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Neste Mês

UM TETO TODO SEU

Reportagem comenta a necessidade de políticas de visibilidade para a literatura brasileira, paraalém do padrão homem hétero branco e de classe média. Resenha especial comenta o polêmiconovo livro do escritor francês Michel Houellebecq

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Entrevista

Walter Benjamin não pode ser mais um fetiche cultural

Escrito por Paulo Carvalho Ter, 27 de Janeiro de 2015 00:00

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1/29/2015 Walter Benjamin não pode ser mais um fetiche cultural

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Foto por Yuri Tavares/Divulgação

Para Jeanne Marie Gagnebin, uma das maisreconhecidas e admiradas pesquisadoras da obra deWalter Benjamin, deveríamos resistir à tentação detransformar os escritos do pensador alemão em maisum fetiche, em mais um “bem cultural” circulandoem um sistema de consumismo cego, de meraacumulação, cuja lógica esvaziada foi justamente oalvo de um pensamento essencialmentequestionador, crítico e subversivo. Gagnebinconversou com o Pernambuco sobre o seu maisrecente livro, Limiar, aura e rememoração: ensaiossobre Walter Benjamin, publicado pela Editora 34,em que aborda temas centrais em Benjamin taiscomo a escrita, a morte, a transmissão, a atenção e a

dispersão, o messianismo e a experiência histórica na modernidade.

De origem suíça, mas residente no Brasil desde 1978, Gagnebin faz parte de uma tradição deestudos benjaminianos brasileiros, reconhecida inclusive na Alemanha, cuja densidade afirma odever de também tentar “nos ler e nos criticar”, para além de conhecer os demais comentadores deBenjamin. Na entrevista, a pesquisadora critica duramente a produção acadêmica voltadaexclusivamente para Currículo Lattes e reafirma o papel central dos professores no despertarintelectual dos novos acadêmicos. Gagnebin é autora dentre outros de Walter Benjamin: os cacosda história (Brasiliense, 1982), História e narração em Walter Benjamin (Perspectiva, 1994), Seteaulas sobre linguagem, memória e história (Imago, 1997) e Lembrar escrever esquecer (Editora34, 2006).

No texto “Estética e experiência histórica em Walter Benjamin” a senhora fala sobre o riscode reduzir o filósofo a “belos livros de Walter Benjamin”. Gostaria que a senhora comentassesobre como o mercado editorial de língua portuguesa trata o pensamento benjaminianohoje. Ainda temos muitos problemas em torno das traduções? Há comentaristas que asenhora gostaria de ver traduzidos com mais urgência? (Acompanhando as notas do seu livropenso ter algumas indicações para essa resposta...) Algumas traduções já editadas precisamser refeitas ou revisadas?

São muitas questões juntas! As obras de Walter Benjamin demoraram a cair no domínio públicoporque ele morreu durante a Segunda Guerra: são 70 anos de prazo depois da morte, neste caso.Até o fim de 2010, a Editora Suhrkamp, em Frankfurt, detinha os direitos autorais sobre obra etraduções, exigindo que todas obras de Benjamin fossem traduzidas segundo e seguindo a ordemdas Gesammelte Schriften dessa editora (“Escritos reunidos” – não são “Obras completas” porquemuita coisa se perdeu e talvez possa ser encontrada ainda!). Isso complicou muito as traduções. EmPortugal, João Barrento traduziu muitos desses volumes, republicados hoje na Editora Autêntica.

São boas traduções, mas seguem essa ordem imposta pela Editora Suhrkamp, que não énecessariamente a mais sensata. A partir de janeiro de 2011, temos um “boom” de traduções de W.Benjamin no Brasil. De maneira desconectada, repetindo textos, muitas vezes. É estranho que nãose consiga chegar a um acordo, mas esse é um problema maior: o de uma discussão intelectual

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maior entre os vários pesquisadores e tradutores de Benjamin. Pessoalmente, tento ajudar na ediçãocrítica empreendida pela Editora 34. O próximo volume deve trazer textos ligados à filosofia dahistória, com notas críticas. A Editora Brasiliense está tentando reeditar os três volumes pioneirospublicados nos anos 80 com revisões. Infelizmente, até agora, me parece que essa revisão poderiater ficado mais cuidadosa.

Pessoalmente, gostaria muito de ver uma tradução literária bonita tanto da Infância em Berlim porvolta de 1900 como do primeiro esboço desse texto, a Crônica berlinense. E também daCorrespondência de Benjamin, mas isso demora muito.

Devemos cuidar para não cair nem no extremo do valor mercadológico de obras conhecidas (há,por exemplo, duas edições recentes da segunda versão, finalmente reencontrada no arquivo MaxHorkheimer, do ensaio sobre “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, me parecedemais!) nem no outro extremo: a erudição pela erudição. É imprescindível tentar sempre fazertraduções anotadas que indicam o contexto político e histórico dos textos. Em suma: tentar nãotransformar Benjamin em mais um fetiche cultural, mas cuidar do aspecto questionador, inquieto,sim, subversivo do seu pensamento. Todo seu pensamento lutou contra essa fetichização da culturae da escrita.

Em relação aos comentadores. Primeiro, acho que devemos, no Brasil, cuidar de ler melhor a nósmesmos: há já uma tradição benjaminiana brasileira, reconhecida até na Alemanha, deveríamostentar nos ler e nos criticar (cordialmente, mas nos criticar sim) mais. No meu último livro, citovárias obras de referência em alemão, é bem verdade. Aí não sei se devemos traduzi-las... Ouinsistir para que mais estudiosos estudem alemão e possam ler toda essa literatura em alemão!Agora, o volume Walter Benjamin, Memória, organizado por Uwe Steiner para o centenário deBenjamin em 1992 , poderia ser bem traduzido com seus ensaios quase “clássicos” de grandescomentadores.

Espero que ainda neste ano saia, pela Editora 34, a tradução de um belo livro sobre W. Benjamindo poeta catalão Vicente Valero: Experiência e Pobreza. Walter Benjamin em Ibiza.

Em 2012, numa fala sua aqui no Recife, achei interessante com a senhora criticava algumasapropriações que fazemos de conceitos de Benjamin. A senhora falava sobre a noção,achatada, que se costuma ter do conceito de “melancolia” em Benjamin. Também comentou onosso uso do termo “povo”, que não levaria em conta a ambiguidade desta palavra. Pareceu-me que a sensibilidade benjaminiana por vezes estava um tanto distante de nós, os brasileiros,ou, nós, os falantes de língua portuguesa. A pergunta que faço é: o que significa pensarBenjamin no contexto social, político, cultural brasileiro de hoje? O que seria exatamente naabordagem de temas históricos e artísticos brasileiros oferecer ao pensamento de Benjamin omesmo tratamento que seu pensamento oferecia às ruínas do seu tempo?

Essa questão, no fundo, não diz somente respeito à “apropriação”, para retomar sua palavra, da

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obra e dos conceitos de Benjamin, mas é uma questão hermenêutica muito mais ampla. Ela secoloca cada vez que lemos ou estudamos textos escritos numa outra época e, igualmente, comovocê ressalta, em outra língua, porque se pensa de maneira diferente segundo as línguas que sefala... Por exemplo, se pensa diferente se você tem três gêneros (masculino, feminino, neutro) oudois (masculino, feminino) ou nenhum. Ou se se fala do “ser” segundo a modalidade de “ser” e de“estar”, ou somente de sein ou d’être. Cada língua tem seus pressupostos metafísicos... e, também,históricos. A palavra “Volk” (povo) em alemão não pode ser usada mais de maneira inocentedepois do nazismo e de ter ainda, na memória auditiva e afetiva, a voz de Hitler.

Agora, essas considerações podem até se estender a falas e textos da mesma língua e da mesmaépoca. A filosofia pode nos ajudar a tomar sempre um certo recuo em relação ao uso dos conceitos,também das metáforas ou simplesmente das palavras comuns. É um cuidado interpretativo e críticoporque as nossas palavras não são simplesmente “instrumentos’, mas carregam junto associaçõeshistóricas e semânticas (sem falar das inconscientes!) e visões do mundo como diziam osRomânticos alemães.

Então, desculpe, mas não tenho certeza que devemos hoje, no Brasil, ter “o mesmo tratamento” emrelação a temas artísticos ou históricos que Benjamin. Parece-me difícil, justamente porque é tãodiferente. O que podemos, sim, reter de sua reflexão é a atenção pelas ações e expressões dos“oprimidos’, para usar uma palavra dele, isto é, expressões de resistência, de busca de outroscaminhos, de esperança de outros mundos, também de desesperança. E a desconfiança em relaçãoao modelo atual, impositivo, de sucesso e de felicidade a qualquer preço, num sistema deconsumismo cego e de exploração cada vez maior. Essas exigências são do pensamento deesquerda em geral. Benjamin também tem uma atenção singular pelo detalhe e pela espessuramaterial da linguagem; ele mostra igualmente uma grande desconfiança em relação às construçõestotalizantes, mesmo ‘dialéticas”... Esse lado “filológico” seu me parece geralmente poucovalorizado e merece ser ressaltado, porque vai contra uma pressa e uma voracidade muitas vezesconfundidas com “brilhantismo” intelectual.

Confesso que foi muitíssimo deleitoso ler o comentário da senhora sobre a imagem de JeffWall. Pergunto se a senhora gostaria de comentar algum outro trabalho contemporâneo emque enxerga aberturas para uma aproximação benjaminiana. Gostaria de falar um pouco dasua relação com a produção artística contemporânea?

Costumo falar para meus alunos que na discussão/briga entre Adorno e Benjamin sobre a perda da“aura” e a função utópica ou alienante do cinema, ambos podem nos ajudar: Adorno para entendero que é a “indústria cultural” que reina soberana na nossa sociedade; e Benjamin para entender astentativas de práticas culturais e artísticas contemporâneas que se caracterizam muito mais pela“experimentação” do que pela criação de uma “obra” acabada e singular. Penso notadamente emtodas as práticas como instalações, performances, atividades teatrais ou circenses oucinematográficas lúdicas e efêmeras. A partir notadamente de suas reflexões sobre o teatro “épico’de Brecht, mas também sobre o teatro de crianças proletárias (que ele conheceu a partir de suaamiga Asja Lacis), Benjamin tentou pensar mais em termos de “ordenação experimental”(Versuchanordnung) do que em termos mais clássicos de “obra de arte” (Kunstwerk).

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Isso certamente nos ajuda a pensar as práticas artísticas contemporâneas que não podem mais serlidas somente à luz de uma estética do belo e do sublime, mas que também apontam para algocomo exercícios de alteridade e de transformação.

Pessoalmente, não sou especialista nem em artes plásticas nem em cinema. Gosto muito de umcineasta chinês, já bastante famoso apesar da juventude, Jia Zhangke (indico um livro recente deWalter Salles e Jean-Michel Frodon, O mundo de Jia Zhangke, CosacNaify, 2014). Quando vejoseus filmes, rodados geralmente com câmera digital, ágeis, ternos e cruéis, sinto um ‘ar de família’com Benjamin. É um cinema documentário e de ficção, fala de pessoas comuns, anônimas, doconflito entre a tradição milenar e a modernidade acelerada, do campo que desparece e dasmegacidades, falam da tradição que vai desparecendo, mas que continua pesando como chumbo(como em Kafka), da memória afetiva e corporal, de tentativas de solidariedade, de tentativas desobrevivência, de ‘linhas de fuga” que às vezes dão certo, na maioria das vezes não dão. São filmesternos e contundentes sem grandes efeitos nem grandes discursos (daí talvez a importância de umacâmera mais leve). Há neles um gesto de atenção e de esperança triste que me lembra os textos etambém a situação histórica de Benjamin, essa catástrofe que muda de semblante, mas que continuasob o manto da normalidade. “A construção histórica é dedicada à memória dos sem nomes”(“Dem Gedächtinis der Namenlosen ist die historische Konstruktion geweiht.” Walter Benjamin,Gesammelte Schriften I-3, p. 1243, Suhrkamp Verlag, Frankfurt/Main, 1974) diz Benjamin; talvezessa frase também possa definir práticas artísticas como o cinema de Jia Zhangke.

Mais perto de nós, claro, também penso num filme como Cabra marcado para morrer de EduardoCoutinho, um grande filme sobre lutas, memória e transmissão, tentativas de soterrar essas lutas eessa memória.

No texto sobre “Limiar: entre a vida e a morte”, a senhora fala a respeito da digressão(pensar por “desvio”), um pensamento em que se abandone a “soberania do sujeito dopensar”, e que possa, enfim, “pensar devagar”. O que significa “pensar devagar” nocontexto da academia brasileira hoje? Se os pesquisadores e professores são pressionados porcerta lógica produtivista, a quem restou o papel de “pensar devagar”, hoje, no Brasil?

Pois é, ficamos todos escravos dos curricula Lattes e da contabilidade da Capes. Pode-se entenderque essas avaliações todas tiveram origem numa tentativa de reduzir algumas práticas demalandragem e de picaretagem na vida acadêmica. Não sei se o conseguiram. Agora, tambémparticipam do produtivismo e da aceleração que caracterizam o capitalismo concorrencial. Emtermos marxistas clássicos, é o triunfo do valor de troca sobre o de uso (para que tantas revistas,tantos artigos, até tantos livros que ninguém lê, mas que contam pontos na carreira de alguém?). Aciência se tonou uma indústria, uma “empresa”, um Betrieb como já diziam Adorno e Horkheimernas primeiras páginas da Dialética do Esclarecimento.

Em termos de ensino no Brasil, uma vantagem consiste no fato que, graças ao CV Lattes, há umacerta ‘transparência’ sobre a vida acadêmica das pessoas. Mas é uma transparência opaca, porquenão diz respeito nem à qualidade dos textos escritos nem à qualidade do ensino, a meu verfundamental na atuação de um professor. Temos cada vez mais pesquisadores bastante restritos na

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sua temática (o que permite especialização, certamente, mas não necessariamente comunicação etransmissão dos saberes adquiridos) e cada vez menos professores felizes em ensinar, que saibamentusiasmar seus alunos e, ao mesmo tempo, exigir deles um esforço de questionamento e deaprofundamento. Ora, me parece que disso que o ensino brasileiro mais precisa desde o ensinofundamental até a pós-graduação: a alegria e a exigência no ensino e no aprendizado.

Sei que posso fazer essas críticas porque sou uma velha professora respeitada, em particular graçasao seu CV Lattes! Agora, para mim, o ensino da filosofia deveria ousar resistir a essa acumulação ea essa pressa, justamente porque é busca, crítica, proposta e inventividade, porque não sabe comcerteza aonde vai, aonde o logos pode nos levar como diz Sócrates. Há vários anos escrevi umpequeno texto sobre isso, acho que saiu na internet sob o título “o métodos desviante” que insistenessa paciência da filosofia, um conceito emprestado tanto a Hegel (“a paciência do conceito”)como a Lyotard. Justamente porque o pensamento filosófico não se esgota na comprovação de sua“utilidade”, mas tateia para também pensar aquilo que ainda não foi pensado, que espera por serreconhecido e conhecido, por ser nomeado, ele não pode- nem deve, me parece - obedecer a essapressão sem criticá-la. Se tiver que obedecer, quando um jovem colega presta concurso, porexemplo, que o faça para “salvar sua pele”, mas não confunda essa atitude com atitude científica!Falo da filosofia, mas imagino que literatura e outras disciplinas ditas de “ciências humanas”também poderiam concordar com essa crítica. E também das ciências ditas “hard”.

Há alguns anos, o psicanalista Renato Mezan publicou um artigo na Folha de São Paulo, intitulado“O fetiche da quantidade”1, no qual conta como, em 1994, um professor de Princeton, AndrewWiles, conseguiu, mais de três séculos depois de sua formulação, demonstrar um teorema de ummatemático francês, o “théorème de Fermat”, cuja demonstração tinha ficado perdida. Auniversidade de Princeton ofereceu ao pesquisador tanto tempo quanto precisava para se consagrarexclusivamente a esta pesquisa. Ele encontrou a solução depois de sete anos... Sem artigo nemrelatório intermediários, portanto!

Será que não é mais possível escrever um belo livro (vamos dizer em seis ou sete anos) porquedeve-se redigir três artigos por ano ou mesmo por semestre? E que não se possa “perder tempo”com uma classe até os alunos todos despertarem e começar a pensar por si mesmos? Não é precisosaber de filosofia ou de literatura para saber o quanto a errância e a “perda” de tempo sãoimprescindíveis para inventividade no pensar.

A senhora faz uma crítica dura a Agamben, na nota da página 55. Fala que a aproximaçãoentre a noção de “mera vida” e “vida nua” pode ter sido apressada. Essa relação é angular noprincipal projeto de Agamben, que é o seu “Homo sacer”. Essa oposição já foi discutidaanteriormente? A senhora gostaria de se estender um pouco mais sobre essa crítica?

Queira desculpar, mas acho minha crítica uma observação filológica bem educada, nenhuma críticatão dura assim. E completo dizendo que aprecio muito o pensamento de Giorgio Agamben, emparticular toda discussão sobre poder e exclusão no Homo sacer. Agora, Agamben cita muitasfontes, de Heidegger a Benjamin passando por Carl Schmitt ou Foucault, sem falar em sua erudiçãoteológica e filosófica mais ampla. Então, muitas vezes, alguns conceitos devem ser retificados, o

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que tento fazer ao distinguir o conceito de “mera vida” em Benjamin (“blosses Leben”) do contextoda bio-política. Aqui no Brasil, pouca gente ousa simplesmente questionar os textos de Agamben.Ele mereceria uma leitura mais crítica. Por exemplo, na Alemanha, Sigrid Weigel (no livroDieKreatur, das Heilige, die Bilder, Fischer Verlag, 2008) ou na França Georges Didi-Huberman (nolivro Survivance des lucioles, Editions de Minuit, 2009) têm críticas muito mais virulentas!

A centralidade da escrita no pensamento filosófico é um dos temas que atravessa váriostextos, e mais centralmente “Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin (ou verdade ebeleza)”. Essa perspectiva coloca o pensamento filosófico muito próximo da poesia, comotambém aproxima a poesia da filosofia. Isso parece soar muito intimidador para quem estácomeçando a escrever, ou tem um projeto de uma tese acadêmica pela frente, não é? Gostariade falar da sua experiência pessoal com a escrita?

Mais uma questão que se desdobra em muitas! As relações entre poesia ou literatura e filosofia sãoestreitas e complicadas desde de início, desde que Platão nomeia um outro gênero de logos, dediscurso, de “filosofia’ em oposição às outras práticas discursivas de sua época, como a poesia deHomero e a retórica. Essa oposição é difícil porque pressupõe uma força argumentativa e lógicaque consiga convencer pelo reconhecimento da verdade, em oposição à força da beleza poética eretórica. Ao mesmo tempo, Platão por assim dizer inventa um novo gênero literário, o diálogo,mesmo que seja um diálogo filosófico, ele também lança mão da beleza literária e de históriasmíticas para convencer seu interlocutor, no caminho comum da busca do conhecimento. Mesmaambiguidade em relação à escrita: se ele parece condená-la (na “Carta VII” e no fim do Fedro), eleno entanto é um dos maiores escritores que já existiu e nos deixou uma obra escrita – os Diálogos,justamente – maravilhosa.

Acho que é um preconceito filosófico comum pensar que a filosofia não trabalha com estilo ougênero literário, mas que seria um discurso transparente que “diz a verdade”. Há vários gênerosliterários na filosofia, inconfundíveis entre si, e sempre ligados àquilo que tentam dizer: diálogo,tratado, ensaio, meditação, discurso metodológico, sistema...

Não são somente os escritores (literários) que dão importância à sua escrita no sentido de umcuidado com palavras, metáforas, música ou ritmo do texto. Vejam como escrevem um SérgioBuarque de Holanda ou um Gilberto Freyre, o “estilo” não é nunca indiferente, nem a apresentaçãodos problemas neutra. Justamente porque nossa linguagem – e mais ainda nossa escrita – élimitada, simplesmente porque nunca consegue realmente “dizer o real”, devemos cuidar dela cadavez mais, explorar seus recursos e seus limites.

Não acho isso intimidante, pelo contrário: tira dos ombros dos pesquisadores a fantasia de ter quealcançar o único verdadeiro através das suas palavras. A limitação da linguagem e da escrita obrigaa inventar cada vez mais palavras, mais figuras, mais argumentos, mais textos para dizer melhor. Setivéssemos uma linguagem perfeita, não precisaríamos mais nem falar nem escrever!

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Tive na minha infância um aprendizado das palavras e da escrita (com meu pai, acho, nem consigolembrar) que desde do início era ligado à beleza (da poesia) e à comunicação. Tive sorte porquenunca percebi na escrita esse instrumento de disciplina e de opressão que um aprendizado maistradicional pode significar. Leitura e livros foram momentos de descoberta da amplitude do mundo.Então, sempre gostei de escrever, acho que muitos gostariam muito mais de escrever se houvesseesse aprendizado da linguagem, da escrita, da leitura como um aprendizado da múltipla beleza domundo e de sua possível tradução em palavras.

A senhora acompanha a produção do pesquisador Jonathan Crary? Em seu Suspensões dapercepção: atenção, espetáculo e cultura(2013) ele observa, em oposição a Benjamin, que adistração moderna não seria uma ruptura com “tipos estáveis e naturais de percepçãocontínua” (p. 74), mas um efeito da tentativa de produzir estados não distraídos em sujeitos.Ainda que Benjamin tenha sugerido que “disrupção inerente ao choque e à distração traz apossibilidade de novos modos de percepção” ( p. 74), o mesmo Benjamin, segundo Crary,“sempre pressupunha uma dualidade fundamental, em que a contemplação absorta,purificada dos estímulos excessivos da modernidade, era o outro termo”. (p. 74) Para Crarydistração e concentração não se estabelecem como polos opostos, mas como um continuum“no qual as duas fluem incessantemente de uma para outra, como parte de um campo socialem que os mesmos imperativos e forças incitam ambas”.

Penso que na página 110 de Limiar, aura e rememoraçãoa senhora atinge Crary em cheio aoafirmar que o impulso lúdico e mimético não seria definido como uma falta de atenção, massim como outro desempenho da atenção. A senhora concorda com essa leitura?

Caro Paulo, concordo, sim, com sua leitura..., mas lhe confesso que não conheço Jonathan Crary,nunca li nenhuma linha dele. Portanto, agradeço muito pela indicação, mas não posso respondermais a respeito!

Quando se deu seu primeiro contato com Benjamin? Gostaria de falar sobre essas primeirasleituras? Quais as passagens de Benjamin continuam hoje enigmáticas e centrais para asenhora?

O primeiro texto de W. Benjamin que li foram as teses “Sobre o conceito de história”, últimoescrito de Benjamin datado de 1939/1940.. Isso foi num curso de alemão medieval, em Genebra,nos anos 1970. Benjamin foi redescoberto pela esquerda, em particular pelo movimento estudantil,nestes anos justamente porque ele era um pensador ligado a Marx, mas não dogmático, nunca foido Partido Comunista, já tinha percebido os problemas do stalinismo quando foi a Moscou visitarsua amiga Asja Lacis. Ele tinha uma concepção “materialista” (como ele dizia) da história, mas elequestionou profundamente a crença dogmática no progresso, tão importante e tão paralisante(segundo ele) na social-democracia e nos partidos comunistas ortodoxos. A vitória do nazismoexigia outra reflexão que essa “fé” cega no progresso, essa visão determinista da história.

No rastro do movimento estudantil e das críticas crescentes aos partidos comunistas oficiais (emparticular depois do sufoco da “primavera tcheca” em agosto de 1968 pelas tropas da UniãoSoviética), um pensador como Benjamin ajudava (e ainda ajuda!) a pensar história e historiografiaem oposição à historiografia “dominante’, isto é, dos dominadores, sem, no entanto, cair num falso

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otimismo progressista.

O professor de língua e literatura alemã medieval, Karl Bertau, estava escrevendo uma obra dehistoriografia da Idade Média, justamente. Lemos muitos teóricos de esquerda, principalmenteWalter Benjamin, nos perguntando sobre essa atividade: como o historiador do presente escreve ereescreve a história do passado? Em vista de que futuro? Com que tipo de lembrança? Qual é amemória, qual é a transmissão que sustenta sua escrita? Questões candentes até hoje e que sãotambém altamente políticas – como percebemos, por exemplo, com o relatório da ComissãoNacional da Verdade e a discussão desse documento.

Continuo achando as “teses” um texto fantástico, mas difícil. Participei do Benjamin-Handbuch(Metzler Verlag, 2006)com um ensaio sobre as “teses”, a convite de colegas alemães, mas não seise compreendi realmente esse texto fulgurante e obscuro, que, aliás, Benjamin nunca pensou empublicar tal qual, era muito mais um esboço que escreveu para si mesmo, no limiar da SegundaGuerra, antes de desistir de viver. Também outros textos, como A origem do drama barrocoalemão, também continuam um “pedreira” para mim, apesar de várias leituras.

Esse meu último livro é uma tentativa de esclarecimento e de questionamento depois de vários anosde estudo e ensino. Ele também significa para mim uma homenagem a todos que, aqui no Brasil,tentam lembrar o passado, cuidar da memória dos mortos e desaparecidos, e afirmar que a históriapode ser outra.

Próximo > Companhia Editora de Pernambuco - CEPE - Rua Coelho Leite, 530 - Santo Amaro - Recife - PECEP: 50100-140Fones: (81) 3183.2700 / 0800.0811201

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