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88 Pensata VIVER A TESE É PRECISO! REFLEXÕES SOBRE AS AVENTURAS E DESVENTURAS DA VIDA ACADÊMICA RAE - Revista de Administração de Empresas Jan./Mar. 2002 São Paulo, v. 42 n. 1 p. 88-93 Maria Ester de Freitas Professora e Pesquisadora do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP. E-mail: [email protected] É NECESSÁRIO QUE VOCÊ TENHA CLARA A DIFERENÇA ENTRE DESENVOLVER UMA CARREIRA OU APENAS TER UM EMPREGO COMO PROFESSOR. SOMOS TODOS IGUAIS NESSA TESE... Viver uma tese é uma arte! Por que alguém faz uma tese? A resposta mais óbvia é a de que você escolheu um curso em que ela é uma exigência. Se você quer o tí- tulo e os potenciais benefícios que ele proporcionará, não tem alterna- tiva, terá que fazê-la! Muitas vezes, o título é visto apenas como um re- quisito burocrático para ingresso ou promoção na carreira acadêmica. É verdade que ele é isso também, po- rém, se reduzido a isso, você paga- rá um preço mais caro do que tal- vez esteja disposto e há aí o risco de desistir no meio do caminho. Considerando que a carreira acadêmica é mais que dar aulas, é necessário que você tenha clara a diferença entre desenvolver uma carreira ou apenas ter um empre- go como professor. Você pode ter um emprego como professor e exercê-lo bem, mas, se a escolha for de profissão, e não de mero emprego, o trabalho acadêmico vai, necessariamente, incluir a pes- quisa, a investigação, a ousadia e o risco de não apenas repetir as idéias de outros, mas também de- senvolver as suas próprias e, pos- teriormente, ajudar na construção das de seus alunos. Dessa opção decorrem outras e outras, nem sempre fáceis. Estou firmemente convencida de que a natureza do trabalho aca- dêmico determina boa parte das si- tuações que vivemos na época da tese e as exigências emocionais que se nos apresentam. Ela é um proje- to especial, sem demérito aos de- mais, que mobiliza todas as forças do sujeito, pois trata-se de uma ta- refa anti-social e excludente, deses- tabilizadora de certezas intelectu- ais, comportamentais e emocionais, desenvolvida em longo prazo.

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88 RAE • v. 42 • n. 1 • Jan./Mar. 2002

Pensata

VIVER A TESE É PRECISO!

REFLEXÕES SOBRE AS

AVENTURAS E DESVENTURAS

DA VIDA ACADÊMICA

RAE - Revista de Administração de Empresas • Jan./Mar. 2002 São Paulo, v. 42 • n. 1 • p. 88-93

Maria Ester de FreitasProfessora e Pesquisadora do Departamento

de Administração Geral e RecursosHumanos da FGV-EAESP.E-mail: [email protected]

É NECESSÁRIO QUE VOCÊ TENHA

CLARA A DIFERENÇA ENTRE DESENVOLVER

UMA CARREIRA OU APENAS TER

UM EMPREGO COMO PROFESSOR.

SOMOS TODOSIGUAIS NESSA TESE...

Viver uma tese é uma arte!

Por que alguém faz uma tese?A resposta mais óbvia é a de quevocê escolheu um curso em que elaé uma exigência. Se você quer o tí-

tulo e os potenciais benefícios queele proporcionará, não tem alterna-tiva, terá que fazê-la! Muitas vezes,o título é visto apenas como um re-quisito burocrático para ingresso ou

promoção na carreira acadêmica. Éverdade que ele é isso também, po-rém, se reduzido a isso, você paga-rá um preço mais caro do que tal-vez esteja disposto e há aí o riscode desistir no meio do caminho.

Considerando que a carreiraacadêmica é mais que dar aulas, énecessário que você tenha clara a

diferença entre desenvolver umacarreira ou apenas ter um empre-go como professor. Você pode terum emprego como professor eexercê-lo bem, mas, se a escolha

for de profissão, e não de meroemprego, o trabalho acadêmicovai, necessariamente, incluir a pes-quisa, a investigação, a ousadia eo risco de não apenas repetir asidéias de outros, mas também de-senvolver as suas próprias e, pos-teriormente, ajudar na construçãodas de seus alunos. Dessa opçãodecorrem outras e outras, nemsempre fáceis.

Estou firmemente convencidade que a natureza do trabalho aca-dêmico determina boa parte das si-tuações que vivemos na época datese e as exigências emocionais quese nos apresentam. Ela é um proje-to especial, sem demérito aos de-mais, que mobiliza todas as forçasdo sujeito, pois trata-se de uma ta-refa anti-social e excludente, deses-tabilizadora de certezas intelectu-ais, comportamentais e emocionais,desenvolvida em longo prazo.

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Viver a tese é preciso! Reflexões sobre as aventuras e desventuras da vida acadêmica

RAE • v. 42 • n. 1 • Jan./Mar. 2002 89

UMA TESE PRESTA-SE A VÁRIAS

FINALIDADES. ELA TAMBÉM PREENCHE

UMA FUNÇÃO SOCIAL, A DE AVANÇAR

NO CONHECIMENTO DE UM CERTO ASSUNTO.

©2002, RAE - Revista de Administração de Empresas/FGV-EAESP, São Paulo, Brasil.

Esse conjunto de característicastorna o trabalho extremamente gra-tificante quando concluído, pois eleconsome e produz uma grande dosede energia psíquica e exige enormetolerância à ausência de feedbacksimediatos, além de impor uma se-vera cobrança de exclusividade,difíceis de suportar por tempo tãolongo.

Uma tese presta-se a várias fi-nalidades, inclusive a burocráticaacima mencionada. Ela tambémpreenche uma função social, a deavançar no conhecimento de umcerto assunto. Qualquer que seja otipo de trabalho desenvolvido, sem-pre acrescentará algo ao estoqueexistente. A mais modesta das te-ses representa mais uma contribui-ção ao saber, seja pela inédita pers-pectiva que explora, seja pelo novoolhar que lança sobre uma biblio-grafia clássica, ela significa sempremais uma possibilidade de provo-car novos insights.

Tem-se ainda que considerarque a tese é parte indissociável daformação de um pesquisador e queeste será um elemento multiplica-dor onde quer que ele esteja: naacademia, no laboratório, na empre-sa, no governo, nas comunidadescientíficas. A reivindicação de ge-nialidade para toda e qualquer tesenão se sustenta, pois a tese se justi-fica pelo potencial de mudança quepropiciará. Estou defendendo amediocridade? Em absoluto! Amediocridade não resiste ao rigormetodológico necessário, pois elaé escapista, indisciplinada, arrogan-te e impaciente.

Após ter vivido uma dissertaçãoe uma tese, acompanhar vários ami-gos e colegas imersos nesse traba-lho no Brasil e exterior, há quatroanos (ainda sou noviça) orientarmestrandos e doutorandos, ouvirestórias de todas as cores, dores,estranhezas e esquisitices, parece-me que todos os fazedores de tesepassam mais ou menos pelos mes-

mos caminhos, dilemas, fugas, ata-lhos, tentações, manias de persegui-ção e medos.

O objeto de estudo é absoluta-mente irrelevante, pode ser ummodelo matemático, um novo pla-neta, a ética nos negócios, mulhe-res em empresas familiares, doen-

ça nos testículos do boi, a fermen-tação de um vinho, uma âncoracambial, uma viúva-negra ou ara-nha ordinária. Tampouco importase você é brasileiro, alemão, rus-so, francês, argentino, japonês(aqui a diferença é do nível de exi-gência do sistema escolar)... Dátudo no mesmo, variando apenasem grau: o que nos irmana é o pro-cesso. Todos os fazedores de tesesão cúmplices e comadres quandoo assunto é a tese, pois partilhamdo mesmo código e do mesmo de-lírio. É a pretensão deste artigodesvendar parte desse processo eé aos fazedores de tese e a seus ori-entadores que dedico este trabalho.Nele exerço a minha cumplicidade,porém jamais a complacência.

COMO ERA VERDE OMEU VALE NA ÉPOCADOS CRÉDITOS!

Diz o Mário Prata, em uma crô-nica belíssima publicada em O Es-tado de S. Paulo, em 1998, que sefaz tese na Sorbone desde 1257; emCoimbra, mais moderna, desde1290. Ele diz que ouviu dizer... Seé verdade que toda tese tem umahistória, então, estes mais de 700anos de tese dariam um bom de-

poimento humano... Mas a queminteressa isso? Talvez só aos faze-dores de tese. Refiro-me aqui aquem faz o trabalho seriamente, enão aos picaretas e aproveitadoresque hoje vendem ou compram tese.A estes desejo punição e dedico umprofundo desprezo.

Algumas dores são tabus! Fa-zem parte daquela zona proibida,sobre a qual ninguém fala ou escre-ve, ainda que sinta ou perceba queestá sendo sentida pela pessoa dolado. O aluno que está fazendo teseé sempre um incompreendido oupensa que é. Pensa que é o únicoque se sente daquele jeito, que a suador é única e que ninguém passou,está passando ou passará por aqui-lo. Aqui, o inferno é só nosso, ima-ginamos!

Mas é maravilhoso quando en-contramos alguém para confabularsobre a nossa exclusiva “infelicida-de” e descobrimos que o outro estáno mesmo caldeirão quente. A par-tir dessa hora, temos um códigocomum: “estamos fazendo tese”.Tornamo-nos íntimos instantanea-mente, conspiradores e cúmplicese a conversa se torna inacessívelpara os estranhos, que não sabem oque é: o objeto, o quadro ou o mar-co teórico, o conteúdo, a metodo-logia, empirismo, qualitativa,paramétrica, correlações, temática,hipóteses e pressupostos... Umanova categoria lingüística estabele-ce-se. Além do jargão institucional:o programa ou o ppg ou a pós, oorientador, as siglas dos órgãos defomento à pesquisa, as siglas doscongressos de área, a bolsa-sandu-

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Pensata

A NATUREZA DO TRABALHO ACADÊMICO

DETERMINA BOA PARTE DAS SITUAÇÕES QUE

VIVEMOS NA ÉPOCA DA TESE E AS EXIGÊNCIAS

EMOCIONAIS QUE SE NOS APRESENTAM.

íche... E, acima de tudo, os prazos,os prazos e os prazos. Mas, o que éisso, afinal?

No princípio, era a solidão; ago-ra, é a confraria... Sentimo-nos ten-tados a dividir as pessoas entre asque fazem tese e as que não fazem.Acreditamos, e penso mesmo que éverdade em boa medida, que todatese deixa uma marca na alma de seuautor que só pode ser decifrada poralguém que tem uma parecida. Se

você tenta explicar o que é fazer umatese para um leigo nesse aspecto,haja paciência de Jó, pois, se o ou-vinte estiver mesmo interessado, équase certo que você ouvirá algumasperguntas indesejadas: “O que é quevocê viu nesse assunto? Isso vai ser-vir pra quê? Por que você vai gastaresse tempo todo se isso não vai dardinheiro? Você não pode fazer umnegócio mais simples? Faz algumadiferença para o mundo se você fi-zer isso? O que acontece se você nãofizer? Por que você fica tão nervosocom isso, é só um trabalho comooutro qualquer?”

Por aí vai... A gente tem semprea sensação de que precisa legitimaro nosso interesse, a importância donosso objeto e, pior, legitimar a nos-sa dor. Somos acusados de exagera-dos, melodramáticos, masoquistas,carentes dissimulados, o que, às ve-zes, também é verdade! Vamos fi-cando esquisitos e nem nos damosconta, mas olhares do exterior per-cebem e sussurram: “coitado, tá fa-zendo tese!” Ás vezes, nem sabemo que diabos é isso, mas sabem quealguma coisa acontece naquele co-ração. Por que acontece?

Ora, todos nós somos talento-sos, mas nem todos os talentos sãodistribuídos por igual. Felizmen-te, o mundo precisa de tudo, e al-gumas pessoas fazem melhor cer-tas coisas do que outras. Desenvol-ver uma tese é um ato criador que,além de conhecimentos gerais eespecíficos, exige uma paciênciaque nem todos estão dispostos aexercitar. Criar alguma coisa signi-fica ter humildade e disponibilida-

de psicológica para tentar, expor-se, errar, recomeçar, modificar, ex-perimentar, observar. Também éverdade que algumas pessoas con-seguem lidar mais facilmente comos diferentes estados de espírito eexigências da tarefa, pois suportammais facilmente o não-reconheci-mento, agüentam a frustração commaior perseverança, reciclam o erromais rapidamente, toleram uma crí-tica com maior esportividade, acei-tam refazer algo com maior humil-dade e menor desespero e conse-guem suportar a sua própria chati-ce com mais paciência.

Trazemos em cada um de nósestranhos personagens de nós mes-mos, que estimulam, instigam, cen-suram, cerceiam, julgam, conde-nam e absorvem as nossas criaçõesmateriais e intelectuais. Às vezes,esses estranhos e íntimos persona-gens que fazem parte de nossa vidapsíquica (chamo-os de racional-analítico, hedonista, censor e idea-lista irrigados pelo emocional) sealternam, e um ou alguns deles pre-dominam sobre os demais. Por essemotivo, vivemos momentos degrande indulgência ou outros de

extrema severidade em relação aqualquer tarefa criativa e desafia-dora. Uma tese tem a rara capaci-dade de suscitar nossos anjos e de-mônios, que são revelados a nós eaos que nos rodeiam.

Em boa medida, todos quere-mos realizar algo importante, bo-nito, duradouro e capaz de atrairreconhecimento, aplausos, elogi-os. Faz parte do nosso desenho hu-mano a necessidade não só deauto-aprovação como também aaprovação alheia, ter o nosso nomeassociado a algo positivo, corretoe belo. É perfeitamente saudávelexibir certa dose de narcisismo,sentir orgulho e gratificação, quan-do o nosso bom trabalho é devida-mente reconhecido.

A produção intelectual é ardilo-sa, por ser flutuante e escorregadia.Ela oscila e tem caprichos. O quechamamos de inspiração é a capa-cidade de reter e ampliar, com umtoque próprio e único, um flash ouum insight, uma coisinha de nadaque atravessa o nosso pensamentoe pode fugir. Boa parte dessa inspi-ração, porém, é fruto da nossa ca-pacidade de concentração, de dis-ciplina, de esforço mental e até deteimosia. Precisamos não de um diabonito de céu azul, mas de uma boadose de paciência para produzir al-guma coisa interessante, para orga-nizar raciocínios, transformar bar-ro em tijolos e tijolos em casas.Nada nasce do nada e tese tampou-co! A nossa capacidade de pensarordenadamente necessita de treino,um fio condutor e estímulos con-cretos, que provêm em grande par-te de uma boa bibliografia. Ah, masreunir, ler, reler e analisar uma bi-bliografia decente consome tempo,energia e dinheiro. Por si só ela nãogarante um bom trabalho final, masé impossível um bom trabalho semuma boa bibliografia. Qualidadecusta caro, mas economizar aquipode custar mais e de formairreversível!

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Viver a tese é preciso! Reflexões sobre as aventuras e desventuras da vida acadêmica

RAE • v. 42 • n. 1 • Jan./Mar. 2002 91

TEM-SE AINDA QUE CONSIDERAR

QUE A TESE É PARTE INDISSOCIÁVEL

DA FORMAÇÃO DE UM PESQUISADOR

E QUE ESTE SERÁ UM ELEMENTO

MULTIPLICADOR ONDE QUER QUE ELE ESTEJA.

Uma tese é mais que uma boaidéia, é, na essência, uma boa per-gunta. E não existe tese na cabe-ça. “Eu já tenho tudo aqui organi-zadinho” significa que falta tudo,pois não é a idéia que será avalia-da, mas a nossa capacidade deexplicitá-la, analisá-la, construí-la,destruí-la. Não existe tese semtranspiração, sem rasgar papel,sem rabiscos, sem coleção de pa-peizinhos, sem mau humor, semrabugice, sem parecer um poucobarata dedetizada... Em certosdias, nossas idéias estão mais cla-ras, mais organizadas, com amar-rações mais sólidas. Em outros, sãoas ruminações que dominam o pal-co; tentamos mudar de assunto,trocar de canal, falamos sozinhos,xingamos, tentamos dormir e con-tinuamos ligados num não-sei-o-quê. Cada um descobre o seu jeitode lidar com isso, não tem fórmu-las e, sim, aquilo que funciona comvocê. Não se envergonhe da suaextravagância, a capacidade deconstruir a sua saída pode ser es-tranha para os outros, mas vocênão precisa da permissão deles.Acrescente algo às já histórias cri-ativas, divertidas e humanas, quesó a nossa caixa-preta poderia ex-plicar; mas ela nem sempre quer...talvez melhor assim!

Uma tese parece ter vida própriae expansionista. Uma das primei-ras coisas que fazemos é tratá-lacomo uma pessoa, mas não umapessoinha qualquer. Logo descobri-mos que essa tal pessoa é capricho-sa, cheia de vontades, uma bichinhadominadora e autoritária que quernos sujeitar (o que acontece na mai-oria das vezes). Aprendemos a li-dar com ela como uma intrusa quevem devagarinho e ganha espaço.No começo, humilde e tímida, ficacircunscrita ao nosso posto de tra-balho, depois ganha o sofá e, quan-do nos damos conta, a desavergo-nhada já nos acompanha até o ba-nheiro e invade a nossa cama,

disfarçada em forma de mais umlivro, um caderno, uma folhinha depapel, com cara de inocente pousa-da na nossa cabeceira. Quando anossa cama já tem um outro sócio,aí o circo está armado! Ele estarácoberto de razão ao recusar-se anegociar com essa invasora. Excluaalgumas áreas da casa das andançasda tese, caso contrário, você serátransformado em vigia e vai ficarse perguntando: “Onde está estemaldito livro? Esse miserável jásumiu de novo! Está brincando de

esconde-esconde!” Crie juízo e te-nha as dores apenas necessárias.Aproveite as muitas lições, que se-rão utilíssimas pelo resto da vida, edivirta-se consigo mesmo; ria, façapiadas e assuma a sua “anormali-dade normal” temporária. Quandoalguém lhe perguntar se você é doi-do ou está treinando para isso, res-ponda: “estou fazendo tese”. Podeser que você encontre mais umcúmplice, que seja generoso e dê-lhe bons conselhos (sei que temhoras em que é tudo o que não que-remos ouvir) ou pode ser apenasmais um chato sem causa, do qualvocê pode se livrar rapidamentefalando sobre a sua tese. E por fa-lar em chatices...

NÓS, OS CHATOS

Mamãe me achava linda e inte-ligente; na época da tese, virei bri-lhante! Essas doação e cegueiraabsolutas não encontram muita con-

cordância no resto do mundo. É cla-ro que eu posso sempre considerarsó a opinião de mamãe, às vezes, écrucial recorrer a ela, mas temostambém que ouvir o que dizem osoutros. Na maioria das vezes, nãogostamos do que ouvimos, pode-mos ignorá-los e sair de fininho,fazendo a promessa de nunca maisconversar com gente inculta e ig-norante. Se o nosso masoquismoagüentar um tiquinho mais e nãomudarmos de assunto, ficaremosabomináveis, insuportáveis e per-

deremos o ouvinte para sempre.Não falo aqui do nosso orientador,que também tem o seu limite decrédito no céu e que, por isso mes-mo, nos suporta mais que os outrose nos diz claramente quando nãonos suporta.

Em algum momento da nossatarefa, somos vítimas de um pon-to de inflexão que magicamentenos transforma de “simpático eagradabilíssimo” em chato. Trêsfases, em particular, podem sercaricaturadas: a) “não me pergun-te sobre a tese ou porque na mi-nha tese...”; b) “pelo amor deDeus, não me convide...”; c) “atese está me vigiando”. Vejamosmais de perto o que acontece emcada uma delas.

No primeiro caso, temos umaalternância entre o mutismo e averborréia. Colocamos na catego-ria de “inimigos” aquela pessoaque, sem o maior pudor e senso deconveniência, nos pergunta ondequer que nos encontre: “aí, como

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Pensata

DESENVOLVER UMA TESE É UM ATO

CRIADOR QUE, ALÉM DE CONHECIMENTOS

GERAIS E ESPECÍFICOS, EXIGE UMA PACIÊNCIA

QUE NEM TODOS ESTÃO DISPOSTOS A EXERCITAR.

vai a tese?” A nossa antipatia vaicrescendo de forma exponencial etemos que nos proteger. Adotamoso silêncio disfarçado e falamos deoutra coisa ou, perversamente,abusamos da paciência do outro detal forma que ele fique logo into-xicado de nossa tese e nunca maisnos incomode com perguntas des-cabidas!!!

A recusa de falar sobre a tesepode ser uma retirada estratégicado nosso racional que precisa deum tempo para digerir tudo o quearmazenou e recobrar as forçaspara lidar com a “encrenca”: cul-pa por ter perdido tempo; medo de

dar o primeiro passo e enfrentar oresto; insegurança quanto à dire-ção a seguir; paralisia diante doassunto, seja porque encontramosuma bibliografia enorme, sejaporque não encontramos nada;fuga, pois se falamos em voz altaestamos formalizando o nossomedo; racionalização: “trabalhobem sobre pressão e no final tudodará certo, sempre foi assim co-migo”.

Por outro lado, em outros mo-mentos, sentimos uma necessida-de urgente de explicitar as nossasidéias; qualquer pessoa que cruzara linha de fogo na nossa frente éuma vítima potencial; tal qual umapessoa apaixonada só enxerga oseu objeto de adoração, a nossatese transforma-se na coisa maisimportante para nós. Vemos cone-xões e ganchos com todos os as-suntos que qualquer mortal possamencionar, temos respostas paratudo e sempre começamos uma fra-

se assim: “na minha tese, eu tratodisso quando...” Não tem a menorimportância que o outro não este-ja interessado nas nossas descober-tas, falamos sozinhos, explicamostintim por tintim, ignoramos osbocejos e a sonolência do azaradoque temos em frente.

Por que nessa hora são poucosos que procuram o orientador paradiscutir as suas preciosidades? Tal-vez por ele não ser um ouvinte tãobom quanto o resto do mundo, tal-vez por ele esfriar um pouco o nos-so entusiasmo nos fazendo enxer-gar o que ainda não estamos prepa-rados para ver, talvez porque essa

fase seja fundamental para a gentecomeçar a clarear as idéias mistu-radas, talvez porque o interlocutorreal seja o nosso próprio ouvidopara os absurdos que dizemos emvoz alta, talvez por outra necessi-dade da qual nem suspeitamos.

Como as demais pessoas se to-cam quando estão sendo usadascomo platéia, elas começam a nosevitar e, não raro, mudam de calça-da quando nos avistam lá longe...“Puxa, lá vem aquela figura!” Umdos meus orientadores, num dessesmeus ataques, me ouviu, ouviu, le-vantou da cadeira e foi para a jane-la, pôs as mãos na cabeça, respirouprofundamente, me encarou e dis-se: “Você acha que sou Deus parater respostas para isso tudo?” Foi tãoespontâneo e tão à queima-roupaque demos uma maravilhosa garga-lhada; lembramos disso como umdos momentos mais lindos da nossarelação!

A segunda fase, que se sobre-

põe às demais, é aquela em que co-meçamos a dizer “não” para todosos convites que recebemos. Umaparte dessa recusa é devida à nos-sa desorganização pessoal, indis-ciplina ou cronogramas fantasiososque não resistem à dura realidadedos fatos. Como negligenciamosos conselhos que recebemos, espe-cialmente sobre a organização dabibliografia consultada desde o co-meço, sobre a agenda dos outros,que não está à nossa disposição,sobre o tempo que passa “mais rá-pido” que pensamos, somos sem-pre surpreendidos por prazos queestão sempre vencendo.

Aí não podemos aceitar ne-nhum convite. Alguns são de tra-balho, com contrapartida financei-ra, o que agrava o peso da recusa,pois dinheiro é problema sério,principalmente para quem vive debolsa ou se desloca para outro es-tado ou país. Convidam-nos paraum congresso interessante e fica-mos tentados a escrever umpaperzinho sobre aquele capítuloque já está pronto, mas isso é re-duzir o tempo para os que aindavirão; sabemos que, se desapare-cemos de vez, podemos ser esque-cidos, se aceitamos tudo o que éinteressante, arriscamos a não ter-minar a tese... dilema puro! Se so-mos casados, temos compromissoscom o nosso parceiro, que, porcompreensivo que seja, vai sentir-se um pouco abandonado e aceitarconvites em nome do casal, masvai ter que se virar sozinho; se te-mos filhos, esses cobrarão a aten-ção merecida e não querem saberdessa tal de tese, intrusa que veiose colocar no seu caminho... Nos-sos amigos, que sentem a nossa fal-ta e não acreditam muito nesse ne-gócio de tese, acabam por resolvera questão antecipadamente: “Ah,deixa pra lá, melhor nem convidar,o cara tá lá naquela coisa de tese.”Verdade também é que alguns nãosuportam mais esse papo, outros

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Viver a tese é preciso! Reflexões sobre as aventuras e desventuras da vida acadêmica

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não suportam nos ouvir dizer queestamos pobres e não podemosacompanhá-los naqueles lugarescaros, outros sabem simplesmenteque vamos desfilar a nossa culpacada vez que aceitamos umdrinque...

A terceira caricatura é a da cul-pa. Não existe tese sem culpa, gran-de ou pequena, merecida ou não!A tese transforma-se num encosto,que nos acompanha para onde querque vamos e não nos deixa em paz.Temos a nítida sensação de estar-mos sendo vigiados. Quando nãoestamos completamente mergulha-dos na tese, fazemos a contagem dotempo em que poderíamos estar eisso se traduz em tempo perdido.Quanto maior é o prazer que temosnesses momentos de fuga, maior éa cobrança interna.

Aqui o nosso censor exerce asua autoridade e rigor, dizendo-nosque “toda diversão será castigada”.Esse sentimento de culpa encontrarespaldo no mundo real da burocra-cia da escola e do trabalho, assimcomo conta com o endosso incons-ciente de quem está se sacrificandoao nosso lado. É claro que se im-pomos sacrifícios aos demais, elesnos olharão acusadoramente quan-do resolvemos dar um tempo, con-templar o universo ou conversarcom Dionísio.

É claro que o orientador é tam-bém um regulador e controladorinstitucional, ele tem o seu nomeligado ao trabalho e será respon-sável pelo que seu aluno fizer eprincipalmente pelo que não fizer.Quando um orientando desapare-ce, o orientador pode mandar ume-mailzinho perguntando algo as-sim: “Sumiu? O que você anda fa-zendo? Precisamos conversar...”Geralmente, os orientadores têmsensibilidade para saber que tipode controle é mais apropriado acada aluno: alguns precisam deuma marcação mais cerrada, en-quanto outros precisam ficar mais

soltos e funcionam melhor sempedir a benção todo dia. Não con-cluir a tese é mais que perda detempo e dinheiro para todos osenvolvidos; atendo-me apenas aoaluno, é como se ele tivesse colo-cado o pé em uma posição maiselevada e tivesse que descer, pois

a rigor não faz a menor diferençadizer: “sou graduado nisso e fiz oscréditos do mestrado ou doutora-do”, você é só um graduado.

Enquanto está fazendo a tese,você é um gerúndio, um se fazen-do e a sua vida é vista como pro-gredindo. Quando um aluno nãoconclui o trabalho, ele perde o queiria conseguir e o que conseguiudurante o período de créditos... Paraas instituições envolvidas, tudo serácapitalizado como prejuízo nas suasestatísticas; para o orientador, seráum fracasso pessoal.

DUAS OU TRÊS COISASQUE PODERÍAMOS AINDAFALAR SOBRE ELA...

Toda tese tem uma história, quetem páginas engraçadas, alegres,divertidas e outras que são difíceis,pesadas, tristes. Aprendemos comtodas elas e não são lições de con-sumo imediato, pelo contrário se-rão incorporadas na nossa vida. Nolimite, nós somos o maior objeto datese, pois enquanto sujeito dela vi-vemos um embate de forças inter-nas e externas que nos ensina mui-to sobre nós mesmos.

Fazer a tese significa não ape-nas dominar parte do conteúdo re-

CRIAR ALGUMA COISA SIGNIFICA TER

HUMILDADE E DISPONIBILIDADE PSICOLÓGICA

PARA TENTAR, EXPOR-SE, ERRAR, RECOMEÇAR,MODIFICAR, EXPERIMENTAR, OBSERVAR.

lacionado ao assunto, mas tambémdominar as nossas inseguranças,medos, escapes, defesas, ansieda-des e angústias. Significa tambémexperimentar um genuíno prazer eorgulho quando se escreve uma fra-se, um parágrafo, um capítulo ma-ravilhoso. Significa aprender a va-

lorizar as nossas conquistas e osapoios diversos que recebemos.Muitas vezes, esquecemos de agra-decer as muitas pessoas e institui-ções que se fizeram presentes; istoé imperdoável! A tese é sua, masela teria sido impossível se vocêestivesse verdadeiramente só. Nãoé possível, no âmbito deste artigo,especificar mais detalhes sobre agrandeza, as delícias e os muitospreços de uma tese. Os preços sãomuito altos é certo, mas os prêmiostambém são.

Quando estamos realmenteabertos a maior autoconhecimen-to, podemos aproveitar as liçõesrecebidas, pois elas são muito re-veladoras. Serão parciais, é verda-de, mas descobriremos que somoscapazes de suportar conhecer asnossas limitações, conviver comelas ou procurar reduzi-las. A mai-or parte dos fazedores de tese saidela muito, muito melhor do queentrou. Daí, ele vai integrar aque-le grupo de cúmplices, dar conse-lhos que não serão ouvidos, em-prestar a sua paciência aos “cha-tos” e pensar, generosamente e tal-vez com um risinho maroto, queele também já foi assim... Existeuma beleza enorme nesse proces-so, trate de descobri-la e bem-vin-do ao clube! �