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Não havia nada de errado acontecendo no Condado de Greenpack até Christine Reed começar a receber aquelas fotografias. Sempre enviadas em envelopes de cor laranja, a laboratorista passa a perceber que as imagens de um fotógrafo misterioso estão falando com ela por meio de enigmas que a jovem conhece muito bem. Tendo o seu passado trazido para os dias atuais - um acidente de três anos antes que até então estava mantido em segredo -, ela vê-se presa em um jogo que não tem previsão para acabar, apenas tendo sido iniciado por opção dela mesma. Envolta em segredos muito bem ocultos, Reed cai na armadilha criada e passa a jogar sem cartas na manga quando vê que os seus amigos mais próximos foram adicionados como peças de um tabuleiro psicologicamente esgotante. Para entender a razão pela qual o seu segredo está em jogo, ela precisará descobrir quem encontra-se por trás de tudo isso antes que o seu perseguidor anônimo cruze a linha de chegada.

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Você Pode Guardar Um Segredo?

PEDRO GUERRA

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Para quem estiver a 114 mundos...

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SUMÁRIO

I Vermelho 6

II Azul 16

III Cinza 27

IV Laranja 40

V Branco 54

VI Ciano 66

VII Vermelho outra vez 72

VIII Prata 82

IX Caramelo 89

X Marrom 110

XI Cereja 132

XII Preto 151

XIII Outro tom de cinza 169

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"A vingança é um dos últimos remanescentes dos costumes bárbaros que tendem a desaparecer dentre os homens."

(O Evangelho Segundo o Espiritismo, capítulo XII. A Vingança, Júlio Oliver.)

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prólogo

A mulher estava balançando o grande quadril enquanto caminhava rapidamente pelas ruas. Na face trazia aquela preocupação que já lhe atingia há horas. Ela parou em frente ao seu destino, observando a porta aberta. Temeu a princípio, pois sabia que ter voltado ali era uma escolha certa. Entrou então exatamente as 21h02 no laboratório fotográfico. Foi a primeira vez em que percebeu que o sino antes preso no alto da porta não se encontravae mais ali. O que encontrou em seguida certamente não era o habitual: Vários produtos haviam sido derrubados das prateleiras. Alguns porta-retratos estavam perdidos no chão, e os seus vidros frontais eram apenas cacos. No balcão principal, a tela do computador pendia a poucos centímetros do chão, apenas sustentada pelos fios presos nela. Papéis também haviam sido espalhados, arremessados ao chão e amassados. As 21h03 ela teve a certeza de que uma luta havia acontecido. E o seu local de trabalho tinha servido como ringue.

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I

VERMELHO

- E então ele esticou os braços para trás, você sabe, como se estivesse dando um jeito de se espreguiçar – ela contava cada detalhe – mas não era. Logo o mesmo braço fez a volta em torno de meu pescoço e parou por ali mesmo. Eu pude ver com o canto do olhar que ele tinha um sorrisinho no rosto, então eu levantei depressa. - Você levantou? – perguntou o homem sentado em sua frente. A mulher de cabelos castanho-avelã assentiu ao mesmo tempo em que ajeitou-se um pouco melhor, afundando-se despretensiosa na cadeira de estofado preto. - Dei um salto no mesmo instante e inventei alguma bobagem qualquer – ela explicou. – Disse que iria buscar mais pipocas e refrigerantes. - Você não toma refrigerante. Ela olhou-o e deu de ombros. - Acho que ele não sabia e nunca saberá disso. Giles Brown pigarreou por um instante, deixando claro que mais essa atitude da moça não era lá de grande aprovação. A cadeira giratória em que sentava moveu-se um pouco, chegando perto da grande mesa de cedro que brilhava lustrosa e imponente na sala desprovida de iluminação artificial. - E aí você apenas... deu o fora? – quis saber ao agarrar um pequeno recipiente de plástico que encontrava-se por ali. Borrifou uma vez em ambas as lentes dos óculos de grau sujo e recolocou-os, pressionando levemente contra o nariz. - O que mais eu poderia fazer? – a situação lhe parecia absurda. – Giles, você ainda não ouviu o pior! Ele balançou a cabeça uma única vez, demonstrando que estava pronto para escutar. - Peguei a minha bolsa, depois da fala dos refrigerantes, e adivinhe o que ele me disse. - “Quero uma Soda?” – brincou. Christine Reed ofereceu-lhe uma de suas piores caras de desprezo.

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- Ele me chamou de docinho – ela falou sem pressa a última palavra, buscando depois inspiração para imitar uma voz masculina, e então repetiu a frase do seu acompanhante da noite anterior: ‘Está tudo bem, docinho.’ O homem quis rir. Porém, como bom profissional e amigo-confidente, preferiu apenas manter a mesma expressão. Ela, por sua vez, entendeu que a pergunta estampada na cara dele era aquela mesma: ‘E o que há de mal nisso?’. O silêncio que seguiu após fez com que ela enfim falasse. - Qual é! – havia um grau explícito de raiva em sua voz. – Todos sabem, ou pelo menos deveriam saber, que a regra número um de compromissos com a ala feminina é a de que não se deve chamar mulher alguma de docinho. Nunca. O dedo indicador que ela apontara ao explicar ainda permanecia parado no ar, e aquilo incomodava Giles um pouco. Christine retomou o fôlego e finalizou: - Ou pelo menos até que haja um casamento, ou alguma dessas chatices em que a existência de “nomes carinhosos” seja necessária. O homem de cabelos ralo e estranhamente encaracolados curvou-se em direção a ela. - Eu costumava chamar Melanie de “amorzinho” – ele estava brincando outra vez. Reed fitou-o, pacífica e indiferente. - E o que há de mal nisso? – foi ela quem quis saber. Ele fechou os olhos, e então voltou-se a recostar em sua cadeira. Bateu as palmas das mãos uma vez, gerando um som desagradável no ambiente horrivelmente quieto. - Será que você poderia me explicar o porquê de “docinho” ser uma tragédia e “amorzinho” estar dentro do aceitável? Christine inclinou a cabeça para a direita, passando com o olhar a certeza de que ela não explicaria coisa alguma. Até porque ela não saberia fazê-lo. - Você é muito velho para essas coisas – ela levantou da poltrona e girou, parada no mesmo lugar. Olhou-o outra vez. - Telefone para a sua ex-mulher esta noite, certo? Pergunte a ela o que aconteceria caso você a chamasse de docinho. Deu dois passos e então começou a dançar. Movimentos curtos, como se fosse uma bailarina fora do padrão corporal. Ele odiava quando ela usava seu consultório para fingir estar em um palco de dança. - Eu sou velho? – aquilo na verdade não o incomodou. – Estranho, sempre me disseram que os velhos eram os chatos que reclamavam de tudo. Indireta. - O que você quis dizer com isso? – ela havia dado um tempo na dança. Giles desviou o olhar, segurando outro riso. - Deixe-me perguntar-lhe... – ele observou a moça que voltara a dançar em sua frente. – Quais foram as palavras que você ouviu por primeiro ao nascer? Aquilo fez Christine pensar, o que era inquestionavelmente inútil. - E como você espera que eu saiba? Eu estava suja de sangue, provavelmente chorando ao ser segurada de ponta cabeça por algum estranho. E, ah, eu tinha

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acabado de sair de dentro de minha mãe – ela fez uma cara de nojo. – Provavelmente as primeiras palavras de minha vida foram “Cortem o cordão umbilical!” - Exatamente! – Giles bateu com o punho direito cerrado contra a mesa em que se escorava. Agora a mulher alongava-se, de um lado para o outro. - Não entendi aonde você quer chegar – a sua respiração era controlada e rítmica, algo divertido demais para qualquer espectador. - Estou querendo dizer que se estas foram as suas primeiras palavras, chegamos à conclusão de que a sua vida não começou com nenhum “Era uma vez...” – ele continuou, porém ela já havia entendido. – Isso nos dá a certeza de que não existe nenhum príncipe encantado para se esperar. Reed terminou a aeróbica e jogou-se na poltrona de anteriormente. - Eu não estou esperando um príncipe, tudo bem? Não estou esperando ninguém, na verdade. Apenas queria encontrar... - Alguém perfeito que não existe – ele a interrompeu. A mulher revirou os olhos, suspirando em seguida. - Limite-se a escrever na sua prancheta todos os meus problemas, ok? Depois me receite um bocado de remédios e pronto. Será um jeito fácil de mantermos a nossa amizade. É para isso que eu lhe pago. Giles levantou o dedo, pronto para intervir. - Eu sei, eu sei. Na verdade eu não pago, mas... Você está ferrado, cara. Depois daquele dia que eu cruzei a sua porta, você deveria saber que eu não sairia tão facilmente. Ela pegou o jornal que estava sobre uma pequena mesa alta e circular. Folheou-o rapidamente, atenta aos anúncios dos classificados. - Você não acha que seria uma boa? – ela mostrou-lhe as ofertas do dia. – Quer dizer, eu poderia economizar um pouco e colocar um desses anúncios. Em negrito, caixa alta: CHRISTINE PROCURA. 27 anos, loira, alta, disponível para qualquer tipo de relacionamento sem compromisso. O homem balançou a cabeça. - Acho que não apareceriam os caras que você procura. Isso está parecendo algum outro tipo de anúncio. Ela não entendeu. Giles Brown segurou o jornal pela parte superior e abaixou-o, encontrando novamente o rosto de sua paciente de espírito ligeiramente infantil. - Estávamos falando do primeiro dia em que você chegou aqui, certo? – largou o jornal em cima da mesa e passou algumas folhas (de trás para frente) do caderno que trazia em mãos. – Três anos atrás, catorze de março. A data em questão fez com que uma corrente de ar frio percorresse subitamente o corpo de Christine. Ela fechou os olhos por um segundo, e foi o bastante para que tudo voltasse à sua mente sem dificuldade. - Um dia após o ocorrido – ele continuava a falar, e a sua voz deixou a mulher tonta. Ela não queria ouvir. Ainda havia sequelas aparentes. - Pare! – gritou.

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Com a cabeça no encosto da poltrona, o seu olhar direcionou-se até a única janela da sala de consultas. A claridade que entrava por ali era escassa, um reflexo do dia sem sol. Christine concentrou-se nas inúmeras gotas de chuva que caíam contra o vidro, chocando-se com intensidade moderada. Eram tão estúpidas e burras, assim como ela. Vagavam livremente após soltarem-se das nuvens, e então acertavam o vidro em cheio, escorrendo depois, sempre no mesmo caminho. Não podiam ultrapassá-lo. Assim como ela. Seguindo no mesmo caminho após o choque contra o seu próprio “vidro”. Se pudesse ter o evitado... Saiu de transe quando a mão de Giles pousou sobre a sua, e então o som das gotas contra a janela já havia se tornado distante. Ela virou o rosto, olhando-o sem expressão. Não havia lágrimas ali. - Precisamos falar sobre isso alguma hora. O passado marcante e doloroso ocupava grande parte de seu interior. Estava bem mascarado e em silêncio, porém vez ou outra voltava a aparecer. Ela odiava aquilo. - Não gosto dos seus golfinhos, Giles. A princípio ele não entendeu, por isso acompanhou a moça quando ela levantou-se outra vez. Ela parou em frente a gigante estante que ficava na parede oposta à porta de entrada. Em uma das prateleiras, um objeto sempre chamava a sua atenção. Eram dois golfinhos que nunca paravam de mover-se, indo para cima e para baixo, atingindo uma bolinha azul no centro de tudo. A inércia os mantinha assim. - Isso é tão irritante – ela observou. – Quer dizer, eles nunca param. Ficam balançando para baixo e para cima, atingindo essa bola. Golfinhos não são focas para brincar com bolas na ponta do nariz. Giles levantou-se com o auxílio de sua fiel bengala, aproximando-se por trás de Christine. Pousou a sua mão sobre o ombro esquerdo dela. - Está tudo bem, querida. Ela aguardou um momento, e então virou-se. Frente a frente, olhou para o senhor de quarenta e oito anos. Com esforço, ofereceu-lhe um pequeno sorriso, abraçando-o depois. - Obrigado pelo seu tempo, Giles – a sua voz estava calma. – E por me suportar.

Christine deixou a sala e encaminhou-se para a recepção do consultório. O pensamento era um só: não levar aquilo adiante. Ela esqueceria as tais lembranças com a mesma facilidade que o fazia a cada novo dia. Apesar de as imagens do passado terem visitado-a inevitavelmente, a mulher estava certa de que ali não permaneceriam.

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Uma senhora de idade avançada quase dormia em uma das cadeiras da sala de espera, e ela perguntou-se qual seria a idade limite para que alguém deixasse de ter problemas. Pelo jeito, não havia. - Tenha um bom fim de tarde, Telmah! – desejou junto à porta, onde agarrava o seu casaco pesado e o vestia. De trás de um homem de boné vermelho parado na recepção, uma mão apareceu acenando. Christine sorriu e empurrou a porta de vidro que trazia os dizeres adesivados: ‘Giles Brown – Psicoterapeuta’. Rumou por um longo corredor de chão cinza e paredes brancas, onde a única cor viva era o vermelho dos extintores de incêndio. Ao fim do mesmo, optou pela escada, já que o seu emprego encarregava-se de mantê-la longe de ambientes fechados demais, incluindo aí também os elevadores. Estava frio demais no Condado de Greenpack. A paisagem monocromática daqueles dias gelados de novembro dava o tom. Na rua pouco larga, poças de água acumulavam-se, e Christine cuidava para manter-se afastada das mesmas, evitando assim qualquer acidente para com a sua vestimenta. Pensou duas vezes, mas seria inútil esperar. A chuva não daria uma pausa tão cedo, então ela foi mesmo assim. Cobrindo o cabelo de avelã com as mãos, atravessou em disparada a rua estreita. Alguns carros buzinaram, mas eles deviam entender que olhar para os dois lados debaixo daquela tempestade seria pedir demais. Alcançando o outro lado, mais alguns passos foram necessários para que atingisse o seu carro. O Fusca azul claríssimo sofria ao se molhar, porém isso não impediu que a mulher desse uma rápida olhada na vitrine da loja ao seu lado. O toldo da mesma a protegia, permitindo-lhe tempo suficiente para deliciar-se com aquela torre de tortas que girava lentamente do lado de dentro. Havia de todos os sabores: frutas vermelhas, silvestres, amoras, maçãs, morangos e cerejas. O seu estômago roncou sem vergonha alguma, e então ela agradeceu. Aquilo a lembrara de várias coisas. - Obrigado por lembrar-me de que não posso comer doces nas próximas trinta e sete horas – ela puxou as várias mangas e olhou para o relógio no pulso – e vinte e dois minutos com nove segundos. – Suspirou, e um misto de tristeza e raiva encheu o seu peito – Deus, como eu gostaria de ser magra! A sua imagem, refletida no vidro da vitrine, era mais um dos motivos para que ela desistisse de adentrar o local. Se acaso ela se rendesse, ninguém descobriria, a não ser ela mesma. E, sendo a grande juíza de todo o processo de emagrecimento, era o suficiente. Christine revirou a bolsa até encontrar as chaves do automóvel. Foi de encontro à chuva uma segunda vez, e enfim entrou no Fusca. Largou a bolsa pesada em cima do banco de passageiro e posicionou as mãos sob o volante. O seu olhar estava fixo logo em frente, na antena de seu carro, que balançava com auxílio do vento. Um pequeno presente costumava figurar ali, decorando a ponta da mesma, até aquele treze de março. Depois, nunca mais o vira. A antena balançava enquanto as lembranças voltavam novamente.

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Os limpadores do carro funcionavam na velocidade alta, e a chuva não parecia dar nenhum sinal de trégua. Christine estacionou horrivelmente em uma das três vagas sobre a calçada, em frente ao local de trabalho. Deixou o Fusca em disparada, olhando-o apenas quando já estava protegida dos pingos. Realmente ela não era a melhor das motoristas. A placa na porta do estabelecimento dizia ‘Volto logo’, e esse era o sinal para que ela tivesse a certeza de que a sua companheira de trabalho não voltaria mesmo. Revirando rapidamente os olhos, em tom de desaprovação, girou a chave e entrou. - Becca? – ela tentou, apenas para o caso de não haver surpresas posteriormente. Porém, como previsto, não havia ninguém ali. Largou a bolsa em cima do balcão principal, checando o post-it alaranjado colado sobre o mesmo. Ela leu: ‘Um cliente me chamou para assistir o novo filme da Julia Roberts. Então vamos lá comer, rezar, amar... Talvez adicionemos algum verbo logo após a sessão.’ Reed pegou-o, rindo da amiga, e amassou-o em seguida. Acertou o lixo em uma única tacada. O relógio preso à parede mostrava que a claridade logo daria lugar para a escuridão. Ela estava exausta, e a única imagem em sua mente era a de sua cama quente e confortável demais.

Ligou o rádio que preencheu o local com o som suave das músicas que a única estação sintonizada sempre transmitia. - E agora uma para os apaixonados – disse a voz rouca e misteriosa do locutor. Christine balançou a cabeça negativamente, farta de músicas melosas. Mas aquele era o jeito de se distrair. Retirou o casaco pesado, o que acabou por aliviar um pouco do peso sobre os seus ombros, e dirigiu-se até a porta de entrada, onde alterou a placa para ‘Aberto’. Permaneceu ali durante um minuto, observando o escasso movimento da rua em questão. A noite a engoliria com pressa.

O letreiro verde que piscava os serviços de fotografia do local seria inútil para atrair algum cliente. Ninguém tinha o costume de revelar fotos durante as noites de inverno. Porém, ambas as funcionárias deveriam seguir as regras do dono do estabelecimento. O pai de Becca, no caso. Ele costumava dizer que ‘nunca era tarde para se revelar um sorriso’. Daí o nome do local: Revelando Sorrisos. Quando Christine ousou questionar a melhor amiga sobre o fato de terem de manter o estabelecimento aberto por mais tempo que o necessário, Becca White disse-lhe que não iria deixar de fazer as vontades do pai. ‘Mas ele já morreu’ foi o que ela rebateu sem pensar. A amiga não ofendeu-se, apenas disse que não gostaria de ver o espírito do próprio pai chateado com ela. White tinha medo de pessoas mortas.

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A questão é que Christine não poderia reclamar de nada. Após a terceira tentativa fracassada de faculdade, ela preferiu desistir. A melhor amiga ofereceu-lhe gentilmente um emprego no laboratório fotográfico, e em um par de semanas ela já havia tornado-se experiente o bastante. Seis horas de trabalho por dia para ganhar quinhentos dólares lhe era uma proposta irrecusável.

Ela ajeitou o pequeno sino que costumava ficar no balcão principal. Deixou-o a vista, caso algum cliente noturno aparecesse. Depois, tomou um pouco de fôlego e adentrou em uma segunda sala. Apesar de estar acostumada com todo o processo, aquilo sempre lhe causava um pouco de hesitação. O ambiente obrigatoriamente escuro devia ter não mais que sete metros por cinco, o que fazia a angústia aflorar mais.

Uma única luz – vermelha e fraca – podia ser acesa. Ela o fez, e em silêncio pôde escutar os próprios olhos agradecendo. Christine deslocou-se até o balcão em uma das laterais e viu os filmes a serem revelados separados por datas. Todos os daquele dia já haviam sido concluídos, o que a fez sorrir. Becca certamente ganharia um abraço.

Revelando Sorrisos ainda mantinha as portas abertas justamente por ser o mais antigo – e único – laboratório de Greenpack a revelar filmes fotográficos. A revelação digital sugou grande parte da coisa toda (o que no fim facilitava e aumentava a rapidez), porém ainda restava uma parcela à moda antiga, ou até mesmo fotógrafos profissionais que operavam câmeras analógicas.

A laboratorista cruzou a sala, aproximando-se dos varais em que as fotografias e negativos já revelados secavam. Correu o olhar, analisando-os, certificando-se de que estavam prontos para ampliação.

O processo era bastante simples, na verdade. A mulher de cabelos castanho-avelã lembrava-se de seu primeiro dia dentro daquele lugar escuro, onde tanta informação encheu-lhe a cabeça rapidamente, e ela pensou que nunca aprenderia. Mas ali estava ela, tempos depois, craque no assunto.

Com um dos negativos em mãos, cortou-o com o auxílio de uma tesoura, separando-o em grupos de quatro fotografias. Aquilo facilitava o processo. Logo após, encaixou do jeito certo uma das imagens no espaço identificado do ampliador – uma máquina grande e pesada. Abaixou-o um pouco, o que lhe proporcionaria a imagem do tamanho desejado. Ligou a luz do aparelho, fazendo projetar sobre a mesa a fotografia escolhida. Finalizando os ajustes, focou o retrato do jeito que gostaria e então tornou a desligar a lâmpada.

De uma gaveta retirou um maço de papéis fotográficos, centralizando-o na mesa. Acertou o timer – nessa altura ela já não precisava mais de testes – e deu o disparo. O tempo escolhido era exatamente a quantidade de segundos que a luz seria direcionada contra o papel, gravando a imagem no mesmo. Quanto mais luz, mais clara a fotografia ficaria. E vice-versa.

O restante era mais simples ainda. Ela pegava o papel – composto de brometo de prata -, aparentemente em branco, e o mergulhava no primeiro dos três líquidos durante um minuto e meio. O revelador tornaria visível a imagem já gravada pela

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luz, e durante o tempo em questão era necessário fazer suaves movimentos na banheira do líquido.

Com a pinça, retirava a fotografia e mergulhava no interruptor. Mesmo processo, um minuto de espera. Por fim, o último dos líquidos. O fixador era essencial para a não alteração do que já havia sido gravado. Ali ele ficava durante trezentos segundos, e para terminar era preciso apenas deixar que a imagem fosse lavada com água corrente, passando-se uma dezena de minutos.

O trabalho poderia ser agilizado e feito em maior escala, porém Christine tinha tempo e gostava daquilo. Era engraçado observar os retratos que cada pessoa havia tirado, e alguns eram até estranhos demais. De tudo passava por ali.

As músicas ajudavam-na a passar o tempo, e quando se deu conta, ela já estava no último dos negativos. Este, em especial, trazia apenas uma fotografia. Era proposital, pois caso Becca tivesse cometido algum erro na revelação do negativo em si, teria deixado algum bilhete.

Ela o revelou do mesmo jeito, porém sobressaltou-se quando tentava focalizar a imagem. Era confusa, de difícil interpretação. Escura e clara ao mesmo tempo, parecendo manchada.

Christine fez todo o processo até que deixou todas as imagens para lavar. Durante este meio tempo, voltou até o balcão principal – havia uma cabine de transferência da sala escura até a recepção, de modo que a luz não invadisse o local -, onde desligou o rádio. O locutor não falava há mais de uma hora (ele provavelmente havia ido para casa dormir em sua cama aconchegante e deixado uma lista de reprodução automática), então ela olhou para o mesmo relógio de anteriormente e deu-se conta de que já passavam das onze. Ninguém havia aparecido para revelar algum sorriso.

Trocou a placa da porta uma última vez, fechando enfim o estabelecimento. O silêncio só não era possível porque a chuva ainda caía, desta vez mais fraca, atingindo as portas e janelas de vidro. Se estava um frio absurdo ali dentro, ela imaginou como estaria nas ruas. Sentiu pena ao olhar para o seu Fusca.

De volta à sala escura, Reed desligou a água e pendurou foto a foto no varal. Elas precisariam de pouco tempo para secar. Poderia as deixar ali e aparecer somente no dia seguinte para conferir o resultado, mas o seu expediente acabava à meia noite. Está certo que ninguém saberia caso ela saísse um pouco antes. ‘A não ser o pai de Becca’, pensou.

Christine deu um risinho no escuro.

Era um livro pesado e cansativo para se ler as dez para a meia noite. Os olhos cinzentos de Christine deixavam clara a vontade de quererem fechar-se por algum

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longo período, descansando enfim. Quando se deu conta de que as últimas três páginas que havia lido na verdade não passavam de um amontoado de palavras, ela fechou a obra e guardou-a na bolsa. Com preguiça – se pudesse ela dormiria ali mesmo, apenas para não ter de se levantar -, retirou o casaco que a servira de coberta e arrumou os seus pertences para que fosse embora. Perto da porta, lembrou-se que a luz vermelha da sala escura havia ficado acesa. Reclamou com uma expressão de tristeza e então voltou.

O cheiro forte do lugar era outra característica que ela já havia se acostumado, porém a cada vez que entrava ali ele parecia algo ainda não apresentado. Com a mão no interruptor, ela hesitou quando deu uma rápida olhada em direção ao varal. Foi até ele, parando em frente à última foto que havia revelado. A única do terceiro negativo. Reed olhou para baixo, notando a água que pingara das imagens, molhando o chão. Daria um jeito naquilo no dia seguinte. Voltou a fixar-se no retrato confuso, desprendendo-o do fio. Ainda estava molhada, mas já podia enxergar com mais clareza o que aquilo realmente era. Em vez de sorrisos, ela revelara uma cicatriz feia e profunda.

A luz fraca do abajur posicionado em um dos cantos da sala de estar era insuficiente para que ele enxergasse com clareza, porém isso não importava. Giles sorveu o último gole de chá preto que ainda restava na xícara, fazendo uma careta logo após. Abriu a torneira, e a água fria em abundância provocou-lhe um choque térmico de imediato. Lavou sem maiores cuidados o utensílio e prontamente o secou, não deixando para depois. Ele odiava saber que mais tarde a xícara continuaria ali, esperando para ser guardada. Tudo havia de ser feito na mesma hora, nada para mais tarde. Uma segunda – porém ínfima – luz brilhou na cozinha escura. Era o telefone que começara a tocar aquele som irritantemente costumeiro. O homem de óculos deu uma rápida olhada para o identificador de chamadas, podendo ver os dizeres ‘Número desconhecido’ no visor. Mas ele sabia de quem se tratava, e este era um motivo suficiente para que ele não o atendesse. Brown agarrou a sua bengala que esperava tão paciente na beirada do balcão de refeições. Distraindo-se por um momento, lembrou-se de quem a ganhara. Fora um presente muito bem-vindo de um velho amigo. Esta, em especial, não era de madeira, e sim metal. Alguns detalhes em prata (que reluzia até mesmo no escuro) faziam a diferença. Ele amava a sua companheira. O som do telefone cessou no momento em que ele acomodou-se no sofá de couro. Tentou fechar os olhos antes que pudesse pensar em qualquer coisa que o

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incomodasse, ou até mesmo na ligação que acabara de receber. Quer dizer, essa última costumava acontecer frequentemente, então já havia passado da hora de acostumar-se. - Vamos, concentre-se – pediu a si mesmo em voz alta.

Forçou os olhos para que os mesmos permanecessem fechados, mas de nada adiantou. Logo voltaram a abrir. Conformando-se de que passaria mais uma noite acordado, Giles ajeitou-se para que pudesse deitar no sofá. Virou de um lado para o outro, movimentando-se o bastante para que a bengala escorada na ponta do móvel deslizasse, mergulhando até encontrar o chão de madeira, ecoando no silêncio sepulcral.

Ele assustou-se, pulando rapidamente. O psiquiatra acabou por derrubar um porta retrato que estava em cima da mesa de centro, o que fez com que o vidro do mesmo se partisse. Ajuntou-o devagar, olhando para a moldura sem foto alguma. Depois, encontrou-a virada de cabeça para baixo ali perto. Imaginando os rostos que veria ao virá-la, lágrimas tímidas escaparam de seus olhos.

Ele esperou um momento. Tentou controlar o choro reservado e respirar um pouco. Após, virou a fotografia e voltou a encará-los. Eram tão lindos, tão seus. Os seus dedos percorriam cada face, acariciando-os do modo figurativo. Era o que ele faria se os pudesse tocar uma vez mais.

- Eu os amo – cochichou no escuro. Deixou Melany por último. Não que fosse a menos ou mais importante, pois

sentia um grande carinho por todos igualmente. Porém ela tinha um sorriso especial. Se ainda estivesse ali, poderia iluminar aquela casa por completo, sem dificuldade.

Mas ela não estava, e Giles tinha que lidar com isso. Tinham ido embora, e grande parte de sua partida tinha sido culpa dele. Odiava-se por isso. Sentia raiva de todos os erros que um dia cometera. As ações que haviam acontecido eram apenas os reflexos de como ele tinha agido. Sua culpa.

Ajeitou os óculos depois que os tinha retirado para secar as lágrimas, então abriu uma das pequenas gavetas da mesa de centro e de lá pegou uma bolsinha azul marinho com zíper. Trouxe para si, e ainda permitiu-se refletir sobre o que faria. Mais uma vez.

Deu de ombros no fim. Abriu-a, confiscando o conteúdo. Agarrou a seringa e preparou conforme haviam lhe explicado. Já havia pego o jeito, era mais simples a cada vez.

Recostou-se no sofá, puxando a manga da camisa do braço esquerdo. Com a outra mão, injetou-lhe a heroína nas veias que pulsavam. Em pouco tempo a sensação de conforto atingiria todos os pequenos pedaços de seu corpo que insistiam em torturar-se.

A visão tornou-se um pouco embaralhada, porém Giles ainda enxergava a fotografia de sua ex-mulher e seus dois filhos sorrindo.

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II AZUL

O labrador tão branco quanto o céu era o maior de todos. Sendo assim, ele comandava os outros cinco cães que desfilavam ao seu lado diariamente, presos por coleiras. - Vão com calma, rapazes! – pediu piedosamente Christine. Era impossível viver com os quinhentos dólares que o laboratório lhe pagava. Só o aluguel do apartamento custava perto da metade. Foi aí que ela então precisou encontrar um segundo emprego, e o jeito mais fácil que descobrira para passar as suas tardes era levando os cachorros do bairro para passear. Os seus donos – velhos demais ou jovens impacientes – pagavam-lhe o suficiente para que ela sobrevivesse ao mês. O novo dia amanhecera sem chuva – ela agradecia imensamente por isso, pois caso contrário deixava de faturar -, porém o mesmo céu pálido de sempre cobria Greenpack. A temperatura de congelar também fazia parte da rotina. Victor, o labrador, impulsionou-se em um piscar de olhos, soltando-se da coleira que o prendia. Christine Reed deu um salto, imaginando o que aconteceria caso ela perdesse aquele cão. - Victor! – gritou sem sucesso. Os outros cinco revoltaram-se, latindo alto, pulando em diferentes direções. A sinfonia canina era um martírio. Ela fechou o punho, certificando-se de que as cinco cordas coloridas não escapariam de nenhum jeito e observou o cachorro de grande porte que virava na primeira esquina. Reed cravou os tênis novos no acumulado de neve do chão e pôs-se a correr, arrastando os filhotes consigo. O ar tornou-se escasso após alguns metros, e o vento frio que vinha de encontro à sua face não era uma sensação bem-vinda. Alguns olhares fitavam a mulher louca que corria desesperada levando cinco animais que não pareciam estar contentes com a situação. Ela não deu importância à princípio, e então virou na esquina com a mesma pressa que vinha durante todo o trajeto.

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Os tênis comprados há pouco, ainda lisos, não agüentaram, levando-a diretamente para o chão. A moça de olhos cinza chocou-se contra a calçada fria. Nenhum machucado ou dor até então, apenas as línguas dispensáveis dos filhotes que a lambiam freneticamente. Olhando logo em frente, Christine encontrou Victor. As suas bochechas coraram-se, ficando da mesma cor que o sangue que saía do pequeno corte brotado em seu dedo.

Christine levantou-se o mais rápido que pôde, ignorando o machucado. Deu alguns passos largos, apressada, e então amarrou as cinco coleiras restantes em um poste. Dirigiu-se até o carrinho de cachorro-quente, cujo dono era atacado ferozmente por Victor. - Tire ele de mim, dona! – o comerciante gritava. – Tire agora! Na verdade ele estava apavorado. Ela olhou-o, lançando reprovação. - Calma, ok? É só um cachorro. Enfim segurou-o com ambos os braços, arrastando-o na neve contra a sua vontade. O labrador ainda latia, faminto por uma das salsichas. - O que você fez foi muito feio, está me ouvindo? – ela falava como uma mãe falaria ao reprovar alguma atitude de seu filho. Juntando-se aos outros, Victor conseguiu latir mais alto ainda, como se estivesse anunciando para os outros sobre o delicioso cheiro que havia sentido. Prontamente, todos voltaram a agitar-se. A dona temporária viu ali uma oportunidade das grandes. Olhou-os por alguns segundos, e depois de prender o maior de todos eles também ao poste, foi outra vez até o carrinho. - Sete salsichas, por favor – ela sorriu e entregou dois dólares. O homem fitou-a, ainda indignado, limpando pêlos imaginários que ele pensava terem permanecido em suas roupas. Resmungando baixo, preparou um saquinho com o pedido. A gordura daquilo tudo brilhava ao olhar da moça, que agarrou a refeição com as duas mãos, levando-a para perto de seus bebês. - Por favor, parem com os latidos, vocês estão me deixando surda! – sentou-se em um banco da praça, ao lado do poste que prendia os barulhentos. Percebendo que nenhum ficaria quieto, puxou as salsichas uma a uma, distribuindo entre eles. - E considerem isto como um prêmio. Se as suas donas souberem que eu lhes alimento, certamente vocês podem dizer adeus a esse pescoçinho cheiroso – ela apontou para si. Ainda restava uma no saco plástico, e Christine não tinha dúvidas de que aquela salsicha estava a lhe encarar de algum jeito. Olhando para os lados, como se precisasse certificar-se de que ninguém a veria comendo (era um trauma mesmo), ela parou de pensar. Abocanhou o seu prêmio.

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Sally Blue mantinha um olho aberto e um fechado. O som da televisão era alto o suficiente para que ela o escutasse e não dormisse, mas aquilo não estava funcionando realmente. O programa – onde o apresentador estava dando prêmios demais e a sua voz já era enjoativa – não era animador, assim com o dia lá fora. Então, sendo uma digna representante da tribo dos aposentados, lhe restava cochilar naquele fim de tarde. O galante apresentador perguntou a um dos times participantes qual era a capital da Escócia, e prontamente um relógio que piscava alarmantes dez segundos em contagem regressiva apareceu na tela. A velha senhora viu-o embaçado, tornando-se preto, até que ela finalmente se rendesse ao fechar os olhos.

A campainha da casa tocou uma única e longa vez. - Edimburgo! – gritou a velha ao acordar, sobressaltando-se no sofá. Rastreou a sua sala de estar de péssima decoração como se nunca a tivesse visto antes. De volta à televisão, viu que o tempo havia acabado e a equipe perdido. Batidas vieram de sua porta. - Estou indo, já ouvi – ela andava sem muita pressa. - Sou velha e surda, mas ainda estou viva! – declarou. Ela abriu a porta, observando a moça peculiar parada ali. Nas mãos trazia uma coleira, cuja ponta segurava um cão. - Oh, Christine querida! - Boa tarde, Sally. Preciso dizer que a sua decoração natalina está muito bonita, foi a senhora quem teve a ideia das renas espalhadas pelo jardim? Ela estava apenas tentando ser gentil. - Oh, não, não – respondeu a velha. – Quando se fica velha o Natal perde a graça, menina. Por mim eu nem teria transformado a minha casa neste circo que ficou, mas um filho da mãe apareceu por aqui e ofereceu uma televisão nova caso ele pudesse decorar minha humilde casa. Acho que ele trabalhava para estas lojas de departamentos, você sabe. Vê minha tevê? Não é linda? Reed esticou o pescoço, observando o aparelho.

- Sim, espetacular. Distribuiu um sorriso obviamente falso.

- Mas vamos aos negócios... – desembuchou por fim. - Victor não comportou-se nada bem esta tarde, senhora Blue. Atacou a um sujeito no parque e ainda me deixou lembranças do ocorrido – ela apontou o dedo cortado. Sally esboçou feições de preocupação, mas ela apenas estava analisando o rosto sujo de sangue da passeadora de cães. Talvez ela tivesse tentando limpar-se, ou até mesmo passado o dedo machucado sobre a face. Estava engraçada. Pronta para avisar sobre, a moça continuou a falar: - Acho bom a senhora deixá-lo de castigo por algum tempo. Sabe, nada de brinquedos ou ração em demasia. Então a velha mudou de ideia. Afinal, a mulher em sua frente falava sobre o seu cão. Victor, seu único companheiro de tantos anos. Que direito ela tinha de reclamar? - Querida, sei que labradores são difíceis. Porém você deveria ter um pouquinho mais de... Como chamam? – ela estava debochando – Ah, sim, paciência. É isso. – A senhora olhou para o animal e sorriu – Tenho certeza de que ele é um bom garoto e não merece tanto desagrado.

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Christine suspirou, tentando manter a calma. Aquele era o mais difícil de todos os cachorros que haviam passado por ela, mas sempre poderia haver alguém pior do que o bicho em si: A dona. - Tenho certeza de que a senhora saberá o que fazer. Sally Blue logo assentiu. - São sessenta dólares. A mão da idosa rapidamente encontrou a boca, tapando-a. - Por uma voltinha rápida dessas? – quis saber. A entretecedora fechou os olhos por um segundo, respirando devagar. - Pelo mês, senhora Blue. Cinco dias por semana, vinte dias ao mês. Sessenta dólares. Você assinou o contrato. Reed imprimira cópias de um documento piegas após um de seus ex-clientes ter sumido da cidade, deixando de presente para ela um Poodle amedrontador. Depois de doá-lo, preferiu prevenir. - Não sei do que a jovem está falando – ela fez-se de desentendida. - Sally, está ficando tarde, ainda preciso ir trabalhar. A senhora poderia me pagar, pegar o seu cão e esperar para que um outro dia nasça, e eu alegremente volte a bater em sua porta? São coisas simples de se fazer. A velhinha pôs-se a choramingar. - Meu querido esposo foi para o céu, Christine. E Victor, bem, ele gasta toda minha aposentadoria com a ração – secou as lágrimas fictícias. Ela sabia que era mentira da senhora. Era a mesma desculpa. Pela quarta vez seguida. - Muito bem, vamos fazer o seguinte – enquanto falava, o rosto de Blue já iluminava-se de alegria. – Levarei Victor comigo. Foi uma decisão horrível, insustentável e frustrante para Reed, porém ela não ficaria outra vez sem o seu pagamento. Estava certa de que iria passar um dia e Sally Blue bateria em sua porta, procurando pelo cachorro. E, claro, com a grana em mãos. - A senhora sabe onde moro, e assim que tiver o dinheiro pode voltar para buscá-lo. Sabe que o tratarei bem, não é mesmo? – ela sorriu largamente. Enquanto a velha arrastava-se para alcançá-la, Christine deixava a entrada da casa – havia um jardim florido na primavera ali em frente, que agora obviamente encontrava-se pela fofa camada de neve branca -, indo em direção à rua. A dona do cão murmurava palavras quaisquer, porém ela fingia não escutar. A sua decisão continuaria firme. - Christine, onde estão os seus modos? – surgiu o grito. A moça mordiscou os lábios, fingindo apenas não ter escutado. Olhando a figura que ainda caminhava lentamente atrás de si, parou ao gesticular:

– Oh, Sally, desejo que você também tenha uma boa noite! Fechou o portão e saiu.

Ela sabia que aquilo não daria certo. Ao abrir a porta de seu apartamento, Christine pensou no que havia acabado de criar. Levara um novo empecilho para casa. - Quieto, Victor. Ele não vai gostar muito da sua presença – avisou.

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Entrou na modesta sala de poucos móveis, procurando pelo terceiro indivíduo que deveria estar por ali. Nenhum sinal. Decidiu levar o labrador até a área de serviço, onde teria um espaço reservado só para ele, evitando futuras confusões. Reed empurrou a porta de correr, despedindo-se do animal. Ela precisaria de ração e todas essas coisas de cachorro. Virou-se, surpresa com a aparição de seu companheiro. Ele a encarava como se estivesse questionando-a sobre a presença daquele cão imundo. O silêncio era a prova de sua rejeição. A mulher rapidamente tratou de dar as devidas explicações: - Escute-me com atenção, certo? Ouça direitinho antes de zangar-se comigo – pediu. – Tive de trazer Victor para casa hoje, pois aconteceram alguns probleminhas. Ele não ficará conosco por muito tempo, então vamos evitar quaisquer brigas, certo? Ele olhava-a, quieto. - Certo? Não obtendo resposta ainda, ela envolveu-o em seus braços, acariciando aquela bola de pêlos.

Pudim, o gato, não estava contente.

Becca não gostava do que via, e insistia em mudar de opinião a cada meia dúzia de segundos. - Se vocês forem um pouco para a direita, talvez fique algo mais apresentável – ela gritou para que a escutassem. Dois homens estavam pendurados em escadas, segurando uma nova placa para a fachada do laboratório fotográfico. As múltiplas cores da mesma chegavam a cegar os olhos de qualquer um que passasse rapidamente por ali. - Talvez mais no centro! Ela sorriu e desviou-se do Fusca que chegava em frente ao local. - O que é isso? – Christine perguntou ao bater a porta. - Memórias & Lembranças Para Sempre Ltda. – a dona do estabelecimento apontou para a nova placa. - Quer dizer que Revelando Sorrisos já era? - Acho bom mudarmos um pouco, e essa fusão de cores... Hm, é perfeito para atrair uma nova clientela. - Talvez gnomos e duendes – ela retrucou baixo. Christine acelerou os passos até a porta de entrada, protegendo a cabeça ao passar por debaixo da placa, deixando evidente o medo de ser atingida. White veio logo atrás. - Não acho que seja uma boa ideia, B. Quer dizer, imagine quando ligarem para cá. Teremos de falar: Memórias & Lembranças Para Sempre Laboratório Fotográfico, boa tarde. A dona refletiu ligeiramente sobre, mas aquilo não lhe parecia ser um grande problema. - E você sabe o que dizem – continuou – não se mexe em time que está ganhando. Becca não entendeu se aquilo havia sido uma brincadeira. Pois devia.

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- E desde quando estamos ganhando, Avelã? - Não gosto que me chame assim, e você sabe. - Avelãs são redondas, eu sei, mas eu falo somente por causa do seu cabelo. Quantas vezes vou precisar lhe dizer que... - Que eu não sou gorda e estou dentro do padrão de peso? Sim, várias vezes, e vai continuar não adiantando. A funcionária de cabelos negros como a morte e olhos levemente esticados horizontalmente como uma japonesa levantou os braços para cima, pedindo ajuda ao bom Deus. - Quando foi que roubaram o seu bom humor? – perguntou. Christine largou suas coisas e sentou-se na cadeira do balcão principal. Segurou uma caneta de tinta azul entre os dedos e começou a rabiscar um bloco de notas que estava por ali. - Sally Blue não quis me pagar. - De novo essa velha?! Reed adorava o jeito pouco sutil que a amiga tratava os outros. - Foi a quarta vez. Bem, até você sabe o que aconteceria nesse caso. A pseudo-japonesa parou de fitar os trabalhadores com a placa do lado de fora e voltou o olhar curioso para a amiga. - Ai meu Deus – ela falou devagar. – Você roubou o cachorro dela? - Não! – ela interveio rápido. – Estava no contratinho que ela assinou, ela deveria saber. Foi uma péssima escolha ter de levá-lo comigo para casa, e eu até mesmo poderia matar quem teve a ótima ideia de acrescentar esta regra no contrato, caso ela não fosse a minha melhor amiga. Becca White sentiu uma pitada de vergonha visitá-la. - E Pudim? – quis saber. - Eu assistia Tom & Jerry, e até onde eu sei esses animais não costumam se dar bem. - Tirando o fato de que Tom é um gato e Jerry um rato, e de que tenho em minha casa um Tom e um... Victor, eu acho. A morena surpreendeu-se mais uma vez. - Victor é o labrador, não é mesmo? – balançou a cabeça para os lados. – Boa sorte. Christine permaneceu calada, transbordando desânimo visível. - Sabe do que você está precisando? De um encontro. - Não, chega disso. Você lembra dos últimos... – as imagens retornaram em um piscar. – Todos uns verdadeiros desastres. A sua amiga aproximou-se, retirando o bloquinho de suas mãos. Fez com que ela a olhasse nos olhos. - Mas este cara é diferente – ela passava confiança. - O mesmo você disse dos últimos dois. - Qual é, dê uma chance. Ela acabou dando de ombros. - Mais uma... – suspirou. - Isso é um sim, certo? Reed analisou o sorriso largo da amiga e enfim assentiu. Os trabalhadores apareceram na porta, avisando que a placa havia sido fixada. Becca pagou-os e chegou até mesmo a questioná-los sobre as suas próprias opiniões para com o novo nome. Quando ouviu o que não desejava, ela os dispensou. Com certa dó, digamos, pois havia achado um deles musculoso o suficiente para que a carregasse

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até a porta do quarto na noite de núpcias – isso após terem casado, obviamente. Já estava tudo em sua cabeça. - O que você está fazendo? – a morena perguntou para a garota de cabelos castanho-avelã que vestia o avental da loja. - Iniciando meu turno? White aproximou-se dela, desfazendo o laço que prendia a veste em sua cintura. - Você não acabou de escutar o que eu disse? – perguntou. – Você tem um encontro. O pescoço de Christine inclinou-se rapidamente para frente, como se precisasse escutar novamente. - Hoje?!

A música alta e vibrante fazia com que ela dançasse em frente ao espelho. Christine não estava com sequer um pingo de vontade de sair de casa – muito menos se a saída incluísse conhecer um cara novo -, porém apenas o fato de não ter que trabalhar até tarde já era uma ótima razão. Ela não pensava em se casar. Pelo menos não logo. Queria aproveitar a vida, mas ao mesmo tempo encontrar um homem (e não um garoto) que a levasse para o cinema, gostasse de cozinhar no sábado à noite, e de ver filmes em preto e branco. Alguém parecido com ela mesma. Lembrava-se do que mamãe costumava falar: ‘Encontre uma pessoa que tem o que você não tem. Ele irá lhe preencher com o que te faltar’. Mas isso não era o certo em sua visão. Um sujeito de gostos diferentes não serviria para namorá-la, e Reed até já podia imaginar os desencontros entre os dois. Analisando-se profundamente, ela tinha chego à certeza de que aquela roupa não lhe parecia a certa. Fazia um frio intenso, mas cobrir o corpo não a faria chamar atenção. Calça e blusão seriam inapropriados também. Ao som dos Stones, Christine rebolava ao passear apenas com as vestes íntimas pelo quarto aquecido artificialmente. Cantava a letra com perfeição quando encontrou aquele vestido azul escuro, escondido no canto do armário, que provavelmente seria a escolha certa. Olhou-se no espelho, segurando-o em frente ao corpo. Era aquele mesmo. Ao tirá-lo, observou as suas curvas. A mulher nada gorda via mais do que realmente tinha, e isso com certeza tornar-se-ia doença em pouco tempo. Jagger parou de cantar, dando lugar a uma nova música. Aquela em especial fez a mulher parar de dançar. Ficou imóvel, deixando de respirar por um curto período. O seu olhar permaneceu fixo no nada, e então engoliu em seco. A melodia que costumava atormentá-la há três longos anos invadiu o local como se por vingança. Estava pronta para desligar o rádio, porém antes se ouviu o barulho de vidro sendo quebrado. O seu coração escondeu-se.

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As luzes traseiras do carro piscaram em vermelho, e então ele parou. Olhou pelos vidros escuros para o local em frente, tendo um rápido pensamento sobre ele antes de sair. Já havia estado ali tantas vezes, e por isso mesmo de nada adiantava questionar-se novamente. Deixou o automóvel, ligando o alarme em seguida. Certificou-se disso, pois aquele era o bairro mais pobre de Greenpack, e não ficaria surpreso caso voltasse e um dos vidros estivesse quebrado, ou algo do gênero. Caminhou com dificuldade, usando a manta do pescoço para cobrir a boca, impedindo que o ar gelado fosse direto para os seus pulmões. Contornou uma das vielas, entrando no segundo beco estreito que vira. Estava escuro. Os únicos sinais de luz eram os de isqueiros ou até mesmo latões de lixo que queimavam em chamas brilhantes, retorcendo-se contra o vento. A noite calada transpirava tristeza. O homem parou na única entrada daquele beco, observando o velho sentado em uma cadeira silenciosa. Se fosse necessário dar um palpite, diria que o mesmo tinha mais de noventa anos. A pele enrugada não deixava mentir. - Travis Black – pediu por quem procurava. Nada aconteceu de imediato. A figura estranha junto à porta ficou quieta, apenas sinalizando com a cabeça que a sua entrada estava permitida. O seu olhar, fixo no chão logo abaixo, denunciava a sua cegueira. Ele seguiu o caminho indicado que levava para um novo ambiente que continha dois pequenos e fechados cômodos. O primeiro guardava apenas uma mesa com papéis amassados e canetas grossas, um triciclo infantil quase destruído, e alguns finos canos de metal que deveriam ter pouco mais de dois metros, estando escorados na parede. Estas com rachaduras e manchas de infiltração. - Black? Esperou até que a cortina florida que separava os dois cômodos – quem quer que a tivesse colocado ali possuía um péssimo gosto - fosse aberta. Por ali surgiu o traficante mais famoso de todo o Condado. Ele usava um casaco preto com capuz em cima de vários outros blusões, e as suas calças jeans eram propositalmente rasgadas. A barba mal feita e recém criada dava-lhe um aspecto sujo. - Sabia que você ia aparecer qualquer hora – falou. O homem que o via jurou que Travis tinha olhos vermelhos. - Não sei se... Ele foi interrompido pelo traficante, que trazia o indicador junto aos lábios, ordenando para que ele se calasse. - Você recebeu o que mandei, e creio que pensou a respeito. – Travis esperou um momento para que o sujeito refletisse. – Siga em frente.

Um cabide foi a melhor e mais próxima arma de defesa que ela encontrou. Segurou-o com o punho fechado, pensando se deveria desligar o rádio ou não. A música era insuportável e ela não agüentava escutá-la, porém caso desligasse, aquilo a

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denunciaria. Quem assaltaria o seu humilde apartamento? Provavelmente o pertence mais valioso era o seu gato. Christine perguntou-se onde estava Pudim. Tirou o rádio da tomada e a música parou. Fez-se um silêncio de alívio. Ela percorreu o quarto, chegando até a porta. Olhou o corredor quieto e pouco extenso. Não havia ninguém ali. Decidiu sair, pois provavelmente tinha sido apenas mais um vaso que o gato havia quebrado. Os pés descalços encontravam o assoalho de madeira com leveza, porém o terceiro passo provocou barulho. Então se ouviu um latido. Victor. Ela correu até a sala-cozinha, largando o cabide em cima do sofá. O labrador latia repetidamente, rosnando ao fitar Pudim, que se esquivava em cima do balcão de refeições. - Você sabe o susto que me deu? – ela agarrou o cão pelo pescoço, levando-o de volta para a lavanderia. O vidro da porta de correr tinha sido quebrado por ele, dando a passagem necessária. Nos minutos seguintes, ela chorou enquanto improvisava algo que tapasse o buraco na porta. Colando um pedaço de papelão com muita fita, lembrou-se da música, e consequentemente daquela noite. Era a pior das sensações, e Christine Reed simplesmente não podia acalmar o choro que sempre acabava por vir. Victor estava preso outra vez. A mulher segurou o gato de pelugem amarelada entre os braços, acariciando-o. A campainha tocou. - Você chorou – foram as primeiras palavras de Becca ao cruzar a porta do apartamento. Christine estava de costas, e aproveitou o momento para secar o rosto. - O que? Ela enfim olhou para a amiga. Esta última inclinou o pescoço. - Você não me engana, Reed. Pudim pulou dos braços da dona e desapareceu. - Aquele vestido azul... - Que você usa sempre? Ah, sei. - O que você acha dele? Becca White jogou-se no sofá. - Acho que você precisa de roupas novas. As sete e cinqüenta ela estava pronta. Maquiagem leve, um casaco por cima dos ombros, bolsa discreta. Olhou-se no espelho uma última vez, passando um batom qualquer. Atrás de si, o rádio refletido fez com que ela se lembrasse de uma hora antes. Não deixando-se levar, saiu do quarto às pressas. - Tem pizza no forno – avisou à amiga. - E uma garrafa de vinho tinto no armário. Ela olhou para a morena que sorria com uma taça na mão. - Você não se importa mesmo? Pudim poderia ficar sozinho tranquilamente, mas ele e Victor tiveram um desentendimento mais cedo – apontou para a porta remendada. White riu. - Você está brincando? Comida de graça e uma televisão só para mim em plena quinta-feira à noite? Estou no céu. Christine agarrou as chaves do Fusca. - Já disse que você pode vir morar comigo quando quiser. A sua coleguinha de apartamento não gosta muito de mim, mas... - É tudo ciúme. A mulher em pé achou graça, o que contribuiu para o assentamento das lágrimas. - Como estou? – perguntou. B largou o copo em cima de uma mesinha que sustentava o telefone.

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- Vá logo.

Ela costumava sentir calor em ocasiões como esta, diferentemente de arrepios gélidos que seriam o mais previsível. A porta do restaurante foi aberta para Christine por um garçom de média estatura que trajava um colete cinza e camisa branca. Estava quente ali dentro, o que fez ela passar o longo casaco para o rapaz. Agradeceu. Então ele apareceu. Estava em sua frente, enfiado em um terno preto com uma gravata amarelada detestável. A sua aparência era fina, porém os cabelos grisalhos a incomodavam. Quantos anos ele teria? Aparentemente, mais de cinqüenta. Ele aproximou-se sorrindo gentilmente, e a única vontade da mulher era a de dar o fora antes mesmo de dar o início. O pensamento era apenas um: Becca com toda a certeza morreria depois daquela noite. Como era o seu nome mesmo? Ela tentou lembrar-se. Enquanto isso, esperava para que ele estendesse a mão para cumprimentá-la, ou até mesmo abusar com um abraço. - Você deve ser Christine – a sua voz era simpaticíssima. Ela balançou a cabeça uma vez. Estendeu a mão. - E você deve ser... – interrompeu a si própria ao reparar o micro broche prateado no paletó do homem. Nele estava escrito o seu nome. Sentiu-se patética e deu um jeito para abaixar a mão esticada o mais depressa possível. Fechou os olhos, envergonhada. - O maître – ela mesma disse. Ao abrir os olhos, encontrou aquele semblante engraçado. - O senhor Gray telefonou e pediu mil perdões, mas disse que irá atrasar-se cinco minutos. A sua filha não está passando muito bem. Impulsivamente Christine quase lançou-lhe a indagação óbvia: ‘Filha?!’, porém conseguiu conter-se a tempo. Certamente teria falado alto e não teria sido de bom tom. - Ah... - A senhorita pode aguardar no bar enquanto isso. O drink é por conta da casa. Aquele seria Deus enviando um sinal para ela? A deixa extremamente visível para que ela fosse embora? Bem, este era o seu pensamento. Acomodou-se no bar, ainda lutando contra as incertezas. A metade que desejava partir e a outra que não via mal em arriscar outra vez. - Senhorita? – era a segunda vez que o barman chamava-lhe. Christine voltou à superfície. - Ah, sirva-me qualquer coisa que tenha aqueles guarda-chuvinhas divertidos – não importou-se. Talvez começar bebendo seria um jeito fácil para que tudo terminasse logo. Então ele tinha uma filha. Uma filha. Filha! Ela não parava de pensar a respeito. Ao mesmo tempo, xingava a melhor amiga com as piores palavras possíveis. Qual era a sua intenção ao apresentar-lhe um homem casado? E, tomando por base o local em questão (Becca disse que ele mesmo

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escolhera), ele era rico. Não que isso fosse ruim, mas segundo mais uma de suas hipóteses isso significava claramente que: Gray era casado, tinha uma filha, e Reed seria a amante jovem. Christine deitou a cabeça sobre o balcão do bar. Se a sua mãe ainda estivesse andando sobre a mesma terra, provavelmente chamaria a filha de mal educada. - Deus! – exclamou. – Quanto álcool você colocou nisso? Eu estou absurdamente bêbada! Olhou para a taça vazia em sua frente. O guarda-chuvinha repousava na beirada. - Nada – respondeu o barman rindo. – Álcool somente para as mesas, essa é a ordem. Ela quis chorar. Olhando-se no espelho em frente a si, detrás das bebidas do balcão do bar, odiou ver o seu reflexo. Os seus fios de cabelos estavam em completa desordem e o batom nos lábios havia saído, tendo passado diretamente para a taça de bebida. Christine estava um desastre. - Senhorita... – o maître aproximou-se. Ela olhou-o com os cabelos na cara, chamando mentalmente a si mesma de ‘sobrevivente do furacão Katrina’. - Presumo que o seu acompanhante chegou – ele virou-se, dando vista para a porta de entrada. John Gray passava pelos vasos de papoulas que serviam de decoração. A boca da mulher abriu-se lentamente. Os olhos cerraram um pouco, comprimindo-se e forçando a visão. Ela não pôde acreditar.

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III CINZA

Formidável foi a palavra escolhida para descrevê-lo. Não era simples e também não era exagerada. John Gray, diferentemente do imaginado, não tinha cabelos grisalhos, e sim pretos. Eram curtos, levemente bagunçados e perfeitamente estáticos. Talvez fosse baixo – em relação a estatura, porém qualquer um conseguia ser maior do que Christine, e isso bastava. Ele trajava camisa com um blazer escuro, jeans marinho e sapatos. Ao caminhar, parecia estar parado no tempo, pois ela o via aproximar-se devagar. - Christine? Ela balançou a cabeça, ainda olhando-o com fixação. O homem sentou-se ao seu lado, observando a taça vazia. - Não se preocupe, eles não gostam de álcool por aqui. Estou sóbria – levantou as mãos, como se estivesse se defendendo. O barman piscou. Gray finalmente estendeu a mão, oferecendo junto um sorriso pouco discreto. Ela cumprimentou-o sem graça. - Acho que sou o seu acompanhante para esse... Encontro as escuras? Reed olhou em volta. - Para mim está suficientemente claro por aqui – fez graça. O espelho por detrás das bebidas voltou a atormentá-la. - Que vergonha. Eu estou um desastre, você deve estar praticamente morto de arrependimento. Olha, você pode ir embora se quiser, eu entendo perfeitamente. John riu. - Já que você quer... – ele levantou-se e deu dois passos. Christine sacudiu-se, e seu desejo era o de erguer a mão direita na tentativa de impedi-lo. Ele deu meia volta. - Brincadeira – avisou, permitindo que ela voltasse a respirar. Antes de sentar-se outra vez, o maître anunciou que a mesa já estava pronta. - Pode ir na frente, preciso ir ao toalete – ela adorava essa palavra. Usava com gosto e graça todas as vezes que frequentava lugares como aquele. - Ah, entendi, você é quem vai fugir – ele provocou com uma faceta tristonha.

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- Eu não perderia a chance de estar com você – falou. Sentiu-se uma vagabunda após esta frase, o que a fez correr para o banheiro, fitando apenas o chão para que ninguém percebesse as suas bochechas avermelhadas. No caminho, culpava-se por ter escolhido as palavras erradas como sempre, mas depois pensou que devia acostumar-se logo com isto. Já no banheiro, demorou algum tempo para refletir sobre o porquê de aqueles mictórios estarem presos junto à parede. Quando entendeu, odiou-se novamente, saindo ligeiro dali. Correu para a porta ao lado, analisando o desenho confuso preso na mesma. Tudo bem, aquilo deveria ser uma saia. Entrou. A primeira coisa feita foi debruçar-se sobre a pia, onde jogou água abundante no rosto destruído. Agora parecia estar pior ainda. Procurou pelas folhas de papel para secar-se, porém a única coisa encontrada foi uma daquelas máquinas que sopram vento quente para uma rápida secagem. Christine fechou os olhos, mordendo os lábios e suspirando. Seria humilhação demais colocar o rosto embaixo daquilo? Ela não pensou e o fez. Resmungou contra o vento forte que cegou-a, tendo aquecido até as suas narinas. De volta ao espelho – ela estava tendo uma relação corriqueira com eles -, retirou os aparatos para ‘tornar-se mulher’ de dentro da pequena bolsa e maquiou-se rapidamente. Uma segunda figura feminina adentrou, fazendo Reed refletir. Ela estava grávida, o que redirecionou o seu pensamento instantaneamente para o momento em que o maître falava sobre a filha de seu acompanhante. Um rápido arrepio percorreu os seus braços despidos. Para acalmar-se, pegou o celular da bolsa e apertou alguns números. Foram necessários seis toques para que atendessem. - Mas já? – questionou a voz do outro lado. - Becca, eu te odeio. - Por que eu imaginei que você faria isso? Ah, claro, é o que você faz todas as vezes depois de seus encontros. Mas, espera, não era para você estar no início dele exatamente agora? - Primeiro, o cara é lindo. Não é alto, mas passa a impressão de ser rico. A voz é grave, os olhos são verdes. Ver-des. - É claro que ele é rico! – ela quase gritou no telefone. – É só reparar o restaurante que ele escolheu. Meu bem, tente ser simpática, caso contrário ele te deixa aí sozinha e você passa a noite lavando pratos. Antes que a mulher no banheiro pudesse falar, ela continuou: - Aliás, onde você está agora? Provavelmente no banheiro, acertei? Ai, Christine... Ok, vamos com calma. Se ele é o Brad Pitt de Greenpack, porque você ligou para falar comigo? Vai lá pedir um autógrafo e tentar incorporar a Jolie! Christine guardou o estojinho de maquiagens na bolsa. - É óbvio que tem um problema. A grávida ali presente aproximou-se para lavar as mãos. A mulher no celular fitou-a e distribuiu um risinho. - Ele tem uma filha – sussurrou. - O que você disse? Por que está sussurrando?

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Becca agarrou o controle remoto e abaixou o som da televisão que passava uma das reprises de Friends. Por que Jennifer Anniston sempre aparecia com um cabelo diferente? E por que a ordinária ficava bem com todos? Foi o que ela se perguntou. - Ele tem uma filha – falou mais alto, olhando para a grávida e rindo novamente. - Filha?! – ela realmente gritou, assustando Pudim que correu para longe. – Ok, C, é a sua chance de fugir. Calma, calma, vamos pensar... Certo, tente ver se o seu traseiro passa pela janelinha do banheiro, ou suborne um garçom para que você saia sem deixar suspeitas. Corra! Afastando o celular que cuspia gritos do ouvido, ela respondeu: - Eu não vou dar o fora, Becky. O que ele vai pensar? - Que você não é recreadora de acampamento para gostar de crianças. Ele vai entender. - Tudo bem, eu estou tremendo por pensar na ideia de me relacionar com ele. Uma filha? Ok, eu posso tentar lidar com isso. Mas e se ele for casado? E se eu for a amante que no fim é perseguida pela esposa até a morte? Eu não posso morrer gorda, você nunca encontraria um caixão! Becca completou: - E ele é rico. Você acha mesmo que tem apenas um filho? Ele deve ter vários – ela não estava ajudando. - Que barulho é esse? Você está tentando passar pela janela? É um furacão? Ai meu Deus, você já está na rua? O vento está tão forte assim? As perguntas de Becca enlouqueciam Christine ainda mais. Olhando para a grávida que secava as mãos no mesmo aparelho barulhento que ela usara anteriormente, aproveitou para desligar o celular. Guardou-o na bolsa e permaneceu ali por um momento. - Não deixe que um filho atrapalhe a sua vida, querida. Eles são ótimos. Pulam para todos os lados gritando o seu nome... – a grávida trazia feições simpáticas. Ela encarou-a, parecendo derrotada diante de uma grávida estupidamente feliz. - Quantos você tem? - Sete. Christine engoliu em seco. - E não é você quem está grávida, certo? Então melhor ainda. Você mal pode esperar pela hora em que a criança lhe chamar de titia – acariciou a barriga. – É tão lindo. Quando a mulher de oito meses deixou o recinto, Reed pensou que iria vomitar. Imaginou uma pirralha correndo atrás dela, chamando-a de tia. Decidiu, sem mais pensar, que iria embora.

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Ela chamou baixinho o garçom que passou perto da porta do banheiro. Alfred era o seu nome. - Será que você poderia trazer-me o menu? - Levarei na mesa para a senhorita. Qual é... - Não, não – ela interrompeu. – Traga-me aqui mesmo, estou esperando uma pessoa. Alfred assentiu e voltou um minuto depois. Ela agradeceu. Era a hora de colocar o seu plano em prática. Christine levantou o cardápio até a altura dos olhos, escondendo-se atrás do mesmo. Para deixar o restaurante, precisava passar por algumas mesas, e certamente o seu acompanhante a veria. Ela havia pensado em engatinhar, porém não parecia uma ideia propícia. Deu três passos e esbarrou em uma cadeira. Deixou o menu abaixar lentamente, e foi a oportunidade para dar uma última olhada para Gray. Ele estava sentado, conversando com o garçom que servia a mesa. Havia pedido água mineral e um refrigerante de laranja. Aquilo fez com que Christine parasse. Qualquer outro cara pediria vinho ou algo tradicional para impressionar, porém aquele homem tinha pedido o que costumava beber sempre. Ele era diferente. E tão lindo. Christine imaginou que ser chamada de tia não seria a pior coisa a se aguentar no mundo. Certamente os cães que ela levava para passear a chamavam assim entre um latido e outro. Largou o cardápio em cima de uma das mesas e buscou ar no fundo de seus pulmões. Arqueando os ombros, dirigiu-se até a mesa. - Desculpe pela demora. Recebi uma ligação. - Imagine – o seu semblante brilhava. Pedi água com gás, pois não sabia o que você gosta de tomar – falou ele. – Ok, minto. Pedi porque acho que você tem cara de quem gosta disso mesmo. Se eu errei eu posso... - Está absolutamente certo – impressionou-se. - Começa a noite com um ponto. John riu, curvando-se para trás. - Quer dizer que eu serei avaliado e ganharei pontos? - Basicamente. Ela sorriu, tentando fitar qualquer objeto em sua frente, pois sabia estar sendo observada. Estaria ele gostando do que via? - Está certo, acho que posso lidar com isso. Água? - Por favor. Ele a serviu. Christine observou as bolinhas do gás na taça. - São elas – apontou. – As bolinhas fazem a diferença. Dão graça para a coisa toda. Como você sabia? - A maioria das mulheres gosta de água. Mas água unicamente parece algo desanimador. Então resolvi pedir com gás – explicou. – As bolinhas.

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- Hm, certo. A maioria das mulheres gosta de água? Não sabia. Quer dizer então que você já teve muitas oportunidades para reparar isso. O homem sabia que a conversa acabaria sendo levada para aquele ponto. - Digamos que eu sou um sem sorte. Vinte e oito anos, nenhum casamento, e o relacionamento de maior duração que tenho até hoje não é com uma mulher. Ela não havia pensado na possibilidade de ele ser homossexual. Pegou a taça com água para disfarçar o espanto. - Com Gina, minha filha. A moça de olhos cinza deixou o copo cair sobre a toalha branca da mesa, desfazendo as micro-bolinhas de gás. Levantou-se rapidamente para que o líquido não caísse em seu vestido. - Ai meu Deus, perdão. Eu sou tão desastrada! John Gray estava rindo da situação, e prontamente chamou Alfred, que os trocou de mesa sem problemas. Mas aquilo não a impediu de retomar o assunto alguns minutos mais tarde. - Trabalho em uma empresa de consultoria, tenho um irmão que é a minha cara, gosto de colecionar carros em miniatura, e aos sábados jogo sinuca com alguns amigos em um bar aqui perto... - Então você tem uma filha. Ele olhou para Christine, surpreso pela interrupção. Até o fim da noite tentaria acostumar-se com o jeito impulsivo dela. - Sim, Gina. Minha gatinha. - E quantos anos ela tem? - Oh, está tão velha. Já passou dos treze. - Acho que ela deve odiar quando você a chama de gatinha então. Sabe, crianças odeiam esses apelidos melosos que os pais dão. Gray sabia exatamente o que a mulher estava pensando. Riu por dentro, observando o medo dela. - Christine... – ele aproximou-se dela, por sobre a mesa. – Ela é uma gata. - Eu sei, você já disse. Todos os pais acham seus filhos bonitinhos, e... - Não, você não entendeu. Gina é uma gata. Gina tem raça. Um animal. Gata, a versão feminina do gato. Ela parou de olhá-lo quando reparou no balde cheio de gelo na mesa do casal ali perto. Quis entrar no mesmo, escondendo-se da situação péssima. As suas bochechas estavam mais vermelhas que a roupa do gordo do Papai Noel. - Ah... – ela não sabia como reagir. – Podemos pedir a comida? Estou faminta! - O que você quiser, gatinha – ele brincou, rindo. Ela levou uma dezena de minutos para que pudesse escolher algo do menu, pois a metade deles apenas olhou para as letras como se estivesse lendo, mas na verdade estava xingando-se mentalmente pelo ocorrido. Christine acabou por escolher risoto de aspargos com tiras de filé ao molho de mostarda, já John pediu peixe com batatas. - Fale-me sobre você.

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Ela olhou-o com atenção, encarando aquele pedido. Reed não sabia definir-se exatamente, apenas falar o trivial. - Tenho vinte e sete, um gato chamado Pudim, trabalho em um laboratório fotográfico e durante as tardes levo cachorros para passear. Não tenho tempo para pensar no futuro, e a cada dia que deixo de fazê-lo, percebo que ele já está aqui. Então prefiro apenas me conformar que essa será a minha vida até o momento em que eu morrer de pneumonia. Ah, eu tenho um cachorro agora também. Mas é... Temporário. - Pneumonia? – ele ignorou a parte do cão. - O Condado é frio demais, e eu não sou uma grande apreciadora de roupas de inverno. Acho que você pode reparar – fez menção ao vestido que usava. John olhou-a mais uma vez, dando atenção para aquele detalhe no pulso da mulher. - É para não esquecer o meu nome? – ele perguntou, apontando para o relógio dela. Na pulseira do mesmo, um pequeno pedaço de papel com ‘John Gray’ escrito em letra de forma. Ela puxou o bilhete com rapidez. - Becca – suspirou. A conversa seguiu até que chegassem os pratos. Como ela havia imaginado, eram porções pequenas de comida, e esse era o lado bom dos restaurantes da classe alta. Ela degustava o seu risoto amanteigado em silêncio, até Gray o quebrar. - Então, acho que os nossos filhos... Reed largou o garfo que trazia mais comida no prato com suavidade. Olhou-o, perplexa. - Os gatos, Christine. Os gatos. Nervosa, lhe restou rir.

Ela permitiu-se um mousse de maracujá como sobremesa. Já o seu acompanhante preferiu insistir em seu espírito de criança, pedindo a maior das taças de sorvete. - Você não é muito amiga das calorias, certo? Christine limpou os lábios com o guardanapo de pano do colo. - Não somos muito íntimas – explicou. - Que tal fazer uma troca? – ele sugeriu. – Esqueça que vai morrer de pneumonia e comece a usar mais casacos. Disfarçarão qualquer gordura extra que você conquistar. Assim, você pode comer mais. Se você vai morrer mesmo, aproveite para comer enquanto você pode. Acho preferível tomar sorvete do que não usar roupa extra.

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Reed pensou um pouco, e aquilo realmente fazia sentido. - Acho que posso tentar. - Ótimo, então começaremos agora – ele estava animado. John pegou a grande taça de sorvete e colocou-a em frente à mulher de vestido. Agarrou a pequena tigela com mousse e comeu em duas colheradas. - Você não espera que eu coma tudo isso. - Não sairemos daqui enquanto não estiver vazia – ele sorriu. Ela olhou para aquele cara. Era muito diferente de todos os anteriores. Os olhos que diziam muito e o sorriso de garoto não passavam de (bons) detalhes. Sabia que ele valia muito apenas pelo fato de ela não estar nem um pouco receosa para afogar-se naquelas prováveis seiscentos gramas de sorvete. Fitando-o com o canto do olhar, ela deu a primeira colherada. Era tão bom. Em sua frente, Gray ria e continuava na expectativa, como se fosse uma platéia esperando pelo ápice do espetáculo. Na metade da taça, Christine lembrou-se que não ter fugido do restaurante fora uma grande – e saborosa – ideia.

John lembrava-se de um lugar esplêndido, no alto de Greenpack, onde certamente ele gostaria de levá-la para uma visita. Era afastado, silencioso, e costumava ficar coberto de neve naquela época do ano. - Pronto, terminei. Devo ter ganhado uns três quilos – ela acomodou-se na cadeira. - Foi bom enquanto durou? - Ótimo. - Então valeu a pena. A conta foi colocada na mesa e o homem enfiou uma nota de cem dólares dentro. Quando Alfred aproximou-se, Gray avisou que o troco era pelo ótimo serviço. Depois foi até a cadeira de Christine, ajudando-a a levantar-se. - Podíamos prolongar a noite. Conheço um lugar incrível. Reed realmente tinha passado por horas agradáveis. O tempo correu tão depressa que ela mal pôde perceber. Porém, a ideia de ir para um motel soou atrevida e antecipada. Ela não queria pular os passos principais, então a calma era essencial. - Quem sabe mais... Mais para frente – procurou o melhor jeito de fugir da situação. – Preciso ir para casa, Becca está cuidando para que Pudim e Victor não comecem a Terceira Guerra Mundial. Ela abre o laboratório cedo, então... - Entendo. A visita até o lugar especial teria de ser adiada. - Bem... Obrigada pela noite, senhor Gray.

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- Eu é quem devo agradecer. Você é engraçada, Christonia. Ela parou, olhando-o com curiosidade. - Christonia? - O lance da pneumonia e tal. A mulher de cabelos castanho-avelã riu perto da porta. Alfred apareceu com o seu casaco, porém John tomou-o nas mãos e ajudou com que ela o vestisse. A despedida foi marcada por um abraço e nada mais. - Carona? - Meu Fusquinha está esperando ali no frio. Obrigada outra vez. Ele piscou e ela deixou o restaurante, apressando os passos para que entrasse depressa no automóvel. Estava congelante do lado de fora. Procurou a chave no bolso esquerdo do casaco, e junto com a mesma, encontrou algo mais. Um pedaço de papel, onde se lia sete números seguidos dos dizeres: ‘Caso queira tomar outra taça de sorvete’.

Becca olhava-a diretamente, mas Christine fugia o olhar todas as vezes. - Você não vai me falar nadinha? Uma semana já passou, está na hora! Reed preenchia alguns formulários no computador, sentada atrás do balcão principal do laboratório fotográfico. - Você teve a sua chance. White soltou os ombros, como se estivesse se rendendo. - Qual é, você demorou a chegar, não agüentei o sono. Você não teve coragem para fugir, certo? Se tivesse fugido, logo estaria em casa. Demorou anos! Christine riu. - Tive uma noite boa. A morena debruçou-se por cima do balcão, chegando perto. - ‘Uma noite boa?’ – ela a imitou. - Poupe-me, Christine Beatrice Reed. Essa definição está longe do que eu espero ouvir. A indagada olhou para a amiga. - Ok, você venceu. Becca bateu palminhas, entusiasmada. - John é um cara legal. Eu digo, muito legal – olhou para a pessoa em sua frente, procurando compreensão. – Ele é muito bonito, mas eu acho que já te disse isso. E me fez comer uma taça inteirinha de sorvete, sem reclamar – ela lembrou. – Nada poderia ter sido diferente. Ok, talvez a grávida e a minha fuga frustrada, mas... - Então você tentou fugir! Christine tomou algum tempo para lembrar-se do porque daquilo. - Claro que sim. Não lembra da história da filha?

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A pseudo-japonesa abriu os olhos o quanto pôde, esperando por explicação. - Era uma gata. Uma gata do tipo animal, sabe? Que nem Pudim. Fez-se silêncio, então a ouvinte olhou para Reed com reprovação. - Ai Christine, em que momento você pensou que ele tinha uma filha mesmo? – quis saber. - Talvez quando o maître falou que ele ia se atrasar porque a filha estava passando mal. - Ah, sim, certo. E depois? Continue, continue. A mulher de olhos cinza desligou a tela do computador. Pôs-se em pé, agarrando um dos aventais presos no gancho da parede. Envolveu-o ao redor da cintura e ficou de costas para a amiga, esperando que ela o amarrasse. Ao mesmo tempo, o seu celular – que estava sobre o balcão – vibrou. B lançou uma olhadela rápida, reparando no nome do acompanhante de Christine. - Meu celu... – ela tentou falar, porém a morena havia apertado a tecla do viva voz, atendendo assim à ligação. - Christine? – era a voz de John. Ela tentou olhar para Becca, porém estava de costas. A japonesa fez um rápido laço com as pontas do avental e finalizou com um nó, aplicando força o bastante para que a outra quase gritasse. - Ai! Ela virou-se, então finalmente olhou para a amiga, que fazia gestos para que ela falasse de uma vez. - Desculpe, acho que liguei para o número errado... – ele ia se despedindo. - John! – ela falou alto, antes que ele desligasse. - Christonia? White tentou entender aquele apelido. Não conseguindo, imaginou que ele tinha errado o nome de C. Irritou-se. - Christine – sugeriu Becca, juntando-se à conversa. Antes que o homem dissesse que sabia corretamente o nome dela, a mesma fez questão de desculpar-se: - Perdão. Parece que tem alguém metida demais nisso aqui – olhou para a amiga com fúria. - Oi Becca! Quase reconheci sua voz. - Ei, John. Você é rápido, hein? Ele gargalhou do outro lado – foi exagerado, mas mascarou a timidez –, e Reed agarrou o celular, voltando ao modo normal. - Pronto, agora somos só você e eu. - Ótimo. Que tal um passeio no sábado? Ela lembrou-se do motel instantaneamente. Por mais que achasse cedo, não poderia prolongar por muito mais tempo. Homens são impacientes. - E para onde você pretende me levar? – arriscou. - Hm, prefiro manter em segredo, mas creio que você irá gostar. É lindo, espaçoso, aconchegante.

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Chris mordiscou o lábio. Então aquela era a definição dele para lugares-onde-as-pessoas-transam. - Certo. Sábado. Becca, que já tinha desaparecido da recepção, gritou muito alto. Era como se tivesse levado um tiro. Reed poderia pensar que essa era a reação da amiga por ter ouvido que um novo encontro aconteceria entre ela e John Gray, porém ela estava longe demais para escutar. A laboratorista abaixou o celular com calma, olhando em frente.

- Christine? – a voz que vinha do celular era o único som. – Aconteceu alguma coisa? Ela levou o aparelho de volta ao ouvido. - Está tudo bem, John. Depois te ligo, ok? Becca entrou no local apavorada. - Foi papai, estou certa disso. Reed deu uma olhada para a nova-velha placa do estabelecimento que havia se desprendido e caído em frente à loja. - Pelo jeito ele não gostou do novo nome que você escolheu – riu. A morena escorou-se em uma das prateleiras com diversos porta-retratos a venda, desanimada. - Acho que voltamos a ser Revelando Sorrisos. C olhou-a, passando confiança. Desamarrou um pouco do nó do avental em suas costas (estava doendo) e avisou a amiga que acabaria com o trabalho do dia. Mais uma vez, assim como sempre, ela entrou na sala escura. A moça de cabelos presos aproximou-se da mesa de trabalhos, sentindo um ligeiro e incômodo arrepio ao reparar no único negativo a ser revelado. Ele continha apenas uma foto, assim como o retrato da cicatriz de alguns dias antes. Com certeza eram da mesma pessoa. Colocou-o no ampliador, acendendo a luz depois. Antes de focar a única imagem contida ali, surpreendeu-se com o que viu de imediato.

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O velho cego apontou o caminho quando percebeu que alguém se aproximava, porém Giles ignorou. Ele já tinha decorado. Percorreu a viela, até atingir o barraco ao fundo. Travis estava parado junto à primeira porta. - Ora, vejam quem está de volta. Você não aparecia por aqui há muito tempo, Gales. Sabe que não me impressiono? O homem mais velho, de óculos, passou a mão pelos cabelos. Estava nervoso, trêmulo, e precisava sair dali o mais rápido que pudesse. - É Giles. Preciso de mais – pediu. - Sabia que ia gostar – falou o traficante. Entrou no cômodo, passando diretamente para os fundos. O psicoterapeuta o seguiu. – Como ficou esse tempo todo sem a bonitinha?

O jovem observou. - Porra, que traição é essa? Conseguindo bagulho de outra vizinhança? – ao

perguntar, aproximou-se e aplicou dois tapinhas nas bochechas do homem impaciente, porém imóvel. – Tsc... Mas já que voltou, tenho umas novidades que o senhorzinho vai gostar... - Quero mais do mesmo. Travis ergueu as mãos, esquivando-se. - Tudo bem, tudo bem. Não vamos arriscar, não é? Se bem que o senhor parece aguentar mais. Ele riu e reparou na bengala que Giles Brown trazia consigo. - O que aconteceu com a perna? Os dedos do homem de óculos fecharam-se dentro do bolso, apertando um contra o outro com força. Os batimentos aceleraram um pouco. - Quanto é? - Uma de vinte por hoje. O senhorzinho já se tornou cliente especial – os seus dentes reluziram em algum ponto de luz perdido no escuro absoluto. Ele retirou uma nota da carteira, entregando ao mais jovem. Em troca, agarrou uma pequena trouxinha e colocou embaixo do braço. Virou-se sem dizer nada. A bengala ecoava no concreto. - Até breve – murmurou Travis Black.

O pé de Christine batia repetidamente no chão, e o barulho do sapato ecoava pela saleta. A água corrente caía por cima da fotografia revelada, quase pronta. Talvez não fosse nada demais, apenas coincidência. Talvez ela tivesse algo a ver com tudo aquilo. Esperou mais um minuto e fechou a torneira. A água que percorria a mangueira cessou, e então ela pegou a fotografia com suavidade, pelas beiradas.

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Levou-a para perto da luz vermelha para uma melhor análise. O mesmo sentimento de medo e angústia de anteriormente martelavam o seu interior. Ela olhava para a imagem como se a mesma falasse com ela, como se passasse uma mensagem. Eis a descrição do que a mulher viu: Um jornal, localizado no centro, que trazia várias notícias espalhadas. Algumas das letras das manchetes estavam circuladas à caneta. O outro e último objeto da fotografia era uma garrafa de whisky tombada ao lado. Pegou um pedaço de papel e secou a imagem devagar. Olhou-a com mais atenção, procurando entender. Também agarrou um bloquinho de notas e um lápis, perdidos por ali perto, onde escreveu todas as letras que estavam circuladas na capa do jornal. Era tudo muito óbvio, porém ela foi até o fim. Depois, a funcionária olhou para a bebida. Mal podia se ver o rótulo, mas ela estava certa de que tratava-se de uma garrafa de Red Label. Ao olhar para as letras anotadas no bloco, ela teve certeza de que, se agrupadas, formariam o seu próprio nome. Christine. Isto, somado ao primeiro nome do whisky, formava a mensagem final. O que o fotógrafo misterioso tentava falar era claro: Christine Reed. Uma corrente de ar quente percorreu o seu corpo, envolvendo-o. Não gelou, e sim ardeu em invisíveis chamas. Abriu a boca, tomando um pouco de ar, suavizando o impacto. Ela olhou para as mãos delicadas que tremiam ao segurar o lápis. Este acabou escapando de seus dedos, quicando no chão e rolando para longe. Christine permaneceu imóvel, olhando para a foto em sua frente. Não era coincidência. A tira de pano do avental que passava ao redor de seu pescoço parecia exercer pressão contra a pele. A cintura também estava marcada demais. Reed tratou de desatar o nó que o prendia. Revolta, o fazia sem pensar, puxando qualquer ponta com força. Não saiu. Fechou os olhos e gritou, sufocada. Caindo sem poder evitar, segurou e apoiou-se contra o balcão em que realizava as revelações. - Fique calma – pediu em voz baixa. – É só uma brincadeira. Então desfez o nó com rapidez. Pegou a foto em questão e enfiou-a em um envelope. Desligou a luz vermelha que iluminava o local e permaneceu no escuro durante poucos segundos. Nunca se sentiu tão insegura e desprotegida. De volta à recepção, procurou por Becca. Ela estava arrumando algumas das câmeras fotográficas expostas e eventualmente aumentando o preço das mesmas. - Preciso saber quando esse negativo chegou e o nome do cliente – tentou não parecer desesperada. White olhou-a, notando diferença, porém preferiu não comentar. - Pode deixar em cima do balcão, amanhã faço isso. - Não! – percebeu que acabou por denunciar-se. – Preciso urgentemente. A morena circulou alguns guichês de mercadoria, indo para detrás do balcão. Pôs-se em frente ao computador, digitando alguns atalhos. - Sendo essa ótima amiga que sempre fui, devo ficar quieta e não perguntar nada, certo? - Certo – confirmou Reed.

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Alguns números foram digitados, tendo por base o código do adesivo grudado junto ao negativo. Em poucos segundos, a ficha do pedido – e todos os dados do cliente – haviam aparecido na tela. - Estranho... – falou a japonesa. - O que houve? - Os dois negativos que partiram deste cliente chegaram por correio. Agora me lembro que chegaram dois envelopes nos últimos dias, e cada um tinha um filme dentro. - Qual é o nome do cliente? – perguntou afoita. Os olhos de Becca comprimiram-se, olhando para o computador. - Não tem nome. Devo ter recebido os filmes e apenas cadastrei o número do pedido. Guardei os envelopes, espere. Ela vasculhou duas gavetas até encontrá-los. Eram da cor laranja fluorescente, incomuns. - Aqui – entregou. Christine os analisou. O destinatário, óbvio, era o laboratório. Já o remetente, este a fez apavorar-se por completo: Saint Joanne. O nome que a trazia tantas lembranças. Mas como podia? Quem estava trazendo-lhe de volta o passado daquela péssima maneira?

Usando o mesmo bloco que anotara as letras da fotografia algum tempo antes, rabiscou a localização exata daquele sujeito que estava atrás de algo. Ou de alguém.

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IV LARANJA

Naquela tarde o sol apareceu fraco, e Christine já tinha devolvido todos os cães aos seus respectivos donos. A não ser, é claro, pela única exceção. Victor continuava a puxá-la para frente, pronto para arrebentar de vez a coleira que o segurava. Na outra mão ela trazia um pedaço de papel com um endereço rabiscado. Estava há um quarto de hora procurando pela localização, mas até então nada. Ela não sabia se tinha motivos suficientes para fazer aquilo. Tudo bem, a foto formava o seu nome, porém aquilo podia não passar de coincidência. Essas coisas acontecem. Mas o tal Saint Joanne não podia ser coincidência. Estava claro que alguém tinha uma mensagem, e Reed precisava descobri-la. Pensou, então, no que faria ao encontrar o endereço: Bateria na porta? Fingiria ser outra pessoa? Entregaria as fotos reveladas que trazia em mãos e sairia, agindo normalmente, somente para ver a cara do sujeito? É, a última opção parecia a melhor. Perdida, achou melhor pedir por ajuda. Virando-se para a primeira pessoa que passou ao seu lado, perguntou: - Com licença, você sabe me dizer onde fica essa rua? O rapaz jovem leu os dizeres escritos no papel, e sem demorar muito apontou para algum lugar atrás de Christine. - É a próxima rua. Agradeceu com um sorriso e puxou o cachorro consigo. O bonequinho do semáforo que encontrava-se vermelho logo virou verde, e então ela atravessou. Olhou para a placa indicativa logo na esquina, observando que estava na rua certa. Enquanto o labrador latia como de costume, ela passava o olhar por cada construção, procurando pelo número 1.237. Andou duas quadras e não encontrou. Voltou ao início do trajeto que fizera e começou uma outra vez, reparando com o máximo de calma cada casa e edifício – todos eram pequenos em Greenpack. Pronta para dar por encerrada a sua busca sem sucesso, parou junto ao meio fio, olhando para o outro lado da rua. O número da casa em frente era o 1.231, porém nenhum dos próximos terminava em 7.

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Leu o endereço uma outra vez, percebendo então algo que passara batido. Estava escrito ‘sexto andar’, o que peneirava a sua busca para unicamente prédios. A mulher abaixou a mão que trazia o papel e esperou um segundo. Notando o reflexo da poça de água na rua (havia chovido naquela noite), olhou para o edifício atrás de si. Virando-se rápido, o primeiro item que viu foi o número que desejava encontrar. As pessoas andavam depressa naquele fim de tarde, como se o mundo estivesse em seus últimos minutos. A moça, porém, estava um pouco mais tranquila. Suspirou aliviada, correndo para a entrada do mesmo. A edificação pintada de verde escuro não era muito alta, mas ela não parou para contar os andares. Aproximou-se da portaria, onde um segurança acima do peso veio caminhando engraçado ela. - Nada de cachorros, dona. Victor ironicamente latiu. - Tudo bem, deixarei ele aqui fora. Só preciso encontrar uma pessoa. Ele olhou-a com malícia. Christine repugnou. - Nome? – perguntou. - Eu não sei – ela falou devagar e sem esperanças. – Saint Joanne, eu acho... – foi o que murmurou, porém sabia que aquela era apenas uma pista dada para que ela ficasse realmente intrigada sobre o seu suposto perseguidor. Não era exatamente um nome em si. Olhou para baixo, fitando aquele pedaço de papel. Voltou a encontrar a figura do homem engraçado depois, entregando-o aquilo. Ele leu fazendo uma cara esquisita, e nessa hora Reed percebeu que ele trazia migalhas no bigode preto. Abaixando o papel, o segurança soltou uma risadinha. - Acho que alguém enganou a dona aí... Ela não entendeu. - Por que? Entregou o endereço de volta para ela. Depois o cara virou-se, apontando baixo para o prédio atrás dele. - Conte comigo. Um, dois, três, quatro – ele parou e a olhou, porém viu que ela ainda estava confusa. – Quatro andares, dona. Aqui diz sexto. Posso até deixar você ir dar uma olhada na cobertura se quiser, mas lhe garanto que não existe apartamento 67 neste prédio. O papel de suas mãos voou com o vento, e Christine permaneceu parada, olhando para o nada. O silêncio era inexistente, porém ele preencheu tudo ao seu redor por algum momento. Os passos rítmicos de antes pareciam ter cessado, como se todo o universo houvesse sido pausado por um instante. Pura ilusão sua, pois todos ainda andavam apressadamente para os seus destinos. Ela, por sua vez, odiava não ter um.

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John Gray estava caminhando naquele bairro deserto e de classe média alta. As árvores estavam quietas tanto quanto ele, que limitava-se a observar um casal de pássaros que havia emergido de um poderoso pinheiro. Um único carro cruzou a rua, desviando a sua atenção, e após perdê-lo de vista, o homem pôs-se a pensar em Christine. A sua definição para ela podia ser resumida em três palavras: neurótica, engraçada e bela. Ele tinha tudo para querer vê-la outra vez. Queria também dar um passo em frente, sempre respeitando tudo que ela desejasse, porém sentia-se seguro o suficiente para fazer daquele primeiro encontro cômico nascer um grande amor. Se pensar absolutamente em uma pessoa por oito dias seguidos fosse um sinal de que a paixão estava se aproximando, ele podia facilmente incluir-se na lista dos indivíduos apaixonados. Algumas folhas secas remexeram-se pelo chão, levadas pelo vento. Com as mãos nos bolsos, John apalpou o molho de chaves, retirando-o dali. Ao fazê-lo, escutou um som que vinha atrás de si, perto do pinheiro de anteriormente. Permitiu uma rápida olhada para trás, e o único semblante visto foi um vulto que passara correndo. Em frente ao prédio de três andares em que morava – totalmente seu, herdado de sua avó materna -, encaixou a chave no portão e a girou. Empurrou-o um pouco, ouvindo depois o mesmo som provindo da árvore. Havia alguém ali. Gray espichou-se, olhando para a direita. Nada aparentemente visível, porém ele estava certo de ter visto alguém. Bateu o portão, fingindo ter entrado, mas continuou a olhar para o pinheiro. Tendo sucesso em sua armadilha, observou a cabeça miúda que aparecera detrás daquele tronco. A mesma voltou a esconder-se quando reparou que ele a tinha descoberto. O homem puxou o portão com força e caminhou em direção à pessoa. Essa última percebeu e saiu de seu esconderijo, indo para a direção oposta. John fitou-a, reparando naquele homem baixinho de cabeça pequena e chapéu preto. Era bizarro, no mínimo. - Ei! – gritou. A figura pequena acelerou os passos, dando rápidas olhadas para trás por cima de seu ombro. O cara alto a perseguia, e o homenzinho odiava-se por ter aceitado fazer aquilo. Ele ganharia tão pouco para fazer o que lhe foi ordenado, e no fim ainda seria quebrado em dois por aquele sujeito. Detestava seguir ordens. O acompanhante de Christine começou a correr. Foram apenas duas quadras até que ele enfim alcançasse o sujeito estranho. Colocou a mão no ombro do projeto de Oompa Loompa com força, fazendo-o parar. O pequeno virou-se, com medo perceptível até demais em seu olhar voltado para cima. John percebeu que não sabia exatamente o que falar. - Desculpe-me... – começou o menor. Retomando o fôlego, uma pergunta foi feita: - Quem é você?

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O chapéu do homenzinho voou com o vento, mas nem isso o fez abrir a boca. - Por que você estava me seguindo? Nenhuma resposta foi dada em troca. A figura estranha deu um par de passos para trás, esquivando-se. John agarrou-o pelo colarinho da blusa. - Não, eu ainda não acabei – ele puxou-o com um pouco de força, deixando o homenzinho na ponta dos pés. Passando-se um minuto, um envelope de cor laranja foi entregue para John Gray. O sujeito não disse nada, apenas olhou-o com um pouco menos de medo. O cara maior soltou-o, analisando a entrega. Mais algumas folhas dançaram pela calçada, girando em círculos como se um redemoinho as sugasse. O sujeito rico olhava para o envelope fixamente, procurando encontrar algo escrito. Não havia nada. - O que é isso? – perguntou ele. Olhando em volta, porém, o homenzinho havia sumido.

A sala de espera estava silenciosa e vazia. Ela era a única. Olhando a última das revistas, Christine esperava pelo momento em que a porta que levava até a sala de Giles fosse enfim aberta. Impaciente demais, levantou-se para conversar com Telmah. - Será que ele vai demorar? – perguntou. A recepcionista negra e robusta olhou para um pequeno relógio. - Já era para ter terminado. Mais cinco minutos, Christine. - Becca vai me matar. A outra fitou a mulher em sua frente e debochou. - Não acho que a senhorita White tenha cara de assassina, então você pode ficar tranquila. Circulando pelo ambiente, ela parou uma outra vez ao ser indagada: - Ei, branquela. Você pode guardar um segredo? – pedira a secretária. Ela sempre fora boa naquilo. Nunca havia traído a confiança de ninguém, até mesmo quando era apenas uma criança inocente onde os melhores segredos de suas amigas eram a respeito do menino que ocupava os seus tolos corações. A mulher de cabelos cor-de-avelã guardava para si pois desejava que fizessem o mesmo em troca, o que raramente acontecia. Assentiu. - Dei uma turbinada. - Outra vez, Telmah?! Meu santo dos pares de montanhas, o que lhe fez colocar mais seios? – ela nunca soube utilizar o tom de voz certo nestes casos. - Neil achou que ficariam melhores. E, realmente, estão uma maravilha.

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Christine pensou nos cortes, pontos e ataduras que deveriam estar ali. Uma maravilha mesmo. - Diga para o seu marido que ele precisa se controlar! – estava passando um sermão como se fosse mãe. - Esta já é a segunda vez, certo? A recepcionista estava grata por não haver mais ninguém ali presente. Mesmo assim, após ter olhado para os dois lados, apontou: - Segunda vez nos seios, primeira na barriga. O médico me fez o pacote completo por um pouco de dinheiro a mais. Acabei colocando peitos e removendo algumas gordurinhas que me incomodavam muito. Foi um tal de tira daqui e põem ali... - Ah meu Deus, e aonde você as colocou? Mesmo sentada, Telmah deu dois tapinhas no bumbum. Ela era um tipo de mulher interessante: Alta demais e grande, porém não gorda. Era como uma árvore que pudesse andar, porém sem todas as folhas. Apenas o tronco. - E você não está com dor? - O que?! – indagou a recepcionista. – Estou me sentindo como um boi no matadouro! Você não conseguiria imaginar... Mas fiquei como gostaria. Bem, como Neil gostaria. - Abra bem os olhos, Telmah – sugeriu ela. A recepcionista deu de ombros. - Eu amo aquele homem. Christine debruçou-se no balcão de atendimento, usando como sustento para o rosto o seu punho fechado. - E mais as crianças... Essa ideia de ser mãe de família não me parece muito interessante. Não penso em ter uma tão cedo. Como você aguenta? - Preciso de alguém para cuidar de mim quando eu estiver agindo igual a uma velha problemática. Quer dizer, não que eu seja muito nova, mas... Neil e eu já temos cinco filhos, e acho que é o suficiente. Sempre pensei que quantos mais eu tiver, mais chances são as de que eu não seja abandonada em qualquer casa de repouso, estou certa? Em sua mente, a jovem imaginava que a situação poderia ser totalmente diferente: Não tendo tempo para a mais de meia dúzia de filhos, um viraria crimonoso, a outra se prostituiria e o restante apenas esperaria a morte da mãe para dividir a herança com unhas e dentes. Christine sempre imaginava o pior. Por fim ela balançou a cabeça, sorrindo falsamente: - O seu segredo está guardado comigo. Reed procurou conter-se e voltou para a mesma cadeira de minutos antes. O ambiente climatizado era agradável, ocultando o frio que estava do lado de fora. Ela recostou-se, apoiando a cabeça na parede detrás de si. Fechou os olhos por alguns segundos e descansou. Durante o rápido cochilo, lembrou-se de sua procura naquela tarde pelo endereço do fotógrafo misterioso. Coincidência ou não, aquelas fotografias haviam sido tiradas para alguém em especial, e desejavam passar uma mensagem. Para Christine, ela era clara até demais. - Não sabia que tínhamos horário marcado hoje – falou a voz que apareceu.

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Ela abriu os olhos, enxergando o psicoterapeuta despedir-se de sua última consulta daquele dia. - E não temos – explicou. – Mas é urgente. O homem olhou-a, esperando que algum sinal de medo aparente desse as caras. - Quem morreu? – ele fez a pergunta. - Ninguém, mas... - Então acho que podemos esperar até a nossa próxima consulta, que seria... - Amanhã! – gritou Telmah diretamente da recepção. Brown sorriu, mas estava pouco alegre. - Giles... Ele já tinha dado as costas, porém virou-se novamente, tocado com o jeito que o seu nome havia sido pronunciado. Estava cansado e queria ir logo para casa, porém ele não hesitou em fazer mais um grande favor para aquela mulher. - Você tem cinco minutos – disse.

Giles enfiava as suas fichas e pranchetas com certa pressa na pasta em cima da mesa. Tinha pressa em ir embora, porém ouvia cada palavra que a mulher atrás de si falava. Era algo sobre um novo medo. Talvez algo bobo, mas sendo o maior conhecedor do passado de Christine Reed, aquilo o interessava. - E a minha única conclusão é a de que alguém está me seguindo – por fim ela terminou de falar. O homem de óculos virou-se, encarando-a. - Por que diabos alguém a seguiria, Christine? Ele desejou em silêncio para que ela não o fizesse, porém a mulher sentou-se no divã. Aquilo levaria mais do que cinco minutos. - Giles, pense um pouco. Reúna todos os fatos estranhos e difíceis de se esquecer que já aconteceram comigo. Ela sempre dava um jeito de mascarar o assunto que tanto a perturbava, até mesmo quando precisava falar dele. Atento, o profissional sentou-se na cadeira, apoiando a bengala. - Você não acha que alguém está tentando...? As imagens daquela noite passaram como cometas na mente da moça. A sala do psicoterapeuta não estava aquecida como a recepção, o que a fazia abraçar-se para conter o frio. - Tudo permaneceu quieto e muito bem guardado durante três anos. Se mais alguém por acaso estivesse lá... Bem, eu acho que teria aparecido antes.

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Reed fitou o chão apenas o usando como ponto fixo. Pensou naquele dia treze de março. As memórias permaneciam perfeitamente guardadas em algum canto de sua mente. Ela havia tentado lutar durante muito contra as mesmas, porém acabou desistindo, derrotada nesta batalha. Jamais esqueceria, mesmo que... - Então porque o medo? – ele perguntou. A mulher de cabelos soltos e longos olhou-o como se não pudesse acreditar. - Você escutou o que eu falei mesmo? Giles, recebi duas fotos. Ambas estavam em negativos onde elas eram as únicas de todo o filme. Uma cicatriz e uma outra fotografia aparentemente montada com o objetivo de me atingir. Ele permaneceu em silêncio por mais tempo que ela gostaria que tivesse permanecido. Da sua boca não saíam palavras nenhumas, e a quietude marcou o momento fortemente. Olhando-o como se esperasse uma solução imediata e concreta, Christine cansou de esperar. - Você pode, por favor, falar alguma coisa? – pediu. Brown prontamente apontou o dedo indicador para ela, pedindo um minuto. Estava pensando. Haviam várias possibilidades para tudo aquilo, e certamente a mulher não tinha refletido sobre todas elas. Concluindo o raciocínio, ele levantou-se e ficou detrás de sua pesada mesa de trabalho. - Com quem você tem saído? Os olhos cinzentos dela fitaram-no procurando entender. Ela odiava quando ele mudava de assunto de repente. - Giles... – soou infantil. - Christine... – ele a imitou, trocando os nomes. – Atenha-se às minhas perguntas. Responda. Ela deitou mais ainda no sofá preto e olhou para o teto. - Com quem eu tenho saído? – repetiu a pergunta que ele havia feito. – Hm, você sabe, aquele cara do restaurante. Aliás, foi uma boa ideia você entrar nesse assunto, pois preciso lhe pedir desculpas. Naquela noite cheguei em casa e Becca já estava dormindo. Eu precisava falar com alguém sobre o encontro. Você estava dormindo quando lhe telefonei? - Era uma da manhã – lembrou ele. O seu olhar desviou-se do teto para encontrar aqueles óculos sujos. - Ok, acho que isso foi um sim. Enfim, ele se chama John Gray e... - Quieta, por favor. Ela calou a boca, pensando em como o amigo andava abusado ultimamente. - Falaremos de todos os seus encontros, dúvidas e filosofias amorosas amanhã, em nosso horário marcado. Eu só precisava saber disso. - E o lugar que você pretende chegar é qual mesmo? Passando mais alguns segundos silenciosos, ele falou: - Você é muito fraca em relação ao medo. Deixa ele te consumir e comandar seus pensamentos muito facilmente. Reed sentou-se. - Isso não foi um elogio.

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- Precisaremos trabalhar isso – acrescentou ele. – Porém, onde quero chegar, é que a primeira ideia que você criou sobre as tais fotos foi a de que alguém está atrás de você. Tudo bem, baseando-se na segunda imagem eu até concordo que realmente isso foi feito propositalmente, mas não quer dizer que tenha sido com uma má intenção. Giles colocou a bengala em cima da mesa enquanto esperava que a mulher absorvesse tudo. - Quero dizer, você está saindo com esse sujeito. Ocorreu-lhe que pode ser ele quem está mandando as fotografias? Para ela, aquilo era ridículo. - E por que exatamente John estaria me mandando essas coisas? Tudo está soando horrível para mim. Se a intenção foi de me surpreender, bom, acho que ele conseguiu. - Eu não sei, Christine. É a mesma coisa que acontece caso você enxergue isso pelo outro jeito. Por que algum estranho lhe mandaria essas imagens? O fato de você pensar que o sujeito seja alguém que você não conheça está fazendo com que pense que estão brincando contigo ou que alguém sabe de algo. E, ao usarmos o seu novo caso como ‘suspeito’, a situação não lhe parece tão ruim assim. É o ponto de vista. Ela levantou-se, passeando pela sala. - Ok, então você está querendo dizer que sempre que algo aparentemente – ela fez aspas no ar com os dedos ao pronunciar a palavra – ruim acontecer comigo, devo deixar o medo de lado, porque ele me fará de imediato acreditar que aquilo realmente é algo ruim. - Sendo que há o outro lado, ainda desconhecido. E ele pode ser o lado bom. Reed passava a mão pelas capas dos grossos livros da estante. - Por que você me faz pensar tanto? Sabe que não sou boa com essas coisas tão complexas que só você e os inteligentes entendem. Ele riu, ficando sério e desapontado depois. - Eu e os inteligentes? Quer dizer então que não fazemos parte de um mesmo grupo? Christine cruzou a sala, agarrando a pasta de Giles. Pegou a bengala também e parou ao lado do homem sentado. Ofereceu o objeto que o ajudava a locomover-se, e então explicou: - Para mim você é muito mais do que os inteligentes, certo? O homem mais velho tirou a bengala de suas mãos e pôs-se de pé. Os dois foram até a porta, fechando a sala em seguida. - Por um momento pensei que isso não tivesse sido um elogio – disse ele.

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Já havia anoitecido, e o vento que penetrava alguma fresta da janela já fechada insistia em chacoalhar as persianas de madeira. A televisão da grande sala de estar estava ligada em algum canal de esportes qualquer, onde um jogo também qualquer passava. John Gray, que encontrava-se na cozinha, removeu a rolha de uma garrafa de vinho e despejou um pouco do líquido em uma taça. Era suave, e o gosto do álcool invadia a sua boca. Levando a bebida consigo, apagou as luzes do ambiente que deixara e foi até a sala escura, onde a televisão trazia a única iluminação presente. Jogou-se no sofá, bebendo um pouco mais e observando o jogo sem muito interesse. O que lhe chamou a atenção, porém, foi o envelope laranja que estava ali perto. Ele havia se esquecido de abri-lo. Largou a taça no chão, perto do sofá para oito lugares, e afundou os pés descalços no tapete volumoso, indo até a mesinha onde o que lhe interessava estava esperando. As persianas bateram novamente, incomodando-lhe. John cerrou o vidro da janela por completo, observando a rua escura e sem movimento algum. Na volta, com o ajude do controle remoto, ligou a lareira. Estava frio como nunca em Greenpack. Por fim sentou-se de novo no sofá, olhando para o envelope. Abriu-o com cuidado, retirando dali um único pedaço dobrado de papel branco. Leu em silêncio: ‘Você sabe que quer. Olhe para si mesmo e veja as marcas.’ Precisou reler. Não vendo muito sentido, jogou o bilhete no fogo. Sorveu mais um gole do vinho, observando o papel desaparecer.

A música que preenchia o carro era algum clássico antigo. Christine estava vendada, enxergando exclusivamente o preto em sua frente. Alegou não ser necessário o uso da venda, falando que iria obedecê-lo e que não olharia até que lhe mandassem, porém John preferiu daquele jeito. Fazia parte de todo passeio planejado para aquele sábado. O sol fraco deixava o Condado de Greenpack aos poucos, dando lugar somente à escuridão. - Falta muito? – perguntou ela. Ele olhou para aquela mulher vendada. O seu rosto branco contrastava com a venda escura. - Qual é, não aja como uma criança que não vê a hora de chegar ao destino. Você deve aproveitar cada momento, ok? - É difícil. Quer dizer, eu estou vendada, não consigo ver nada. Não tem como aproveitar assim.

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- Mas essa é a graça. Você não ver, não saber para onde estou te levando. E, ah, obrigado por confiar em mim. Sabe, qualquer um poderia pensar que isso é um sequestro mascarado de encontro romântico, mas eu não pretendo fazer mal a você. - Então quer dizer que se trata de um encontro romântico. O homem no volante pensou um pouco, agradecendo depois por ela não poder ver a sua timidez. - Basicamente. Sem a parte do sequestro, claro. - Ah – ela quis parecer desapontada. – Então acho bom você ter cartas escondidas na manga, e que elas tragam ação. Porque você sabe, se não vai haver sequestro, é melhor que haja algo emocionante para substituir. Ela acomodou-se no banco de couro daquele carro luxuoso. Deu um risinho, esperando a resposta de seu pretendente. Porém ele estava mudo, assim como o som no rádio que havia desaparecido. Encarando o silêncio total, ela o chamou: - John?! E nada. Aguentou mais alguns segundos, e o que notou após foi que o veículo era conduzido com um pouco mais de velocidade. Reed apertou o assento do banco com uma das mãos, e, mesmo estando vendada, fechou os olhos. Ela não havia pensado duas vezes sobre aquele passeio. O pensamento de que havia sido cedo demais para aceitar aquele convite tomou-lhe a mente. - Você pode parar o carro? – pediu. O automóvel ganhou mais velocidade ainda após o pedido. Christine respirou fortemente e segurou o ar consigo. A mão contra o couro começara a suar. Agora ela não tinha dúvidas de que havia deixado a impulsividade falar por primeiro. Desistente, levou a mão esquerda até a face, colocando-a sobre a faixa de tecido preto. Não conseguiu retirá-lo, pois o seu corpo foi impulsionado para frente. O cinto de segurança cravou fundo contra seu peito, provocando aquela dor fraca de imediato. O veículo havia parado por completo. Uma lágrima saiu de seu olho quando ela não soube o que fazer. Permanecer com a venda para não enxergar o medo, ou retirá-la e encarar um homem prestes a fazer qualquer coisa horrível com ela? Preferiu a segunda opção, pois qualquer uma das duas a levaria a um mesmo destino. Retirou a faixa, permanecendo de olhos fechados. Quando um súbito ímpeto de coragem apareceu, abriu-os devagar. O que viu foi o sorriso de canto de Gray, que a olhava com malícia. Porém, pelo que ela podia perceber, suas feições não traziam futuras más intenções. - Você não queria um pouco de ação? – ele perguntou sorrindo. Ela relaxou os ombros, voltando a respirar. E então, os desejos assassinos voltaram-se para ela.

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Ele conduziu-a por uma estrada de pequenas pedrinhas, envolta na grama coberta por gelo. No caminho, continuou a pedir desculpas pelo que tinha feito, pois estava visível que ela não tinha gostado. - Que lugar é esse? – ela perguntou, tentando identificar o que via. Estava muito escuro, e as únicas luzes eram alguns postes que já haviam ficado para trás. Se precisasse chutar algo, ela diria que estava perdida na imensidão congelante, caminhando por uma estradinha que a levaria até o nada. - Você já vai ver – foi só o que ele disse. Foram necessários mais quatro minutos de caminhada, incluindo um trecho em que o percurso elevou-se. No fim, atingiram o topo de uma colina. - Chegamos. Ela olhou para os lados, porém tudo parecia estar igual à antes. Era a mesma escuridão, porém o caminho havia chego ao fim. Estava mais frio ainda lá no alto. - Ahn, é... – ela tentou fingir alguma reação, mas acabou saindo pior do que o previsto. - Calma, não é só isso. Vem! – ele puxou-a pela mão, a obrigando a dar mais alguns passos. Então ela pôde ver. O fim do topo daquela colina revelou o vale logo abaixo. Podia se ver Greenpack por completa de lá de cima, e a mesma esbanjava incontáveis luzes amareladas que preenchiam cada rua da cidade que brilhava. Era como observar milhares de vagalumes estáticos em uma só árvore. Os fachos de luz refletiram-se nos olhos dela, e John os observou. Quando ela percebeu que ele a encarava, virou-se e não disse nada. Em pouco e lento tempo, aqueles lábios frios encontravam-se pela primeira vez, dançando sem nenhuma música presente.

John Gray levou Christine até um chalé que também ficava na colina. - Tudo isso é seu? – ela questionou. Ele ficou sem jeito. - Herança. Divido com meu irmão, mas ele não costuma vir muito para cá. Está em uma longa viagem pelo leste Europeu. Eu venho bastante com Gina. Passamos alguns finais de semana isolados de todo o resto. É bom para fugir da realidade. A casa pequena era toda em madeira, com uma grande lareira natural em seu centro que a mantinha aquecida. A decoração baseava-se em alguns móveis rústicos de bom gosto, quase sempre de tonalidades claras ou pastéis. O cheiro de lavanda fresca tomava conta de todo o ambiente.

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Após apresentar todos os cômodos, o homem parou em frente a uma porta translúcida. - Eu não queria um jantar outra vez, desejava algo diferente. Então como está frio lá fora, o máximo que pude foi... – parou de falar e abriu a porta. Um jardim de inverno escondia-se ali. Havia um coqueiro em um dos cantos, flores amarelas e cor-de-rosa por toda a parte, com uma fonte envolta em pequenas pedras. No centro de tudo, uma toalha (daquelas tipo xadrez vermelho e branco convencional) estava estendida. Sobre a mesma, os mais diversos chocolates, salgadinhos e comidas que seriam facilmente rejeitadas por qualquer nutricionista. - Um piquenique – falou ela, maravilhada com a ideia. Ele ajudou com que ela enfim saísse do lugar. Contornaram as flores contagiantes e acomodaram-se de frente um para o outro. Ela olhou-o nos olhos, agradecendo logo em seguida. Um beijo foi o melhor obrigado que ela poderia ter dado. - Não preciso nem dizer que você irá comer tudo, assim como da última vez, certo? – ele esperou uma resposta. Ela olhou para aqueles doces que encaravam-na e então respondeu: - Quero ver você falar o mesmo quando eu estiver estupidamente gorda e grotesca. Provavelmente você nem me olhará mais na cara. John não respondeu, apenas abriu o pote com gramas extra de Nutella e afundou o dedo. Então passou-o em uma das bochechas da mulher em sua frente. Ela revidou, sujando-o também. E a noite desaparecia tão rápido quanto um carro de corrida. Perto das onze, ela lembrou de algo: - Eu tinha um presente para você! Ele largou o copo de refrigerante de laranja em cima da toalha. - Ah é? - Mas eu esqueci. Ambos desapontaram-se. John, porém, teve uma ideia. - Vamos buscá-lo. Ela olhou-o, receosa. - Agora? Gray pôs-se de pé, estendendo a mão para ela. - Servirá de lição para depois disso você nunca mais me deixar curioso.

- Quer que eu vá com você? – ele perguntou ao estacionar o carro em frente ao Revelando Sorrisos. A viagem até o vale havia sido rápida. - Não, espere aqui. Trarei o presente em dois minutos – avisou, dando-lhe um beijo rápido nos lábios.

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O homem assentiu, observando a mulher deixar o veículo. Olhou rapidamente à sua volta, esfregando as palmas de suas mãos. O frio não era novidade. Quando Christonia já estava do lado de dentro, Gray pressionou o botão para que o vidro do carro se levantasse antes que ele viesse a congelar. De súbito, pressionou mais uma vez, e o mesmo parou pela metade. John forçou a visão para que pudesse enxergar com um pouco mais de clareza o que havia chamado a sua atenção duas quadras longe dali. Era um carro conhecido, e ele pôs-se a fitá-lo. Não eram muitos em Greenpack daquele modelo em especial, mas apenas não poderia ser quem ele pensava que fosse. Um miúdo floco de neve adentrou o carro, forçando o rapaz a cerrar o vidro de película escura de uma vez. Olhando para a frente, tudo estava branco, devido à camada de neve rapidamente acumulada no parabrisa.

Lá dentro, Reed observava a claridade dos postes de luz da rua que entrava pelas vitrines expostas, não fazendo necessária a procura por um interruptor. Ela sabia exatamente onde tinha deixado o presente. Dirigiu-se até o balcão principal, abaixando-se atrás do mesmo. Vasculhou alguns itens que estavam espalhados por ali, procurando pelo pequeno pacote. Era algo pequeno, simbólico, que provavelmente faria com que o seu acompanhante desse um largo sorriso. Quando encontrou o mimo (era um carro em miniatura para a sua coleção), junto observou um bilhete preso ao lado. Estava escrito:

‘Então quer dizer que você já está comprando presentes para ele? Mas que amor, C. Juro que não abri, pois pretendo continuar viva. Sua safada! B’.

Aquilo a fez rir enquanto ainda estava de joelhos, com a cabeça dentro do móvel. O sino preso no alto da porta de entrada tocou baixo, mas o suficiente para que ela o escutasse. Estava habituada com cada vez que o mesmo denunciava a presença de alguém por ali. - John, desculpe pela demora, é que... – ela levantou-se, olhando para a sua frente. Não havia ninguém ali. Banhada pela luz exterior, a mulher de cabelos avelã não demorou em perceber que algo estava diferente. Um novo objeto havia sido acrescentado à cena. Alguém havia entrado no laboratório e deixado um envelope laranja em cima do balcão em que ela estava.

❈ O seu olhar não desviou momento algum daquele envelope. Ela o encarava como se fosse um grande adversário, esperando-a para a batalha. As suas mãos tremiam um pouco, e então Christine finalmente deu o primeiro passo em direção ao que já sabia. Perto do balcão, levantou uma das mãos, porém recuou. Ela queria e o faria, mas o medo estava gritando dentro de si.

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Tomou coragem e pegou-o. Rasgou uma das pontas, deixando a aberta para cima. Respirou uma última vez antes de virá-lo, fazendo com que o filme caísse e rolasse pelo balcão de madeira. Ela observou-o, até que o fez parar. Voltou a checar o envelope. Era a mesma letra, o mesmo endereço. O de sempre voltando a atormentá-la. Christine Reed pensou no que veria desta vez. Se as fotografias fossem mesmo para ela (ela estava com a total certeza de que eram), o que veria da próxima vez que revelasse algum filme? Nenhuma ideia boa ou aceitável passou por perto, então ela apenas acolheu as visões desagradáveis com desconforto. De costas para a porta de entrada do estabelecimento, ela pôde perceber a presença de mais alguém ali. Congelada em seu interior, a princípio ela aprovou a ideia de confronto, pois finalmente conheceria a face de seu possível perseguidor. Os batimentos acelerados, o ar quase escasso, as mãos trêmulas e o olhar que a entregava estavam ali. Mordeu o lábio, pronta para o pior. Por fim deu uma volta, olhando para a face do indivíduo. - John – murmurou ao virar-se, enxergando-o. Ele estava parado perto da porta, então aproximou-se. - Você estava demorando, quis ver o que aconteceu – explicou. O homem pegou nas mãos de sua mais nova conquista e verificou que ambas encontravam-se mais geladas que o usual. Isso, somado ao olhar desviante e baixo de Reed, fizeram-no perguntar: - Está tudo bem? Ela prontamente balançou a cabeça, virando-se outra vez. - Vamos embora. Christine pegou a chave do local e esqueceu-se do presente de John, pois naquela hora já não tinha mais tanta importância. Antes de sair, agarrou o filme e colocou de volta dentro de onde surgira. Depois, guardou o envelope laranja na gaveta do balcão, olhando-o pensativa uma última vez. Fechou-a.

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V BRANCO

Havia um relógio em cima da mesa grande da sala de consultório do psicoterapeuta Giles Brown. Os ponteiros daquele objeto moviam-se lentamente cada vez que o dono os olhava, e bem baixinho ele podia escutar o som rítmico dos mesmos caminhando. Olhou-os um par de vezes, como se eles estivessem ali estrategicamente para irritá-lo. - Além disso, ele mantém a minha mente ocupada, o que é uma boa coisa. Mas às vezes penso como ele surgiu inesperadamente em minha vida e como em tão pouco tempo já gosto muito dele. A mulher deitada no divã continuava a falar, porém nenhum ouvinte estava presente. Ela deu uma rápida observada no homem sentado em uma cadeira logo ao lado (Giles estava sem óculos!), fitando aquele relógio, sem sentido algum. Ela queria atenção. - Giles! – gritou inesperadamente. Ele balançou-se no lugar, olhando-a enfim. - Você não está me escutando – reclamou ela. - Estou! Estou sim. Você estava dizendo que ele lhe faz manter-se ocupada e que agora está gostando muito dele. A mulher voltou a repousar. - Ótimo, agora concentre-se mais. O homem olhou para o rosto de sua paciente. Incrivelmente aquela face redonda havia ganhado ponteiros e alguns números. Ele estava alucinando. Para disfarçar, resolveu falar qualquer opinião babaca sobre o assunto. Não estava preparado para uma consulta. - Mas eu lhe sugeriria para não apegar-se tanto – a sua voz saiu calma e leve. - Você sabe que ele não é seu. Reed fitou-o mais uma vez, fazendo cara de interrogação. Para ele, os ponteiros na face dela logo sumiram. - De quem diabos você está falando, Giles? Ele encolheu-se.

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- Victor, o cão? – foi um tipo de pergunta retórica. Ela fechou os olhos, suspirando depois. - Recebi um novo envelope. Mais um filme. Aquilo fez chamar, enfim, a atenção dele. - E o que era dessa vez? - Não sei. Só irei revelar no final da noite, quando estiver sozinha no laboratório. Provavelmente irei me trancar, sofrerei demais caso mais algo intrigante aparecer, mas não pretendo envolver Becca nisso. Ela continuou: - Até pensei na hipótese de jogá-lo fora. Nessa hora, Brown olhou-a, querendo ver se ela estava falando a verdade. - Mas não. Não poderia. Estaria morta de curiosidade depois. Ele não falou nada. Já ela levantou-se, circulando pela sala. Os golfinhos de decoração também continuavam lá, no mesmo lugar, para cima e para baixo, insistentes como sempre. De costas para o seu amigo, Christine ficou parada olhando para a estante, apenas escutando aquele som novo que havia aparecido por ali. Não se tratava do relógio, e sim dos dedos de Giles batendo contra a mesa. Ela lançou um olhar por cima do ombro esquerdo, enxergando aquelas mãos trêmulas. A freqüência aumentava aos poucos, assim como o barulho. Aquilo a irritava e a preocupava ao mesmo tempo. Quando tornou-se impossível aguentar, ela correu e colocou a sua mão em cima da dele, fazendo-a parar. Ainda podia senti-la mexendo-se um pouco. - O que você tem? – perguntou. Giles levantou a mão livre, avisando que não era nada. Ele balançou um pouco a cabeça, girando-a depois, como se fizesse um número oito no ar. - Você está suando! Christine apalpou-lhe o braço, percebendo o suor. Nessa mesma hora, o homem balançou-se descontrolado na cadeira, e a mão voltou a bater contra a mesa tão fortemente que ela não pôde segurá-la. Os seus olhos reviraram-se, ela os viu. Gritou o nome do amigo várias vezes, tentando segurá-lo no lugar. Brown não a olhava, estava surtando. - Telmah! – ela gritou desesperada. Então ele parou. Subitamente o silêncio pairou. Não completamente, pois ainda havia o maldito relógio. Ele olhou para aqueles ponteiros desgraçados e disse apenas: - É melhor você ir. Ela sentou-se na poltrona, encarando-o. Estava assustada e perplexa. Mal conseguia retomar o ar. - Giles, o que foi isso? O que está acontecendo? – uma lágrima escorria pela face angelical. O homem ficou em silêncio, ainda fitando o relógio. Ela esperou mais um pouco, até que achasse conveniente chamá-lo novamente. - Giles... - Eu já mandei você sair! – ele gritou, quase atropelando as palavras que saíram com raiva de sua boca.

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Reed estava prestes a derramar mais lágrimas que não podia evitar, então para escondê-las apenas abaixou a cabeça. Agarrou a sua bolsa, que estava sobre o divã e pôs-se de pé. Fitou o amigo uma única vez, reparando que ele ainda não a olhava nos olhos. Deu alguns curtos passos até atingir a porta, abrindo-a. Conduzida pela trilha sonora dos ponteiros, deixou o lugar.

❈ Telmah acabou percebendo o jeito estranho com que Christine havia deixado o consultório. Ela correu pelo corredor daquele prédio, só parando para respirar quando chegou à rua em frente. Sentou em um banco ali e enfim permitiu que aquelas lágrimas escapassem. Era um misto de tudo que estava sendo liberado ao mesmo tempo. A única pergunta que lhe martelava a mente era a óbvia: O que havia acontecido com Giles? Nunca – nos três anos em que ela o tinha como psicoterapeuta – algo similar havia acontecido. E as imagens de seu amigo retorcendo-se naquela cadeira inundavam a sua cabeça sem piedade. Ela queria tê-lo ajudado, porém tudo aconteceu rápido demais. Brown não queria ajuda. De cabeça baixa para que qualquer pessoa que passasse por ali não a reparasse com algum olhar curioso, Christine notou que tudo estava acontecendo de novo. O medo corriqueiro, as imagens de cenas indesejáveis, coisas que ela não podia controlar. Aos poucos estava voltando para três anos antes, e nada lhe causava mais repulsa do que isso. Onde estava aquela história de que sempre há uma luz no fim do túnel? Ela a tinha visto, porém estava a perdendo novamente. Dando passos para trás, de volta à escuridão. O céu de Greenpack trazia pinceladas de cinza, branco e azul. As nuvens estavam carregadas, prontas para permitirem-se esvaziar a qualquer momento. Ali sentada, Reed percebeu o reflexo de algo luminoso que piscava insistentemente. Levantou a cabeça, observando a vitrine daquela loja. Um boneco de neve gigantesco estava do lado de fora, e no seu interior piscava uma luz amarelada. O seu nariz era feito de cenoura, os olhos de jujubas, e o sorriso era de bolinhas de chocolate. Nas mãos ele segurava uma cartola, como se estivesse convidando qualquer um para entrar naquele estabelecimento recheado de artigos natalinos. Grata pela luz piscante, ela aceitou o convite do boneco de neve.

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Os mais variados artigos estavam ali. Eram inimagináveis números de bonecos com roupas vermelhas e toucas. O natal era mágico naquela cidade, e Christine crescera acreditando que o velho que trazia presentes realmente existia. Bem, isso aconteceu até os treze (a mentira durou bastante), quando uma tia bêbada acabou deixando escapar que tudo se tratava de fantasia durante uma das festas. Ela lembrava-se de ter chorado a noite inteira, perguntando para todos os convidados se ainda ganharia os presentes que lhe haviam prometido. As prateleiras pareciam saltar aos seus olhos, estes tendo já enxugado as lágrimas. Era tudo perfeitamente decorado e estrategicamente distribuído para que atraísse qualquer consumidor interessado. Algumas luzes pisca-pisca também estavam presentes. Qualquer criança poderia enlouquecer ali dentro, cega por tanta magia. - A senhorita precisa de ajuda? – uma voz aparentemente familiar surgiu por detrás dela. Reed virou-se, olhando-o sem jeito, surpresa ao mesmo tempo. Demorou algum tempo para falar, porém as palavras enfim saíram (na verdade apenas uma): - Você! – ela o abraçou em seguida. John Gray estava parado em sua frente, com o mesmo sorriso branco de sempre. Ele estava vestindo uma camiseta pela primeira vez. Era branca. - Eu mesmo. Enquanto o olhava – os seus olhos brilhavam por alguma razão sempre que o viam -, ela procurou por algum assunto. - Então... O que você está fazendo por aqui? – ele perguntou antes. Christine na verdade não sabia. - Acho que... Bem, acho que eu não sei. Fiquei cega pelas luzes e pelo boneco na entrada, e aí resolvi dar uma olhada. Ele balançou a cabeça. - Hm, o natal está chegando. Já comprou a sua árvore? - Não estou com muito espírito esse ano. John surpreendeu-se, abrindo um pouco a boca e depois os braços. - Com tudo isso aqui – ele deu uma volta – você ainda não se contagiou? Realmente, você é feita de pedra, Christine. A mulher mordiscou o lábio e olhou para o chão. Gray percebeu que talvez pudesse ter falado algo errado. - Está com algum problema? – quis saber. Ela não falaria sobre nada para ele. Os envelopes ou a crise de Giles. Havia prometido a si mesma de que não envolveria mais ninguém naquela que era apenas a sua história. - É que... - Johnny, olhe como eu consigo voar alto! – foi o que gritou um garotinho de cabelos escuros e volumosos. Ele estava pendurado em uma escada apoiada na grande estante de artigos. Antes que pudesse falar qualquer coisa, Gray apenas teve tempo para abrir os braços e agarrar aquele meio metro de gente que lançara-se no ar, fingindo voar. Por

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sorte, o seu tio tinha forças o suficiente para segurá-lo. O coração dos espectadores – principalmente o de Christine – bateu com mais rapidez ao observar a cena. - Christine, esse é o Henry – ele falou ao respirar tranquilo. Ambos os homens em sua frente traziam os mesmos sorrisos estampados. O menor, por sua vez, sofria com um ataque de risadas provocado pelas cócegas que o outro lhe fazia pelo corpo. Ela os observou com felicidade. - Encantada – a mulher estendeu a mão. O pequeno a cumprimentou. - Você é a namorada de Johnny Sky? A avelã quis rir, enquanto o cara rico corou. - Johnny Sky? – perguntou ela antes que a situação piorasse. Henry encantou-se com uma gigantesca escultura do bom velhinho que estava em uma poltrona ali perto. Correu até ela, observando apenas, com medo de tocar. - É o filho do segundo casamento de meu pai. Ele pensa que não sou seu meio-irmão, e sim o seu tio. - Na verdade, acho que ele pensa que você é um super herói - C ainda queria rir. - Então quer dizer que Johnny Sky é o seu nome de luta? Você tem uma capa e um uniforme? Eu posso ver? Porque se você não tiver... – ela adorava deixá-lo mais envergonhado ainda. - Pare, ok? Não tenho coisa alguma. Ela fez cara de desapontada. - Então, o que você acha de mudarmos a sua auto-estima natalina? Qual é, mergulhe de cabeça nisso tudo, volte a ser criança. Vem! John Gray puxou-a pela mão, levando a mulher até um balcão. Uma vendedora simpática logo apareceu para atendê-los, mesmo a loja estando lotada. A ordem do cara era clara: Ele queria um de cada. De tudo que havia na loja. Compraram bolas de todas as cores, inúmeros enfeites coloridos, mais de cinco centenas de jogos de luzes, bonecos de Papai Noel que dançavam, pulavam, cantavam, sentavam, riam e balançavam. Era um lindo exagero. Olhando para o balcão cheio em sua frente, Christine fez a pergunta: - E onde você pretende colocar tudo isso? Espero que a sua casa seja um lugar relativamente grande... Ele olhou para ela com êxtase. - Não são para mim. - Ah. Henry vai adorar! John balançou a cabeça. Ela esperou, porém um tempo depois compreendeu. A única coisa que pôde fazer foi chamá-lo de louco. - Eu nunca aceitaria tudo isso! É demais! - Farei de tudo para você sentir o mesmo que sentia quando era criança. Tente se lembrar de como era bom ver a casa toda decorada quando ainda faltava mais de um mês para as festas de fim de ano. E a ansiedade pelos presentes debaixo da árvore? Aliás, não era a melhor das sensações chegar em casa e vê-la montada bem no meio da sala?

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Reed estava a recordar. - Você precisa se permitir – ele falou devagar. Ela não sabia o que dizer, porém o que pensava era suficientemente claro: Estava diante do melhor homem do mundo. A vendedora enfiada naquele terninho branco (as cores das vestes deveriam combinar com todos os itens da loja) estava animada por aquela grande venda. - Vão querer mais alguma coisa? – ela perguntou. Christine balançou a cabeça, porém John foi adiante. - Guirlandas! – estava entusiasmado. – Precisamos de guirlandas! Ela deu uma rápida olhada uma vez mais para o seu super herói.

❈ O carro de John parou no estacionamento paralelo à Avenida. As ruas estavam tomadas pelo gelo. Logo em frente, um grande local aberto com uma faixa estendida, anunciando árvores de natal em promoção. Os três entraram, olhando para aqueles pinheiros verdes de todos os tamanhos. Havia inúmeros. Os alto falantes colocados nos postes que cercavam a loja ao ar livre anunciavam as ofertas de última hora. Um homem, que mais parecia um lenhador (o que provavelmente era), aproximou-se: - E para essa família linda, o que vai ser? Aquele era o dia dos constrangimentos. - Não somos uma... – foi ela quem começou a correção. John a interrompeu. - Queremos uma árvore fresca e linda. Não muito alta, pois precisa passar pela porta. Ele passou a mão pelos cabelos de Henry, que estava no meio dos dois adultos. O baixinho, sufocado pela manta amarela em seu pescoço, sorriu. O possível lenhador assentiu e pediu para que o acompanhassem. Seguiram por um caminho de gelo e árvores, onde tudo continuava sendo mágico. Olharam vários modelos, mas acabaram interessando-se mesmo por um pinheiro natural de pouco mais de um metro e setenta. Christine ainda achava que ele nunca entraria em seu apartamento, porém o funcionário do local disse que os seus homens sempre davam um jeito para que qualquer consumidor conseguisse ter um final feliz. E isso incluía uma linda árvore em suas salas de estar, mesmo que cortada em duas. Ignorando a piada, Henry olhou para trás. O longo caminho de árvores parecia nunca terminar, e por ali não passava ninguém. Em silêncio, apenas tendo como pano de fundo o diálogo entre o seu tio super herói e a sua suposta nova namorada, ele não tirava o olhar fixo das árvores. Viu então um homem passar por ali. Trazia nas mãos um gigantesco mastro, repleto de algodão doce. Eram todos

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brancos, sem corante algum. Uma criança seguiu o homem, correndo com um dólar, pedindo para que o moço parasse. O pequeno de cabelos escuros quis o mesmo. Desviando o olhar para o seu tio, percebeu que ele nem notaria caso desse uma rápida escapada. Deu curtos e silenciosos passos para trás, olhando para os adultos. E então escapou. Além dele, duas ou três crianças formavam um círculo ao redor daquele vendedor de doces. Todas gritavam, esticando as suas pequenas mãos com notas verdinhas. Perdido dentre todas aquelas mini coisinhas, o homem pedia calma. Até aparecer um segundo adulto na situação. - Ei, crianças, quem quer algodão doce? – perguntou o cara de barba por fazer que havia surgido. Elas viraram-se para ele, gritando ‘eu’ em uníssono. - Dê dois para cada – pediu ele ao vendedor. Depois, pagou-lhe. Henry agarrou um palito com aquelas nuvens na ponta em cada mão. Estava estupefato. Quando os tirou da sua frente para enxergar o caminho de volta até o seu tio, percebeu aquelas pernas que o impediam de mover-se. Levantou a cabeça, olhando para aquele homem parado ali. O céu branco cegava-o um pouco, impedindo-o de ver o rosto do sujeito por completo. Ele deu um passo para o lado, tentando desvencilhar-se, porém o cara fez o mesmo, ainda obstruindo sua passagem. O pequeno voltou para o outro lado, mas aconteceu o mesmo. Então o homem abaixou-se, ficando na altura de Henry. - Você gostou? Ele fez que sim com a cabeça e depois sorriu. - Mas eu acho que vou ter de lhe pedir um favor em troca destes doces aí. - O que? – perguntou o inocente. O sujeito sorriu. - Sabe aquela moça que está com você? Quem ela é? Ele perguntou, porém sabia exatamente da resposta. A criança não demorou em responder. - É a nova namorada do meu tio Gray. Aquilo despertou um interesse imediato ainda maior do que o que já vinha acontecendo. - Gray, hm? – ele repetiu o que o pequeno dissera. Havia algo errado.

❈ - E qual é o preço? – verificou Christine. O lenhador olhou-a de cima abaixo, como se fosse fazer uma proposta melhor dependendo da cliente. Ela era uma moça bonita, merecia um valor baixo.

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- Duzentos, dona. - Duzentos?! – ela gritou. Depois, observando a exaltação, abaixou um pouco a voz. – Duzentos dólares por uma árvore? Posso comprar um machado por dez e cortar uma eu mesma. O vendedor suspirou, pois não era a primeira pessoa que dizia aquela mesma frase. - Ok, cento e cinquenta – melhorou. Ela sorriu. Após avisar que iriam levar, John observou o homem afastar-se, indo providenciar o pedido. Foi nesta hora que reparou – tarde demais – que alguém estava faltando. Olhou para baixo, e então para os lados. - Onde está Henry? Reed também olhou em volta, porém os dois unicamente viam o longo caminho de árvores sendo cobertas agora por pequenos grânulos de neve que caíam do céu. Não havia ninguém por perto, apenas a silhueta do homem grande que se afastava deles. - Precisamos encontrá-lo – falou John, começando a correr. Christine seguiu-o. O vento frio tocava-lhe o rosto, cortando-o, porém o homem não se importava. Não poderia perder de vista o seu ‘sobrinho’, caso contrário arranjaria grandes problemas com a sua madrasta. Quando o caminho rodeado de pinheiros chegou ao fim, olharam para a entrada do local, enxergando a avenida. Carros passavam com altas velocidades, em ambas as direções. Gray sentiu a presença do desespero alcançar-lhe. - Calma, ele deve estar... – ela tentava o tranquilizar – ali! Ele olhou para onde o dedo dela apontava, enxergando enfim o menino. Não pôde dar um suspiro de alívio, pois o garoto estava conversando com alguém desconhecido. John caminhou em direção a eles. O sujeito percebeu que se aproximavam, então era hora de dar o fora. - Obrigado, pequeno – sorriu outra vez. Pondo-se em pé, o cara riu por dentro, não acreditando na situação. Era muito bom para ser verdade. Henry abocanhou o seu algodão doce, dando de ombros. O homem misterioso caminhou perigosamente na mesma direção em que o tio da criança vinha. Quando cruzaram-se, ambos olharam-se nos olhos. Gray não o conhecia, porém o encarou com a pior das expressões. Christine pensou que aquele rosto lhe era familiar, mas não lembrou exatamente de onde. Preferiu ignorar. - Henry! O menino de boca suja de flocos doces olhou surpreso. - Tio Johnny! – falou com a boca cheia. - Quem era aquele homem? Ele voltou a dar de ombros. - Não sei, mas ele foi muito gentil. Deu-me dois algodões doces! John olhou para Christine, intrigado. Ela permaneceu séria, percebendo que ele não havia gostado nem um pouco da história toda.

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❈ - Onde está a chave? - perguntou o homem que segurava a sua bolsa. Christine não queria que John encontrasse absorventes e outros objetos de uso feminino ali. Contrariando a ideia de sua melhor amiga – a de que o parceiro só deve conhecer teus segredos após a terceira transa -, ela falou: - Há uma chave extra na boca do pinguim – apontou para a escultura do lado da porta. Ele pegou a chave reserva no animal feito de concreto e abriu a porta. Reed avisou que levaria o garoto adormecido em seus braços diretamente para o quarto. Enquanto isso, Gray daria algum jeito de fazer com que a árvore entrasse por ali. Christine olhava para aquela criança deitada em sua cama como se fosse um anjo em cima de uma nuvem. Teoricamente ela havia conseguido fazer com que Henry dormisse, e isso a deixava feliz. Se ela conseguia fazer uma criança de sete anos pegar no sono, provavelmente já estava pronta para ser... Mãe?! Ela negou com a cabeça, afastando o pensamento. Voltou até a sala, parando um pouco antes de ter a sua presença notada. John estava sentado ao lado da base do grande e novíssimo pinheiro que recheava vigorosamente o ambiente. Victor estava deitado sobre o tapete, com a cabeça entre as patas. Em cima dele repousava Pudim, e nessa hora eles já haviam tornado-se melhores amigos. Sobre o labrador, Sally Blue ainda não havia aparecido para buscá-lo, o que fazia a passeadora de cães pensar que a senhora estava preparando alguma coisa. Pensou ela que logo o seu nome poderia ir parar nos tribunais, então era melhor devolver o cachorro rápido. Mas gostava tanto de Victor... - Acho que ele dormiu pra valer – falou ela, aparecendo após refletir. - Uh, você é uma heroína – John falava em voz baixa. Ela sentou-se ao lado dele. - O super herói aqui é você, certo? John remexeu em uma das caixas com tantas coisas que haviam comprado, tirando uma delas para fora. - Ok, eu sou o super herói e você é a mamãe Noel mais linda deste mundo – falou enquanto colocou uma touca vermelha nela. Eles beijaram-se, sendo observados pelo gato e pelo cão. Passaram o resto de tarde ali, decorando aquele majestoso pinheiro. No fim, acenderam as luzes que piscaram em ritmo frenético. Victor latiu, provavelmente com medo daquele espetáculo mágico. Pudim pulou de suas costas, assustado, correndo para enfiar-se em algum canto que não o pudessem ver. John Gray abraçou a sua namorada-porém-ainda-sem-este-rótulo, e os dois ficaram ali por um tempo, apenas em silêncio. Era o bastante.

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E assim estava tudo perfeito. Por aquelas horas, Christine havia deixado a mente viajar tão longe que esquecera do próprio presente. Perto das seis da tarde, uma única imagem piscou em sua cabeça, e nada mais era do que um envelope cor de laranja. Ela tinha um filme para revelar.

❈ Henry ficou no banco de trás dormindo durante todo o trajeto até o laboratório. Christine despediu-se, dizendo que ligaria para John qualquer hora. Ele desejou que isso representasse qualquer momento que se sucedesse rapidamente. Um último beijo e ela deixou o carro, correndo até o Revelando Sorrisos. A porta fez barulho quando ela passou. - Você está atrasada – foram as primeiras palavras da pseudo-japonesa. - Eu sei, melhor chefe do mundo, eu sei. Perdoe-me, certo? Isso não irá mais acontecer. Agora você pode ir enquanto eu farei um ótimo trabalho. Tenha uma boa noite. Becca achou estranho o fato de Reed estar empurrando-a (literalmente) para a porta. Então virou-se, questionando: - Você está bem? Ah, qual é a minha, você nunca está bem. Você tem algum distúrbio, certo? Diga-me qual deles está pegando com mais força desta vez. A avelã já estava colocando o avental, apressada. Olhou para a melhor amiga, como se não tivesse tempo algum para perder com ela. - Sim, tenho muitos problemas. Vários filmes para revelar, fichas para catalogar, enfim. Você sabe. White estava olhando para fora. - Era John aquele ali? – perguntou e então voltou para o balcão da recepção, onde escorou-se, irritando novamente a outra. – Como vai a relação de vocês? Onde vocês estavam? Conte-me! Christine deu um grito alto. - Já te disseram que você faz muitas perguntas? B balançou a cabeça positivamente. - Talvez seja porque quero as respostas. A mais desesperada prendeu os cabelos enquanto decidia o que exatamente falar. - Era John sim. A relação vai bem. Estávamos em minha casa, montando a árvore de natal. Fim? Becca olhou-a, impressionada. A boca aberta passava a sua reação exata. - Sua Puma! A acusada revirou os olhos.

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- Quer dizer então que vocês já chegaram nessa fase? - Pelo amor de Deus, do que você está falando? Que fase? - Não se faça de boba virgem! – retrucou. - A fase de montar uma árvore de natal juntos! Qual é o próximo passo? Arranjar uma criança para vocês terem como filho? Porque eu sei que você nunca suportaria ficar gorda, nem que fosse para criar alguém aí dentro – ela apontou para a barriga. Reed riu, porém White não entendia. - Do que está rindo, sua louca? Já tomou seus remédios hoje? - Na verdade tinha uma criança lá. Eu até a coloquei para dormir. E Victor estava deitado com Pudim enquanto montávamos a árvore. Eu diria que foi uma ótima cena familiar – ela voltou a rir. A mão da ouvinte encontrou a mesa. Com a bolsa no ombro, ela afastou-se dali. - Ok, está certo, você venceu. Desisto, sua pequena mãe de família. Mas não pense que essa conversa acabou por aqui. Dirigiu-se até a saída. - Becca! A morena parou junto à porta. - Diga, Christine. Poxa, você não me deixa ir, hein. Precisa tanto de mim. Quanto amor! Ela ignorou a brincadeira. - O que Puma tem a ver comigo? – perguntou o que lhe deixara interessada e curiosa minutos antes. White riu, abrindo a porta. Antes de desaparecer, olhou para trás e explicou: - Pumas são rápidos – piscou. – E sempre conseguem o que querem.

❈ Ela estava ansiosa. E irritada. Becca não havia revelado o negativo, então estava em suas mãos fazê-lo para somente após ampliá-lo. Levaria a noite toda. Assim que a amiga deixou o lugar, ela correu e trancou a porta. Virou a placa, anunciando que o laboratório estava fechado. Ligou o rádio e começou a escutar o mesmo locutor, e enfim encarou a sala escura mais uma vez. Com o rolo de filme em mãos, ela estava pronta. Aqui o que você provavelmente ainda não sabe: Para o processo ocorrer, se faz necessária a inexistência de qualquer vestígio de luz. Inclusiva a de cor vermelha. Christine precisava posicionar-se em um local já pensado de antemão, onde deixaria em sua frente um carretel e um tanque. Sem enxergar nada, apenas usando o tato, ela retirava o filme do seu rolo. Com ele em mãos, segurava as extremidades e por método de tentativa (ela já estava craque) o encaixava no suporte de plástico.

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Enquanto o fazia, cantarolava nervosa os sons que ouvia invadirem o quarto escuro. Quando terminado, ela colocou o carretel em um tubo de plástico e o fechou. Suspirou aliviada, podendo enfim ligar a luz vermelha. O processo era praticamente o mesmo da ampliação de cada fotografia. Mais três líquidos, com diferentes tempos, e então a lavagem de uma dupla dezena de minutos do negativo. Ela o fez tentando não pensar muito, porém tornava-se inevitável. Tentou ler um trecho de seu livro enquanto a água corria sobre o filme, porém não obteve sucesso. Os personagens não lhe agradavam, nada era atrativo. Até o locutor do rádio já havia ido dormir, e nessa hora ela o desligou, pois já estava sozinha mesmo. Permaneceu em silêncio até que contou os cinco segundos finais para que retirasse o filme da lavagem. Entrou na sala, escutando o barulho da água, e desligou o registro. Puxou o carretel de onde estava, retirando-o. A sua impaciência a corroia mais do que nunca, porém ela prometeu a si mesma que esperaria o negativo secar. Deixou ali por algum tempo. Depois voltou, pegando-o entre os dedos. Ergueu-o, direcionando-o contra a luz. Tentou decifrar o que via, mas nada lhe parecia familiar. Estava muito pequeno e indecifrável. Mas continuava sendo – outra vez – apenas uma fotografia em todo o filme. Recortou o pedaço com imagem e levou-o até um dos ampliadores. Regulou-o, esperando um momento antes de ligar o botão. A imagem seria refletida no pedaço de papel logo abaixo, e então ela poderia ver. Fechou os olhos, segurando a respiração. Apertou. Foi tão fácil reconhecer aquele objeto familiar. Fazia muito tempo que ela não o via. Três anos, desde que o perdera. Era o seu pingente-enfeite de cavalo marinho, que costumava ‘decorar’ a antena de seu Fusca. Ele havia sumido desde o acidente que lhe torturava até o dia presente. E aquele pedaço de metal barato tinha tantas memórias... Passando o primeiro impacto, que foi o da saudade, ela ateve-se ao que realmente importava. Era o seu cavalo marinho. Estava com alguém. Certamente alguém que presenciara aquela noite e encontrara. E essa mesma pessoa estava jogando com ela. Christine perguntou-se se era isso mesmo que o fotógrafo misterioso desejava. Jogar com ela. Tomando por base o pedaço de papel ao lado do pingente na fotografia, em que estava escrito ‘Você Pode Guardar Um Segredo?’, ele queria sim.

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VI CIANO

Era como se lhe tivessem acertado o peito em cheio. Doía. O sangue pulsava com rapidez, e a adrenalina estava no alto. O seu olhar continuava fixo naquela imagem projetada pelo ampliador. Causava-lhe impacto mesmo após alguns minutos. Permaneceu ali parada, até que as mãos começassem a tremer. Quando não as conseguiu controlar, deslocou-se até uma das paredes vazias daquela sala. Encostou-se contra ela, olhando para o espaço em sua frente. Estava escuro, porém a luz avermelhada auxiliava um pouco. Reed estava com medo, respirava ofegante, e vigiava todos os seus lados. Poderia haver alguém ali. Alguém que a atacaria rapidamente e a mataria. Seria tão fácil. Mas não havia ninguém. Ela estava ficando paranoica. Tudo por causa de três únicas fotos que desenterravam o passado de qual ela não se orgulhava. Porém o fundo de sua mente lhe gritava que ela não tinha tido culpa em nada. Era bobagem preocupar-se. Tantas pessoas cometem pecados e continuam com as suas vidas como se nada lhes tivesse acontecido. Mas lá no fundo elas sabem o que fizeram, e um dia ainda serão punidas. Era o que ela pensava. Quando conseguiu uma rápida tentativa de raciocínio, ela imaginou o que faria. Qual seria a primeira coisa a se fazer naquele caso? Ela não poderia ligar para a polícia. Seria patético demais dizer que alguém estava mandando algumas fotos apenas para brincar com ela. Perguntariam quais eram os motivos para ela receber aquilo, e... Ela teria que acabar contando tudo mesmo. Renderia-se. Ainda estava temerosa para com a escuridão, porém sabia que não poderia passar a noite ali. Aos poucos ela fez o que precisava para deixar a sala, apagando por fim as luzes vermelhas. Agarrou os seus pertences que haviam ficado detrás do balcão da entrada e correu para a porta frontal, trancando-a enfim. A rua estava costumeiramente silenciosa e vazia. Era tarde da noite, e a única respiração a se escutar era a dela. Continuava um pouco ofegante, porém ela tentava a todo minuto acalmar-se. Sem sucesso. Entrou no Fusca, trancando a porta em seguida. Christine olhou para frente estática, como se esperasse alguém que surgiria por trás para atacá-la. Tremeu um

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pouco devido ao frio, e então colocou a chave do carro na ignição. Foi quando um corvo que estava por ali perto crocitou. Ela assustou-se, agarrando as mãos no volante ao prender a respiração. As lágrimas que haviam deixado os seus olhos acinzentados rolaram lentas pelo rosto pálido. Não sabia como dirigiria até em casa, mas ligou o motor. O caminho foi curto e silencioso. A não ser pelo choro dela. Por que aquilo tudo tinha de ser desenterrado? Ela passara três anos refletindo sobre, criando hipóteses tão variadas em que ela era e não era a culpada ao mesmo tempo. E, quando finalmente conseguia parar de pensar, apenas deixava as memórias se afastarem por conta própria. Mas agora alguém havia jogado aquilo tudo de volta para ela, e em um momento tão qualquer que ela estava totalmente desprevenida. Não tinha como segurar aqueles problemas outra vez. Christine correu o mais rápido que pôde para atingir a porta do apartamento. Achou mais oportuno pegar a chave reserva na boca do pinguim de concreto ao lado da entrada, porém não encontrou a mesma. Revirou a bolsa, procurando o seu molho de chaves e depois de alguns segundos entrou. O pequeno apartamento estava quieto e escuro. Ela logo tratou de ligar todas as luzes possíveis, até mesmo a do banheiro. Olhou para o relógio, pensando no que fazer. Era tarde, e a promessa de que não incomodaria ninguém com seus problemas tomou-lhe conta. Giles e Becca deveriam ficar fora disso. Pelo menos pelo maior pedaço de tempo que ela aguentasse. Pudim estava dormindo em sua pequena cama almofadada. Victor estava em algum canto da área de serviço. Reed, por sua vez, estava realmente sozinha. Foi até o quarto, trancando a porta em seguida. Estava um pouco mais calma, porém o estado de choque não havia passado. Analisou a proposta de jogar-se na cama, mas aquilo foi logo rejeitado. Preferiu sentar-se no chão, aonde encolheu-se como uma criança, juntando os braços perto do corpo. Estava segura ali.

❈ Um pouco de claridade penetrou pelas frestas da janela do quarto, anunciando que a manhã havia chegado. Ela estava ainda ali, encolhida em um canto, de olhos abertos. Não os fechara por nenhum segundo, e temera até mesmo quando uma simples piscadela sucedeu-se. Passara a noite devaneando sobre coisas que ela fazia questão de esconder, porém no momento eram impossíveis de se evitar. De um jeito ou outro, estava sendo masoquista consigo mesma. Apoiou a palma de uma das mãos no chão gelado e forçou-se para levantar. Conseguiu permanecer em pé, forçando um pouco aqueles olhos vermelhos e petrificados. Os seus passos foram curtos e silenciosos, arrastados até a porta. Agarrou

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o molho de chaves e saiu, olhando para os dois lados do corredor estreito do edifício em que morava. Preferiu ir andando, pois receou em não conseguir dirigir até o local desejado, e esse era mais um medo presente. Pelas ruas então ela caminhou devagar, não reparando em qualquer pessoa que passasse ao seu lado. Estava muda, porém mil palavras desejavam sair por sua boca. Palavras de desespero. Somente vinte e nove minutos mais tarde ela chegou ao mesmo velho e cansativo local de sempre. Subiu os mesmos degraus, encarou a mesma porta. Ao tentar empurrá-la, porém, notou que estava trancada. - Ele não fará consultas hoje. Está na cidade vizinha em um congresso. Christine virou-se, encarando a recepcionista negra. Não falou uma palavra qualquer, fitando-a apenas. - Você precisa falar com ele? – perguntou a mulher que havia aparecido apenas para resgatar alguns documentos. Reed a ignorou. Voltou a andar pelo mesmo corredor, deixando Telmah para trás. - Christine? – tentou a outra uma última vez. A mulher de cabelos não lavados e boca seca continuou andando, de costas para a negra. Abriu a porta que dava acesso às escadas e desapareceu. De volta à rua, ela correu. O máximo que conseguiu, ignorando qualquer dor muscular inútil que aparecia. Ignorou semáforos e veículos, pedestres e obstáculos. Em pouco menos de meia dúzia de minutos ela estava no cais de Greenpack. O mesmo encontrava-se vazio, com barcos de pequeno e médio porte que estavam atracados no mar calmo. Ela caminhou até um dos extremos, sentando-se, deixando os pés balançarem. Abaixo de si, a água de cor ciano recebeu mais algumas gotas. Eram as lágrimas de uma moça apelidada de avelã que enfim rendia-se.

❈ Aos cinco anos ela era apenas uma garotinha com tantas dúvidas. Queria saber por que o mar era tão grande e salgado, e também descobrir o motivo pelo qual todos aqueles barcos conseguiam flutuar. Ela vivia cercada deles, então era impossível não admirar-se com aquele tipo de mágica. O seu pai era um homem de idade, tendo já passado dos cinquenta quando ela nascera. Barbudo e cheio de cabelos encaracoladamente esbranquiçados, sendo essa a razão para ela chamá-lo de Noel. Vivia no mar, aonde arrecadava dinheiro com a pesca de peixes sem muito valor, mas que eram a renda quase absoluta da família. A mãe ficava em casa, enfrentando os problemas de saúde, costurando pequenas peças uma vez ou outra para que viessem mais alguns trocados.

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E ela o amava tanto. Christine passava no cais todos os dias após a escola, correndo com a sua mochila nas costas até enxergar aquele velho homem que prontamente deixava de lado o que estava fazendo para que pudesse pegá-la no colo. O cheiro forte de peixe morto não a incomodava.

Noel a levava até a lanchonete ali perto para que ela almoçasse (batatas fritas e ketchup, um segredo escondido muito bem da mãe), e depois os dois faziam um curto passeio com o barco. Este que se chamava Saint Joanne. A pequena de cabelos castanhos passava todos os dias a procurar pela embarcação a tal moça do nome-título, porém nunca a encontrava. O seu pai ria de sua ingenuidade. Já em alto mar, ambos cantavam aquela música escrita pelo homem, de ritmo melancólico:

“I see you going Joanne But where are you when it rains? Untill the end of the day I gotta have you again Joanne I can’t understand Why can’t you be here instead”

“Eu vejo você ir, Joanne Mas onde você está quando chove? Até o final do dia Eu preciso tê-la novamente Joanne eu não consigo entender Porque você não pode ficar aqui”

Quando completou sete anos, ele lhe dera um pingente de cavalo marinho como presente de aniversário. Usara-o durante muito tempo como acessório da mochila que levava para a escola (tentava causar inveja com o objeto reluzente), e depois de colocá-lo em seu chaveiro, passou a usá-lo como decoração para a antena de seu Fusca. Era um pingente cheio de simbolismo e para sempre memorável. Sete anos depois, aos catorze, veio a trágica notícia de que o pequeno barco naufragara. Dois marinheiros sobreviveram, sendo que os outros dois – o querido Noel e o seu fiel companheiro Willie – morreram, lutando até o fim para que pudessem retomar o controle do barco durante aquela tormenta. Quando Christine soube que seu pai havia partido, a pergunta que instalou-se foi aquela mesma: ‘E agora?’. Com o seu velho pai tendo ido, o que seria dela e da mãe? De onde arranjariam dinheiro para sobreviver? Os moradores locais ajudaram as duas o máximo que puderam. Foram três anos mais que a senhora Reed aguentou, o suficiente para que a filha já estivesse madura para levar a vida sozinha. Ela partiu devido às várias doenças que a consumia, e como presente deixara a casa para Avelã. Ela a vendeu, passando a morar com uma amiga, procurando um emprego logo depois. Foram dias difíceis e chorosos, porém Christine já estava acostumada. A dor havia precisado se acomodar.

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❈ Quando a noite caiu ela resolveu enfrentar o medo. Estava ciente de que seria uma tarefa difícil, mas estava pronta para tentar. O impacto e o desespero haviam aquietado-se, e aquela era a hora de ir atrás. Procurar quem estava fazendo aquilo. Christine não sabia exatamente como, porém daria um jeito. Becca havia saído mais cedo do laboratório, então as duas não se viram naquele dia. Eram nove da noite, e lá estava ela sozinha como sempre. Dois clientes haviam aparecido, e tudo já havia sido feito. Era o tempo de permanecer quieta, escutando as músicas do rádio sem locutor. O fez até as dez, quando se cansou de hibernar e decidiu mover-se. Pegou o primeiro papel que viu em frente e começou a rabiscá-lo. Os seus desenhos eram infantis e descoordenados. Horríveis. Continuaram enfeitando o papel até que a caneta parou de funcionar. Ela a sacudiu, porém sem sorte. Vasculhou então algumas gavetas à procura de uma nova. Enquanto o fazia, o telefone tocou. - Revelando Sorrisos Laboratório Fotográfico, boa noite - seguiu o ritual. - Gostaria de saber se minhas fotografias já estão prontas. A voz era grossa e normal. Masculina. - Você tem o código do pedido? Avelã adiantou-se, e enquanto perguntava entrou no sistema. - Não tenho. - Então vou precisar do seu nome completo para localizar o pedido. Ela mudou de tela, passando para uma de busca. - Não creio que você encontrará desse jeito – veio uma pausa. - É mais fácil procurar por um envelope laranja sem nome. A tensão esmagou o seu corpo como se a chocassem contra a parede. A mão que segurava o telefone suou de prontidão, e o seu olhar – antes no nada – encontrou um ponto fixo. - Christine? – o cliente a chamou. Ela abaixou o aparelho, olhando para os dois lados. Não havia nada ali perto. O seu medo era sempre esse: que estivessem observando-a. Quando o levou de volta à orelha, a linha estava muda. De ímpeto saltou da cadeira, correndo para a porta da frente, trancando-a. Olhou para a rua vazia, procurando por qualquer pessoa que passasse por ali perto. Chamaria a polícia ao perceber qualquer movimento, pois aquela não seria a noite de sua morte. Ligou para quem poderia ajudá-la, mas não atenderam. Ela esperou, sofrendo pelo fato de o pânico estar de volta.

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Giles desligou o telefone prometendo para Telmah que ligaria urgentemente para Christine. A sua funcionária estava desesperada atrás dele durante horas, porém o psicoterapeuta havia passado o dia todo naquele confortável e necessário sono profundo que o aliviara de muitos pensamentos incoerentes. Na verdade ele não havia ido a congresso algum. Degustando aquele prato de Penne ao Funghi, onde saboreava cada mastigada, ele olhou para o telefone. Havia muitas chamadas perdidas. Isso era estranho, pois ele mesmo não se considerava alguém de interesse para outras pessoas. Mas havia alguém atrás dele. Sempre havia. Discou alguns números que já estavam decorados na mente e após poucos toques aquela voz fraca apareceu: - Onde você estava? – ela perguntou. - Do que você precisa, Christine? - Precisamos conversar – uma pausa – o quanto antes. Ele remexeu na massa com o garfo de prata. - Diga. - Não – ela interveio logo. – Pessoalmente. O talher encontrou o prato, fazendo um barulho desagradável. - Você sabe o caminho. Ele desligou, colocando o telefone de volta na base. Deixou o prato ali mesmo, sentando-se no sofá de couro depois. Esperou quinze minutos para que batessem em sua porta. Abriu-a, reparando na expressão cansada, chorosa e amedrontada de Reed. - Alguém sabe – ela avisou, sendo estas as suas primeiras palavras. - Sobre o que você está falando? Ela não moveu-se, apenas esperou junto à entrada, no frio daquela noite. - Alguém sabe, Giles – repetiu. – Sabem que sou uma assassina.

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VII VERMELHO OUTRA VEZ

Instantaneamente Giles voltou ao dia catorze de março, três anos antes. Estava quieto em sua sala, à espera do próximo paciente. Telmah irrompeu pela porta, avisando que uma mulher um tanto quanto louca havia aparecido desesperada, alegando que precisava urgentemente conversar com o tal psicoterapeuta. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ou até mesmo arrancar o telefone do gancho para chamar a polícia, a nova paciente já havia adentrado a sala sem mesmo ser chamada. E lá estava Christine Reed, com seus vinte e quatro anos nas costas, somados a uma nova catástrofe que acabara de acontecer. - Você pode guardar um segredo? – foi o que ela perguntou por primeiro, olhando estática para os olhos daquele homem que ela nunca antes havia visto. Giles Brown percebeu que ela precisava desesperadamente de ajuda. Não soube de imediato porque ele havia sido o escolhido, porém costumava acreditar bastante naquela bobagem toda de destino. - Telmah, pode nos deixar a sós, por favor – a sua voz era pacífica. A recepcionista não sabia se estava pronta para deixar o patrão ali sozinho. Pensou que a mulher nova podia estar escondendo uma faca por debaixo daquela roupa toda. Foi necessário um olhar lateral do psico para que ela deixasse o lugar. Quando os dois futuros amigos enfim encontraram-se sós, ela confessou: - Na noite passada eu matei alguém.

❈ - Você não é uma assassina – ele falou parado na porta. – Já faz três anos que conversamos sobre isso.

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Ele deu passagem para que ela entrasse. Christine logo jogou-se no sofá, enquanto ele foi até a cozinha preparar mais chá. Para ela, quatro colheres cheias de açúcar e apenas água morna. Ela nem iria notar. - Que seja, esse não é o grande problema agora. O fato é que alguém sabe. Alguém estava lá, alguém viu o que eu fiz. - De novo aquelas fotos? - Sim. Ele despejou a água fervendo em uma xícara de porcelana preta. - Mas porque esperar três anos para vir atrás? Se alguma testemunha quisesse desenterrar a história, podia ter feito isso antes. Reed balançava a cabeça para os dois lados, pois sabia que havia alguma parte errada naquela história. Algo não se encaixava, e ela não sabia o que. Giles entregou-lhe o líquido calmante. Ela bebericou, queimando a língua. - A não ser que... – ele tentou uma nova hipótese, porém não concluiu. Ela olhou curiosa para o homem de óculos. Queria saber o que ele estava pensando. - A não ser...? - Deixa pra lá. Brown sentou-se ao seu lado. - Giles, fale agora. Você sabe que odeio quando fazem esse tipo de coisa! Assentiu. - A não ser que quem quer que você tenha... “matado”... Não esteja morto. Quer dizer, ele ou ela pode ter sobrevivido. Christine engoliu em seco. Em todos os anos após o ocorrido, ainda não havia pensado nessa possibilidade. E ela era real. - Se algo além das fotos acontecer, você sabe o que terá de fazer. Ela sabia que aquilo significava correr para a polícia e contar toda a verdade.

❈ John Gray estava passando pela rua, planejando subir até o apartamento de Christine. Não a via há algum tempo, e queria saber por que ela não retornava as suas ligações. O primeiro – e mais óbvio – pensamento que tivera era o de que ela havia cansado. Dele e de toda aquela história de começo de relacionamento. Então ele decidiu se apressar. Comprou um anel prateado, originalmente discreto. Trazia-o no bolso, e a sua intenção era a de colocá-lo no dedo da moça que ele havia se apegado tão rapidamente. Talvez ela se assustasse com a rapidez, porém na cabeça dele era isso mesmo que ela queria. Dar um passo a frente. A poucos passos do edifício dela, ele parou em uma padaria. Iria fazer mais uma de suas surpresas gastronômicas para a amada. Entrou no local pedindo meia

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dúzia daqueles croissaints banhados de chocolate em cada ponta. Um bolo de laranja e café forte para a viagem. Ela com certeza se alegraria. Enquanto esperava o pedido, o homem de costas para a entrada do estabelecimento não viu quem entrara. Era Avelã, com uma cesta de compras nas mãos. Pretendia comprar pouco pão integral e levar um suco para a viagem. Nada mais do que o básico. Porém, quando ela viu a pessoa parada junto ao balcão de atendimento, deu meia volta. Escondendo-se na frente de uma das prateleiras refrigeradas, ela pensou no que faria. Havia tempo para escapar, e era essa mesma a sua decisão. Mas por quanto tempo fugiria de John? Provavelmente até aquela história nova e complicada se acalmar. Ele era um bom cara, e por isso mesmo não merecia ser envolvido naquilo. - Moça, será que eu posso... Ela olhou para uma adolescente parada ao seu lado que tentava alcançar algum produto dos refrigeradores. Christine foi obrigada a mover-se para o lado, dando acesso. Não mais camuflada, pensou um pouco, e então fitou a porta de saída. Podia facilmente alcançá-la. Largou o cesto por algum lugar ali perto, e dirigiu-se até ela. - Christine! – ele a vira. A mulher mordeu os lábios, odiando-se. - John? – pareceu surpresa. Os dois abraçaram-se. Enquanto isso, uma das atendentes da panificadora aproximou-se. - Desculpe-me, mas o senhor irá comer aqui ou levar tudo? Ele pensou na ideia anterior, mudando-a. - Vamos comer aqui – sorriu. - Vamos? – questionou Reed. - É, venha. Foram até uma das mesinhas que ficavam no canto do local com vista para a rua logo em frente. Após alguns minutos de conversa corriqueira sobre as últimas novidades, aqueles vários petiscos foram servidos. - Você é louco – apontou ela. - Acho que se você não gostasse de loucos já teria fugido. Você poderia apenas correr de mim quando me visse. Por dentro ela quis rir. - É... Talvez eu fizesse isso mesmo. Ele observou o silencio vindo dela. - Aconteceu alguma coisa? – perguntou. - Não – balançou rapidamente a cabeça. – Está tudo certo. Exatamente como sempre foi. E com você? Como vai a família? E o trabalho? E todo o resto? Ande, me conte, quero saber. Fitando-a com medo, Gray respondeu as suas perguntas sabendo que Reed não estava no melhor de seus dias. Mais tarde, ele pediu licença e levantou-se para ir até o caixa e pagar a conta. Deixou por cima da mesa já limpa o seu casaco. Avelã permaneceu sentada, primeiro olhando para os carros que passavam na rua, e depois para o que estava em sua frente. Algo brilhava dentro do bolso entreaberto do casaco

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de John. O que diabos era aquilo? Tentou suportar a curiosidade, porém foi derrotada. Olhou primeiro para o caixa, percebendo que tinha tempo, e então a sua mão deslizou para agarrar o pequeno objeto. Ao dar-se conta de que se tratava de um anel, o seu corpo congelou. Os croissaints no estômago deram sinal de vida. Não o bastante, ela leu o nome contido dentro da esfera. Christine. O homem voltou para a mesa guardando a sua carteira no bolso da calça, trazendo aquele sorriso costumeiro na face. O mesmo desapareceu quando ele não encontrou na mesa aquela que seria a sua futura namorada.

❈ Christine estava entretida lendo ‘Uma cama junto à janela’, um romance policial desenrolado dentro de um asilo, obra de M. Scott Peck. A página cento e dezessete estava interessante demais para que ela logo se desse conta de que alguém havia entrado no laboratório fotográfico. Era fim de tarde, e lá fora o sol se punha devagar e timidamente. - Moça... – a voz fez com que ela finalmente tirasse a atenção unicamente do livro. Reed olhou para frente, depois para os lados. Não havia ninguém ali, o que era estranho. Ela havia escutado a voz sem dúvida. - Moça! – voltaram a chamá-la. A mulher inclinou-se um pouco sobre o balcão que estava e olhou para baixo. Um pequeno garotinho estava escondido atrás do mesmo, sorrindo. - Ah, oi! – ela estava a ponto de rir. – Como posso ajudá-lo? O menino retirou do bolso de sua calça esfarrapada um pedaço de papel, entregando para ela. - Vim buscar umas fotografias. Esse aí é o endereço. Christine abriu o bilhete, lendo-o. Dizia que as fotos haviam sido entregues em um envelope laranja, e abaixo continha o endereço daquele edifício de andares inexistentes. Ela gelou, pois o seu fotógrafo misterioso estava de volta. Ele queria as suas fotos. E, mais do que isso, assustá-la. Mas quem era aquele garoto? - Essas fotos são suas? – ela perguntou, confusa. Ele prontamente balançou a cabeça. Reed contornou o balcão principal, aproximando-se dele. Abaixou-se, ficando na mesma altura. - Não, não pode ser. De quem são essas fotografias? Por favor, é muito importante, me diga! Os olhos claros do pequeno fitaram-na com pena. - Um moço alto me pediu para vir buscar. Ele me deu cinco dólares – mostrou a nota. - Ele está aqui, certo? Ele está por perto.

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Ela levantou-se, agitada e animada ao mesmo tempo. Encontrá-lo-ia de qualquer jeito. - Você precisa me ajudar, ok? Pode fazer isso por mim? – ela já veio preparada, entregando para o menino uma nota de dez dólares. - É claro, dona – ele animou-se rapidamente. C puxou o pequeno pela mão, levando-o até a porta. Do lado de fora, permaneceram parados. Ele iria encontrar o homem que havia feito o pedido, e no fim os seus novos dez dólares seriam convertidos em muitos doces. Aquela mulher era um anjo. - Foi aquele lá! – apontou ele. Ela rapidamente olhou para a direção apontada. Um homem alto de costas estava escorado em um muro. Na cabeça, um boné vermelho. Christine correu pela rua que se encontrava vazia, ignorando os carros que apareceram depois. Ela o via, e ele não se movia de lugar. Alcançá-lo-ia na certa. Os seus olhos não desgrudavam do sujeito, e Reed já pensava em como abordá-lo. Agarrá-lo para evitar uma fuga seria exagerado demais? Provavelmente. O homem olhou para trás rápido, percebendo que o seu plano havia falhado. Não podia ser descoberto, então pôs-se a caminhar. Mirou apenas a calçada, protegendo-se assim de qualquer olhar. Ela não podia vê-lo. Caminhou com passos rápidos, pois sabia que a baixinha atrás de si não o alcançaria assim. Na primeira das esquinas, ele dobrou. Avelã foi atrás, porém perdeu-o de vista. A rua em questão estava cheia porque uma feira natalina acontecia. O mar de pessoas que circulava por ali tornava a busca impossível. Era mais uma batalha perdida. E Christine estava farta daquilo.

❈ Após o expediente, tarde da noite, o Fusca parou atrás daquele carro de polícia com as luzes vermelhas e azuis ligadas. Não havia ninguém dentro, porém estava estacionado em frente ao prédio de Christine. Em consequência, um desconfortável arrepio percorreu o seu corpo, e ela desejou que aquele veículo não tivesse a ver consigo mesma. Deixou o automóvel levando a bolsa e um casaco nas mãos. Não sabia por que não o tinha vestido, pois a noite estava gelada o bastante. Talvez estivesse preocupada demais com o que quer que estivesse acontecendo do lado de dentro. Chamou o elevador, porém o mesmo encontrava-se no último andar, então ela tomou as escadas. Subiu depressa, dois degraus por vez, parando na última leva antes de chegar ao seu destino. Parada ali, pôde ouvir o que pareciam ser dois policiais conversando. Tentou decifrar o bate papo, mas estava longe demais para isso. Apenas uma palavra pôde distinguir: Christine.

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Então aquele era o seu fim? Eles a levariam para uma sala imunda e escura para perguntar o que havia acontecido naquela noite e por qual motivo ela encobrira tudo até então. Reed não teria saída, a não ser contar a verdade, que dificilmente seria acreditada. Acabaria presa para o resto da vida, condenada por ter assassinado alguém e mentido até então. Foi nessa hora que a teoria de Giles se confirmou. Se ela realmente havia matado alguém, para onde tinha ido o corpo? Ele não poderia desaparecer. A vítima estava viva. Pensando no pior dos piores casos, ela preferiu se entregar de uma vez. - Tudo bem, admito, fui eu! – ela jogou-se na frente dos policiais, esticando os pulsos. – Podem me prender e tudo mais. Os oficiais voltaram-se um para o outro, rindo. - Não é assim que funciona, dona – avisou um deles. – Você deve ser Christine Reed. Ela o encarou. Ele tinha barba por fazer e era muito bonito para ser um... Bem, um policial. - Sim, sou eu. E como é? Eu devo entrar e pegar as minhas coisas? Fazer uma malinha para levar para o presídio? Olha, antes que você diga que eu devo ficar calada porque tudo será usado contra mim no tribunal, quero deixar claro que eu não fiz por mal, ok? O policial com menos beleza foi quem falou: - Ela morreu e você se beneficiou com isso. Avelã podia sentir as suas mãos tremendo involuntariamente. - Ela? Ai meu Deus... - Sim, ela se foi... - Mas, convenhamos, já estava com uma idade avançada – disse o outro. Christine remoia-se. Começou a chorar. - Desculpem, eu... - Calma, dona. É só um cachorro. Sabemos que você não fez nada por mal. Ela confundiu-se. Parou de soluçar. - Cach... – lembrou-se então de Victor. – Sabem? - Sim – um deles se aproximou. – Sally Blue deixou tudo claro antes de morrer. A vizinhança costumava chamá-la de velha chata, porém parece que ela gostava muito de você, dona. Em sua carta de despedida ela deixou todos os seus bens para a senhorita. Isso inclui um tal de Victor que já está com você. Ela não podia acreditar. Primeiro por Sally ter falecido. Segundo por ter deixado tudo que era seu para ela. A mulher sempre pensara que Blue a detestava. - Carta de despedida? – ela realçou uma das partes do que o policial dissera. O homem afirmou. - É, parece que ela sabia que estava para deixar o mundo. Escreveu tudo antes de partir. - Eu não posso acreditar... Eu... Então vocês não vão me prender? – depois de perguntar, percebeu que aquilo estava soando ridículo. – Quer dizer, por ter quase

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roubado o cachorro dela, e não por alguma outra coisa, obviamente. Sou da paz – sorriu sabendo que tinha piorado ainda mais. O oficial que lhe chamara a atenção retirou o chapéu da cabeça. - Se Sally deixou o tal do Victor para você, quer dizer que você não fez nada de errado. - Passamos aqui para dar a notícia. Desculpe-nos por aparecer tão tarde, mas passamos mais cedo e um de seus vizinhos avisou que você só chegava a essa hora. Não queríamos incomodar. Ela gesticulou. - Não tem importância. Vocês trouxeram ótimas notícias. Pairou o silêncio. - Eu digo... Todo o fato de Sally ter pensado em mim antes de morrer e não a sua morte em si, mas vocês entenderam. Café? Os dois se olharam. - Uma outra hora. Já está tarde, a deixaremos descansar. Em breve você terá a chave do apartamento da falecida. Alguém passará para cuidar da papelada toda. Christine balançou a cabeça. - Obrigada, senhores policiais. Tenham uma boa noite. Procurou a chave no pinguim de concreto ao lado da porta e pela segunda vez não a encontrou. Usou a que trazia em sua bolsa, entrando enfim em casa. Deslizou por sobre o sofá, sendo observada por Victor e Pudim, que esperavam pacientes por carinho. Olhando para o canino ela falou: - Deus abençoe a sua dona!

❈ Becca tinha festões de natal envoltos no pescoço e laços vermelhos presos às orelhas. Enquanto tentava atrapalhadamente decorar o Revelando Sorrisos, a sua parceira estava perdida em pensamentos, longe dali. - Estou grávida – disse a pseudo-japonesa. Christine continuou escorando a cabeça com o auxílio de seu punho fechado. Olhava para o nada, pensativa até demais. - Eu disse que estou grávida. Nenhuma reação. A mulher de cabelos negros largou o que estava fazendo (a sua decoração estava horrível) e encaminhou-se até o balcão principal. Retirou de uma caixa antiga um jogo de luzes natalinas e ligou-as na tomada. Esperou alguns minutos, e então encostou as mesmas no braço despido (as mangas estavam arregaçadas) de sua amiga. Demorou algum tempo para que ela percebesse a presença das luzes quentes. - Ai! – reclamou da dor.

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- Em que mundo você está, C? Reed sentou-se em um banco alto, olhando para o braço sem nenhum ferimento que ardia. - Você disse alguma coisa? – ela perguntou. A outra já havia voltado a enfeitar a vitrine. - Falei que estou grávida – repetiu pela terceira vez. Como se fosse a primeira, Christine deu um salto e correu até a outra mulher. Encarou-a com aqueles olhos duvidosos, porém cheios de expectativas. - Ai. Meu. Deus – falou devagar. – Quem é o pai? Como isso aconteceu? Por que você não evitou? E agora? Você vai fechar a loja? E eu? White balançou a cabeça para os dois lados em negação. - É bom saber qual seria a sua reação caso eu estivesse mesmo grávida. Mas não, não me descuidei com ninguém. Ainda. Nenhum dos caras era rico o bastante – brincou. Avelã irritou-se. - Eu acreditei. - Precisei falar três vezes que estava grávida para resgatar você da outra dimensão onde estava. Anda, me diga, o que está acontecendo? O silêncio que se seguiu serviu como resposta. - Ok, sei que não quer dizer. Quer saber? Acho que você está precisando trabalhar um pouco. Por que está aí parada mesmo? Há filmes para revelar. O seu maior desejo era pedir para trocar de papéis com Becca. Gostaria de não ter que nunca mais entrar naquela sala escura para revelar qualquer outro filme. Preferia continuar no claro para sempre, aonde ainda conseguia sentir-se um pouco segura. Ela apenas assentiu, indo depois em direção à pequena saleta. - Espere – pediu a amiga. A japonesa correu até o balcão uma outra vez, onde abriu uma das gavetas. Retirou de lá algo familiar para a outra. Quando esticou o braço, entregando-o, de prontidão a mulher em pé parecia evitar. - Chegou hoje. Deixaram na porta esta manhã. Revele-o junto com os outros, certo? Demorou um pouco para que ela concordasse, porém por fim Reed agarrou mais um daqueles envelopes alaranjados.

❈ Aquele seria o último. Ela prometeu a si mesma. Não abriria mais envelopes alaranjados, apenas daria um jeito de reverter a situação. Quer isso fosse correr até a

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polícia e contar tudo o que havia acontecido (a ideia de ser presa não lhe parecia mais tão ruim assim), ou trocaria de cidade. De país. De nome. Dessa vez ela não permitiu que as lágrimas aparecessem. Sentia nervosismo para saber qual imagem veria desta vez, pois a mensagem principal já havia sido passada. Alguém sabia. E agora ela deveria apenas observar onde aquela pessoa queria chegar. Respirou como se fosse a última tomada de fôlego de sua vida, e então pousou o dedo sobre o interruptor que ligaria a luz do ampliador para enfim ver a nova imagem. Um som estranho seguiu o momento, e então até mesmo as luzes vermelhas apagaram-se. Era o som de blecaute. Agora a escuridão estava completa, e ela parecia acompanhar Avelã nas horas mais tensas. - Becca? – chamou instintivamente. Tateou o que pôde, tentando encontrar a porta de saída. Perdida no escuro, ela escutou quando algo metálico caiu no chão e rolou. Mas ela não havia esbarrado em nada, aquilo só poderia ser o sinal de que havia alguém ali. O movimento foi congelado, deixando-a petrificada, na espera de qualquer coisa. Ela segurou a respiração na tentativa de escutar alguma outra no mesmo ambiente. Em pé ali, algo a surpreendeu. Agarraram-lhe os dois braços e taparam-lhe a boca antes que pudesse gritar. Por mais que tentasse se debater, ela mesma sabia que era inútil. Aquele corpo obviamente masculino que a segurava tinha total controle sobre todos os seus movimentos. Apenas quando deixou de debater-se foi quando lhe caiu a ficha de que ela estava literalmente nos braços de seu assassino. Porém, incrível e ridiculamente, algo a fazia não sentir medo algum. Quieta enfim, ela esperou em silêncio pelo momento em que ele beijou-lhe o pescoço suavemente, deixando os lábios aventurarem-se pela pele branca. Ela sentia a respiração dele encontrá-la. Aquilo não espantava a vontade de chorar, porém pela primeira vez durante toda uma longa vida, Christine aprendeu a controlar-se. Enquanto ele apenas jogava mais uma vez com ela, Avelã tinha tempo para pensar em um jeito de escapar. - Christine... – a voz saiu sussurrada, porém ela reconheceu. – Por que você fugiu de mim? Em um único movimento ela forçou-se para se soltar. E conseguiu. Virou-se, ficando de frente para o seu assassino, e, por mais que não o pudesse enxergar, ela discutiu às escuras: - Eu te odeio. Muito. Por que você fez isso? Você não faz ideia de todas as coisas que eu imaginei! - Ah é? E quem você pensou que era? – ele perguntou. – Ah, agora está tudo claro. As suas fugas e a maneira com que me evita. É outro homem, certo? Ela quis bater no rosto de John Gray, porém infelizmente não o enxergava. - Não, não é ninguém. Eu pensei, eu pensei... Eu pensei que estava sendo sequestrada! Você não sabe o pavor que tenho a cada vez que entro nessa sala, além de todas as coisas que estão acontecendo, e você aparece assim, no escuro, apenas para somar mais um problema. Você não sabe o que eu senti, eu estou tremendo até agora, e...

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Reed parou de falar. Não houve mais nada por algum tempo. - Você tem razão. Apareci para somar mais um problema. Se você realmente acha que sou isso, então você pode agradecer, pois estou fazendo o favor de que você se livre de um deles. De algum jeito ele encontrou sem muito esforço a mão dela, puxando-a. Abriu e deixou com a moça o anel que pretendia entregar-lhe, porém de um jeito e em uma ocasião diferente. - Espere, John, não... – começou a implorar. - Eu só fiquei assustada, ok? Eu não quis dizer que... Ficou quieta quando percebeu que ele já havia ido embora. Sentou-se no chão, onde chorou durante uma hora. O escuro riu de sua incompetente fragilidade.

❈ De rosto seco e mágoas guardadas na gaveta intitulada de ‘para mais tarde’, ela ligou o ampliador, analisando tardiamente o que continha a nova foto. Era um livro aberto, sendo que uma frase estava sublinhada. Foi necessário que ajeitasse o foco para que pudesse lê-la. Aos poucos foi tornando-se clara, sendo que ela já havia lido aquilo antes.

‘Tu és pó e ao pó retornarás’. Todos os sinais de anteriormente eram claros, porém aquele estava indecifrável. Onde aquela frase bíblica encaixava-se na história toda? Ela queria descobrir. Angustiada, porém mais forte do que as outras vezes, ela deixou de lado todo o seu trabalho. Ao deixar o laboratório, partiu para o único lugar que lhe parecia viável. Rezar sempre foi tido como a opção do desespero.

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VIII PRATA

O barulho do salto alto ao encontrar o piso gélido da igreja ecoou. A mesma encontrava-se vazia, o que a tornava – junto com as luzes amareladas e mais todas aquelas imagens religiosas – um tanto quanto assustadora. Ela observou a imensidão de bancos vazios e desfrutou do silêncio daquele lugar. Cenas bíblicas estavam pintadas junto às paredes, sendo que os olhares de cada indivíduo pareciam estar voltados para a espectadora ali presente. Era desconcertante. Christine não sabia exatamente o que havia ido fazer ali. Talvez uma reza rápida, ou talvez mesmo apenas uma curta visita. Caminhou pelo corredor lateral, ainda impressionada com a imensidão de tudo aquilo. No altar, velas estavam acesas, rodeadas de enormes arranjos de flores variadas. Algumas esculturas e mais o mesmo de sempre. Parada ali, ela cruzou os braços. Parecia estar mais frio dentro do local sagrado do que nas ruas. Reed refletiu durante alguns segundos, e então ocupou um dos bancos. Sentou-se no segundo, pois ela nunca gostava de estar na frente. Receou, porém acabou ficando de joelhos, entrelaçando as mãos e fechando os olhos. Quis pedir que tudo aquilo de difícil, amedrontador e revelador que estivera acontecendo nos últimos dias tivesse um fim. Pensou em começar pedindo desculpas por estar a algum tempo afastada de qualquer ato religioso, porém prometeria que depois daquele dia passaria a rezar a cada noite. Ela acabou não o fazendo, pois sabia que seria ridículo demais. Rezar apenas quando se precisa. Era o que sempre acontecia com ela e com todos à sua volta. De olhos fechados, mergulhando na indecisão de seus pedidos, ela escutou qualquer coisa rápida. A princípio arriscaria dizer que eram passos, porém quando ela permitiu a visão novamente, não havia ninguém por ali. Virou-se, rastreando toda a igreja. Estava vazia. Ligeiramente incomodada – mas não o suficiente para ir embora -, voltou a encontrar a negritude e pôs-se a rezar. Pediu piedosamente para que aquele pesadelo fosse temporário, e quem quer que estivesse atrás dela parasse com aquilo. Uma parte de seu interior ainda gritava que ela era inocente e que devia

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acreditar nisso mais do que nunca. Não tendo tempo para finalizar, ela ouviu mais passos. Estes não ecoavam tão forte quanto os seus próprios, mas estavam presentes. Ela realmente os havia escutado. Tentou procurar uma vez mais pelo novo indivíduo, vasculhando sem sair do lugar aquele imenso altar em sua frente. Antes de virar para trás, ela foi surpreendida. - Deus não pôde aparecer hoje, minha filha. Mas ele está lhe ouvindo, creia nisso. Ela olhou para trás com o pulso acelerado e olhares curiosos. Observou o padre de trajes brancos e um manto pesado. - Eu não estava procurando-o, é que... O padre balançou a cabeça, como se reafirmasse a sua brincadeira. - Nunca lhe vi por aqui – disse ele. Christine levantou-se, ficando em pé. - É a primeira vez. Ele assentiu. - Problemas? - Sempre – balançou um pouco os ombros. Maurice Silver era velho demais. O seu cabelo já havia deixado de ser branco para tornar-se meio amarelado. A comunidade de Greenpack o venerava, pois o mesmo já havia casado, batizado e protegido mais da metade da cidade. E o homem lá de cima parecia estar feliz com isso, pois não o deixava ir para junto de si. Ele caminhou um pouco com um pequeno livrinho na mão esquerda, contornando um dos bancos. Depois sentou-se no mesmo. Esperou, olhando a mulher visivelmente perturbada em sua frente. Reed permaneceu no mesmo lugar, esperando algo acontecer. Olhou para os lados, procurando aqueles confessionários tradicionais. - Não precisaremos deles hoje. Você pode apenas sentar-se e conversar comigo, filha. A última palavra atingiu-a em cheio. Era metafórico, porém a fez lembrar-se imediatamente de seu falecido pai. Ninguém nunca mais a chamara daquele jeito depois que Noel partira. A mãe costumava chamá-la apenas de ‘pequenina’. De coração apertado, a moça tomou um dos bancos duros. Maurice encarou-a, assim como ela fez o mesmo. Não sabia por onde começar. - Fiz uma coisa terrível – ela quase sussurrou. O homem pousou as suas mãos sobre as dela. - Conte-me. Avelã respirou antes de começar. - Padre... Você pode guardar um segredo? – perguntou. - Se você soubesse quantos segredos já guardei, nem perguntaria – a sua face era calma como a sua voz. Christine recostou-se no banco, tomando fôlego. Seria uma longa história, e pretendia não esconder nada. Quando o silêncio estava de volta à igreja, ela pôs-se a quebrá-lo.

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❈ Três anos antes Ele estava com uma garrafa de cerveja barata nas mãos, e isso prendia os olhares de Christine fixamente. Estando escorada no batente da porta da cozinha, ela o analisava até em quesitos que qualquer um nunca pensaria que servissem de avaliação. O cara do outro lado da sala era forte demais, e esse nunca foi o estilo que ela procurara, porém aquilo parecia demonstrar que o sujeito lhe passaria segurança. Mas existia um coração procurando por amor debaixo de todos aqueles músculos pré-ordenados? Ela gostaria de saber. A atenção desviou-se quando a sua melhor amiga apareceu no recinto. Becca White estava com um vestido curto e vulgar, exatamente como o esperado. - De olho no bombadão? Reed fitou os olhos fechados da morena em sua frente. - Não, eu estava só... - De olho no bombadão – repetiu a primeira. Avelã simulou desgosto, sorvendo um gole do whisky que trazia em mãos. Red Label sempre a esquentava, mesmo naqueles dias em que o inverno se despedia rapidamente. - Você tem certeza de que isso deveria ser uma festa? – perguntou. - Eu sei, está uma chatice. Samya não sabe organizar essas coisas, e eu até me ofereci para ajudar. Mas acho que ela não gosta tanto assim de mim, sabe-se lá por que. A moça que vestia uma blusa prateada que curiosamente combinava com seus fios de cabelo riu levemente. - Talvez porque você tenha roubado o namorado dela, Becca. White balançou a cabeça. - Não roubei. Peguei emprestado. - Emprestado? – riu. - Sua imprestável. Alguns caras cruzaram o ambiente banhado de música da moda, aproximando-se das garotas na cozinha. Eles traziam luxúria naqueles olhares corrompidos. - Saída pela direita – avisou Avelã. - Não! – protestou a outra. – Vamos ficar, eles parecem... - Animais. A morena suspirou porque já conhecia a mulher em sua frente. - Boa noite, Reed. Divirta-se com seu travesseiro e seu gato peludo. Christine deu um beijo na amiga, despedindo-se.

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- E você divirta-se com... – ela procurou o melhor jeito para descrever aqueles caras. – Seus macacos no cio. Rindo, deixou aquela tentativa de festa de sexta à noite. Ela odiava ver os minutos passarem ao esperar pelo elevador velho daquele prédio mais velho ainda. Apertou o botão do térreo, assustando-se quando a engenhoca moveu-se enfim. Estava ali, esperando sozinha no silêncio absoluto. As estruturas rangiam como se fosse proposital. Aquilo a assombrava mesmo sem intenção. Ao chegar ao destino, o mesmo balançou um pouco antes que as portas se abrissem. Ela não sabia qual local era pior: Dentro daquela caixa gigantesca e velha, ou do lado de fora, no corredor, onde as luzes piscavam. Era o cenário perfeito para um filme de terror, onde ela seria a próxima a morrer. Reed andou até a porta de saída do prédio, tentando empurrá-la. Não se moveu. Mais uma nova tentativa e nada. Pronta para retirar o celular da bolsa e ligar para que Becca descesse com as chaves, ela leu o adesivo gigantesco preso na porta de vidro: Puxe. Riu de si mesma, perguntando-se como podia ser tão tola.

- Você é um gênio, Christine. Voltou a colocar a bolsa nos ombros e saiu para a rua. Esta se encontrava mais

escura que a ausência de todas as cores. O asfalto por sua vez trazia resquícios do orvalho. Alguns passos foram necessários para atingir o local onde havia deixado o seu Fusca azul, também coberto pelas gotículas de água. Encaixou a chave e girou-a, abrindo a porta que claramente precisava de um pouco de graxa. Sentada no banco do motorista, Christine olhou pelo espelho retrovisor. O seu batom estava desaparecendo, mas um retoque não seria necessário. Estava acabada, e o que mais desejava era dormir. Aquela tinha sido uma semana difícil. Problemas na encanação do apartamento, contas atrasadas para pagar, e o seu gato Pudim estava doente fazia três dias. Ela não precisava de mais nada. Foi difícil retirar o pequeno veículo daquele espaço apertado entre outros dois, porém ela conseguiu depois de meia dúzia de minutos. Ligou o rádio para distrair-se, colocando em uma estação qualquer. Como a festa havia sido na cidade mais próxima de Greenpack, ela precisava pegar o caminho correto de volta para casa. E ele incluía passar por aquele cais, onde as lembranças de seu passado voltavam com força brusca, atrofiando-lhe a mente. Era inevitável olhar para aquelas águas escuras como o céu e não ver um barco fictício desenhar-se mentalmente ali. E perto dos bancos daquele cais ela sempre via a figura de seu pai perambulando. Trazia feições tristes, e então ficava parado vendo o Saint Joanne afundar lentamente. Por fim virava-se, olhando para Christine e desaparecia. Ela odiava aquelas lembranças. Ainda se fossem apenas os momentos bons que a visitassem... Voltou a acelerar com a intenção de sair logo daquele local. O cais ficou para trás, e então ela apenas focou-se nos postes de luzes amareladas que indicavam o caminho. Este começou a estreitar-se quando uma colina apareceu logo em frente. Atrás da mesma escondia-se Greenpack. O asfaltou desapareceu dando lugar à estrada de terra. Alguns punhados de cascalho espalhados se chocavam contra os pneus, saltitando pelo chão e

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encontrando a lataria do automóvel. O barulho primeiramente assustou a jovem, porém era baixo demais se comparado à música. Então os postes de luz sumiram. O caminho tornou-se absolutamente escuro, e apenas o fraco auxílio dos faróis a guiava de volta para casa. Aquilo soava desesperador se juntado com a música de orquestra que começara a tocar, então Reed se viu na obrigação de mudar de estação. Passou por várias para que encontrasse algo aceitável. Aquela escolhida estava transmitindo um programa noturno onde o locutor aparecia raramente. Já havia escutado antes. Deixou ali mesmo, passando a dar mais importância à estrada em si. As grandes árvores que circundavam o local eram cheias e velhas. Curvavam-se formando um arco pelo qual ela dirigia dentro. Parecia um caminho sem fim. Ao atingir o topo da colina, Christine pegou o caminho da direita, que a levaria mais depressa até a cidade. O outro, apesar de demorado, era mais seguro, mas já era tarde da noite para que alguém estivesse por ali, até mesmo algum assaltante. Iniciou a descer o trajeto com facilidade, pois as luzes dos faróis ainda iluminavam algumas placas de indicação que estavam perdidas entre a mata. Quando Lithium (um clássico do Nirvana) tocou, ela rapidamente aumentou o volume. O seu corpo remexia-se ao compasso da música, a qual ela cantarolava junto com Kurt Cobain. A cada vez que o refrão era cantado, balançava a cabeça de um lado para o outro, fazendo com que os cabelos dançassem. Aproximando-se do final da música, Reed gritou a letra que sabia de cor. Nesse momento perdeu um pouco do foco, ficando desatenta à estrada escura. O Fusca, que descia em disparada, chocou-se contra algo pesado, fazendo-a perder o controle. Rodou duas vezes, e a moça soltou as mãos do volante, sendo lançada para diferentes lados. Quando afundou o pé no pedal do freio, o automóvel conseguiu parar a tempo, justamente ao lado de um enorme barranco. Mais dez centímetros e teria despencado, e a morte seria apenas uma certeza. A música chegou ao fim, e então o sinal do rádio desapareceu, dando lugar àquele chiado provocativo e ensurdecedor. Christine moveu-se para trás devagar, desorientada, tirando a cabeça pesada que havia ido parar sobre o volante. Apalpou a testa, observando o sangue brotado do corte causado com o acidente. Aquele líquido espesso a fez tremer, e o pesadelo então apenas começara. Olhando perdida para os dois lados, ela não soube o que pensar. Primeiramente fez um pequeno esforço para que se lembrasse do que recém tinha acabado de acontecer. Depois, tentou desesperadamente procurar a sua bolsa. Não encontrou nada no banco do passageiro, o que a fez migrar os braços para trás, apalpando qualquer coisa, menos o que procurava. O cinto de segurança a prendia, e esse foi o motivo para que a busca parasse por ali mesmo. Recostando-se de volta no banco de motorista, ela permitiu que algumas lágrimas (um misto de desespero e medo) saíssem livres. O sangue entre os dedos parecia cola, tornava-se pegajoso a cada minuto que passava. Decidindo agir, ela apertou o botão que a libertava do cinto de segurança e abriu a porta do carro, olhando mais uma vez para todos os lados. Estava escuro como se tivesse ido parar no umbral, e o vento fazia remexer as árvores que cercavam a estreita estrada. Colocou um pé para fora, porém não encontrou o chão.

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O abismo estava ao seu lado literalmente. Christine assustou-se, voltando rapidamente para dentro do Fusca e batendo a porta. O mesmo chacoalhou lentamente, pendendo para ambos os lados, porém firmou-se outra vez. Ela passou então com movimentos curtos para o banco do motorista, saindo pela porta certa. Com o clima ligeiramente fresco encontrando a sua pele ensanguentada, ela deu alguns passos, chegando até a metade da estrada vazia. Em ambas as direções, tanto a que a levaria de volta à Greenpack, quanto à de volta ao cume, o silêncio e a falta de qualquer coisa viva a desmoronavam mais ainda. Ela tentou imaginar o que teria atropelado. Mesmo sabendo que veados e cervos não eram tão pesados, preferiu acreditar que havia mesmo sido apenas isso. Um acidente corriqueiro, ela não vira nada em sua frente. Não havia porque culpar-se. Porém, por um ímpeto de humanismo que martelava o fundo de sua mente, ela preferiu checar. - Olá! – falou temerosa, percebendo depois que havia sido baixo demais. – Olá! – dessa vez gritou. Nenhuma resposta. Era óbvio para ela que se um cervo havia sido atropelado, ele já estava morto. Era apenas um animal. É, um animal. Ela precisou repetir para se auto convencer. Deu mais uma rápida olhada ao redor, enxergando apenas o breu do qual ela já havia se cansado. Voltou a apalpar o corte na testa, percebendo que o sangue não mais saía, apenas entrava no processo de secagem. Provavelmente se recorresse a um hospital, dar-lhe-iam alguns pontos, porém em sua concepção aquilo não era necessário. Ela mesma faria um curativo ao chegar em casa. Ah, ela nunca desejara tanto o seu apartamento como naquele dia. Caminhando de volta até o carro, Christine queixou a si mesma da dor de cabeça que lhe atingiu subitamente. Entrou logo no veículo, medrosa pelo fato de poder cair abismo abaixo, então tomou um curto tempo para pensar em como sairia dali sem grandes problemas. Com as mãos atadas ao volante, conseguiu reparar apenas em algo incomum que apareceu no meio da mata escondida pela escuridão. Era um foco de luz fino e pequenino, porém a única coisa brilhante ali perto. Era como uma daquelas canetas laser. Luz vermelha. Aparentemente estava estática em um ponto fixo, porém depois começou a mover-se. Não sabendo o que fazer, ela ligou o carro, acendendo os faróis que iluminaram um pouco a sua frente. Não havia nada. Querendo testar, caso alguém estivesse por ali, os desligou, permanecendo em silêncio outra vez. Conseguiu ver o mínimo faixo de luz movendo-se pela mata, e então ela ouviu um grito. Não foi como algum som animalesco e definitivamente não era um cervo. Era humano. Alguém estava gritando, e pelo que se percebia era uma reclamação aguda de dor. Lá no alto a lua brilhava, aparentemente sendo a única testemunha. Reed não soube o que fazer. Não ligaria para a polícia, e muito menos se atreveria a sair daquele carro outra vez. Sem pensar muito, girou a chave, ligando os faróis novamente e partiu. As suas mãos trêmulas eram ridiculamente disfarçadas com a tentativa de prendê-las ao volante. Atrás de si ficavam mais alguns gritos que ela preferiu apenas ignorar, e talvez esse tenha sido o seu maior erro.

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❈ Ela realmente pretendia contar tudo, porém escondeu o fato mais importante. Maurice Silver estava quieto, sendo que seus olhos fitaram-na como chuva ácida. As mãos enroladas no longo manto. - Você não fez nada, filha. Literalmente, eu digo. Você estava em uma situação inusitada, porém são tantas que temos de enfrentar. Foi apenas mais uma que Deus resolveu colocar em seu caminho. Ele quis que você tirasse alguma lição disso tudo. E, bem, você deveria ter ajudado um irmão. Pelo jeito como me confessou, pude entender o seu nervosismo, e acredito que ele estava elevado na última potência naquele momento. Você não pensou e correu do problema, mas isso não faz de você uma pecadora. Em outras palavras, ela havia deixado alguém na mão. - Eu tive meus motivos para sair dali – ela quase sussurrou. – Precisei. - E quais foram? Ela permaneceu quieta. - Padre, o que a Bíblia diz sobre vingança? – a ideia lhe surgiu prontamente na cabeça. Silver não tentou entender o porque da pergunta, pois gostou do interesse provindo da mulher. Então apenas respondeu: - Devemos deixar a vingança nas mãos de Deus, filha. “Minha é a vingança, eu retribuirei”, diz o Senhor em Romanos 12:19. “Não digas: vingar-me-ei do mal; espera pelo Senhor e ele te livrará”, Provérbios 20:22. Guardou para si como curiosidade. Em pé, agradeceu com uma única palavra e pôs-se a caminhar. - Ave Maria e Pai Nosso. Deus gostará de te ouvir rezando. Tente – insistiu Maurice. Avelã ignorou, lentamente deixando a igreja com o pensamento certo de que nunca mais voltaria a pisar ali. Textos decorados não a fariam aproximar-se de Deus, e muito menos livrariam-na da sensação de culpa. Aquela podia ter sido uma prova proposta pela qual ela não havia conseguido passar, porém não creía que era a única no mundo a errar. Ela realmente pretendia contar tudo, porém escondeu o fato mais importante. Três anos antes ela não podia ligar para a polícia e resolver aquilo. Teve de fugir do local, deixando para trás o que quer que tivesse atropelado. Três anos antes ela abandonou aqueles gritos.

Três anos antes, Christine estava bêbada.

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IX CARAMELO

O dado quicou pelo tabuleiro, rolando até parar. Cinco. Prontamente o jogador da vez andou algumas casas, dirigindo o seu peão até o salão de festas. Depois de feito, olhou para o minúsculo garoto em sua frente e, franzindo o cenho, arriscou o palpite: - Senhorita Rosa, salão de festas. - Arma? – perguntou o pequeno. - Hm... Castiçal. Henry balançou a cabeça em reprovação, e depois soltou um risinho para o seu fictício tio. John não gostou, e procurou entender qual era o problema, ou o que ele havia falado de errado. - O que foi? - Você já chutou Senhorita Rosa em alguma outra rodada, tio. E eu já disse que não foi ela, coitada. Gray sabia, mas não podia impedir o seu ímpeto de deixar aquela criança vencer todas as vezes. - E mulheres não matariam alguém – jogou o dado. Três. Direto para a cozinha.

O rapaz que esperava a sua vez olhou para a face que havia trazido aquela conclusão. - Oras, e por que não? - Eu ouvi minha irmã falar alguma coisa sobre isso quando estava no telefone com aquele namorado braçudo dela... Corri para escutar na extensão, e ele disse que ela estava matando ele aos poucos. E é a verdade, tio John. Isso acontece mesmo. Lá em minha escola há uma garota chamada Mahala, que veio de algum país muito estranho. Eu gosto muito dela, mas aposto que até agora ela nunca reparou que eu existo. Acontece com todas, sem exceções. Olhe para você, tio Gray. Você está destroçado! – disparou. – Há três semanas você dorme até tarde e insiste em cultivar essa barba horrível. Até esqueceu de dar comida para Gina. Pobre gata... – o pequeno suspirou. – Christine, assim como todas as outras, não matam com chaves inglesas,

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revólveres, canos ou facas. Mulheres nos matam aos poucos, em silêncio, sem que percebamos. Olhando para as suas cartas, o pivite disse: - E não é uma boa que você exclua a Senhorita Rosa desta filosofia. Aliás, foi o Coronel Mostarda, com certeza. Cozinha e castiçal. John estava atônito, com o olhar petrificado no rosto puro de Henry. Sem mover-se, observou quando o pequeno levantou-se. - Quer refrigerante, tio? Gray balançou a cabeça. Após o menino já ter dado as costas, ele enfim conseguiu falar: - Quantos anos você tem mesmo? A figura desapareceu pelo corredor, deixando apenas uma frase lançada no espaço: - Sete e meio!

❈ - Você nunca esteve tão linda! Christine parou junto à porta em sua chegada ao laboratório. Olhou para trás de si, procurando pelo terceiro sujeito presente. Este, claro, era inexistente. Então encarou a melhor amiga no balcão com suspeitas. - Não se faça, Avelã. Sabe que o meu pensamento lésbico foi para você. Diga-me: É um shampoo novo que você está usando? Porque as roupas obviamente não são... Essa boina que nunca sai de sua cabeça, então, muito menos. Vamos, me conte o que tem lhe deixado tão bonita nestes últimos dias. Reed largou as suas coisas, retirando do pescoço o cachecol vermelho e preto que sua mãe fizera há muito tempo, porém até então utilizado. - Eu estou normal... Becca revirou os olhos, sabendo que aquela mesma seria a reação provinda da amiga. Então decidiu puxar a garota de olhos cinzentos pelas mãos, levando-a junto até o vidro da vitrine. - Olhe para o seu reflexo. Você está brilhante, C. Não negue que há algo diferente neste corpinho miúdo. Anda emagrecendo outra vez? É um novo batom? - Becca, você é muito irritante, sabia? Mas obrigada pelo seu elogio. Enfim, não há nenhum batom, shampoo, roupa ou qualquer coisa. Só estou bem comigo mesma. Muito bem, aliás, obrigada. A japonesa abriu a boca em espanto, depois esticou a mão direita em sinal de “pare” para a amiga. - O que?! – indagou Chris.

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- Sexo! – exclamou ela. – Eu sabia que era o sexo. Mas como fui tão lesada? É óbvio que umas transas deixam a pessoa melhor, mais disposta, totalmente diferente das lesmas cansadas de antes... - Eu era uma lesma cansada? White ria pelo local. - Pare, certo? Não estou tendo sexo, a não ser que seja por osmose. A morena sentou novamente no banco de atendimento, fitando a outra como se não acreditasse em nenhuma de suas palavras. - Eu conheço John, ok? Não lembra que fui eu quem lhe apresentei? Sei de todo o passado dele, então não negue que ele não esteja te fazendo feliz! Pode começar a me contar tudo. Você sabe os detalhes que eu quero ouvir, Christonta. É assim que ele lhe chama, certo? Avelã estava de olho no chão. Os seus ombros, antes erguidos, já haviam tombado outra vez. Nenhuma lágrima escapou de seu olhar, porém em seu coração chovia. E era uma tempestade. - O que foi que eu disse de errado? Ela ergueu a cabeça. - Christonia, Becca. Era assim que ele me chamava. A amiga pensou entender, mas quis confirmar: - Chamava? - John e eu não estamos mais juntos. Nada se ouviu por um curto período. A japonesa sabia que a amiga gostava do silêncio, e tinha também o bom senso para saber que às vezes a sua presença se fazia de extrema importância. Esperou um pouco, até que se dirigiu à outra, tocando-lhe o ombro. - O que houve? Christine pressionava os seus dedos uns contra os outros. Queria que algo doesse mais do que aquele adeus, onde ela nem mesmo tinha tido a chance de ver o rosto de John uma última vez. - Ele teve de morrer para que eu pudesse respirar... – quase cochichou. A dona do estabelecimento abraçou-a, e neste momento foi impossível segurar o choro. Aquelas lágrimas já haviam saído tantas vezes durante as últimas três semanas, sempre em vazão proporcional ao seu desespero interior. Era dolorosamente esgotante. - E funcionou? Desvencilhou-se para que pudesse enxugar um pouco do rosto com já não tanto brilho. - Infelizmente sim.

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Deitado em seu sofá de couro, Giles olhava para o teto branco de gesso rebaixado. Era impecavelmente limpo. Perguntava-se como, pois nunca ninguém havia passado sequer um pano ali. Distraído em pensamentos inúteis, demorou em voltar ao mundo quando a campainha de sua casa tocou. Pigarreando e mancando com o auxílio de sua bengala, o senhor abriu a porta, surpreendendo-se com o que via. Era a figura de uma mulher muito bonita que ele tanto conhecia que estava ali, parada em sua frente. Trajava um longo vestido de festa negro, com finos e discretos toques de brilho. Por sobre o mesmo, um colete de pele grosso o suficiente para mantê-la aquecida. - Não vai me convidar para entrar, meu amor? Ele forçou os olhos, querendo certificar-se de que não sonhava como em todas as outras vezes. - Isso é impossível... Melanie?! A mulher entrou no recinto mesmo não tendo recebido um convite. Olhou para os lados, observando a mobília. Logo jogou em cima do sofá o seu colete. Virando-se de encontro ao marido, ela esticou os braços. O homem estava perdido, tentando encontrar de onde diabos aquela música inesperada havia surgido. Era uma espécie de tango que inundava o ambiente, e a sua ex-amada convidava-lhe para dançar. - Apenas uma dança, meu querido. Vamos... Ela puxou-o pelos braços, e então a própria conduziu aqueles movimentos todos. O homem, sem os seus fiéis óculos, via tudo em sua frente embaçar-se aos poucos. Era horrível a sensação. E a sua bengala também havia ficado para trás. Nada podia ser mais ridículo do que ele mancando ao tentar dançar. Os dois corpos giravam pela entrada da casa, e Brown perdia-se em imagens que circulavam por sua mente. Era tudo confuso, e a música acelerava na mesma intensidade de que Melanie o puxava para dançar. Estava ficando louco certamente, querendo depressa acordar daquele pesadelo. - Pare, pare! – ordenou. Não adiantou. Tudo se camuflava em sua visão, porém ele pôde enxergar claramente duas crianças que corriam em volta dos dois adultos. Os seus filhos. Aqueles rostinhos delicados estavam rindo, gritando qualquer coisa inaudível. Giles queria tocá-los como costumava fazer, porém as mãos de Melanie estavam grudadas às suas. E então tudo parou. A música desapareceu e o homem foi lançado ao chão com brutalidade. A sua cabeça latejava pela batida, porém quando abriu os olhos ele pôde enxergar o óculos que pairava junto ao piso. Colocou-o, o que fez melhorar as imagens ao redor. Estava tudo extremamente calmo, vazio e não havia ninguém mais ali, a não ser ele mesmo. - Melanie? – chamou-a. O psicoterapeuta pôs-se em pé, olhando para a porta aberta que deixava o vento gélido entrar. E mais ninguém.

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❈ Ninguém fazia um chocolate quente tão gostoso quanto o dela. Estava uma noite fria, então Christine permitiu-se um último presente naquele dia (a sua chefe tinha lhe dado uma folga). A xícara em suas mãos lhe esquentava o corpo como um todo, e a sensação realmente era muito boa. Diferentemente de todos os programas da televisão, todos péssimos. Ela não conseguia parar um apenas um canal. Preferiu desistir e deixar em um que passava a milésima reprise de “Pânico 2”. Deu pouca importância ao mesmo, atendo-se unicamente ao gostoso líquido que bebericava aos poucos. Filmes como aquele realmente haviam permanecido na década passada, pois fantasiar-se para sair matando jovens inocentes já não era mais tão amedrontador assim. Os vilões das películas de horror agora eram as próprias pessoas, sem disfarces, que matavam muitas vezes até sem motivos. Era o novo clichê. - Qual é, loirinha, não saia da droga da casa! – gritou ela logo após ter se queimado com a bebida. Sarah Michelle Gellar, na televisão, fez exatamente o que Reed gritara, e essa foi a deixa para que o assassino entrasse. - Preferia você como Buffy – murmurou. Desviando o olhar da tela, Avelã jogou a cabeça contra o encosto do sofá. Estava perfeitamente confortável, e nada a tiraria dali. A não ser pelo que tinha acabado de enxergar. Sendo uma hiperativa nata, ela não conseguiu permanecer imóvel. Levantou-se em um salto, agarrando uma carta que estava na estante da televisão. Jogando-se outra vez no confortável móvel, pôs-se a ler: “Querida Christine, visitei o médico pela manhã e ele não me deu boas notícias. Disse que estou próxima do fim, finalmente. Agradeci-o com um beijo, pois se tem uma coisa que os velhos como nós odiamos é tomar remédios. Acho que ele não aprovou muito a ideia da bitoca, pois ele nem se mexeu quando deixei o seu consultório. Será que ele gostou? Estou lhe escrevendo mesmo pois perdi o número de seu telefone e quero prevenir. Então eu, Sally Jessica Blue, quero dizer que deixo todos os meus bens para você, querida. Sabe que meu marido já se foi, e os inúteis de minha família fazem o favor de esquecer-se de minha existência. Então caso eu venha a morrer (tive um péssimo pressentimento sobre isto na noite passada, mas são coisas da velhice), quero que fique com absolutamente tudo. Inclusive o cão (ele ainda está com você? Não o encontrei nestes últimos dias). É tão triss-te pensar que não talvez não poderei comemorar uma data tão especial quanto o Natal. Deixei esta casa tão linda para nada? O futuro responderá...

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Um beijo da sua querida cliente, Saly Blue.” Uma lágrima percorreu a bochecha rosada da moçoila. Não conseguia sentir-se feliz por aquilo, mesmo olhando para Victor deitado ali no chão em sua frente. Era um ótimo presente, mas se pudesse escolher, desejaria que a mesma implicante Sally estivesse viva. Christine sorveu mais um gole de seu chocolate não mais tão quente, olhando para a tela outra vez. Não prestou atenção no filme, apenas focou os olhos em algo para concentrar-se. Havia certamente algo errado ali. Alguma coisa que não se encaixava, que martelava o fundo de seu consciente, gritando para que ela se desse conta do que não fazia parte daquela história. Mas o que? A mulher sentou-se no sofá após largar a xícara na mesa de centro. Fechou os olhos, colocando a cabeça entre as duas mãos. - Vamos, Christine. Pense, pense! – pediu a si mesma. Quando voltou a abrir os olhos, enxergou Pudim em um dos cantos da sala. Ele estava com uma bola de enfeite da árvore de natal entre os dentes, mordiscando a mesma sem parar. Aquilo fez com que ela voltasse o olhar para o pinheiro em sua sala de estar, e aí estava a resposta. Agarrou a carta novamente, relendo-a duas vezes seguidas. ”É tão triss-te pensar que não talvez não poderei comemorar uma data tão especial quanto o Natal. Deixei esta casa tão linda para nada?” A sua antiga cliente não via mais graça naquela data. E a decoração de sua residência havia sido paga por uma loja de departamentos que procurava propaganda. Isto não encaixava, estava completamente errado. A velha, por mais louca que estivesse, não se contradiria daquela maneira. Reed forçou os olhos, aproximando o papel. Triss-te, era o que estava escrito. E a partir daí, a caligrafia aos poucos era alterada, ou ao menos forçada para continuar fiel a original até o seu fim, onde a correspondência havia sido assinada como Saly, faltando uma das letras L. Avelã havia matado a charada. Blue não tivera tempo de acabar de escrever aquela carta, pois na verdade não morrera. O seu assassino, porém, terminou de escrevê-la sem problema algum.

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Ela deu dois tapas no monitor para que o aparato tecnológico voltasse a funcionar. A tela havia travado, e Becca White não conseguia sair daquele site que havia entrado para ver uma nova foto do Jake Gyllenhaal sem camisa. - Por que tão lindo, Jake? – acariciou o computador. Suspirando, a japonesa convenceu-se de que logo teria de comprar um novo aparelho, pois aquele já havia chego ao seu fim. - Sei que você também está gostando de me ver, seu lindo, mas preciso que você saia da minha tela imediatamente. Se algum cliente aparecer, como vou explicar esse seu abdômen definido? A mulher abaixou-se, empurrando para trás o banco em que estava sentada. Observando a montoeira de fios entrelaçados debaixo do balcão, a preguiça logo lhe atingiu em cheio, porém alguém precisava dar uma ordem naquela grande confusão. - Onde está você nestas horas, Avelã? – perguntou baixinho. Naquele dia a sua parceira havia ganhado uma folga mensal, então White deveria cumprir o expediente completo. Estava cansada, e muitas foram as vezes em que pensou em abandonar a loja e partir para as suas cobertas deliciosamente quentes. Mas acabou por rejeitar a tentação, pois sabia que sempre havia alguém observando. Emaranhada em fios pretos – por que todos tinham de ter a mesma cor? Aquilo apenas dificultava -, a moça escutou quando o sino da porta principal do Revelando Sorrisos tocou. - Ótimo, pensarão que sou uma pervertida sexual – praguejou baixo. – Posso ajudar? – ela gritou de onde estava mesmo. O cliente que entrara não era um qualquer. Havia deixado tantas fotografias para serem reveladas ali ultimamente que já merecia um tratamento especial. Então entrar ali e ser atendido daquele jeito tão informal por aquela moça... Bem, isto certamente não lhe agradava. Ele queria atenção. - Christine se encontra? – perguntou a voz masculina. Becca puxou um dos fios, provocando algumas faíscas que a fizeram atentar-se um pouco mais. - Estou sozinha esta noite - informou.

A garota retirou os nós de dois fios, e neste momento os seus dedos já doíam. Ainda entretida, ela não dava tanta importância para o silêncio provindo daquele cliente estranho. Este último ainda estava parado detrás do balcão principal, muito ocupado em retirar do bolso de sua jaqueta uma faca de uns trinta centímetros. A mesma reluzia contra o brilho das luzes. Ele a alisou com os dedos, passando a mesma por cima do móvel de madeira em sua frente. O barulho gerado foi desconfortável.

- Senhor? – aquilo a deixara intrigada. Uma pausa. - Diga a Christine que deixei lembranças.

White respondeu com um som de afirmação no momento em que alcançou a régua de tomadas, desligando uma a uma. Aquilo deveria dar um jeito de desligar o computador.

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- Você precisa de mais alguma coisa? – ela desvencilhou-se de um fio grosso que cruzara o seu caminho. - Eu preciso da porra do seu corpo estraçalhado e o seu sangue entre os meus dedos! – ele gritou. Os olhos já repuxados daquele projeto de japonesa conseguiram abrir de maneira jamais vista. Uma corrente de arrepio que se transformou rapidamente em medo contornou cada espaço de seu corpo. Ela estava com a boca aberta, porém nada saía dali. Pensou ser uma brincadeira, mas a fala havia sido firme e pontual. Rebecca Gasper White tinha a sorte de ser esperta. Apesar da tensão inesperada que fazia o seu corpo tremer ali debaixo daquele balcão, ela sabia que se estivesse dividindo o ambiente com um maníaco, precisava dar um jeito de ganhar tempo. Não poderia ligar para a polícia, pois teria de encontrar a face do psicopata para alcançar o telefone, então apenas fez-se de tola: - O que você disse? – a voz saiu arrastada. - Você me escutou sua vaca imprestável! O homem jogou-se por cima do móvel com a faca em mãos, tentando atingir qualquer parte do corpo de Becca. As pernas da garota estavam visíveis, e ela as remexia freneticamente para tentar escapar dos golpes. Chegou a encolhê-las, ficando inteiramente escondida em meio aos fios, e neste momento ela ouviu socos provindos da porta principal. O sino no alto da mesma balançava apenas pela fúria com que a pessoa do lado de fora batia contra o vidro. - Ei, abram! A faca desapareceu do campo de visão da japonesa, e o homem desceu de cima do balcão. Guardou no bolso das vestes o seu utensílio prateado e puxou o capuz para cobrir a cabeça. Dando uma volta, ele dirigiu-se à porta, destrancando-a. - Mas que demora! – reclamou o cliente que estava ali parado. O quase assassino de Rebecca deixou o laboratório fotográfico, caminhando pelas ruas desertamente escuras. Detrás do móvel da recepção, os olhos chorosos e apreensivos da garota eram a única coisa em vista, porém os mesmos fitavam o homem alto que desaparecia. - Vou precisar de duas cópias de cada – avisou o novo e engraçado homem ali parado. Ela por fim pôs-se em pé, estando com o cabelo bagunçado e a maquiagem suave borrada devido às lágrimas. Ela não sabia exatamente o que fazer. - Pode ser em tamanho dez por quinze, papel fosco, por favor – o sujeito estava com pressa, e mexia rapidamente na sacola onde trouxera o que desejava revelar. A dona do local enxergou ali perto um envelope alaranjado que havia sido deixado pelo psicopata. Em cima do mesmo, ‘Christine’ estava escrito em letras de forma. - Pode ser para amanhã de manhã. Eu passarei para pegar no minuto em que a loja abrir. Vocês fazem, não é mesmo? Olha, eu posso pagar um pouco mais se quiser, porém eu preciso mesmo destas fotografias. É aniversário de Trudy, e ela quer um

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presente. Não posso vacilar, pois você sabe como são as mulheres. Ah, isso é óbvio, você é uma! Hahaha... Então faça isso por mim, sim? A respiração ofegante dela ainda não havia sido o suficientemente clara para que ele entendesse a situação. Becca teve uma ideia, e não precisou pensar duas vezes. Virou-se para a direita, esticando a mão em direção ao telefone. Antes de tocar o mesmo, olhou uma última vez para o computador. A tela estava preta, tendo desaparecido enfim a imagem do galante ator. Em cima do teclado, porém, um pequeno pedaço de papel. Ela o pegou, e de prontidão percebeu ser uma das fichas de sugestões para melhorias da loja. No espaço reservado para as observações da clientela, a frase rabiscada com pressa era clara: “Você está pronta para a morte?”. - Moça, moça! – gritava o cliente que perdia a paciência. – Você está me ouvindo? Ela tocou o telefone, retirando-o da base. Antes de discar alguns números, sentiu a mão do homem ali presente tocar o seu ombro. A mulher de cabelos escuros esquivou-se, e depois mandou o recado: - Estamos fechados, eu não vou revelar a merda das tuas fotos! – a voz saíra alta o suficiente para que ele entendesse. O homem, assustado, tratou logo de guardar de volta na sacola o que havia deixado em cima do balcão. - Mas que atendimento péssimo – resmungou e saiu. Becca discou os números que devia, correndo logo em seguida para a porta principal. Trancou-a, e então voltou ao balcão, utilizando o canto dos fios para esconder-se uma segunda vez.

❈ No filme o telefone tocara, e Christine ainda segurava aquela carta entre os dedos. O pensamento longe fez com que ela demorasse a perceber que não era apenas no filme que aquilo acontecia. Também estava recebendo uma ligação, e o aparelho tremia na estante logo em frente. - Santo Deus – foi o que enfim deixou os seus lábios, após pensar que alguém realmente havia matado a coitada daquela senhora. Mas por que alguém cometeria tamanha brutalidade? Antes mesmo de levantar-se do sofá para que pudesse atender ao telefone – o seu barulho irritante já começara a incomodar -, Reed olhou com curiosidade para a televisão. Havia um reflexo na tela, e era claramente uma segunda pessoa. Quando percebeu que ela também estava refletida ali, e que alguém estava atrás de si na sala de estar, Victor já havia ficado em sua posição de ataque. Porém o mesmo permaneceu em seu lugar, até mesmo sem latir – aquela não era uma pessoa estranha a ele -, apenas encara aquele indivíduo que invadira o local.

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Ela não teve tempo para virar-se, pois o sujeito lhe cobriu o rosto com um pano branco úmido. Em poucos minutos, sem nem ter tido a chance de debater-se, Avelã entrou naquele longo sono. O telefone continuou a tocar.

Sentiu uma leve dor de cabeça ao acordar, porém nada que a impedisse de sorrir logo cedo. Christine havia despertado vigorosa, com vontade de viver aquele dia como se fosse um dos últimos. Deitada em sua cama, estando com um pouco de frio – ela sempre ia dormir enrolada em um par de cobertas que a mantinham aquecida e segura, porém estava sem nenhuma agora -, tentou lembrar-se como tinha ido parar ali.

- Acho que você exagerou no chocolate quente, sua obesa – resmungou para si própria.

Andou bem disposta até o banheiro, e ali jogou um pouco de água morna no rosto branquelo. No espelho podia ver qualquer imperfeição que existisse, porém isso não acontecia. Bocejou um pouco ao sentar-se na privada para urinar. Era engraçado o som daquilo, a fez rir.

- O que você tem hoje? – costumava falar consigo. – Retardada. Cantarolando baixinho, ela escolheu a roupa daquele dia. Era uma manhã de

céu claríssimo, onde o mesmo trazia pouquíssimas nuvens. O sol tentava a todo custo derreter as camadas de gelo espalhadas pelas ruas. Um dia climaticamente incomum para Greenpack.

As quinze para as dez da manhã ela saiu de casa, e com o Fusca foi até o consultório de seu psicoterapeuta. Havia uma consulta naquela manhã, e ela sentia-se feliz por aquilo. Gostaria de dividir com Giles a descoberta que fizera sobre a sua cliente morta. Pensara durante todo o caminho sobre contar ou não contar, mas ela sabia o quanto poderia confiar naquele homem esquisito aos olhares de terceiros, porém otimamente indispensável para ela.

- Bom dia, Telmah! A recepcionista olhou para a figura estonteante que cruzara aquela sala de

espera até então vazia. - Alguém está de bom humor hoje... - E teria motivos para não estar? Está tudo tão perfeitamente bem. Quer dizer,

tirando o fato de que minha antiga cliente... – ela pensou no que estava falando. – Bem, ela me abandonou, e não foi ela quem quis isso... Mas isso não me importa mais tanto, já passou. Estou bem. Mesmo.

Telmah Tuckson riu. - Adoro quando você se auto-afirma, Christine. Você é uma mulher

engraçada.

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Aqueles olhos cinzentos fitaram a mulher negra, distribuindo em retorno um sorriso meigo.

- Você é muito gentil, e também a melhor recepcionista do mundo! – elogiou. – Como vão estes peitões?

A mulher detrás do balcão balançou a cabeça para os lados. - Uma tortura. Não posso levantar os braços, e muito menos correr com a

mesma vontade atrás de meus moleques quando eles fazem algo errado. E naquela hora... Hm, você deve imaginar. Não consigo aproveitar tanto assim.

Reed olhou-a, tentando entender se ela estava pensando no mesmo que a outra.

- Sim, Neil não me dá descanso. O risinho tímido escapou dos lábios de Reed. - Giles já chegou? Parece calmo por aqui – ela mudou de assunto. - Acabou de chegar. Acenou e correu para a sua sala. Aliás, correu da maneira

que pôde... Christine levantou-se da cadeira onde sentara. - Por quê? Aconteceu alguma coisa? - Não sei, mas ele estava mancando mais do que o normal. - Giles sempre manca. É estranho. Telmah assentiu. Agora junto ao balcão, a moça de boina remexia em alguns folhetos sobre

planos de saúde que estavam ali. Organizou-os em uma pilha perfeita. - Você não acha estranho? Quer dizer, o fato de Giles não ter nenhuma foto

de seus filhos em seu escritório. A negra olhou-a. - Acho que eu também não gostaria. Não sei, eu sentiria falta deles toda hora

e começaria a chorar que nem uma escrava sob o sol quente. - Ah, isso eu entendo. Mas ele ainda pode visitá-los aos finais de semana para

um passeio ou algo do gênero, não? O olhar lançado pela recepcionista a fez parar. - De quem você está falando, Christine? A mais jovem parou, refletiu, tentou encontrar o erro. - Dos filhos de Giles, oras. As feições da senhora Tuckson foram de confusão. - E como você acha que ele passearia com eles? Não é possível levar caixões

para darem uma volta. Reed riu. E então ficou séria. - Ok, minha vez. De quem você está falando? - Das mesmas pessoas ainda. Os falecidos filhos de meu chefe. Avelã sentiu um rápido arrepio em seu pescoço, como se um espírito tivesse

lhe tocado e fugido logo em seguida. Os seus olhos estavam estagnados na face da mulher em sua frente, e ela apenas não conseguia acreditar.

- Ele não lhe contou? Negou com a cabeça.

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- Disse que tinha uma ex-mulher que não vê mais e dois filhos. Todos se foram. Nunca pensei que eles haviam ido embora no sentido de... Para sempre.

Ela estava abismada. Aquilo lhe chocara imensamente, mas estava pronta para perguntar o inevitável.

- Não pergunte – apressou-se a outra. – Não sei de detalhes, muito menos como aconteceu. Só sei o básico.

- Isso é horrível... - Sim, uma tragédia. Mas acontece com muita gente. E o pior é que ninguém

nunca está pronto para morrer. Uma das portas ali perto bateu. - Christine! – chamou o especialista. – Vamos? Ela olhou para o homem de algum jeito interessante: Queria abraçá-lo e dizer

que sentia muito pela morte de seus filhos e de sua esposa, porém seria tardio e inapropriado demais. Ao mesmo tempo queria recusar o convite feito por ele, pois não se sentia confortável em entrar naquele lugar e dividir segredos com alguém que não havia dividido os seus para com ela.

A capela estava vazia naquele dia. O que estava acontecendo com o povo antes tão fiel do Condado de Greenpack? Padre Maurice bem que gostaria de entender o que se passava na mente de cada um.

- Estes são os de 1993? – perguntou ele. Uma mulher vestida com aqueles trajes negros de detalhes brancos assentiu.

Claire Hardwick não sabia o porquê daquela solicitação inesperada e apressadíssima de Silver em olhar os anuários de muito tempo atrás. Ela apenas espichava o olhar, tentando encontrar alguma pista da procura.

- Você já pode guardar estes, irmã – ordenou. Ela resmungou apenas interiormente, e então carregou aqueles pesados livros

debaixo dos braços, deixando a sala detrás do altar. O dono da igreja estava sozinho outra vez.

Folheou as páginas, atendo-se exclusivamente para as fotos individuais de figuras femininas. Precisava encontrar uma em especial. Mas eram todas tão diferentes, e tanto tempo já havia se passado... Talvez nunca a encontrasse.

Em sua mente, porém, podia lembrar-se como se fosse ontem: Havia ensinado aquela garotinha a rezar. Era tão pequenina, e os seus cachos eram perfeitamente estáticos. Andava sempre para todos os lugares da pequena cidade com aquela mochila nas costas, e logo após a escola corria para chegar ao cais de Greenpack, onde cantava uma pequena canção com o seu pai. Ele amava enxergá-la de longe, e odiava ter de saber que nunca a poderia tocar. Era perfeita para ele.

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Percorreu o olhar uma última vez, parando na página vinte e um. E lá estava ela, a pequena Christine Beatrice Reed, com o seu cabelo todo enrolado, sorridente e meiga na foto da turma de catequese de 1993.

- Ah, pequena Christine... – ele pousou a mão direita sobre a imagem. Debaixo da fotografia seguiam informações sobre a aluna. Padre Maurice

Goodman Silver anotou-as em um papel, colocando-o depois em um envelope de cor chamativa.

- Sua pequena pecadora... Você teve a quem puxar.

❈ Aquela sala nunca lhe parecera tão desconfortável. A garota de boina na cabeça simplesmente não conseguia deitar-se no divã, estando então pela primeira vez sentada. O psicoterapeuta analisou-a visualmente, inspecionando a quietude de paciente sempre tão falante. Ela estava com as mãos sobre os joelhos, olhando discretamente para os dois lados. Quando ambos os olhares se encontraram, chegou a vez de ele finalmente perguntar: - Está tudo bem? Reed prontamente sacudiu-se, afirmando com um rápído sorriso. Varreu o ambiente mais uma vez, atendo-se a um objeto conhecido que estava repousando ali perto. - O que aconteceu com a sua bengala? Giles lançou um olhar rápido para o utensílio de metal que estava raspado, ligeiramente desgastado em sua base. Ele lembrou-se da noite anterior, quando a revolta atingiu-lhe em cheio e usou o fiel apoio para descontar a sua raiva nas primeiras coisas que vira. - Acidentes de percurso – comentou. Ela assentiu, fingindo concordar. E o silêncio permaneceu ali durante algum tempo. Desta vez, em especial, não era o som do relógio que predominava – ele nem existia mais, Brown deveria ter o jogado no lixo -, e sim o da rua logo ali do lado de fora. - Então você decidiu não falar hoje. Nada. - Tudo bem. Você é quem decide como aproveitar o seu tempo. Ou como gastá-lo. O homem de cabelos brancos foi até a grande janela vertical. Parado em frente a mesma, observou as variadas faces que circulavam por ali. Era uma avenida pequena (grande apenas para os padrões de Greenpack), porém agitada. Existiam caminhões da prefeitura por todos os lados, e trabalhadores esforçavam-se para

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caprichar nos acabamentos finais da grande festa que aconteceria no Condado durante aquela noite. - Você está mancando bastante. - Nada que eu precise visitar um médico. Ela deu de ombros. Silêncio. - Minha cliente foi assassinada – resolveu contar. - O que? Reed enfim olhou-o. - Sally Blue. - Impossível. Noticiaram no jornal o seu falecimento. Foi morte natural. - É o que todos pensam. O homem sentou em sua cadeira, e aquilo fez com que a moça se lembrasse instantaneamente de quando ele sofrera daquela crise. Os dois nunca comentaram sobre o fato, haviam deixado de lado. - O que você está querendo dizer? - Deixe isso pra lá, eu apenas sei que ela foi morta propositalmente. Não quero entrar em detalhes agora. Giles pôs-se a rabiscar algumas palavras em um bloco que estava em sua frente. Ao terminar, arrancou a folha e esticou-a. - O que é isso? – ela quis saber. - Acho que está na hora de aumentarmos algumas doses de seus medicamentos. - Eu estou bem. - Farão você não pensar e questionar tanto. Será melhor. Reed recusou-se a pegar o papel. - Você não acha que ela foi assassinada, acha? Ele desviou o olhar, não falando nada. - Acha? Avelã deixou o divã, indo até a porta. - E eu não achava que os seus filhos haviam morrido. Bateu a porta e saiu. Ali dentro permaneceu aquele homem perturbado, confuso, vezes até alterado. De olho havia muito naqueles dois golfinhos que nunca paravam – este com certeza era outro objeto irritante naquele seu escritório -, pegou-os e quebrou ao meio. Suspirou.

Já nas ruas, ela escutou um barulho. Como se fosse um daqueles alarmes de emergência que várias cidades possuíam caso a mesma precisasse ser evacuada. Era

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ensurdecedor e constante. Porém não havia uma evacuação, sendo aquele o sinal para que a festa de comemoração aos duzentos e trinta e três anos do Condado de Greenpack começasse.

Havia um imenso aglomerado de pessoas nas ruas. Todas gritavam, extasiadas ao olhar para o céu e ver aqueles fogos de artifício que o coloriam. Olhando para o alto, porém um pouco mais abaixo, Christine pôde ver que todos os postes de luz haviam sido decorados com a bandeira oficial da cidade. O povo patriota gritou quando o prefeito apareceu em um carro antigo preto, escoltado por policiais trajados em uniformes impecáveis. Reed estava perdida na multidão, porém tudo aquilo a envolvia, penetrava-lhe a mente, e era impossível pensar em até mesmo dar o fora dali. Permaneceu durante algum tempo, apenas sendo lançada de um lado para o outro com o fluxo de pessoas que a conduzia livremente. Gritos provinham de todos os lados, assim como as luzes coloridas. Avelã estava girando, girando...

- É um dia de comemoração, feliz são os que vivem em Greenpack! – gritou em alto tom o prefeito William Burkhnner Jr.

Os cidadãos vieram à loucura. Morar ali podia ser comparado a um antigo reino, onde todos veneravam o rei e a discórdia muito pouco existia. - Desculpe-me – falava repetidamente ao esbarrar naqueles corpos, porém ninguém parecia se importar. Flashes de máquinas fotográficas ajudavam a cegá-la, e neste momento Christine decidiu escapar dali. Porém, antes de fazê-lo, escutou uma voz familiar: - Que Deus ilumine para a eternidade a todos vocês, habitantes de Greenpack! – a voz ecoada em cada esquina era tão familiar. Padre Maurice trazia sempre uma positividade absurda, o que incomodava a mulher. No fundo de seu coração, apenas ela sabia que não suportava aquele homem de palavras tão decoradas.

❈ - Ninguém irá aparecer, está todo mundo comemorando os trossentos anos deste lugar. Não deveria ser feriado hoje? – perguntou a impaciente.

Mas ela não obteve resposta. A amiga estava muito ocupada cantando. - Meu Deus, que droga é essa que você está cantando? – fez uma segunda

pergunta. - Britney Spears. Deixe-me ser um pouco mulherzinha, ok? Becca continuou a cantar os trechos errados que sabia daquela música durante

o tempo suficiente para reparar que Avelã havia tampado os ouvidos. - E hoje estamos aqui, ao vivo e exclusivo com Christine Beatrice Reed, uma

moradora nata do Condado de Greenpack. E o assunto de hoje é: “Minha melhor

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amiga está estressadinha e quero saber o porquê”. Então nos conte, jovem, qual é o problema de hoje?

A japonesa havia se aproximado com o punho cerrado, imitando um microfone. Colocou-o perto da boca de Christine.

- Becca, pare. Meu gato sumiu. A entrevistadora deu de ombros. - Sabe, você reclama muito da vida. O seu gato deve estar escondido debaixo

da sua cama, ou dentro de algum armário. Talvez o labrador o tenha comido, também – palpitou. – Certo, piada sem graça. Mas mulher, pelo amor de qualquer um dos Deuses, pare de ver problema em tantas coisas! Você se martiriza demais. Quem deveria estar choramingando por aí nestas horas sou eu pelo que você fez comigo na noite passada. Mas não, estou aqui, destemida e com a postura ereta para que não tenha problemas de coluna no futuro, diferentemente de você. Abra um simples sorriso, Reed.

Ela não conseguia. - Espera aí, o que foi que eu fiz para você na noite passada? – questionou. –

Você se refere à folga? Eu disse que não precisava e que poderia trabalhar normalmente. Mas você insistiu! – lembrou à amiga. – Acho que eu deveria ter ficado por aqui...

White riu loucamente. - Não, você não deveria ter ficado por aqui, pois se o tivesse feito, nunca

conseguiria ter armado toda aquela engenhoca que ocorreu neste mesmo lugar aí onde você está. Admito que foi uma boa jogada, mas eu realmente fiquei com medo. Então quem sabe da próxima vez você possa apenas me passar um trote por telefone mesmo. Você não gastará com o ator e eu não quase terei um ataque cardíaco.

Debruçada no balcão, ela respondeu: - Eu não faço ideia do que você esteja falando. - Haha, qual é. O cara que você contratou para aparecer por aqui com uma

faca e dizer que queria me matar. Uh, medo total! O clima noturno realmente contribuiu para que você pregasse a sua peça direitinho, sua safada!

Christine saltou, dirigindo-se a passos largos até a amiga. Pegou-a pelo braço, fazendo com que ela a olhasse nos olhos.

- O que você disse? - Ai, qual é o seu problema, hein? – a morena soltou-se da pegada forte. – Já

disse, o ator que veio aqui para me matar. Ele interpreta bem. Onde foi que você o contratou?

As mãos daquela mulher tremiam como nunca. - Ei... - Não era um ator, Becca – falou séria. A outra ainda não acreditava. - Deixe de fingir, ele até mesmo mandou um oi para você. Deixou um

envelope, que eu acho ser a conta do banco onde você deve depositar o pagamento pelo teatro todo, estou certa?

Silêncio.

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Reed deu alguns passos, ficando de costas. Teria de contar tudo agora que a amiga havia sido envolvida naquela história que parecia ter tido um fim. Nenhuma foto surgira durante algum tempo, porém agora elas estavam de volta. Ele estava de volta. E, além dela, queria a sua amiga. Que ligação aquilo tudo haveria de ter?

- Tem alguém me perseguindo. Começou há algum tempo atrás, com um rolo de fotografias...

As duas permaneceram conversando durante muitos minutos. Desta vez Avelã não escondera nada, e até mesmo confessou a sua descoberta sobre a morte de Sally Blue. Nada ficara de fora.

- E você tem ideia de quem pode estar fazendo isso, amiga? Christine encarou-a com firmeza no olhar. - Acho que você tem a resposta. - Eu?! – exclamou a morena. - Você o viu. Ele lhe atacou. E então foi a vez de White explicar exatamente tudo que acontecera na noite

anterior. Ao contar, a mesma sentira mais pânico ainda, sabendo agora que tudo era verdade.

- O que faremos? - Eu não sei. Gostaria de pedir ajuda, ou até mesmo correr para a polícia. Seria

o mais certo e fácil, porém eu estou com medo de que ele esteja vigiando cada passo meu. Se isso aconteceu com você, não duvido de mais nada que ele possa fazer caso eu o denuncie. E seria ridículo, eu nem ao menos tenho um suspeito.

A amiga assentiu. - Acho que sei o que podemos fazer por enquanto... – disse a dona. A gaveta do balcão principal foi aberta, e o envelope foi entregue à

destinatária. - Descobrir o que ele quer desta vez – sugeriu.

A vítima havia feito de refém a melhor amiga. Alegou estar nervosa, e disse

precisar de uma companhia naquele momento, pois não agüentava mais olhar para aquelas fotografias. Então dividiram o trabalho, apressando aquilo tudo do jeito que dava. Sozinhas no escuro, as duas até chegaram a rir.

- Por que nunca trabalhamos juntas? - É uma boa pergunta – um sorriso foi oferecido na escuridão. O processo estava em andamento, e durante a lavagem dos negativos as duas encaminharam-se para a recepção, pretendendo renovar os ares durante aquele tempo.

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- Em todos os rolos continham apenas uma única imagem? Chris assentiu. Com metade do rolo inutilizado nas mãos, Becca observou-o com paciência e atenção. Deveria haver alguma pista. - Há uma única coisa que podemos tentar fazer... - Qualquer coisa. - Mexa-se e procure em nosso sistema todos os clientes que já compraram câmeras analógicas conosco. Como somos os únicos que as vendemos por aqui, deve ter algum registro. Reed já estava em frente ao computador, porém havia uma segunda questão a ser feita: - E se ele tiver conseguido a câmera de algum outro jeito? - É uma terceira possibilidade. Avelã encarou-a, expressando confusão. - A segunda seria...? - Bem, meu pai fazia parte de um clube para fotógrafos amadores e profissionais de Greenpack e toda a região aqui perto. Um grupo bem seleto, que sempre se reunia para saídas fotográficas. Eles com certeza eram os maiores detentores deste tipo de equipamentos. - E isso ainda existe? Quero dizer, o clube? - Iremos descobrir. - Você é um gênio. White concordou. - Teria de haver um nesta história. - Convencida. - Eu não diria isso, apenas... - Droga! – aquela sentada em frente ao computador a interrompeu. - O que aconteceu? - Nenhum resultado encontrado. Já tentei filtrar a busca, mas nada parece funcionar. Não sei o que está acontecendo com o sistema. - Realmente pensei que não conseguiríamos desta maneira, pois eu mesma nunca me encontro aí quando preciso, mas não poderíamos descartar a opção. Não se preocupe, ainda temos outros meios. Agora venha, não podemos perder tempo. Acho que já está na hora. Desistindo da primeira de suas três opções, ambas retornaram para a sala escura, e naquele momento o negativo já se encontrava pronto. Rapidamente o secaram com um papel toalha, sem muito cuidado, colocando-o no ampliador. Christine ficou de costas, tomando fôlego para ver a imagem que a outra havia ficado responsável por ajustar o foco. - Ai meu Deus – as três palavras saíram devagar da boca de Rebecca. Ao virar-se, Reed visualizou a fotografia, que desta vez trazia o seu gato cor de caramelo, docemente apelidado de Pudim, amarrado fortemente, com um pequeno corte nas costas, de onde o sangue era expelido. Ela quis gritar, porém estava farta. Fechou os olhos, sabendo que estava sendo observada pela melhor amiga, mas tentou de alguma maneira chegar a algum ponto

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fixo. A esquematização foi feita em sua cabeça, e só haveria um suspeito principal para tudo aquilo. Mesmo não querendo e quase não conseguindo acreditar, quando abriu os olhos, ela tinha a certeza: Havia descoberto a identidade de seu perseguidor. E iria atrás dele. - C? - Eu deveria saber... – odiou-se por não ter percebido antes. Os sinais haviam sido tão claros. – Não se preocupe em trancar as portas, pois eu sei exatamente onde ele está, e agora ele não virá atrás de você. Fique aqui, e não ligue para a polícia. Não avise ninguém, deixe-me cuidar disso sozinha. Eu vou pegá-lo. Desfez o nó das costas, retirando o avental com pressa. Jogou-o no chão, cruzando porta afora.

❈ Ela dirigiu em disparada. Enquanto o Fusca atingia o máximo de sua velocidade, ela lembrava-se daquela noite quando tudo acontecera. O trauma criado a partir de então era gigantesco, e ela ainda acostumava-se com a ideia da pessoa que o havia criado.

As 20h56 ela estacionou da pior – porém mais rápida – maneira que pôde. O seu carro chegou a deslizar um pouco na neve, mas ela o largou de qualquer jeito mesmo. Saiu dali e subiu a leve inclinação de terra que a levaria para a casa desejada. A face daquele psicopata era pintada em sua mente, e a cada segundo ela o odiava mais e mais. Subindo os três últimos degraus para chegar ao acesso da porta principal, ela bateu na mesma, repetidas vezes. Com força, sem parar. Demorou um pouco para que alguém aparecesse ali, porém quando ele abrira a porta, ela estava livre para matá-lo.

Christine jogou todo o peso de seu corpo contra o do homem, derrubando-o inesperadamente no chão. Ele atingira com as costas o sofá da sala de estar, que prontamente fora arrastado por alguns centímetros. Antes de levantar-se, ela agarrou a face do sujeito, arranhando as suas compridas unhas nele. Era o seu jeito pessoal de vingar-se.

- Cretino, bastardo! – estando em cima, ela lhe cuspiu. Em seguida Reed correu até a porta, ajuntando o objeto tão conhecido que

havia caído pelo caminho. Ela voltou-se para o homem, utilizando a bengala para acertá-lo nas pernas.

- Diga-me o quanto dói, Giles Brown – pediu ao ferí-lo. – Pois você sabe exatamente o quanto doeu em mim por três longos anos, seu desgraçado!

O psicoterapeuta usou a perna que não havia sido atingida para contra-atacar. Derrubou a mulher no chão, tendo a boina dela voado para longe. Quando

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conseguiu, aproveitou a oportunidade para tirar-lhe a bengala de metal das mãos. Agora era ele quem estava por cima.

- De que porra você está falando? – ele perguntou com um grito. A pancada doía.

Ainda no chão, ela esquivou-se para trás. - Não se faça de sonso, doutor. Demorei, mas finalmente juntei as peças. Ela lembrou-se de um dos dias no consultório, quando ele lhe falara que toda

aquela história das fotografias recebidas eram talvez um quebra-cabeças. - Estava tão claro... Você com esta perna atrofiada, mancando para lá e para

cá. Vamos, diga-me, foi você quem eu atropelei aquela noite, não é mesmo? Brown começou a suar. Tremeu uma das mãos, e consequentemente a bengala

que trazia nelas. - Christine, não me irrite... Você não sabe... - Ladrão, psicopata, perseguidor, assassino! – ela gritou. Pôs-se em pé. - Onde está o meu gato? – quis saber. – Sinto-lhe dizer que nesta você falhou.

Foi nesta curva que o seu joguinho psicótico terminou. Qual é, nenhum sinal de arrombamento e você é o único que tem a chave de minha casa. Pensou mesmo que seria tão difícil para eu ver certas coisas?

Agora ele tremia ambas das mãos. Deixou cair no piso gelado o utensílio brilhante, o que fez ecoar. Tendo uma de suas crises, o analista passou as mãos descoordenadamente pelos cabelos. Os seus olhos giravam.

- E a sua crise, hein Giles? Por que nunca comentamos sobre ela? Você acha que eu esqueci sobre o seu surto? Foi o bastante para eu saber que havia algo de errado. Diga-me, qual é o seu problema? – a sua voz era alta demais.

Ele não respondia. - Você sempre tentando me convencer do contrário. Que era tudo coisa de

minha cabeça, e que não havia motivos para alguém me perseguir. Dizendo que o medo era um pensamento ruim criado por mim mesma. Você me convenceu muito bem. Até agora.

E então ele estourou. Farto de ouvir aquelas acusações todas, Brown deu um passo adiante, fazendo-a recuar um passo igualmente. Christine contornava o grande sofá de couro, e ele a encarava ainda trêmulo. Após uma última longa tomada de ar, o psicoterapeuta começou a correr atrás da moça. Rodearam aquele móvel duas vezes, e na terceira foi Avelã quem tropeçou no tapete da sala e caiu por inteiro e de bruços sobre a mesa central de vidro do ambiente. Ele parou, observando-a. A garota estava imóvel, porém quando ele aproximou-se foi possível ouvir a sua respiração.

Reed exerceu movimentos um minuto depois, e aos poucos lentamente esgueirava-se dos cacos de vidros espalhados pelo tapete. Vários estavam cobertos com sangue vermelho como o fogo. Em suas pequenas mãos era possível notar os cortes proporcionados pelo acidente. Estando de joelhos, ele lançou um olhar certeiro para o rosto também ferido e ensangüentado de sua provável ex-paciente preferida.

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Giles Brown não havia gostado daquilo. Ah, não mesmo. Nem um pouco. Por isso andou sobre os cacos, chegando ao lado da mulher que entre lágrimas demonstrava a sua fraqueza para levantar. Abaixou-se apenas o suficiente para que a sua boca chegasse perto do ouvido dela, e então sussurrou:

- Christine, você pode guardar um segredo? Pausa. - Você está ficando louca. Deu-lhe um tapa na face desfigurada com toda a força que conseguiu. E então,

a perdedora caiu ao chão.

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X MARROM

Becca a odiava. Enquanto não conseguia tirar os olhos daquela criatura

desastrada, desejava a cada milésimo de tempo que a sua antiga companheira retornasse. Kacy Furgson Soarez não era uma exemplar funcionária, e certamente ela permaneceria como contratada do Revelando Sorrisos pelo tempo estritamente necessário. E isso correspondia até a volta de Christine.

- Puxa, vocês têm muitas coisas legais por aqui – falou a novata. White olhou para a garota de pouco mais de dezesseis anos que havia sido

selecionada às pressas. Tinha um par de olhos sem muita graça e cabelos tão lisos quanto uma superfície plana. Estes eram longos demais para serem considerados apresentáveis.

- É, temos. - Estou tão ansiosa para o Natal! – exclamou Furgson. – Você também não

está? - Animadíssima. - Que estranho, não parece muito – ela analisava a japonesa derrotada no

balcão do computador. – Enfim, é uma época tão divertida! Toda a minha família viaja para a nossa casa de campo, e lá celebramos o Natal com muitas pinhatas. Rebecca, você deveria ir comigo se não tiver nada melhor para fazer. Aposto que iria adorar!

- O que seriam pinatas? - Pinhatas. Você nunca ouviu falar? Recheamos uma vasília com doces e a

forramos com papel crepom. Os convidados, um de cada vez, colocam uma venda e tentam acertá-la lá no alto com a ajuda de um bastão. Três chances para cada um.

- Isso não faz parte do Natal. Faz? Kacy deu de ombros. - Meu pai é de origem mexicana, então cresci com estas tradições esquisitas.

Mamãe é dona de uma fábrica de suínos aqui em Greenpack, e ele se apaixonou por ela durante uma visita ao matadouro. O amor deles foi o suficiente para que papai deixasse a sua terra e viesse morar aqui. Por isso comemoramos o Natal de um jeito sem igual, pois todos sempre estão presentes. Não é demais?

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- Tocante. Kacy sorriu, feliz da vida, e voltou aos seus afazeres. A mulher que

obviamente não havia dado a mínima para a história que envolvia amor e porcos pensou em algo que pudesse fazer para que ocupasse a mente. Já havia visitado a melhor amiga no dia anterior, e era tão chato ir até lá sendo que elas nem mesmo pudessem conversar. Na loja também não havia mais nada para fazer, sendo que o movimento só voltaria a crescer depois das festas, quando todos teriam motivos para visitar um laboratório fotográfico. Então Becca chegou a uma conclusão: Ela realmente precisava de um namorado.

- Os homens são bonitos no México? – lançou a pergunta. A menina com o espanador de pó nas mãos olhou para trás, corando as

bochechas. Por um minuto, ficou sem resposta. - Qual é o problema? - Papai não gosta que eu fale sobre garotos. Só depois do casamento. White revirou os olhos. - “Papai” não está aqui. Diga-me sua opinião sobre eles. Soarez aproximou-se temorosa. - Bem, são muito belos. Tem grandes músculos e... - E? - Aquelas barbas me enlouquecem. Claro, tem aqueles que não chamam

muito a atenção, mas os outros... Hmmm, são homens de verdade. Grandes, poderosos, todos com cara de galãs de novela. São uns deuses!

A outra balançou a cabeça para ambos os lados. - Sua pequena biscatinha! Kacy espantou-se. - Foi um elogio – mentiu a morena. E então ela deu um risinho.

A dona do estabelecimento estava navegando pela internet enquanto o trabalho braçal ficava por conta da novata. Entrou em um site que anunciava passagens por baixo custo, interessando-se pelas maravilhas que ali eram ditas sobre... Bem, sobre o México. Entretida com aqueles corpos esculturais que eram mostrados para que se idealizasse a beleza das praias costeiras, ela não se importou quando o sino da porta chacoalhou.

O cliente entrou na loja, e logo Kacy correu diretamente para perguntar se precisava de ajuda. O mesmo apontou para o balcão, indicando que sabia o caminho que deveria tomar.

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- Pensando em viajar? – questionou ele para a mulher. Depois, espichou o pescoço, olhando para a tela do computador. – Uau, você vai para longe.

Rebecca não sabia que feições entregar para aquele lindo homem que estava em sua frente. Como poderia ser tão elegante? Talvez ela não precisasse viajar tão longe para conseguir um daqueles.

- John! – ela estava realmente surpresa em vê-lo. Dando a volta no móvel, ela abraçou-o. - Eu não esperava lhe ver. Faz muito tempo que não nos falamos e... - Desde que você me viu na rua e perguntou se eu não tinha interesse de sair

para um encontro com certa garota de olhos cinza que anda sempre com uma boina nos cabelos cor de avelã.

- Exato. Ele queria algo. Ela sabia o que. - E então, ela está?

Becca voltou o olhar para baixo, não dando a resposta para a pergunta feita. Gray pegou no pulso dela, como se insistisse. - Eu sinto muito por vocês, John... Quis virar-se, porém ele a impediu. - Ei – sussurrou. – Eu sei que não temos mais nada e que provavelmente ela ainda esteja brava comigo, mas mesmo assim eu não posso vê-la? Quer dizer, ela lhe disse que nunca mais gostaria de falar comigo? - Não é isso. Ele soltou-a, concordando com a cabeça. - Ela encontrou outro. - Não! – apressou-se a japonesa. - Então o que é? A mulher tomou tempo suficiente até que conseguisse enfim falar: - Christine está internada em uma clínica de reabilitação. - O que?! – ele explodiu, sendo a sua indagação um quase grito.

Aquilo fez com que Kacy se assustasse, deixando cair ao chão um dos porta-retratos expostos. Ela olhou para a chefe envolta no sentimento de culpa, querendo chorar e limpar a bagunça ao mesmo tempo, porém Becca fez um sinal com as mãos para que não se importasse tanto com aquilo porque havia sido um acidente.

- Por que isso? - Eu não sei ao certo, John. Aliás, sei e não sei. Ela deve ter lhe falado que

estava com alguns problemas, e que não era uma fase muito boa de sua vida. Acho que ela acabou por enlouquecer com tudo o que estava acontecendo e simplesmente explodiu. Sorte que o seu psicoterapeuta estava por perto e chamou por ajuda. Ele passou todos os medicamentos que ela vinha tomando, e a conclusão a que chegaram foi que deveriam interná-la durante um tempo. No fim será melhor para ela. Christine estava esgotada.

Becca mascarou a verdade com alguns rápidos detalhes falsos. Ela sabia que aquilo não seria o melhor para a amiga, pois ainda havia o perseguidor a solta. E ambas corriam mais risco do que nunca. Até John podia ser a próxima vítima!

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Porém o pedido de sua ex-funcionária havia sido claro: Não deveria contar o que sabia para ninguém, e muito menos envolver a polícia naquilo. Mas agora, estando sem contato com ela, não sabia se a premissa deveria continuar. Na maior parte do tempo, a morena sentia-se desprotegida.

- Onde ela está? Eu quero vê-la. - É melhor não. - Becca... Sei que é sua amiga, mas Christonia deve ter falado algo legal de

mim pelo menos uma vez. Você sabe que apenas quero o bem dela. Estou sentindo a sua falta, não consigo pensar em outra coisa. Preciso tentar vê-la, e para isso necessito da sua ajuda.

Ela ainda não estava convencida. - Você sabe que sou capaz de ligar para todos os lugares até encontrá-la, caso

não me ajudar. Ela está internada em Greenpack, certo? Não há mais do que um trio de clínicas por aqui...

- Está bem. Acalme-se. Curvou-se sobre o balcão, escolhendo um bloquinho de post it’s e uma caneta

que estavam ali. Rabiscou rapidamente o nome do local em questão e o seu endereço, entregando em seguida.

- Muito obrigado. Assentiu. - Saiba que ela nunca deixou de falar do homem que a fazia perder o medo de comer. Ela gosta muito de você, John. Ele sorriu com aqueles dentes brancos, tão brancos. - É recíproco – piscou. Olhando para o endereço e depois novamente para a pessoa em sua frente, ele agradecia em silêncio, dando alguns passos para trás. Antes de deixar o laboratório, resolveu voltar e dar um beijo na bochecha daquela que podia ser chamada de cupido. - Ei, senhor bonitão. México ou Argentina? Se bem que os latinos talvez não sejam uma boa escolha. Quem sabe Austrália... - Greenpack, sua besta. É só esperar mais um pouco. O homem levou a mão direita até a testa, fazendo posição de sentido, como quem dissesse que a veria em breve. Saiu de lá dividido. Partes de seus sentimentos estavam agonizantes, temendo pelo que quer que tivesse acontecido com a sua amada. Outros pedaços estavam tristes. Porém, a grande parte encontrava-se em alegria: O fato de vê-la outra vez o deixava extasiado. - Aí vai um homem perfeito... – suspirou Becca ao vê-lo sair. - O que você disse? White encarou a novata com a vassoura nas mãos que tentava limpar a sujeira causada. - Mas que diabos você fez com um de meus porta-retratos, Kacy?!

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Telmah estava arrumando a papelada em sua frente alguns minutos antes de a última paciente daquele dia sair de sua consulta. Aproveitou para colocar em ordem também a agenda do dia seguinte, pois seria o último em que trabalhariam antes do Natal. E isso se devia unicamente ao fato de a procura pelo psicoterapeuta ser constantemente grande, tendo pacientes agendados até o primeiro trimestre do ano seguinte. Giles Brown era realmente o melhor dos arredores.

- Até breve, senhora Macpark. A anciã que nunca parecia desistir – há trinta anos visitava aquele consultório

- deixou a sala do doutor e lentamente cruzou a recepção. Vestida com as suas inúmeras peças de roupas de lã, qualquer um se perguntava se ela não estaria com calor. - Tchau, tchau! – acenou de novo a recepcionista. - Hein? – a senhora que cheirava à naftalina olhou para os lados, tentando encontrar de onde viera aquela voz. Sem sucesso, ela desistiu. A mulher por detrás da recepção deu um risinho, achando graça. Fechou a agenda em sua frente, guardou os lápis e canetas em uma lata decorada e enfim a sua mesa estava arrumada. Exausta pelo longo dia de trabalho, ela bocejou. - São seis e meia ainda, meu Deus – sentia um cansaço interminável. Deixou a sua cadeira e retirou do blazer aquele micro broche de metal que a identificava. Guardou-o na bolsa, e em seguida agarrou o pesado casaco que a protegeria do frio absoluto que fazia naquela antevéspera de feriado. Com muito cuidado para não causar nenhuma dor na cirurgia recém realizada, vestiu-o lentamente. Na cabeça pôs uma touca que a deixava com cara de presidiária, porém com isso ela não se importou. - Passar na escola de Timothy para apanhá-lo, cruzar a rua e comprar dez pães frescos, caminhar alguns minutos até em casa e preparar o jantar. Basicamente o mesmo de sempre – lembrou a si mesma. Quando colocou a bolsa no ombro, ouviu o barulho da porta da sala de seu chefe se fechando. O mesmo se aproximou, parando em frente ao balcão. Ali ele depositou um maço robusto de notas em dólar, unidas por uma borracha amarelada e elástica. Ela observou aquilo sem entender. - Senhor? - Está aí tudo que lhe devo. Giles trazia debaixo do braço a sua pasta de trabalho e outra bengala – esta sendo uma comum, não mais metálica. - Mas você não me deve nada, e... Ele levantou a mão direita, em sinal de pare. - A partir de amanhã você não precisa mais vir. Obrigado pelo seu trabalho até hoje, senhora Tuckson.

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A mulher estava em choque. Como aquilo podia acontecer? Havia conseguido aquele emprego tão facilmente e há tantos anos atrás... O que teria ela feito de errado? Os seus serviços não eram mais rentáveis? Trocá-la-ia por uma moça jovialmente elegante? Ela não podia adivinhar. A sua cabeça balançava para ambos os lados, em negação. - O que eu fiz? – ela quis chorar. - Ei, sem pânico. Você foi extremamente ótima para mim. Não há nada que você tenha feito de errado, Telmah. Mas sinto em dizer que precisarei fechar o consultório. - Ah! – ela alegrou-se, enxugando os olhos já irrigados. – Então após as festas tudo volta ao normal, certo? Houve uma fuga de sentenças. Nenhuma foi dita em reposta. - Doutor? - Estamos fechando para sempre – ele falou rápido. Era como se o mundo dela houvesse desabado. Os seus dias a muito já haviam tornado-se rotina: Acordar, pentear os longos e armados fios de cabelo, escolher a roupa apropriada para o dia em questão e ir para o seu local de trabalho. Era sempre o mesmo, nunca mudava. E, por isso mesmo, não havia encontrado algum tempo para refletir sobre o acaso de algum dia aquilo viesse a ter um fim. Em seu pensamento, morreria trabalhando naquele consultório. Veria até o final de seus dias as mesmas faces desesperadas por ajuda de um psicoterapeuta que, para ela, era um homem simplesmente maravilhoso. - Vamos... – ele havia entrado na cabine de recepção e a pego pelo braço. Estava ali parada havia um minuto. Os dois caminharam pela sala de entrada, e Telmah apenas olhava para aquelas cadeiras vazias que a partir daquele momento para sempre assim permaneceriam. E então ela lembrou-se de algo: - Mas senhor, os pacientes! Eu tenho que avisá-los, eles não sabem de nada! – ela estava desesperada. – Virão nos procurar e encontrarão esta porta fechada, e... Não podemos fazer isso com eles! Ele pousou a mão sobre o ombro da fiel companheira. - Não se preocupe – agora a sua voz era pausada – daremos um jeito nisso. Venha, tudo ficará bem. Brown agarrou a chave do consultório e desligou as luzes, não olhando para trás. Trancou a porta, e ambos agora caminhavam pelo corredor silencioso – a não ser pelo fino choro da mulher. Os passos lentos eram encarados como se caminhassem frente a um caixão, estando eles em algum tipo de funeral inesperado. Porém não havia um enterro, não havia pessoas de luto. Alguém morto, porém, até poderia ser. Mas o ex-psicoterapeuta mais famoso de todo o Condado de Greenpack não se arrependia daquilo, pois não aguentava mais já havia anos. Estava definitivamente certo de sua decisão. Ele sabia que precisava dar o fora. Necessitava, o quanto antes, deixar a cidade.

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Ele não agüentou esperar, e naquele mesmo fim de tarde resolveu visitá-la. Fez de tudo para esperar que um novo dia chegasse, porém a visão de sua pequenina presa em uma clínica – quando, para ele, obviamente ela não merecia estar ali -, lhe era perturbadora.

John decidiu exatamente o que levaria para ela. Para isso, abriu a porta do armário da cozinha e retirou de lá uma grande barra de chocolate. Nada poderia ser melhor. Pronto (e apressado) para sair, o telefone tocou. Olhou para o número no visor, sabendo de quem se tratava.

- Alô? - Papai não quer deixar que eu vá dormir na sua casa esta noite, tio! –

reclamou o pequenino do outro lado da linha. - É que... - Espere, vou passar o telefone para ele. Pai! – gritou. - Henry, Henry! Gray ouviu uma conversa travada entre a criança e o seu próprio pai. O velho

disse que o menino não deveria incomodar o tio todas as noites porque mais ninguém tinha paciência como ele.

- Henry? - Tudo bem, ele não quer falar. Mas eu vou mesmo assim. O homem não queria magoá-lo. - É melhor não, carinha. - Mas por quê? Ele não sabia como falar aquilo de um modo correto. - Estou indo visitar Christine. Ouviu-se um ‘oh’ de surpresa do outro lado. - Então ela te quer de volta? Com a mão esquerda ele segurava o seu celular e olhava para o plano de

fundo, onde uma fotografia que ele havia tirado de Christonia em um de seus encontros estava estampada.

- Talvez – murmurou. – Quer dizer, eu não sei. Provavelmente não. Mas eu preciso vê-la novamente. Ela não está muito bem.

- Está doente? – quis logo saber a criança. – Ah, do que eu estou falando? Não me interessa. E se eu bem te conheço você deve estar roendo as unhas para ir vê-la. Desliga esse telefone e corre de uma vez.

Ele riu. - Fique bem, pequeno. Boa sorte com papai. - Boa sorte com a mulher da sua vida. Desligou o aparelho e correu para a porta de seu apartamento, pegando um

casaco que estava em cima do sofá antes de sair. No elevador ficou encarando aquele

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pedaço de papel reduzido, tentando lembrar-se qual era o caminho mais rápido para que pudesse chegar até o tal endereço. Formando o caminho em sua mente, ele entrou no Jaguar XJ e deu a partida. Em pouco menos de oito minutos já havia chego ao seu destino. Era uma clínica muito conhecida de Greenpack. “Este lugar é para loucos”, foi o que ele pensou ao entrar pelas portas automáticas. Observou o gigantesco espaço oferecido à entrada do local, onde tudo era absolutamente branco e frio. O teto era mais alto do que o comum, e as paredes pouco traziam decoração. Algumas pessoas aguardavam sentadas em bancos diversos. Gray as ignorou, dirigindo-se rapidamente até a recepção. - Preciso ver um paciente – vomitou as palavras. - Boa noite – sorriu a mulher de fios mais cacheados do que aquela pequenina das fábulas. – Nome? - Christine Reed. Ela checou com seus dedos rapidamente habilidosos o nome da paciente. Na ficha da mesma existiam todas as informações que ela precisava saber para permitir ou não a entrada de visitantes. - Ah, mas que pena... – ela tinha um ar infantilizado que deveria ironicamente agradar. - O que houve? - Esta paciente pode receber visitas apenas até as sete da noite. São normas da clínica para situações como esta. Antes que pudesse perguntar de qual situação ela se referia, o homem olhou para o relógio no pulso. Ele tinha nove minutos. - Ainda tem tempo. Quero vê-la. A funcionária loiríssima girou na cadeira de rodinhas e ficou de frente para um grande armário. Escolheu o crachá que dava acesso livre ao quarto de número 319 e entregou-o com um grande sorriso. - Se apresse! Ele concordou com a cabeça e tomou o caminho por uma porta lateral que deu acesso a um longo corredor. Olhando para cima, onde havia indicações de localização, tomou o rumo certo, caminhando mais nervoso do que nunca até que enfim tocasse aquela maçaneta. Estava tão perto novamente... Abriu-a e enxergou uma moça de trajes verdes claros e cabelo presa. Estava parede em frente à cama, de costas para a porta. - Com licença... Ele entrou, e a enfermeira virou-se para assentir. Depositou alguns objetos miúdos em cima de uma bandeja metálica que pairava em cima da cama e a agarrou em seguida. E então John pôde finalmente vê-la. Christonia estava deitada, com os seus olhos cinza fechados. Não se movia, e muito menos parecia ter notado que alguém havia entrado no quarto. - Ela está dormindo? – perguntou para a mulher antes que ela escapasse. - Sedada. - Mas por quê?

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- Ainda se debate durante as noites. Acorda gritando que há alguém atrás dela, e então pede para que a soltem. - Quando ela irá acordar? - Provavelmente apenas pela manhã. Sedei-a agora, pois pensava que ninguém mais a iria visitar a essas horas. Falando nisso, você tem cinco minutos. Informaram-lhe? Ele balançou a cabeça. - É tudo que preciso. A enfermeira foi-se e ele permaneceu. Aproximou-se apreensivo daquela cama tão quieta, porém os seus passos eram mais. Podia escutar a suave e demorada respiração dela. Visualizou aqueles dois pequenos cortes contidos no rosto feminino, e então agarrou a sua mão. Ficou em silêncio, apenas lutando contra a redução inevitável de todos os seus sentimentos que eram esmagados impiedosamente. Beijou-lhe a testa com cuidado, e sabia que os minutos haviam passado rápido demais. Porém ele voltaria no dia seguinte, e disso estava certo. - O que aconteceu com você, minha pequena?

Já era noite quando Giles parou o seu carro novamente naquela rua perigosa de um bairro mais perigoso ainda. Saiu do mesmo com a ajuda de sua bengala, sabendo que estava sendo observado por olhares que provinham de todos os ângulos possíveis. Tentou não importar-se, apenas andando em direção à entrada daquela casa. Havia crianças brincando na rua, e ele imaginou se todas elas sabiam do que acontecia por aquelas redondezas. O maior chefe do tráfico de Greenpack residia em uma região não tão afastada do centro.

Brown observou aquele mesmo velho cego da outra vez. Ele parecia ser o guardião da casa ou algo do gênero. Mesmo com os seus passos leves que exerciam pouco barulho, ele notou a sua presença. Talvez por isso mesmo estivesse designado a vigiar o local.

- Quem está aí? - Marcus outra vez. O velho enrugado assentiu, dando uma risada em seguida. - Você já é quase de casa. Passe, passe... – ele gesticulou com uma das mãos

como se exercesse um grande esforço. O homem que mentira seu nome verdadeiro (não pela primeira vez)

caminhou pelo longo corredor de céu aberto. O casebre ficava logo no fim daquela casa rebocada. Pôde ver que na mesma havia dois sujeitos, certamente não a sua espera, pois ele aparecia apenas quando queria, sem avisar. Os seus cigarros acesos eram apenas pontos de luz ínfima naquele breu total.

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- Ora, vejam quem vem lá! – exclamou Travis Black. O traficante jogou o que fumava ao chão e pisou em cima. Logo estendeu a

mão direita em cumprimento à visita. Não obtendo reciprocidade, ele abaixou-a. E então sorriu.

- Poxa, você precisa aprender um pouco de bons modos... - Preciso do máximo que você tiver – interrompeu o psicoterapeuta

provavelmente aposentado. – Para agora. As duas figuras em sua frente trocaram olhares silenciosos, porém no fim

caíram na gargalhada. Aquilo fez diminuir a paciência que Brown havia trazido consigo.

- Parem! – ordenou. Rapidamente o maior dos homens deixou de rir e, pegando no colarinho do

senhor de bengala, arrastou-o até uma das paredes, olhando fundo em seu par de olhos detrás dos óculos.

- Ninguém fala neste tom comigo, entendeu? Venho lhe poupando, pois você me rende lucro, velhote. Mas cansei de você. Acha que pode chegar na minha casa e dizer o que quer? Assim, desse jeito, como se mandasse em alguma coisa? Você tá muito enganado...

- É pra isso que você está aqui – respondeu baixo. Black possuía mais vermelhidão ainda em seus glóbulos oculares. - O que é que você disse? - As pessoas vêm até você, dizem o que querem, pagam e vão embora. É assim

que funciona. Você não passa de um traficantezinho de merda de uma cidade pequena, encare isso.

Giles nunca teve medo. Até aquele soco que lhe recém havia sido aplicado, fazendo-o virar o rosto contra a parede suja.

- Você perdeu a noção do perigo?! O grito ecoou pelas ruas, fazendo alguns cachorros ali por perto latirem.

Travis levou a sua mão direita até as costas, pegando a arma que trazia engatada na cintura. Levantou-a, mirando exatamente no meio da testa do homem de óculos tortos.

- Não faça isso chefinho... – pediu desesperadamente o mais baixo dos homens que também encontrava-se ali.

Um sorriso surgiu por dentre os lábios daquele jovem negociador de drogas. Encostando o cano do revólver na testa de seu refém, ele ria para dentro. O silêncio que veio em seguida foi brutal, pois Giles realmente temeu o pior. Mas não sabia o porquê, pois se morresse muitas coisas viriam a melhorar.

- Poom! – exclamou o homem armado, rindo alto depois. Quando parou, voltou a depositar o objeto em sua cintura e olhou rudemente

para o médico. - Peça desculpas, doutor. Nada. - Desculpe-se! Nada.

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Desta vez um soco lhe foi aplicado na barriga, onde a sensação era infinitamente pior. Ele mal conseguia respirar, e o seu estômago doía. Contorceu-se em um dos cantos, deslizando até o chão, onde ao chegar levou um chute como complemento.

Travis abaixou-se, apalpando os bolsos daquele homem. Aproveitou-se da situação e de um deles retirou um maço de notas que serviria para comprar a heroína que desejava naquela noite.

- Aprenda a nunca mexer comigo. Giles gemeu um pouco devido a dor de outro chute que lhe foi dado naquela

região tão importante para os homens. - Grumpy, fique aqui e mande-o embora quando o velhote criar forças para

andar – ordenou para o baixinho. – Tenho certeza de que ele não voltará a aparecer por aqui.

- Certamente, chefinho. Está de saída? Black acendeu um novo cigarro na noite de lua cheia. - Vou até a casa daquela ruivinha da esquina. Tem uma cara de vagabunda,

mas... É melhor do que perder o meu tempo com lixo. Lançou um olhar para Giles Brown que ainda encontrava-se no chão e, dando

o maior dos chutes, saiu.

Becca sentiu-se a pessoa mais feliz do mundo quando percebeu que já estava na hora de dar o fora da loja. Mandou Kacy para casa, e a novata ainda comentou sobre o tempo ter passado rápido demais, coisa que ela absolutamente não concordava.

Andar a pé nunca lhe foi uma atividade muito agradável. O seu carro havia ido para a manutenção semestral que a concessionária havia lhe recomendado, estando ela obrigada a caminhar as seis quadras que separavam o laboratório de seu duplex tão aguardado. Caminhando debaixo de uma fina neve que escapava do céu, ela se perguntava por que aquela inspeção tinha de acontecer justamente na época mais fria do ano.

- Agora é uma certeza: Vou morrer – afirmou. – Vou morrer congelada. E a culpa é daqueles bastardos que não sabem agendar uma revisão na época correta. Provavelmente estão todos em suas casas quentes e confortáveis neste momento. Dane-se as mulheres que têm de caminhar na escuridão a essa hora da noite. Eles apenas não se importam.

Era mania desde criança falar consigo mesma. Mas na verdade ela apenas fazia isso para ignorar qualquer medo que estivesse sentindo por estar andando sozinha àquela hora.

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White vasculhou a sua bolsa em procura das chaves de casa. Ouvia o som das mesmas ali, porém nunca conseguia apanhá-las. Quando as agarrou, pôde escutar o barulho de passos ali perto. Varreu a rua com o seu olhar de águia, porém nada encontrou.

- Calma, Becky. Aquele maníaco não está mais atrás de você. Esqueça isso agora.

Ela caminhou com mais pressa em direção a última quadra que a levaria ao destino final. Porém, por mais que quisesse que aquilo fosse uma mentira, sabia que estava sendo perseguida. Podia sentir alguém atrás de si. Cada vez mais perto. E mais próximo. E tão perto que...

- Estou armada! – ela gritou, virando-se e rodando a sua bolsa no ar.

Ele empacotou as pequenas coisas que decidiu levar consigo. Objetos de muito valor – em todos os sentidos -, pequenos presentes que havia ganhado e mais alguns itens de uso pessoal. O resto dos móveis permaneceria ali, trancados naquela casa que seria muito mais silenciosa. Talvez os fantasmas de sua mulher e filhos voltassem a aparecer à sua procura.

O toque alto do telefone o fez despertar das memórias que passavam por sua mente ao embalar aqueles porta-retratos. Dirigiu-se até o aparelho, onde fechou os olhos após ver aquele número na tela. Ele não queria atender, não poderia mais acreditar naquilo. Porém ele ouvia a voz dela quando o fazia. Era o suficiente.

- Alô. Primeiramente o nada. - Giles... E então o tudo. - Você não existe mais, Melanie. Vá embora. Deixe-me viver! Pela primeira vez os seus olhos lacrimejaram. - Hoje descobri que o meu amor não me ama mais. Tentei ignorar, fingir que

isso para mim tanto faz. Estou eu aqui, arrependida por lhe ter permitido partir... - Sabendo tardiamente que contigo eu gostaria de ir – ele completou o poema

que os dois haviam escrito em um trabalho da faculdade que haviam cursado juntos muitos anos antes.

Giles Brown derramou suas lágrimas que rolaram pelo telefone em suas mãos, fazendo graça.

- Hoje descobri que o meu amor não me ama... - Eu vou sempre te amar, Melanie – falou rapidamente, desligando depois.

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Sentia-se tão tolo e fraco por chorar. Os machucados deixados pelo traficante de nada importaram, pois a dor interior era muito mais intensa. Debruçado naquela pedra de granito, expulsou tudo que guardara durante muito tempo.

Talvez os fantasmas de sua mulher e filhos voltassem a aparecer à sua procura. Porém ele não estaria mais ali.

O que a dona do laboratório viu fora um homem desconhecido parado em sua frente. O fato era que ele não tinha nenhum pouco cara e jeito de assassino.

- Perdão, eu não tive a intenção de... Ela interrompeu aquelas mãos que gesticulavam gestos de desculpa: - Quem é você? Deu dois passos para trás, nunca tirando os olhos dele. - Maurice Silver, padre da catedral de Greenpack. Você deve ser Rebecca,

certo? Primeiramente ela permaneceu quieta, assentindo somente após alguns segundos. - Puxa, eu me lembro de você. Vocês duas costumavam levar para a Igreja todos os seus pertences para que benzêssemos. Era engraçado. - Você... - Fui o seu professor de catequese. Ela não sabia como não tinha lembrado. Aquele homem estava exatamente igual ao que era durante sua infância. Mesmas rugas, mesma velhice. - O que o senhor faz a essa hora da noite pela rua? Ele cruzou as duas mãos, parecendo abatido. - Fiquei sabendo que Christine está com problemas. Irmã Claire Hardwick visita os pacientes da Clínica Bellmontt todas as semanas para passá-los mensagens positivas. Quando a viu por lá, imediatamente informou-me. Becca achou tudo aquilo muito estranho. - Christine está bem. Logo sairá de lá. Ele concordou, porém era visível que queria saber muito mais. - Desculpe-me pelo susto, senhorita White. Não voltarei a incomodá-la, tenha uma boa noite. Bizarro foi o que ela pensou. - Ei, padre! – chamou-o antes que pudesse desaparecer. – Posso saber o porquê do interesse? Ele parou onde estava, dando uma rápida olhada para trás. Fitou com pressa os olhos curiosos daquela mulher, e então os tirou de sua visão. Voltou a andar, mais quieto do que antes.

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No primeiro horário de visitas do dia seguinte, lá estava a pseudo-japonesa visitando novamente aquela clínica. Não gostava do ambiente, porém precisava ver a sua amiga. Aproximou-se da recepção, fitando a moça de cabelos cacheados que provavelmente já havia decorado o seu rosto.

- Christine Reed – foi o que duas vozes falaram ao mesmo tempo. Ela olhou para o lado, observando um homem de cabelos ralos e óculos. Ele

sorriu. - Você deve ser o psicoterapeuta que a trouxe para cá. Giles estendeu a mão. - Não me odeie por isso. White piscou. - Aqui estão os seus crachás. Vocês podem permanecer até as nove horas da

manhã. O homem gentil abriu a porta para que a moça pudesse ter acesso ao corredor.

Agradecendo, ela iniciou um assunto: - Será que você poderia me contar mais sobre aquela noite? Tentando não transparecer o seu receio, ele falou: - Christine foi até a minha casa e continuou a contar sobre aquelas fotografias

que tanto a perturbavam. Disse não estar agüentando, e que estava ficando louca. Eu já havia aumentado a sua dose de remédios, porém parecia não ter adiantado. Ela estava completamente fora de si naquela noite. Estava nervosa, roia as unhas e passava as mãos pelos cabelos – ele inverteu os papéis apenas. – Quando começou a se auto-mutilar, liguei urgentemente pedindo ajuda. E então, em conversa com os médicos daqui, resolvemos interná-la. É claro que não contei para eles o problema em si que tanto a fazia revoltar-se, mas...

- Espere aí – ela disse ao parar em frente ao quarto. – Você disse que foi ela mesma quem provocou aqueles cortes no rosto?

Ele engoliu em seco. - Sim... Creio que a nossa pequena ali dentro criou toda essa história maluca.

É um distúrbio recorrente que estudamos muito na psicologia. O indivíduo acaba exatamente neste estado.

“Mas ainda não terminou para ela”, pensou a mulher. Aquilo era estranho demais. Becca sabia do desespero da melhor amiga,

porém não acreditava que ela pudesse ter chego ao tal ponto descrito por aquele cara estranho. Anos de terapia haviam sido investidos, e a mente de Christine Reed podia não ser a mais sã, porém não estava tão deteriorada. E, assim como John, ela também

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compartilhava da ideia de que Avelã não precisava estar internada ali naquele local para loucos.

- Vou entrar para despedir-me. Estou deixando a cidade amanhã, partirei para convenções pelo mundo afora – explicou. – Você vem?

Ela olhou para o homem do qual a palavra era duvidosa. Olhando para o fim do corredor, ela percebeu a presença de alguém novo.

- Ficarei aqui, vá. Era o que o doutor queria.

Giles entrou no quarto de sua ex-paciente para que pudesse se despedir. Arrastando os passos – ele ainda tinha medo de chegar perto dela -, aproximou-se lentamente. Olhando para os cortes leves que ela tinha na face e que quase já desapareciam, ele lembrou-se daquela noite.

- Eu não queria que tivesse sido deste jeito, Christine. Ele temeu em pegar a sua mão, mas acabou por fazê-lo. Lembrou-se de todos

os variados momentos em que haviam passado juntos naqueles últimos três anos, estando certo de que iria sentir falta daquelas consultas tão diferentes. Queria ter impedido-a de presenciar uma de suas crises. Talvez se tivesse contado tudo para ela como ela havia feito com ele... Mas confiar sempre lhe foi uma tarefa muito difícil a se fazer. Até aquele momento.

- Melanie estava absurdamente linda naquela noite. Eu nunca a tinha visto daquele jeito. O seu vestido a deixava mais mulher do que nunca, sendo decotado no ponto certo em suas costas. As crianças estavam felizes e corriam de um lado para o outro da casa. Eu, enfim, estava nervoso. Era o casamento de minha irmã mais nova, e não era um bom momento de minha vida. Problemas nunca haviam sido tão presentes. Mas sabe, tentei não importar-me. Bebi alguns goles de whisky para que conseguisse me acalmar e então estávamos todos prontos. O meu amor arrumou os pequenos no banco de trás, colocando o cinto de segurança em ambos. Eu a esperei no banco da frente, e quando ela entrou eu dei aquele que foi um de meus últimos olhares para ela. Melanie continuava radiante. Até perguntou se havia algo de errado nela, porém eu respondi que seria impossível. Pegamos a estrada para deixar o Condado, e foi quando eu perdi o controle. Um carro vinha em nossa direção, tentando ultrapassar um caminhão. Não tive escolhas a não ser desviar para o meio do nada, onde fomos arremessados e então tudo foi pintado de vermelho. De sangue. Todos estavam mortos, a não ser pelo maldito homem que havia bebido um pouco mais. Eu. Sei que talvez não tenha sido inteiramente a minha culpa, mas eu poderia ter morrido no lugar deles. Acho que as crianças haviam tirado os seus cintos, o que as fez serem lançadas para fora do automóvel. Foi horrível.

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As suas mãos tremiam agarradas nas da mulher imóvel. - Foi por isso que eu soube, Christine. Eu soube no mesmo minuto que você

cruzou a porta de meu consultório, contando tudo para mim. Soube que nós dois éramos iguais.

Ele largou a mão da mulher ao lado do corpo da mesma, e então percorreu com os dedos gélidos o pescoço de Reed. Fechando a palma da mão em volta do pescoço dela, ele pressionou com um pouco de força. Se estivesse acordada, provavelmente ela estaria sufocando.

- É uma pena você ter inventado toda essa história de perseguição. Seria mais fácil se alguém estivesse mesmo querendo lhe matar. Iriam livrar-te da culpa. Ela não te atormenta?

Bateram na porta, e este foi o sinal para que Brown retirasse as mãos dali. - Com licença – era a voz da enfermeira, que trazia algum cicatrizante para o

rosto da jovem. O antigo psicoterapeuta abaixou-se, sussurrando uma pergunta no ouvido

dela: - Por que os desgraçados como nós nunca morrem?

A morena abraçou John naquele corredor branco e vazio. Sentiu-se feliz por encontrá-lo por ali. De instinto ela quis comentar a conversa recém travada com o tal psicoterapeuta, mas antes lembrou-se de que aquilo deveria permanecer apenas com ela.

- Eu sabia que você viria o quanto antes. Gray riu. - Na verdade eu vim ontem, porém tive cinco minutos. - Você não existe – ela lhe ofereceu um leve soco no braço. – Christine vai

ficar feliz em saber disso tudo quando acordar. - Ela ainda está sedada? - Não entrei no quarto, o médico dela está lá. Mas creio que sim. - Acho que não há necessidade disso. Não entendo como ela veio parar aqui

de uma hora para outra. Becca mordiscou o lábio inferior. - Você sabe. Há algo que está escondendo de mim. - Escute, John. Logo ela irá acordar e vocês conversarão. Estou certa de que se

houver algo para ser dito, Reed não irá hesitar em lhe contar. Ele entendeu. - Preciso ir para a casa de minha mãe amanhã durante a noite de Natal. Você

já sabe o que irá fazer?

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Eles observaram uma enfermeira entrar no quarto 319. - Acho que você sabe exatamente a resposta. - Certo, e o que você pretende fazer se ela estiver sedada durante todo o

tempo? O homem de olhos verdes e cabelos espetados não precisou pensar. - Olharei para ela. Será o... - Melhor presente. - Isso mesmo. A porta voltou a abrir-se, e de lá saiu aquele médico que olhava apenas para o

chão, evitando despedidas. Um arrepio percorreu o corpo da japonesa. - Não gosto dele.

❈ Os seus olhos que se abriam aos poucos enfim lhe permitiam a visão. Estava morrendo de frio, e uma rápida dor de cabeça lhe visitava. No ambiente pouco apresentado, a mesma enfermeira de sempre a acompanhava. - Havia alguém aqui. Aquela de uniforme verde assentiu. - Um moço e uma moça muito bonitos. Seus irmãos, por acaso? Ele permaneceu aqui até o último minuto permitido. Sempre é difícil convencê-lo a sair, estou certa de que gosta muito de você. Christine não fazia ideia de quem poderia ser. - O que está acontecendo comigo? Sinto tanto sono que acho que poderia dormir para sempre... - É normal. Estamos pegando pesado nos medicamentos, e há ordens expressas para manter-lhe sedada o máximo de tempo possível, preferencialmente durante o horário de visitas. Sabe que estou lhe contando tudo isso porque você não lembrará mesmo quando acordar, né? Ela revirou-se um pouco em seu colchão. - Não quero voltar a dormir, por favor... Tire-me daqui. A enfermeira pegou-lhe o rosto e forçou para que tomasse algumas cápsulas e um pouco de água. Aquilo fez com que rapidamente a visão da paciente viesse a tornar-se embaralhada, confusa.

- Eu realmente sinto muito – confessou a funcionária. E então ela voltou a não mais enxergar.

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A noite estava estupidamente congelante. E, em vez de ser a neve que caía do lado de fora, desta vez era uma chuva torrencial que havia começado ainda no fim de tarde. Era a noite de Natal, portanto a Clínica de Reabilitação Bellmontt estava vazia. Antes que a enfermeira que cuidava de Christine saísse, John conversou muito com ela para que permitisse a sua estadia durante aquela data especial. Não queria a deixar sozinha de maneira alguma, portanto tentou a todo o custo (e isso envolveu dinheiro obviamente) permanecer ali. E conseguiu.

Poucos eram os funcionários que estavam de plantão, então não foi muito difícil para que ele entrasse no quarto de sua amada e ali permanecesse. Tempos antes, durante o verdadeiro horário de visitas, ele havia deixado escondida no armário daquele aposento uma sacola com diversas coisas. As 19h12 ele resolveu abri-la.

- Trouxe o que me pareceu conveniente – explicou ele ao corpo adormecido em sua frente. – Biscoitos.

Abrindo o pacote daquelas delícias amanteigadas, ele comeu em silêncio, apenas existindo o som de suas mastigadas. No fundo contentava-se por Reed estar dormindo. Certamente se estivesse desperta o mandaria para casa para que pudesse comemorar junto de sua família. Ela não permitiria que ele ficasse ali, por mais que quisesse. John tentou pensar em algum assunto para comentar com ela. Decidiu falar sobre como deveria estar sendo aquela noite em sua casa. - A essa hora, provavelmente Henry está quieto demais. Diferentemente de sua irmã, sempre tão falante. Sei que ele gostaria que eu estivesse lá. Talvez o único. Papai já não anda muito bem da memória, e a sua mulher perde muito tempo tentando ensinar boas maneiras ao pequeno. Mal sabe ela que as crianças apenas aprendem quando não querem aprender. Gray limpou as migalhas de suas vestes. - Já lhe contei sobre o meu irmão? Bem, ele é a minha cara. Literalmente – sorriu. Sempre tão introspectivo, de poucas palavras. Papai o manda contar piadas todas as vezes, mas David alega nunca ter uma. Acho que sou o único a entendê-lo tão bem, e isso é até meio óbvio. Fico feliz por ele finalmente estar concretizando o seu sonho. Semana passada recebi um postal seu lá da Europa. Estou certo de que ele acabará ficando por lá durante mais tempo do que o previsto. Tarde demais ele sentiu-se ridículo por comer ali. Rapidamente fechou o pacote e foi até o banheiro para lavar as mãos, porém aquilo não o impediu de continuar comentando. - E a casa fica mais cheia ainda com a presença de todos meus tios e tias que vivem afastados daqui. Todos os anos é a mesma coisa: Chegam três dias antes e vão embora três dias depois. A casa de papai parece uma pensão ou algo assim. Mas é engraçado. Sempre vivemos rodeados por muitas pessoas. Eu e meu irmão crescemos cercados de tudo que sempre queríamos. Era tudo tão bom, até a partida de minha

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mãe. Lembro que David e eu não entendíamos exatamente o que estava acontecendo, porém sabíamos que algo estava errado. Ela demorava em chegar do trabalho todas as noites, e quando finalmente chegava, já havíamos ido dormir. Bem, era tudo mentira de meu pai, logicamente. Mamãe nunca voltou para casa mesmo. Foi difícil para que crescêssemos sem aquela figura feminina por perto. David fechou-se muito mais do que eu, passou meses sem dizer palavra alguma. Porém nunca chorou. Eu aprendi a seguir em frente muito rápido, e tentava a todo custo fazer com que ele conseguisse ser do mesmo jeito. Nós dois sempre fomos um só. O rosto da mulher nunca se alterava. Era angustiante para ele. - Por que você não me responde? Volte para mim, Christonia. As suas tentativas eram inúteis. - No próximo ano a levarei para passar o Natal conosco. Estou certo de que todos gostarão de conhecê-la – tentou outra vez. – Disse que Henry ficou feliz ao saber que eu havia voltado a conversar com você? Quer dizer, não que você saiba que eu voltei a fazer isso, mas... Então ele desistiu por algum tempo. Emudeceu-se, sentando na cama onde ela estava. Recolheu sem esforço o corpo em quietude e acomodou-o em seus braços. A chuva lá fora era barulhenta demais, diferentemente daquele quarto.

A cozinha estava uma bagunça, porém tudo estava praticamente pronto. Ela sentia-se orgulhosa por ter conseguido sair dali pela primeira vez com resultados satisfatórios.

- Renée, prove isto. Becca ofereceu uma colherada de alguma mistura qualquer para a sua colega

de quarto. Era cor de cereja e de consistência não muito firme. - Deus, quantas colheres de açúcar você colocou nisto? – perguntou exibindo

uma cara desgostosa. - Uma xícara? A magérrima menina de cabelos extremamente curtos revirou os olhos. - Você está louca. Ninguém vai querer comer isso daí. White estava desapontada. - Mas estava na receita... – lamuriou. – Certo, ignore o mousse. Tente ver se

gosta disso – aproximou um garfo desta vez. - Batata? - Isso! – vibrou. - Está mal cozida. E falta sal. Rebecca desistiu.

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- Você é exigente demais. Vou levar assim mesmo, aposto que a família toda irá adorar. Tio Flirt come até pedra.

Pôs-se então a observar o micro-vestido que a companheira vestia. Não era uma roupa muito apropriada para as comemorações daquela noite.

- Onde você pensa que vai assim? Renée riu. - Oi, pai. Eu vou para uma festa, é óbvio. - Não vai comemorar o Natal? - É claro. Vamos dançar até que o Papai Noel apareça, e então abriremos os

presentinhos. Se liga, Becca. Quantos anos você tem? Ela encarou a anoréxica com tristeza, enquanto a mesma desapareceu do

cômodo. Sabia que se Christine estivesse ali ela não diria aquilo. Afinal, não existe uma época certa para se deixar de aproveitar a noite de Natal.

- E você, para onde vai? Não diga que vai passar a noite com aquela garota insuportável.

Ela referia-se a Reed. - Becky? – a companheira de quarto voltara para a cozinha, procurando pela

amiga. Porém não havia ninguém ali, apenas uma tigela com mousse de cereja. O prato com a salada de batatas havia desaparecido.

Com a salada de batatas debaixo do braço, ela entrou no carro da colega de quarto, cuja chave havia “pego emprestada”.

- Espero que você tenha uma ótima festa, Renée. Se você chegar viva andando a pé até ela naquele seu vestido horrível – desejou ao entrar no automóvel.

Sintonizou em uma das poucas rádios que não estava reproduzindo músicas natalinas. Cantou em alto tom Reptilia junto com os Strokes, dirigindo dentro da velocidade permitida para a estrada de acesso à saída do Condado. Enquanto isso, pensava em sua melhor amiga, e no fato de que ela passaria aquela noite toda provavelmente sedada e desacordada. Era triste não poder fazer nada. E sobre o fato de Giles ter dito que tudo não havia passado da imaginação de Christine... Bem, aquilo não era verdade. Ela havia sido atacada. Ambas tinham revelado uma das fotografias juntas. Era a testemunha de tudo aquilo.

Quando a música parou, outra totalmente insuportável tomou o lugar. Rebecca prontamente voltou a mudar de estações, procurando por algo que valesse a pena. Um dos carros que vinha no sentido contrário ao seu trazia a luz alta ligada, o que a tornava cega por alguns segundos. Buzinou.

- Imbecil, abaixe isso!

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A rádio que havia sido sintonizada erroneamente passou uma mensagem religiosa, onde anunciava uma missa em comemoração ao nascimento de Jesus que no dia seguinte seria realizada na Catedral de Greenpack. No fim do convite, Maurice Silver agradecia a todos.

O rosto do padre invadiu os pensamentos da japonesa. O que ele queria com Christine aquela noite? Obviamente ele não desejava apenas saber como ela estava. Ela havia lido os olhos dele, e existia algo escondido ali.

White retirou o celular da bolsa com a mão que não segurava o volante, e agora o rosto que aparecia para ela era o de Avelã deitada naquela cama, impossibilitada de se mexer. Ela precisava que alguém fizesse urgentemente algo para que a resolução daquele mistério fosse descoberta. O poder de acabar com aquilo estava unicamente em suas mãos.

- Mamãe? Parece que houve um acidente na estrada, e estão bloqueando todos os carros – mentiu. – Eu sei, eu sei, é um absurdo. Mas posso machucar-me se tentar ultrapassar, está chovendo muito forte. Deseje um feliz natal para todos, e lembre-se de se servir antes que o tio Flirt acabe com a mesa toda. Eu te amo.

Desligou e observou os limpadores do vidro em sua frente que se moviam freneticamente, estando na velocidade máxima. Em um só movimento, girou rapidamente o volante, fazendo o carro derrapar um pouco, porém mudando-o de sentido.

- Desculpe, mamãe. Tenho um filho da puta para pegar.

Ele havia cochilado por um curto tempo. Quando acordado novamente, voltou a sentar-se em sua poltrona e algo lhe fez tentar mais uma vez:

- Se bem me lembro foi no ano passado que me vesti de Papai Noel. Foi engraçado porque nenhuma das crianças acreditou em mim. Henry foi o primeiro a dizer que eu estava ridiculamente magro naqueles trajes vermelhos. Não consegui enganar ninguém. Então deixei essa tarefa para um de meus primos, pois a sua barriga é mais convincente.

John Gray não largava da mão dela, nem sequer por um minuto. E também não se cansava de conversar com a bela adormecida.

- E depois da grande ceia todos se reúnem com as suas taças de champanhe para brindar enquanto assistem alguns fogos de artifício que riscam o céu. No fim da noite o meu pai reúne todos na sala de estar para que o assistam tocar no piano a sua calma versão para Bird Of Prey. E eu preciso confessar que é linda. Todos acabam derramando algumas lágrimas, sendo essa é a tradição que se repete todos os anos.

Tendo acabado de contar a sua história, ele não recebeu nenhum comentário a respeito, porém houve algo de diferente: Christine havia mexido uma de suas mãos,

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como em sinal de que havia compreendido tudo que tinha escutado em silêncio. Aos poucos, ela abriu os olhos.

Ao redor do mundo as pessoas trocavam presentes enquanto estômagos roncavam, desejando aquele peru de Natal tão aguardado. A ceia deveria estar na mesa. Porém em Greenpack, mais exatamente na Rua Wrecklast, nº 841, havia uma moça que não estava comemorando a chegada do bom velhinho.

Com o carro parado em frente ao apartamento de sua melhor amiga, Becca vasculhou o veículo todo atrás de um guarda-chuva. Não o encontrando, decidiu proteger a cabeça com as mãos mesmo e então saiu do automóvel, correndo depressa até a portaria.

- Ei Yan, abra pra mim. Está caindo o mundo! - Ah, é? E onde foi parar a gravidade, senhorita Rebecca? – brincou o porteiro

ao destrancar a entrada principal. Ela riu distraidamente e adentrou o prédio. Estava tão acostumada a vir ali

para alimentar o antigo companheiro de Sally - agora propriedade de sua melhor amiga - que não passou pela sua cabeça que havia esquecido o principal.

- Ótimo, sua inútil. Como você pretende entrar sem uma chave? – questionou a si mesma.

Lembrou-se imediatamente da escultura de concreto de pinguim. Havia uma chave dentro da boca do mesmo. Novamente disposta a descobrir alguma coisa, apertou o botão do elevador e o esperou. Aquele prédio estava vazio. Certamente todos haviam saído do Condado para festejar a data especial.

White chegou ao andar do apartamento desejado, e no momento em que pisou fora do elevador, o mesmo produziu um grande barulho. Logo ela percebeu que a energia havia acabado, e luzes de emergência eram inexistentes ali.

- Ótimo, esta é a cena onde eu morro? Pois só faltam os... A sua fala foi interrompida por trovoadas que ecoaram pelo céu. Pelas janelas

os contrastes de luzes devido aos relâmpagos invadiam o local. - Exatamente.

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XI CEREJA

A mulher tentou ignorar as intempéries climáticas, pois existiam prioridades

naquele momento. Agachou-se, colocando a mão dentro do pinguim de concreto, porém após segundos descobriu que não havia nenhuma chave ali escondida. Verificou novamente, utilizando como auxílio a luz de seu celular, porém o resultado foi o mesmo.

- Droga! Lembrou-se que se voltasse para casa seria assassinada. Renée certamente a

esperaria com um machado nas mãos para decapitá-la por ter-lhe roubado o carro. Rebecca não sabia o que fazer. Andando em círculos, o seu celular apitou, acendendo-se outra vez. Leu a mensagem em voz alta:

- Você acaba de ganhar 25 torpedos gratuitos. Tenha um Feliz Natal. Mas que diabos?

A luminosidade causada pelo pequeno aparelho foi o bastante para ela enxergar o que precisava. Havia algo debaixo da porta de entrada para o apartamento de sua melhor amiga. Voltando a ficar de joelhos no chão, ela utilizou a unha para que conseguisse puxar para si aquele pedaço de papel, que nada mais era do que um envelope. Após um pouco de esforço – havia algo a mais que papel ali -, ela conseguira. Rasgou rapidamente uma das bordas, virando-o para que caísse o conteúdo de dentro. Dali escapara uma chave.

- Bingo.

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Ele olhou para o pacote que havia chego e analisou-o com cuidado. Em cima da mesa, o seu celular começou a vibrar. Deu uma rápida olhada para ver quem era, e então o pegou e atendeu.

- Recebeu? - Sim. Havia um envelope laranja rasgado por ali. - Você sabe o que fazer. Está tudo detalhado. Uma pequena pausa. - Não farei, e você sabe disso. O que combinamos foi claro. Você está

passando dos limites. - É o que precisamos para continuar. Não podemos dar passos ignorando as

pedras em nosso caminho. Precisamos descartá-las primeiro. - Faça você. Estou caindo fora. A risada exagerada surgiu do outro lado da linha. - Você sabe o que acontece em caso de desistência. Lembra-se da velha que

precisei tirar do jogo, pois você não quis sujar as suas mãozinhas? Bom, não será difícil incriminá-lo.

- Digo o mesmo. E tenho provas, seu inútil. Vá em frente, faça o que quiser. Apenas não me meta mais nisto.

Deu um fim à ligação. Mas ele sabia que aquilo tudo estava longe de ter um ponto final.

- John? – murmurou ela. A visão ainda encontrava-se embaçada, e a dor de cabeça era frequente. - Estou aqui, Christine. Ele apertou forte a mão dela. - Quero sair daqui. - Eu sei. Amanhã vou dar um jeito de te tirar daqui. Hoje seria impossível,

não há ninguém para te liberar. Ela flexionou o pescoço, gerando estalos. - Que dia é hoje? - Vinte e quatro de dezembro. - Por que você está aqui? Vá para... - Shh – ele a silenciou. Reed encolheu os braços em sinal de frio. - Feliz Natal, John – desejou a voz arrastada. E assim, mais uma vez ela havia se rendido à escuridão. Gray puxou as

cobertas para proteger o peito da mulher sonolenta.

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- Para você também, Christonia.

A chave era exatamente a que ela precisava. Becca entrou no apartamento de Christine e, ao ligar as luzes, foi surpreendida pelo cão de volumosa pelugem que encontrava-se em cima do sofá, olhando-a com atenção.

- Ei, Victor. Aproximou para acariciá-lo. O cachorro certamente sentia falta de seu antigo

companheiro. - Sei que tenho vindo muito pouco ver você, mas há problemas maiores. Está

com fome? Dirigindo-se até a área de serviço, ela retirou de dentro do armário um grande

saco de petiscos para saciar as vontades do bichano. Quando servido, o animal correu com euforia para degustar a refeição principal.

White se ateve em conferir o conteúdo daquela carta. Obviamente era destinada para Avelã, porém não podia perder tempo. Além da chave que já havia sido retirada dali de dentro, um pequeno pedaço de papel surgiu, estando dobrado em dois. Leu-o com atenção:

“Christine,

Estou vindo por meio desta para lhe esclarecer alguns detalhes que possam ter ficado confusos em sua mente. Quando entrou daquele jeito em minha casa, eu já havia entendido tudo. Desde o momento em que começastes com esta história de perseguidor fotográfico, eu soube que você faria uma grande lista mental de principais suspeitos. E ela, obviamente, iria me incluir. E é o certo, pois nestes casos não se deve descartar ninguém. Muito pensei sobre, e a conclusão a que cheguei foi a de que você apenas enlouqueceu. Foi um fardo muito grande posto em ombros tão pequenos, e apenas não conseguistes aguentá-lo, tendo explodido no fim. Creio fielmente – pois é a única explicação até agora – de que isso não passou de uma história criada unicamente por você, pelo seu subconsciente. Infelizmente apenas você viu as fotografias que diz ter visto. Tenho certeza de que se tivéssemos mais tempo, teríamos analisado esse seu novo problema. Espero que o tempo que passastes naquela clínica lhe renda bons frutos, e que consiga tirar disso tudo uma grande lição. Sinto em lhe dizer que parti de Greenpack hoje para uma viagem muito longa. Tenho problemas como você. Aliás, todos temos. Por isso, aconselho-te a procurar um novo especialista para dividir os seus.

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Desculpo-me por qualquer exaltação que você tenha vindo a entender erroneamente, e peço para que não me culpes pelo seu tratamento clínico contra a sua própria vontade. Foi o que consegui fazer para o seu próprio bem.

Por favor, não me procure.

Giles Brown.”

Becca quis rasgar aquela carta em duas, assim como faria com o rosto do tal

médico caso voltasse a cruzar novamente o seu caminho. Então ele havia a internado por puro instinto? Intuito de estar fazendo o melhor? Christine não havia parentes que respondessem por si, então ninguém podia fazer nada mesmo para impedir aquilo já feito. Aquele homem era um canalha que pensava estar agindo certamente.

Mas trechos interessantes estavam contidos ali. Quer dizer, querendo ou não, o homem havia dado boas dicas para a japonesa sobre o que ela deveria fazer. Ele havia deixado claro que o melhor jeito de se chegar a um indivíduo em questão, era apontar todos os suspeitos. Afunilar até a esperada conclusão.

Então ela revirou a casa atrás de papel e caneta. Encontrou um rolo grande de papel pardo – a amiga o usava para forrar o chão da área de serviço -, e uma caneta de ponta grossa. Desenrolou-o sobre o tapete da sala, deitando de bruços sobre o mesmo. Não precisou pedir para que o labrador ficasse apenas observando sem avançar, pois já o fazia. Becca começou escrevendo a ordem numérica, um algarismo abaixo do outro. Havia espaço para muitos suspeitos. Raciocinando um pouco, ela pôs-se a escrever. No fim, a lista estava pronta:

1. Giles Brown (Por que deixou a cidade?) 2. Kacy Furgson Soarez (Os figurantes sempre são os assassinos nas obras de

terror) 3. Maurice Silver (Interesse incomum em Christine) 4. John Gray (Em Pânico o namorado de Sidney, a protagonista, era o

psicopata) 5. Renée Danters (Ódio inexplicável pela vítima) 6. Rebecca White (Talvez eu tenha uma dupla personalidade desconhecida

até por mim)

Aquilo havia realmente funcionado até ela descobrir que não conhecia – ou suspeitava – de mais ninguém. Por que a sua amiga tinha de ser tão anti-social?

7. Qualquer funcionário da Clínica Bellmont. 8. Qualquer contato da agenda telefônica da vítima. 9. Qualquer habitante da Terra.

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Completando a lista e realmente não excluindo ninguém, ela cansou-se. Deixou a cabeça cair sobre o papel em questão e, após desejar-se um feliz Natal, dormiu.

Entediada e mantendo-se aquecida pelo calor da pequena estufa em seus pés, a enfermeira de trajes esverdeados atendeu ao telefone que fez ecoar um dos únicos sons naquela madrugada.

- Clínica Bellmont. - Margareth, sou eu. Giles Brown, responsável pelo quarto 319. Dentre todos os médicos especializados, enfermeiros e psicoterapeutas

daquele local, aquele era o que a deixava mais temerosa. - Bom dia, doutor. - Estou ligando para lhe passar as recomendações básicas de minha paciente. - Estou anotando. Agarrou um rascunho para rabiscar as ordens. - Suspenda os medicamentos e... Bem, não a mantenha mais sedada. Caso ela

queixar-se que está boa o bastante para ir para casa, libere-a. Já ficou o tempo suficiente.

- O senhor virá visitá-la durante o dia? Preciso informá-la de que... A linha estava muda. Giles havia, enfim, liberado a doce Christine Reed de tamanho sofrimento

involuntário. Tinha mantido-a desacordada tempo bastante. Ou pelo menos o necessário para que ele pudesse estar longe demais.

No dia seguinte a chuva já não se encontrava mais sobre Greenpack, porém os seus vestígios eram ainda vistos nas ruas alagadas. O sol brilhava tímido, e aquela não deixava de ser uma manhã gelada. A cortina do quarto foi aberta sem pena alguma, dando espaço para a claridade que entrou ali, preenchendo o local e dando à ele uma nova cara. Ela sabia, mesmo de olhos fechados, que alguma coisa estava acontecendo. Então era hora de abri-los e entender.

- Bom dia, Christine. - O que está havendo? Margareth, a enfermeira, virou-se e sorriu para ela.

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- Hoje é um ótimo dia. Trago boas notícias. Ela aproximou-se com uma bandeja que trazia pão, suco e uma maçã de cor

vermelho intenso. - E? – esperou que ela contasse de uma vez. - Você pode ir embora se quiser. - Sério?! – ela quase pulou da cama. A mulher de uniforme verde assentiu. - Eu deveria esperar para que você pedisse por isso, mas até agora eu

realmente não entendi o motivo para que tenham a trazido para cá. Então decidi livrá-la de uma vez. Este lugar é horrível.

- Você trabalha aqui – disse ela ao morder a maçã. Estava faminta. - Trabalho, pois preciso da grana. E eu realmente gosto de ajudar as pessoas

em minha volta. - Você é um anjo. O estômago de Reed ainda roncava. - Poxa, parece que faz anos que eu não como – mordeu novamente. – Ah, que

indelicadeza a minha em não oferecer-lhe. Pão? Margareth riu. - Não, obrigada. Deixarei tudo para você. - Quer dizer que eu posso me vestir e sair pela porta principal como se nada

tivesse acontecido? A enfermeira concordou. Ambas estavam felizes. - Você pode chamar um táxi para mim? - Acho que você não irá precisar. Olhou para a paciente e depois colocou uma colher de açúcar no chá de

camomila que também fazia parte do desjejum. - Aquele homem de sempre está ali fora. Deus, ele nunca vai embora! –

exclamou. – Está lhe esperando desde que passei a boa notícia para ele. Hm, e desta vez ele está carregando flores.

Estava deitado em sua cama, enrolado em cobertas volumosas e trazia olhares cansados. Estes se comprimiam bastante para que ele pudesse ler sem nenhum erro cada palavra na Bíblia que trazia em mãos. Havia partes interessantes que ele transcrevia para um papel secundário de vez em quando, porém a maior parte era apenas considerada uma grande besteira.

Fechou o grosso e pesado livro, atirando-o no espaço vazio ao seu lado naquela mesma cama. Precisou revirar os tecidos que o cobriam para que encontrasse o controle remoto da televisão. A mesma passava um filme antigo sobre a magia

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daquela época do ano, coisa que ele não teria paciência para suportar. Porém, antes mesmo que pudesse vir a trocar de canal, a face da menininha feliz da tela foi travada, e após três segundos a imagem havia escurecido, dando então lugar a uma edição extraordinária daquele plantão jornalístico. A repórter de nariz visivelmente operado e cabelos tão fixados com spray que poderiam aguentar a fúria de um furacão pôs-se a noticiar:

- Estamos ao vivo diretamente de Wellage Ville, cidade interiorana do estado, onde há questão de trinta minutos um homem foi encontrado morto no milharal da casa de Felicia Blur, uma antiga moradora. A senhora pode nos contar como tudo aconteceu?

A repórter havia passado o microfone para uma senhora de uns cinqüenta e cinco anos. Ela estava visivelmente abalada, e o seu sotaque carregado denunciava a sua ingenuidade adquirida pela vida levada no interior.

- Acordei esta manhã e cruzei o milharal como faço todos os dias. Este é o jeito mais rápido de chegar até o celeiro. Durante a minha caminhada, comecei a notar pegadas na terra, o que visivelmente estava errado. Um pouco mais adiante, então, encontrei aquele sujeito morto, terrivelmente estraçalhado. Todo o local ali perto estava rodeado de sangue. Gritei e corri de volta para minha casa, onde imediatamente chamei a polícia.

- E você não ouviu nada durante a noite, senhora Blur? - Nenhum grito. Absolutamente nada de estranho. Tudo aconteceu como

todas as noites. - Você conhecia a vítima? Ela logo negou. - Absolutamente não. Nunca o vi. O microfone foi retirado de sua boca, porém Felicia continuou a falar. Em

segundo plano, ela perguntava quem arcaria com as despesas que teria para a reconstrução parcial de seu milharal.

- Até o momento o corpo ainda não foi identificado. Nenhum documento ou pertence pessoal foi encontrado por perto. A vítima foi encontrada nua e com diversos cortes espalhados pelo corpo. Ao que tudo indica, o assassino utilizou-se do local apenas para abandonar o cadáver, tendo realizado o crime previamente. Voltaremos a qualquer minuto com novas informações. Direto de Wellage Ville para o Canal 5, April Stane.

Demorou alguns segundos para que a imagem da mulher desaparecesse da tela. Ela já havia até abaixado o microfone que trazia em mãos. E então, por fim, o filme de anteriormente voltou a ser transmitido da mesma parte em que fora pausado.

Na cama, algo apitou. Era o seu celular novamente. Uma nova mensagem que havia acabado de chegar. Leu-a em silêncio:

“Precisei fazer um grande passeio. Wellage Ville é legal, você realmente

deveria conhecer. Certo de que não quer repensar a sua decisão? Ainda dá tempo pra voltar atrás.”

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Christine abraçou-o durante um tempo considerável. Apertava-o com tanta força como se aquele homem houvesse ressuscitado ou algo do gênero. Ela não poderia estar mais feliz.

- Disseram que você veio todos os dias me ver. - Esse povo diz tanta coisa... - Pelo menos não mentem – concluiu ela. Os dois riram. Em um dos braços ela o tinha. No outro, carregava o exagerado

buquê de flores que havia ganhado. Antes de deixarem finalmente aquela clínica, ela precisava realizar uma última coisa.

- Espere. - O que? Você ainda não quer ir embora? Certo, volto amanhã pra lhe buscar

– brincou o homem. - Bobo. Preciso despedir-me. Reed foi até a sala das enfermeiras e despediu-se de Margareth. Abraçou-a e

transmitiu por palavras toda a sua gratidão por tê-la cuidado durante aqueles poucos – porém intermináveis – dias. A mulher de uniforme deu o seu sorriso em troca, avisando que elas ainda voltariam a se cruzar durante a vida.

- Até breve! – acenou uma última vez. - Pronta? - Finalmente. Os dois caminharam uma última vez por aquele corredor que nunca traria

boas lembranças. - Espere aqui – pediu ele ao chegarem à recepção. – Vou buscar o carro e

passo aqui na frente pra te pegar. Ela não teve tempo para recusar, então se sentou em um dos bancos solitários

e observou o escasso movimento daquele dia festivo. Dentre apenas três pessoas que por ali circularam, uma foi um senhor de idade avançada que mancava. Aquilo instantaneamente a redirecionou para alguns dias antes.

Christine lembrou-se de estar furiosa, e por algum motivo havia irrompido pela porta da casa de Giles. Recordava-se dos gritos proferidos, porém nada além disso. Houvera certamente uma discussão, e a mulher revisitou o mesmo medo que a apunhalara em cheio durante aquela noite. Avelã viu a si mesma correr por aquela sala, contornando o sofá de couro de seu psicoterapeuta. E então a mesa de vidro. Os cacos. Ele a atingira no rosto.

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Trêmula o suficiente para não conseguir mais permanecer sentada, ela lançou-se para cima, deixando o lugar. Correu para o lado de fora, avistando o carro de John. Antes mesmo que ele parasse, ela já havia aberto a porta para que pudesse entrar.

- Aconteceu alguma coisa? Precisava mentir. - Quero sair daqui o quanto antes. Ao chegarem em casa, a mulher apertara três vezes o botão que solicitava que

o elevador viesse até o terceiro andar. - Não vai adia... Gray não acabou a frase porque ela já estava apertando aquilo novamente. As

portas da caixa móvel abriram-se, e ela logo preencheu o espaço vazio. Apertando o número desejado duas seguidas vezes, ela lembrou-se de não perder tempo e procurar a chave do apartamento em sua bolsa.

Queria ligar para a melhor amiga. Precisava vê-la e contar sobre a outra face de Giles Brown. Ao entrar no apartamento, porém, percebeu que um telefonema não seria necessário, pois a japonesa estava esticada no chão da sala. Recolheu as correspondências que tinham sido colocadas debaixo da porta e dirigiu-se até o tapete em frente ao sofá.

- Becca?! A princípio pensou que ela estivesse morta. Christine odiou-se por não tê-la

cuidado, e era sua culpa ter envolvido a chefe naquilo tudo. Não pôde, porém, prolongar muito o pensamento, pois a outra acordara aos poucos totalmente perdida.

- Avelã? - O que você está fazendo aí? Ela leu os nomes rabiscados debaixo do corpo da amiga. - O que é isso? White localizou-se em questão de segundos, e ao perceber que John também

estava ali presente, enrolou com rapidez o grande papel. - É uma lista com os suspeitos – ela sussurrou em seu ouvido, piscando em

seguida. – Ei, John! Ele cumprimentou-a em silêncio. - Becca, precisamos conversar. - Realmente. E, ah, você está de volta para casa permanentemente? Isso é

muito bom. Eu não saberia como agir daqui para frente. Até tive algumas idéias para que possamos tentar não ser mortas, mas...

Elas cochichavam. O homem as aguardava enquanto olhava inconfortável para Victor, que cuidava os seus movimentos.

- Eu já descobri tudo – confessou aquela de olhos acinzentados. White estava surpresa. - Ei, garotas, acho que vou indo. Eu... - Não! – exclamou Reed. – Desculpe, estamos sendo inconvenientes. - É papo de mulher – foi o que a morena disse, tentando compreender depois.

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- Sente-se – ela puxou-o para o sofá. – Assista um pouco de tevê. O controle está... Por aí!

As duas afastaram-se um pouco. Pondo-se estrategicamente de costas para o amado, a dona da casa continuou a falar com a amiga. John, por sua vez, enfim encontrou o controle remoto e ligou o aparelho televisivo.

- É Giles Brown. Ele é o meu perseguidor. Estou absolutamente certa disso. Becca, você não faz ideia do que ele fez comigo...

A outra parecia não prestar atenção. - Acho que você está errada, C... – falou travada. - Não, eu estou certa! Ele me... Interrompendo-a, a amiga a girou para que tivesse uma visão clara da

televisão logo em frente. Na mesma a tela dividia-se entre o rosto da repórter e uma foto de Giles. Os dizeres explícitos logo abaixo facilitavam a rápida compreensão. Gray aumentou o volume.

- Estamos de volta diretamente de Wellage Vile, onde um crime bárbaro aconteceu durante esta manhã. E a polícia já tem novas informações: A vítima trata-se de Giles Ian Brown, um conhecido psicoterapeuta que atuava em seu consultório no Condado de Greenpack, há aproximadamente trezentos quilômetros de onde o seu corpo foi encontrado. Reforços acabaram de chegar para evitar com que curiosos espectadores transpassem o milharal onde o doutor foi encontrado esfaqueado há poucas horas. De volta a qualquer momento para mais informações, April Stane para o Canal 5.

Cada pequena parte de seu pequeno corpo pareceu contrair-se e atingir escalas negativas. Estava reduzida, e por um momento era como se tivesse sido atingida por um golpe fisicamente brutal.

- Não era o seu médico? – questionou John. Rebecca precisou segurar as mãos da amiga para que as mesmas parassem de

tremer. Olhou-a fixamente nos olhos. - Você estava dizendo que estava certa que Brown era o nosso cara. Se isto for

verdade mesmo, então acabou. Ele está morto. Avelã balançou a cabeça. - Giles não se deu um tiro ou tomou remédios, como eu acho que faria caso

quisesse se matar. Ele foi esfaqueado, Becca. Não era ele. Ela odiava sentir um alívio naquela situação. Havia por muito tempo gostado

daquele homem, porém agora, após ter relembrado o soco que ele lhe dera durante aquela noite e ter ligado os pontos, chegando à conclusão de que ele a internara propositalmente, sentia-se minimamente mais tranqüila. Mas ainda havia alguém.

- Christonia, você quer alguma coisa? Ela negou, porém não olhou para John. Com o olhar voltado para o chão, ela

lembrou-se do que estava exatamente ali naquele piso de madeira quando ela chegara. Então rapidamente voltou o olhar para a pequena mesa com abajur ao lado do sofá, observando a meia dúzia de cartas que ela havia ali despejado. O que lhe restou foi rir enquanto caminhava em direção a elas. Os outros dois presentes

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naquele ambiente apenas não entenderam, mas ela enxergava de antemão aquela cor que havia começado tudo. Laranja. Ainda havia alguém atrás dela.

Abriu o pequeno envelope e puxou para fora uma fotografia – desta vez já revelada. Em seu verso os dizeres: “Não é horrível quando alguém que gostamos apenas... Morre?”.

Virando-a, enxergou o corpo ensangüentado de seu ex-confidente.

John foi embora com um aviso: Veria aquela pequena mulher naquela mesma noite. Precisavam conversar. Não que eles não tivessem feito muito isto nos últimos dias, porém agora ele queria que ela estivesse ao menos acordada. Ela desculpou-se por qualquer falta de atenção de sua parte e o beijou quando partiu.

- O padre. Christine fechou a porta e olhou para a amiga. - Ahn? - Aquele padre estranho estava me seguindo estes dias. Quis saber como você

estava, e até hoje me pergunto o motivo do interesse. - Quando isso aconteceu? - Dias atrás, quando eu estava indo para casa. Não sei o que acontece, mas ele

não me passa boas vibrações. Está lembrada, certo? O cara que nos deu aula de catequese quando pequenas e tudo mais. Ele é estranho. Quer dizer, ninguém aparece no meio da noite em uma rua deserta para perguntar sobre uma antiga aluna. Há alguma coisa aí. E isso me incomoda.

Avelã andou de um lado para o outro. - Seguinte, precisamos agir. Acho que devemos criar um prazo. Sete dias, por

exemplo. Se não conseguirmos nada até lá, irei para a polícia. Não há muita coisa que possam fazer. Há alguém atrás de mim, talvez porque eu o tenha atropelado.

- Você já parou para pensar na hipótese de que pode não ter sido por causa disso?

- O que você quer dizer? - Não sei. Há outras possibilidades. Não me pergunte o porquê, porém há

também a chance de alguém estar lhe perseguindo por outro motivo. Algo que não sabemos.

- Não há como. As fotos formavam pistas para aquela noite... - Uma maneira de despistar? Ela negou novamente. - Impossível. Apenas poucas pessoas sabem do acidente. Giles sabia. Você

sabe. E... - Odeio esse “e”.

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Reed então mordeu o lábio, revirando o olhar alternadamente para todos os lados.

- Você vai me matar. - Não, o seu perseguidor irá lhe matar se não fizemos nada. Desembucha!

Quem mais sabe? - M... Maurice Silver. - O padre?! Ela gesticulou rapidamente em sua defesa. - Eu estava nervosa, ok? Precisava me confessar. Foi antes de lhe contar. Tudo

bem que Giles já sabia, porém seus conselhos não estavam adiantando. Precisava saber a visão religiosa daquilo.

- Christine, pare com isso. Foi um acidente. A-ci-den-te. Não havia nada que você pudesse fazer.

- Eu atropelei alguém. Bêbada. Ouvi gritos. Fugi da cena do crime. Não prestei auxílio. Isto realmente é um crime. Ainda mais encobrir o fato por três anos. Deus, como eu mereço ser presa!

Becca suspirou. - Você ainda tem dúvidas de que o padre louco é o cara que procuramos? Ela parou, remexendo o dedo indicador para ambos os lados. - Vá com calma. Não podemos ter tanta certeza. Há algo com ele, e eu vou

descobrir. Enquanto eu hibernava você aproveitou para visitar aquele clube de fotógrafos?

- Não. Ninguém se reúne para falar sobre técnicas fotográficas no Natal. Ninguém está nem aí pra isso.

- Você tem o endereço de lá? White afirmou. - Então vá até lá hoje! Agora! - Ainda é Natal. - Dane-se! Quebre uma janela, use luvas, pinte a cara. Dê um jeito de

encontrar alguma pista. Por favor, lhe peço esta ajuda. Ela assentiu. - Mas e o laboratório? – lembrou-se a garota da boina. - Não se preocupe, temos uma nova funcionária. Creio que ela conseguirá

segurar as pontas durante um tempo. - Pouco tempo – ela apressou em relembrar. – E desculpe por isso. Eu só

tenho a você. São apenas mais sete dias ou tudo acabará. Eu prometo. Sete dias. A japonesa deu de ombros. - O que eu não faço por você, Samara?

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Antes de encontrar-se com o homem perfeitamente certo para si, lá estava ela

novamente em frente aquela igreja antiga no centro de Greenpack. Olhava para o alto, enxergando a cruz na ponta, e o seu único pensamento recorrente era o de como poderia ser tão pequena perante aquela entidade. Mas não se importava, pois era apenas um bocado de pedras reunidas com cimento. Não havia porque temer a entrada no local.

Mais uma vez ecoando passos, ela adentrou com as mãos cruzadas perto do ventre. Sem estar exatamente certa, pensava aquele ser o jeito propício para se entrar ali. Caminhou pelo corredor central até a primeira fileira de bancos, aonde avistou uma figura feminina arrumando alguns lírios.

- Com licença... - Oh, olá! A mulher acima do peso era engraçada em seus trajes típicos de freira. As

únicas partes visíveis de seu corpo eram as mãos rechonchudas e o rosto redondamente risonho.

- O Padre Silver se encontra? Claire Hardwick apontou o caminho. - Está preparando a missa, mas certamente não se importará com a visita. Ele

adora a sua presença por aqui. Realmente havia algo de errado por ali. Reed precisava descobrir o quanto

antes. Para isso, rumou até o altar, subindo o trio de degraus. Olhou uma última vez para a freira que fazia sinais para que ela prosseguisse, e então continuou o seu caminho. Aproximando-se sem anunciar – isso incluía passos levianos -, pôde escutar uma música que era cantada pelo próprio homem, sem muito ritmo. E ela reconhecia aqueles versos cantarolados. Eram tão comuns e nostálgicos para ela. Mas “Joanne” era uma canção que apenas o seu pai cantava. Como podia ele sabê-la de cor?

- De onde você conhece essa música? A pergunta abrupta o fez parar. De olhar levantado, ele a enxergou. - Christine! Ela não respondeu. - É sempre um prazer recebê-la na casa do Senhor. - Meu pai cantava esta canção para mim. Como você a sabe? Maurice deixou o seu assento, cruzou o aposento e ficou em frente àquela

mulher. - Éramos grandes amigos. Você provavelmente não deve se recordar de todas

as noites em que eu ia jantar em sua casa. Sua mãe como sempre uma ótima cozinheira...

- Pare! Ele calou-se. - O que você quer de mim? A pergunta lhe atingira como um raio atrasado, porém previsto. - Eu lhe segurei em seus braços antes mesmo de Noel. Ouvi sua mãe gritar de

dor no vilarejo, aclamando por socorro. Eu era o mais próximo daquela naquela noite

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que a levei até o hospital para que você nascesse. Cuidei de você por muito tempo. Fui o seu professor, mentor, conselheiro e, até dias atrás, o seu confidente.

Nada mais se ouviu por algum tempo. Ela apenas tentava absorver cada informação adquirida.

- Sabe, dói muito receber o seu rancor em troca. Sei que não gosta de mim, Christine. Vejo isso nas pessoas. Nunca gostastes de segurar em minha mão durante as aulas. Nem ao menos estar perto conseguia. E, ao entrar em minha Igreja recentemente, os teus olhos contaram-me de que continuavas a mesma.

- Cale-se! – gritou ela. - Por que o ódio? - Por que a preocupação? Ele olhou-a com seriedade. - Porque você sempre foi como uma filha para mim. Uma lágrima escorreu do rosto da moça. Uma gota com misto de saudade e

raiva. - Eu tenho um pai e uma mãe. Fique longe de mim. Deu as costas e saiu em disparada. Ao passar pelo altar, Claire voltou a

levantar a cabeça e olhá-la correr até a porta principal. Dentro da saleta do padre, ele voltara para a sua mesa. Folheando a Bíblia logo em frente, ele abriu na página vinte e três – data de aniversário de Christine. Retirou dali uma velha e pequena fotografia.

- Quem diria que seria uma pequena pecadora – lembrou-se da primeira conversa que tiveram sobre o acidente. – Teve a quem puxar.

Ele havia preparado um divino penne ao funghi. Nas taças, vinho para acompanhar. Era uma noite pacificamente tranqüila, e Christine sentia-se feliz por poder ter um pouco de tempo para (pelo menos tentar) não pensar em tudo que acontecia ao seu redor. E o homem em sua frente certamente era a melhor companhia para aquilo.

- Está ótimo, John. - Sabia que iria gostar. Mas o melhor é a sobremesa, você verá. Ela sorriu de felicidade por tê-lo perto. - Perdão. O rapaz fez com que os olhares se encontrassem, tentando deduzir o porquê

daquele pedido de desculpas.

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- Por ter deixado você ir. Eu nunca deveria ter feito isso, você sempre foi a minha válvula de escape para tudo que tem acontecido. E, mesmo após ter lhe mandado embora, você foi atrás de mim e ficou lá ao meu lado.

- Pelo visto Margareth contou o que não deveria. Ela riu entre um gole de Cabernet. - Contou tudo para que eu tivesse certeza de que você é o homem da minha

vida. Eu nunca poderei retribuir. - Você pode me contar o que exatamente está acontecendo? Rapidamente ela pôs-se a ajeitar os talheres em sua frente como distração para

a pergunta. Sabia que não tinha o direito de colocar aquele homem como mais um refém de seus erros.

- Está tudo bem agora – mentiu. – Problemas com um ex-namorado de Becca que estava a incomodando e precisamos despistá-lo.

- E a internação? - Stress. Ele assentiu não tão convencido. - John, perdoe-me por talvez não ser o que você esperava. Eu sei que estou

sendo uma péssima namorada. Mas, acredite em mim, está tudo bem agora. Apenas não quis envolver-te nisso tudo.

Gray jogou a cabeça para trás, e então retornou para debaixo da luz que o mantinha contrastado.

- Eu vou te matar – falou ríspido. O garfo das mãos da mulher escapou, tilintando no prato em sua frente.

Prendendo a respiração, ela o encarou. - O que? – temeu. - Eu vou te matar – repetiu. Ele levantou-se, e então desapareceu nas sombras do cômodo não iluminado.

Naquele momento ela não sabia exatamente o que fazer. Agarrou uma das facas e limpou-a no guardanapo sobre o colo, mantendo-a em punho cerrado em um ângulo que ele provavelmente não enxergaria. Estava tremendo, surpreendida pela frase de seu amado que agora tanto duvidava. Como tudo conseguia mudar tão rapidamente?

O homem voltou com as mãos também fechadas. Já debaixo da luz, ele abriu-a, mostrando a pequena caixa.

- Eu não cheguei a lhe dar, não tive tempo. Também receei que eu fosse parecer confuso e apressado, porém era só uma maneira de firmar a nossa união. Eu a amo, Christonia.

Abriu a caixinha que continha uma aliança prateada em seu interior. De pronto ela voltou para a padaria de tempos antes, quando vira o mesmo anel e fugira da situação.

- Queria pedir-lhe oficialmente em namoro, mas você acaba de dizer que já é uma namorada para mim. Você estragou minha surpresa, moça – ele fingiu desapontamento. – Mas então vejamos... Você deseja continuar sendo a minha namorada?

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Reed sentiu-se uma inútil por trazer uma faca nas mãos. Escondeu-a discretamente debaixo do pano em seu colo, e então ao levantar-se, despejou o mesmo sobre a mesa. Dirigiu-se até o rapaz visivelmente tímido e abraçou-o. Beijaram-se com fúria, e a paixão era arremessada para todos os lados como fogos de artifício. Os dois corpos rodavam em sintonia pelo ambiente, e enquanto uma de suas mãos percorria o corpo dela, a outra encaixava no indicador o anel que ela merecia. Não havia música para embalá-los, muito menos uma pista de dança, porém eles dançavam o amor naquela noite. Quando se sentiu totalmente envolvida naqueles braços masculinamente seguros, ambos permitiram-se cair ao chão, rolando banhados pelo luar que adentrava sorrateiramente. Ela o conhecia fisicamente pela primeira vez. E, enfim, ela era totalmente dele.

Ainda com o carro de Renée, White dirigiu-se até o endereço que havia tanto procurado. Era feriado e todos se reuniam para o almoço de Natal, porém ela não perderia tempo. Obviamente encontraria portas fechadas e teria de quebrar alguma janela para entrar no local desejado, mas isso não seria um grande problema.

- Meu Deus, estou virando uma criminosa – ela lembrou dos filmes de suspense que já havia assistido até então. Adorava quando os mocinhos precisavam invadir locais inabitados para irem atrás de uma pista. – Sou uma das mocinhas, pelo visto.

Desligou o motor e permaneceu dentro do automóvel durante mais um curto tempo, tentando observar com clareza aonde havia chego. Estava em um dos extremos de Greenpack, onde se tinha uma vista para o mar gelado daqueles penhascos assustadoramente brancos, cobertos por neve. Aquela era uma rua sem saída, e todas as casas ali presente eram de madeira, formando uma espécie de pequeno vilarejo.

Resolvendo deixar o carro, ela afundou os pés no gelo. Cruzou a rua deserta, sempre observando a casa de madeira torta em sua frente. Aquilo certamente não parecia um clube de fotógrafos. Mas o endereço estava certo.

- Olá? Nem corvos faziam-se presente naquele momento. Era como estar em uma

cidade abandonada. Becca pousou a mão sobre o portão de madeira que cercava a casa, e o mesmo

rangeu, abrindo-se. Ela olhou para os dois lados, mas nenhuma testemunha. Tomando um pouco de ar, empurrou-o mais e logo entrou na propriedade. Aquele não era um belo jardim certamente, estando configurado apenas com um velho eucalipto já sem folhas. O chão, quando não tomado completamente por aquela palidez, parecia ser bruto, de terra.

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Frustrou-se ao perceber que não haviam vidros a ser quebrados. As janelas também eram em madeira, então seria impossível uma entrada naquele que deveria ser o clube mais desrespeitado de todo o mundo. Convenceu-se, após mais uns rápidos relances de olhar, que não teria chance. Somando o medo também, preferiu desistir. Caminhou de volta ao portão simples da entrada.

- Você procura alguém? – uma voz surgiu, quebrando o silêncio monótono. Aquilo a congelou. Tanto interiormente, quando em seus movimentos.

Apenas conseguiu virar o rosto, enxergando ali aquele rapaz jovem parado junto ao curto lance de escadas frontais da casa.

- Olá – tentou aplicar simpatia. – Na verdade eu procurava pelo Clube de Fotógrafos de Greenpack.

Ele sorriu. - Infelizmente você chegou atrasada para afiliar-se. Uns cinco anos, eu diria. Becca fingiu surpresa mais do que deveria. Conseguindo pôr-se de frente para

ele, enfim viu a oportunidade que tanto procurava: - Então quer dizer que ele não existe mais? O rapaz negou com a cabeça. - Estava interessada em participar? - Não. Quer dizer, não sei. Sou dona de um laboratório fotográfico no centro

da cidade. Herdei de meu pai, Hervor White. Ele era um dos membros do clube, então pensei em dar uma passada. Brevemente estaremos comemorando vinte e cinco anos do estabelecimento, e pretendia prestar algumas homenagens aos fotógrafos de Greenpack. Achei que...

- Claro! É uma ótima ideia. Você tem tempo para uma xícara de chá? - Se você não tiver nada melhor para fazer no dia de Natal do que ajudar a

uma estranha... Ele riu, franzindo a testa de um jeito dócil que agradou a ela.

- Então vamos resolver isso de uma vez... Como se chama? - Rebecca White. Estenderam-se mãos. - Tyler Cherry. É um prazer.

A fumaça escapou de dentro daquela xícara de porcelana. Era chá de morango, um de seus preferidos.

- Não, você não veio ao lugar errado. Aqui realmente costumava funcionar o primeiro e único clube fotográfico do Condado. Eram pouco mais de quinze membros que se reuniam semanalmente para expor suas fotografias e debatê-las.

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Realizavam passeios pelos arredores, capturando cada um os seus momentos prediletos.

- E o fundador? Tyler apontou para cima. Ela não entendeu. - Deus?! Ele caiu na gargalhada enquanto a japonesa sentia-se um tanto quanto

incompetente. - Meu pai. Esta é a casa dele. Está lá em cima, deitado há mais de meses

devido a enfisema pulmonar. Cigarros sempre foram os seus melhores amigos. Até demais, creio.

- Então quer dizer que as reuniões aconteciam nesta casa? - Nos fundos. Há um espaço planejado para isso. Diga-me o que você precisa,

buscarei tudo que quiser olhar. É engraçado, pois ninguém aparecia por aqui há anos. Não por causa do clube, pelo menos.

- Não precisa incomodar-se, eu... - Ok, trarei tudo. Um minuto, por favor. Cherry deixou a cozinha em que havia acomodado confortavelmente a visita

em uma das cadeiras de cedro da mesa principal e dirigiu-se até os fundos da propriedade. Alguns minutos depois ele já estava de volta, carregando pesados álbuns de fotografias. Os dois passaram uma hora olhando-as, e o jovem explicava para ela sobre o que cada uma se tratava. White conheceu todos os membros, porém nenhum era familiar para ela. Às vezes ela perdia-se no que o homem em sua frente falava, pois de fato estava perdida mesmo em sua voz doce e tranquila. Ele não tinha olhos de cores estupefatas, porém eram os que mais distribuíam convites para penetrá-los, como ela jamais havia visto. Os fios compridos e pretos pendiam da raiz até acabarem na franja desarrumada dele. Na face uma rala barba por fazer, o que lhe aplicava uma rápida, porém quase não convincente aparência de mais velho.

- E aqui está uma fotografia do aniversário de dois anos do clube. Faz muito tempo, e provavelmente não saberei lhe falar todos os presentes. Mas meu pai contou-me que foi um dia especial. Visitaram apenas lugares religiosos do Condado, incluindo a Igreja. Aqui você pode ver todas as crianças tendo aula de religião. Elas ficaram evidentemente maravilhadas com o tanto de câmeras que estavam ao seu redor naquele dia.

As imagens em questão fizeram a mulher voltar no tempo. Ela lembrava-se do local, recordava-se que alguns homens desconhecidos apareceram naquela manhã, munidos de diversas câmeras e então as fotografaram. Christine e ela ficaram tímidas, porém o seu professor as fez entrarem na brincadeira. Logo todos se divertiam tirando retratos que ela esperaria anos para ver.

- Eu me lembro disso... - Como assim? White procurou por uma menina de cabelos escuros nas fotografias. - Vê? – apontou. - Sou eu. O rapaz precisou aproximar-se para ter certeza.

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- Você era linda demais – elogiou. – Quero dizer, você ainda é, obviamente, mas...

Ela riu da timidez dele, que já havia ficado vermelho. - Vou ver como está meu pai – foi a desculpa que ele encontrou para tomar

um tempo para odiar-se. Continuou a olhar as fotografias. Puxou para si um novo álbum de capa dura e

avermelhada. Era a continuação das fotos daquele dia. Rebecca não conseguia lembrar-se exatamente dos retratos que havia tirado porque eram muitos. Mas era especialmente satisfatório olhá-los tantos anos depois.

Virou a página e recebeu um choque instantâneo: Em uma das fotos estava Padre Maurice, o professor de catequese daqueles tempos, que aparecia ali pela primeira vez. Não levava jeito para fotografias, tendo saído mais estranho e bizarro do que já era. Na foto seguinte, todos os alunos haviam sido reunidos juntamente com os fotógrafos para um grande retrato grupal. Becca estava sorrindo de joelhos, e ao seu lado a sua melhor amiga. No canto da fotografia, uma surpresa: o mesmo homem estranho de trajes católicos olhava sério para o lado, com o olhar fixo em Christine. Era assustador.

Um grito de dor ecoou pela casa, fazendo com que ela desviasse a atenção do álbum. O homem no andar de cima estava sofrendo. Quando o silêncio recaiu outra vez, ela continuou a virar as páginas. Chegando à última, uma nova foto inesperada: Silver segurava Reed em seus braços, e os dois riam, posando para o clique. O engraçado era que ambos traziam a mesma cor de olhos, feições semelhantes e dois sorrisos que praticamente não havia diferenças. Ela não tinha reparado tais características naquela noite.

Ouvindo o ranger dos degraus de madeira, Becca rapidamente retirou a fotografia do espaço em que estava guardada e a colocou dentro da bolsa. Tyler estava de volta, recuperado. Diferentemente dela.

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XII PRETO

O filho do dono da casa estava de volta na cozinha aquecida pela lenha que

queimava. Olhou para todos os álbuns fechados sobre a mesa e perfeitamente empilhados. A moça em sua frente fechava a bolsa que trazia nos ombros.

- Ei, você já vai? Ela assentiu. - Creio que já tenho o suficiente. Você me passou muitos nomes e com

certeza decorei todos os rostos. Anotei tudo, e isso é muito mais do que eu esperava. Obrigado mesmo, Cherry.

- Tyler. Chamam meu pai pelo sobrenome, então me sinto meio desconfortável.

- Tyler parece bom para mim – sorriu. O rapaz acompanhou White até o lado de fora, fechando o mesmo portão pelo

qual ela havia invadido a propriedade. Receou, porém não queria ficar sem perguntar aquilo:

- Você se importaria se eu passasse algum dia em seu laboratório? A jovem que já andava em direção ao carro parou e olhou para trás,

enxergando aquele garoto miúdo e de bochechas rosadas junto ao portão. - Estou certa de que não pensarei que você estará me seguindo – brincou. Ele sorriu. - Melhor assim. Até breve, Becca. A japonesa ergueu a mão em um aceno. Entrou no carro com a mente vazia ao

mesmo tempo em que Tyler entrou na casa com a mente cheia.

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Kacy Furgson ouviu algo uivar ali perto, o que a fez apressar o passo. Deu uma caprichada ao olhar para todos os cantos daquela rua vazia, certificando-se de que ninguém seria testemunha de sua invasão noturna. Debaixo do braço, uma sacola com todos os CD’s, pen drives e até mesmo rolos de filme antigos que desejava revelar. Tendo ganhado a chave para abrir o Revelando Sorrisos durante as manhãs geladas que viriam (Becca deixou claro que acordaria tarde e que a novata ficaria encarregada de cuidar de absolutamente tudo), ela poderia fazer uma rápida visita quando a chefe não estivesse presente para realizar as suas impressões gratuitamente. Sua família certamente ficaria feliz com tantos retratos.

A garota procurou nos bolsos pela chave dourada. Ao entrar, o sino sobre a porta causou-lhe um rápido susto. Riu de si mesma, e então se virou para fechá-la. Porém alguém impediu. Um homem a princípio novo, com um capuz sobre a cabeça abaixada havia impedido o fechamento com um de seus pés. Assustada, ela rapidamente informou:

- Desculpe senhor, não estamos abertos. Ela empurrou a maçaneta, mas desta vez ele utilizou uma das mãos, colocando

a palma sobre o vidro, batendo com força. Furgson finalmente percebeu que ele não era um simples cliente, e então deixou cair no chão a sacola que trazia debaixo dos braços. Empurrou o seu corpo fraco contra o vidro, porém não obteve sucesso. O fotógrafo misterioso também havia feito uma visita noturna, e não se importou de abrir aquela porta sem muito esforço para conseguir o que queria. Neste momento, Kacy já estava jogada ao chão, olhando de baixo para aquele homem. Enfim podia ver o seu rosto.

- Eu conheço você! Ele retirou da cintura uma faca grande demais para que a fizesse calar a boca.

Esquivando-se para trás, porém sempre de olho no seu futuro assassino, ela não suportou e gritou. Antes mesmo de repetir o feito, o homem deu um golpe que atingiu somente o ar, pois ela conseguira escapar. Mas não havia para onde correr. As tentativas da pobre garota foram inúteis, pois no fim ele a alcançou. A mesma boca que proferia gritos que aclamavam por socorro foi cortada sem piedade. O sangue escorria por suas roupas comuns. Empurrando-a contra o balcão de atendimento, ele finalizou o serviço com vários cortes no abdômen que acabou por fim exposto. E então Furgson já não mais gritava. O silêncio invadia os ouvidos do assassino e aquela era a sua recompensa. Sabendo que levaria algum tempo para desfazer-se do corpo e arrumar a bagunça – ela havia sido mais resistente do que ele poderia pensar -, encaminhou-se até a porta, trancando-a. As ruas continuavam quietas naquela noite iluminada pelos prédios decorados.

Todas as crianças tinham ganhado brinquedos de um sujeito inexistente de vestes avermelhadas e gorro entalado na cabeça. O fotógrafo perseguidor não ficava de fora: a chave do estabelecimento que balançava entre os seus dedos era o melhor dos presentes.

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❈ Já era noite quando Rebecca White quase foi morta. - Eu vou te matar! - Oh, estou morrendo de medo mesmo. Foi só um empréstimo. Ela olhou para o rosto furioso de Renée em sua frente e riu. - Desgraçada. Não lhe emprestei meu carro, você não tinha o direito! – ela

gritava como uma histérica, o que fez a outra tampar os ouvidos. – Tive que ir de táxi para a festa da noite passada. Tá-xi!

A morena colocou a mão sobre a boca, fingindo espanto. - Imagino como deve ter sido difícil... - Vagabunda. A companheira de quarto preferiu deixar o aposento. - Delícia! Rindo incontrolavelmente ao imaginar a cena do táxi, a japonesa sentou em

sua cama. Cobrindo-se com um punhado de cobertas, olhou para uma enciclopédia sobre câmeras fotográficas e para o seu notebook.

- Por que a dúvida? – questionou retoricamente a si mesma. Escolhendo o aparelho tecnológico sem nem pensar, ela resolveu distrair a

mente. Havia pensado bastante sobre o que vira durante a sua visita a casa dos Cherrys. Não sabia o que era certo a fazer naquela situação. Ligar para Christine e provavelmente colocar mais um problema em sua vida? Porém, ao mesmo tempo, aquela poderia ser a solução da história.

Suspirou como se expulsasse os pensamentos ao fazê-lo e clicou no ícone da Internet. Arrastou o cursor até a barra de endereços, onde digitou o link que a levaria diretamente para o Facebook.

- Vejamos... Percorreu o olhar pela tela. Apertou o botão de curtir em meia dúzia de

fotografias que realmente não havia gostado, porém era necessário manter a falsa sociabilidade.

- Quanta vaca em um lugar só! – foi a sua reação ao ver a foto recém adicionada da companheira de quarto na festa da noite anterior.

Navegando mais um pouco, decidiu pesquisar por um nome que lhe veio instantaneamente à cabeça. Digitou Tyler Cherry no campo de pesquisa e clicou no perfil do rapaz. Indo diretamente ao álbum de fotografias, ela espantou-se:

- O filho da puta tem músculos! Variadas reações surgiram sobre as fotos de veraneio que estavam ali. - Quem diria, debaixo daquelas roupas todas... Aquele mini homem com cara

de dezoito anos... Ela prontamente começou a enxergá-lo com outros olhos. E que olhos. - Talvez eu possa cancelar a ideia de ir até o México, quem sabe.

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Largou o aparelho ao seu lado e pegou desta vez a bolsa que estava sobre o criado mudo. Retirou de lá aquela fotografia, analisando-a outra vez. Ainda gerava arrepios por todo seu corpo.

- Amanhã, Poirot. Amanhã.

Christine não conseguia pregar os olhos. Os mesmos permaneceram lá abertos a noite toda, enquanto ela revirou-se de um lado para o outro na tentativa de fazer com que o sono a chegasse. Mas quando os raios solares invadiam o seu quarto, ela ainda não o havia feito.

Passara a noite então pensando. Chegou até mesmo a levantar da cama para buscar na gaveta do armário da sala aquele gigantesco rascunho onde a melhor amiga havia rabiscado sobre os possíveis assassinos. Riu ao ler o nome de White. Mas aquilo ainda não a ajudava. Tentou refletir sobre possíveis indivíduos que estariam exercendo aquele jogo psicológico consigo, porém a única alternativa que lhe vinha à mente era a de que se tratava de alguém inteiramente desconhecido.

Exausta de ficar parada tanto tempo naquele colchão estúpido, ela levantou-se quando teve certeza de que não conseguiria dormir de jeito nenhum. Vestiu rapidamente um moletom cinza que estava ali perto e abriu a porta do quarto, tendo uma visão completa do corredor que a levaria para a sala de estar. No fim do mesmo, a porta de entrada. Da mesma pendia algo, e era um molho de chaves. Aquilo fez com que ela se lembrasse diretamente das duas vezes em que havia confidenciado para John sobre o esconderijo da cópia daquele pequeno objeto na boca do Pinguim de concreto do lado da fora. E então o desaparecimento do gato – não, ele ainda não havia aparecido. Alguém havia entrado no apartamento usando alguma chave.

Mas não poderia ser o seu amado. Jamais. Ela nem sequer permitiu-se que aquela ideia continuasse passando por sua mente.

- Você está cansada e indo longe demais. Não vá fazer nada de errado justamente agora.

Assustando-a com um pulo, a campainha tocou. Foi do jeito que estava mesmo para atender. Abrindo a porta, ela o viu.

- John – surpreendeu-se.

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Um pouco após o meio dia, Rebecca já estava direcionando-se para o laboratório, que já havia normalizado as suas atividades – diferentemente de outros estabelecimentos que tinham sido fechados até o início do novo ano. Ela caminhava tranquila e lentamente naquela manhã gelada, porém banhada com um lindo sol de um verão inexistente. As quatro peças de roupa que cobriam o seu corpo pareciam não ser suficientes, e para isso ela tinha adicionado uma manta grossa ao visual. Estava bem assim. Tendo chegado ao seu destino, ela estranhou ao ver as suas portas fechadas. Talvez Kacy estivesse nos fundos, remexendo nos materiais que a chefe havia sido específica para que não tocasse – “a menos que você queira morrer”. Mas ela estava certa de que ninguém por ali gostaria de perder a vida. White empurrou a maçaneta, porém a porta estava trancada. Foi aí quando os apelidos não tão carinhosos surgiram para a moça que havia cometidos vários erros naquela manhã. Retirando com rapidez as chaves de seu bolso, a japonesa entraria e apressadamente acabaria com a raça da pequena mexicana. - Kacy? O ambiente repousava. - Furgson, onde está você? Precisamos conversar, querida – ela gritou ao encaminhar-se até o balcão principal. Quando o rodeou, porém, olhou para aquele elemento novo que havia sido ali deixado.

Ela o convidou para entrar, porém Gray alegou estar com pressa. - Apenas passei porque alguém gostaria muito de te ver antes de partir... O corpo eretamente rígido do homem mudou de forma, dando visão àquele

pequeno sujeito que antes estava escondido detrás de suas pernas. - Eu! – gritou. - Henry! Ela agarrou-o quando o garoto pulou em seu colo, e incrivelmente ela teve

força suficiente para aquilo. - Quis te dar tchau, e o tio John deixou. Mas desde que sejamos rápido para

não lhe incomodar. - Imagina! Vocês não estão incomodando nem um pouco. Estava sem nada

mesmo para fazer. Tirei alguns dias de folga do trabalho – alegou. - Eu ouvi direito ou o senhorzinho veio se despedir?

A criança assentiu. - Estamos indo para a Disney! - Uau, será uma ótima viagem. O seu tio... – ela olhou para o homem

sorridente logo ali.

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- Não. Vou com papai e mamãe. Será uma chatice apenas com aqueles dois velhos, mas encontrarei um jeito de me divertir sozinho. Se bem que... Já sei, vamos todos!

Os adultos riram. - Combinaremos uma próxima vez, certo? Quero ir para lá apenas quando

você já tiver ido, para que assim possa me contar o que devo ou não fazer. Você pode ser o meu guia, topa?

- Está bem... – concordou em desânimo. Ela não aguentou mais e largou-o ao chão. - Feliz agora, garoto? Henry balançou a cabeça e voltou para abraçar as pernas de Avelã. Esta que

amava o jeito com que era tratada por um pequenino tão inocente. - Já vamos indo porque papai o quer cedo em casa para preparar tudo o que

falta. Eles partem amanhã. - Sem problemas então. Boa viagem, pequeno. Ele beijou-a na bochecha e foi chamar o elevador. Enquanto isso, o outro

beijou-a nos lábios. - Jantar no próximo final de semana? Quero fazê-la feliz durante mais um

tempo. - Eu já sou feliz. Quer dizer, quem não conseguiria ser feliz ao ver esse seu

sorriso? O rapaz quis esconder-se, porém não encontrou local. Então se afundou na

suavidade agridoce daquela boca diante da sua. - Eu a amo, Christonia. - Sabe que eu também?

Ela aproximou-se da novidade e então desprendeu aquele bilhete pequeno que havia sido deixado sobre o balcão. No mesmo, uma mensagem curta e certeira: “Me demito.”

- Mexicana ordinariazinha! – praguejou. – Não podia ter ligado para avisar? Novatos...

Mal teve tempo para largar as suas coisas, pois já havia alguém a bater na porta.

- Já vai! A morena terminou de colocar o seu avental e então deu uma rápida olhada

para a entrada do Revelando Sorrisos. Era ele. Esperava-a do outro lado da porta de vidro, evidentemente impaciente. Ela não soube de imediato o que fazer, tendo

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permanecido estática durante alguns segundos como uma pateta. No fim correu para deixá-lo entrar, lembrando do frio que fazia externamente.

- Tyler... - Ei, como você está? Ela sorriu em agradecimento silenciado devido aquela visita. - Estou bem, e você? O que faz por aqui? Os dois permaneceram parados no meio da loja, de braços cruzados. - Não sei. Becca riu. - Como assim não sabe? Deve haver um motivo. Cherry levou algum tempo para responder. - Creio que o motivo seja você. Foi quando ela parou de respirar. O ar foi engolido, fazendo com que ela

permanecesse estagnada, apenas continuando a observar aqueles olhos contidos do belo rapaz. Este que se aproximou, tomando a iniciativa. Promoveu o encontro daquelas duas bocas solitárias e sedentas por uma paixão efêmera que poderia sim, porque não, ter uma continuidade logo adiante. Aquilo cresceu aos poucos, não resumindo-se apenas a um beijo lento. Havia ganhado rapidez, fúria, estava sendo intenso o bastante.

- Você curtiu todas as minhas fotos no Facebook – denunciou ele dentre um dos beijos, estando o seu rosto grudado ao dela.

White puxou-o para uma das paredes com força, deixando-o sem saída. O choque fez derrubar alguns álbuns de fotografia a venda nos mostruários ali perto. Ela apenas não se importou.

- Acho que curti mais do que somente as fotos. Duas mãos rolaram por corpos ao mesmo tempo em que uma terceira rolou

pela fechadura da porta de entrada. A mesma estava protegida por luvas, e encaixou a chave que tinha pego emprestado daquela ex-funcionária na noite anterior. Ao entrar, certificou-se apenas por segurança de que havia mesmo retirado o sino do alto da porta, pois aquilo certamente o denunciaria. Observando a cena que ele achava ser patética, retirou de ambos os bolsos do casaco três fogos de artifício. Abaixando-se, ele posicionou os três em direções opostas no piso, ligando-os em seguida. Teve tempo contado para fugir depois daquilo.

O casal apenas parou porque o estouro foi gigantesco. Os estouros, na verdade, que partiam de todos os lados. O primeiro atingiu exatamente um metro de distância de onde estavam, fazendo explodir o expositor de álbuns que agora pegava fogo. O segundo foi de encontro ao balcão, também armando incêndio. O terceiro explodiu, porém não disparou.

Dentre os gritos proferidos, ela tentou compreender o que estava acontecendo. Havia fumaça no local não tão grande, e fogo por todos os lados. Tyler puxou-a para um dos cantos.

- Fique aqui! Ele agarrou o extintor ao lado da garota e rapidamente mirou-o contra os dois

focos de incêndio que não demorariam a espalhar-se. A japonesa, porém,

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desobedeceu-o, indo até a entrada do laboratório. No chão – este encontrava-se negro - haviam três provas de que o assassino tentara mais uma vez acabar com a sua vida.

Quando não houve mais fogo, o rapaz abriu a porta para que a fumaça pudesse escapar. Depois voltou até a sua nova conquista, olhando-a em choque.

- Becca, o que foi isso? Ela ainda olhava para o chão. Em silêncio, caminhou até o lado de fora, onde

pôde respirar um pouco. Observou alguns populares que tinham parado para assistir ao que recém acabara de acontecer, porém nenhum deles parecia ser aquela pessoa que desejava encontrar. A mulher nem ao menos sabia o seu rosto.

Quando ouviu as sirenes dos carros de bombeiro, ela sentiu que realmente precisava encontrar uma rápida desculpa para aquele show pirotécnico.

- Eu já disse, foram as crianças do bairro. Eles vivem brincando aqui pela frente, sempre inventam algo novo. Passaram dos limites esta vez, porém são apenas crianças. Não posso culpá-los.

A mulher explicava para um dos oficiais que havia chego para averiguar a situação do local. Estava nervosa, e a questão em sua cabeça era uma só: Onde diabos estava a sua melhor amiga?

Ouviram-se mais sons, porém não se tratava de sirenes novamente, e sim do Fusca que chegava ao local. O grupo de curiosos localizado em frente ao laboratório - que foi cercado por uma faixa policial e um grande caminhão vermelho - deu espaço para que ela passasse. Dentro do pequeno automóvel, a dona gritava algo sobre não querer atropelar ninguém.

- Aí está a minha sócia – apontou a japonesa para o policial. Christine deixou o veículo balançando a cabeça e olhando para os homens

vestidos de amarelo que deixavam o Revelando Sorrisos aos poucos. Aproximou-se da amiga, abraçando-a fortemente.

- Foi ele, certo? – sussurrou em seu ouvido. Não precisou de resposta falada para compreender. - Bem, moças. Parece que vocês terão de fechar durante algum tempo. Não há

mais riscos, porém ouve estragos. Também vou lhes pedir para que façam a recarga de todos os extintores e aproveito para sugerir um alarme contra incêndio.

Elas assentiram. O homem de cap afastou-se, anotando uma porção de coisas em seu bloquinho. As duas estavam livres para conversar.

- Já chega, este é o fim. Vou falar com os tiras. - Você não pode, C!

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- Eu não quero morrer, Becca. Eles entenderão. Tenho tudo planejado em minha cabeça, não serei presa e nada de mal acontecerá. Eu vou fazer o que deveria ter feito há muito tempo.

Avelã rapidamente virou-se no intuito de alcançar o policial, porém a amiga puxou-lhe pelo ombro.

- Há uma coisa... Christine encarou-a. - O que? - Não quero falar ainda, pois não estou certa. Só preciso de mais uma hora. Se

não conseguir nada, iremos as duas juntas. Eu prometo. Mas ainda há uma chance de eu conseguir uma pista quase concreta...

Antes que a mulher de boina pudesse enchê-la de perguntas, ela falou: - Fique aqui, lide com os oficiais. Vou fazer o que tenho de fazer para pegar o

nosso cara. Estou quase lá. Reed quis impedi-la, mas sabia que era estupidez. - Quando você virou uma ótima detetive? White sorriu. - No momento em que percebi que poderia morrer. E tá vendo aquele gostoso

do lado do bombeiro barbudo? É o meu namorado. Não oficialmente, mas eu farei com que seja. Qual é, até o seu perseguidor deseja com que fiquemos juntos. Ou você acha que estes fogos de artifício não eram para comemorar o nosso romance?

Aquela de olhos azuis riu. - Você ainda tem senso de humor nessas horas, eu te invejo. Balançando a cabeça, a outra respondeu: - Se for morrer, que seja com um sorriso na cara. Preciso estar bonita no

caixão!

Minutos depois ela já havia chego ao local desejado. Não tomou tempo para repensar a ideia ou mentalizar algum plano. Apenas agiria conforme a situação lhe fosse proposta. E foi satisfatória, pois naquela tarde a Igreja de Greenpack estava absolutamente vazia. Mesmo assim ela esforçou-se para não engrossar os passos, evidenciando a sua presença para algum eventual indivíduo ali presente.

Becca caminhou olhando sempre para os lados, dirigindo-se com certa rapidez para o altar iluminado. Ao fundo, quase inaudível, uma música religiosa preenchia com timidez aquele ambiente. Procurando discretamente por alguma entrada escondida, ela lembrou-se que aquilo não se tratava de um cofre ou algo parecido. Nenhum santo oco iria dar aceso a paredes escondidas. Então ela mirou à sua esquerda, enxergando aquela porta lateral branca que havia passado despercebida.

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Certificou-se de que o grande local ainda continuava vazio, e então rumou até ela. Bateu duas vezes, e quando não obteve respostas ela empurrou a maçaneta, suspirando de alívio ao perceber que a mesma não se encontrava trancada. Aquele era um aposento pequeno, onde no centro havia uma mesa retangular. Espalhadas por todos os cantos estavam figuras religiosas acompanhadas de alguns grandes livros guardados em armários. Nas paredes, cor clara. Apenas uma delas trazia uma janela cerrada.

A mulher adentrou e logo fechou a porta detrás de si. Correu até a mesa, vasculhando todas as gavetas a procura de qualquer documento ou até mesmo objetos pessoais do padre. Endereços, bilhetes, qualquer pequena evidência a ajudaria em pelo menos pouca coisa – que naquela altura já seria o bastante para levá-la a novas pistas. Mas não havia nada. Retirou todos os cadernos e livros que estavam ali, porém eram apenas anotações sobre horários de missas e alguns contatos de fiéis. Um dos livros – da capa azul grossa – foi aberto por último, e do mesmo uma pequena chave escapou, caindo ao chão. Naquele momento o som foi como se uma bomba houvesse explodido. Rapidamente abaixando-se para pegá-la, White analisou-a com cuidado. Deveria ser de algum lugar importante. Então ela pôs-se a procurar qualquer fechadura que a mesma se encaixasse. No entanto, ali dentro apenas a última das gavetas e mais algumas de um armário possuíam entradas para chaves. Nenhuma era a procurada.

- Pense, Sherlock. Cogitou a possibilidade de que o que ela mais procurava talvez não estivesse

ali. Seria muito óbvio guardar os dois no mesmo local. É como guardar fósforos em uma caixa de explosivos.

Dirigiu-se novamente até a porta, fechando-a atrás de si. Voltou para o grande altar, pois sabia que ele escondia alguma coisa. Talvez não passagens secretas, porém algo que aparentemente ninguém mais enxergava, por estar muito bem encoberto. E Becca precisou olhar primeiro aquele grande monumento em sua frente como um todo, para depois concentrar-se em parte por parte. Havia muitas esculturas, anjos flutuando e rosas espalhadas no meio de detalhes em dourado. Era muita informação. E esse, no fim, era o segredo. Onde a madeira do altar encontrava-se lisa, inteiramente desprovida de decoração, havia uma pequena fechadura.

- Você ainda entrará para o CSI, Rebecca. Pôs-se na ponta dos pés para alcançar, e obviamente a chave encaixou-se.

Girou-a e abriu a pequena tampa falsa. Havia apenas um livro ali dentro. Mais precisamente um diário. Ela folheou-o rapidamente, porém o suficiente para que visse várias fotografias de Christine ali. Muitas anotações compunham aquelas folhas já amareladas. Nelas, todos os anos descritos detalhadamente daquela garota de olhos cor cinza.

A japonesa decidiu fechar o compartimento antes que alguém adentrasse o local sagrado. Tendo feito, ainda com o diário em mãos, fechou-o de vez, deixando cair um pequeno pedaço de papel de dentro do mesmo. Ela abaixou-se, recolhendo-o. Era uma fotografia, onde no verso estava escrito: “Você pode guardar um segredo? Foi bom enquanto eu pude olhar nos teus olhos. – Maurice Silver”

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Becca virou e viu o retrato daquela mulher conhecida ao lado do padre. Certamente ele havia pensado em enviar aquilo de presente, porém desistira. Não sabia o porquê, porém em sua mente ela acreditava que seria perigoso demais. Ninguém naquela pequena e silenciosa cidade poderia saber que o padre tinha tido uma filha.

A falecida mãe de Christine ria na única foto em que havia sido registrada ao lado de Silver.

Quando o grande caos já havia passado e ela estava finalmente sozinha no laboratório, ela pôs-se a limpar a sujeira provocada por seu maior inimigo. Enquanto varria e arrumava, lembrou-se dos tempos felizes em que havia passado ali dentro. A sua primeira revelação, os seus inúmeros erros, e até os seus acertos. Ela sentia falta do tempo em que tudo ia perfeitamente bem.

Despertada pelo toque do telefone, ela jogou-se sobre o balcão para alcançá-lo, e então atendeu.

- Avelã... - Onde você está? - Pare, apenas me escute. Eu não sei exatamente como lhe falar isso, porém

acho que é necessário. Tentei procurar uma ligação para o que estamos procurando, mas não encontrei. Talvez porque não haja ligação maior do que o que acabei de achar por aqui. Estou na Igreja, e invadi a sala particular do Padre Maurice, aquele nojento. Demorei um pouco, porém encontrei a prova de tudo. Talvez ele seja mesmo o nosso cara, C. Desculpe-me por ter lhe contar isto deste jeito, porém eu acabei de fazer a descoberta do século e ela te envolve. Preciso que você saiba antes que seja tarde. Quem sabe agora possamos ir até a polícia e deixar isso tudo nas mãos deles. Certo, deixarei de ser prolixa. O fato é que o Maurice Silver é... Christine, ele é o seu pai.

Aquela bomba havia sido lançada pela linha telefônica, que naquele momento já se encontrava muda.

- Christine? Desculpe-me, mas... No laboratório, um corpo caído naqueles braços masculinos. Reed havia sido

atingida em cheio, desmaiando logo em seguida. O homem pegou o telefone para finalizar o serviço e foi objetivo:

- Saudades de mim, boneca? Boas ou más notícias, escolha você: O jogo acabou.

Foi a vez de Rebecca emudecer-se. Os toques programados que avisavam que o sujeito havia desligado eram o único som que ecoava em seus ouvidos.

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❈ Parecia ter caído de uma altura muito grande, pois quando acordou ela sentiu todos os seus ossos anunciarem aquela dor contínua. Mal podia se mexer, e os olhos também estavam pesados, parecendo que havia levado um soco. O que viu em sua frente foi um tanto quanto estranho: Árvores em demasia, uma grande elevação de terra que deveria destinar em algum local e o chão coberto por muitas folhas e galhos. Tentou mover um dos braços, porém percebeu que havia uma faixa branca grossa segurando-a contra aquele tronco ao qual estava presa e encostada. Não podia sair daquele lugar. A última coisa que lembrava era de estar no laboratório, e depois tudo ficara preto. - Socorro! – gritou desesperada um par de vezes. Quando voltou a se aquietar, ela escutou o não tão longínquo som de um riacho que deveria passar ali perto. O barulho da água fazia com que ela se lembrasse exatamente do local onde estava. Em sua mente aquela frase era repetida: “Não pode ser”. Mas era. Um riso foi o que confirmou tudo aquilo. Surgiu de algum lugar que primeiramente ela não conseguiu identificar, porém quando aquela pequena nuvem de fumaça apareceu em sua frente, ela soube que o seu assassino estava atrás dela. Literalmente. - Não é engraçado, Christine? Ela forçou a mente apesar da surpresa, porém não conseguiu reconhecer aquela voz. - Você aí sentada debaixo da mesma árvore onde tudo começou. Acho que não é tão difícil voltar um pouco no tempo, porque pelo que eu percebo você faz isso muitas vezes. Então se lembre apenas mais uma vez daquele treze de março, quando você atropelou uma alma indefesa e fugiu. Ela quis falar algo, porém pôs-se a chorar. Estava tremendo, e via logo em frente a sua morte. Havia chego a hora. - É muito feio correr dos problemas que nós mesmos criamos. Você deveria saber disso. - Eu não quis te atropelar! – cuspiu as palavras. E então ele ficou quieto. Tirou o cigarro da boca, jogando-o no chão e pisando em cima. Ela conseguiu ouvir o som das folhas secas de quebrando quando ele o fez. Permaneceu mudo durante algum tempo, até que deu a volta no tronco e pôs-se frente a frente. Christine analisou-o, e as suas feições não eram estranhas. Já o tinha visto em algum lugar, então tentou lembrar-se de onde. Era magro demais, vestia um grande casaco com capuz preto e jeans rasgados. Nos pés, coturnos escuros. Os seus olhos eram vermelhos, ela os pôde ver quando se abaixou e ficou a poucos centímetros de seu rosto paralisado.

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- Surpresa: Você não me atropelou. Reed não conseguiu entender. Lembrou-se em passos o que fizera naquela noite, sendo que desta vez não doeu tanto recordar. Todo o resto doía infinitamente mais. Mas ela havia sim colidido com algo. Ouviu o grito, podia ainda senti-lo penetrar os ouvidos como se estivesse acontecendo naquele exato momento. - Não, não... – ele riu, já em pé. – Não tente procurar escapatória pensando que talvez você não tenha sido culpada de nada e que não ficou próxima de tirar a vida de ninguém, porque você o fez! – ele acusou apontando o dedo. Dando mais umas voltas, ele explicou: - Só não fui eu a vítima. O homem balançou os ombros e chutou para longe uma pedra que estava em sua frente. Aquilo fez com que ela se recolhesse para si, reduzindo-se mais ainda. - Já existe alguém me perseguindo, você não precisa fazer isso. Estou pagando pelo que fiz. Ele gargalhou tão alto que nem mais o som do riacho se conseguia escutar. Mas bruscamente parou, olhando-a. - Não, você não está pagando, sua vagabunda! – a voz variava entre altos e baixos tons. - Ainda não... – voltou à calmaria. - Está vendo isso daqui? – ele retirou do bolso a mesma faca que servira para os outros dois assassinatos e a mostrou, reluzindo contra o sol que entrava por dentre as folhas das árvores. – Isso lhe fará pagar quando eu passar lentamente no seu pescoço branco. Os dois punhos da mulher fecharam-se. - Mas vamos guardar o melhor para o final, não é mesmo? – ele largou a faca de volta no bolso. – Acho que você merece saber exatamente tudo o que aconteceu e por que você está aqui, caso ainda não tenha sido esperta o bastante para ligar os pontos. Afinal, você precisará explicar para o Diabo o motivo pelo qual foi parar no inferno quando chegar lá, certo? Ele não esperou resposta. Também não dava a mínima para aquelas lágrimas em soluço. - Vamos ser claros de uma vez, chega de fotografias e dicas que não te levarão a nada. Cansei de jogar deste jeito que obviamente não é o meu. Irei direto ao ponto, fazendo algumas perguntas básicas. Se você não responder o que quero ouvir, tcharam! – exclamou – Você morre. É o que deveria ter sido feito desde o princípio. Ela olhou para o homem que balançava a cabeça como se não aceitasse aquela situação. Lembrando-se de algo, ela falou rapidamente: - Eu conheço você! O assassino juntou as duas mãos para bater palmas. - É claro que você me conhece - retrucou. - Vamos ver se você é tão boa assim. Responda-me: De onde? - Você estava na feira de árvores de natal um tempo atrás. Estava conversando com o sobrinho do meu namorado. Os nossos olhares se cruzaram. Ele balançou a cabeça para os dois lados em negação.

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- Terá de se esforçar um pouco mais, Christine. Você está mais devagar do que eu pensava. Vou lhe ajudar, pode ser? Comecemos com as perguntas. Diga-me: Como o seu pai morreu? Avelã engoliu em seco ao escutar aquele questionamento. - Por que você quer saber? - Responda! – ordenou ele em bom tom. As costas da mulher doíam a cada vez que ela pressionava o corpo contra o tronco. - Houve uma tempestade. Ele estava no mar, voltando de um dia de trabalho. O seu barco não aguentou a tormenta e acabou naufragando – contou com esforço. - Certo, mas ainda não é o que desejo ouvir. Quero detalhes. Então, por favor, seja mais específica. Como soube que o Joanne 13 havia sofrido um acidente? Ela fitou-o com curiosidade - porém ainda temerosa - ao ouvir ele proferir o nome da embarcação de Noel. - Estava em casa com minha mãe. Era um dia cinza, e não havia ninguém nas ruas. Ela havia o alertado para não sair de casa, mas éramos muito pobres naquela pequena vila de Greenpack, e cada dia de trabalho perdido geraria grandes perdas no fim do mês. Por volta das oito, quando eles já deveriam ter voltado para casa, ficamos sabendo. - Eles? - Papai, Willie e Jack. Os três sempre saíam juntos para trabalhar. Naquela tarde haviam ido todos no Joanne 13 para ajudar um ao outro, pois sabiam que uma tempestade viria. Mamãe já estava chorando quando acendeu algumas velas, enquanto eu apenas agarrei-me a uma boneca. Bateram na porta de casa e nos avisaram que estavam todos reunidos na lanchonete do cais. As três famílias e mais alguns amigos. Lembro de olhar para aquelas ondas que quebravam junto à margem e ficar com medo que elas me arrastassem. Mas eram bonitas no escuro. Corremos debaixo da chuva, chegando até o local. Todos trocaram abraços, e mamãe pediu para que eu ficasse com as outras crianças. Na televisão ligada passavam várias previsões e alarmes sobre a calamidade que pairava sobre o estado. Eu não entendia nada, então levei a minha boneca para uma das mesas. Ficamos lá sentadas até que tudo passasse – contou com entusiasmo, não deixando escapar nenhum detalhe. Nunca havia conversado sobre aquilo com ninguém. - E depois? - Recebemos a notícia do próprio noticiário do Condado. Já era tarde, e muitas mulheres tinham pegado no sono em cima daquelas mesas de bar mesmo. Permaneci a noite inteira acordada, escutando tudo. Soube exatamente quando o meu pai morreu. Lembro de haver um menino ali perto. O filho de Willie. Ele tinha a minha idade e ficamos a noite inteira cantando a canção que meu pai havia feito sobre aquela embarcação. Ele também pegou em minha mão quando ouviu que o barco havia sido encontrado e que o seu pai também estava morto. Ainda guardo o que ele me disse: “Eles estão melhor do que nós agora”. Confesso que a partir daquela noite e durante algum tempo depois, eu fiquei pensando muito nele. Acho que criei um amor platônico, porém nunca mais o vi. Ele tinha cabelos castanhos e era mais

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leve do que eu. Naquela noite eu perguntei sobre os seus olhos, e ele contou-me que havia nascido com aquela pequena falha genética em ambos, o que fazia com que fossem... - Vermelhos? – continuou o cara em sua frente que havia se abaixado outra vez, deixando a mostra aquele par de bolas cor de sangue. Ela não soube mais o que era respirar. Por um momento os fitou, e depois lembrou de onde o conhecia de verdade. - É você... – recordou. - O garotinho... – fechou os olhos, forçando a memória. Quando os abriu, proferiu o seu nome: - Travis Black. - Muito bem, Christine. Um ponto para você. Avelã o olhou com mais interesse a partir daquele momento. Havia algo dentro de si que tinha se acomodado, fazendo-a se sentir dez por cento mais confortável apenas por conhecê-lo. - Eu não entendo... Onde você se encaixa nessa história? O que tudo tem a ver? O traficante de Greenpack sentou-se em uma pedra, olhando-a de volta. - Conte-me você. O que aconteceu depois da morte de nossos pais? Ela recordou um pouco mais: - Os corpos de papai e Willie foram encontrados, assim como o de Jack. Mas ele ainda respirava, e permaneceu em coma durante muito tempo. Nunca mais tive notícias dele. - Ele virou um vegetal, Christine. Permaneceu muitos anos em coma profundo. Não falava e nem abria os olhos. Por não ter família, apenas o mantiveram vivo. - Onde ele está? - Não sei mais. Visitei-o há quatro anos, quando soube que ele acordara. E sabe o que é mais incrível? Ele lembrava-se de algumas coisas. Foi um caso inexplicável para os médicos que o trataram na capital. Provavelmente você não ficou sabendo sobre isso. Ela apenas negou. - Jack contou-me o que aconteceu, Christine. E que passou anos juntando pedaços de lembranças para formar o que realmente havia feito com que o barco virasse... Negligência. Imprudez. Falta de atenção – citou. - Foram apenas algumas características que ele me apontou. Lembrou-se também de que o responsável pela morte do meu pai foi o seu. Ele não soube dizer exatamente como, mas era algo que envolvia Noel obrigando-o a ajustar o mastro do barco. Foi lá onde encontraram o seu corpo totalmente queimado devido a um raio que o atingiu. - Você não pode acreditar em tudo que alguém que saiu de um coma profundo diz. Provavelmente são histórias inventadas pela cabeça dele! – ela achou tudo um grande absurdo. - Meu pai e Willie eram amigos, isso nunca aconteceria. - Eu e você éramos amigos. Olhe onde estamos. Ela derramou outra lágrima. - Você não pode me culpar.

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- Ah não? – ele levantou-se. – Minha mãe atirou-se ao mar mais uma vez, gritando que iria trazer o meu pai de volta. Depois se dopou e eu a encontrei morta quando eu tinha dez anos. Ela estava no chão da sala olhando para mim, porém não respirava. Fugi de casa, vivi na rua aonde eu precisei roubar para ter alguma merda para mastigar e me droguei tanto que acabei me tornando o traficante mais famoso da cidade. Tudo por causa daquela porra de acidente onde o seu pai matou o meu! – ele gritou pela floresta. – Eu não tenho motivos suficientes para lhe querer morta, Christine Beatrice Reed? Ela expulsava de seu peito todo o seu medo dividido em choro e soluços. Sabia que com um forte impulso ela se livraria daquele tronco ao qual estava amarrada, porém apenas não tinha condições de esforçar-se. Talvez morrer acabasse de uma vez com o seu sofrimento. - Esperei muito tempo para lhe tirar a vida, e agora não perderei a chance. Mas há apenas mais uma curta parte que você deve entender antes de fechar os olhos. Então seja boazinha e me responda sem muita enrolação. Não quero detalhes agora, quero respostas rápidas – explicou ele. - O que você fez na noite de treze de março, há três anos atrás? - Eu atropelei alguém – ela respondeu rapidamente, com medo. - Quem? - Eu não sei! - E o que você fez? - Eu fugi. - Não ajudou a vítima? - Não. - Você ouviu algo? - Sim. - O que? - Um grito. - De quem? - Não sei – ela respondeu e ficou quieta. Percebendo que ele queria um complemento, ela se apressou em terminar: - Da vítima, da vítima!

Era como um relógio que corria contra o tempo. Aquele bate e volta estava acelerado, pressionando-a. - Por que você não voltou para ajudar? - Estava com medo. - De que? - Ser presa. - Não foi um acidente? - Estava bêbada. - Alguém mais sabe? - Duas pessoas, uma está morta. - Alguém viu a cena? - Não. - Tem certeza?

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- Sim. - Não ouve testemunhas? - Não. - Então como a vítima sobreviveu? Aposto que foi uma pancada forte. - Eu não sei. Não havia ninguém, eu estava sozinha. Ninguém mais viu. - Mesmo? Escorria água de seu nariz, a respiração era cansativa. - Eu vi luz. - Onde? - No meio da floresta. - Que luz? - Um ponto pequeno, alaranjado. - Fogo? - Talvez. Eu não sei, droga! - Shh. Quem era? - Eu já disse que não sei! - Não era uma testemunha? - Eu... - Com um cigarro aceso? - Eu não... - Que provavelmente ajudou a vítima a levantar-se e, consequentemente, a se vingar daquela moça egoísta e medrosa que o atropelara? Ela parou de responder e engoliu o choro. Não houve riacho, não ouve risos, não ouve absolutamente nada que servisse de trilha sonora. Então ela encaixou as peças. - Você... – acusou-o tendo certeza. Travis abriu o seu típico sorriso e flexionou o pescoço para os dois lados. Voltou a retirar do bolso pela última vez aquela faca grande, e então deu alguns passos.

- Diria que foi uma interessante oportunidade que cruzou minha frente e eu apenas a tomei para mim, como pretexto para lhe dar o troco.

Ela balançou a cabeça em desespero. - Bem, agora você já entendeu tudo. Faça uma boa viagem ao inferno, sua

pecadora inútil! A garota amarrada na árvore pôde ouvir o som da faca abrir uma fenda em seu

pescoço.

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Desesperada e sem escolhas, Becca havia passado na casa de John. O último preocupou-se sobre o porquê de a japonesa estar procurando pela amiga naquele início de noite, e então a mulher teve de inventar uma longa história que o convencesse. Livrou-se ao saber que ele não a havia visto, e acabou perdendo tempo quando Gray perguntou sobre o incêndio que viu ser noticiado na televisão. Ela explicou toda a história e deu o fora em seguida. Não sabendo mais aonde ir, lhe restou um lugar.

Ela correu até o laboratório e adentrou o mesmo com rapidez. Gritou pelo nome da amiga, porém ninguém se encontrava ali. Pronta para desistir de procurar – pelo menos por ali -, ela parou na porta da pequena sala escura. Sabia que atrás de si, na parede contrária, havia um armário grande. Era necessário verificar. Caminhou até o mesmo e puxou uma das portas. Estava trancada. Buscando com pressa a chave em uma gaveta ali perto, ela perguntou-se a razão para mais aquilo acontecer, pois ambas as funcionárias nunca o haviam trancado. Ela girou a chave, e encontrou um não tão pequeno detalhe que havia passado despercebido pelos oficiais durante aquela tarde.

Não era exatamente quem ela procurava, mas o cadáver de Kacy Furgson a fez gritar igualmente.

❈ A moça (desta vez sem boina) pôde ouvir o som da faca em seu pescoço mesmo, porém foi apenas a sua mente apressando-se no que estava por acontecer. Reed contraiu-se e fechou os olhos, esperando pela sua morte dolorosa. A última cena que vira foi aquele antigo amigo seu levantando o objeto prateado no alto, pronto para acertá-la. Porém não foi assim com que tudo acabou. Antes que pudesse atingi-la, alguns disparos partiram do alto daquela ribanceira. Era um terceiro sujeito, munido com um revólver poderoso. As balas atingiram certeiramente a cabeça de Travis, que largou a faca e deixou de viver nos braços de Christine.

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XIII UM OUTRO TOM DE CINZA

Não pôde evitar que gritos saíssem de sua boca sem ter controle algum. O choro havia voltado, e ela estava ainda presa, mas agora com um homem morto que jorrava sangue em cima de si. Internamente ela bem que tentou buscar um pouco de calma, mas parecia impossível. Apenas quando cessou os gritos foi que começou a pensar. Primeiro ela impulsionou-se para frente, e depois balançou as pernas. Travis Black rolou para o lado, caindo no chão. Em sua testa havia duas perfurações, e o rosto pálido lhe auxiliava a lembrar de acelerar os movimentos, pois parecia que ele retornaria à vida a qualquer minuto. Forçando-se contra a faixa que a amarrava mais uma vez, ela conseguiu se soltar. Caiu de joelhos na primeira vez que tentou ficar em pé, e então gritou mais algumas vezes por socorro. Mas ninguém a escutaria. Olhou para todos os lados, tentando encontrar a pessoa que havia feito os disparos, mas estava tudo costumeiramente calmo e quieto. Não existia ninguém ali além dela mesma. Com os cabelos sujos e as mãos cortadas, ela jogou-se contra a elevação de terra logo ali. Tentou escalar, mas caía e voltava ao lugar de origem. Em uma das tentativas de subir o morro, falhou e inclusive rolou, chegando perto daquele homem morto. Com mais alguns gritos, ela decidiu parar para pensar. Estava anoitecendo rapidamente, e se ela não encontrasse um meio de dar o fora dali rápido, certamente passaria a noite presa naquela floresta. Christine agarrou os troncos de árvore um a um. Alguns eram finos demais e acabavam quebrando. Ela resvalou, porém não desistiu, e aos poucos atingia o topo daquela ribanceira, chegando finalmente à estrada. Nesta também não havia iluminação e nenhum carro passava. Dando voltas em torno de si, ela percebeu que estava imune. Poderia levar um tiro a qualquer momento. Este pensamento a fez correr caminho abaixo, o mesmo que a levara de volta à Greenpack naquela noite. Lá ela iria até a polícia para confessar tudo. Havia um corpo entre as árvores como prova.

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A mulher desceu com uma velocidade absurda. Não parou nenhum momento, apenas continuou a correr. Quase no fim da inclinação vertical, quando já podia enxergar as luzes do Condado, ela tropeçou, caindo ao chão. Deu cambalhotas e chocou-se contra a terra diversas vezes, o que a fez ganhar mais arranhões. No fim da estrada ela estava destruída. - Táxi! – ela levantou a mão e sinalizou para aquele carro que milagrosamente passou. - Para onde, senho... Ela encostou-se no banco e fechou os olhos.

❈ Havia um lugar para passar antes de ir até a delegacia. Quando o táxi parou no laboratório, ela saltou e gritou para que a esperasse, pois voltaria em um minuto. Correu até a porta de entrada e retirou o pequeno cardigã que estava vestida. Enrolando-o no punho, ela atingiu o vidro da porta com um soco, e logo em seguida olhou para trás para certificar-se de que o velho taxista não havia escutado nada. Colocou a mão para o lado de dentro e destrancou a porta. - Becca! – foi apenas o instinto.

Era inútil, obviamente ela não estava ali. Christine correu até o balcão e agarrou o telefone. Enquanto discava os números da casa da melhor amiga, remexia com a outra mão na sua bolsa que havia deixado ali horas antes. Pegou o celular e o colocou no bolso da calça. Três toques depois, alguém atendeu.

O taxista cantarolava baixinho uma música italiana que havia começado a tocar no rádio. Foi surpreendido quando um homem apareceu no vidro do caroneiro. Ele o abaixou para informar: - Já estou em uma corrida, senhor. Desculpe. O homem do lado de fora jogou três notas de dez dólares para dentro do carro e ordenou para que o dono do veículo desse o fora dali. Quando o negociante desapareceu, ele pisou no acelerador e partiu.

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❈ - Não! – foi o que ela exclamou ao ver aquele carro partir do lado de fora. - Alô? - Becca! – ela voltou a concentrar-se no telefone. - Ela não está. Aqui é Renée. Quem é? A mulher acabada não podia acreditar. Era só o que faltava. - É a Christine. - Ahn, oi. - Escute, onde está Becca? - Eu não sei, não a vi. - Você pode deixar um recado para ela? Uma pausa. - Renée?! - Ah, sim. Espere, vou pegar um papel. - Não precisa! Só avise... Renée?! Renée?! Ela desistiu. Não havia tempo para aquilo. Desligou o aparelho e correu para dentro da sala de revelações. Abriu com brutalidade aquela gaveta em que havia guardado todas as fotografias recebidas. Levá-las-ia para a polícia e diria onde o corpo de Travis estava. O resto seria por conta deles. Inclusive a decisão sobre o que fariam com ela. Reuniu todas as fotografias, porém antes de colocá-las em um dos envelopes alaranjados, olhou para o seu lado direito. A porta do armário estava aberta, e a fraca luz vermelha da sala escura a fazia enxergar algo ali dentro. Aproximou-se com curtos passos, puxando a porta. Não conseguiu chorar ao ver mais um cadáver, porém gritou devido ao susto. Sem perder muito tempo, porém, retirou os cabelos do rosto e limpou o nariz que escorria em sua manga. Estava com tanto frio.

Voltou a dar prioridade às fotografias, guardando-as no envelope. Com ele em mãos e pronta para ir até os tiras, ela parou por um instante. Não precisou de sinais, de olhares ou até mesmo sons. Era fácil demais saber que naquele momento ela não se encontrava sozinha.

❈ Christine virou de uma só vez, enxergando aquele homem coberto por sombras, meio claro e meio escuro. - John! – explodiu em emoção. Ela jogou-se em seus braços, abraçando-o como se o revisse após muitos anos. Voltou a espalhar lágrimas por todos os cantos, porém agora eram de tranquilidade e alegria. Nunca se sentiu tão feliz por tê-lo perto. Sabia que agora estava segura e que

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com ele ao seu lado tudo seria mais fácil. Envolta naquele abraço acolhedor, porém, subitamente lhe ocorreu o pensamento: Por que ele não a abraçava de volta? Uma música invadiu o ambiente, e em sua perna algo tremia. Ela retirou do bolso o seu celular e olhou para o visor. Estava recebendo uma chamada de John Gray. Confusa, ela afastou-se do homem que estava abraçando, e pôs-se a observá-lo. - Christine?! – o seu amado chamou-a no outro lado da linha.

❈ Ela não entendeu a princípio como o mesmo homem podia estar em sua frente e no telefone ao mesmo tempo. Porém, após algum curto período, tudo se tornou perfeitamente claro para ela. - Onde você está? Becca está lhe procurando há horas, e... - John... – ela o interrompeu. - Oi? - John... Que dia o seu irmão nasceu? – ela perguntou devagar, sabendo da resposta. Apenas queria confirmar. - 22 de setembro, claro. O mesmo que eu. Mas por quê? Eu te contei que somos gêmeos, certo? Ela abaixou o aparelho, olhando para o homem de boné vermelho (já havia visto aquele adereço antes) em frente de si. A voz de seu namorado ainda era o único som que preenchia aquela sala. Avelã então apertou sem olhar qualquer tecla para que ele fosse silenciado. Encoberto pelas sombras, David Gray virou-se, deixando a mostra o lado esquerdo de seu rosto que trazia uma grande cicatriz. - Olá, Christine.

❈ - Eu sinto muito... – ela desculpou-se por aquele machucado. Discretamente ela deu alguns passos para trás. - Você não precisa ter medo de mim. Diferentemente de Travis, não pretendo matá-la. Era estranho para ela ver aquele homem que fisicamente era idêntico àquele que detinha o seu coração, mas que em personalidades certamente eram muito diferentes. - Você não deveria ter me abandonado naquela noite, Christine. - Eu, eu...

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- Shhh – ele a silenciou. – Minha vez de falar. O homem permaneceu em seu lugar, assim como ela. - Eu havia acabado de sair de um relacionamento e desejei morrer. Acho que você foi a encarregada de quase concretizar o meu pedido, tendo me atropelado quando eu vinha vagando por aquelas ruas desertas no meio da madrugada. Foi um choque forte, eu pensei que realmente estava indo de encontro à morte quando fui arremessado barranco abaixo. Só parei porque havia um tronco grosso de árvore no meio de meu caminho, mas eu já estava desmaiado. Havia atingido uma pedra e tive contusões. Apaguei e lá fiquei. Ela lembrou-se do cenário, e era exatamente o local onde ela havia estado anteriormente com Black. - Mas não por muito tempo. Havia uma terceira pessoa ali que observou a sua fuga e correu para me ajudar. - Travis... David assentiu. - Ele me tirou de lá e se assegurou de minha sobrevivência. - Também foi o seu parceiro nisso tudo – ela falou sem medo. Gray circulou pelo balcão do centro daquela sala escura, dirigindo-se até onde as fotografias que ela havia recebido estavam. Pegou-as na mão, olhando uma a uma. Depois as levantou, mostrando para a mulher. - Está vendo? Minha ideia. Você deveria me agradecer, no fundo. - Por tentar me matar? Ele negou. - Nunca encostei minhas mãos em você. Travis quis com que você morresse de uma vez, estava sedento por vingança. Assim como eu. Mas há uma grande diferença entre dar o troco matando alguém e apenas prejudicando alguém. Escolhi a segunda opção, diferentemente dele. Então lhe propus um acordo. - As fotos... - Qual a melhor maneira de fazer alguém repensar os seus erros? – ele questionou e logo respondeu: - Revisitá-los. Ele sorriu pela primeira vez. - Trazer aquele dia de volta após três anos seria uma tacada genial. Havia passado tempo, e tudo tinha se acomodado. Era o que você menos esperava. E obviamente Travis não poderia fazer nada daquilo por conta própria. Era muita burrice junta. Digamos que eu era a mente e ele era o executor. Bem... Até ele começar a matar pessoas - explicou. - E você sempre deixou tudo tão fácil. Quem diabos guarda uma cópia da chave de casa ao lado da porta de entrada? Foi moleza para ele invadir seu apartamento! E eu apenas o fiz quando precisei roubar o gato. Acho que o seu cachorro até me reconheceu, porém obviamente estava apenas se confundindo com meu irmão. De resto, nada mais. Nunca quis nada disso. Eu digo, as mortes. Caí fora antes. Ela não teve receio ao retrucar: - Isso não lhe tira a culpa. - O tempo lhe tirou a sua culpa?

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Christine encostou-se em uma das paredes permanecendo quieta, sempre lhe lançando olhares certeiros. Não estava totalmente livre do medo, porém sabia que a chance de morrer havia passado. - Acontece que as portas se fecham quando você tem uma porra de cicatriz bem no meio da sua cara. Querendo ou não, o mundo é assim. As pessoas são fúteis assim. E você perde as chances da sua vida. Avelã rapidamente contou o seu plano: - Eu vou me entregar para a polícia e eles saberão o que fazer comigo. Eu errei em te abandonar lá, deveria ter ajudado. Eu estava apavorada mesmo, David. Não soube o que fazer. - Cale essa boca. Ele apontou uma a uma das fotos contra a luz. - Foi engraçado receber aquelas cartas de Travis. Ele realmente achava que podia mandar em mim, quando apenas tinha poder sobre um anão que vive com ele. Certa vez o meio metro até confundiu-se e entregou um envelope para John. Foi engraçado, porém Black não gostou. - Você que o matou? - Está aí outro motivo pelo qual você deveria me agradecer. Além de não querer ninguém próximo a você morto, fui lá e acabei com a raça daquele vagabundo que por pouco não lhe cortou o pescoço fora. Ah, Christine... Agradeça, vai. Reed estava muda. - Estou sendo sério. Eu mandei agradecer. Foi aí que ela percebeu que aquela contusão devia ter o deixado com algum distúrbio. Aquilo, - somado a morte da mãe quando pequeno - eram as causas principais para o desvio de comportamento do homem em sua frente. - O... Obrigada. - Não há de que. Ele suspirou e arqueou os ombros. Pensou no que faria com ela. - Onde está o meu gato? - Hm, havia esquecido daquela bola de pelos. Ele está me causando uma rinite desgraçada há alguns dias já. Você poderá passar lá em casa para buscá-lo daqui algumas semanas. Farei um chá para nós dois. Você gosta, certo? Podemos conversar e enfim nos conhecer, será um tanto quanto interessante. - Semanas? - Você não pensou que sairia ilesa daqui, pensou? Mexi fortemente com o seu psicológico, porém há um presente que você me deu, lembra-se? – ele apontou para a cicatriz. – Que tal se nós dois tivermos uma? Assim não serei o único bizarro por aí a desfilar aberração. E lá estava o seu choro de volta. Avelã balançava a cabeça em piedade. - David, não... - Não será tão doloroso assim, eu prometo. Ele aproximou-se com dois passos ao mesmo tempo em que ela recuava. Deixando de olhá-lo pela primeira vez, ela reparou na porta aberta da ante-sala e correu. Tentou puxar a maçaneta, mas apenas agarrou o ar, então continuou a correr,

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chegando à loja em si. David correu atrás dela, e não precisou de muitos esforços para que aquele homem grande a pegasse pelos cabelos antes que ela pudesse cruzar a porta de entrada. - Não seja egoísta, Christine. É feio fazer desfeita para os seus melhores clientes. Vamos revelar algumas fotografias, sim? Reed virou-se, e com um rápido movimento mordeu a mão de Gray que a soltou no mesmo instante. Ela correu mais uma vez, porém dessa vez foi na direção contrária. Separados por um biombo de produtos, eles gladiaram com olhares até que David empurrasse o mostruário em sua frente contra ela. A mulher esquivou-se e aproveitou para pegar alguns produtos ali perto para arremessar contra ele. A grande maioria passou longe, tendo um deles acertado em cheio o computador do balcão principal. - Já chega! – ele gritou e caminhou em direção a ela, usando o braço para proteger-se da chuva de mercadorias. Aquele cara que três anos antes havia sido atropelado grudou os dedos contra a cabeça de sua presa, pegando na raiz de seu cabelo. Foi assim que ele a arrastou novamente até aquele aposento escuro onde a arremessou no chão. - Não tente escapar novamente. David agarrou uma das duas bacias sobre o balcão de revelações e ligou a torneira, enchendo-a. Deu meia volta, observando de cima aquela mulher caída aos seus pés. Curvou-se para capturá-la. - Sabe, eu passei um mês naquela merda de hospital para que pudesse sair. Antes disso, fiquei muito tempo respirando com a ajuda de aparelhos. Talvez você queira sentir o que eu senti. Como? Quer experimentar? Quanta gentileza. Ele forçou a cabeça dela contra a bacia, submergindo-a. Esperou algum tempo enquanto falava um monte de trivialidades. Reed debatia-se ao se afogar. - Pronto, pronto. É ruim, não é mesmo? - Por favor, pa... Voltou a mergulhá-la. - Agora imagine um bocado de tempo desse jeito. Sem saber o que significa ter ar. Péssimo, não? Imersa na bacia, ela levantou uma das pernas, chutando-o. Quando estava livre outra vez, ela contornou o balcão, porém não havia saída. David atingiu-a com um tapa bruto e jogou-se em cima dela. Estava no chão novamente. - Não quero que você vá para a polícia. Podemos fazer um acordo, apenas. Você ficará quietinha, e não contará isto para ninguém. A minha vingança está feita, e ninguém além de nós dois precisa ter conhecimento. Nem John, que pensa que estou na Europa. Tive até de mandar um postal falso para ele quando viu meu carro uns dias atrás, porém deve ter pensado que era outra pessoa. Trouxa. O peso dele em cima dela era a dor conclusiva para aquela noite. Estando ali, ele olhou para os dois lados, procurando por algo afiado. Encontrou um estilete. Lentamente passou-o em uma das bochechas dela, fazendo-a gritar de dor. - Houve mais um aspecto chave para esta vingança muito bem elaborada, gracinha...

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David forçou um de seus joelhos contra a barriga da mulher, deixando-a imóvel e, por fim, com as suas forças reduzidas a zero. - Naquela noite na casa do meu irmão você levantou para tomar um copo de água. Estava sorridente devido a esse anel ridículo que havia ganhado. Surpresa: Também havia uma testemunha naquele momento. O seu rosto ardia ao expulsar sangue, porém ela compreendia exatamente o que ele dizia. - Enquanto o querido John dormia em sono profundo no chão da sala, onde vocês haviam concretizado o grande amor que criaram, eu a segui até a cozinha escura. Falei com você quando fechou a geladeira e nenhuma luz mais poderia denunciar a minha cicatriz. Foi fácil para que você acreditasse que era o meu irmão, quando na verdade era eu. Sua pequena prostituta. Jogou-me em cima da mesa com tanta fúria e libido. Você é das boas. O que tenho a fazer agora é agradecer também. David pôs-se de pé e puxou um dos ampliadores de revelação para a borda da mesa logo ao lado.

- Você pode guardar um segredo, Christine? – pediu. – Ah, mas é claro que pode. Apenas mais um, de tantos outros que já habitam o seu interior destroçado. – ele riu. - Obrigado pelo prazer. Tanto daquela noite quanto o de agora.

Ele puxou com força o aparelho pesado e deixou-o cair do balcão, atingindo diretamente a perna da mulher. Avelã no teve tempo para gritar, pois rapidamente fechou os olhos, encontrando absolutamente o nada. A vingança, enfim, havia sido concluída.

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epílogo

Becca White ficou um minuto pensando no que poderia ter acontecido. Somente as 21h04 ela percebeu aquela porta aberta. A que dava acesso para a saleta escura. Permaneceu um pouco receosa, mas precisava encarar. Andou lentamente, cuidando para que cada passo não atingisse nada do que havia sido jogado ao chão. Retirou a bolsa do ombro e deixou-a no balcão principal, sempre mantendo o olhar na porta aberta. Prendeu a respiração sem saber exatamente o porquê. Foi involuntário. Quando entrou na ante-sala, observou que a porta do quarto escuro estava aberta também. Realmente havia algo errado, porque a regra número um era a de que aquela porta só fosse aberta quando a outra estivesse fechada. A luz não podia chegar até lá. O que havia acontecido, então? Provavelmente vários filmes haviam sido queimados, caso estivessem expostos. A pseudo-japonesa que tinha acabado de voltar da Igreja - onde havia dado um soco em Padre Maurice (provavelmente ela teria de esperá-lo morrer para poder casar-se lá) - olhou rapidamente para dentro da saleta. As únicas luzes acesas eram as avermelhadas. No tanque, a torneira pingava de gota em gota, atingindo alguma superfície que reproduzia um barulho repetitivo e irritante. Mas não havia mais nada ali. Pronta para dar o fora, respirar um pouco e provavelmente criar coragem para dar um telefonema à polícia, ela observou algo que havia passado despercebido. No chão era possível enxergar aquelas pegadas feitas de água. Não eram muitas, e a cada passo pareciam ter ficado mais fracas. Mas existiam, estavam ali, e elas eram o sinal de que alguém havia feito uma visita com toda a certeza. Aqueles sapatos masculinos denunciavam que não tinha sido Christine. White perseguiu um pouco das pegadas, entrando na sala escura. Elas a levaram até o que ela precisava encontrar: O corpo de sua amiga deixado no chão, antes não visível por estar atrás do móvel central onde as revelações eram realizadas. A morena abaixou-se rapidamente, com os batimentos do coração dobrando de aceleração. - Christine! – ela gritou. Um pouco de eco saiu pela sala. Mas Reed não respondia. Estava imóvel, de olhos fechados, e muito molhada. Todo o lugar ao seu redor estava. No rosto, arranhões inúmeros. - Vamos, acorde – pediu.

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Becca então reparou na perna da pequena Avelã. Estava com toda a certeza quebrada. Perto da mesma, um dos ampliadores, totalmente destroçado. Ela tentou entender o que acontecera, tendo um fato concreto em mãos: O assassino havia fugido. A mente girava em um turbilhão de pensamentos. A fratura tão perto lhe enjoava. Precisava de ajuda. Olhou uma vez mais para a vítima, e então fechou os olhos. Não queria aproximar-se para sentir se ela ainda respirava. E se tivesse perdido a vida? Seria duro demais ter de enfrentar aquilo. Então dali escapou uma lágrima. Quando a gotícula atingiu as vestes molhadas de Christine Reed, está última abriu os olhos. A vítima, sem noção de tempo e espaço, não entendeu nada. E então rapidamente a dor apareceu, fazendo-a gritar.

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agradecimentos

Pai e Mãe, obrigado pela minha boa educação. Viviane, foste tu que aos meus doze anos de idade comprou o meu primeiro exemplar da Agatha Christie para que eu não desistisse do interesse – naquela época talvez passageiro – de escrever um livro. Esta acabou se tornando a minha autora favorita, e tu a minha leitora número um – obrigado por ter escolhido em terceira pessoa. Fernando, obrigado por se orgulhar de cada pequena coisa que eu fiz e por ter-me ensinado a nunca desistir daquilo que eu mais quis, pois foi tu que correste atrás de um jeito para concretizar meu sonho; Leitores, que me acompanham não só a partir de hoje, mas os que perduram há dois anos, com a criação de meu blog. E a todos aqueles que leram a minha primeira obra, disponibilizada virtualmente. É por saber que vocês estão lendo ‘sabe-se-lá-onde’ que eu continuo a escrever. Sou grato pelo retorno; Amigos e parentes, obrigado por esperarem por esse dia, e por acreditarem. Está aqui o que eu prometi, e espero que gostem; Obrigado.

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