurarei arranjar as coisas o melhor possível; mas não temos o direito de iludir as responsabilidades, Sr. Waams... Nem mesmo aquelas que se herdam - acrescentou.

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IX

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SOB o precário abrigo feito com barris de óleo, peles de focas e encerados, os náufragos ouviam com desespero o assobiar agudo do vento que lançava com raiva o frio pó de neve. Infiltrava-se pelas menores aberturas no interior do abrigo onde fazia quase tanto frio como cá fora.

Por fim, a tempestade amainou, e os olhares ansiosos dos infelizes perdidos perscrutaram em vão a bruma leitosa.

Por duas ou trˆs vezes, Mone e João Pedro, que auscultavam o menor ruído, julgaram ouvir os apelos do baleeiro.

- Galtier! Koublack! Escutem! parece a sereia do Titan,.

Os dois marinheiros puseram-se à escuta mas só ouviram o chapinhar monótono do mar lambendo os bordos do pedaço de gelo.

- No entanto tinha-me parecido ouvir qualquer coisa - afirmavam Mone ou João Pedro.

- Olhem! Ali... Escutem.

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- Meus pobres pequenos - interrompeu Galtier -, que tenham ou não ouvido a sereia do Titan, presentemente isso já não tem importância. Vejam a camada que se forma na água e o fumo que sobe da superfície. Nenhum capitão que conheça estas paragens se arrisca a meter aí a sua barca. Dentro em pouco essa camada formará placas, depois as placas colar-se-ão umas às outras e para sair de lá é o diabo. Quando o mar gela é mais do que tempo de virar de bordo e ir-se embora.

João Pedro e Mone sentiram que uma mão gelada se cerrava lentamente dentro deles, contraindo-lhes a garganta, o coração e as entranhas. Como condenados à morte, ficaram a olhar em silˆncio para os bocados de gelo que se aglomeravam em manchas redondas cujos bordos eram levantados com os choques e as pequenas vagas, como folhas de nenúfares.

Então Mone sentiu que toda a sua energia se escoava bruscamente. Desde o início que lutava para manter as aparˆncias. Tinha dito a Galtier aquilo que desejava pensar mas não o que experimentava. Agora a coragem abandonava-a. Não era mais do que uma rapariguinha desamparada, desejando instintivamente que uns braços fortes a apertassem e lhe dessem consolo.

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P“s-se a soluçar, repetindo:

- Estamos perdidos, estamos perdidos, vamos morrer aqui; está tudo acabado, acabado!

Não temos a esperar senão a morte, o mais depressa possível...

Também João Pedro tinha vontade de chorar como Mone; o desespero invadia-o e as lágrimas subiam-lhe aos olhos; mas abstinha-se.

Uma espécie de orgulho levava-o a mostrar a Mone que era mais senhor de si do que ela, que o espectro da morte não o apavorava, porque um rapaz tem uma dureza que uma rapariga não possui.

M•ne voltou para ele um olhar choroso, como se procurasse um apoio, uma censura mesmo, mas que fosse uma palavra forte que a enrijasse como era necessário e lhe desse a coragem que a abandonava.

João Pedro compreendeu então que ela pedia socorro, que não era por sua culpa que os seus nervos não resistiam como os dele; que ela tinha uma natureza diferente da sua, que devia sustentá-la e protegˆ-la como um irmão mais velho, como Jacques tinha feito por ele. Mas como é que devia agir?

De repente teve uma ideia e voltou-se resolutamente para Mónica.

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- Escuta, vamos fazer uma promessa, anda ter com Galtier e Koublack.

Mónica deixou-se conduzir sem resistˆncia; mas os seus soluços espaçavam-se. Notou o andar decidido e viril de João Pedro, e essa imagem gravou-se para sempre no seu coração. A vida podia continuar a passar; os exemplos podiam mudar, que ela saberia sempre que existem belos rapazes que são firmes no sofrimento, que não se riem daqueles que são mais fracos e procuram prestar-Lhes ajuda.

- Galtier e Koublack! Vamos fazer uma promessa! Venham! - disse João Pedro.

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O arpoador meneou ligeiramente a cabeça.

- Não creio que Deus desça aos bancos de gelo para nos procurar - disse ele.

- Mas se vir que temos confiança nele - replicou João Pedro -, talvez permita que consigamos sair daqui.

- Sim, pelo menos sempre será mais clemente connosco ao abrir-nos a porta do paraíso.

- Se nos salvarmos - prosseguiu João Pedro - iremos descalços de Brest ao Folgot e levaremos o lugre ex-voto ao Grande Perdão de 8 de Setembro.

Foi uma promessa solene; todos se puseram de joelhos, imploraram o auxílio de Nossa Senhora de Arvor e juraram,

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com o braço erguido, cumprir a promessa em acção de reconhecimento, se Ela permitisse que voltassem vivos.

Os dias que se seguiram foram relativamente menos penosos, pois os náufragos, sabendo que só podiam contar consigo, empregavam o tempo a organizar as coisas o melhor possível sobre o seu abandonado bloco de gelo. A neve, caída recentemente com abundância e endurecida pelo frio, fornecera a Koublack o material necessário para a construção dum igloo.

Todos tinham participado naquele trabalho, dirigido pelo esquimó. Depois, na atmosfera tépida daquele reduto de gelo, Koublack p“s-se a curtir as peles das focas.

Raspava-as muito bem com a lâmina da faca de cortar o toucinho de baleia, amaciava-as com óleo e depois mascava-as entre os dentes ou massava-as com pequenos e vivos gestos dos dedos.

Durante esse tempo, Mone e João Pedro iam sobre as pedras rugosas que tinham servido de pŠso para manter as tiras de peles, foLhas talhadas à faca por Galtier na parte mais fina dos ossos nasais das focas.

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Depois era preciso retalhar finas tirinhas que serviriam para coser as vestimentas.

Koublack era originário duma tribo de esquimós chamada Netsilik, o que quer dizer esquimós das focas. Antes de ir para a Islândia, vivera com os seus na costa oriental da Gronelândia. Assim, pouco a pouco, ia-se lembrando dos gestos que tinha visto fazer durante a sua infância, ou feitos por ele próprio muitas vezes. O hábito, a destreza manual, esquecidos durante anos, tornavam a voltar-lhe.

Mónica, acocorada junto dele, ajudava-o a cortar as peles e a cosˆ-las. Manejava a agulha com habilidade.

- Isto é melhor ocupação para ti do que caçar a baleia, hem, miúda! - disse-lhe Koublack, sorrindo.

- Mas eu...

- Só enganaste as pessoas durante algumas horas, minha pequenita. No dia seguinte ao teu embarque no Titan todos a bordo sabiam que eras uma rapariga; se não fosse isso pensas que terias tido uma cabina à ré só para ti? Felizmente que lá estava o Daniel para fazer o velho engolir mais uma vez a pílula; mas ele não a digeriu com facilidade e não perdoou a Galtier tˆ-lo apanhado como um garoto. Talvez fosse mesmo só por causa disso que lhe veio aquela animosidade contra ele;

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simplesmente aconteceu que, como vos tinha embarcado ilegalmente, de qualquer maneira não podia dizer nem fazer mais nada. Com Daniel para fazer justiça e Galtier para manter o respeito, mais lhe valia não arranjar atritos...

Terminados os fatos, as luvas e as botas, Koublack, Galtier, Mone e João Pedro enfiaram-nos. Estavam feitos com paredes duplas e só o rosto aparecia através duma pequena abertura que uma trança permitia diminuir ou aumentar.

Para os náufragos, que havia tantos dias sofriam imenso com o frio, foi uma agradável sensação sentir o doce calor que persistia não obstante o vento ou o contacto prolongado com a neve.

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O pior foi aprender a comer crua a carne de foca gelada. Ao princípio, Mone, João Pedro, Galtier, vomitavam os bocados que tentavam sorver, e Loux, que se deleitava com aqueles detritos, mirava os seus pobres donos com um olhar admirado. Como é que eles podiam deitar fora aquela excelente comida? Hesitava um pouco para ver se eles realmente abandonavam coisas tão boas, e depois, convencido de que não lhas disputariam, rapava tudo com alguns movimentos da língua.

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Koublack sorria.

Mas João Pedro estava revoltado.

- Se temos óleo, se se pode fazer fogo, porque é que havemos de nos esforçar por comer como cães? � estúpido! - gritou com indignação na direcção de Galtier e, sem esperar mais, dirigiu-se para o barril aberto, tirou algum óleo com uma concha e saiu dizendo:

- Estou-me nas tintas! Vou cozer a minha carne; vem, Mone.

O arpoador desmantelou a fornalha com o pé.

- Nada de fogo, já te disse, meu rapaz! E é preciso obedecer-me.

João Pedro teve um movimento de cólera, endireitou-se e fixou Galtier nos olhos.

- Foste tu que nos fizeste embarcar no baleeiro, é por tua culpa que nos encontramos nesta situação e agora queres que rebentemos porque tu perdeste a coragem... Gaita! Deixa-me defender a pele, sou bastante crescido para saber o que devo fazer.

- João Pedro, és injusto com Galtier - interveio Mone -, ele fez o que julga melhor.

- Deixa-me em paz! Se quéres o teu bif congelado é lá contigo...

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Galtier reprimiu um gesto da mão. João Pedro e Mone notaram que era com esforço que se continha; depois, sem dizer nada, entrou no igloo. Mónica quis convencer João Pedro a entrar também, mas ele op“s-se.

- Gaaaaita! deixa-me. Vou cozer a minha carne e ninguém mo impedirá...

Havia quase meia hora que o grumete tentava grelhar o seu bocado de foca, quando Galtier deslizou de novo para fora do igloo. Uma lufada de fumo acre picou-lhe os olhos.

Aproximou-se de João Pedro que estava inclinado sobre o seu miserável fogo e o via aproximar-se como um animal ferido, o olhar de uma ave de rapina.

O marinheiro tinha serenado.

- Ouve-me bem, rapazinho, se tu fosses um homem eu saberia como agir contigo;. mas, embora tu digas que já és bastante crescido, és ainda muito jovem e eu ainda não te conheço nem Teria podido bater-te; somente acontece que quando bato, sabes bem que não consigo medir a minha força; arriscava-me a fazer estraGos e eu não queria. Aqueles que tˆm instrução e podem conversar, devem explicar bem as coisas que pensam,

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evitam andar ao murro. Para aqueles que, como eu, não foram muito à escola, isso é difícil. Muitas vezes não se vˆ bem o que é melhor em relação ao futuro. Creio que realmente me enganei, como tu dizes, ao embarcar-vos comigo no Titan; mas já não serve de nada falar nisso. Agora o mal está feito e não se pode emendar; somente enquanto eu for vivo, cuidarei de vocˆs dois como mo pediram e a quem tem o cuidado é que cabe dar ordens.

Não é para te fazer passar mal que eu não quero fogo; é porque, se tu queres aguentar-te num canto como este, é preciso deixar-se de floreados e viver como os que lá moram; se não te habituas, agora que custa menos a comer como os esquimós, tudo frio e gelado, no Inverno, quando fores obrigado, não podes mesmo. Ficas doente, arrebentas. � duro, bem sei; mas tem que se fazer o que é preciso.

Vamos! Apaga o teu fogo, pequeno, e faz como os outros.

Galtier devia ter procurado durante muito tempo as frases daquele pequeno sermão pelo qual João Pedro não esperava. Sem responder, o rapaz afastou os toros de madeira oleosos, semicalcinados; olhou com pena para o bocado de carne que tivera tanta dificuldade em grelhar e, com um gesto decidido,

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atirou-o a Loux que o apanhou no ar e o devorou.

O arpoador tinha voltado as costas e chegado até à beira do bloco para ver o mar que se cobria duma camada de gelo cada vez mais espessa. As placas quebravam-se e pelos intervalos apareciam pequenas vagas que se petrificavam, formando protuberâncias mais ou menos altas; depois os pedaços achatados soldavam-se de novo para se tornarem a quebrar ainda e recolarem em seguida.

João Pedro alcançou-o e tocando-lhe no braço:

- Galtier, peço-te perdão - disse-lhe -, e agradeço-te tudo o que tens feito por mim. Mas enraivece-me este frio que está em todas as coisas, com o qual é preciso viver dia e noite, E que é preciso aceitar mesmo na alimentação. Não me queiras mal pelo que te disse, no fundo não o pensava; para o futuro hei-de obedecer-te, prometo-te.

- O que é que tu queres - replicou Galtier, que tentava não deixar transparecer a sua emoção -, é a tua idade, a tua cabeça de homem que se forma; ela não gosta de se dobrar, não é para admirar; o primeiro capitão que eu tive,

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quando era grumete, num navio da pesca do bacalhau, dizia-me muitas vezes: "Uma cabeça de homenzinho é como um barco. Tem ideias que devem comandar e outras que devem obedecer". Se puseres as boas na tolda e elas souberem subjugar as outras, farás boa rota"... Se são as más que tˆm o comando, irás à rola e não tardarás a estar perdido. Nunca se sabe bem quais são as boas, mas é raro que sejam as mais fáceis.

Os dias tinham diminuído muito depressa e agora o sol apenas se arrastava durante algumas horas acima do horizonte. A maior parte das vezes seguia uma curva baixa, dissimulada por detrás duma cortina de lívida bruma. A pouca e pálida luz do dia deixava aperceber as longínquas tormentas do mar do gelo.

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Também a temperatura baixara progressivamente. O frio reinava como senhor e até mesmo a potˆncia do oceano tivera de ceder perante a sua acção lenta mas implacável.

No interior do igloo, onde existia um relativo calor, não faltavam aos náufragos ocupaçäes; Tinham fabricado primeiro uma candeia de óleo com uma caixa de conservas vazia

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e uma ponta dum cabo a fazer de mecha. Difundia uma fraca claridade amarela em torno da qual cada um se ocupava activamente do seu trabalho.

Os grumetes, seguindo as indicaçäes do esquimó, tinham tirado as ripas de carvalho de um barril vazio e empenhavam-se em fendˆ-las em finas tirinhas e depois em ligá-las com tripas de foca torcidas que constituíam um cabo que, sem ser muito grosso, era sólido como aço. Fabricaram assim o cabo daquela arma indispensável ao esquimó, que se chama o kakivok.

�, com efeito, um arpão que serve para múltiplos fins. A extremidade, armada com um entalhe, foi feita de um osso de foca. A confecção de uma isca artificial, também de osso, representando um peixe com barbatanas móveis, foi particularmente delicada. Para o conseguir foi necessária toda a ciˆncia do esquimó assim como a habilidade do arpoador.

As poucas horas de dia, se se podia mesmo chamar dia àquela espécie de obscuridade esbranquiçada, eram reservadas à pesca e à caça. Uma e outra praticavam-se, de resto, de maneira quase idˆntica.

Para pescar, furavam-se com o arpão dois ou trˆs buracos nos sítios onde o gelo ainda não estava muito duro e depois

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agitava-se aí a isca artificial. Era preciso apanhar o instante em que o peixe aparecia no buraco. O pescador, emboscado, trespassava-o então com o seu kakivok.

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O animal saído da água debatia-se um momento sobre o solo branco e depois gelava. Eram geralmente bacalhaus árcticos, de ventre claro e dorso bronzeado.

A caça assemelhava-se muito à pesca, com a diferença de que a foca, única caça existente, cavava o seu próprio buraco no gelo para vir depois aí respirar. O buraco ficava dissimulado sob uma pequena cúpula de neve endurecida, e o faro de Loux era então muito útil nessas circunstâncias. Não só encontrava o sítio dos buracos como ainda assinalava com um bater da cauda aqueles que eram frequentados pelas focas.

Koublack aproximava-se então,.rastejando, fazia na cúpula de neve um pequeno orifício pelo qual introduzia uma fina haste de madeira munida de um flutuador e depois esperava, com os olhos cravados naquele indicador que saía alguns centímetros fora da neve.

Quando a foca vinha respirar, a água agitava-se no buraco de gelo; a haste mexia-se, subia, descia; o esquimó lançava então

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com precisão o seu kakivok, e depois, à maneira dos caçadores primitivos abria o ventre do animal: com a sua faca arrancava o fígado que cortava em cinco bocados. Os homens e o cão comiam imediatamente essa carne tépida que os reconfortava.

Agora, João Pedro, Mone e Galtier já não sentiam repulsa pela comida crua e gelada, e sobretudo o peixe era excelente e, como o husky, encontravam-lhe um sabor particularmente agradável quando estava um pouco fermentado.

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X

AQUELA noite todos dormiam no igloo, com Loux deitado, como sempre, entre Mone e João Pedro, que ele aquecia com a espessa pelagem. Um surdo roncar acordou-os.

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Dir-se-ia que nas proximidades passava uma fila de pesados camiäes, fazendo estremecer o gelo. O ruído vinha de todos os lados simultaneamente e repercutia-se mesmo por baixo do abrigo.

Lá fora, o vento, que se tinha bruscamente levantado, varria a neve acumulando-a nalguns sítios ou projectando-a no ar com violˆncia.

O barulho era regular, como um longo troar de tempestade em que havia de tempos a tempos uma surda explosão.

- O que é que se passa? - perguntou Galtier a Koublack.

- São os bancos de gelo que se movem - respondeu o esquimó. - Contanto que não sejamos esmagados...

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Os náufragos saíram do igloo e, envolvidos pela tempestade de neve que Lhes cortava o rosto e os sufocava, assistiram a um espectáculo terrificante.

Sob os seus pés o gelo estremecia. Nalguns sítios quebrava-se e a água fluía pela abertura. Ao clarão pálido da lua, descortinavam imensos blocos de gelo que se dissociavam, se encavalitavam; elevavam-se como enormes vagas e desfaziam-se ao quebrarem-se.

Tão longe quanto a vista alcançava, nada mais havia que massas de gelo em movimento, que se chocavam, se abatiam com um ruído de falésias ao desmoronarem-se. Brechas que se abriam com um estalar sinistro.

João Pedro, Mone, Galtier e Koublack já não sentiam nem o frio nem o sono; tinham a impressão de viverem um pesadelo.

A terra oscilou, afastou-se do sol que desapareceu. Já não há dia, já não há mais que uma longa e fria noite: esse mundo envelhecid onde não cresce uma erva, uma planta, uma árvore; esse mundo sem calor nem vida, como morto, entra nas alucinantes perturbaçäes de apocalipse.

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Também Loux parece apavorado com o espectáculo e, como os donos espera com ansiedade ser aniquilado pelo cataclismo.

- Não fiquem aqui a rebentar de frio e de medo - concluiu Galtier. - Voltemos para o igloo; acontecerá o que tiver de acontecer.

Antes de se enfiar de novo sob as coberturas, Mone disse a João Pedro:

- Recitemos uma oração, assim, se tivermos de morrer, estaremos prontos.

Galtier e Koublack calaram-se para não os perturbarem, e, quando eles terminaram, persignaram-se também.

E lentamente as convulsäes cessaram. O caos serenou, paralisou-se e sobrevieram as longas jornadas de noite total, cortadas por rajadas de vento e quedas de neve.

A crosta de gelo já não era sacudida pŠlos dramáticos sobressaltos; mas gemia sem cessar, o roncar surdo desse eterno movimento dos bancos ressoava ao longe como uma tempestade contínua.

A perpétua ameaça de morte suspensa sobre as suas cabeças, o sofrimento que lhes infligia o frio, a obscuridade permanente e sobretudo, a lembrança dos seus que, em França,

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deviam viver dias de luto e desespero, tinham acabado por criar uma atmosfera de penosa angústia, que esgotava as forças e amargurava as almas dos quatro náufragos.

As pequeninas falhas de um companheiro, das quais ainda ontem se riam, tornavam-se agora num defeito desesperante; um esquecimento, uma falta de jeito, uma palavra ou mesmo uma atitude apenas, irritavam por vezes como uma provocação. Não se dizia nada; mas, pelos motivos mais fúteis, alimentavam-se nos seus coraçäes sentimentos hostis. Longas horas se escoavam num silˆncio cheio de tensão em que cada um vigiava com azedume as atitudes de outro e às vezes, sem razão plausível, eclodia uma disputa.

Palavras duras, agressivas, quase sempre injustas, vinham envenenar a ferida que cada um trazia em si. Apaziguavam por um curto momento aquele que as lançava ao rosto do outro, mas logo depois o seu sofrimento voltava tão pungente como antes, avivava-se o mal que lhe roía lentamente os nervos.

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Ontem Galtier não atirara, com um gesto de impaciˆncia, Koublack por terra só porque ele tinha rido...

- Grandessíssimo parvo! - tinha-lhe dito, furioso.

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- tu divertes-te; estás no teu país, sentes-te bem aqui! A neve, o gelo, o gelo, a neve, a noite, a noite, o gelo, a neve... Vá, enfrasca-te na tua neve, e rebenta!

João Pedro nunca tinha visto em Galtier aquela expressão contraída, o olhar mau, e por isso sentiu por ele um certo desgosto. Mónica surpreendera claräes de raiva no olhar do esquimó, e, à noite, tinha chorado longamente antes de adormecer, porque lhe era confrangedora aquela hostilidade entre uns e outros; assustava-a e fazia-lhe mal.

Confusamente, sentia que devia tentar qualquer coisa que fizesse voltar o bom entendimento e a afeição; mas o quˆ?

Foi então que se lembrou de cantar: A mãe fazia-o muitas vezes em casa, quando ela tinha um desgosto, e isso acalmava-a sempre.

Mónica possuía uma voz grave, bem modulada, que prendia:

Até à bela fonte

Um dia fui passear,

A água era tão bela

Que ali me quis banhar;

Desde sempre te amei,

Sem nunca te olvidar...

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Notou que a escutavam, que as palavras tão simples daquela velha canção evocavam no coração daqueles homens rudes a recordação duma doçura esquecida, de seres amados que apareciam tais como os tinham conhecido e lhes sorriam. Julgavam rever os seus rostos e sentiam-se envergonhados por se terem deixado arrastar, por terem sido maus e brutais entre si.

Koublack escutava em silˆncio; Mone notou a expressão de paz e suavidade no seu rosto. Olhou para Galtier e pareceu-lhe ver como que uma lágrima a brilhar nos seus olhos azuis. Então a emoção cerrou-Lhe a garganta e ela calou-se.

- � preciso continuar, pequena - disse-Lhe o marinheiro -, isso faz-me pensar que somos ainda homens; se não, em breve nos tornaremos, uns para os outros, semelhantes a feras.

Durante uma semana, as cançäes de Mone amenizaram os longos seräes no igloo, restabelecendo simples e suavemente a amizade entr o grupo que se remeteu corajosamente ao trabalho para preparar a grande experiˆncia.

A grande experiˆncia era a partida. Agora que todos os blocos de gelo estavam soldados uns aos outros, a grande extensão branca bem endurecida pela geada persistente,

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agora que a neve caíra em quantidade suficiente para que se pudesse fazer deslizar um trenó e encontrar por toda a parte com que construir igloos, os quatro marinheiros do Titan podiam tentar, por etapas, alcançar as costas geladas da Gronelândia às quais o frio e a corrente polar os tinham fixado.

Um, dois, talvez trˆs meses de viagem,,, Trˆs meses de vida rude e perigosa. Trˆs meses de esforços de vontade e de coragem, trˆs meses de miséria sem a certeza do sucesso, mas também trˆs meses de esperança; a única esperança que lhes restava e que ardia no fundo de si próprios, como a chamazinha daquelas lamparinas que nunca se extinguem.

Tinham feito vestuário, botas para mudarem: uma espécie de sapatos para protegerem as patas de Loux quando a neve demasiado gelada se tornasse cortante.

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Koublack procedera minuciosamente ao congelamento do trenó. Segundo o uso do seu povo, era preciso recobrir os patins com uma lama gelada e endurecer depois este revestimento duma maneira homogénea. A lama fora substituída por uma pasta feita com cinza muito fina.

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Tinham sido seleccionados grandes bocados de carne de foca e peixes congelados, para servirem de alimento aos homens e ao cão.

A carga devia ser arrumada rapidamente no trenó, com o auxílio de grandes correias, e descarregada, sem dificuldade, na escuridão.

Uma noite ficou tudo pronto e os náufragos esperaram com intensa emoção o levantar da lua. Mal ela subisse no céu frio, deixariam o bloco de gelo e partiriam sobre a imensa e deserta superfície branca, para a grande viagem, a grande aventura.

No momento da partida, Mone dissera a Koublack:

- -Loux não poderá puxar este trenó, está muito carregado.

- Limita-te a desejar poder segui-lo, pequena - respondeu-lhe o esquimó... - 150 quilos é uma brincadeira para um grande husky. Podes crer que estarás fatigada antes dele.

Lembrava-se dessa frase agora que os músculos das pernas lhe doíam e em que tinha de se esforçar para manter a sua distância com o trenó. A reverberação da neve sob a pálida

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e traiçoeira luz do luar fatigava-Lhe a vista e dava-lhe tonturas; por vezes sofria tanto que se agarrava a uma das correias do trenó e deixava-se arrastar. Loux não diminuía por isso o seu andamento regular; caminhava de cabeça direita, os jarretes esticados, seguindo Koublack e Galtier, sempre com o mesmo passo que imprimia na neve pegadas com a forma de flores abertas.

Em viagem, havia regras imutáveis. Era preciso não correrem, se não transpiravam, e, se parassem em seguida, a transpiração gelava e podia ocasionar a congestão e a morte.

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Era preciso manter as pálpebras semifechadas, como Loux e Koublack, para evitarem que a neve os cegasse ou ficassem com os olhos queimados pelos minúsculos cristais de gelo que o vento lançava contra o rosto.

Era preciso guiar o trenó para evitar os buracos, os desníveis, as fendas...

No fim de cada etapa, distribuía-se o alimento: grandes quartos de foca e de peixe gelado para os homens assim como para o cão;, cada um devorava uma enorme ração. Depois construía-se o igloo; para isso tinha de se cortar grandes blocos de neve endurecida, sempre do mesmo tamanho e do mesmo feitio.

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Koublack dispunha-os de maneira que o conjunto formava uma calote esférica na qual se penetrava por um orifício estreito como a entrada duma casota de cão.

Era um alívio enfiar-se lá dentro. Estava tão bom em comparação com o exterior!

Galtier acendia a pequena lamparina de óleo de foca, que difundia um clarão amarelo e dava uma ilusão de calor.

Era a hora das reparaçäes, da revisão do vestuário e dos arreios. Um buraco numa bota, numa luva, uma costura que esgarçava, era imediatamente a ameaça dum membro gelado, dum pé, duma mão, duma orelha que em alguns instantes se tornaria lívida, dura, insensível, talvez mesmo de negro rosado da gangrena e que seria preciso cortar para evitar a propagação rápida do mal.

Após alguns choques, nas primeiras semanas, o grupo tinha acabado por adquirir uma boa harmonia, graças aos esforços de todos, mas sobretudo graças a Galtier, que sentira na noite em que Mónica cantou pela primeira vez, que era preciso que alguém tomasse o comando do grupo e que esse alguém devia ser ele; mesmo que essa tarefa lhe parecesse desproporcionada com a sua competˆncia.

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Os garotos tinham-lhe sido confiados e não se sentia com o direito de descarregar em Koublack a responsabilidade de tomar iniciativas.

No Titan seria a ele que dariam o comando, de preferˆncia ao esquimó, portanto ali devia ser a mesma coisa.

E não devia ser maldoso ou bater, como tinha acontecido no momento em que perdera a cabeça com Koublack, mas, sim, ponderar e raciocinar suavemente, como fora forçado a fazer com João Pedro.

Era preciso procurar dirigir sem se enervar, como Kermeur, Daniel e os melhores capitães que tinha conhecido. Claro que não poderia ser semelhante a eles, mas, depois de ter conversado tranquilamente acerca dos projectos com os rapazes, devia agir da maneira que pensasse ser a melhor e manter-se firme, sem ceder a este ou àquele.

Em torno da pequena chama fuliginosa, Mone e João Pedro falavam muitas vezes dos seus, do que eles fariam àquela mesma hora na Noruega, onde a neve devia certamente cobrir também o solo, ou na casa de Rennes, demasiado vazia, demasiado silenciosa.

- Talvez o Skrangel não tenha chegado, João Pedro,

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talvez o Frami se tenha afundado e o meu pai, Jacques e os outros todos se tenham perdido como nós, ou se tenham afogado - dizia Mónica.

O não saberem nada das suas famílias era-Lhes extremamente pungente, e os seus pensamentos erravam sobre a terra bretã ou norueguesa, como almas penadas, procurando em vão encontrar os seres que amavam e de que a longa separação os fazia sofrer.

- � preciso não falar muito disso, meus filhos - dizia às vezes Galtier. - Estão a criar um desgosto quando talvez não haja razão; talvez todos se encontrem de perfeita saúde. Quando se começa a pensar assim, acaba-se por não dormir nem comer. Vamos! canta um pouco, Mónica, tu sabes, a canção dos grandes berços.

E Mone, sacudindo o véu de tristeza que a obsediava, cantava sem se fazer rogar, com aquela simplicidade e sinceridade que todos amavam:

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Outrora ainda meninos,

Nos nossos pequenos berços

Fizemos belos soninhos

Junto de brancas cabeças.

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Hoje que o mar profundo

Nos leva a terras distantes

Balança em volta do mundo

Trˆs mastros, berços gigantes.

Embalai a vossa volta, grandes berços de criança

Além no horizonte negro ergue-se a terra de França

Já dançam nossos amores lá sobre a areia revolta

à grandes berços de sonho embalai a nossa volta.

Depois cada qual ia deitar-se, nunca sabendo se era dia ou noite, se estava longe ou próximo do fim, triste ou alegre, fatigado ou bem disposto.

Estendia-se sobre a cama de gelo, protegia-se com peles de foca e cobertores e mergulhava no sono.

Se a lua não dava luz suficiente, a provisão de víveres estava esgotada ou os est“magos inchados reclamavam alimentos frescos, param por alguns dias para caçar focas ou pescar no gelo, bacalhaus polares. Para construir o igloo, era suficiente encontrar um sítio onde houvesse bastante neve endurecida; pouco importava que fosse aqui ou ali,

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a paisagem não variava: neve, gelo, o vento que cortava como uma lâmina e varria a monótona e caótica extensão branca.

O gelo só era plano e liso nalguns sítios. Aqui elevavam-se blocos, montículos, verdadeiras muralhas; ali descobriam-se falhas, fendas. Os náufragos tinham às vezes a impressão de terem aterrado na lua ou num planeta morto; ou de serem os últimos sobreviventes dum mundo em desagregação.

Havia também períodos de grande calma, em que as estrelas brilhavam com uma extraordinária claridade, fazendo cintilar de azul, amarelo, verde ou violeta a imensidade branca. ·s vezes a aurora boreal iluminava o céu com um gigantesco fogo de artifício ou como um véu de feérica luz que se movia lentamente acima do horizonte. Então a grandeza do espectáculo deixava-os perturbados.

Não obstante os seus sofrimentos e as suas inquietaçäes, sentiam que uma parte de si próprios era atraída para o princípio de todas as coisas e, no impressionante silˆncio, subia aos seus coraçäes um acto de adoração pelo Criador.

Quando já tinham caçado e pescado o suficiente, retomavam a viagem por etapas mais ou menos longas segundo a claridade, as perturbaçäes atmosféricas, a abundância de alimento ou a fadiga.

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Tinham milhas e milhas a percorrer antes de alcançarem as costas da Gronelândia. Era preciso atingi-la antes que o sol subisse demais no horizonte e a rotura do gelo começasse.

Cada passo em frente era uma esperança de vida, cada paragem um risco de morte.

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Durante quatro dias, o Nigak (1) tinha obrigado os viajantes a ficarem encerrados na sua toca de gelo. Os víveres estavam no fim. Por isso, logo que na noite seguinte o vento caiu bruscamente, os náufragos aproveitaram para irem à procura de alimento.

Só Koublack ficara no interior do igloo para tornar a fazer o congelamento do trenó que as longas marchas desgastavam depressa.

Mone, João Pedro e Galtier, ajudados por loux, tinham ido à procura de buracos de focas.

O cão acabou por encontrar um ao pé dum grande banco de gelo que a solidificação do mar detivera e impedira de continuar à rola.

- Aquela fez o seu ninho escondido - disse Galtier,

*1 Nigak: palavra esquimó que significa vento de Este.

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que se ajoelhou no gelo com João Pedro, arrancou delicadamente a crosta de neve que cobria o orifício e começou a dispor o flutuador segundo o método que Koublack lhe tinha ensinado.

- Olha, rapazinho, corre à choça e procura o arpão de que nos esquecemos; vamos tentar picar o bicho quando vier respirar - disse Galtier.

João Pedro levantou-se e apressava-se a alcançar o igloo quando um grito de pavor, soltado por Mone, os deixou terrificados.

- Que foi? - perguntou o marinheiro, levantando-se bruscamente.

Loux já tinha saltado e contra-atacado com raiva.

- Bonito serviço! Estamos arranjados! - murmurou o arpoador.

João Pedro, paralisado pelo medo, estava imóvel, com os olhos fixos na cena trágica que acabava de descobrir.

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Um urso branco surgira por detrás do bloco de gelo, tinha-se levantado e lançado sobre Mone, despedaçando-lhe os ombros e as costas com as enormes patas. E esmagar-lhe-ia a cabeça dentro da enorme bocarra se Loux não se tivesse atirado e enterrado profundamente os seus dentes agudos nos músculos das patas.

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O urso tinha abandonado momentaneamente a presa para ripostar. Com grunhidos de furor, ameaçava o cão com as suas longas garras compridas como punhos, procurando agarrá-lo com a potente mandíbula; mas o husky atacava por assaltos: um salto, uma dentada mortífera, um pulo para trás.

A pesada pata do urso batia no vazio, os seus dentes estalavam sem apanharem nada e o cão continuava, a cauda arrastando-se pelo chão, os pˆlos do pescoço e da espinha levantados, o olhar vivo, a boca semiaberta, pronta a morder bem duro, rápido, demasiado rápido para as reacçäes lentas do urso branco.

Mas seria necessária uma matilha para acabar com aquele colosso. Não obstante toda a sua coragem, Loux só podia retardar um pouco o desenlace do drama. Dentro dum instante, a enorme besta polar lançar-se-ia de novo sobre Mone, que jazia inanimada a seus pés.

O sangue corria em fios vermelhos pelos rasgäes do seu vestuário de pele, e o quente odor excitava o animal selvagem.

- João Pedro, vai depressa procurar o arpão e chama Koublack...

O rapaz viu Galtier aproximar-se do animal com as mãos vazias, os braços ligeiramente estendidos à frente do corpo,

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como um lutador pronto para o combate

. Não podia ir-se embora, continuava ali, apavorado. Loux não precisara de que lhe explicassem a manobra de Galtier. Tinha sangue de lobo e compreendia por instinto todas as

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tácticas do combate em grupo. Não era reflexão nem inteligˆncia; era simplesmente o sentido infalível que o Criador tinha dado à sua raça para lhe permitir defender-se e alimentar-se.

Estava de frente e devia manter-se assim para que o outro pudesse deslizar por detrás e bater. Se Galtier estivesse pela frente, ele teria contornado o inimigo e saltado pelas costas; mas o homem torneava o adversário. O olhar do cão acompanhava o movimento para aproveitar o m'omento mais propício.

A princípio, o urso não prestara grande atenção àquela espécie de pinguim vestido de pele de foca, que não tinha garras na ponta dos braços, nem presas nas mandíbulas e que não emitia o grunhido habitual dos animais prestes a atacarem.

No entanto, quando ele se aproximou por detrás, o urso voltou a cabeça; mas nesse momento preciso: clac! uma pinça dura como uma armadilha de aço que se dispara enterrou-se na

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sua carne. Os dentes do husky tinham ferido.

O urso voltou-se, lançou as patas terríveis, mas Loux já tinha largado.

No entanto, desta vez, as garras atingiram-no e o sangue escorreu sob o pˆlo do cão; mas ele continuava ali, agressivo, tenso, prestes a saltar de novo.

A dor viva que acabava de experimentar tinha posto o plantígrado em fúria. Apressava-se a carregar sobre Loux quando sentiu bruscamente um torno constituído pelos braços de Galtier fechar-se sobre o seu pescoço.

O animal debatia-se vigorosamente, tentando agarrar o agressor com a enorme boca. Ao mesmo tempo, as duas patas da frente procuravam retalhar o corpo do homem que o mantinha numa posição perigosa.

Felizmente, Galtier estava nas suas costas e os braços apertavam como pinças de aço.

Se o animal se voltasse, ele seria despedaçado num instante; o marinheiro sabia que jogava a vida. Que importava, tinha decidido salvar Mónica, que lhe fora confiada, ou então perecer.

Não se arriscara como um louco numa aventura insensata. O urso era do seu tamanho;

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mas era preciso lançar na balança o peso das duzentas e vinte libras e a sua temível força.

A cada sobressalto do animal, João Pedro ouvia, misturados com os grunhidos de cólera do urso, os heinnnnh heinnnnh do marinheiro cujo potente abraço dominava os movimentos desordenados do animal.

Desde que Galtier mantinha a segunda frente, Loux estava desenfreado, saltando logo que as patas se abaixavam, lançando-se para trás logo que elas se erguiam. A sua boca atingia sem erro o ponto descoberto, as presas feriam com eficácia. Mordia com um golpe seco, recuava, soltava, deslizava, batia em retirada e voltava sem cessar.

João Pedro compreendeu que naquele combate não havia lugar para ele e precipitou-se para o igloo, gritando com todas as forças:

- Koublack! Koublack! Socorro! Socorro Depressa! Depressa! Depressa!...

Toda esta cena não tinha durado mais que uns instantes durante os quais Mone estava sem sentidos. Agora começava a abrir os olhos e percebia através dum confuso zumbir de ouvidos os rugidos do urso e o rosnar de cólera do cão.

De início não compreendeu exactamente o que se passava.

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O seu cérebro estava entorpecido, como invadido por um sono pesado e embrutecedor; depois moveu ligeiramente a cabeça e viu perto de si o enorme plantígrado erguido sobre as patas traseiras, o pescoço apertado pelos braços de Galtier cujo rosto congestionado notou.

Através dos dentes cerrados do marinheiro passava um profundo suspiro que marcava a progressão do seu esforço.

- Heinnnnnnh! Heinnnnnnh! Heinnnnnnh!

Então lembrou-se de repente do que se tinha passado. Contornava o bloco de gelo enquanto Galtier e João Pedro dispunham os flutuadores no buraco da foca quando viu surgir aquele enorme animal que se lançara sobre ela. Fora deitada por terra e desmaiara.

Quis mexer-se; as costas doíam-lhe e os braços estavam sem forças. Como um clarão, viu Loux saltar; o seu pˆlo estava coberto de sangue; mas os ferimentos não lhe tinham diminuído a

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coragem nem a violˆncia, pelo contrário. Parecia mesmo ter perdido toda a prudˆncia: atacava o urso com uma audácia insensata. Chegava mesmo a morder-lhe o focinho.

O animal atacado defendia-se asperamente. As patas despedaçavam o dorso do cão.

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As presas de dez centímetros procuravam esmagar o crânio do husky; mas Loux tinha uma tal mobilidade de movimentos que o seu maxilar mordia dez vezes por cada resposta do seu adversário que ele obrigava a manter-se preso.

Deu-se conta de que o animal acossado perdia o vigor e a combatividade. A golilha que lhe encerrava o pescoço, grosso como um tronco de carvalho, magoava-o e sufocava-o progressivamente.

Galtier ouvia o coração do monstro bater de uma maneira desordenada. A respiração tornava-se mais curta, esgotava-se, mas quanto tempo resistiria ainda? Teria sem dúvida terríveis sobressaltos antes de soçobrar e o marinheiro sentia que em breve atingiria o limite das suas forças.

Koublack não estava no igloo. Acabado o congelamento do trenó, devia ter ido escavar um buraco para pescar.

João Pedro agarrou no arpão e voltou correndo para o local do combate.

Nervoso, tremendo, aproximou-se do urso como um autómato; receava que a coragem lhe faltasse se reflectisse na melhor maneira de agir.

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Mas Logo que esteve ao alcance feriu ao acaso,, sem olhar, com pressa de acabar o mais cedo possível.

A ponta da arma deslizou sobre o tórax do animal fazendo-Lhe uma ferida superficial que provocou nele um sobressalto de furor. Apanhou a lança nas suas gárras e, enquanto João Pedro rolava sobre o gelo, quebrou-lhe o arpão com uma dentada raivosa e depois, com uma

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série de movimentos bruscos, tentou libertar-se para se precipitar sobre aquele novo assaltante. Galtier sentiu-se levantado, ia perder o equilíbrio e cair. Com um esforço intenso que arrancou um grito rouco e selvagem conseguiu manter o urso; mas estava no fim das suas forças e o grumete compreendeu que, se interviesse eficazmente, tudo estaria perdido.

Levantou-se, agarrou no extremo do arpão quebrado, que tinha agora o tamanho de uma seta, e avançou de novo para o feroz animal. Um medo horrível crispava-Lhe as entranhas, o corpo queria fugir, abandonar a luta, os membros, todo o seu organismo resistia à necessidade do combate. Um imperioso instinto ditava-lhe a sua ajuda: a astúcia.

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- tira a tua blusa e serve-te dela para enganares o inimigo...

Em alguns segundos, João Pedro tinha morto a revolta da sua natureza e recobrado o sangue-frio bastante para calcular o golpe com inteligˆncia e ferir no sítio mais v—lnerável.

A alguns centímetros das garras, atirou a sua camisa à boca do urso que a agarrou e lacerou às dentadas. Aproveitando aquele momento, João Pedro abaixou-se e, com um gesto vivo e preciso, onde p“s toda a sua força, enterrou a ponta do arpão no abdómen do animal Perfurando o peritoneu e penetrando até ao coração.

Da garganta do animal saiu um surdo estertor; depois vacilou e caiu sobre o gelo.

Galtier ficou imóvel por uns minutos, embrutecido, e depois, titubeando como um homem embriagado, dirigiu-se para Mónica.

Koublack acabava de chegar; tirou do bolso uma espécie de escudela flexível de pele de foca e encheu-a com o sangue do urso...

- Bebe - disse à ferida.

Mónica afastou-se daquela beberagem repugnante; mas o esquimó insistiu.

- � preciso beberes, é como um fortificante bebe depressa antes que gele.

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Mone fechou os olhos e absorveu a grandes goladas aquele líquido quente e espesso.

Galtier e João Pedro também beberam desse sangue vigoroso que provocava imediatamente uma reacção semelhante à do álcool, mas infinitamente mais sã e mais duradoura.

Koublack tratou Mónica com óleo de foca que acalmava a dor e, ao que ele dizia, impedia a infecção. Também, era o único remédio. Por isso foi posto nas orelhas e nas mãos de João Pedro que tinham começado a gelar durante o curto instante em que tirara a blusa. Puseram-no também nas chagas de Loux, que não gostava que lhe tocassem e se apressava a lamber aquele unguento.

Era preciso esperar que os ferimentos estivessem um pouco cicatrizados antes de retomarem o caminho. Isso implicava uns oito dias, que foram empregados no arranjo do vestuário e em confeccionar um saco de dormir para Mone, que daí em diante tomaria lugar no trenó.

Koublack encarregara-se deste último trabalho,,utilizando para isso a pele do urso que tinha curtido à maneira dos esquimós do Grande Norte, raspando-a e amolecendo-a com óleo de foca.

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João Pedro, que o ajudava, ficara estupefacto com o seu tamanho impressionante.

- Que superfície! - disse ele a Koublack. - Podia fazer um sobretudo só com uma pata...

- Sim, para matar um animal como este com um par de braços e quase o sufocar, é preciso não ser maneta, podes crer. Não há muitos bravos neste mundo capazes de fazer outro tanto.

KQuando eu contava oito anos, descemos para o Sul, meu pai, os meus dois irmãos mais velhos, minha mãe e eu. As renas tinham deixado a nossa região e era preciso emigrar para não morrermos de fome. Toda a tribo seguia a mesma pista, com intervalos mais ou menos grandes. Lembro-me de que encontrámos um urso, mais pequeno e mais fraco que este, no entanto, acabou com os dois homens do trenó que nos precedia e com os doze cães de tiro que já tinha devorado em parte.

Devia ter surpreendido o grupo seguindo a táctica habitual daqueles animais, os mais fortes de todos os que vivem nos gelos; mas eles tinham tido tempo de se defenderem.

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O dardo do kakivok marcara profundamente a sua carne.

- Matou-o?

- Sim. Meu pai e os meus irmãos eram óptimos atiradores ao arco. No entanto foram precisas vinte flechas para o abater.

XI

E a viagem recomeçara. Mone, enfiada no seu saco de pele de urso, com os cobertores por cima, estava deitada no trenó que tinham aliviado de tudo o que não fosse estritamente indispensável.

Também tinha sido preciso modificar os arreios de Loux para que as correias não passassem por cima das feridas ainda sensíveis.; As etapas eram mais curtas por causa do cão, que ainda não recobrara forças, e, sobretudo, por causa de Mónica, que os solavancos do gelo mortificavam e fatigavam.

Uma vez, durante uma paragem, João Pedro viu-a soluçar.

- Então como vai isso, Mone?

- Creio que vou morrer, João Pedro, as minhas costas queimam, não tenho forças, nem vontade e não posso dormir. Se eu morrer e vocˆs se salvarem, diz aos meus pais para ficares

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com eles, diz-lhes que és meu irmão, que é a minha última vontade!

- Tu és louca! Não vais morrer...

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- Creio que sim, sinto-me tão mal; isto não pode durar e estou muito fraca.

João Pedro pareceu reflectir por um momento, depois voltou-se para Mónica:

- Escuta, tenho uma ideia; Loux não parece sofrer muito e as suas feridas fecham-se depressa; ele passa todo o tempo a lambˆ-las. Talvez que se ele lambesse as tuas fosse melhor; vamos experimentar.

O husky, que seguia a conversa, procurava compreender o que estariam os seus donos a dizer. Enrugava a testa baixa, fixava os olhos interrogadores no rosto de João Pedro e no de Mónica. Como era difícil apanhar o significado daquele zumbido confuso e rápido de que os humanos se serviam a cada instante para comunicarem entre si!

No entanto, quando o grumete levantou o penso sujo de sangue coagulado e de líquido seroso que cobria as feridas de Mone, compreen deu imediatamente o que devia fazer. Passeou o seu móvel nariz a alguns centímetros dos profundos ferimentos, cheirou repetidas vezes e começou a lamber delicadamente.

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A sua língua húmida e quente aplicava-se como um tampão de algodão em rama sobre os sítios dolorosos, subia, descia, lambia no sentido do comprimento, da largura, demorava-se ou, pelo contrário, fazia pequenas passagens vivas e ligeiras.

Depois deste tratamento original, a doente dormiu melhor e, daí em diante, sempre que se detinham, Loux assumia as funçäes de enfermeiro em que fazia maravilhas.

Se Koublack ou Galtier matavam uma foca, vinham logo trazer a Mónica um grande bocado de fígado tépido e sangrento.

- Não te faças difícil, pequena - repetia-Lhe Galtier -, preciso comer mesmo que não tenhas �fome. O mal, é como um combate entre ti e ele, ganhará o mais forte. preciso que nunca o �deixes ficar por cima; quando vir que não consegue nada contigo, vai-se embora; é assim. Aqueles que partem é porque não tˆm bastante força em si para afogarem a doença. Mas tu és jovem; os teus olhos brilham, o teu corpo está completamente novo... E, além disso, o cão nunca uivou a chamar a morte, por isso tens de tomar coragem; dentro em pouco o teu mal estará de quilha para o ar.

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Alguns dias mais tarde, quando os náufragos se aprontavam para deixar o igloo e meterem-se a caminho, Koublack, que estava lá fora, chamou-os:

- Eh! Eh rapazes! Venham, venham, venham ver depressa! Apressem-se!...

João Pedro deslizou para fora; Galtier, que o seguia, tropeçou com a precipitação no bordo do estreito orifício da entrada, que cedeu ao seu peso. Desequilibrou-se com o choque e estatelou-se sobre o gelo, praguejando:

- Com mil demónios! Quem é que se lembra de fazer buracos de ratos para entrar e sair duma choça? Se isto ainda tem de durar muito tempo, vou ser obrigado a viver a quatro patas como as feras...

João Pedro e o esquimó olhavam para o ar; na direcção de nordeste e pareciam muito interessados no que viam.

Galtier foi ter com eles.

- Palavra de honra! Ou estou vesgo ou vocˆs tˆm visäes...

- Aqueles pontos negros que vão lá em baixo - disse Koublack.

- Ah! sim, são pássaros a voar.

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- São oideres,(1) Galtier!

- E então, vieram dar-te os parabéns pelos teus anos ou conversar acerca da região?

- Não, mas dizem-me que a terra está próxima. Aqueles pássaros nunca andam no mar, nem mesmo quando ele está gelado.

Galtier ficou atónito.

- Habitei a costa da Gronelândia o tempo bastante para saber isso. As orlas das toucas e dos fatos das crianças são de lã do oider, e em Scoresby Sund isso vende-se a peso de ouro. Com o meu pai, meus irmãos e os da minha tribo, cacei durante muito tempo esses gansos para lhes conhecer os hábitos. Agora a terra está próxima, podem crer...

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Aquela etapa foi um verdadeiro passeio; Loux estava completamente confundido.

Galtier não resmungou, maldizendo aquela ®porcaria de neve¯; nem uma única vez lhe tinham ouvido dizer a sua fráse habitual:

- Ah! Pensar que há cantos no mundo onde agora faz calor demais! Koublack, quando voltar, vou um mˆs para o Midi, no Verão, meto-me de barriga para baixo sobre a areia quente, à torreira do sol, como os turistas, e não me mexo mais.

*1 Espécie de gansos.

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fico ali até que a minha pele esteja negra, queimada, grelhada como um assado no espeto.

Um assado ali bem dourado, a queimar. Ai! Ai! Ai! O que é que viemos fazer para este sujo deserto!

Galtier tinha cantado uma canção de estribilho monótono, cujas notas discordantes e falsas davam a Loux vontade de gritar.

Por trˆs vezes tinha acariciado o seu focinho e repetido:

- Vamos, valente animal! �s um belo cão! um cão corajoso!

Tinha mesmo agarrado numa das correias do trenó e Loux fora obrigado a correr um pouco para esticar a sua trela, tão fortemente ele puxava.

Quanto a João Pedro, tinha-lhe passado os braços em volta do pescoço e despejado uma onda de palavras amáveis. Os seus olhos riam como outrora quando brincava com ele no Frami. E, enfim, a própria Mónica levantara-se sobre os cotovelos e ele tinha visto o rosto ainda pálido iluminar-se com um sorriso. No entanto julgara que não tornaria mais a ver aquela deliciosa careta para que tanto gostava de olhar.

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No dia seguinte, pelo meio-dia, o disco vermelho do sol, que começava a elevar-se de novo, ligeiramente, no horizonte, recortou ao longe um pico nevado que emergiu de repente do nevoeiro e elevou para o céu pálido a sua fronte cintilante.

Os quatro viajantes pararam para o contemplar. Não diziam nada; a emoção estrangulava-os. A terra estava ali. Por longínqua e inóspita que fosse, tranquilizava, reconfortava, fazia reflorir no coração a esperança que aqueles longos meses de angústia tinha dissecado quase inteiramente.

· noite, Koublack não quis fazer o igloo. João Pedro falou em continuarem a andar até de manhã. Loux parou, tornou a partir, deteve-se ainda e partiu de novo. Deteve-se pela terceira vez sob a mão firme de Galtier.

- Vamos! Vamos! Que pagode é este? Ainda não saímos do barulho, meus rapazes. Koublack vai construir o abrigo; os outros cortar a neve como de costume, e depois, todos a dormir, ou se não eu zango-me.

- Não continuamos? - perguntou Mone ao esquimó, que talhava blocos de neve.

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- Não, Galtier não quer e ele tem um ar decidido, por isso compreendes, filhinha, não me agrada meter-me de permeio, às vezes podia dar-me a patada do urso...

Mónica não p“de deixar de rir.

- Tu ris? Ora é isso que eu queria; quando se ri, sara-se mais depressa...

Nos dias seguintes, a montanha apareceu várias vezes por entre as aberturas do nevoeiro.

Tinha um explendor majestoso, com os seus afloramentos primários negros, amarelos e vermelhos, que alternavam com o branco da neve.

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Numa pausa que demorou alguns minutos, Loux fez uma descoberta que pareceu entusiasmar os donos. Apesar de ter empregado toda a sua boa vontade, não conseguiu partilhar a alegria que eles sentiam.

Aquela pequena coisa castanha que o seu faro tinha descoberto sob a neve e que expusera à luz do dia com uma patada, provocava geralmente o furor dos homens. Apanhavam-na com nojo nas suas pás para a lançarem longe. Mes aqueles trˆs simpáticos companheiros e a sua bondosa dona obrigaram Loux a ir tratar de assunto lá fora.

Ora hoje, lá estavam todos trˆs inclinados para aquilo como se fosse um bom prato de peixe fermentado.

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Galtier tomara mesmo entre as mãos aquele horrível dejecto, amarelado e tinha-o aproximado do rosto, do nariz, é claro que estava gelado, mesmo assim passava-se decerto algo de anormal. Loux bem desejaria saber o que é porque algumas palavras eram das que geralmente se aplicavam a ele:

- Digo-te que é excremento dum husky, Galtier, é mesmo uma bela bosta de husky, e não tem muito tempo se não estava branca.

- Eu não sou muito competente no assunto, mas vˆ-se que a bestinha que fabricou isso comeu a sua conta. Deve haver uma aldeia esquimó não muito longe...

- Se o trenó passou recentemente por aqui, Loux depressa encontrará a pista. Vamos, a caminho - cortou Koublack.

Ainda não tinham percorrido cinquenta metros quando João Pedro, que passara a ir à frente, se p“s a gritar:

- Estão aqui! Os sinais do trenó e das botas, vˆ-se muito bem, olhem.

Desta vez, Loux compreendeu a razão do entusiasmo dos seus amigos, O cheiro que lhe penetrava pelas narinas dizia-lhe que por ali tinham passado homens, com cães, vários cães.

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Se pudesse falar, teria explicado que os sinais não tinham mais de vinte e quatro horas, teria precisado de que tipo de homens se tratava e de que categoria de cães. Teria podido indicar o seu número aproximado e propor alcançá-los visto não estarem a mais de doze horas de bom andamento.

Infelizmente não conseguia revelar essas coisas aos seus companheiros, que se obstinavam em olhar ao longe. De que é que isso lhes servia? E para quˆ tanto falar? Era melhor que pusessem o nariz sobre os sinais, ali, ali, como eu faço, vamos...

Mas não, decididamente os homens são duma raça especial; o nariz só lhe serve para se assoarem...

Que espécie engraçada, por vezes incompreensível mesmo para um cão animado de toda a sua boa vontade!

Foi preciso parar e construir o igloo pela centésima vez.

De noite, levantou-se de repente uma tempestade de neve. Havia muito tempo que isso não se verificava e Loux pensou que chegava mesmo na altura.

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Foi deitar-se, de costas voltadas para o vento de maneira que a neve se infiltrasse por entre os pˆlos espessos. Ia

ser uma hecatombe de pulgas, ficaria livre dos

parasitas que se tinham multiplicado de maneira considerável entre o seu pˆlo quente. Só ficariam alguns sobreviventes que se saberiam esconder nos refegos do seu corpo, exactamente os necessários para uma pequena coçadela normal.

Por duas ou trˆs vezes, os donos puseram o nariz de fora mas não insistira. Não se via a um metro de distância e as rajàdas daquela farinha picante fustigavam os olhos, gelavam as faces, paralisavam os gestos. Era preciso esperar. A calma não tardaria a voltar... E pela centésima vez retomáram o caminho.. Os náufragos lvaram mais de duas horas a encontrar a pista; o próprio Loux estava desorientado; a borrasca tinha levado o cheiro e coberto os sinais ; mas os donos possuíam faculdades que escapavam ao cão e o enchiam de admiração pelos seus amigos bípedes. Tiraram dos seus cérebros conclusäes inesperadas e, mesmo sem farejarem coisa alguma, encontraram o caminho. A lua e o sol ajudavam-nos, a forma do terreno também.

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- Só podem ter seguido esta direcção.

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- esplicou Koublack. - · direita e à esquerda, é impraticável.

- De qualquer maneira, é preciso seguir para sudoeste - disse Galtier. - Reparei ontem, quando o sol atingiu o ponto mais alto, na situação da montanha, está ao sul para sudoeste...

E eles avançavam, avançavam, avançavam sempre.

Num dado momento, João Pedro, que acabava de contornar um montículo, voltou correndo para o grupo, gesticulando e gritando:

- Vi um pequeno moinho de vento, um molinete...

Muito agitado, descrevia com um gesto u círculo no plano horizontal.

- Um molinete? Um moinho de vento?

- Sim, como se fossem pás negras a girarem em torno de um eixo.

- E igloos?

- Não se pode ver, há um talude que tudo esconde, mas certamente existem habitantes.

Chegados ao cimo da eminˆncia, Koublack e Galtier viram o molinete.

- � um instrumento para medir a força do vento - disse o marinheiro. Já conhecia aquilo.

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- Olha! O que é que brilha lá adiante?

- Um mastro e uma antena de rádio... Vamos! Mais um esforço, rapazes! Creio que estamos a chegar ao fim...

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Da estação saíram uns homens que vinham ao seu encontro. Desde há meses que os náufragos imaginavam aquele momento fatídico.

Tinham-se visto correr ao encontro de semelhantes seres, de qualquer raça que fossem, estreitando-os nos braços, gritando a sua alegria e o seu triunfo, e agora que esses homens estavam ali, perto deles, ficavam estupidificados. A emoção paralisava-os, tornava-os incapazes de fazerem um gesto espontâneo ou de dizerem uma palavra.

Os recém-chegados interrogaram-nos em várias línguas e, vendo que eles não compreendiam, um deles perguntou em francˆs:

- Quem são vocˆs, e de onde vˆm?

Galtier fez um esforço para responder:

- Somos franceses naufragados, andámos à deriva sobre um bloco de gelo do Spitzberg... Temos uma pessoa ferida connosco.

- Do Spitzberg!

A palavra correu de boca em boca:

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- Vou wo sagst du, von Spitzberg?

- Ya.

- From Spaitzberg!

- Yes.

A espécie de entorpecimento nervoso que tinham sentido ia-se atenuando cada vez mais e dando lugar a uma agradável impressão de relaxamento. Aquele que tinha falado em francˆs foi até ao pé do trenó e lançou a Mónica um olhar directo e penetrante. Tirou rapidamente uma luva e com o dedo afastou-lhe os lábios:

- Como te sentes?

- Isto vai melhor, mas estou fatigada.

- � normal, eu já te vejo no posto.

Depois, dirigindo-se ao grupo:

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- Não fiquem cá fora, meus amigos, façam o favor de entrar.

Enquanto o doutor submetia Mónica a um longo exame médico sob o olhar severo de Loux, que teimara em seguir a sua dona até à sala de consulta e vigiava o clínico com um olhar atento, João Pedro e Koublack, completamente descontraídos, tinham tomado lugar em volta do fogão e deixavam-se invadir por uma deliciosa sensação de calor.

Louis Mauclair, engenheiro francˆs, membro da expedição,

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interrogava-os sobre as peripécias da sua odisseia e dava-lhes indicaçäes acerca da missão polar a que pertencia.

Era um grupo de sábios e técnicos europeus, encarregados de investigar as possibilidades de exploração mineira da terra do Hudson.

A equipa compreendia noruegueses, dinamarqueses, franceses, ingleses, holandeses e alemães. O chefe da missão era o doutor Durosoy, médico francˆs, erudito e agudo psicólogo; não vigiava somente o estado sanitário, estava também encarregado de estudar os efeitos do clima polar sobre os temperamentos europeus.

Inteligente, muito equilibrado, o doutor Durosoy não tivera nenhuma dificuldade em impor a sua autoridade, tanto mais que já tinha experiˆncia das regiäes árcticas e gozava da simpatia de todos os membros da expedição.

Quando acabou de examinar Mónica, foi simplesmente juntar-se ao grupo e nesse momento é que João Pedro notou a ausˆncia de Galtier.

- Onde é que ele está? - perguntou o grumete admirado.

Koublack voltou a cabeça e viu através do vidro o marinheiro que se encontrava fora.

Estava apoiado ao trenó e parecia absorto.

- Onde é que ele esttá? - perguntou o grumete admirado.

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Koublack voltou a cabeça e viu através do vidro o marinheiro que se encontrava fora. Estava apoiado ao trenó e parecia absorto.

- Isto só visto! - disse estu pefacto. - Não cessou de

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repisar que a primeira coisa que faria seria aquecer-se até grelhar a pele, e agora, que tem fogo e um lume em casa, fica lá fora a gelar.

- Vou ter com ele - disse João Pedro, levantando-se e enfiando a blusa.

O médico deteve-o:

- Não, pequeno, fica aí; eu próprio vou lá.

- Então! - disse o doutor Durosoy, pondo a mão sobre o ombro do marinheiro. - Não vem connosco?

Galtier voltou a cabeça para o recém-chegado e o doutor notou que ele tinha lágrimas nos olhos.

- Não sei o que me deu - disse; desculpando-se - nunca estive assim doente; provavelmente a fraqueza... Desde que chegámos que sinto como que um desgosto que me tolhe todo, e depois ponho-me a chorar, pior que um miúdo...

- Os outros obedeciam-lhe?

- Sim, isto é, pensei que devia tomar comando visto que me tinham confiado dois garotos, e além disso, a bordo, como é justo, segundo a escala, isso cabia-me a mim: Eu não sirvo para essas coisas; estava sempre a pensar se seria melhor assim ou assado...

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Estarei a fazer o necessário?... Não recebi muita instrução e é difícil quando se tem de decidir tudo só pela nossa cabeça: E depois, aqui está, agora que conseguimos sair disto tudo, que os pequenos e o meu marinheiro estão salvos, sinto de repente como se uma doença caísse sobre mim,þe tenho vergonha de ir para junto dos senhores com os olhos vermelhos.

- Dessas lágrimas, meu amigo, nunca ninguém se lembrará de rir, pode crer-me., þ uma reacção natural naqueles que deram mais do que o que podiam. Melhor do que quaisquer palavras, elas dizem-me quem vocˆ é e sinto-me orgulhoso de que pertença ao meu país. Venha para a estação; sentir-me-ei muito feliz em apresentá-lo aos meus companheiros.

- O senhor é médico?

- Sim.

- Viu a pequena, é muito grave?

- Tem uma anemia bastante profunda e fadiga nervosa; mas asþferidas estão a cicatrizar bem, sem infecção. Depressa se recomporá. Receava que tivesse sido atingida pelo escorbuto, mas não. Ela contou-me que bebeu sangue e comeu carne e peixe cru; isso proporcionou-lhe as vitaminas indispensáveis.

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- O senhor é que manda aqui?

- Sim.

- Então preciso que me diga o que devo fazer para prevenir os parentes dos miúdos. Da outra vez, na Islândia, fui aldrabado, não quero que isso se repita.

- Não tem nada a recear, vou mandar imediatamente um radiotelegrama, redigi-lo-emos juntos.

- Obrigado.

Galtier, enquanto se dirigia para a estação na companhia do médico, perguntou-lhe ainda:

- Em que mˆs estamos?

- A dez de Março, meu amigo. A Páscoa é dentro de trˆs semanas.

- Bendito seja Deus! Deixámos Bordéus pelos meados de Junho, devem pensar que rebentámos todos.

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- Não sabiam que vocˆs estavam perdidos nos gelos?

- Creio que não. Na Islândia, o espertalhão em casa de quem estávamos, disse-me que tinha prevenido as autoridades, mas só de olhar-lhe para o focinho se via que mentia. Ninguém deve ter sabido mais nada de nós depois que deixámos o Frami, no fim de Junho... a menos que, talvez - acrescentou Gáltier.

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- O imediato do Titan tivesse dito qualquer coisa; isso é possível, porque aquele, com o seu ar tranquilo, era alguém.

Sim, um cavalheiro mesmo, mas de qualquer maneira, se falou a nosso respeito, deve ter dito que o Diabo nos levou há muito tempo e que ele não podia ter feito nada para nos encontrar nos bancos de gelo.

Reunidos em volta do posto emissor, Galtier, João Pedro, Koublack e Mónica, que, dada a circunstância, se tinha levantado, ouviam partir com um pequeno ruído anasalado as frases do telegrama que Charly Brent, o operador britânico, manipulava com uma rápida cadˆncia.

- Cryg, cryg crycrycry cryg cryg cryg cry, cryg...

- Por que é que não falas ao microfone? - perguntou João Pedro.

- O Morse alcança muito mais longe.

Deixou o manipulador e com um movimento preciso encaixou a alavanca do receptor. Os auscultadores deixaram escapar uma sucessão precipitada de tiout, tiouty, que variavam do grave ao agudo à medida que o operador rodava o botão graduado do condensador móvel.

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De repente, agarrou no lápis e p“s-se a escrever.

- Já está! Estão a responder! - gritou Mone, radiante.

- Kip saYlent! - cortou a voz severa de Brent.

Não se ouviu mais que o silvar aflautado do Morse. Quando parou, Charly estendeu a mensagem escrita em inglˆs ao doutor Durosoy, que a traduziu instantaneamente.

- Posto norueguˆs de Stavanger - stop - Mensagem bem recebida - stop - Destacamos imediatamente membro direcção da estação para contactar família - stop - Resposta e telegrama eventuais às horas de contacto.

Foi preciso esperar pacientemente durante dois longos dias, pesados de apreensäes e angústia. Os homens da missão polar, cada um segundo o seu temperamento, a sua educação e os costumes do seu país, esforçaram-se por atenuar o sofrimento moral que aquela longa espera provocava nas duas crianças.

E depois foram as lágrimas, essa frágil reacção da natureza humana que traduz expontâneamente e com uma comovente sinceridade, a intensa dor assim como a imensa felicidade, que correram dos olhos de Mónica e de João Pedro quando Brent,

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tirando os auscultadores, lhes disse:

- O paizinho e a mãezinha de vocˆs, o irmão de Jack, beijam muito. O old capten também. Eles estão todos de muito boa saúde.

O doutor Durosoy, que tinha terminado a leitura da mensagem, acrescentou:

- Um avião virá aqui buscá-los, logo que as condiçäes atmosféricas sejam suficientemente favoráveis.

Depois, voltando-se para Galtier, que em silˆncio olhava para o chão, disse lentamente:

- O comandante Kermeur faz igualmente saber que está encarregado pelo governo francˆs de enviar ao chefe do grupo, Paul Galtier, a cruz de cavaleiro de Mérito Marítimo.

Mónica, que continuava a chorar, levantou-se da cadeira de viagem onde repousava e foi abraçar com força o marinheiro, enquanto João Pedro, cujas faces estavam ainda húmidas de lágrimas, batia as mãos gritando:

-Bravo, Galtier! Bravo, Galtier!

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Galtier, um pouco incomodado e profundamente emocionado, pela estima e pelo afecto sincero que lhe testemunhavam, repetia para se conter:

- Ora então!... Se eu esperava uma destas!...

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Ora então, nunca teria acreditado...

Brent p“s fim à manifestação da sua timidez, comandando com a sua voz seca e autoritária:

- Pelo chefe do grupo e seus sympathical companheiros hip hip hip! Hurrah! Hip Hip Hip! Hurrah! Hip Hip Hip! Hurrah!

Loux não compreendia muito bem o que se passava; mas, ao ver os olhos dos seus donos, adivinhou que sentiam uma grande alegria e um grande orgulho; por isso foi também, muito dignamente, colocar-se em frente deles, sentado nas patas traseiras, com as patas da frente bem esticadas e a sua bela cabeça perfeitamente erguida como convém a um nobre cão de raça husky que cumpriu corajosamente o seu dever.

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XII

OS sinos repicavam no ar morno e dourado daquela tarde de Setembro; a multidão comprimia-se na praça e no adro para ver passar a procissão.

Bum, baciabum, balum, balan, dulum, blam...

Os estandartes inclinavam-se sob a ogiva da porta da Basílica de Nossa Senhhora do Folgot; os de seda branca, levados pelas raparigas do Lião, com as suas coifas envolvendo-lhes as cabeças como capuchos e com os longos xailes bordados; os de veludo vermelho, altos e largos como

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velas, mantidos à mão pelos homens de blusa solta, de calças estreitas no joelho e largas na base, com o tradicional cinto de lã azul e cinzenta enrolado em torno das ancas, à maneira de um turbante.

Eis outro grupo de mulheres transportando uma imagem da Virgem; são encantadoras sob o ligeiro chapéu cónico que Lhes dá um porte de rainhas: O sol de fim de Verão prende-se nos refegos dos seus ricos trajos, de doces cores de Outono,

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ou vivas, audaciosas, como as dos fatos das raparigas de Plougastel, que desfilam cantando o velho cântico bretão à Nossa Senhora:

Patronez douz ar Folgoét Hor nnam hag hou Introun...

Um pouco de vento faz voar fitas verdes e violetas em torno dos seus cabelos negros ou louros.

- O que é que eles dizem? Não se compreende absolutamente nada - declara em voz alta uma dama que se encontra na primeira fila dos espectadores, entre o marido e o filho, um miúdo de cerca de oito anos.

- � a língua da região - responde o homem. - Não procures compreender, contempla antes o espectáculo. Como isto, só se pode ver aqui.

O rapazinho olha com interesse para o cortejo que se dirige lentamente, recitando preces, para o oratório de granito. A sua atenção em breve é atraída pelo modelo de um lugre transportado por quatro marinheiros. Um deles é muito mais alto e mais forte que os outros; o seu arcaboiço forma sob a camisola azul um triângulo impressionante onde os músculos levantam, nalguns sítios, o tecido de lã. O outro, a seu lado, é uma estranha figura de mongol de pálpebras semifechadas,

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como a de um gato que espreita o rato.

Atrás vão dois jovens: um de cabelos castanhos encaracolados, e o outro com uma gaforina cortada em escova.

Ao seu lado caminha um cão; de repente a criança aperta a mão da mãe:

- Maezinha, maezinha! Eles vão descalços...

Mas a jovem senhora só tem olhos para o husky:

- Oh! que soberbo animal, Gerardo - diz voltando-se para o marido. - Quero um cão como aquele; compra-lho.

- Maezinha - continuou a criança - por que é que eles vão descálços?...

- Olha, com efeito, é curioso, Gerardo, passa-me a máquina fotográfica.

- Não, querida, fazes-me sentir vergonha. Há actos que, para além de tudo, impäem respeito.

Vendo que não se ocupavam dele, o rapaz interrogou um vizinho, um jovem louro que tomava notas numa agenda e parecia ser jornalista. Também ele seguia com os olhos o navio que se afastava, embalado pelo ondular dos passos.

- O senhor sabe por que é que eles não levam sapatos?

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- Cumprem uma promessa à Virgem Santa, uma promessa feita num dia em que julgaram morrer, numa região que fica muito longe daqui. Fizeram trinta e cinco quilómetros descalços e trazem aquela insígnia em testemunho de reconhecimento.

- O cão também estava com eles?

- Sim.

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O cortejo alcançava agora a igreja... Budum bum, budumbum, budum...

Teu hag hir es ar Brezel

Ar peoc'h o Maria!...

O lugre voltava, a criança fixava os seus grandes olhos sobre os quatro portadores. Não pareciam ver ninguém, nem o Senhor e a Senhora Mercier, nem Jacques Biard, nem o comandante Kermeur. Caminhavam sem se importarem com os olhares nem com as feridas dos pés. O que era aquele sofrimento comparado com as longas e desumanas jornadas que tinham conhecido?

- Onde é que eles se encontravam quando fizeram essa promessa?

- Nos bancos de gelo, meu rapazinho, pela altura do paralelo oitenta, norte, no país dos eternos horizontes brancos.

NOTA

- Estes relatos, assim como o de Daniel, não são imaginários mas autˆnticos. O Esseay tinha por comandante o capitão Pollard, de Nantucket, e o imediato chamava-se Owen Chace.

Após o acidente contado por Daniel e que se produziu em Novembro, os homens, nos escaleres, não vendo nenhum navio, fizeram-se de vela e atingiram um ilhéu rochoso e deserto: Ducie, a 25 graus de latitude Sul e 12 graus de longitude Oeste.

Uns marinheiros ficaram aí, os restantes tornaram a fazer-se ao mar.

Um dos escaleres foi visto, dois meses após o drama, por um baleeiro americano; e os infelizes náufragos foram recolhidos a bordo.

O segundo escaler só foi encontrado por um outro baleeiro americano noventa dias depois de ter deixado o ilhéu Ducie. De todos os homens que constituiam a sua tripulação só restavam a bordo o capitão e o grumete.

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Os outros pereceram. � doloroso dizer que tinham sucessivamente servido para prolongar a vida dos seus camaradas.

Tinham tirado sortes pela última vez nesse dia e o grumete perdera; o encontro com o navio americano salvou-lhe a vida.

Os marinheiros que tinham ficado no ilhéu Ducie foram salvos mais tarde por um barco proveniente de Valparaiso, comandado pelo capitão Reine, da Nova Gales do Sul.

Encontravam-se num estado de depauperamento e magreza espantosos, tendo vivido apenas de grãos e raízes.

Quatro meses após o acidente do Ann Alezander, que tinha sido comandado pelo capitão De Blois, de New Bedford, um cachalote ainda vivo, embora um pouco enfraquecido, foi capturado pelo brigue Rebecca Sins. Trazia na cabeça grandes bocados de madeira provenientes da quilha de um navio. Profundamente enterrado na sua carne encontrou-se um arpão onde estava gravado, segundo o uso da época, o nome do baleeiro, Ann Alexander.

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A vítima do terceiro acidente relatado e que se produziu perto do Georgs Banks, era o filho do capitão Clark, de Boston. Encontrava-se à proa do escaler, segurando o arpão. Foi atirado ao ar. Quando caiu, o cachalote apanhou-o entre as mandíbulas. Uma parte do seu corpo foi vista sair da boca do animal quando ele se voltou antes de desaparecer.

Estes factos são relatados por: André Mauguin, ®Trˆs anos de pesca à baleia¯, diário de bordo do capitão baleeiro Dutom, de Barfleur; F. B. Goodrich, ®Man upon the sea¯; Ch. Boardmann, Whaling.

Não são únicos. Outros do mesmo género são mencionados nos diários de bordo dos baleeiros. Por exemplo, o acidente ocorrido com a Paulina, do Havre. Muitos outros, e entre eles o do Esseg e o do capitão Clark, citados por nós, foram igualmente relatados em revistas e

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jornais franceses e estrangeiros da época. O autor limitou-se a não citar as datas exactas para conservar a homogeneidade do romance.

FIM

Amadora, 28 de Abril de 1999