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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO KÁTIA MARIA KUNNTZ BECK VIVÊNCIAS E MEMÓRIAS A CULTURA ESCOLAR DA ESCOLA RURAL MISTA MUNICIPAL SANTO ANTONIO EM TANGARÁ DA SERRA MT (1965 1983). CUIABÁ - MT 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

KÁTIA MARIA KUNNTZ BECK

VIVÊNCIAS E MEMÓRIAS

A CULTURA ESCOLAR DA ESCOLA RURAL MISTA MUNICIPAL

SANTO ANTONIO EM TANGARÁ DA SERRA – MT (1965 – 1983).

CUIABÁ - MT

2015

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KÁTIA MARIA KUNNTZ BECK

VIVÊNCIAS E MEMÓRIAS

A CULTURA ESCOLAR DA ESCOLA RURAL MISTA MUNICIPAL SANTO ANTONIO

EM TANGARÁ DA SERRA – MT ( 1965 – 1983).

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação no Instituto de

Educação da Universidade Federal de Mato

Grosso como requisito para a obtenção do Título

de Mestre em Educação na área de História da

Educação e Memória, Linha de Pesquisa: Cultura,

Memória e Teorias em Educação.

Orientadora: Profª. Drª. Elizabeth Figueiredo de Sá

CUIABÁ - MT

2015

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

B393v Beck, Kátia Maria Kunntz.Vivências e Memórias : A Cultura Escolar da Escola Rural Mista Municipal Santo

Antonio em Tangará da Serra - MT (1965-1983) / Kátia Maria Kunntz Beck. -- 2015159 f. : il. color. ; 30 cm.

Orientadora: Elizabeth Figueiredo de Sá.Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de

Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Cuiabá, 2015.Inclui bibliografia.

1. Cultura Escolar. 2. Escola rural. 3. Infância. 4. Memória. 5. Tangará da Serra -MT. I. Título.

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Dedico este trabalho,

À querida, professora Iracema Casagrande e aos sujeitos (in)visíveis que, através de suas

narrativas sobre lembranças vivenciadas, teceram os fios da memória muitas vezes

adormecida pelo tempo;

Aos tangaraenses de raiz ou de coração, como eu, pois, o que importa é o verdadeiro

sentimento de pertença, de cuidado, de amor a essa terra hospitaleira que recebe de braços

abertos os novos que estão sempre chegando;

Aos estudantes, pesquisadores-aprendizes que, como eu, inquietos e curiosos, se interessam

pelas raízes, uma face do início da escolarização da infância da primeira escola da rede

municipal de Tangará da Serra;

Enfim, dedico este trabalho a todas as pessoas que se interessam em conhecer um pouco do

que foi o período de (re)ocupação desse espaço, praticado por muitas mãos.

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A G R A D E C E R,

Ato de reconhecimento da importância do outro. Sem o outro, teria sido mais difícil a

caminhada. No período de qualificação profissional tive o apoio, incentivo, compreensão,

companheirismo, confiança, profissionalismo, paciência, carinho, crítica construtiva e o

partilhar de muitos outros.

Entre eles:

À minha querida orientadora, Profª Dra. Elizabeth Figueiredo de Sá, pelo acolhimento

durante nosso primeiro contato, ainda em janeiro de 2013, quando calorosamente falou: “eu te

escolhi”. Ao longo desse percurso como pesquisadora-historiadora-aprendiz, suas palavras

transformaram-se em confiança no meu potencial e me conduziram à superação dos desafios.

Obrigada pela sua atenção, compreensão e pela experiência única de me fazer crescer;

Ao amigo, Profº Dr. Carlos Edinei de Oliveira, meu respeito e admiração como pessoa

e profissional. Historiador apaixonado que me inspirou através dos nossos “bate-papos” a me

lançar no desafiante universo da História da Educação, além de contribuir para o

aprimoramento do trabalho com suas ponderações, indicações e críticas;

À Profª Dra. Alexandra Lima da Silva, que contribuiu significativamente para a

finalização da presente dissertação, com seus apontamentos e sugestões;

Os amigos do Grupo de Pesquisa em História da Educação e Memória, essa ‘GEMte’

que ‘foca’ em estudo, trabalho, escrita, viagens... Sara, Dálete, Gino, Linet, Marineide,

Fagner, Tatiana, Elton, Clailton, Luciana, Marijane, Ana Clara, Josiane, Rômulo, Jeferson,

Cleberson, Profª Elizabeth Figueiredo de Sá, Profª Márcia dos Santos Ferreira, Profº Nicanor

Palhares de Sá, Profª Elizabeth Madureira Siqueira e Profª Nilce Vieira de Campos Ferreira,

que contribuíram com questionamentos e reflexões na minha formação acadêmica;

À CAPES, que, através da concessão da Bolsa de Demanda Social, garantiu o suporte

financeiro necessário para o desenvolvimento da pesquisa;

Professores da Pós-Graduação em Educação e colegas do mestrado, que contribuíram

através das reflexões, indicação de leituras, e diálogos oportunos;

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Ivanir e Tati, que não mediram esforços para ajudar-me na busca de fontes

documentais e na transcrição das entrevistas;

À secretaria do PPGE/IE, pela disponibilidade e atenção, uma parceria valiosa;

Aos queridos irmãos, cunhadas, amigas e amigos, que sempre incentivaram-me na

caminhada e estiveram na ‘torcida’ para o sucesso deste trabalho;

Meus queridos e amados pais, Alberto e Maria Terezinha, que me ensinaram, através

de exemplos, a ser a pessoa que sou;

Minha ‘vó Dida’, que me oportuniza a cada dia a ser paciente e atenciosa com as

pessoas e a querer ouvir as suas histórias;

Meu eterno namorado, companheiro, amigo, amor e sempre incentivador, Leco;

Isabela, minha filha que tanto amo, companheira das alegrias e não alegrias durante o

período de qualificação;

E, por fim,

quem está antes de tudo... DEUS!!!

Como agradecer a DEUS pelo dom da vida, do discernimento, da sabedoria... pelos

dons que recebo gratuitamente ao longo de minha existência?

Diante da consciência de minha pequenez, não encontro outra maneira senão tentar

todo amanhecer, mesmo que entre tropeços, transformar esses dons em trabalho, trabalho que

ajude a transformar, trabalho que enobreça, trabalho que valorize o ser humano... trabalho

que semeie partículas de compreensão, diálogo, perdão, (re)construção, companheirismo,

consciência crítica, fé, paz... Durante as tentativas desse caminhar, é certo, os momentos

contrários a tudo isso, contraditórios, muitas vezes, no entanto, ao mirar novamente Naquele

que busco, brota através do Seu A M O R ágape o impulso para a continuidade da caminhada,

como dizia o querido Frei Ignácio Larrañaga, “[...] en suma, somos buscadores de Dios y

peregrinos de lo Absoluto”.

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“O tempo histórico não é o tempo vivido. A história escrita,

documentada, distingue-se do acontecido; é uma representação. E

neste hiato entre o vivido e o narrado localiza-se o fazer próprio do

historiador”

(MONTENEGRO, 2010, p. 10)

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RESUMO

A presente dissertação pretende, através de uma ação investigativa no campo da

historiografia, analisar as representações de escolarização da infância na cultura escolar da

Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, criada no espaço rural denominado “Reserva”,

durante o período de colonização de Tangará da Serra-MT. A delimitação do período em

estudo se constitui entre 1965, quando foi criada a escola e nomeada a primeira professora, até

1983, período que a professora Iracema da Silva Machado Casagrande lecionou nesta

instituição de ensino. Tem como base teórica as discussões de autores relacionados ao campo

da História Cultural, entre eles Roger Chartier; Michel de Certeau e Dominique Julia, que me

permitiu analisar a construção de sentido e do fazer das práticas sociais em uma região

contemporânea de colonização, tendo como princípio que historiar sobre a educação escolar

nesse período possibilita analisar e compreender como as pessoas se organizaram a partir da

migração e quais representações apresentam a respeito da educação escolar. A metodologia de

estudo é de caráter histórico-analítico-documental e tem como fonte obras memorialísticas,

estudos bibliográficos, acervos escolares, particulares e paroquiais, iconografia e história oral.

Na perspectiva da história oral, foram realizadas entrevistas com a professora Iracema da

Silva Machado Casagrande, ex-alunos e pais dos alunos que vivenciaram experiências de um

período histórico e que hoje são vozes que se entrelaçam entre memória coletiva e memória

individual, tornando suas falas em relatos de memórias que contribuem, antes de tudo, para o

diálogo do presente com o passado. Tais fontes são encontradas no arquivo da Secretaria

Municipal de Educação e Cultura de Tangará da Serra, no Arquivo Público de Mato Grosso,

em arquivos particulares, na Sala de Memória de Tangará da Serra, na base de dados do

Grupo de História da Educação e Memória/GEM/IE/UFMT, entre outros. Com base na

análise de documentos e dos relatos de memória sobre o período inicial de colonização e

sobre a criação da primeira escola rural no município, pode-se entender que foi a partir da

mobilização, do envolvimento e do interesse das famílias migrantes, em busca de melhores

condições de vida, que a educação escolar despontou no espaço rural, pois acreditavam na

importância dos estudos para a conquista de uma vida melhor para seus filhos. Percebe-se,

portanto, que a educação escolar, inicialmente, foi fruto de luta dos migrantes em Tangará da

Serra/MT e que diferentes representações de escolarização de infância se materializaram na

cultura escolar da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio.

Palavras-chave: Educação. Cultura escolar. Escola rural. Infância. Memória. Tangará da

Serra-MT.

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ABSTRACT

This dissertation intends to through an action research in the field of historiography, to

analyse the representations of childhood education in school culture of Santo Antonio

Municipal Coeducational Rural School that was created in the countryside called "Reserva"

during the period of colonization of Tangará da Serra-MT. The delimitation of the period

under study is between 1965, when the school was established and named the first teacher;

until 1983, during which the teacher Iracema da Silva Machado Casagrande taught in this

Educational Institution. It’s based on theoretical discussions of authors related to the field of

Cultural History, among them Roger Chartier, Michel de Certeau and Dominique Julia. This

field allows analyzing the construction of meaning and the social practices in a contemporary

region of colonization, with the principle that historicize about school education in this period

makes it possible to analyze and understand how people have organized from the migration

and which feature representations regarding school education. The study methodology is

historical-analytical-documentary character and has as a source, memory works, bibliographic

studies, private and parochial schools collections, Oral History and iconography. From the

perspective of Oral History interviews were held with the teacher Iracema da Silva Machado

Casagrande, ex-alumni and parents of students who have lived experiences of a historical

period and that today are voices which intertwine between collective and individual memory

which becoming reports of memories that contribute to the dialogue of the present with the

past. The sources are found in the archive of the Municipal Department of Education and

Culture of Tangará da Serra, in the Public Records of Mato Grosso State, in particular files, in

“Sala de Memória” of Tangará da Serra, in the database of “Grupo de História da Educação e

Memória” /GEM/IE/UFMT, between others. Based on the analysis of documents and reports

of memory about the initial period of colonization and the establishment of the first rural

school in the municipality is possible to understand that it was from the mobilization, the

involvement and interest of migrants families, in search of better living conditions, that school

education topping in the countryside, because they believed in the importance of the studies

for the achievement of a better life for their children. Therefore, that school education initially

was the result of struggle of migrants in Tangará da Serra/MT and different representations of

childhood schooling materialized on school culture of Santo Antonio Municipal

Coeducational Rural School.

Keywords: School Culture. Rural School. Representations of childhood education.

Memories. Tangará da Serra.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Mapa de Tangará da Serra – MT .............................................................................. 18

Figura 2 Imagem área de Tangará da Serra, anos 1960. ......................................................... 25

Figura 3 Glebas de terras 1960, Tangará da Serra – MT - Mapa demonstrativo dos ambientes:

Serra de Tapirapuã, Área indígena, Rio Sepotuba e Chapada dos Parecis. .............................. 34

Figura 4 Lei que declara como utilidade pública a Revista Brasil Oeste em Mato Grosso. ... 39

Figura 5 Projeto de Tangará da Serra – MT. ........................................................................... 43

Figura 6 Celebração da Santa Missa pelo Pe. Antonio no local onde as famílias migrantes

construíram a primeira igreja católica no início dos anos 1960 ............................................... 50

Figura 7 Espaço interno da primeira igreja católica de Tangará da Serra, Capela Nossa

Senhora Aparecida, construída pelas famílias migrantes no início dos anos 1960 .................. 51

Figura 8 Espaço externo da primeira igreja católica de Tangará da Serra, Capela Nossa

Senhora Aparecida, construída pelas famílias migrantes no início dos anos 1960 .................. 51

Figura 9 População tangaraense comemorando a emancipação do município ....................... 56

Figura 10 Caminhão que transportou a mudança de três famílias do estado de São Paulo até o

lugar denominado Reserva que pertencia à localidade de Tangará da Serra/ outubro de 196360

Figura 11 Florada do café no sítio Nossa Senhora Aparecida, propriedade de Desidério e

Iracema Casagrande, na comunidade da Reserva nos anos 1960 ............................................. 68

Figura 12 Lavagem do café no sítio Nossa Senhora Aparecida. ............................................. 69

Figura 13 Casa do Álvaro no sítio Nossa Senhora Aparecida, na comunidade da Reserva nos

anos 1960 .................................................................................................................................. 70

Figura 14 Nota informativa sobre o esporte no jornal Folha de Tangará da Serra, 06/01/75 71

Figura 15 Alunos e professora da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, anos 1970 75

Figura 16 Crianças reunidas para aprender ler e escrever informalmente na residência da

jovem Maria Antonieta de Oliveira, início anos 1960.............................................................. 85

Figura 17 Caixa de ferramentas pertencente a Francisco Avelino Dantas, carpinteiro que

colaborou na construção das primeiras edificações em Tangará da Serra nos anos 1960 ........ 86

Figura 18 Ata de Instalação da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio e de nomeação

da Professora Iracema da Silva Machado Casagrande – 18 de junho de1965 ......................... 89

Figura 19 Certificado de conclusão do 4º ano primário de Iracema da Silva Machado

Casagrande, 1942 ..................................................................................................................... 95

Figura 20 Total de alunos, meninas e meninos (1973 até 1983) ........................................... 106

Figura 21 Idade alunos por série/ano 1979............................................................................ 107

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Figura 22 Naturalidade dos alunos matriculados em 1979 ................................................... 108

Figura 23 Retrato falado da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, anos 1960 ....... 110

Figura 24 Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio construída pelos migrantes em 1965

no espaço rural denominado Reserva ..................................................................................... 116

Figura 25 Ferramenta utilizada pelos migrantes para confeccionar artesanalmente telhas para

as construções na região ......................................................................................................... 118

Figura 26 Alunos e professora na sala de aula da Escola Rural Mista Municipal Santo

Antonio, anos 1970 ................................................................................................................. 120

Figura 27 Escolas rurais Tangará da Serra, anos 1973/1974/1975 ....................................... 134

Figura 28 Professora e alunos carregando suco de groselha para a 'festinha' ....................... 146

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CITA – Companhia Imobiliária Tupã para a Agricultura

CODEMAT – Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso

CPP – Comissão Planejamento da Produção

DTC – Departamento de Terras e Colonização

EPEA – Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada

GEM – Grupo de Pesquisa História de Educação e Memória

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA – Instituto Nacional de Reforma Agrária

LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação

MT – Mato Grosso

NDIHR – Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional

PND – Plano Nacional de Desenvolvimento

PAEG Programa de Ação Econômica do Governo

PED – Programa Estratégico e Desenvolvimento

PIN – Plano de Integração Nacional

PRODOESTE – Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste

SITA – Sociedade Imobiliária Tupã para a Agricultura Ltda.

UNEMAT – Universidade Estadual de Mato Grosso

UFMT – Universidade Federal de Mato Grosso

UFU – Universidade Federal de Uberlândia

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

CAPITULO I .......................................................................................................................... 25

TANGARÁ DA SERRA: LEMBRANÇAS, ESPERANÇAS, LUTAS E CONQUISTAS.

.................................................................................................................................................. 25

1.1 Primeiras iniciativas para a ocupação dos “espaços vazios”. ................................... 26

1.2 A colonização de Tangará da Serra: a busca pela terra fértil. ................................... 33

1.3 No início, Barra do Bugres. ...................................................................................... 37

1.4 Cidade projetada pela colonizadora. ......................................................................... 42

1.5 Depois da Serra de Tapirapuã, enfim, a terra tão sonhada! ...................................... 46

1.6 “Quando chegamos, não existia nada... Era mesmo sertão, era cru duma vez”. ...... 49

1.7. O lugar denominado Reserva: “espaço rural, no rural”. ........................................... 58

CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 75

TRAJETÓRIA ESCOLAR: ANOS 1960 E 1970. ............................................................... 75

2.1. O projeto educacional dos governos pós-1964. ........................................................ 76

2.2. E a escola rural, onde estava? ................................................................................... 82

2.3. A criação das primeiras escolas. ............................................................................... 84

2.4 Uma trajetória... a infância, a escolarização, a migração e o fazer-se professora. .. 92

2.4. E os alunos, quem eram? ........................................................................................ 101

CAPITULO III ..................................................................................................................... 110

OS ESPAÇOS, AS RELAÇÕES E OS SABERES ESCOLARES: A CULTURA

ESCOLAR DA ESCOLA RURAL MISTA MUNICIPAL. .............................................. 110

3.1. A luz da memória: a história recontada. ................................................................. 112

3.2 A cultura material da escola. .................................................................................. 115

3.3. Os espaços e o tempo escolar. ................................................................................ 124

3. 4. Os saberes escolares. .............................................................................................. 129

3. 5. As relações constituídas no cotidiano da escola. .................................................... 142

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 148

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 152

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15

INTRODUÇÃO

Enquanto professora da educação básica em região de colonização recente1 em Mato

Grosso, observo a complexidade de colocar em prática o que propõe a teoria. Durante os anos

de janeiro/2009 a março/2013 atuei como coordenadora da educação infantil, na Secretaria

Municipal de Educação e Cultura / SEMEC de Tangará da Serra. Nesse período, procuramos

desenvolver uma proposta de formação continuada para os professores, auxiliares do

desenvolvimento infantil, coordenadores pedagógicos e demais funcionários que atuam nessa

etapa da educação básica, pois acreditávamos na relevância da formação continuada de todos

os profissionais. O objetivo dessa formação foi propiciar um espaço coletivo de estudo e

reflexão através do diálogo e do debate entre pares, a fim de potencializar o fazer pedagógico.

Nesse período, estudamos, refletimos, analisamos e percebemos a importância da

teoria para o aprimoramento da educação das crianças, mas nos deparamos com uma prática

dissociada dela, muitas vezes, ou seja, nos encontramos diante de um dilema: reconhecemos a

relevância do aporte teórico, porém, não conseguimos ou encontramos dificuldade em colocá-

lo em prática no cotidiano escolar.

Reconheço, enquanto mestranda, que “estudar não é um ato de consumir ideias, mas

de criá-las e recriá-las” (FREIRE, 1976, p. 12), ou seja, estudar envolve produção criativa e

também reflexão crítica sobre a prática, sobre o que temos feito, sobre o que necessitamos

mudar e sobre as condições que precisamos conquistar para que as mudanças se tornem

possíveis. Esta pesquisa é parte integrante do processo de formação continuada.

Diante desse contexto, acredito que pesquisar sobre a cultura escolar da primeira

escola municipal possibilitará reflexões, indícios e esclarecimentos para a compreensão dessa

realidade. Como afirma Alves (2003, p. 06), “não é o passado que se mostra a quem procura

estudá-lo, e sim as problemáticas do presente que provocam as questões que se propõe às

fontes analisadas, a dualidade presente-passado tem sido objeto de reflexão como parte

inseparável do cotidiano do historiador”. Nessa perspectiva, percebo a necessidade de

compreender as concepções de escolarização da infância que permeiam a prática na cultura

escolar e analisar as representações de escolarização considerando os diferentes segmentos

que compõem a cultura escolar, a diversidade cultural e suas relações, já que as famílias

1 Aqui “entendida como colonização efetivada em Mato Grosso a partir do movimento de expansão da fronteira

agrícola, que ocorreu nos anos 60 do século XX” (OLIVEIRA, 2009, p. 57).

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16

migrantes são oriundas de diferentes estados do nosso país, o que possibilitou uma cultura

escolar peculiar na região de Tangará da Serra.

Para percepção das peculiaridades dessa cultura escolar presente no município, optou-se

pela escolha da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, devido a vários fatores, um

deles refere-se ao fato de a escola fazer parte do período de colonização, sendo a primeira

instituição escolar da rede municipal; outro fator se deve ao fato do tema estar diretamente

relacionado com minha área de atuação profissional, o que irá contribuir sobremaneira para o

enriquecimento do meu desempenho enquanto professora, além de adicionar valores de cunho

social, pedagógico e científico para a história da educação de Mato Grosso e do Brasil,

ampliando, de forma significativa, a produção do conhecimento sobre a cultura escolar da

primeira escola rural municipal em região de colonização recente em Mato Grosso.

Outro fator enriquecedor da dissertação refere-se à possibilidade de acesso às fontes de

pesquisa sobre a escola, além da oportunidade de entrevistar a primeira professora da rede

municipal, Iracema da Silva Machado Casagrande. O recorte temporal do período em estudo

tem como base inicial o ano de 1965, quando foi criada a escola e nomeada a primeira

professora; a baliza final data de 1983, ocasião em que a professora Iracema Casagrande

deixou a instituição de ensino.

A escola, no entanto, teve o seu funcionamento até o final do ano de 1992, com um

número de alunos bem reduzido se comparado com os anos anteriores. Consta nos arquivos

da Secretaria Municipal de Educação e Cultura/SEMEC que, em 1992, apenas 8 alunos

frequentaram a escola, sendo 4 alunos da 1ª série, 1 aluno da 2ª série e 3 alunos da 3ª série. Do

total de alunos, 50% foram aprovados, 25% reprovados e os 25% restantes se referem aos

alunos desistentes e transferidos. O motivo de a escola encerrar suas atividades educacionais

deve-se ao fato de ter sido criada a ‘Escola Municipal Agrícola de 1º Grau Ulisses

Guimarães’, em 1993, através do Decreto nº 110/GP/92, de 09 de dezembro de 1992, com o

objetivo de absorver os alunos das várias escolas rurais existentes nas proximidades. Ressalta-

se que nesse período já contava-se com a existência do transporte escolar para o acesso à

escola pelas crianças.

A pesquisa tem como base teórica as discussões no campo da História Cultural

(CERTEAU, 1982; 1994); a Cultura Escolar (JULIA, 2001); Representações (CHARTIER,

1990; 2009; 2011).

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17

Utilizei como fonte os estudos bibliográficos, obras memorialísticas, acervos

familiares, escolares e paroquiais, iconografia2, entrevista, jornal, entre outros. Foram elas

encontradas no Arquivo Público de Mato Grosso, na Sala de Memória de Tangará da Serra,

Secretaria Municipal de Educação de Barra do Bugres, Secretaria Municipal de Educação e

Cultura de Tangará da Serra, Câmara Municipal de Barra do Bugres, Paróquia Nossa Senhora

Aparecida, de Tangará da Serra, Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral –

NUDHEO de Tangará da Serra e na base de dados do GEM – Grupo de História da Educação

e Memória da UFMT/IE.

Considero relevante evidenciar a história oral como um importante recurso

metodológico para a História e para a História da Educação, pois, na perspectiva da História

Cultural, a partir da École Des Annales3 ocorreu a ampliação do conceito de documento,

sendo consideradas fontes de pesquisa não somente os documentos oficiais, como no século

XIX, mas também aqueles manuscritos, tipográficos, imagéticos e orais, uma revolução

documental, como chamou Le Goff (1994). O autor considera esta revolução ao mesmo

tempo qualitativa e quantitativa, pois, “o interesse da memória coletiva e da história já não se

cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, [...] a história política,

diplomática, militar. [...] interessa-se por todos os homens” (LE GOFF, 1994, p. 541),

possibilitando ao mesmo tempo conhecer e fazer-se conhecer diferentes histórias vivenciadas

por sujeitos históricos que compõem um universo diversamente cultural, ou seja,

evidenciando histórias ordinárias (CERTEAU, 1994) reinventadas em meio a diferentes

opiniões, experiências e ideias em espaços/lugares coletivos.

Como Le Goff (1996) chama os depoentes de homens memória, participantes da

história, portanto, guardiões dessa memória. Apoiada pelas narrativas sobre o passado e outras

fontes, percebi o lugar social dos narradores, ou seja, compreendi melhor a construção dessa

história (CERTEAU, 2006).

Portanto, pesquisar o período de colonização recente ou a história do tempo presente,

conforme propõe Franco e Levin (2007), possibilitou-me a singularidade de conviver com

testemunhos vivos, a partir da história oral, visto que “as fontes orais traduzem visões

2 A iconografia, bilhetes, certificados, entre outros documentos, integraram parte de acervos particulares e

contribuíram, sobremaneira, no âmbito dos estudos e pesquisas para a História da Educação, “ao enfrentar a

passagem do tempo podem emergir como re-conhecimento, como possibilidade de não-esquecimento, como

“lugar de memória” ( CUNHA, 2008, p. 116).

3 Movimento liderado por um variado grupo de historiadores e intelectuais iniciado com o lançamento de uma

revista internacional dedicada à história econômica na França, no final dos anos de 1920, chamada Annales

d’Histoire Économique et Sociali. Ver mais: (BURKE, 1997).

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particulares de processos coletivos” (DELGADO, 2010, p. 18) vivenciados num determinado

período e local.

Na presente dissertação são utilizados registros de entrevistas realizadas por mim,

devidamente autorizadas, além das já publicadas por outros autores. A investigação foi

também submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa4 da Universidade Federal de Mato

Grosso.

As reflexões que surgiram a partir da prática pedagógica levaram à construção do

objeto de pesquisa: a cultura escolar como materialização das representações de escolarização

da infância, em uma determinada escola, no período recente de colonização de Mato Grosso,

buscando responder ao seguinte questionamento: “Quais as representações de escolarização

da infância e como se materializaram na cultura escolar da Escola Rural Mista Municipal

Santo Antonio (1965 – 1983)”? Como hipótese, acreditamos que diferentes representações de

escolarização da infância se materializaram na cultura escolar da citada escola, através das

brincadeiras, do currículo escolar, da relação entre seus pares, dos registros escolares, entre

outras, visando uma formação específica.

O município de Tangará da Serra está localizado a sudoeste do estado de Mato Grosso

e foi emancipado em 13 de maio de 1976.

Figura 1 Mapa de Tangará da Serra-MT

Fonte: Diário de Tangará (s.d.).

4 O Comitê de Ética em Pesquisa está sediado ao Hospital Universitário Júlio Müller - UFMT.

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A imagem apresenta alguns dos municípios que limitam com Tangará da Serra:

Campo Novo dos Parecis, Nova Marilândia, Santo Afonso, Arenápolis, Diamantino, Denise,

Nova Olímpia, Barra do Bugres, Vale de São Domingos, Conquista D’Oeste, Pontes e

Lacerda, Campos de Júlio e Sapezal. Totaliza uma área de 11.423,04 Km², sendo que,

“aproximadamente, 51% constituem área indígena do Povo Paresi, habitante primeiro dos

campos do Tapirapuã” (OLIVEIRA, 2004, p. 12).

Percebe-se que os espaços não foram ocupados, mas reocupados, considerando a

existência do Povo Paresi na localidade. Assim, segundo Oliveira (2009), o território foi

reocupado pelos não índios, através de um projeto de colonização privada a cargo da empresa

denominada Sociedade Comercial Imobiliária de Tupã para a Agricultura Ltda. (SITA).

Tangará da Serra foi o nome escolhido pelos colonizadores do município que, estando

acampados na Serra de Tapirapuã5, perceberam a existência de um bando de pássaros que

emitiam diariamente seu canto matinal. Tangará refere-se a uma espécie de pássaro existente

na Bacia Amazônica, partes do Brasil Central e Mato Grosso, conhecido por tangará-

dançarino, de plumas de diferentes e exuberantes cores, quando chega “[...] o momento da

dança, os de um galho voam para o outro, os da direita para a esquerda; os da esquerda para a

direita. Às vezes pairam no ar, à frente dos que ficam no centro, como beija flores quando

estão sugando o néctar das flores” (RIBEIRO apud CESÁRIO NETO, 1955, p. 10).

Portanto, Tangará é uma homenagem aos pássaros tangarás, sendo que Serra é assim

nominada pelo fato de que, para se chegar à cidade, é necessário transpor a Serra de

Tapirapuã (OLIVEIRA, 2012).

As primeiras famílias migrantes chegaram em 1959, dando início, portanto, ao

primeiro fluxo migratório. Eram elas oriundas dos estados de Minas Gerais, São Paulo,

Paraná e também do Nordeste do Brasil. Algumas famílias não procederam diretamente de

sua terra natal, mas já haviam se deslocado do território de origem seguindo a rota do café,

migração rural-rural. No final dos anos de 1970, teve início um segundo fluxo migratório,

com migrantes da região Sul do nosso país, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul

(OLIVEIRA, 2004).

O surgimento do Município de Tangará da Serra se deu a partir de uma política de

expansão da fronteira agrícola: “[...] é a partir de 1960 que o processo de (re) ocupação passa

a ser feito de forma contínua tanto no tempo quanto na extensão do território. Naquele

5 Serra que divisa os municípios de Nova Olímpia e Tangará da Serra.

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momento o comando da ocupação passa ao controle do Estado brasileiro, através da política

de integração nacional” (SANTANA, 2009, p. 2).

Motivados a melhorar de vida e incentivados pelas propagandas divulgadas pelo

governo e pelas colonizadoras, famílias partiram em busca da realização desse sonho, mesmo

sem saber o que encontrariam pela frente. Para as famílias, “um dos elementos constitutivos

de atração de migrantes é a presença de escolas. A escola, para o migrante, seria a

materialidade da garantia de um futuro próspero” (OLIVEIRA, 2009, p. 32).

Diante da falta de infraestrutura adequada, os migrantes (re)significaram a realidade

vivenciada através do trabalho coletivo que constituiu maneiras de fazer um novo espaço, a

partir do esforço de várias famílias, resultando em superação e algumas conquistas, como a

criação das primeiras instituições escolares em 1964 e 1965. Nesse percurso, desafios se

fizeram presentes, como também diferentes representações de escolarização da infância que

foram permeando as vivências sociais na região.

A cultura escolar e as representações de escolarização da infância são objetos de

análise de diferentes pesquisadores nacionais e internacionais, dentre eles destacamos

Dominique Julia (2001), Diana Gonçalves Vidal (2004), Luciano Mendes de Faria Filho

(2004), Elizabeth Figueiredo de Sá (2007), entre outros, que pesquisaram diversos períodos

da história da educação. Em Tangará da Serra, percebe-se poucas pesquisas referentes à

cultura escolar. Dentre as dissertações, teses e artigos científicos publicados, ressalta-se a tese

de Doutorado de Carlos Edinei de Oliveira (2009), intitulada “Migração e Escolarização:

História de Instituições Escolares de Tangará da Serra Mato Grosso – Brasil (1964 -1976),

pela UFU, que analisou as relações entre migração e escolarização em Mato Grosso,

discutindo as categorias: tempo, espaço, aluno e professor da Escola Rural Mista de Instrução

Primária de Tangará da Serra, da Escola rural Mista Municipal Santo Antonio, das Escolas

Reunidas, dos Grupos Escolares, do Grupo Escolar Dr. Ataliba Antônio de Oliveira Neto e do

Ginásio Estadual de Tangará da Serra, priorizando a cultura escolar produzida nestas

instituições, no período de 1964 a 1976.

Em dissertação de mestrado do mesmo autor (2002), que foi publicada no formato de

livro, “Famílias e Natureza a relação entre famílias e ambiente na colonização de Tangará

da Serra – MT”, em 2004. Oliveira pretendeu entender a relação das famílias migrantes com o

ambiente que passaram a ocupar no momento da colonização de Tangará da Serra e as

representações que elaboraram sobre esse ambiente. Ao abordar o comportamento de grupos

de famílias migrantes em relação à natureza, em Tangará da Serra, no período de sua

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colonização, fez uma leitura específica da colonização privada de Mato Grosso, podendo

proporcionar estudos comparativos para outras pesquisas sobre a colonização na Amazônia.

Descrever a história da leitura de professoras alfabetizadoras da década de 1970, em

Tangará da Serra, e como esses professores contribuíram na formação de leitores, através da

sua prática pedagógica, foi o objetivo da pesquisa de Mestrado de Zilda Gláucia Elias Franco

de Souza, intitulada “ História da leitura de professoras alfabetizadoras em Tangará da Serra

– MT, Brasil – década de 70 – século XX”, pela Universidad Autónoma de Asunción em

2010.

Regiane Cristina Custódio, em sua tese de doutorado intitulada, Memórias da

migração, memórias da profissão. Narrativas de professoras (Tangará da Serra – MT – 1965

– 1984), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2014, apresentou como foco

central as memórias de professores que viveram em Mato Grosso durante o processo de

formação e consolidação de Tangará da Serra, município e região deste estado, propondo

analisar as relações entre a experiência profissional e as formas de representação do mundo

social de professoras no exercício da profissão docente em um contexto histórico específico.

Constatados diferentes objetos de pesquisa referentes à educação escolar no

município, compreendi a relevância de pesquisar a cultura escolar da primeira escola

municipal e as representações de escolarização da infância, evidenciando suas

particularidades. Para tanto, seguimos um referencial teórico específico.

Chartier (1990, p. 16) esclarece, a partir da História Cultural, que “é possível

identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade social é construída,

pensada, dada a ler”, ou seja, através das representações podemos identificar a maneira e a

forma como a realidade é socialmente construída e, enquanto historiadores, analisar os

processos com os quais se constroem sentidos ao fazer a leitura das práticas sociais realizada

nessa nova configuração de espaço, através da relação entre os diferentes migrantes, agora,

ocupando o mesmo espaço.

As representações podem ser pensadas como “[...] esquemas intelectuais, que criam as

figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o

espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990, p. 17). Portanto, investigar a cultura escolar da

primeira escola rural municipal, numa região de colonização recente, possibilita analisar e

compreender como as pessoas se organizaram a partir da migração, e que representações

construíram a respeito da escolarização da infância.

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Considerando a escola e suas práticas enquanto espaço de representação constituído

socialmente pelos diferentes segmentos da sociedade, Nóvoa (2002) destaca a importância de

um espaço educacional público que valorize o compromisso social com a educação. Nessa

perspectiva, fundamental é o papel do historiador, no sentido de não apenas descrever ou

narrar a história, mas, sim, ser um legítimo investigador, explorador minucioso, a fim de

identificar as representações implícitas nas fontes documentais e compreender as práticas

construídas socialmente e suas representações (OLIVEIRA, 2009). A esse respeito, Le Goff

(1994, p. 535) acredita no posicionamento do historiador frente ao documento, considerando

que “[...] o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha

efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da

humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os

historiadores”.

Para Julia (2001), a cultura escolar compõe-se de normas que estabelecem os

conhecimentos a ensinar, condutas a impor e práticas coordenadas às finalidades que são

variáveis. Ele ainda salienta a importância em se compreender as culturas infantis como

reflexo das culturas familiares, sendo a relação entre elas e a interação entre todas as pessoas

dentro da escola, determinantes na constituição da cultura escolar. O autor propôs aos

historiadores da educação o refletir e questionar sobre as práticas vivenciadas dia-a-dia no

interior das instituições, valorizando o funcionamento interno da escola. Para isso, utilizou a

metáfora “caixa preta” da escola. Os estudos sobre as instituições escolares passaram a

relacionar-se mutuamente com as explorações sobre o cotidiano da escola, observando sua

singularidade e percebendo-o como produtor da cultura escolar (VIDAL, 2004).

Diante do desafio de historiadora-pesquisadora, pensar a cultura escolar na Escola

Rural Mista Municipal Santo Antonio, a partir da História Cultural significa ler e analisar o

processo de construção de sentido e as representações coletivas, bem como suas práticas,

considerando sempre os interesses do grupo. Essa é a leitura e escrita que me proponho a

fazer. Assim, a dissertação está estruturada em três capítulos, organizadores das ideias e

análises propostas:

Tangará da Serra: lembranças, esperanças, lutas e conquistas, é o título do primeiro

capítulo, composto de sete subtítulos que refletem as primeiras iniciativas para a (re)ocupação

dos “espaços vazios” na região Centro-Oeste do Brasil, a partir dos anos de1950, incentivados

pelas propagandas divulgadas por colonizadoras privadas e pelo governo de Mato Grosso, as

quais destacavam a fertilidade do solo, com o objetivo de atrair migrantes para a região

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central do Brasil, conforme a política que o governo federal vinha implementando desde a

política intervencionista de Getúlio Vargas. Nessa ocasião, famílias de pequenos e grandes

produtores rurais migraram com a expectativa de encontrar terra fértil e o desejo de possuir a

sua própria terra.

Famílias partiram de diversos pontos do território brasileiro em busca da realização de

sonhos. Acreditaram na possibilidade de um futuro promissor para seus filhos a partir da

reocupação desses espaços de terra fértil. Oriundos de diferentes estados do Brasil deixaram

para trás amigos, familiares, suas moradas, vivências, trazendo consigo lembranças, cultura,

crenças, mas também esperança de uma vida melhor, pois já eram possuidores da experiência

de vida no campo que possibilitou a construção de um novo espaço de formas de fazer.

Diferentes representações permearam o imaginário dos migrantes sobre o espaço que

reocupariam dando origem a novas representações, de acordo com as experiências já

vivenciadas e que possibilitaram maneiras de fazer em comunidade, aqui, especificamente, a

comunidade rural da Reserva, que no período inicial de colonização denominei de “espaço

rural, no rural”, uma vez Tangará da Serra ainda pertencer ao município de Barra do Bugres.

O primeiro capítulo discute, também, as vivências na comunidade rural, as relações

estabelecidas entre os colonos sitiantes, como eles organizaram o espaço, o significado dado

ao local e a construção das práticas sociais estabelecidas, evidenciando “a maneira como os

indivíduos e os grupos se percebem e percebem os demais” (CHARTIER, 2009, p. 49).

No segundo capítulo, Trajetória escolar: anos 1960 e 1970, elaborado em cinco

subtítulos, é apresentado o projeto educacional dos governos pós-1964, em nível nacional e

estadual, destacando, como finalidade da educação, a formação de recursos humanos ou força

de trabalho para o desenvolvimento econômico pensado no interior de uma política

capitalista.

Ressalta-se a realidade dos professores em Mato Grosso nesse período, pois, a grande

maioria era composta de leigos, mas também as estratégias do governo estadual para a

superação da situação a que chamaram ‘grande problema.’ Mudanças educacionais gradativas

surgiram no Estado a partir dos investimentos no aperfeiçoamento dos professores, através

das políticas públicas do governo federal e da implantação dessas políticas pelo governo

estadual.

Além de apresentar como se configurava a escola rural naquele período, através da

criação e construção das primeiras unidades educacionais no povoado de Tangará da Serra, a

discussão teve como centralidade a trajetória do fazer-se professora numa região de

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colonização recente e quem eram os alunos que frequentavam a escola, corroborando as

diferentes representações que permearam esse espaço social.

O terceiro e último capítulo, Os espaços, as relações e os saberes escolares. A cultura

escolar da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, apresentada nos cinco últimos

subtítulos, traz à tona como os sujeitos escolares traduziram, nos seus fazeres ordinários, as

normas e práticas escolares, a luz da memória de quem viveu esse momento histórico, mesmo

que ainda na infância. Isso possibilitou o recontar uma história da cultura material da escola –

espaços e tempo escolar, saberes escolares e, por fim, mas não menos importante, as relações

constituídas no cotidiano da escola que, segundo Rohden (2012, p. 33), se apresentava

“enquanto espaço em que se determinam as relações sociais e ao mesmo tempo em que se

constitui como difusora de saberes e conhecimentos”.

Contexto social de vivências permeadas por dificuldades e desafios e marcadas pelas

táticas e artes de fazer (CERTEAU, 1994) dos migrantes que fizeram deste espaço um lugar

praticado (Ibidem, 1994), a instituição escolar foi constituída como possibilidade de

conhecimento e progresso e “o professor como aquele que põe em funcionamento os

dispositivos escolares de maneira criativa respeitando às normas estabelecidas” (FARIA

FILHO, et al. 2004, p. 149).

Através do estudo da cultura escolar, pode-se “[...] compreender o quanto a escola se

configura enquanto lugar de produção de uma cultura específica, em que frequentemente são

criadas estratégias modeladoras e táticas de subversão, enfocando o quanto as relações de

poder se revelam no interior das instituições” (ROHDEN, 2012, p. 33). De outro, as

representações de escolarização da infância se constituíram em práticas, pelos diferentes

segmentos sociais.

Nesse sentido, após análise das fontes documentais foi possível perceber que a

educação escolar, inicialmente, foi fruto de luta dos migrantes e que diferentes representações

de escolarização de infância permearam o universo da Escola Rural Mista Municipal Santo

Antonio, na comunidade rural de Reserva.

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CAPITULO I

TANGARÁ DA SERRA: LEMBRANÇAS,

ESPERANÇAS, LUTAS E CONQUISTAS.

Fonte: Acervo da Sala de Memória de Tangará da Serra – MT6

6 A imagem que abre o primeiro capítulo corresponde ao período de colonização de Tangará da Serra, anos 1960.

A fotografia pertence ao acervo da Sala de Memória de Tangará da Serra e foi conseguida através de uma

campanha realizada pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura, a fim de angariar imagens do município

para iniciar um acervo de memória. Isso ocorreu durante o governo do prefeito Jaime Luís Muraro (1996-2003).

Figura 2 Imagem aérea de Tangará da Serra, anos 1960

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1.1 Primeiras iniciativas para a ocupação dos “espaços vazios”

Incentivados pelas propagandas, especialmente aquelas estampadas em revistas

especializadas7, a partir dos anos 50, que buscavam atrair migrantes para a região central do

Brasil, consonante com a política que o governo vinha implementando desde Getúlio Vargas,

famílias de pequenos e grandes produtores rurais migraram com a expectativa da terra fértil, e

desejo de possuir a sua própria terra.

A Política Nacional na “Era Vargas“ “[...] procurou privilegiar um projeto nacional de

desenvolvimento industrial baseado no fortalecimento do poder central e na ideologia do

nacionalismo” (MORENO, 2007, p. 101). A instabilidade política durante os primeiros anos

de governo de Vargas culminou na Revolução Constitucionalista (1932), que resultou na

promulgação da Constituição de 1934. Moreno (2007) considera que essa movimentação

restringiu os poderes dos estados e ampliou os poderes do executivo federal que, por sua vez,

dissolveu o Congresso Nacional e passou a governar por decretos-lei. Fortalecia-se, assim, o

poder central que se empenhou no desenvolvimento do setor industrial, impulsionando a

economia através da instalação das chamadas indústrias de base (petróleo, mecânica pesada,

construção naval, cimento etc.) e na diversificação da agricultura, de forma que a segunda

complementasse a primeira (PEREIRA, 2012). Para diversificar a agricultura,

Vargas procurou incentivar a expansão da pequena propriedade, sob o lema

“Trabalho e colonização”. O desenvolvimento econômico, conforme

objetivo nacionalista do governo deveria ser tarefa comum a todos os

segmentos da sociedade: pequenos e grandes produtores rurais, industriais,

operários e governo. Iniciou-se, assim, a “Marcha para o Oeste”, projeto

apresentado numa política de distribuição de terras a trabalhadores nacionais

sem terra e estrangeiros com experiência agrícola. Cabia a eles promover a

conquista do interior do país, dentro da estratégia geopolítica de ocupação

dos “espaços vazios”. (MORENO, 2007, p. 101).

Dentre os desdobramentos imediatos da marcha, destaca-se a oficialização de Goiânia,

como capital de Goiás, a criação dos territórios de Guaporé e Ponta Porã, além da Expedição

Roncador-Xingu. Afirma Monarcha (2011, p. 129; 131) que “[...] a posse dos “desertões”, a

Goiânia desbravada era a metonímia do devir nacional brasileiro”. E continua,“[...] se a

ocupação e a urbanização das Regiões Sul e Sudeste estavam consolidadas, outra era a

7Revista Brasil Oeste, primeira edição em janeiro de 1956 em São Paulo, com circulação mensal. Foi declarada

de utilidade pública pelo governo do estado de Mato Grosso, através da Lei 1.713, de 29/12/1961.

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situação da “fronteira oeste”, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas, fronteiras

etnolinguísticas abandonadas”.

Nas palavras de Getúlio Vargas, durante mensagem aos brasileiros, no dia 31 de

dezembro de 1937, o movimento “Marcha para Oeste”8 “incorporou o verdadeiro sentido de

brasilidade” (BRASIL, 1938, p. 124). Compreende-se a representação da marcha, para o

chefe da Nação, como sinônimo de conquista e progresso para o Brasil, pois, para ele, “[...]

das entranhas da terra [...] forjar os instrumentos da nossa defesa e do nosso progresso

industrial. [...] não será, certamente, obra de uma única geração, mas é a que tem que ser feita

e ao seu início queremos, por isso, consagrar o melhor de nossos esforços” (BRASIL, 1938, p.

124).

Após o pronunciamento de Vargas, foi manifesto o interesse de ocupação dos

“espaços vazios”9, o que estimulou o fluxo migratório para a região Centro-Oeste do Brasil.

Para Trubiliano e Martins Jr. (2008, p. 2),

Foi a partir de trinta e um de dezembro de 1937, que as atenções do Estado

nacional sobre Mato Grosso foram redimensionadas. Durante a saudação de

fim de ano ao povo brasileiro, o presidente Getúlio Vargas anunciou o

programa de colonização denominado Marcha para Oeste. Em mensagem

radiofônica transmitida para todo o território nacional, o chefe de governo

conclamava os brasileiros a rumarem para o Oeste em busca de

oportunidades e descoberta de um novo Brasil que, anteriormente explorado

pelos bandeirantes, encontrava-se agora esquecido.

Da perspectiva ideológica do governo Vargas, “[...]um dos caminhos para o progresso

nacional estaria na efetiva ocupação e integração das várias regiões do interior do país, bem

como a exploração de suas riquezas. Integração não apenas territorial, mas racial, moral,

cultural e política”.(TRUBILIANO; MARTINS Jr., 2008, p. 2). A Marcha para o Oeste se

constituiu num movimento do Brasil que caminha para dentro, em busca de si mesmo; de sua

nacionalidade (RICARDO, 1970).

Assim, percebe-se que a marcha significou mais que a ocupação de “espaços vazios”,

forjou a construção de uma identidade nacional de interesse político. Nesse sentido, a

educação foi entendida e utilizada como meio disseminador dos ideais nacionalistas de

maneira nunca vista anteriormente na história do nosso país (KREUTZ, 2000).

8 A denominada “Marcha para o Oeste” foi um projeto dirigido pelo governo Getúlio Vargas, mais

especificamente durante o Estado Novo (1937-1945) para ocupar e desenvolver o interior do Brasil (RICARDO,

1970). Ver também, Monarcha (2011). 9 Termo utilizado pelo governo com o objetivo de colonizar áreas do Centro-Oeste do Brasil. No entanto, os

espaços já eram ocupados por povos indígenas. Cf. Oliveira (2004); Aruzzo (2012); Andrade (2009).

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Para Lenharo (1986, p. 46-47), a Marcha para o Oeste tinha como proposta a criação

de diretrizes para a colonização “[...] administrativamente centralizadas, inspiradas na ótica

nacionalista, com o objetivo de ocupar os “espaços vazios” do Oeste e da Amazônia, para

criar um “novo espaço” a “nova ordem social”. Sob sua ótica, “[...] as fronteiras econômicas

deveriam coincidir com as fronteiras políticas”.

Entende-se, portanto, que a nacionalidade não é genética, é criação, é cultural, pois,

“Nacionalidade constitui-se da cultura, da língua em comum, da construção da identidade de

um povo” (RABELO; VIRTUOSO, 2013, p. 2).

A política desenvolvimentista, iniciada por Vargas, foi expandida por Juscelino

Kubitschek. Apesar dos esforços nacionalistas, a economia brasileira não foi capaz de gerar a

acumulação de capital que pudesse promover a industrialização no país e absorver o grande

contingente de mão de obra à procura de emprego. Com vistas a “[...]enfrentar essa realidade,

Juscelino Kubistchek tentou um salto, que ficou conhecido como ‘crescer 50 anos em 5’,

cujas etapas estavam consubstanciadas em seu Plano de Metas” (PEREIRA, 2012, p. 53).

Assim, o governo estabeleceu uma série de medidas, inclusive “retomou o discurso da Marcha

para o Oeste, concretizando-o na construção de Brasília e nas rodovias de integração

nacional” (SOUZA, 2006, p. 40). Segundo Siqueira (2002, p. 233),

As vendas indiscriminadas das terras mato-grossenses e amazônicas se

intensificaram a partir do Plano de Metas, adotado no governo Juscelino

Kubitschek (1956-1960), cuja filosofia se assentava num maior estímulo à

industrialização nacional através da substituição das importações. Para que o

Brasil conseguisse exportar sua produção, grandes artérias rodoviárias

rasgariam o Centro Oeste em direção à Amazônia, como foi o caso da

rodovia Belém-Brasília. No entanto, Mato Grosso, a Amazônia e todo o

Norte brasileiro não conseguiram se industrializar, continuando a

desempenhar o papel de meros fornecedores de matérias-primas.

Nos anos 1960, o governo político-militar, através de seus Planos, destacou o

“desenvolvimento” como objetivo central no planejamento de ações do governo no contexto

político pós-64 (SOUZA, 1981). Tencionava, num primeiro plano, atingir a meta de deter a

inflação para possibilitar a retomada do desenvolvimento, o denominado Programa de Ação

Econômica do Governo (PAEG), elaborado em 1964 para o biênio 1964-1966:

As incursões do planejamento no campo social aumentaram na medida em

que, vencida a primeira etapa, a do controle do processo inflacionário,

passou a exercer também um maior controle do processo social. Isto quer

dizer que o desenvolvimento modernizador se faz a partir de um controle

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cada vez maior do Estado sobre a vida da Nação. A importância do

planejamento social é notável, já a partir do segundo plano governamental:

Programa Estratégico e Desenvolvimento (PED), publicado em julho de

1967. Foi então que se formularam os chamados Planos Setoriais baseados

em estudos preliminares, os Diagnósticos Setoriais. A formulação desse

planejamento esteve a cargo, nos primeiros planos, do Escritório de Pesquisa

Econômica Aplicada, EPEA, órgão técnico do Ministério do Planejamento,

onde foi figura atuante Reis Velloso, que veio a ser ministro e depois

secretário do Planejamento. Nos Planos Setoriais, como o da educação,

também tomaram parte em sua formulação o ministério a que está

subordinado o setor e outros órgãos afins. A coordenação geral ficou, porém

com o Ministério do Planejamento, até 1968 chamado Ministério de

Planejamento e Coordenação Econômica, passando depois a Ministério do

Planejamento e Coordenação Geral. Até pela nomenclatura podemos

constatar, pois, a forma como evoluiu o planejamento, que de

eminentemente econômico passou a ter também conotação social. (SOUZA,

1981, p. 112).

A política desenvolvimentista adotada pelo governo militar buscava maior

envolvimento das relações capitalistas no país, tendo como objetivo específico a contenção

das despesas da União, emergencialmente necessária. Portanto, as metas no campo

educacional foram apenas quantitativas, tanto no ensino elementar, como no médio, quanto no

ensino superior, uma vez que “pretendia-se uma expansão dos três níveis de ensino, prevendo-

se para 1970 o alcance de 100% na taxa de escolaridade da população de 7 a 11 anos de idade

e nos ensinos de nível médio e superior, as projeções eram inferiores aos números

alcançados” (SOUZA, 1981, p. 113).

Através do plano governamental político-militar, diferentes governantes teceram uma

rede de significações para a educação brasileira, por meio de planos específicos que alinhasse

a política educacional com o desenvolvimento econômico do país.

Os governos estaduais passaram a estimular a ocupação das áreas de mata,

promovendo a colonização oficial e privada. Portanto, as duas categorias de colonização,

tanto a executada pela iniciativa privada quanto a oficial, sob o comando do Estado, “[...]

representam aspectos diferenciados de uma mesma política governamental” (CUSTÓDIO,

2005, p. 31), que foi capaz de atrair migrantes de vários estados brasileiros, mergulhados nos

ideais de nação e no sentimento de ocupação de novos espaços, na segunda metade do século

XX.

Compreendem-se os investimentos em infraestrutura aplicados em Cuiabá, cidade de

apoio e lugar onde primeiro desembarcavam os chegantes, ao longo dos anos 1960 e 1970, a

fim de possibilitar a circulação de pessoas e mercadorias como produto do processo de

expansão capitalista sob o controle político do Regime Militar:

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30

Cuiabá figurou nesse processo como cidade estratégica para a política

desenvolvimentista do Governo Federal, inserindo-se na movimentação de

capitais para a Amazônia. O papel da cidade seria o de eixo de passagem dos

fluxos migratórios. Um entreposto pelo qual os colonos, que chegariam ao

norte do país para colonizar o imenso vazio, teriam de passar. (AMEDI,

2012, p. 42).

É certo que a Marcha para o Oeste foi o primeiro movimento promovido para a

ocupação e colonização das terras mato-grossenses, mas isso ocorreu de forma intensa durante

o governo de Regime Militar (1964 – 1985) (AMEDI, 2012).

O governo federal, durante o Regime Militar, criou condições de infraestrutura básica

“[...] principalmente de transporte (abertura das Rodovias BR-163 e 364) que possibilitaram a

continuidade do processo de ocupação das terras e a expansão da agricultura em Mato Grosso,

estreitando as ligações deste estado com os demais estados da Federação” (SOUZA, 2006, p.

39). Principalmente nos anos 1970, com o lançamento do Plano de Integração Nacional (PIN),

que objetivava a efetiva ocupação da Amazônia Legal através da vinda de migrantes de várias

partes do país, ocorreu a expansão da fronteira agrícola.

Ressalta-se que sem a política de construção de rodovias seria inviável a colonização,

pois sem estradas, o escoamento da produção seria impossível de ser praticada. Antes da

construção de rodovias, o acesso às vilas ou distritos era realizado através dos rios ou das

picadas abertas por picadeiros, seringueiros e poaieiros10

:

A integração amazônica foi continuada com o lançamento do PRODOESTE

(Programa do Desenvolvimento do Centro-Oeste), em 1971 e pelo II PIN

(Plano Nacional de Desenvolvimento), no ano de 1974. Com eles, o número

de rodovias aumentou de duas para seis: BR- 070, BR-163, BR-262, BR-

364, BR 376 e BR-463, que interligaram Mato Grosso às principais capitais.

As terras que se situavam em Mato Grosso e na Amazônia eram vistas como

“espaços vazios”, sendo necessária a sua ocupação. Foram elaborados então

nesse período projetos de colonização oficial, objetivando o assentamento de

pequenos e médios produtores na região ao longo das rodovias em terras de

propriedade do Estado, além da colonização particulares, realizada por

empresas que atraiam nesse caso maior número de colonos. (AMEDI, 2012,

p. 62).

Em Mato Grosso, diversas cidades surgiram no eixo das rodovias federais e estaduais

a partir segunda metade do século XX, diferenciando-se de outras cidades do país, que

surgiram no eixo das ferrovias (CUSTÓDIO, 2005).

O Estado adotou duas estratégias na política de ocupação territorial recente do país: a

colonização oficial, de responsabilidade dos órgãos governamentais, e a colonização privada,

10

Trabalhador que extraem, nas matas, uma raiz medicinal chamada poaia, durante período chuvoso.

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31

sob o comando de empresas que tinham seus projetos de colonização aprovados pelo governo.

Percebe-se que, dos 83 novos municípios que surgiram de 1970 até 1990, quase a metade

resultou da colonização privada:

O sucesso da colonização particular, quando comparado à colonização

oficial, é atribuído à condição econômica da sua clientela, composta por

agricultores mais capitalizados e com tradição agrícola, apresentando uma

situação financeira mais estável que os assentados nos projetos oficiais. [...]

O resultado pouco exitoso da colonização oficial aparece no fracasso ou na

morosidade da consolidação e emancipação da maioria dos projetos, que se

expressam na perda de renda e na grande evasão dos parceleiros.

(MORENO, 2007, p. 182).

Percebe-se que ocorreu o retorno de famílias migrantes aos locais de origem, em

ambas as modalidades, tanto pelas dificuldades administrativas dos projetos, quanto pela falta

de assistência, pela dificuldade de adaptação ao novo ambiente, mas, sobretudo, pelas

promessas anunciadas e não cumpridas pelos colonizadores (MORENO, 2007).

O Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA), promotor da colonização, foi

também responsável pela implantação do Plano de Reforma Agrária, que tinha, entre suas

responsabilidades, a incumbência de aprovar os projetos apresentados pelas empresas

colonizadoras privadas, como também acompanhar a execução física de cada um deles.

A Lei n. 4.504, de 1964, que dispõe sobre o Estatuto da Terra, especialmente no Art.

61 e seus respectivos parágrafos, oferecia instruções básicas a serem cumpridas pela empresa,

a fim de ter o seu projeto de colonização aprovado pelo INCRA:

Art. 61. Os projetos de colonização particular, quanto à metodologia,

deverão ser previamente examinados pelo Instituto Brasileiro de Reforma

Agrária, que inscreverá a entidade e o respectivo projeto em registro próprio.

Tais projetos serão aprovados pelo Ministério da Agricultura, cujo órgão

próprio coordenará a respectiva execução. § 1° Sem prévio registro da

entidade colonizadora e do projeto e sem a aprovação deste, nenhuma

parcela poderá ser vendida em programas particulares de colonização. § 2º O

proprietário de terras próprias para a lavoura ou pecuária, interessados em

loteá-las para fins de urbanização ou formação de sítios de recreio, deverá

submeter o respectivo projeto à prévia aprovação e fiscalização do órgão

competente do Ministério da Agricultura ou do Instituto Brasileiro de

Reforma Agrária, conforme o caso. § 3º A fim de possibilitar o cadastro, o

controle e a fiscalização dos loteamentos rurais, os Cartórios de Registro de

Imóveis são obrigados a comunicar aos órgãos competentes, referidos no

parágrafo anterior, os registros efetuados nas respectivas circunscrições, nos

termos da legislação em vigor, informando o nome do proprietário, a

denominação do imóvel e sua localização, bem como a área, o número de

lotes, e a data do registro nos citados órgãos. § 4º Nenhum projeto de

colonização particular será aprovado para gozar das vantagens desta Lei, se

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32

não consignar para a empresa colonizadora as seguintes obrigações mínimas.

a) abertura de estradas de acesso e de penetração à área a ser colonizada; b)

divisão dos lotes e respectivo piqueteamento, obedecendo a divisão, tanto

quanto possível, ao critério de acompanhar as vertentes, partindo a sua

orientação no sentido do espigão para as águas, de modo a todos os lotes

possuírem água própria ou comum; c) manutenção de uma reserva florestal

nos vértices dos espigões e nas nascentes; d) prestação de assistência médica

e técnica aos adquirentes de lotes e aos membros de suas famílias; e)

fomento da produção de uma determinada cultura agrícola já predominante

na região ou ecologicamente aconselhada pelos técnicos do Instituto

Brasileiro de Reforma Agrária ou do Ministério da Agricultura; f) entrega de

documentação legalizada e em ordem aos adquirentes de lotes. (BRASIL.

Lei n. 4.504, 1964)

Constata-se nesse artigo que, antes de ser aprovado, o projeto seria avaliado seguindo

critérios que contemplassem diferentes aspectos, entre eles: físicos, sociais, econômicos e

jurídicos.

Moreno (2007, p. 173) esclarece ainda que, nos anos 1970 e 1980 foram

[...] registradas no INCRA/MT 33 empresas privadas, que implantaram no

estado 88 projetos de colonização. A CODEMAT também se registrou para

a implantação do projeto Juína. Esses projetos abrangeram cerca de 3,25

milhões de hectares de terras, cujas áreas receberam quase 20.000 famílias

de colonos.

Cada família adquiriu lotes acima de 100 hectares, sendo que a maioria era procedente

da região Sul do país11. Em Tangará da Serra, o primeiro fluxo migratório aconteceu no ano

de 1959, quando chegaram às primeiras famílias. A maioria delas adquiriu 5, 10 ou 15

alqueires cada, ou seja, respectivamente 12,1 ha, 24.2 ha ou 36,3 há. Nesse período, o governo

tinha como objetivo assentar famílias de colonos, possibitando-lhes adquirir terra, já que o

local de origem migratória não lhes oferecia sequer condições de sobrevivência, devido a

fatores sociais e naturais: “[...] sendo necessário abrir a fronteira, atraindo para esse território

elementos que, fugindo dos problemas enfrentados nas regiões de origem, migrassem em

direção ao espaço aberto à moderna colonização” (SIQUEIRA, 2002, p. 235).

A realidade é que, mesmo diante de uma legislação que contemplava vários critérios

de análise antes da aprovação dos projetos de colonização eram comuns situações em que as

empresas colonizadoras não cumpriam efetivamente com os deveres de colonizador, deixando

os colonos em situações mais difíceis do que se esperava. Esse foi o caso de Tangará da Serra,

11

Com o objetivo de legitimar a propriedade das terras mato-grossenses, foi instruída como órgão regulamentar

do governo de Mato Grosso, a Companhia de Desenvolvimento do Estado de Mato Grosso (CODEMAT),

através do Decreto nº 1.138, de 30 de abril de 1970 (SIQUEIRA, 2002, p. 233).

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33

foco da pesquisa, porém, por necessidade, a maioria das famílias migrantes permaneceu no

espaço, construindo novas representações (CHARTIER, 1990) sobre os horizontes que

buscaram, vivenciando experiências marcadas pelo fazer, viver e conviver num ambiente

praticamente construído por eles, tornando o espaço, nessa medida, “um lugar praticado,

como afirma Certeau (1994).

1.2 A colonização de Tangará da Serra: a busca pela terra fértil

A Sociedade Imobiliária Tupã para a Agricultura – SITA adquiriu várias áreas no

Sudoeste de Mato Grosso, “em terras antes pertencentes ao povo Paresi” (MORENO, 2007, p.

181), adstritas ao povoado originário do loteamento das glebas Santa Fé, Esmeralda e

Juntinho, localizadas no município de Barra do Bugres, que recebeu o nome de Cidade

Tangará da Serra, nascia o município em 1959.

Oliveira (2004, p. 12) destaca que “o município possui uma área total de 11.423,04

km², sendo que, aproximadamente, 51% é área indígena do povo Paresi, habitante primeiro de

toda a área dos campos do Tapirapuã, local onde está edificada a cidade e a zona rural de

Tangará da Serra”. Ao Norte, limita-se com os municípios de Campo Novo dos Parecis, Nova

Marilândia, Sapezal e Diamantino; ao Sul, com Barra do Bugres, Salto do Céu, Reserva do

Cabeçal e Vale do São Domingos; a Leste divisa com Nova Olímpia, Santo Afonso e Denise.

e a Oeste com Campos de Júlio e Conquista do Oeste.

O mapa a seguir estampa as glebas em Tangará da Serra, no ano de 1960, e demonstra

os ambientes da Serra do Tapirapuã, da Área Indígena, do Rio Sepotuba e da Chapada dos

Parecis:

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34

Figura 3 Glebas de terras 1960, Tangará da Serra – MT - Mapa demonstrativo dos ambientes:

Serra de Tapirapuã, Área indígena, Rio Sepotuba e Chapada dos Parecis.

Fonte: OLIVEIRA, 2012

Percebe-se que os espaços não foram ocupados, mas reocupados, considerando a

existência do Povo Paresi, habitante ancestral da localidade. Assim, o território foi reocupado

pelos não índios, através de um projeto de colonização privada.

Estudos históricos sobre os povos, antes da “reocupação” de terras no território de Mato

Grosso, demonstram que, especificamente na área denominada Tangará da Serra, entre a Serra

de Tapirapuã e a dos Parecis, habitava o povo indígena Paresi. A esse respeito, Oliveira

(2004, p. 26) destaca as Serras como ambiente tradicionalmente ocupado pelos índios Paresi e

reterritorializado, posteriormente, por famílias de lavradores de várias regiões do Brasil, nas

décadas de sessenta e setenta: “[...] o uso do prefixo re é necessário para deixar evidente que,

quando os não índios ocuparam as terras da região do Tapirapuã, elas não se constituíam em

“espaços vazios”, mas já eram habitadas ou perambuladas pelos povos indígenas, neste caso,

em particular, os Paresi12

”.

12

Conforme Machado (1994, p. 48), “Um dos primeiros relatos acerca do povo Paresi escrito por um

bandeirante, Antônio Pires de Campos (1962), chamou-os de “Paresís” que seriam os Kaxiniti e os Wáimar e

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35

A historiografia registra que em Tangará da Serra havia um grande grupo de índios,

denominados “Paresi”, com costumes, hábitos, cultura e identidade própria (MACHADO,

1994). Eles se autodenominam Halíti13

. Até hoje, no município de Tangará da Serra, são

registradas áreas indígenas do povo Paresi.

O estado de Mato Grosso foi, dentre outros, considerado como um imenso “espaço

vazio”, tanto na esfera econômica quanto populacional. No que se refere às políticas públicas,

sofreu ações estratégicas que tinham objetivos a serem alcançados, mesmo que os espaços não

tivessem sido encontrados vazios. Esse processo foi, sem dúvida, marcado pelo encontro e o

conflito étnico14

.

A Serra de Tapirapuã aparece como espaço vasto, transformado em lavoura, destruído

pela ocupação dos não índios, constituindo-se como um marco de referência entre os Paresi,

visto esse acidente geográfico limitar o território dessa nação indígena e outros povos da

mesma etnia. Nessa medida, Tangará da Serra foi marcado por um mesmo ambiente onde se

manifestavam representações diferentes, conforme a realidade cultural, social, econômica,

étnica e política de cada grupo, sendo que cada um defendia suas ideias como sendo as únicas

viáveis (OLIVEIRA, 2004).

Both (2006) destaca a exploração vegetal, a partir do século XIX, como marco

relevante que expressou a dominação das frentes de ocupação sobre o povo Paresi. Para a

extração da seringa e da poaia, a mão de obra indígena foi significativa: “À procura de

diamante e ouro, houve quem se embrenhasse na região do Sepotuba que corta o planalto dos

Parecis; com o insucesso dessa empreitada, passou-se a extração da raiz de uma planta nativa

nas matas ciliares, popularmente conhecida como poaia” (VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p.

462).

Alguns estudos relatam a convivência pacífica entre poaieiros e indígenas na região, o

que nos faz pensar sobre como foi possível essa relação entre povos distintos: índios e não

índios. A esse respeito, podemos conjeturar que a convivência não foi tão conflituosa porque

esse não havia sido o primeiro contato dos indígenas com os não índios. Os Paresi já haviam

pelas condições culturais. Os índios Paresi compõe o que na antropologia denomina- se grupo étnico. Eles se

reconhecem como sendo Halíti, um “povo” uma “gente” em contraste com outros povos por exemplo os Bakairi

ou Nambikwara. O nome Paresi nunca teve qualquer significado para eles e surgiu como uma designação dada

pelos não-índios, pelo imuti . Os índios formaram um grande grupo, e esse foi dividido com a vinda dos

bandeirantes poaieiros na região de Diamantino”. 13

O termo Halíti “pode ser traduzido tanto como gente numa referência explícita ao gênero humano em oposição

aos animais, quanto como povo para indicar uma identidade exclusiva do grupo” (COSTA, 1985, p. 52). 14

Cf. Aruzzo (2012).

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36

sido explorados no desbravamento dos sertões para a implantação das linhas telegráficas, por

isso, apresentavam-se como um povo dócil (MACHADO, 1994).

O extrativismo da ipecacuanha15

, conhecida popularmente em nossa região como

poaia, arbusto nativo da Mata Atlântica, do cerrado e da Amazônia, constituía uma planta de

valor medicinal, tendo sido responsável pelo povoamento do município de Barra do Bugres,

no final do século XIX, do qual Tangará da Serra pertenceu até 1976, quando ocorreu sua

emancipação político-administrativa.

Como a região tinha duas estações bem definidas, verificou-se a alternância e

complementação entre a extração da poaia e da borracha, uma vez que a raiz da poaia era

extraída no período chuvoso, sendo que a seiva da seringueira, no período da seca, quando os

seringalistas utilizavam a mesma mão de obra dos poaieiros.

Nos anos 1940, 1950 e 1960, a poaia chegou a ser a principal moeda de circulação na

região de Barra do Bugres e seu universo populacional não era formado apenas por homens,

algumas mulheres também seguiam, superando muitas vezes o medo da mata, para trazer

alimentos para sua família, pois por algum tempo nessa região era somente com essa raiz que

se conseguia comprar outra alimentação. Os poaieiros, somente extraiam a planta medicinal,

não (re)plantando esse recurso natural que acabou se extinguindo (OLIVEIRA, 2004).

Observa-se que a formação do povoado tangaraense envolveu não apenas a exploração

de recursos naturais, mas também a exploração humana, através de relações conflituosas entre

os povos indígenas e não indígenas, entre os migrantes e os mato-grossenses e entre os

patrões da poaia e os trabalhadores. Conforme relatos de migrantes, no início dos anos 1960,

desassistidos e sem infraestrutura adequada para viver, procuraram outras maneiras para

sobreviver e manter a família. Alguns, mesmo sem experiência, se submeteram, em troca de

alimento, a se embrenhar na mata a procura da poaia com os cuiabanos,16

poaieiros que já

tinham experiência nesse trabalho (AVELINO FILHO apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013).

A poaia era comercializada em Cáceres, pelos patrões da poaia,17

de onde seguia pelos rios

15

Ipecacuanha é o nome científico da erva medicinal que tem diversos nomes populares. Em nossa região ela é

popularmente conhecida como poaia (ASSIS; GIULIETTI, 1999). 16

“[...] não é uma referência apenas aos nascidos ou vindos de Cuiabá, mas é extensivo a todos os mato-

grossenses, servindo para distinguir entre os mato-grossenses e os não mato-grossenses” (ANDRADE, 1999, p.

50). 17

“[...] os financiadores das expedições de exploração, forneciam armas, munições e todos os víveres

necessários, ajudavam também no sustento da família do trabalhador. Ao final do período de extração o poaieiro

normalmente ficava devendo ao patrão, dessa forma gerava-se vínculo e dependência” (ANDRADE, 1999, p.

74).

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37

rumo à exportação. Essa prática continuou até o declínio desse modelo extrativista, pelo fato

de os empresários da poaia perder a hegemonia de mercado, devido ao desenvolvimento de

embarcações movidas por motores de popa e que garantiram a possibilidade de negociação

direta do produto com os exploradores (PEREIRA, 2012).

1.3 No início, Barra do Bugres

Registros históricos esclarecem que, a partir de 1878, tem início o povoamento da

atual cidade de Barra do Bugres, com a chegada dos primeiros não índios, a Família de Pedro

Torquato Leite Rocha, vinda de Cuiabá. Ali edificou um rancho e passaram à prospecção do

recurso nativo e que dispensava replante, a Ipecacuanha.

Observa-se que a poaia foi a primeira vítima dos desbravadores (PEREIRA, 2012). No

decorrer do processo de colonização, outros exploradores se instalaram na região e

descobriram outras potencialidades, como a borracha nativa (látex das mangabeiras), madeira

de lei, ouro e diamante (IBGE, 2014).

No dia 8 de abril de 1896 foi criada a Paróquia de Santa Cruz de Barra do Bugres, com

jurisdição em São Luiz de Cáceres, porém, em 31 de dezembro de 1943, por força do Decreto

Lei nº 545, foi elevada a município.

Nos anos 1950, os chamados picadeiros estiveram requadriculando o espaço, em

atenção aos interesses dos adquirentes de títulos provisórios de terras obtidos junto ao

Departamento de Terras e Colonização – DTC (OLIVEIRA, 2004). Os Serviços Estaduais

de Terra e Colonização eram compostos pelo Departamento de Terras e Colonização

(DTC), criado em 1946, que era responsável pela criação de órgãos setoriais de apoio (a

Divisão de Colonização, Delegacias, Comissões e Agências de Terras e Colonização e a

Divisão de Administração de Colônias); e pela Comissão de Planejamento da Produção

(CPP), criada em 194718

e destinada a orientar a colonização no Estado. Moreno (2007)

esclarece que essas inovações nos serviços de terras foram legadas aos governos

constitucionais, que assumiram o comando do país após a deposição de Vargas, e

complementa:

18

JOANONI NETO, Vitale; PALLOTA, F. P.. Do sertão à fronteira, diferentes possibilidades metodológicas do

uso de periódicos aplicadas ao estudo de casos pelo interior do Brasil. Revista Eletrônica

Documento/Monumento, v. 8, p. 36-49, Cuiabá, 2013.

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O período foi marcado pelo continuísmo das alienações indiscriminadas de

terras e na sua utilização como premiações a favores político-eleitorais. A

política de colonização foi incentivada visando ao rápido incremento do

povoamento e ao aumento da produção com franco favorecimento à

iniciativa privada. O tratamento às questões de terras foi tão tumultuado e

fraudulento que ocasionou o fechamento do DTC em 1966. (MORENO,

2007, p. 103).

Tangará da Serra formou seu território pelo desmembramento dos municípios de Barra

do Bugres e Diamantino. Os dados revelam que 54% das áreas de terras foram destinadas a

descendentes de japoneses que, por sua vez, não efetivaram a posse das terras, por venda dos

títulos (OLIVEIRA, 2004).

Após o loteamento das glebas deu-se o início à colonização do território. As

propagandas de terra, estampadas nas revistas especializadas e nos jornais, foram os grandes

responsáveis pela divulgação desse espaço, apresentado positivamente. A imprensa escrita

apresentou imobiliárias que ofereciam mais do que terras em Mato Grosso, proporcionavam a

possibilidade da aquisição da terra a preços acessíveis, garantindo seu financiamento: “É

comum encontrarmos, nos jornais e revistas especializadas em agricultura da época, anúncios

convidando pessoas a se tornarem fazendeiros em Mato Grosso e, especificamente, na região

de Barra do Bugres” (OLIVEIRA, 2004, p. 44).

A Revista Brasil-Oeste19

circulou mensalmente de 1956 a 1967, sendo que sua

primeira edição datou de janeiro de 1956 e era editada em São Paulo, sendo especializada na

difusão de técnicas agropastoris, na divulgação da conjuntura econômica e de informações

gerais sobre essa região. A Lei 1.713, de 29 de dezembro de 1961, declarou esse periódico de

utilidade pública, pelo governo do estado de Mato Grosso.

19

Cf. SALGUEIRO, Eduardo de Melo . A revista Brasil-Oeste e o governo João Goulart: a questão da reforma

agrária. Antítese (Goiânia), v. 02, p. 125-139, 2012; SALGUEIRO, Eduardo de Melo . O maior projeto em prol

de Mato Grosso: uma análise da revista Brasil-Oeste (1956-1967). Diálogos (Maringá. Impresso), v. 15, p. 711-

716, 2011.

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39

Figura 4 Lei que declara como utilidade pública a Revista Brasil Oeste em Mato

Grosso

Fonte: Arquivo Público de Mato Grosso (1961)

A revista enfatizava as supostas condições que os colonizadores iriam encontrar em

Mato Grosso, além de apresentar imobiliárias vendendo terras mato-grossenses em diversos

escritórios espalhados por São Paulo, Paraná e Cuiabá. Conforme Oliveira (2004, p. 45), a

revista destacava que:

Os territórios de Mato Grosso estão isentos de fenômenos meteorológicos

nocivos; o teor da terra favorece promissoras safras cerealíferas; o Estado

apresenta boas vias de comunicação, como estradas e transporte; posição

geográfica de Mato Grosso com expansão comercial para grandes centros e

para a Bolívia, Paraguai e Argentina; em território mato-grossense, a

cafeicultura encontra condições ecológicas favoráveis, o que explica o

aumento considerável das lavouras de café.

A Imobiliária Presidente, com escritório em São Paulo e Cuiabá, anunciava na Revista

Brasil-Oeste venda de terras em Mato Grosso, qualificando-as como as melhores do Brasil e

oferecendo excelentes planos de financiamento. Ao lado de todas essas facilidades, o

escritório apresentava Mato Grosso como um território favorecido pelo clima, por ser livre de

geadas, além de projetar que, dentro de pouco tempo, Mato Grosso seria o estado mais rico do

Brasil, em virtude da qualidade de suas terras, visto ser abundante em matas onde florescia

madeiras, como perobas, cedros, angelins, figueiras e outras madeiras de lei. Seu solo era

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propício para a plantação de café, cereais, batata, hortelã, borracha, entre outros. A imobiliária

anunciava a venda de pequenos e grandes lotes, oferecendo ao comprador todas as garantias.

Alertava sobre o exemplo do Paraná, onde as terras estavam esgotadas, estimulando o

comprador a fazer o melhor negócio, comprando terras em Mato Grosso, já que ele seria o

futuro celeiro do Brasil.

Oliveira (2004, p. 56) transcreve uma propaganda sobre a venda de terras do

município de Barra do Bugres: “Torne-se fazendeiro em Barra do Bugres!” Informa que a

distância do município até Cuiabá era apenas 180 km e que o município estava se tornando

pioneiro da cafeicultura no Norte de Mato Grosso, além de dizer que o local era servido por

numerosos cursos d’água e por terras de alto teor (roxas e massapés). Informava ainda a

chegada de fazendeiros em busca de melhor oportunidade para um recomeço de vida, e que as

glebas para venda podiam conter área de 100 a 1.000 alqueires, e eram comercializadas a

preços vantajosos e com facilidade de pagamento.

Observa-se, através das propagandas, grande destaque para a fertilidade do solo, a

oportunidade de uma vida melhor, a fartura e a conquista da própria terra, portanto, fazer

negócio era garantia de sucesso e realização. Isso nos faz refletir sobre quais representações

foram construídas a partir do que foi oferecido. O que significou essas representações no

imaginário das famílias? Como reagiram diante das promessas de facilidades e sucesso?

O olhar de Certeau (1994) a respeito do conceito de lugar e de espaço auxilia a

compreensão das representações sobre o processo migratório durante o período de

colonização de Tangará da Serra, considerando a multiplicidade de vivências delimitada pelos

diferentes pertencimentos sociais, políticos, étnicos, religiosos e familiares. Entre lugar e

espaço, Certeau (1994) apresenta uma distinção:

Um lugar é uma ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem

elementos nas relações de coexistência. Aí se acha portanto, excluída a

possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei

do “próprio”: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros,

cada um situado num lugar “próprio” e distinto que define. Um lugar é

portanto uma configuração instantânea de posições. Existe espaço sempre

que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a

variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo

animado pelo conjunto dos movimentos que daí se desdobram. Espaço é o

efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o

temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas

conflituais ou de proximidades contratuais. [...] diversamente do lugar, não

tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio”. Em

suma, o espaço é um lugar praticado. Assim a rua geometricamente definida

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por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres. (CERTEAU,

1994, p. 201-202).

Portanto, o lugar sonhado pelo migrante é diferente do lugar praticado por ele e entre o

sonhado e o praticado constitui-se o espaço vivido, construído a partir das singularidades de

cada um, ou seja, do seu lugar próprio. O espaço torna-se habitável pela significação que

possui, portanto, o “espaço é um lugar praticado” e evidencia “[...] a importância dessas

práticas significantes como práticas inventoras de espaços” (CERTEAU, 1994, p. 188). “[...]

Tanto as noções de lugar (espaço próprio), como de espaço (lugar praticado) participam de

um mesmo processo. [...] ‘neste lugar que ao mesmo tempo é espaço’ [...] é possível perceber

o quanto as práticas cotidianas do homem ordinário estavam e se faziam presentes”

(ROHDEN, 2012, p. 87).

A família de brasileiros Euclides Borges Leal foi uma, dentre outras famílias, que

adquiriu glebas no mesmo período dos japoneses, em 1953, a exemplo de Júlio Martinez

Benevides, Joaquim Oléa e Fábio Liserre adquiriram gleba e fundaram a Companhia

Imobiliária Tupã para a Agricultura (CITA), da cidade de Tupã-SP, e implantaram o

loteamento a que denominaram Cidade Tangará da Serra. A CITA, em 1969, passou a

denominação de SITA, Sociedade Imobiliária de Tupã para a Agricultura (OLIVEIRA, 2004).

Devido às dificuldades em localizar suas glebas no sertão barrense, os picadeiros

tiveram, primeiramente, a incumbência de preparar um local adequado para o pouso de um

avião, para que os proprietários das glebas pudessem traçar o mapeamento do cerrado e a

cartografia da região com mais facilidade e precisão. O Padre José Egberto (1967, p. 6) relata,

no Livro Tombo da reitoria de Nossa Senhora Aparecida, que, em 1955, o Sr. Joaquim

Aderaldo chegou a Tangará da Serra com o engenheiro Domingos Lima, e seu agrimensor

Joaquim Lima que, com seus camaradas fizeram picadas desde o município de Barra do

Bugres até a cabeceira do córrego Estaca. No período de dois anos, eles abriram o campo de

aviação e demarcaram os lotes Santa Fé, Santa Cândida, Esmeralda e Juntinho.

Em 1956, Kubo Sakuyoshi, procurador e administrador das glebas de terrados

japoneses, chegou na localidade com uma equipe, com o objetivo de conferir a medição das

glebas de acordo com o que fora estabelecido pelo Departamento de Terras e Colonização.

Diante da constatação de que uma das glebas existentes no mapa cartográfico não mais existia

de fato, que o seu proprietário, residente no Paraná, já havia vendido esse título e que os

novos proprietários, que vieram para ocupar a gleba, se apossaram de terras entre duas outras

glebas, ele defendeu os proprietários originários das “glebas invadidas”, solicitando a saída

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dos que delas se apossaram ilegalmente. A disputa pela terra gerou tensões e conflitos,

resultando no assassinato de Kubo Sakuyoshi, quando estava a caminho do município de

Barra do Bugres (OLIVEIRA, 2004).

Não se pode negar que conflitos e violência entre índios, colonizadores, posseiros e

fazendeiros fizeram parte do período de expansão dessa fronteira que teve, entre muitos

motivos, os possíveis erros de demarcação das propriedades por transporte aéreo e a venda

duplicada de títulos (VILALVA; MIYAZAKI, 2013).

Desse modo, Tangará da Serra, situada na região Sudoeste de Mato Grosso, surgiu

como cidade no período de expansão da fronteira agrícola, a partir da efetivação de um

projeto de colonização privada, em parceria com o governo de Mato Grosso.

1.4 Cidade projetada pela colonizadora

Os loteamentos rurais e urbanos da cidade de Tangará da Serra foram organizados pela

colonizadora SITA. O projeto foi idealizado em 1962, pelo arquiteto Américo Carnevali, na

cidade de Tupã, interior paulista, onde residiam os proprietários da colonizadora. Carnevali

não conhecia pessoalmente o local. A planta foi elaborada de acordo com as informações do

proprietário, com o objetivo de atrair, com maior facilidade, compradores para as glebas. No

projeto estavam em destaque possíveis riquezas agrícolas que o solo seguramente ofereceria:

Quanto aos desenhos de plantas existentes no projeto da cidade, [...] foram

desenhados a pedido dos proprietários para dar mais ênfase aos vendedores a

fim de mostrar aos possíveis compradores a excelência e fertilidade das

terras. O sentido é puramente comercial impressionando aos adquirentes.

(CARNEVALI apud OLIVEIRA, 2004, p. 76).

O projeto de Tangará da Serra foi minuciosamente elaborado, visto servir de base

comercial para a colonizadora.

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Figura 5 Projeto de Tangará da Serra – MT

FONTE: Sala de Memória de Tangará da Serra – MT 20

Na planta é possível apreender o conceito de funcionalidade que orientaria a vida

naquele espaço: ruas largas, 16 lotes divididos em 168 quadras, como ponto inicial estaria o

Centro Cívico. As avenidas Paraná, São Paulo, Brasília e Mato Grosso foram nominadas de

acordo com o cenário político que as originou, referenciando a Marcha para o Oeste

(OLIVEIRA, 2004).

20

Foi criada pela Lei Municipal nº 3.103, de 14 de abril de 2009, e está vinculada à Secretaria Municipal de

Educação e Cultura, tendo natureza histórica.

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No projeto original, as ruas foram numeradas com a intenção de, posteriormente,

homenagear os cidadãos que trabalhassem pela cidade. No traçado das avenidas e ruas já

estava planejado onde seriam as edificações: mercado, farmácia, hospital, rodoviária, praças,

escolas, cinema, estádio de futebol, posto de saúde, delegacia, aeroporto e outros.

Conforme relato de Wanderley Martinez, o trabalho de colonização da SITA iniciou

pelo plano urbano, somente depois foram realizadas as demarcações da periferia do

município, composta de chácaras, seguidas de sítios e, mais distantes, as fazendas

(OLIVEIRA, 2009).

Observamos que a estratégia da colonizadora para a venda das glebas rurais e para o

desenvolvimento da cidade foi destacar atrativamente o espaço urbano, suas futuras

edificações e organização, além de premiar com um lote urbano os compradores de glebas

rurais, que assumiriam o compromisso de construir uma casa em prazo previamente

estabelecido. Sem dúvida, tratava-se de proposta interessante e estimulante aos olhos de

muitos migrantes:

A estratégia descrita é comum nas áreas de colonização recente do Brasil,

pois a Colonizadora, ao incentivar o crescimento da cidade, utilizando-se

destes mecanismos, transferia, em um curto espaço de tempo, aquilo que era

de sua competência, ou seja, a realização e a manutenção da infra-estrutura

dos novos projetos de colonização, para o poder público, pois as cidades

cresciam e logo se emancipavam política e administrativamente. Por outro

lado, deve-se salientar, conforme os relatos orais, que a infra-estrutura inicial

de Tangará da Serra se efetivou muito mais com as ações coletivas de

lavradores recém-chegados, do que de ações da colonizadora ou dos poderes

públicos municipal e ou estadual. (OLIVEIRA, 2009, p. 73).

Maria Biazóli Rodrigues (apud OLIVEIRA, 2009, p. 71), a primeira parteira que

chegou no final da década de 1950, relata que “[...] tinha os piquetes fincados nos quarteirão

onde ia ser as construção, as coisa, o cemitério, as coisa, porque não tinha nada. Tinha um tal

Benedito que era o gerente, gerenciar, não sei o que ele iria gerenciar, não tinha nada, só se

fosse mosquito(sorriu), mas ele estava ali para dominar, finca um piquete aqui, finca outro ali.

Ele falou a cidade será aqui”. O relato demonstra que o espaço urbano estava quadriculado

conforme o projeto urbano de Tangará da Serra, embora sem planejamento estrutural,

desmatamento, entre outros.

O projeto planejado para Tangará da Serra e seus habitantes, pela colonizadora

privada, não se concretizou totalmente, devido a própria maneira de fazer das pessoas, por

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não ter existido o planejamento esperado, e o novo espaço foi constituído a partir do que

estava ao alcance na ocasião. Conforme relato de Lindalva Dantas Porfírio:

Nossa! No ano que nós chegamos... se tivesse dinheiro, papai não tinha é

deixado descer essa mudança de tão aborrecido que ele ficou. Mas ele só

contou isso pra nós bem depois, porque... Ele veio por informação e sabendo

que tinha uma terra fértil. Mas ele não sabia que tinha essa falta de tudo. Ele

achou que tinha conforto, mas não tinha. O corretor disse que tinha, mas não

tinha. Ele levou os cereais mostrando o que produzia. Então papai veio

pensando nessa terra fértil, nessa terra boa. Que eles levaram fotos, um

álbum mostrando. (PORFÍRIO apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 43).

Terezinha Vieira Feitosa relata que compraram as terras porque no Paraná, onde

moravam, trabalhavam na terra de outros, cuidando da plantação de café e arroz. Porém, a

geada, característica da região, aniquilava a plantação. Seu marido ficou sabendo das terras

em Tangará através de vendedor e viajou para conhecê-las. Apesar de não ter habitantes e

tampouco estrada, ele gostou e comprou dez alqueires para sua família e, mais quinze

alqueires para dividir entre o sogro e dois cunhados: “Chegando aqui, menina, e o sacrifício

para pegar essas terras que a firma garantiu que ia dar as terras cortadas, não cortou foi nada”

(FEITOSA apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p.55).

Conta ainda que continuaram trabalhando para os outros até conseguir abrir o lote e

plantar café. Aos poucos, compraram uma vaca de leite, um cavalo, até um carrinho de pneu,

e criavam porcos e galinhas para vender. Até que certo dia o marido desanimou novamente

com a firma (SITA), pois não conseguia a escritura do lote e resolveu vende-lo: “Eles

prometeram que faziam tanta coisa, depois não arrumaram foi nada, eu não vou mais querer

essa porcaria, eu vou é vender” (FEITOSA apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 55).

Percebemos o quanto os migrantes sonharam com a propriedade da terra, a ponto de

abrir mão do conforto, deixando o local de procedência e trazendo toda a família para

conquistar o tão sonhado pedaço de chão. A confiança depositada na “firma” assim

chamavam a colonizadora SITA, se perdeu, abrindo espaço para a desconfiança, decepção e

desilusão, ao ponto de abrir mão do principal que vieram ali buscar, a terra.

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1.5 Depois da Serra de Tapirapuã, enfim, a terra tão sonhada!

Levo dentro do peito

Lembranças, histórias, amor

Um canto sofrido, marcado

Estrada sem rumo, sem flor

Do que vale o céu ao luar

Eu parado e o mundo a girar

Meu pai um dia me disse:

"meu filho cê há de lutar,

Na lida sofrida da vida

Tem luar, tem luar21

Renato Teixeira

Escrever sobre o movimento de migração durante o período de colonização de

Tangará da Serra significou entrelaçar a prática interpretativa à prática social, ou seja,

possibilitou a historicidade do percurso entre os lugares próprios até os espaços

transformados, evidenciando o que se denomina de artes de fazer, que “[...] constituem as mil

práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção

sócio cultural” (CERTEAU, 1994, p. 41). Espaço, este sonhado pelos migrantes oriundos de

diferentes estados do Brasil, que deixaram para trás amigos, familiares, suas moradas, suas

vivências; mas trouxeram consigo lembranças, histórias, amor, a cultura, as crenças, a

esperança de uma vida melhor, a experiência de vida no campo e construíram um novo

espaço de formas de fazer, na expectativa de que na lida sofrida da vida tem luar, como

afirma o compositor Renato Teixeira.

Os primeiros migrantes que andaram pela estrada sem rumo, sem flor chegaram a

partir de 1959, oriundos dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e da região Nordeste

do Brasil, e logo foram se organizando com muita dificuldade no novo espaço. Formaram um

povoado no território que, àquela época, pertencia ao município de Barra do Bugres.

(OLIVEIRA, 2004). Essa movimentação deu nascimento ao loteamento das glebas Santa Fé,

Esmeralda e Juntinho, que, anos depois, graças ao grande fluxo migratório proveniente de

representações positivas divulgadas através da imprensa pela colonizadora e pelo governo

estadual e federal, ganhou a toponímia de “Cidade de Tangará da Serra”, ainda adstrita a

Barra do Bugres.

21

Letra da música Na Lida de Renato Teixeira.

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Motivados a melhorar de vida, famílias partiram de suas origens em busca da

realização de sonhos, colocando na bagagem a promessa de um futuro próspero, mesmo sem

saber o que encontrariam pela frente. Ansiosas pela posse da terra e pela possibilidade de um

futuro promissor, a reocupação desse espaço de terra fértil superou as dificuldades da viagem,

pois para se chegar ao local tinham que ultrapassar a Serra de Tapirapuã, enfim, a terra tão

sonhada:

Aí, Virgem Maria, sofremos bastante na viagem. O caminhão não subiu a

serra, nós subimos a pé, não tinha estrada. Virgem Maria, quando chegamos

em Tangará não tinha nada. Meu marido desanimou, queria ir embora. Falei:

“agora não vou mais. Agora vim, vou ficar aqui. Mas sofremos bastante.

(FEITOSA apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 53).

Em 1961, chegaram a Tangará o adolescente Francisco Avelino Filho (12 anos), sua

irmã Lindalva Dantas Porfírio (7 anos) e as senhoras Terezinha Vieira Feitosa e Maria Biazóli

Rodrigues, que assim descreveram aquele momento: “[...] não existia um boteco, armazém,

não existia farmácia, não existia nada. Era mesmo sertão, era cru duma vez. E chegamos aqui

tinha onze famílias morando. Nós completamos doze famílias (AVELINO FILHO apud

VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 25).“O começo aqui foi feio, minha filha. Foi feio mesmo,

põe feio nisso (riso). Eu sofri que nem uma égua, que Deus me perdoe” (RODRIGUES apud

VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 69).

Podemos observar que os relatos sobre a chegada à terra estão permeadas de

sofrimento, dificuldades, inexistência das coisas prometidas, tristeza e decepção, pois, quando

passaram pela Serra de Tapirapuã depararam com o sertão, a mata virgem, onde teriam que

começar do nada...

Conforme Chartier (2011), identificar as representações implícitas nas fontes

documentais significa compreender as práticas construídas socialmente e, ao mesmo tempo,

suas representações:

[...] penso que não existe história possível se não se articulam as

representações das práticas e as práticas da representação. Ou seja, qualquer

fonte documental que for mobilizada para qualquer tipo de história nunca

terá uma relação imediata e transparente com as práticas que designa.

Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades e

destinatários particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória para

entender as situações ou práticas que são o objeto da representação.

(CHARTIER, 2011, p. 16).

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Portanto, pensar o movimento migratório em direção a Tangará da Serra a partir da

História Cultural significa ler e analisar o processo de construção de sentidos e representações

coletivas, bem como suas práticas, considerando sempre os interesses do grupo que as forjou.

A representação construída no imaginário de cada um, a partir das promessas feitas

através das propagandas, agora estaria em reconstrução: “Apesar das dificuldades encontradas

pelos pioneiros, eles tinham a esperança de que um dia tudo isso fosse recompensado pela

própria natureza do lugar, ou seja, acreditavam na fertilidade do solo” (PEREIRA, 2012, p.

41).

Francisco Avelino Filho fala da dificuldade de viver isolado, sem contato com outras

pessoas e famílias, valorizando ou ressignificando o companheirismo, a parceria e a acolhida,

necessários para a superação dos desafios. Para o senhor Francisco, a coletividade representou

força para lutar, para vencer as intempéries da vida. Apesar de toda dificuldade do ambiente

acima da serra, sem condições de acesso adequado a esse ambiente, precisaram transpor seus

próprios limites e criar táticas para vencer os desafios:

Era uma dureza. Naquela época, olha, a gente ficava às vezes até um mês,

até sessenta dias sem chegar ninguém aqui. Se um dia chegava uma

mudança aqui era a maior festa para nós. Ia para a rua. [...] vindo mais um

para sofrer em Tangará (riso). Aí a gente... acolhia! As pessoas se sentiam

bem, acolhidas. Mas só que, quando eles viam que a cidade não tinha

conforto, desanimavam. Teve família que voltou, só descansou da viagem e

voltou no mesmo caminhão embora. Quem tinha condições de voltar... É,

umas duas famílias naquela época. Que não tinha estrada da serra pra cá. A

própria serra era feita na marreta, machado e foice, e aqui em cima do

cerrado, para-choque de caminhão é que fez a estrada. Aquelas arvezinhas

pequenas, desviando das grandes, as pequenas derrubando no pára-choque.

[...] uns 10 anos para subir a primeira patrola. Porque não subia na serra,

não tinha como vir para fazer estrada, porque na serra tinha muita curva e

aquelas emprensadas de pedra. O chassi dos caminhão comprido também

não subia. Deixava a mudança lá, tinha que ir um caminhão pequeno, tinha

que ir lá baldear. Depois começou a chegar mais gente. Quem tinha

caminhão pequeno pegava baldeação da serra pra cá. (AVELINO FILHO

apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 28).

As pessoas demonstraram sua capacidade de fazer, desfazer, refazer, transpor. Assim,

“[...] é possível identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma realidade

social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 1990, p. 16). Podemos, como

historiadores, analisar os processos com os quais se constrói sentido e fazer a leitura das

práticas sociais da nova configuração de espaço, através da relação entre os diferentes

migrantes, agora, já ocupando o mesmo espaço e construindo relações.

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O movimento migratório para Tangará da Serra seguiu a rota do café, sendo

caracterizado como rural-rural, pois era composto, majoritariamente, por famílias de

lavradores que já labutavam no campo, na região de sua procedência (OLIVEIRA, 2005).

1.6 “Quando chegamos, não existia nada... Era mesmo sertão, era cru duma vez”

(AVELINO FILHO apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 25)

[...] a cidade é um lugar que se fez onde

havia só natureza, rios, árvores e sol.22

Renato e Chico Teixeira

Os migrantes recém-chegados sentindo-se desassistidos, por encontrar somente

natureza, rios, árvores e sol. Não tendo a quem recorrer, se organizavam em mutirão para

tentar amenizar ou resolver alguns problemas de ordem estrutural, como a construção de

estradas, pontes, escola, igreja, entre outros. Conforme vários relatos orais, as famílias

migrantes se uniam em prol de melhores condições de vida. É o que percebemos através

desses depoimentos:

Eu lembro quando nós fizemos mutirão para ligar a estrada daqui a Afonso,

para ter essa ligação saindo para Arenápolis. Aí o pessoal fez um mutirão.

Descia final de semana para lá e aos poucos, cada final de semana fazia

isso, até que ligaram a estrada do Afonso no Corre Água. [...] Quando ligou

a estrada, o pessoal do Afonso fez uma festa para o pessoal que estava

trabalhando na estrada. Ficaram alegres porque eles sabiam que não eram

mais fim de linha. E a gente era...e as pessoas que não tinham condições de

sair por Nova Olímpia, por ali já tinha jeito de sair alguma condução. Já

fazia a ligação para Arenápolis. Isso foi três anos depois que abriu

Tangará. A base de 64. (AVELINO FILHO apud VILALVA; MIYAZAKI,

2003, p. 34).

Sobre a Serra de Tapirapuã e a primeira igreja, Francisco assim expressou:

Na época que começaram a fazer mutirão para quebrar mais aquelas

pedras, para ter mais facilidade para os carros subir, depois de uns quatro

anos, aí já tinha mais gente... cada família mandava um ou dois. Se a família

fosse maior mandava duas pessoas, mas cada família tinha que mandar um

para ficar três dias ali, enlarguecendo com marreta, quebrando as pedras

para facilitar para os carros subir. Na marreta. Na marreta para poder

enlarguecer. Porque os primeiros carros que subiam, acabavam de subir a

serra, rachavam os pneus no meio. Porque bico de pedra... Então eles

tinham que dar uma retocada, quebrar para facilitar. Fizeram muito

mutirão para fazer aquilo ali, no braço. Era o único meio, o único recurso

que tinha. [...] tinha um rebolado de mato [...] nós em mutirão dedicava dia

de sábado [...] com machado e foice derrubamos aquele pedaço e

22

Letra da música Pai e Filho, Renato Teixeira e Chico Teixeira.

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começamos a fazer a primeira igreja. (AVELINO FILHO apud VILALVA;

MIYAZAKI, 2003, p. 35, 47).

A imagem, a seguir, mostra onde foi construída a primeira igreja católica de Tangará

da Serra, a Capela Nossa Senhora Aparecida, e o dia em que foi celebrada a Santa Missa pelo

Pe. Antonio, que veio a Tangará da Serra pela primeira vez, conforme consta no Livro Tombo

da Reitoria de Nossa Senhora Aparecida (1965):

Figura 6 Celebração da Santa Missa pelo Pe. Antonio no local onde as famílias migrantes

construíram a primeira igreja católica no início dos anos

1960

Fonte: Acervo particular da família Avelino Dantas

As imagens que se seguem estampam os espaços interno e externo da primeira igreja

católica de Tangará da Serra, construída pelos migrantes no início dos anos 1960. Constata-se

a participação intensa das crianças e dos adultos durante as celebrações religiosas.

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Figura 7 Espaço interno da primeira igreja católica de Tangará da Serra, Capela Nossa

Senhora Aparecida, construída pelas famílias migrantes no início dos anos 1960

Fonte: Sala de Memória de Tangará da Serra-MT

Figura 8 Espaço externo da primeira igreja católica de Tangará da Serra, Capela Nossa

Senhora Aparecida, construída pelas famílias migrantes no início dos anos 1960

Fonte: Sala de Memória de Tangará da Serra-MT

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Oliveira (2004, p. 79) destaca que “deve-se salientar, conforme os relatos orais, que a

infraestrutura inicial de Tangará da Serra se efetivou muito mais por as ações coletivas de

lavradores recém-chegados, do que de ações da colonizadora ou dos poderes públicos

municipal e ou estadual”. Os migrantes que formaram o povoado, ao se unir, dividiam as

decepções, as doenças, a falta de estrutura, de alimento, de tudo e transformavam tudo isso em

força para conseguir vencer os enormes obstáculos para conseguir melhores condições de

vida, que vieram buscar. Como disse Antônio Alves Moreira (apud VILALVA; MIYAZAKI,

2013, p.115), “Pois é, a gente imaginava no mínimo um patrimônio. Imaginava assim, um

Tangará, mas Tangará só tinha o nome, algumas casas de sapé, de tabuinha”. E continua:

Apesar do número pequeno, era muito bom, a gente era muito unido, todo

mundo como irmãos, não tínhamos divergências, mesmo porque não tinha

como fazer nada. Você ia bagunçar como? Quem era louco de fazer alguma

coisa? A polícia éramos nós mesmos, nós que éramos o povo, nós que

éramos polícia, nós que éramos tudo. (MOREIRA apud VILALVA;

MIYAZAKI, 2013, p.116).

Podemos dizer que a última frase do depoimento do senhor Antônio retrata o

significado coletivo que os migrantes, no período de colonização, construíram sobre o espaço

que reocuparam. Suas lutas coletivas e escolhas foram traçando o que se tornaria mais tarde o

município de Tangará da Serra.

Em vários depoimentos que retratam o período de colonização, os migrantes

descrevem o misto entre esperança, luta e conquistas, como se os acompanhassem sempre as

palavras do poeta, na lida sofrida da vida tem luar, tem luar:

Foram muitos os caminhões pau-de-araras que transportaram mudanças de

várias famílias para Tangará da Serra. Iludidas ou não, estas famílias

vieram individualmente ou em grupos de vizinhos, de amigos, de parentes ou

de patrões e empregados, para habitar e construir suas vidas neste espaço

de Mato Grosso. (OLIVEIRA, 2009, p. 68).

Caminhões que demoraram oito, quinze e até vinte dias de viagem até o destino, que

chegaram abrindo estrada com o para-choque no meio de cerrado, carregando famílias

inteiras, “[...] pessoas que tinham os corações divididos entre a saudade do lugar que

deixavam e a vontade de vencer e melhorar seu futuro no lugar em que agora iriam

estabelecer” (OLIVEIRA, 2009, p. 68). Algumas famílias chegaram com caminhão velho até

Nova Olímpia, e de lá subiram a Serra a pé, o que chegava a durar três dias:

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As crianças também vinham, uai. Vinham andando devagarzinho, quando

cansava a gente punha um pano e deitava eles. Eles descansavam. [...]

Dormia no mato, no chão. Cochilava, ninguém dormia, ficava com medo das

onça. [...] Ah, vichi, onça. Na serra tinha onça, cada rastro de onça...

(RODRIGUES apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 76).

Pessoas que compraram um pedaço de terra da colonizadora SITA vinham na frente,

como diz Moreira:

Na verdade, toda pessoa que tinha sítio, vinha na frente, como chamam o

precursor, vinha na frente, fazia a derrubada assim, dos matos, como fez o

pai da Lolinha. Fazia um barraco, aí depois ia buscar a mudança. Às vezes

fazia, às vezes não tinha nem barraco, vinha e ficava debaixo de uma lona,

ou então improvisava, folha de pacova, folha de coqueiro, sei lá.

(MOREIRA, apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 119).

Assim, “[...] foi chegando, chegando, entrando gente; um fazia uma casinha de pau,

outro fazia de palha e aí foi formando, mas foi dureza. Vichi, para formar uma cidadinha,

aqui, foi custoso” (MOREIRA, apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 75). Traziam na

bagagem grande quantidade de alimentos, e o caminhão era lotado de mercadoria. No início,

carne, somente de caça e verduras, folhinhas do campo. Com o passar do tempo foram

chegando famílias com animais na mudança, era galinha, porco, marreco, pato e até vaca de

leite. A esse respeito, Terezinha Vieira Feitosa (apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 62)

ilustra: “A gente comia carne de bicho. Matava tatu, anta, matava paca. Matava e trazia,

salgava. Secava e a gente ia comendo. Verdura não existia, a gente ia no campo, aí tinha uns

pés de uma planta que podia comer. Catava aquelas folhinhas, cortava para fazer refogadinho

para comer, dizia que era verdura (risos)”.

Fato curioso é que, como não havia, ainda, animal de criação, também não havia leite.

Aprenderam com os cuiabanos poaieiros a se utilizar de uma árvore chamada sorveira, que

dava leite. E foi com o líquido vegetal que alimentaram os filhos pequenos, entre o medo de

ficarem doentes e a necessidade de alimentação, encontraram maneiras inovadoras de

superação. A primeira parteira, Maria Biazóli Rodrigues, afirma que seu último filho foi

criado com o leite de árvore do mato:

Depois de dois anos morando aqui, nasceu o outro, a raspa do tacho. Foi

criado tudo com o leite de árvore do mato. Tirava, fervia, depois coava bem

coadinho e dava para eles. Os cuiabanos bebiam cru para eu ver, porque eu

tinha medo de dar para eles, que eu nunca tinha dado para eles com medo

de matar. Sei lá se era veneno. O cuiabano falou: “Não, dona, eu vou beber

tudo lá na árvore para a senhora ver que não é veneno, é leite mesmo, é

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alimento, é uma medicina boa, para os meninos da senhora, não ficar com

fome, com falta das coisas, tão novinhos”. Aí tiravam lá da árvore e bebiam

tudo, os cuiabanos. Agora para os meus filhos, eu fervia. Tirava lá, eu

fervia, misturava um pouco de água, ficava mais fraco. Fervia bem

fervidinho, botava mel de abelha, nem açúcar tinha. A gente tinha muita

abelha aqui, tirava e guardava aquele mel, aquele mel que servia para

adoçar. Chama sorveira. O nome dela é sorveira, dava umas folhonas que

nem figueira, dessa grossura a largura dela, dá uma ventania que quebra à

toa, madeira podre. O risco que ela tinha era que nem daquela seringa,

risca aí o leite caía assim, que nem tira do peito da vaca. A gente parava um

caneco assim, riscava, parava, depois misturava metade leite, metade água,

cozinhava e dava para os filhos. Vê que tristeza! Para as mães não deixar os

filhos morrer de fome o que que faz. Coitada de quem é mãe (risos).

(RODRIGUES, apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 72).

Francisco Avelino Filho também relata a sensação, vivida por ele e seu irmão, ao

encontrar a árvore que dava leite:

Há um fato importante que eu também quero contar(riso). Quando

chegamos aqui não tinha criação nenhuma. Aí tinha uma madeira, uma

árvore chamada sorveira. Essa sorveira tem leite. E o leite dela é gostoso.

Só que quando você para de tomar, ela seca, aí o lábio da gente fica

grudando um no outro. Como a gente não tinha de onde tirar o leite, não

tinha onde comprar também, aí... Esses cuiabanos, esses poaieiros

ensinaram para nós. [...] A gente cortava meio despontado, eu e meu irmão.

Chegava e ficava mamando o leite (riso). Tomando o leite ali. E era gostoso.

Só que ficava grudando nos lábios depois. Porque gado veio chegar só

depois de três anos, a primeira vaca para matar para o povo, só depois de

três anos. (AVELINO FILHO apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 38).

Diante das situações vivenciadas, as pessoas buscaram novas maneiras de viver no

ambiente, povoado inicialmente por poucas famílias, que, por não ter opção de voltar para

trás, ao superar o primeiro obstáculo, a Serra de Tapirapuã, muniram-se de coragem para

enfrentar a nova realidade, visto que ainda nem sabiam que viria pela frente. Sem estrada,

seguiam as marcas de antas e pacas e, com a foice em punho, foram cortando a estrada para

chegar ao “nada”, como eles mesmos relataram. Quando anoitecia, estendiam lonas e cobertas

no cerrado e ali dormiam as crianças e as mulheres, porém os homens apenas cochilavam,

com medo, à espreita de animais ferozes que poderiam estar por perto.

Na lembrança ficou a casa que moraram no local de origem migratória e suas

vivências; depois da serra avistaram um lugar desconhecido e novo, a mata, que teriam que

desbravar. Em cada novo grupo de migrantes que chegava, uns incentivavam os outros que,

desiludidos com o que encontraram, visto ser totalmente diverso do que veiculara, as

propagandas da colonizadora e o governo do estado de Mato Grosso. A esperança por

melhores condições de vida para toda família, aos poucos, transformou-se em luta para

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sobreviver naquele lugar não planejado, e nem esperado por eles. No decorrer dos anos foram

vivendo e saboreando as pequenas conquistas e melhorias, como as denominaram.

Cada caminhão de mudança que chegava, carregado com crianças, mulheres, homens,

animais domésticos, plantas, mobílias, lápis e cadernos, era uma alegria, mas ao mesmo

tempo estampava tristeza, enfim, um misto de sentimentos contrários: alegria, porque o

povoado estava crescendo, mas também tristeza, porque já sabiam o que iriam passar. Sem

assistência médica, sem escola, sem armazém, sem ter o que comprar e muitas vezes como

comprar e sem ter o que vender, tinham que criar, recriar, inventar e reinventar práticas

cotidianas ainda não vividas. Nesse fazer e desfazer, aprender e reaprender produziram

cultura e novos saberes.

As experiências não eram fáceis desde a passagem por Barra do Bugres, quando,

recepcionados por habitantes barrenses, foram incentivados a permanecer por ali, pois, atrás

da serra se escondiam muitos perigos: “[...] desenhavam aos olhos dos forasteiros um

ambiente desolador, a Serra era descrita como intransponível, as terras como imprestáveis,

habitadas por animais selvagens e infestadas por insetos insuportáveis” (ANDRADE, 2009, p.

45).

Conforme relato de Francisco Avelino Filho (apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p.

46-47), quando foi desencadeada a próxima eleição municipal de Barra do Bugres, se pensou

na possibilidade de Amando Barbosa ser candidato: “Ele falou para o pessoal: ‘Eu posso sair

candidato, mas Tangará tem que se unir, se não se unir e todo mundo votar em mim não

adianta eu sair porque’... [...] Nós participamos desse momento. Fomos de casa em casa

pegando o sim das pessoas” O senhor Francisco, complementa:

Nós vamos encarar Barra do Bugres e Nova Olímpia. Com certeza o

candidato de Barra do Bugres vai pegar aquela região toda ali. Ele era

inteligente, viu mais ou menos a população que já tinha aqui e falou para o

povo: ‘A população que nós temos aqui se todos tiverem vontade para votar

em mim, aí eu saio candidato. Se for unido, se não for unido não adianta’.

Aí o povo fez esse compromisso com ele. E ele fez o compromisso também

com o povo, se ele fosse prefeito, se ganhasse para prefeito em Barra do

Bugres, ia passar Tangará a município, ia lutar e antes de sair de lá,

desmembrava Tangará de Barra do Bugres. Barra do Bugres não tinham

interesse que Tangará crescesse. Eu lembro as famílias... Nós mesmos

quando passamos em Barra do Bugres para vir para Tangará eles

assustaram, eles assustaram as famílias que vinham: ‘o que vocês vão fazer

lá num lugar daqueles, sertão’. De fato, era mesmo um sertão, mas a terra

aqui é que cativava o povo em vir pra cá. A terra era boa. Então o povo

aventureiro, trabalhador vinha mesmo porque sabia que a terra, o tipo da

terra, era boa. Só que aquele povo ali, eles faziam de tudo para o pessoal se

alojar por lá. Nova Olímpia, Barra do Bugres não queriam que Tangará

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desenvolvesse. E aí o que aconteceu? O povo se uniu, o povo fez esse

compromisso com ele. [...] Eu lembro que quando ele ganhou na Barra, o

pessoal foi todo de carro até na serra e subiu todo mundo junto. Foi aquela

coisa linda. Foi a maior festa. Trouxe também aqueles caras, os

paraquedistas. Todo ano no aniversário da cidade ele vinha com os

paraquedistas. (AVELINO FILHO apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p.

47-48-49).

A união do povo, mais uma vez demonstrada como força de luta, acreditando em dias

melhores, resultou na vitória do candidato apoiado pelos migrantes da localidade: “A disputa

política entre partidários do município de Barra do Bugres e de Tangará da Serra era

significativa, o que resultou na geração de alguns obstáculos para o processo de emancipação

política” (OLIVEIRA, 2012, p. 139). Passaram-se alguns anos até o momento da grande

conquista da população, a emancipação político administrativa de Tangará da Serra, pela Lei

5.687, de 13 de maio de 1976, comemorada, como é possível verificar na imagem, com

entusiasmo pela população.

Figura 9 População tangaraense comemorando a emancipação do município

Fonte: Acervo particular de Thaís Barbosa, primeira prefeita eleita em Tangará da Serra

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Oliveira (2012) destaca que os jornais O Estado de Mato Grosso e Diário de Cuiabá

noticiaram a expressividade da população tangaraense durante a festa de emancipação, além

de dar ênfase ao discurso de um representante da empresa colonizadora SITA, Antonio

Bueno, que falou sobre “[...] a conquista da liberdade, da união da população de Tangará da

Serra em torno de objetivos comuns [...] mesmo que a população tenha sido proveniente de

diversos estados da Federação, mostrou-se unida, e a emancipação deu-se graças à vontade

coletiva” (OLIVEIRA, 2012, p. 140). Percebe-se que o discurso do representante da empresa

colonizadora destacou a luta dos migrantes por um objetivo comum, ao que Chartier (1990)

explicita que as representações individuais podem se tornar representações coletivas,

considerando que:

[...] as representações são variáveis segundo as disposições dos grupos ou

classes sociais; aspiram a universalidade, mas são sempre determinadas

pelos interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão

sempre presentes. As representações não são discursos neutros: produzem

estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e

mesmo a legitimar escolhas. (CARVALHO, 2005, p. 149).

Suas palavras também exprimem implicitamente a comemoração da colonizadora,

pois, a partir da emancipação do município, não seria mais cobrada e exigida responsabilidade

da empresa.

Durante a festa de emancipação, os jornais também registraram a presença do

governador do estado de Mato Grosso, José Gracia Neto, de vários secretários de estado que

compunham a comitiva do governador, deputados federais e estaduais, dentre os quais José

Amando Barbosa Mota, representante do município na Assembleia Legislativa Estadual, além

da presença do prefeito municipal de Barra do Bugres, Hitler Sansão, e de grande número de

cidadãos tangaraenses. No mesmo ano de emancipação do município ocorreu a eleição para

prefeito municipal e vereadores (OLIVEIRA, 2012).

A possibilidade de pesquisar tanto fontes escritas, iconográficas, orais ou obras

memorialísticas, possibilita ao historiador confrontar ou cruzar fontes, analisar, interpretar,

conhecer e compreender as artes de fazer e reinventar dos atores da história, pressuposto para

a invenção do cotidiano: “A memória, na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta,

procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de forma que

a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF,

2003, p. 471).

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Nesse sentido, “[...] a pesquisa tentou recuperar as práticas ordinárias e, portanto,

quase invisíveis, que normalmente não deixam vestígios escritos, mas apenas traços de

memória” (MONTENEGRO, 2010, p. 147). Aqui foram colhidas algumas lembranças das

pessoas que viveram no período inicial de colonização recente em Mato Grosso, cuja “[...]

história é ainda lembrança viva, pois muitos dos que a fizeram ao longo desse período ainda

nela residem” (VILALVA; MIYAZAKI, 2003, p. 17).

Suas memórias, suas histórias de vida, seus olhares acerca do sonhado e do vivido,

serão recontadas inúmeras vezes, e nos auxiliarão a desvendar e perceber a construção da

história de Tangará da Serra.

1.7 O lugar denominado Reserva23

: “espaço rural, no rural”24

.

[...] uma noite no sertão é bela. Quando o céu refulge com cintilações

que as cidades não conhecem, a inspiração voa longe sem seguir

intento nem formar realizações; à maneira dos pássaros de longo voo,

adeja como imóvel, mas não está parado para poder de momento

sulcar grandes espaços. Raras contudo são essas contemplações, ai

vem o sono, que encerra as pálpebras, fecha o caminho no espírito e

prepara o corpo para as fatigas da viagem de amanhã. Que sonos se

dormem no sertão: Tão doces!

Visconde de Taunay 25

A visão colonial de sertão26

se estendeu no imaginário das pessoas, tanto de forma

negativa, visto de constituir em espaço de atraso, deserto, inculto “[...]‘vazio’ de gente e de

23

Na busca por conhecer a origem do nome da localidade da Reserva, através de relatos orais, sabe-se que “O

que o meu pai passo pra nós é que Reserva, era porque era assim... era uma reserva, meu pai comprou da SITA

e não tinha documento, era só um contrato, saiu o documento com um certo tempo... “ (GALHARDO.

Depoimento, 2014); “Era uma área de reserva da própria SITA, porém iniciaram a comercialização dos lotes

antes da regularização da área, acredita-se que inicialmente esta reserva seria usada para resolver pendências

de medição ou de exigências legais” (CAPUCHO. Depoimento, 2014).

24

A localidade de Tangará da Serra pertencia ao município de Barra do Bugres, portanto, até a conquista da sua

emancipação (1976), os espaços urbano e rural eram legalmente considerados como rural. 25

Alfredo d’Escragnolle Taunay (futuroVisconde de Taunay), nasceu no Rio de Janeiro em 1843 e faleceu

também no Rio de Janeiro em 1899. Esposo da Princesa Isabel, militar, politico e escritor, teve sua primeira obra

publicada nos anos de 1860. Mesmo em romances mostrou sua experiência real através do seu contato com

uma cultura que não era sua. TAUNAY, Visconde de. Viagem de regresso de Matto Grosso à corte. (1867).

Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, 1869, Tomo 73, p. II, 46 p. 52.

26 Como era denominada a região de Mato Grosso desde o período imperial, pela distância geográfica,

econômica e cultural que separavam Mato Grosso de regiões mais civilizadas, sem comunicação, sem atividade

produtiva capaz de prover suas necessidades, no entanto enorme território a ser explorado considerando as

grandes riquezas naturais. Ver: GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Mato Grosso: o estigma da barbárie e a

identidade regional. Textos de Historia (UnB), Brasília, v. 3, n.2, p. 48-81, 1995. GALETTI, Lylia da Silva

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civilização, áreas sertanejas, mas [...] a literatura brasileira povoou os variados sertões que

construiu com personagens colossais, com a descrição de suas naturezas, poderosos símbolos,

marcando com eles forte, profunda e definitivamente, o imaginário brasileiro” (XAVIER,

2006, p. 55).

Nesse sentido, é possível, através dos depoimentos, perceber, nos relatos das famílias

que migraram para a comunidade da Reserva, um pedacinho no interior das “largas vastidões

do longínquo Mato Grosso” (TAUNAY, 1921, p. 160), na ressignificação dos seus atores:

“foi difícil, difícil, difícil mesmo... a gente era feliz, o povo era bom, amigo” (LACERDA, Z.,

Depoimento. Tangará da Serra, 12/07/2014), como descreve também outro migrante:

Ah, plantei tanto, colhi tanto, aquele tempo foi sofrido. Plantou muito arroz,

plantou café, mas pra colher não tinha preço, era chuva, chovia a semana

inteirinha, colhia aquele arroz debaixo da água aí não tinha preço. Aí vinha

caminhão do estado de São Paulo, trazia mercadoria pra gente comer e

levava o arroz, nós pagava as mercadoria com arroz. Difícil, vixi, nossa...

[…] de tão ruim que era até gostoso (risos). (GALHARDO. Depoimento,

Tangará da Serra, 06/04/2014).

Percebe-se que novas representações sobre a vida rural foram se revelando, ao longo

do tempo, no cotidiano dos migrantes da comunidade da Reserva, pois as dificuldades e

limitações impostas pela falta de estrutura na localidade, somadas à saudade dos parentes,

amigos do local de origem, foram cedendo espaço para novas representações sobre a vivência

na comunidade rural, como nas palavras do romancista Taunay (1869, p. 52): “à maneira dos

pássaros de longo voo, adeja como imóvel mas não está parado para poder de momento sulcar

grandes espaços”.

Sobre a vida rural, Canário (2008, p. 36), comenta que “[...] as regiões rurais dispõe de

um conjunto de valores culturais e ambientais que lhe são intrínsecos, mas relativamente

“invisíveis” no quadro de uma lógica de mercado”.

Os migrantes, inicialmente incentivados pelas propagandas divulgadas pela

colonizadora privada SITA, pelo governo de Mato Grosso e pelas imobiliárias que

destacavam a fertilidade do solo e a possibilidade de sua aquisição a preços acessíveis para

pequenos produtores rurais, adicionou-se a possibilidade de estímulos e favores fiscais na

aquisição de terras, pois, “objetivavam atrair pequenos proprietários do Sul do país para

Guedes. Sertão, Fronteira, Brasil. Imagens de Mato Grosso no mapa da civilização. Cuiabá: Entrelinhas;

EsUFMT, 2012. v. 1000. 309p.

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produzirem alimentos e outros produtos para o mercado interno e para a exportação”

(ABREU, 2001, p. 71). No decorrer dessa movimentação, os próprios migrantes chamavam

parentes e amigos, que ficaram no local de origem, para vir povoar os novos espaços do

imenso sertão mato-grossense, e, à medida que os caminhões de mudanças chegavam,

trazendo várias famílias e seus parcos pertences, eles iam se acomodando e se organizando

como era possível, até conseguir seu próprio lugar. A imagem a seguir data período de

mudança de três famílias oriundas do estado de São Paulo, dentre elas, a família de Iracema

da Silva Machado Casagrande:

Figura 10 Caminhão que transportou a mudança de três famílias do estado de São Paulo até o

lugar denominado Reserva que pertencia à localidade de Tangará da Serra/ outubro de 1963

Fonte: Acervo particular da família de Iracema da Silva Machado Casagrande

A fotografia foi registrada, por um dos amigos, durante o percurso da longa viagem,

pois ele manifestou desejo de conhecer o lugar recomendado por parentes e amigos. Mesmo

tendo sido registrada durante uma das paradas para descansar e se alimentar, sua revelação

ocorreu no estado de São Paulo, em 1965. Quando Antonio Casagrande em visita ao amigo

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em São Paulo, trouxe, na bagagem para a Reserva, a foto para o cunhado Desisério

Casagrande. Na imagem não aparecem todas as pessoas que participaram da viagem, as

mulheres ficaram de fora, como também algumas crianças. O esposo de Iracema Casagrande,

Desidério Casagrande, é o homem de chapéu, da extrema esquerda para a direita. Ele foi o

motorista que conduziu o caminhão que era de propriedade do seu cunhado, Antonio

Galhardo, que vinha em outro caminhão com sua família e a família de outros empregados.

As mulheres, crianças e homens viajaram em cima do caminhão, na parte coberta com

lona, entre camas de molas, armários, mesas, cadeiras, máquinas de costura, objetos pessoais,

enfim, entre o pouco que conseguiram transportar. No percurso, pararam muitas vezes, pois o

cansaço, o calor e a fome exigiam que elas acontecessem de preferência onde tivesse rio e

sombra para descansar e refrescar o corpo.

Essa situação representa não somente a realidade destas três famílias, mas a

experiência vivenciada por inúmeras delas, que apostaram tudo na possibilidade da conquista

de terra própria e fartura para a família, deslocando-se do local de origem para a região

Centro-Oeste do Brasil, nesse caso, especificamente para o estado de Mato Grosso, a partir

dos anos 1960. Durante a movimentação migratória, sob as lentes de políticas

desenvolvimentistas implementadas pelo governo federal, as situações experienciadas pelos

migrantes tiveram particularidades e especificidades, conforme a região colonizada e as

representações individuais e coletivas (CHARTIER, 1990), materializadas através de

maneiras de fazer, táticas (CERTEAU, 1994) que revestiram o cotidiano dos migrantes de

cada região.

Com o olhar voltado para a região Sudoeste do estado de Mato Grosso, a localidade de

Tangará da Serra e, mais especificamente, o espaço rural denominado Reserva pudemos

recolher diversas histórias relatadas durante as entrevistas.

Ivonete Maria Oliveira conta a experiência vivenciada do lugar de origem até a

localidade da Reserva:

Quando a gente veio de São Paulo, viemos num pau de arara, dez mudança

num caminhão, vinha trazendo, cavalo, porco, galinha, cabrito, fez assim

um tampado e ponho os animais, por cima ponho madeira, a gente pois o

colchão ali, aquele monte de criança e a gente vinha naquele sofrimento [...]

teve que vende coisa na estrada porque era muita coisa e o caminhão não

tava aguentando. Quando chegou na serra era só aquele picadão, todo

mundo desceu do caminhão e seguiu a pé. Tinha uma vozinha com a gente,

ela não conseguia andar, então um homem pegava ela nas costas andava

uns dez metros, dava para o outro que andava mais uns dez metros e assim

foi até subi a serra. Quando subiu a serra a gente foi no caminhão de novo e

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conseguiram passar o caminhão também que era difícil. Quando chegamos

onde nós ia morar, só tinha aqueles barraquinho e muito sofrimento, eu

tinha 7 anos, mas lembro bem. (OLIVEIRA. Depoimento. Várzea Grande,

10/08/2014).

Diante dos olhos, apenas mato na Reserva, “não tinha nada, só tinha a casinha onde

seu Antonio Galhardo morava e um botequinho dele, que tinha uns alimento que ele vendia,

meu pai tinha vindo conhecer o lugar [...] mas aquela vontade era tanta de possuir uma

terra, de vim pra cá, conseguir alguma coisa que acho que ia ser bom” (OLIVEIRA.

Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

Em meio ao sofrimento externado pelos migrantes, a esperança em adquirir a própria

terra era o que os mantinham firmes, acreditavam em dias melhores.

Dorvilha Casagrande Galhardo, esposa do senhor Antonio Galhardo, migrantes vindos

de Monte Castelo-SP, em outubro de 1963, ilustra o momento em que ficaram sabendo sobre

as terras em Tangará da Serra:

O motivo da gente chegar em Tangará conhecer Tangará é um conhecido,

um colega do Antônio, do meu marido. Ele veio no Tangará, conheceu

Tangará, gostou. Puro mato, sertãozão, era um sertãozão. Chegou lá no

estado de São Paulo e convenceu ele, vamo conhecer Tangará, vamo

conhecer Tangará que a terra é boa, lá é bom, e nós vamo pra lá. Aí o

Antônio acompanhou, veio. (GALHARDO. Depoimento. Tangará da Serra,

26/06/2014).

As famílias migraram de espaços rurais, do lugar de origem, motivados pelas

representações positivas sobre os “espaços vazios” no Centro-Oeste do país. Portanto, pode-se

afirmar que Tangará da Serra, pertencente, à época, ao município de Barra do Bugres, foi

colonizada por uma “migração rural-rural e teve o [...] primeiro fluxo migratório”

(OLIVEIRA, 2009, p. 57) nos anos 1950, dando segmento ao impulso iniciado durante a “Era

Vargas”, com a “Marcha para o Oeste”, consoante com o processo de ocupação e com as

políticas desenvolvimentistas nacionais e regionais. Num segundo momento, o fluxo

migratório datou de finais dos anos 1960 e inícios dos anos 1970, durante o governo militar,

através da política de expansão da fronteira agrícola27

. O Estado passou a incentivar a

exportação e canalizou recursos para a agricultura, com o objetivo claro de substituir a

agricultura de subsistência e diversificada pela monocultura, agricultura comercial de

exportação (ABREU, 2001). Nesse período, intensificou-se a migração de fazendeiros, na sua

27 A Superintendência de Desenvolvimento do Centro Oeste (Sudeco) utilizou o conceito “fronteira agrícola” para descrever

o avanço do capital no Centro-Oeste, considerado um “vazio demográfico”. Nesse sentido, a “fronteira agrícola” está ligada à

incorporação de novas áreas para introdução de atividade agrícola para produção comercial de alimentos (ABREU, 2001,

p.65).

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maioria oriunda dos estados do Paraná e do Rio Grande do Sul, mais conhecida por migração

mecanizada, correspondendo ao Plano Nacional de Desenvolvimento28

, que “[...] significava o

fortalecimento do capital monopolista alicerçado na indústria multinacional, bem como na

substituição da agricultura de subsistência, em favor da agricultura comercial, para, neste

sentido, ampliar o mercado nacional” (ABREU, 2001, p. 80).

No período correspondente ao primeiro fluxo migratório, as famílias de pequenos

produtores rurais venderam o que tinham e partiram de suas origens com a expectativa de

possuir a sua própria terra no Centro-Oeste, buscando a realização de sonhos. Acreditavam na

possibilidade de um futuro promissor para seus filhos a partir da reocupação desses espaços

de terra fértil, mas, sobretudo, na aquisição da própria terra, pois grande parte das famílias

migrantes trabalhava de empregados em sítios e fazendas no local de origem.

As famílias que adquiriram terra no lugar denominado Reserva, espaço rural em

Tangará da Serra, vivenciaram experiências iguais as das famílias que ficaram no espaço

urbano, pois, como se tratava do período de colonização, tudo ainda estava por ser feito,

construído, criado, e como localidade pertencente jurídica e administrativamente ao município

de Barra do Bugres, Tangará da Serra era sertão rural. As dificuldades eram, praticamente, as

mesmas, pois os dois espaços não possuíam estrutura física, obrigando todos trabalhar para

transformar o sertão em espaço de prosperidade, e todos – moradores do espaço urbano

quanto dos espaços rurais – seriam, de alguma maneira, beneficiados.

Dentre as famílias que chegaram, algumas optaram por ficar no lugar destinado a ser

espaço urbano, sendo que outras tantas seguiram para o espaço demarcado como rural, porém,

como a localidade de Tangará da Serra pertencia a Barra do Bugres até a conquista da sua

emancipação, urbano e rural eram, genericamente, considerados ambiente rural. As famílias

que ficaram nos espaços demarcados como rurais encontraram ainda mais dificuldades,

devido ao fato de se posicionarem em pequenas propriedades distantes uma das outras. Na

chegada, avistavam um grande sertão e muitas vezes um pequeno cortado na mata, marca de

onde iriam fixar residência.

Dorvilha Casagrande Galhardo conta que quando sua família chegou ao sítio que seu

marido havia comprado na Reserva, “era tudo mato, dois alqueire e meio aberto em volta

tudo mato, [...] eu vim do sítio pra Tangará dentro do mato. [...] tinha dois alqueire e meio

derrubado, que ele veio na frente, ele derrubou. [...] aí já deixou um rapaz pra plantar”.

Armaram lona para ficar com a família até conseguir construir “a casinha, rapidinho com

28 MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO GERAL. Plano Nacional de Desenvolvimento(PND) – 1972-

74. Brasília: Diário Oficial da União, 17/Dez/71, p.9.

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lasca, de tabuinha.” O sítio era distante do espaço urbano onde tinha mais movimento de

pessoas, “acho que era nove quilômetros pra vim a pé. Era a pé, vinha e voltava. Não tinha

estrada, era picada dentro do matão. No meio do matão, no meio da lama e no escuro, usava

lampião”. Em seu relato, Dorvilha lembra da união das pessoas, que uns ajudavam os outros,

pois todos estavam na mesma situação. Depois de construir sua casa o senhor Antonio

Galhardo “foi derrubar mato pra plantar, fazer poço pra ter água. Aí passou aquele ano, no

outro, Antônio falou: tem as crianças, tem as crianças dos vizinho, eu tenho que construir

uma escola, tem que fazer de pau a pique, porque pra onde que vai, né?” (GALHARDO.

Depoimento. Tangará da Serra, 26/06/2014)

Foi em 1965 Antonio Galhardo, ao lado das famílias migrantes se movimentaram para

construir a escola, “Aí foi onde que ele conseguiu fazer a escolinha. Se juntaram e

construíram a escolinha!” (GALHARDO. Depoimento, Tangará da Serra, 26/06/2014).

Diferentes famílias vivenciaram o que Certeau (1994) chama de “táticas”, ou seja,

buscaram maneiras de viver e fazer em comunidade para suprir, de alguma maneira, as

necessidades do grupo, visando alcançar o que ele veio buscar.

Em entrevista, Antonio Francisco da Silva conta que chegou ao lugar denominado

Reserva, na localidade de Tangará da Serra, em janeiro de 1973, contando apenas sete anos de

idade, além de seus pais e quatro irmãos. Vindos de um lugar chamado Leomar, na região de

Iporã, no Paraná, a família de trabalhadores rurais daquela região paranaense também recebeu

o convite de amigos e conhecidos, que já estavam morando na região mato-grossense, para ali

se estabelecer e adquirir seu próprio pedaço de chão, já que não tiveram essa oportunidade no

Paraná.

Antonio conta que enfrentaram três dias e três noites de ônibus “[...] na Serra, nós

desceu do ônibus, que era de terra, não tinha asfalto, não tinha nada, aí nós desceu do ônibus

pro ônibus subi a Serra. Nós chegamos aqui, daí tinha um acampamento na praça da Bíblia

onde chegava os outro ônibus e ficava acampado ali até seguir para a Reserva” (SILVA.

Depoimento, Tangará da Serra, 17/08/2014).

Conforme os relatos de Antonio, naquele tempo só chegava à Reserva a pé, de Jipe ou

de carro de boi, nem carroça passava. Percebe-se que, mesmo dez anos depois, as condições

de estrutura física no espaço rural ainda continuavam muito similares, porém, o número de

famílias que chegou na Reserva aumentou bastante, como registrou o Padre José Egberto

Pereira, no Livro Tombo da Reitoria de Nossa Senhora Aparecida (1967, p.12;17), “no dia 14

de outubro de 1966 a existência de 54 famílias na comunidade e no dia 5 de fevereiro de 1967

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a existência de 102 famílias. O que demonstra o crescimento de aproximadamente 50% de

aumento de famílias na comunidade da Reserva em menos um ano”.

Oliveira (2004) apresenta em seu livro, intitulado Famílias e natureza. As relações

entre famílias e ambiente na colonização de Tangará da Serra-MT29

, dados demográficos

referentes ao levantamento realizado pelo Padre José Aleixo Kunraht30

, em 1966, em alguns

espaços rurais ligados ao centro urbano de Tangará de Serra, denominados como Água

Branca, Sítio Recanto, Reserva, São Paulino e Vila Progresso. Dentre eles, a comunidade da

Reserva aparece com o maior número de habitantes, 263 moradores, enquanto São Paulino

com 127, Sítio Recanto e Água Branca com 44 e Vila Progresso com 178 moradores.

Fazendo o cruzamento dos dados levantados pelo Padre José Aleixo com as

informações registradas pelo Padre José Egberto, no Livro Tombo, acrescidos de vários

depoimentos de migrantes, percebe-se que a comunidade da Reserva foi um dos primeiros

espaços rurais povoados nos anos 1960, além do mais habitado na região, tendo sido o

primeiro espaço rural a oferecer escola para a comunidade. Até a instalação de escolas em

outros espaços rurais, as crianças das comunidades vizinhas, como: Queima Pé, Km 11, Km

12, Pé de Galinha, Córrego das Pedras, entre outros, frequentavam a Escola Rural Mista

Municipal Santo Antonio, na comunidade da Reserva.

No Livro Tombo ficou registrado (1967, p. 12), no dia 14 de outubro de 1966 pelo Pe.

José Egberto, que, durante a visita do Pe. José Aleixo à comunidade da Reserva, “ficou

resolvido que na Fazenda Santo Antonio fosse construída a capela de Santo Antonio”. Relata

também que encontraram na comunidade numerosas famílias sem assistência espiritual,

“dentre 54 famílias foram encontradas 4 famílias protestantes e uma espírita” ( LIVRO

TOMBO, 1967, p.12). Neste mesmo dia, foram realizadas algumas confissões e dois

batizados, durante a Santa Missa celebrada pelo Pe. José Aleixo.

29

Livro publicado pelo autor em 2004, resultado da pesquisa histórica realizada nos anos de 2000 e 2001 para a

obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas e

Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso.

30 Conforme Oliveira (2004, p. 93), “o Pe. José Aleixo Kunraht realizou, no dia 12 de outubro de 1966, um

levantamento em diversas ruas do povoado, e esse trabalho foi continuado no dia 15 de outubro, no povoado e

nas propriedades vizinhas. […] o padre foi acompanhado de Expedito Lopes dos Santos, funcionário da SITA e

do professor José Nodari,, ambos prestando bons serviços, auxiliandfo o levantamento”. O mesmo autor informa

que o recenseamento realizado pelo Pe. José Aleixo estão registrados no Arquivo da Missão Prelazia de

Diamantino.

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66

Ao analisar as fontes documentais, percebe-se, entre os moradores desse espaço rural,

a forte presença de fiéis católicos, que, inclusive, deram o nome de santos aos sítios que

adquiriram, Santo Antonio foi o nome dado ao sítio de Antônio Galhardo e para a escola e

capela que almejaram construir, mas que por motivos desconhecidos não o foi. Nossa Senhora

Aparecida, era o nome do sítio de Desidério e Iracema Casagrande, entre outros.

A comunidade aumentou rapidamente com o fluxo de migrantes na região, porém, se

movimentavam com dificuldades diante da falta de estrada para acesso, da comunidade da

Reserva, com o espaço urbano. As dificuldades motivaram várias famílias a se mudar para a

cidade alguns anos depois de sua chegada. Dorvilha Casagrande Galhardo conta que seu

marido defendia a ideia de que “as crianças vão crescendo, têm que estudar e arrumar um

‘servicinho’ pra me ajudar" (GALHARDO. Depoimento. Tangará da Serra, 26/06/2014), pois

a escola do sítio oferecia estudo somente até a quarta série. Reforça a senhora Dorvilha

“naquele tempo, criança podia trabalhar” (GALHARDO. Depoimento. Tangará da Serra,

26/06/2014).

Já Antonio Francisco da Silva (Depoimento, 2014) comenta que em 1973 “toda a

lavoura que nós fez no ano nós transportava tudo no carro de boi, é... a estrada era difícil de

passar, no tempo de chuva que durava seis meses só passava carro de boi.” (SILVA.

Depoimento. Tangará da Serra, 17/08/2014).

Depois da chegada ao pedaço de terra tão sonhado pela maioria, derrubar o mato e

preparar a terra era tão importante quanto construir sua moradia. As primeiras plantações

foram de arroz, feijão, milho e mandioca e, aos poucos, entre amigos, parentes e novos

vizinhos, iam tecendo redes de apoio, força e colaboração, chegando a plantar roças maiores e

produtivas, inclusive a produção perene, como a do café.

Famílias inteiras trabalhavam na lavoura. As mulheres, além dos afazeres domésticos,

contribuíam na labuta diária da roça, bem como as crianças que, ao chegarem da escola,

trocavam de roupa e iam direto ajudar os pais. Conforme relatos orais, nos meses de plantio e

de colheita, o serviço aumentava bastante, então, os filhos faltavam à escola para poder

ajudar. Percebe-se que para as famílias migrantes o trabalho era sobrevivência, por isso,

sobrepunha à escolarização, pois a necessidade de manter a família se antepunha ao saber ler

e escrever, já que muitos pais trabalhadores, mesmo analfabetos, sobreviviam às adversidades

da vida.

De sol a sol, envolvidos na lida diária da lavoura, em meio a ferramentas de trabalho, a

terra fofa, mudas e sementes, famílias inteiras dedicavam seus esforços na produção de

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alimentos para a sua subsistência e para o pagamento da terra adquirida. À tardinha, voltavam

para casa e, à luz de lamparina ou lampião, as crianças faziam as tarefas escolares, brincavam,

tomavam banho, ouviam estórias dos adultos ou até mesmo música e notícias pelo radinho de

pilha, trazido entre os objetos da mudança, “ai vem o sono, que encerra as pálpebras, fecha o

caminho no espírito e prepara o corpo para as fatigas da viagem de amanhã. Que sonos se

dormem no sertão: tão doces!” (TAUNAY, 1869, p. 52).

Zilda Dias de Souza Lacerda conta que chegaram à Reserva com muita chuva, no dia 9

de setembro de 1971, com seus seis filhos e o marido, “[...] época de muita chuva, viemo

plantar o arroz quase no final de outubro, depois de descoivara31

os troncos e o mato pra

pode planta. Plantamos arroz, plantamos feijão e plantamos muita mandioca no mesmo ano

que chegamos” Relata ainda que “os filhos ajudavam em tudo, desde pequenos lidavam na

roça. O povo Casagrande tinha lavoura de muita coisa sabe, eles mandava a gente busca

porque não tinha pra quem vende, tinha muita banana, rama de mandioca, eu e meus filho ia

busca” (LACERDA. Depoimento. Tangará da Serra, 12/07/2014).

Na comunidade da Reserva, as famílias plantaram roças de arroz, feijão, milho,

mandioca, amendoim e café, além de pastagem para o gado (OLIVEIRA, 2012). Depois que

começaram a lavoura, isso logo que chegaram, tiveram fartura de alimentos para a família,

“[...] no ano seguinte da nossa chegada, nós fizemos sacada de polvilho, eu e a minha sogra,

farinha e polvilho. No forno a lenha, nós fazia cada bolo de polvilho... o fartura, que beleza!”

(LACERDA. Depoimento. Tangará da Serra, 12/07/2014).

“O café produzia muito bem. Os maiores plantios da época de café foram para o lado

da Reserva. Antes de chegar no Sepotuba, depois do Pé de Galinha, começa um baixadão. A

terra mais apropriada para o café é onde tem os baixadões, que é mais úmido (AVELINO

FILHO apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 45).

As floradas do café na comunidade da Reserva deixavam a paisagem mais bonita em

meio à mata, o que pode ser observado na imagem a seguir:

31

Termo utilizado pela depoente que quer dizer cortar os pedaços de troncos queimados e o mato com a foice

(LACERDA. Depoimento, 2014).

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Figura 11 Florada do café no sítio Nossa Senhora Aparecida, propriedade de Desidério e

Iracema Casagrande, na comunidade da Reserva nos anos 1960

Fonte: Acervo particular de Iracema da Silva Machado Casagrande

Diante da florada do café, homens e crianças exibem os pés floridos, produzindo

frutos que plantaram com as próprias mãos anos anteriores. Percebe-se que a vestimenta

utilizada pelos homens era calça comprida, camisa de manga longa, calçado fechado e

chapéu, para se proteger do sol escaldante. As crianças vestiam calça curta, camisa de manga

curta e chinelo. A bicicleta já estava presente como meio de transporte de algumas famílias.

Iracema relata, com orgulho, que, no sítio Nossa Senhora Aparecida, de sua

propriedade, seu marido chegou a plantar 20 mil pés de café. No início trabalhavam somente

ele e os filhos mais velhos, no entanto, com o passar dos anos tiveram a colaboração de

empregados. E complementa: “o cheiro da florada do café tem cheiro delicado... de perfume,

aroma gostoso ficava no ar pela manhã...” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da

Serra, 02/11/2014).

Depois de colhido, o café é lavado e peneirado na caixa apropriada, antes de colocá-lo

para secar no terrerão32

que aparece ao lado da caixa de café. Depois de seco, ele é ensacado e

32

Espaço de cimento apropriado para a secagem do café antes de ser ensacado para a venda.

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69

levado para a túlia33

até ser vendido. Na imagem a seguir, os trabalhadores parecem jovens e

usam calça e camisa curtas e chinelo nos pés, para facilitar no trabalho de lavagem do café,

além do boné ou chapéu na cabeça, acessório indispensável na região. As crianças e jovens

faziam esse trabalho de lavar, peneirar, espalhar o café para secar e ensacar, com

tranquilidade, pois já estavam acostumados nessa labuta.

Figura 12 Lavagem do café no sítio Nossa Senhora Aparecida

Fonte: Acervo particular de Iracema da Silva Machado Casagrande

Pode-se perceber como o sítio de Desidério e Iracema Casagrande foi totalmente

construído pela família e empregados, após a chegada deles no espaço. Ao lado da caixa de

café, aparece a túlia, pequeno barracão onde guardavam o café até ele ser vendido, e também

onde guardavam as ferramentas, sacarias, enfim os objetos de trabalho. Num primeiro plano

aparecem três casas, que, conforme informações de Iracema, tinham cinco cômodos, a sala, a

cozinha, dois quartos, e uma despensa para acomodar a família dos empregados.

33

Barracão onde é colocado o café até ele ser vendido.

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70

Figura 13 Casa do Álvaro no sítio Nossa Senhora Aparecida, na comunidade da Reserva nos

anos 1960

Fonte: Acervo particular de Iracema da Silva Machado Casagrande

A imagem anterior é a casa de Álvaro, o filho mais velho de dona Iracema e Desidério,

e sua família, esposa e duas filhas, na época. Um terreiro de chão batido contornava a casa,

além do arvoredo onde as crianças brincavam todos os dias. À frente, o cafezal encantava no

período da florada e, mais adiante, o pasto e a mata compunham o horizonte.

Observa-se que as casas eram construídas seguindo o mesmo padrão ou modelo, o que

diferenciava era o seu tamanho. Para sua construção, da túlia e demais edificações do sítio

Nossa senhora Aparecida, foram utilizadas madeiras retiradas do próprio sítio, beneficiadas na

serraria do Joaquim Aderaldo, proprietário da primeira serraria em Tangará da Serra, sendo

que as telhas eram feitas por eles mesmos, de tabuinha.

Pode-se dizer que as imagens retratam o que foi o dia a dia de anos de trabalho de

várias famílias da região, que não mediram esforços comprar a terra própria. As fotos foram

registradas por um cunhado de Iracema Casagrande, que morava em São Paulo, mas que a

todo final de ano visitava a família na comunidade da Reserva.

Ali, o futebol e os bailes, ao som do sanfoneiro, foram práticas de lazer que integraram

o espaço social da comunidade. A partir de 1972, reuniram-se alguns moradores e formaram

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um time de futebol para representar a comunidade, nomeado como “Reserva” e era dirigido

por Antonio Sanfoneiro e o Chiquito (SANTOS, 2007).

Domingo era um dia especial para toda a comunidade, dedicado ao descanso da

família, dia de assistir a Celebração Eucarística ou o culto, mas também dedicado ao lazer,

quando a comunidade se reunia no campo para assistir aos jogos. Como outras comunidades

também tinham o seu campo de futebol, marcavam disputas entre as comunidades, evento que

era até noticiado no jornal Folha de Tangará, para que toda a população pudesse acompanhar.

Ao lado do campo tinha um “salãozinho coberto de sapé “[...] quando terminava o jogo ia

dança, tinha sanfoneiro, era uma maravilha” (SILVA. Depoimento. Tangará da Serra,

17/08/2014).

Pela imagem a seguir pode-se acompanhar as notícias sobre o resultado dos últimos

jogos, na época, como também a agenda dos próximos, onde o time da Reserva aparecia.

Fonte: Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral de Tangará da Serra – NUDHEO-TS

Figura 14 Nota informativa sobre o esporte no jornal Folha de Tangará da Serra, 06/01/1975

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Um dos jogadores da época, Salvador José de Freitas, em entrevista para a

pesquisadora Juliana Gonçalves dos Santos (2007), discorreu sobre as vitórias alcançadas pelo

time Reserva, explicando ainda que, para o time participar de partidas fora da comunidade,

seus integrantes eram transportados na carroceria de caminhão, entusiasmados e ansiosos pela

partida e, principalmente, esperançosos na vitória (SANTOS, 2007).

O esporte aparece entre as poucas opções de lazer, não apenas na comunidade da

Reserva, mas nas diversas comunidades que compunham a localidade de Tangará da Serra,

representados pelos seus times que fizeram crianças, homens e mulheres vibrar de emoção

nos campos de futebol improvisados.

Durante os dias da semana, algumas famílias se reuniam para rezar o terço e, no

sábado, as crianças tinham um tempinho a mais para brincar depois dos afazeres domésticos,

ou da lida na lavoura. Geralmente, uma vez por mês, o Padre ia celebrar a Santa Missa, mas

como na comunidade da Reserva não tinha igreja, ela era celebrada na escola. Constata-se,

através dos registros no Livro Tombo da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, a insatisfação do

Padre José Egberto Pereira com as dificuldades que enfrentava para chegar até as

comunidades, muitas vezes a cavalo ou com a sua bicicleta, únicos meios de transporte que

possuía para assistir religiosamente as famílias (LIVRO TOMBO, 1967). Com relação à

comunidade da Reserva, o Padre afirma que “embora não tenha condução a comunidade está

sendo atendida da melhor forma possível, [...] no dia 17 de setembro de 1967, às 9h, houve

primeira comunhão durante a celebração da Santa Missa” (LIVRO TOMBO, 1967, p. 21).

No início da colonização, não era com frequência que o Padre José Egberto celebrava

a Missa na comunidade devido à dificuldade de locomoção, no entanto, a comunidade

participava do culto que era ministrado por Dona Iracema Casagrande, que, além de

professora, era catequista. Depois que construíram a Igreja na comunidade, no Km 12,

aumentou o número de pessoas que ministravam culto.

Assim, parece-nos que a comunidade era unida, e dia-a-dia buscava novas formas de

convivência harmônica e com menos sofrimento. Entre os moradores, destacaram algumas

pessoas que assumiram lideranças na comunidade. Dona Iracema Casagrande foi uma dessas

lideranças que, além de assumir com responsabilidade a função de professora, mesmo tendo

apenas a 4ª série primária, foi catequista de crianças, preparando-as para receber a Eucaristia,

e ministrante de culto na escola, práticas que, aliadas ao exemplo de boa mãe, esposa e

vizinha, constatado através dos depoimentos, resultaram na conquista do respeito e confiança

do povoado.

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Antônio Galhardo era cunhado de Iracema e um dos primeiros migrantes a adquirir

terra naquele espaço rural, foi eleito vereador na primeira eleição após a emancipação

político-administrativa de Tangará da Serra, pleito que ocorreu no dia 15 de novembro de

1976, ocasião em que foram eleitos nove vereadores, Antônio Galhardo, Antônio Alves

Moreira, Ari Torres, Vicente Serafim de Almeida, Ramom Sanches Marques, José Nias de

Carvalho, Sergino Inácio Mendonça, Darcy Ermita e Joaquim Alves da Silva, além da

Prefeita Thaís Bergo Duarte Barbosa e do vice-prefeito Pedro Alberto Tayano (OLIVEIRA,

2012).

Antonio José Galhardo, filho mais novo de Antonio e Dorvilha Galhardo, relata que

“meu pai foi vereador na primeira eleição que teve em Tangará. Vereador e Presidente da

Câmara, como não teve um estudo grande, aí ele cedeu para o segundo votado e o meu tio

Nico Casagrande foi o primeiro delegado que existiu em Tangará” (GALHARDO.

Depoimento. Tangará da Serra. 08/12/2014).

Constata-se que, entre as lideranças da comunidade, destacou-se também Antonio

Casagrande, que era irmão de Desidério Casagrande, portanto, também cunhado de Iracema.

Ele foi delegado de polícia por alguns anos, antes da emancipação administrativa de Tangará

da Serra.

Ao pensar sobre o significado que os moradores da comunidade rural da Reserva

davam ao local, destaca-se o fato de que a vida em família seguia o rumo da estrada para a

lida na roça e, para as crianças, também o caminho para a escola. As redes de sociabilidade

(SIRINELLI, 2003) se formaram através da luta de algumas pessoas da comunidade por

melhorias para o coletivo, a exemplo da troca de experiência e ajuda mútua na construção da

escola, mas também dos encontros nas casas da vizinhança para conversar e também para

rezar, das Celebrações Eucarísticas ou cultos, dos encontros no campo de futebol e nos bailes

à moda dos sanfoneiros.

Esses lavradores de terra, apostando na produção de frutos a partir da terra fértil que

vieram buscar, eram dedicados na arte de lavorar, mas, para além da produção, posse da

própria terra e sustento da família, encontraram diferentes representações de maneiras de

fazer o que a comunidade necessitava. Em meio a tantos desafios, a superação individual

favoreceu o coletivo e oportunizou novas representações coletivas que influenciaram a vida

das famílias migrantes nesse pequeno espaço rural, composto por pessoas comuns, anônimas

que, na simplicidade, buscaram táticas para subverter a realidade, tornando-os, nas palavras

do romancista Taunay (1991), ‘sujeitos de brasilidade’.

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Com o objetivo de adentrar aos aspectos educacionais, especificamente, foco principal

da presente pesquisa, no próximo capítulo será apresentada a trajetória escolar dos anos 1960

e 1970, sucintamente no Brasil e em Mato Grosso, e mais especificamente no povoado de

Tangará da Serra.

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CAPÍTULO II

TRAJETÓRIA ESCOLAR: ANOS 1960 E 1970.

Fonte: Acervo particular de Iracema da Silva Machado Casagrande

Figura 15 Alunos e professora da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, anos 1970

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Entre as várias fotos que integram o acervo de Iracema Casagrande, encontra-se esta,

selecionada para abrir o capítulo II, por ser a única imagem encontrada da escola estudada

que, mesmo melhorada da sua primeira versão, foi construída em madeira cedida por Antônio

Galhardo. As telhas deixaram de ser de tabuinhas para ser de argila e foram doadas pela

prefeitura municipal de Barra do Bugres, representante legal da escola. A casinha, atrás da

escola, era o banheiro, e um pequeno pátio rodeava essa edificação, sendo que a cerca a

separava do pasto. Ao redor da escola, plantação de café, mato alto e pasto, tendo a sua frente

voltada para a estrada que ligava a comunidade rural ao povoado de Tangará da Serra.

Os meninos e meninas de diferentes idades que compõem a imagem parecem ter se

vestido especialmente para ser fotografados com a professora na escola, pois, no interior,

“tirar um retrato” era um acontecimento importante, por isso a necessidade de aparecer bem,

com a melhor roupa.

2.1. O projeto educacional dos governos pós-1964

A educação escolar em nosso país foi construída no contexto social de acordo com os

interesses econômicos e políticos em diferentes momentos históricos, portanto, as discussões

sobre a educação não resultaram em ações imediatas ou isoladas, mas tiveram uma

historicidade, foram construídas no decorrer dos acontecimentos sociais atrelados à economia

e à política dominante de cada período. Sempre esteve à mercê do nível de importância

política dado a ela pelos governos, que sempre determinaram ações conforme seus interesses.

No período político-militar, durante os anos 1960 e 1970, no Brasil, destaca, como

finalidade da educação, a formação de recursos humanos ou força de trabalho para o

desenvolvimento econômico realizado no interior de uma sociedade capitalista. Pode-se dizer

que, de 1964 a 1975,

[...] veio se delineando um sistema educacional, cuja finalidade é a

preparação dos recursos humanos para o desenvolvimento do país conforme

o novo modelo de desenvolvimento adotado, correspondente a determinado

modelo político ideológico. Essa preparação consiste não só em treinamento

e capacitação para as atividades produtivas em geral e em todos os níveis,

como também na orientação de toda a população para os fins propostos pelas

grandes diretrizes políticas do Estado. (SOUZA, 1981, p. 192).

Nesse sentido, a educação deveria servir como fator de progresso social, atuando na

melhoria do nível de renda e estimulando a mobilidade social; integrar a população pela

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motivação e participação para o desenvolvimento; e servir como fator de unidade e segurança

nacional. Diversos documentos expressam as finalidades da educação naquele período:

cultivar os sentimentos para com os valores e ideais nacionais; preparar o homem para viver

numa sociedade moderna e democrática; formar integralmente o homem e prepará-lo para

servir à comunidade (SOUZA, 1981).

O sistema educacional estava estruturado em três níveis: o Ensino Primário, o Ensino

Médio e o Ensino Superior. Metas e propostas compunham cada nível de ensino: no Ensino

Primário, sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho; no Médio, preparação de mão de

obra técnica, através da habilitação profissional; e, no Ensino Superior, oferecer cursos

diversos para preparar mão de obra adequada para as solicitações do mercado de trabalho de

alto nível técnico.

Como a presente investigação está voltada para o Ensino Primário, o enfoque será

dado a esse nível de ensino que, de acordo com Souza (1981, p. 145), possuía os seguintes

objetivos:

Universalização da escolarização primária com a duração de seis anos (nos

primeiros planos) e de oito (nos dois últimos); utilização de modernos meios

de comunicação (rádio, televisão) e novas tecnologias educativas para

eliminar o analfabetismo e expandir a escolaridade; atendimento prioritário

às áreas urbanas; adoção de métodos de promoção especiais, recuperação nas

férias, novas modalidades de verificação do ensino-aprendizagem;

introdução de temas vocacionais no ensino fundamental; maior atenção ao

aluno através de programas de alimentação escolar e serviços assistenciais.

De 1948 a 1961, ocorreram discussões referentes ao anteprojeto encaminhado à

Câmara Federal por uma comissão presidida por Lourenço Filho, versando sobre as diretrizes

e bases da educação nacional. Após amplos debates e reveses, em 1961 foi aprovada e

publicada a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei 4.024/61,

publicada no dia 27 de dezembro de 1961.

Sendo essa lei um instrumento normativo para a definição do sistema nacional de

educação, é a partir dela que ocorreu a instrumentalização e normatização dos processos

educacionais no Brasil.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 4.024/61 reforçou a

obrigatoriedade escolar a partir dos 7 anos, podendo ela ser ministrada no lar ou na escola, de

iniciativa pública ou privada e ensinada no idioma nacional. O ensino primário visava

desenvolver o raciocínio e as atividades de expressão da criança, a sua integração no meio

físico e social. A educação física tornou-se obrigatória. Referente às crianças da zona rural, a

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lei garantiu que: “Os proprietários rurais que não puderem manter escolas primárias para as

crianças residentes em suas glebas deverão facilitar-lhes a frequência às escolas mais

próximas, ou propiciar a instalação e funcionamento de escolas públicas em suas

propriedades” (BRASIL. Lei 4.024/61, Art. 32).

No entender de Romanelli (1996), em essência, a lei não mudou nada, exceto pela

vantagem de não ter prescrito um currículo fixo e rígido para o país em cada nível de ensino.

“O que se percebeu na prática, no entanto, foi que as escolas acabaram construindo seu

currículo conforme os recursos materiais e humanos de que já dispunham, mantendo o mesmo

programa que antes” (ASSIS, 2012, p. 327).

No decorrer desse governo e em decorrência dos planos estabelecidos, ocorreram

reformas educacionais, tanto no ensino superior, em 1968, quanto no ensino de primeiro e

segundo graus, que entraram em vigor através da Lei 5.692/71, publicada no dia 11 de agosto

de 1971, e que acompanhou as mudanças econômicas e sociais no país, nas quais novas ideias

e fazeres direcionavam a educação.

A educação foi dividida em graus, sendo que o primário e o ginasial considerados o

primeiro grau (8 anos), e o colegial, segundo grau. A obrigatoriedade escolar então, estendeu-

se dos 7 aos 14 anos de idade. O currículo passou a ser organizado em núcleo comum

obrigatório, em âmbito nacional, e a parte diversificada, em função das peculiaridades locais e

diferenças individuais dos alunos (BRASIL. Lei 5.692/71, Art. 4).

Grande discussão ocorreu para não se estender o ensino de primeiro grau:

[...] não foram pequenas as resistências que se opuseram à ideia da

ampliação do tempo da escolaridade elementar comum, como ocorreu nas

discussões do projeto de LDB no Congresso Nacional em 1948 e em 1961,

quando houve uma árdua luta no sentido de aplicação e legitimação dessa

ideia, contra argumentos e expedientes utilizados para frustrá-la. De um

lado, havia educadores e parlamentares que combatiam veementemente

todos os projetos e reformas que viessem a ampliar a duração obrigatória do

ensino primário; e de outro, educadores como Anísio Teixeira, Almeida

Júnior e Lourenço Filho, que aplaudiam as medidas que preconizavam maior

número de anos para esse nível de ensino, por acreditarem que elas

significavam a expansão das oportunidades educativas aos pré-adolescentes,

portanto, a real democratização do ensino. (ASSIS, 2012, p. 332).

É certo que a legislação que normatizou os processos educacionais nos anos 1960 e

1970, no Brasil, não garantiram a sua efetivação em ações concretas, principalmente pela

ausência de condições infraestruturais, materiais pedagógicos e recursos humanos, portanto,

percebe-se que o andamento da educação pautada pelas leis dependeu da forma como elas

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foram colocadas em prática e se os seus objetivos estavam integrados às reais necessidades do

contexto social.

Diante dos Planos Nacionais de Educação, durante os anos 1960, em Mato Grosso, o

governador Fernando Corrêa da Costa no seu segundo mandato (1961-1966), criou a

Secretaria de Educação e Saúde. Nos dias 13, 14 e 15 de janeiro de 1963, nos salões do

Palácio da Instrução, aconteceu, em Cuiabá o I Congresso Mato-grossense de Educação e

Saúde, evento que reuniu um grande número de profissionais da área da educação, da saúde,

além de políticos influentes no período. Participaram

[...] 59 prefeitos municipais, 21 médicos, mais de uma centena de

professores, além dos 15 inspetores regionais do ensino primário, para isso

convocados, contou também com a presença de várias autoridades,

deputados federais e estaduais, engenheiros sanitaristas, além de líderes

educacionais que de par com o caráter cívico que lhe emprestaram as teses

debatidas, todas elas de puro e exclusivo interesse da coletividade mato-

grossense, muito brilho deram a esse magnífico conclave. (MARCÍLIO,

1963, p. 212).

Entre as discussões realizadas a respeito da educação, durante o evento ficou evidente

a necessidade do enfrentamento do governo estadual na superação das improvisações

administrativas na educação, com mais investimento em planejamento, a fim de garantir a

descentralização do ensino e os investimentos nesse setor (AMORIN, 2013).

Nos anos 1960, em Mato Grosso, 60% dos professores eram leigos, ou seja, não

possuíam formação pedagógica para o exercício da função, porém já estavam efetivados,

situação problemática para o governo estadual da época, que considerou que, mesmo com os

conhecimentos gerais que os professores possuíam, não teriam condições de exercer a função

de mestre efetivamente, sem a formação específica para a profissão. Ainda reconhece

Marcílio (1963, p. 214) que “não será tão cedo que se fará a recuperação dos quadros do

magistério, com a sua preparação paulatina ou a consecução de elementos habilitados para a

finalidade precípua de ensinar”.

Com esse pensamento sobre o ensino mato-grossense, o mesmo autor, enquanto

Diretor de Departamento de Educação, no governo anterior a esse, “sugeriu, à Secretaria de

Educação, a criação de um Centro de Capacitação do Magistério Leigo, aos moldes do que se

fez no México, quando foi evidente grande revolução no seu Ensino Rural” (MARCÍLIO,

1963, p. 214). O Secretário de Educação, à época, Dr. Hermes de Alcântara, interessado em

superar as dificuldades educacionais que o estado atravessava, afirmava:

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O trato diário com os problemas educacionais evidenciou, desde cedo, a

necessidade da recuperação daqueles professores que, embora efetivados,

não possuem contudo um grau suficiente de conhecimentos e de capacidade

profissional. Essa ideia de recuperação mais e mais se ia afirmando, ao passo

que outras medidas se mostravam ineficazes e até mesmo desaconselháveis.

Estudando o problema com serenidade, entre os caminhos que se ofereciam,

resolvemos optar pela fé no nosso elemento humano. Ficou então resolvido

que envidaríamos todos os nossos esforços, para a recuperação do professor

leigo, através de uma bem organizada campanha de aperfeiçoamento do

magistério. (ALCÂNTARA apud MARCÍLIO, 1963, p. 215).

Segundo Amorin (2013, p. 56), “Essa preocupação em capacitar os professores leigos e

de melhorar o nível de ensino primário no Brasil foi apresentada pelos planos criados pelo

governo federal na década de 1960, frente a situação do ensino primário nacional que

apresentava um percentual de 45% de professores leigos”. No estado já estavam sendo

ministrados cursos de férias para os professores leigos, realizados nos meses de janeiro,

fevereiro e julho, correspondentes às férias escolares, na época. Nesse período,

Os planejamentos do ensino primário brasileiro refletiam o ideal de

expansão da escolarização do ensino primário e aprimoramento dos

professores desse nível através do aprendizado de inovadoras técnicas de

ensino. Compartilhando desse ideal, o governo de Mato Grosso enviou

professoras do estado para realizar cursos de aperfeiçoamento no Programa

de Assistência Brasileiro – Americana ao Ensino Elementar - PABAEE, bem

como promoveu a criação do Centro de Treinamento do Magistério de

Cuiabá, criado em agosto de 1963, com a finalidade de fornecer a

oportunidade de “recuperação” e qualificação dos professores leigos, bem

como introdução de modernas técnicas de ensino. (AMORIN, 2013, p. 61).

Através do Programa de Assistência Brasileiro-Americana ao Ensino Elementar –

PABAEE foram implantados centros de treinamento de professores em vários estados do país

que garantiram a sua ampliação ao participar da criação e da reformulação de currículos do

ensino primário e normal nos estados. O PABAEE baseava-se no treinamento e na produção

de materiais didáticos sob a orientação tecnicista, ou seja, as técnicas de ensino seriam a base

para que o professor ministrasse suas aulas. (AMORIN, 2013, p. 61).

Com o intuito de implementar a formação docente, Mato Grosso, em parceria com

outros órgãos, financiou a participação de professores mato-grossenses em cursos de

treinamento e aperfeiçoamento em São Paulo, junto ao curso de formação de especialistas em

educação, ministrado no Centro Regional de Pesquisas Educacionais; e também enviou

professores para Belo Horizonte-MG para participar da formação de supervisores e

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especialistas no PABAEE, pois, ao retornarem a Mato Grosso trariam na bagagem o

conhecimento de novas metodologias de ensino. (AMORIN, 2013, p. 61).

Superadas algumas dificuldades, através de negociações com órgão federais, o então

secretario de Educação e Saúde de Mato Grosso, Dr. Hermes de Alcântara, conseguiu

autorização do Ministério da Justiça e Negócios Interiores para instalar o Centro de

Aperfeiçoamento e Treinamento do Magistério, no prédio do Educandário dos Menores

abandonados, o que ocorreu solenemente no dia 16 de agosto de 1963. Diante da presença de

autoridades civis, militares, eclesiásticas, representantes da imprensa, mestres e alunos, o

citado secretario proferiu um discurso sobrelevando os objetivos da nova entidade

educacional (MARCÍLIO, 1963), nesses termos: “convencido estava de que a História do

Ensino em Mato Grosso, passaria a ser contada, daí por diante, considerando-se duas fases de

sua evolução, perfeitamente delimitadas pelo fato histórico que se vivia naquele instante”

(ALCÂNTARA apud MARCÍLIO, 1963, p. 215).

Após esse pronunciamento, autoridades enalteceram a iniciativa e o então Governador,

Fernando Corrêa da Costa, “declarou estar certo de que o seu programa de governo tinha na

pessoa do seu auxiliar, o Secretário de Educação, um executor à altura” (MARCÍLIO, 1963,

p. 216).

Durante a solenidade, foi declarado oficialmente aberto o primeiro curso de

supervisores do ensino, ministrado por mestras especializadas do estado do Espírito Santo e

ministrado para, aproximadamente, quarenta professores inscritos (MARCÍLIO,1963). Diante

das dificuldades em relação aos docentes capacitados para ministrar o curso, ainda em 1963,

um segundo grupo de professores, composto por 56 docentes, foi enviado para cursar

especialização nas áreas de currículo e supervisão, pelo PABAEE, em Belo Horizonte-MG.

Após seis meses, os professores-supervisores assumiriam a função de acompanhar as

atividades de, no máximo, 10 professores leigos, com o intuito de inserir novos métodos de

ensino e garantir a melhoria do ensino primário (AMORIN, 2013)34

.

Participaram da formação em nível de aperfeiçoamento, tanto em São Paulo, quanto

em Minas Gerais, professores leigos que atuavam em Cuiabá e em cidades do interior, tanto

34

O referido autor apresenta a trajetória profissional de professoras do estado de Mato Grosso que participaram

desses cursos e a influência das ações implantadas pelo governo federal e estadual no fazer profissional das

docentes. Ver: AMORIN, Rômulo Pinheiro de. Professoras primárias em Mato Grosso: trajetórias profissionais

e sociabilidade intelectual na década de 1960. 2013. 161f. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de

Educação, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2013.

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em escolas urbanas quanto rurais, considerando que a partir dos anos 1960 Mato Grosso

contava com vários projetos de colonização em desenvolvimento.

Mudanças educacionais gradativas foram possibilitadas no estado, a partir dos

investimentos no aperfeiçoamento dos professores, em consonância com as políticas públicas

do governo federal e sua implementação pelo governo estadual. Ressalta-se que a formação

de professores era e ainda é uma necessidade constante no sentido da troca de experiências e

de saberes que influenciam nos fazeres do profissional professor.

2.2. E a escola rural, onde estava?

Os dados demográficos de 1940 demonstram que a maioria da população brasileira

residia em espaço rural, totalizando cerca de 69%, índice que foi sendo alterado nos anos

1950 e 1960, que apontam em torno de 36,1% e 45,1% da população fixada no meio urbano,

sendo que nos anos 1970, período registrou-se um expressivo crescimento da população

urbana, de 56%, decorrente do processo de urbanização, industrialização e vigoroso êxodo

rural (FURTADO; SCHELBAUER; SÁ, no prelo).

Faz-se necessário salientar que ainda nos anos 1970 era grande o índice de população

no meio rural e que o Centro-Oeste do país estava vivenciando o período de (re)ocupação dos

seus “espaços vazios”. Portanto, famílias inteiras se deslocavam do local de origem em busca

de melhores condições de vida, rumo a um lugar ainda desconhecido, mas

predominantemente rural, onde se criariam, posteriormente, espaços urbanos. Vale ressaltar

que a prática, entre as empresas colonizadoras, de oferecer terreno em “espaço urbano” para

as pessoas que adquirissem sítios, chácaras ou fazendas em território mato-grossense,

objetivava a criação de infraestrutura urbana, o mais rápido possível (OLIVEIRA, 2009).

Em rumo à “terra prometida”, famílias migrantes passaram por grandes dificuldades,

tanto no que diz respeito ao percurso traçado quanto a vivência cotidiana num lugar ainda a

ser praticado e transformado culturalmente em espaço.

Percebe-se, através dos relatos de memória, que, durante o período de colonização em

Tangará da Serra, os migrantes foram responsáveis por transformar o espaço um lugar

praticado (CERTEAU, 1994), onde a experiência de vida no campo se materializava em

novas práticas culturalmente significantes para a construção de um novo espaço de formas de

fazer.

A existência de uma escola rural em Tangará da Serra se tornou realidade a partir da

iniciativa de algumas famílias que acreditavam que, através da escolarização, seus filhos

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garantiriam uma vida melhor, com mais conforto e dignidade, porém esta não era uma

representação coletiva sobre a escolarização da infância, visto que, para algumas famílias, o

fato de aprender a ler, escrever e contar parecia suficiente. Percebe-se isso através dos relatos

de memória que registram situações vivenciadas pelas crianças, numa época em que os pais

decidiam sobre a frequência ou não do filho na escola. Isso se devia ao fato da necessidade de

“mão de obra” no campo para render o trabalho e também por serem os pais analfabetos.

Assim, apenas o fato de seu filho saber ler e escrever já representava um grande progresso, ou

seja ficou evidente a existência de diferentes representações de escolarização da infância entre

os diferentes segmentos que compunham a comunidade tangaraense. Porém, mesmo diante de

representações diferenciadas, a realidade é que as famílias da comunidade se organizaram

com o objetivo de conquistar o “espaço escola” para seus filhos.

Diante da realidade, a instituição escolar, para a comunidade, passou a ser um ponto de

referência, visto que ela passou a utilizar o espaço escola também para celebrações religiosas

e festas, ou seja, a comunidade rural apropriou-se da instituição escolar, dando ao espaço um

significado de progresso, tornando-a a própria identidade da comunidade (CANÁRIO, 2000).

Faz-se necessário lembrar que a instituição escolar rural em estudo, além de apresentar

particularidades e singularidades, integrou um contexto histórico marcado, em termos

econômicos, sociais, culturais entre outros, pelo efeito “estratégico” da implementação de

políticas públicas em nome da ‘modernização’ e do ‘progresso’:

O problema do mundo rural é, regra geral, equacionado como um problema

de desenvolvimento, ou, melhor dizendo, de ausência de desenvolvimento,

em contraposição ao mundo urbano e industrializado. [...] a crise com que

nos confrontamos não corresponde a uma crise do mundo rural tradicional

que o ‘desenvolvimento’ tem vindo a eliminar de forma sistemática, mas sim

a uma crise do mundo urbano e industrial edificado com base nos valores

mercantis. (CANÁRIO, 2000, p. 125-126).

A valorização do urbano, representação de progresso, em detrimento do rural,

atrasado, gerou grandes problemas sociais, como desemprego, violência e competitividade,

acentuando-se, assim, as desigualdades sociais com as quais a sociedade convive há tempos.

Invisível aos olhos da lógica do mercado, caminham valores culturais e ambientais

únicos presentes em comunidades rurais e que possibilitam, inclusive, a proteção,

conservação e reprodução da natureza, além de que “pelas suas características singulares, a

pequena escola em contexto rural pode contribuir para ‘reinventar’ práticas pedagógicas e

educativas, superadoras dos limites existentes à forma escolar” (CANÁRIO, 1995, p. 75).

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2.3. A criação das primeiras escolas

No projeto elaborado pela colonizadora estava previsto onde seriam erguidas as

edificações: mercado, farmácia, hospital, rodoviária, praças, grupos escolares, cinema, estádio

de futebol, posto de saúde, delegacia, aeroporto e outros, conforme Figura 5. Os migrantes, ao

visualizarem o planejamento para as futuras instalações de Tangará da Serra, sentiram-se

motivados e seguros pelo fato de seus filhos terem a possibilidade de um futuro mais

próspero, tendo como pressuposto a educação que receberiam nas instituições escolares. Por

isso elas foram previstas na planta original da futura cidade.

Porém, desde a chegada das primeiras famílias, à localidade de Tangará da Serra, no

ano de 1959, o número de crianças de diferentes idades era extenso e todas ficaram privadas

de escola até 1964. Algumas delas já haviam frequentado instituições escolares no local de

origem, geralmente nas séries iniciais do ensino primário. Em depoimento, A. P. (apud

PROJETO MEMORIAL DA INFÂNCIA, ITEC, 2006-2009) lembra que quando veio para

Tangará da Serra sua família foi morar numa fazenda que não tinha escola e, portanto,

perderam o ano escolar. Relata que “foram quatro anos letivos sem ao menos ter contato com

o caderno, com isso tínhamos tempo para brincar, mas sentia falta da escola e dos cadernos

já que sempre fui uma aluna caprichosa” 35

(apud PROJETO MEMORIAL DA INFÂNCIA,

ITEC, 2006-2009).

Num espaço onde tudo estava por fazer, a falta da escola cerceava a possibilidade de

novos conhecimentos para as crianças e pré-adolescentes, mas Maria Antonieta de Oliveira,

que na ocasião tinha 17 anos de idade, havia chegado em Tangará da Serra com sua família no

dia 7 de setembro de 1961 e, sentindo-se disposta, no ano seguinte reuniu as crianças do

povoado para ensinar as primeiras letras e catequisar, informalmente, como ilustra a imagem a

seguir, pois nesse período ainda não havia sido criada qualquer escola na localidade e também

não havia padres na região.

35

Cf. depoimento de A.P. no Projeto Memorial da Infância realizado pela Faculdade de Educação de

Tangará da Serra (ITEC), 2006 – 2009.

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Figura 16 Crianças reunidas para aprender ler e escrever informalmente na residência da

jovem Maria Antonieta de Oliveira, início anos 1960

Fonte: Acervo particular da família de Francisco Avelino Dantas

Conforme é possível observar, as crianças e a jovem Maria Antonieta se vestiam de

roupas claras e formais, embora a maioria estivesse sem os calçados, sugerindo o respeito das

famílias às atividades escolares e catequéticas. No entanto, as famílias não contentes pela

inexistência formal da escola, o que impedia que seus filhos pudessem dar continuidade aos

estudos, se organizaram para conseguir a primeira escola, já que a colonizadora, até então, não

havia cumprido com o prometido. Conforme Oliveira (2009), desse movimento surgiu a

primeira escola na localidade urbana, porém reconhecida oficialmente como rural, pois como

Tangará da Serra era localidade36

de Barra do Bugres, naquela época. Por isso a primeira escola

era considerada rural, mesmo estando localizada em espaço urbano.

Destaca-se o fato de que, mais uma vez, as famílias migrantes deram sentido ao ato de

fazer e refazer o cotidiano a partir das necessidades humanas, novamente se uniram para

36

O termo localidade (hoje denominada de distrito) era utilizado para informar que o espaço pertencia há um

município.

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construir, agora, a escola. Entre as pessoas da comunidade, Francisco Avelino Dantas, que era

carpinteiro e pedreiro, foi quem conduziu os trabalhos, realizando mais esse objetivo.

A imagem a seguir refere-se a uma caixa de madeira, com ferramentas pertencente a

Francisco Avelino Dantas37

. Ele a usava para a construção civil e utilizou-a na edificação da

Escola Rural Mista de Instrução Primária de Tangará da Serra, assim como, também, na

construção da primeira igreja, como em outras tantas obras sob sua responsabilidade. Esta caixa

e as ferramentas foram doadas pela família Dantas para compor o acervo histórico da Sala de

Memória de Tangará da Serra, criada pela Lei Municipal nº 3.103, de 14 de abril de 2009, e

vinculada a Secretaria Municipal de Educação e Cultura38

. A foto foi registrada pela

pesquisadora durante o mês de julho de 2014 na Sala de Memória.

Figura 17 Caixa de ferramentas pertencente a Francisco Avelino Dantas, carpinteiro que

colaborou na construção das primeiras edificações em Tangará da Serra nos anos 1960

Fonte: Foto da autora, 2014. Acervo Sala de Memória de Tangará da Serra

Considerando a escola e suas práticas enquanto espaço de representação constituído

socialmente, Nóvoa (2002) destaca a importância de espaço público educacional que acolha,

apoie e valorize o compromisso social com a educação. Assim, entendemos que as famílias,

convencidas da necessidade de escola para seus filhos, se mobilizaram, conquistaram e

37

Francisco Avelino Dantas procedente da cidade de Paranavaí – Pr, chegou com a sua família à Tangará da

Serra em 1961. 38

Está instalada, desde a sua criação, no Centro Cultural Pedro Alberto Tayano, em frente a Praça dos Pioneiros,

na Av. Brasil.

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edificaram a primeira escola na localidade de Tangará da Serra. A instituição escolar foi

oficialmente denominada Escola Rural Mista de Instrução Primária de Tangará da Serra,

criada pelo decreto nº 813, de 4 de setembro de 1964, publicado em Diário Oficial do Estado

de Mato Grosso, na mesma data.

A escola era mantida pelo governo do estado de Mato Grosso. Durante o primeiro ano

de funcionamento, havia 142 alunos matriculados e distribuídos entre a 1ª e a 4ª séries, porém

esse número oscilou, chegando ao maior número de alunos frequentes no mês de junho, com

um total de 124 alunos, sendo 55 do sexo feminino e 59 do sexo masculino. Pressupõe-se que

a ausência de algumas crianças durante o ano letivo pode ser explicada pela ajuda que

ofereciam às famílias na lavoura, e/ou à distância entre a casa e a escola.

A partir de 1965, um grupo de famílias que estava residindo no espaço rural

denominado “Reserva”, localizado a, aproximadamente, 10 km do povoado de Tangará da

Serra39

, devido a distância da escola estadual e incentivados por Antônio Galhardo, se

reuniram com o objetivo de construir uma outra escola para os filhos, mais próxima de suas

casas. Isso se deveu também ao crescente número de crianças que chegavam com a família

para morar na Reserva. Decididos, foram procurar pelo prefeito de Barra do Bugres, Wilson

de Almeida, uma vez que a instituição escolar deveria atender a seus filhos, mas também a

eles. E foi assim que Antônio Galhardo, proprietário do sítio Santo Antônio na Reserva,

tomou a frente e foi solicitar providências da prefeitura a esse respeito. Iracema da Silva

Machado Casagrande relata:

[...] tinha as crianças que estavam estudando lá, lá de onde nós viemos, lá de

Monte Castelo – SP, então meu cunhado foi na Barra falar com o seu Wilson

de Almeida que é falecido, né? Conversou com eles e aí eles vieram lá na

Reserva e aumentaram um pedaço de rancho que era feito de coqueiro e ali

foi inaugurada uma escolinha, no dia 18 de junho de 1965, foi criada a

primeira escolinha ali na reserva com 18 crianças, 9 meninos e 9 meninas.

(CASAGRANDE apud NUDHEO, 2006).

Na Ata de Instalação da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, a segunda

escola pública criada e primeira municipal, na localidade de Tangará da Serra, consta que a

escola foi construída pela comunidade e na propriedade de Antonio Galhardo, que doou

terreno. Consta, também, nessa ocasião, a presença do prefeito municipal de Barra do Bugres,

Wilson de Almeida, de Antonio Hortolani, gerente da colonizadora SITA; de Flávio Farias,

39

Era assim chamado o espaço que futuramente seria urbano, pois nesse período Tangará da Serra ainda era

localidade de Barra do Bugres.

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secretário da prefeitura; de Antonio Galhardo, proprietário do sítio cedido para o construção

da escola, João Cândido Lira, professor estadual em Nova Olímpia40

, e de um grande número

de famílias que pertenciam à comunidade da Reserva. Na ocasião, Iracema da Silva Machado

Casagrande foi nomeada para o cargo de professora da escola. Pode-se comprovar a seguir

através da Ata de instalação desse estabelecimento escolar:

40

Nova Olímpia era também localidade pertencente ao município de Barra do Bugres, próxima a Serra do

Tapirapuã.

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Figura 18 Ata de Instalação da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio e de nomeação

da Professora Iracema da Silva Machado Casagrande – 18 de junho de1965

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Fonte: Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral de Tangará da Serra (NUDHEO)

Percebe-se a participação efetiva da comunidade rural na criação da Escola Rural

Mista Municipal Santo Antonio, que, a partir do dia 18 de junho de 1965, passou a funcionar,

contando com dezoito alunos matriculados. Aos poucos, o número de crianças foi

aumentando, chegando ao total de 80 alunos, sendo 40 no período matutino e 40 no período

vespertino, o que representou um desafio para a professora leiga Iracema Casagrande, que foi

“apontada” pela comunidade, como ela própria diz, para ser a professora da escola, pois era a

única que tinha estudado até a 4ª série:

Eu comecei a dar aula sem saber como começava (risos). Porque eu nunca

tinha dado aulas, né? Não tinha preparação, ai o que eu aprendi, o que eu

sabia que eu tinha só até a 4ª série né? Minha 4ª série fiz no ano de 42, ai o

que eu aprendi, o que eu sabia na escola, o que eu aprendi desde a primeira

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série, eu comecei a ensinar para minhas crianças. (CASAGRANDE, I. apud

NUDHEO, 2006).

A dificuldade da professora nomeada não era apenas de cunho pedagógico, por não ter

a formação adequada, mas estava associada à escassez de materiais pedagógicos e de recursos

humanos na escola, pois, ao longo de 18 anos como docente naquela instituição escolar, fazia,

além das vezes de professora, também as atividades de escrituração, matrícula, atendimento

aos pais e alunos, merenda, limpeza e organização, contando, sempre que necessário, com a

ajuda da comunidade.

Percebe-se que a escola, para a comunidade, passou a ser um ponto de referência, uma

vez que seu espaço físico servia também para reuniões com o padre, que chegava para

celebrar a Santa Missa, para catequisar as crianças, para fazer “festinhas”, como relata a

professora Iracema Casagrande. Em relação ao aspecto cultural, a escola “[...] tem um papel

social importante, pois além de ser componente da expectativa do sonho do migrante, de

garantir um futuro próspero para seus filhos, diferente daquele que ele teve, a escola é o ponto

de encontro das pessoas durante os eventos festivos” (OLIVEIRA, 2009, p. 93), destacando,

assim, seu papel social e cultural concretizado enquanto espaço de colonização recente em

Mato Grosso.

Conforme Chartier (2011, p. 16), identificar as representações implícitas nas fontes

documentais significa compreender as práticas construídas socialmente e ao mesmo tempo

suas representações:

[...] penso que não existe história possível se não se articulam as

representações das práticas e as práticas da representação. Ou seja, qualquer

fonte documental que for mobilizada para qualquer tipo de história nunca

terá uma relação imediata e transparente com as praticas que designa.

Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades e

destinatários particulares. Identificá-los é uma condição obrigatória para

entender as situações ou práticas que são o objeto da representação.

Pensar o movimento migratório de Tangará da Serra e a conquista da educação

escolar, a partir da História Cultural, significa ler e analisar o processo de construção de

sentidos e as representações coletivas, bem como suas práticas.

Neste sentido, percebe-se, através da narrativa de muitas vozes, a importância da

professora Iracema Casagrande para a comunidade que a escolheu e a considerou responsável

pelo ensino das primeiras letras às crianças, filhas de trabalhadores rurais.

Compreende-se, nas narrativas, que a complexidade da vida real muitas vezes é

esquecida, retratando-a como uma situação estável e coerente, podendo, para isso, ocultar

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fatos ou contá-las parcialmente. Porém, interessa-nos a trajetória particular, pois ela dá

representatividade ao coletivo, ou seja, “[...] que se articula em torno de acontecimentos

individuais e coletivos” (LE GOFF, 1990, p. 1).

Portanto, a tentativa de apresentar uma síntese da trajetória histórica de Iracema da

Silva Machado Casagrande tem o sentido de significar uma história não silenciada, uma vez

que está instaurada na lembrança de muitas pessoas que conviveram com Iracema e, nessa

medida, marcadas por suas memórias, que resistirão ao tempo, pois “as falas não são passadas

sob silêncio, mas passadas sob o revestimento diligente da escritura historiadora” (FARGE,

2011, p. 61).

2.4 Uma trajetória... a infância, a escolarização, a migração e o fazer-se professora

Ainda menina, com os seus dez anos de idade, na cidade de Pitangueiras/SP, em meio

a brincadeiras de criança, como casinha, boneca, roda e escolinha, e incentivada pelas amigas,

nasceu, no coração da menina Iracema, o sonho de ser professora.

Iracema gostava de brincar de casinha, “[...] pegava aqueles caquinho de caco que

quebrava de prato, de uma coisa ou outra, arrumava as prateleirinha, colocava os caquinho,

fazia a casinha, brincava ali, fazia a comidinha (risos), tudo de mentirinha [...] gostava muito

de boneca (risos), sempre tive boneca pra brinca” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará

da Serra, 10/07/2014). Gostava de brincar sozinha, pois seu irmão era mais novo, “ele não

sabia brincar (risos)”. Quando era possível, ia à casa de uma colega para brincar. Ela tinha

primas que, junto, se divertiam, criando e recriando brincadeiras. Geralmente, as primas

chamavam Iracema para brincar,

[...] elas falava: a Iracema é a professora (muitos risos). Sempre eu era a

professora. Aí eu dava aula (risos) do jeito que a minha professora dava

aula, então eu fazia (risos) com minhas amigas ali (risos). E nós

brincávamos assim, pegava aqueles pedaço de giz que trazia da escola e

amarrava lá uma tábua pra gente escreve e ali a gente fazia, estava

brincando de escolinha. Brincava de escolinha, é... nem todo mundo

gostava de brinca de escolinha, outros gostava de brinca de boneca, não sei

o que, mas essa casa que eu ia, que eu me dava muito com a menina da casa

e ela tinha as prima dela, ela mesmo gostava de brincar de escolinha, então

a gente combinava [...](CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da

Serra, 10/07/2014).

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Percebe-se a brincadeira como linguagem utilizada pela criança para compreender o

mundo, bem como recriá-lo, e a infância como uma condição da criança, sendo “o conjunto

de experiências vividas por elas em diferentes lugares históricos, geográficos e sociais muito

mais do que uma representação dos adultos sobre esta fase da vida. É preciso considerar as

crianças concretas, localizá-las nas relações sociais, reconhecê-las como produtoras da

história” (KUHLMANN JR, 1998, p. 31).

A partir das experiências vivenciadas através das brincadeiras infantis, a menina

Iracema foi alimentando o sonho de ser professora quando adulta, sei que há um lugar onde

eu quero estar, ver a fantasia se realizar41

“é, eu sempre pensava, se eu pudesse estudar, me

formar... porque naquele tempo era tudo pago, [...] pra estuda, pra se forma, tudo era pago,

tudo, tudo, tudo... era pago, então eu sonhava assim, eu tinha vontade, mas sabia que eu

nunca alcançava” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Para a criança Iracema, o fato de brincar de escolinha a projetava no tempo, fazendo

com que realizasse instantaneamente o sonho e o seu desejo de ser professora, provavelmente

inspirada nas professoras dos primeiros anos escolares. Iracema não sabia que essas

brincadeiras inventadas na infância um dia se tornariam práticas inventadas de uma

professora, como poetiza Manoel de Barros “[...] acho que o quintal onde a gente brincou é

maior que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o

tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas” (BARROS,

2008, p. 59).

Iracema iniciou sua vida escolar aos nove anos de idade, “meu pai era carpinteiro,

trabalhava numa firma e minha família sempre morou na cidade, eu fui nascida e criada na

cidade” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014), pois em

Pitangueiras/SP tinha apenas um Grupo Escolar, poucas turmas, o que tornava difícil

encontrar uma vaga, além de sua família não procurar por vaga para matricular a filha na

escola. Conseguiu ser matriculada na primeira série em 1937, através da ajuda do casal de

serventes da escola que eram compadres de sua mãe. Entre suas lembranças, recorda que

gostava de estudar, era dedicada e no ano seguinte conseguiu passar para a segunda série, e,

pelo sucesso, seguiu para a terceira série, porém em meados de 1939 ficou doente,

[...] esfolei aqui atrás do calcanhar, tem até a marca ali, até hoje tem o

sinal, saiu uma ferida feia ali sabe, eu fiquei sem poder quase nada, eu

perdi... e aquele tempo não é que nem hoje que a gente compra os livros de

41

Música: Nunca deixe de sonhar (Rouge).

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ponto que fica fácil pra estuda. A lousa daquelas compridas que era dessa

porta na outra, daquelas lousona grande, sabe. Então a professora enchia

assim pra lá e pra cá... e a gente tinha que copiar todo aquele ponto e

estudar, era assim... era mais difícil, era mais diferente, né. Eu perdi muito,

né, por causa do pé que eu faltei. Eu precisei faltar. Então naquele ano, foi o

ano de 39, então aquele ano eu repeti a terceira série. (CASAGRANDE,

I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Em 1940, concluiu a terceira série, e no ano seguinte a sua família mudou da cidade de

Pitangueiras para Rinópolis, também no estado de São Paulo, porém essa cidade era um lugar

novo e que estava começando, uma cidadezinha pequena, praticamente uma vila, e quando

isso ocorreu, ainda não havia sido instalada qualquer escola, “aquele ano de 1941 eu perdi,

quando foi no ano de 1942, nós mudamos da cidade de Rinópolis pra Birigui, aí eu fiz uma

quarta série bem feita” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Quando chegou a época da colheita do algodão, a família de Iracema foi trabalhar num sítio,

mas seu pai concordou em deixá-la na casa de uma família conhecida, na cidade. A família

acolheu a menina Iracema para que ela pudesse concluir a quarta série. Aluna dedicada, “[...]

eu gostava muito, viu? Nossa, como eu gostava de estudar. Quando eu era criança, nossa! Eu

gostava de ir à escola. [...] eu tinha facilidade pra aprender, graças a Deus. Tinha muita

vontade de estudar. Aí eu aprendi” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra,

10/07/2014). Lembra ainda Iracema que estudou português, matemática, história, geografia e

ciências, copiava, no caderno, tudo o que a professora passava no quadro e tinha que estudar

muito. Às vezes, levava tarefa para casa,

[...] a gente tinha que estudar os ponto pra no dia seguinte saber de cor

(risos), muitas vezes era isso. No dia seguinte era um ponto pra várias

alunas (risos), cada uma falava um trechinho, então cada uma falava um

trecho. Ficava em pé e a gente tinha que tá com a atenção porque quando

aquela parava, ela falava: fulana, aí tinha que levantar e continuar lendo o

ponto. Pois é minha filha, primeiro o estudo era mais, como é que fala, era

mais rígido, mais exigente (risos). E hoje em dia tá tão fácil né, criança as

vezes faz a primeira, segunda, terceira e a quarta série, não sabe nada, não

é verdade? Muitas coisa que deve sabe, não sabe, né? Não é mesmo?

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014)

Em sua narrativa, Iracema faz uma comparação entre o ensino do seu tempo de

infância com o da atualidade, evidenciando o ensino da época de estudante como de qualidade

se comparado ao ensino atual. As expressões ‘ensino mais rígido, mais exigente’ traduzem a

sua representação sobre ensino de qualidade, além de detalhar sobre algumas práticas

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escolares do seu tempo de estudante. Entre suas recordações, guarda de lembrança o seu

certificado de conclusão do 4º ano primário:

Figura 19 Certificado de conclusão do 4º ano primário de Iracema da Silva Machado

Casagrande, 1942

Fonte: Acervo particular de Iracema da Silva Machado Casagrande

Depois de concluir a quarta série, em 1942, Iracema não deu continuidade aos estudos,

pois sua família não tinha condições financeiras para mantê-la na escola. Naquele momento, a

menina professora se deparou com a triste realidade, seu sonho ficaria na imaginação e se

concretaria somente nas brincadeiras de infância.

Ainda criança, Iracema construiu significados do que seria “ser professora” para ela,

“falava meu Deus, meu pai era uma pessoa que não podia, naquele tempo o estudo era tudo

pago, tudo pago, pago mesmo. E eu não tinha condições de estudar, tinha aquela vontade de

ser alguma coisa, de estudar, mas [...]”(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra,

10/07/2014). De acordo com as práticas vivenciadas, fez a sua própria leitura e demonstrou,

como sujeito produtor de história e de cultura, sua capacidade de fazer, desfazer e refazer

coisas.

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No dia 28 de agosto de 1947, a jovem Iracema casou-se com Desidério Casagrande, na

cidade de Rinópolis, e foram morar numa fazenda onde trabalharam na lavoura de café.

Algum tempo depois, seu marido quis mudar de cidade, para ficar mais perto dos parentes,

indo morar no sítio da sogra do seu cunhado, Antonio Casagrande. Na ocasião, viviam da

lavoura, cuidavam da plantação de café, feijão e arroz. O casal teve seis filhos: Álvaro,

Ailton, Adelson, Aparecida, Terezinha e Adalto.

Então, em 1960, Desidério Casagrande foi, com o seu irmão Antonio Casagrande, seu

cunhado Antonio Galhardo e algumas outras pessoas, conhecer o lugar que se encontrava

coberto de vegetação natural, em pleno Centro-Oeste de Mato Grosso. Eles gostaram do que

viram e das propostas a eles oferecidas pela empresa SITA. Antônio Galhardo adquiriu um

espaço que já estava sendo aberto e os irmãos, Antônio e Desidério Casagrande, adquiriram,

cada um, um pedaço da mata fechada para formar o sítio que tanto desejavam, Esse lugar era

a Reserva. A partir desse momento, passaram a trabalhar na sua própria terra e tempo depois,

colheram os frutos do esforço de toda a família.

Em outubro de 1963, fizeram a mudança de São Paulo para Mato Grosso, chegando ao

Centro-Oeste brasileiro, porém perceberam que o rincão hospitaleiro42

de destino era a

localidade de Tangará da Serra, que pertencia ao município de Barra do Bugres. Iracema

Casagrande, como ficou conhecida na comunidade da Reserva, ficou contrariada, pois sabia

que iria morar num sertão distante de seus pais e irmãos. Sem saber quando os veria

novamente, seguiu acompanhando o marido e seus seis filhos (o mais velho tinha quinze anos

e o mais novo um ano e meio). Segundo ela, “Vim conhecer o sertão, que era sertão mesmo,

só tinha uns rancho, tudo feito de madeira. Ou era madeira de pau partido ou era de

coqueiro, as casas. Não tinha nada, minha filha, não tinha nada” (CASAGRANDE, I. apud

VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 161).

Levaram oito dias de viagem, iam parando para comer, tomar banho no rio, quando

encontravam, e dormir. Chegaram ao escurecer “que triste, vê! Você não via nada, aquela

coisa esquisita, triste, triste mesmo, viu? Para as poucas pessoas que moravam aqui, era a

maior alegria quando chegava uma mudança. [...] não era cidade, era, que nem eles diziam,

era uma currutela” (CASAGRANDE, I. apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 161-162).

Para Iracema, o começo foi muito difícil, sentia falta das coisas que fazia, das coisas

que tinha, dos costumes e se lembrava da família, lá no estado de São Paulo, parecendo que

tinha saído de um mundo e entrado em outro: “que bom se a gente pudesse arrancar do

42

Música: Cuiabá de Tião Carreiro & Pardinho.

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pensamento e sepultar a saudade na noite do esquecimento, mas a sombra da lembrança é

igual a sombra da gente, pelos caminhos da vida ela está sempre presente”.43

Trouxeram na mudança somente os móveis e utensílios indispensáveis, entre eles a

máquina de costura, o guarda-roupa e o rádio, além de muitos mantimentos, pois sabiam a

dificuldade que enfrentariam para poder comprar alimentos e remédios. Quando chegaram ao

sítio, não tinham onde ficar, então,

[...] eles fizeram uma armação, fincaram uns paus e foram armar os

encerados. [...] Aquele tempo chovia bastante e eu ficava desesperada, vai

chover e vai acabar com o pouco que a gente trouxe. Mas graças a Deus

deu tempo de guardar as coisas embaixo do encerado. Quando vinha a

chuva, minha filha, aquela enxurradona que vinha, a gente tinha que

levantar e erguer a cama para a enxurrada passar. É, foi difícil. Aí

construíram um rancho, um rancho feio, de madeira de pau partido, não foi

de coqueiro, foi de pau partido. Fez uma peça pequena, uma coisa pequena

lá, tinha quatro peças, mas todas pequenas. Essa foi feita provisória. [...]

depois fez um casarão grande, mas de madeira de coqueiro. Tinha serraria,

mas não estava tendo condições de fazer uma casa de madeira. Aí fez um

casarão, tinha duas salas, tinha três quartos, tinha cozinhona, mas tudo de

madeira de coqueiro. Ah, como se diz, o costume da gente não mudou, foi

sempre o mesmo. O mais velho ajudava o pai na roça, ele tinha 15 anos, não

tinha assim muito aquela vocação de roça, mas sempre ajudava um pouco.

Eram quatro filhos homens que eu trouxe e duas mulheres. Aqui nasceram

mais dois filhos, a Maria José e o Adalberto, o mais novo que morreu com

um ano e pouquinho, que aqui não tinha recurso, deu hepatite aqui e não

teve jeito. (CASAGRANDE, I. apud VILALVA; MIYAZAKI, 2013, p. 162,

163).

Percebe-se que, mesmo diante de um espaço totalmente diferente de antes, os

costumes deveriam permanecer os mesmos, como se, assim, pudessem trazer um pouquinho

da realidade vivenciada anteriormente. As representações que tinham do novo espaço aos

poucos foram sendo transformadas e ressignificadas, oportunizando a construção de novas

formas de fazer.

Antes de começar a plantar, tiveram que preparar a terra. Desidério, seu irmão Antônio

e os filhos, que tinham entre treze e quinze anos de idade, trabalharam nessa empreitada

inicial. A primeira plantação foi de arroz, que teve bom rendimento. Somente depois de dois

ou três anos plantando arroz, começaram a plantar café, pouco a pouco, ano após ano,

Desidério Casagrande chegou a formar 20 mil pés de café no seu sítio.

43

Música: A mão do tempo, de Tião Carreiro & Pardinho, uma das músicas que Iracema Casagrande ouvia no

rádio.

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De sol a sol vivem trabalhando, tirar o leite, arrancar mandioca, plantam e colhem

com o suor do rosto44

, pouco a pouco criaram galinha, porco e vaca de leite. Para o sustento

da família colhiam na roça arroz, feijão, café, mandioca, batata doce, cana e mamão. Dona

Iracema que gostava de ouvir música no rádio levantava às cinco horas da manhã para ouvir

os cantores preferidos: Tião Carreiro & Pardinho, Teixeirinha e Tonico e Tinoco, “quando eu

morava lá eu tinha rádio, eu assistia todas as músicas de São Paulo, aquelas músicas caipira

de São Paulo mesmo, da capital, né! [...] quando eu vim pra cá eu trouxe o rádio e aqui eu

ouvia a rádio Nacional de São Paulo (risos)” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da

Serra, 10/07/2014).

Os caminhões carregados com móveis, utensílios domésticos, plantas ornamentais,

animais domésticos, homens, mulheres e crianças de diferentes idades foram chegando de

tempo em tempo. Novas famílias, novas amizades e as crianças foram aumentando na

comunidade da Reserva. No sítio Santo Antônio, pertencente a Antônio Galhardo, a

comunidade da Reserva se organizou para conseguir uma escola para que seus filhos

pudessem estudar numa escola próxima de suas casas.

A representação da escola para as famílias migrantes era símbolo de futuro próspero

promissor, já que muitos pais e mães eram analfabetos, pois não tiveram a oportunidade de

estudar, queriam garantir aos filhos a possibilidade de estudo e sucesso na vida.

Conforme visto anteriormente, fruto das mãos e lutas dos migrantes foi criada

oficialmente a segunda escola da localidade de Tangará da Serra no dia 18 de junho de 1965

que recebeu o nome de Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, localizada na

comunidade da Reserva. Quanto à sua nomeação como professora, Dona Iracema relata:

“Apontaram pra mim pra da aula por que só eu tinha até a 4º série, e os outros ninguém

tinha nada. Eu comecei a dar aula sem saber como começava (risos). Porque eu nunca tinha

dado aulas né? Não tinha preparação... (CASAGRANDE, I. apud NUDHEO, 2006).

Percebe-se que o trabalho na roça e o estudo eram valorizados, talvez, na mesma

intensidade por algumas famílias, pois, para algumas os filhos, ao chegarem da escola,

deveriam ir direto para a roça ajudar na labuta. A respeito, Iracema comenta:

Às vezes tinha um que falava: Ah, a senhora ensinando continha pro meu

filho tá bom! Ele sabendo fazer a continha, tá bom! Mas não é assim, ele

tem que aprender mais! Ele tem que aprender: a ler, a escrever, ter

conhecimento das coisas, de História, Geografia, essas coisas assim...É bom

44

Música: O Colono, de Teixeirinha, um dos cantores preferidos de Iracema Casagrande.

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ele ter um pouco de conhecimento né? Eles achavam que se aprendesse a

“fazer as contas”(riso) já tava bom! Mas nunca eles achavam ruim o que eu

fazia, nunca. (CASAGRANDE, I. apud NUDHEO, 2006).

O fato da qualidade do ensino não era colocado em discussão, mas a existência da

escola, como espaço próprio de desenvolvimento, sim (OLIVEIRA, 2009). Através dessas

vivências relatadas pelos migrantes pode-se reconhecer o que Chartier (1990) discorre quando

afirma que as representações podem ser pensadas como “[...] esquemas intelectuais, que criam

as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o

espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990, p. 17). E também compreender o que Nóvoa

(2002), enfatiza ao dizer que a escola e suas práticas são espaço de representações

constituídas socialmente, por isso, merecedoras da valorização do compromisso social com a

educação.

Sem esperar a realização do sonho de infância, Iracema Casagrande se surpreendeu ao

perceber que se tornaria professora,

É, eu tinha objetivo de ser professora um dia, mas nunca pensei que iria

alcançar esse objetivo e aqui em Mato Grosso alcancei, por falta de

professoras comecei a dar aula sem experiência pra dezoito alunos, porque

precisava, os filho dos empregado do meu cunhado precisavam de estudar,

meus filhos precisavam de estudar e eu comecei a ensiná-los assim sem

experiência. (CASAGRANDE, I. apud NUDHEO, 2006).

Passado algum tempo, ela realizou também o desejo de dar continuidade aos estudos

interrompidos ainda quando criança, não imaginando que, “depois de casar, depois de muitos

anos de casada que eu fui conseguir fazer o segundo grau. Você vê?” (CASAGRANDE, I.

Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Além da pequena comunidade rural da Reserva, pois, ao conquistar escola para que

seus filhos pudessem estudar, Iracema Casagrande realizou o desejo de estudar e ser

professora, o que sugere que a profissão não a desestimulou, ao contrário, a impulsionou para

uma formação adequada para desenvolver o seu trabalho:

Sou, sou muito feliz, eu vim pra cá contrariada jovem não gostava de vim

pra cá porque eu pensava que era sertão, eu nunca tinha me afastado da

minha família, de fato que meus parentes ficaram todos no estado de São

Paulo, somente eu vim pra cá com a família do meu marido e eu sentia

muita falta. Mas hoje eu sinto orgulho de estar aqui em Tangará porque

aqui eu alcancei meu objetivo que eu queria, gostava de estudar tinha

vontade de ser professora, mas sabia que minhas condições não podiam, que

lá era difícil até ginásio era pago no tempo que eu estudei não é como hoje

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que é tudo do governo, até 2º grau hoje tem facilidade para estudar, e eu

vim pra cá, depois dos 50 alcancei o objetivo que eu queria, uma coisa que

eu gostei muito, sempre gostei de dar aula, mas nunca pensei que eu ia

alcançar isso aqui. (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra,

10/07/2014).

A comunidade sempre foi unida, uns ajudavam aos outros; os pais dos alunos

participaram da construção da escola, “casa de barro, uns fala barrote [...] aquelas casinha,

tipo de rancho. [...] um pai de criança fez um fogão de barrotinho, um fogão sabe de terra

assim. Com tijolo e barro, porque não tinha cimento. Eu sei que ajeitou lá, e tinha um que fez

um cobertinho, e ali a agente fazia a merenda. [...] com aquela força de vontade, todo mundo

trabalhou, fez, ajudou” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

A primeira professora rural do município de Tangará da Serra, Iracema Casagrande,

construiu sua trajetória social como uma das pessoas responsáveis na dinâmica e efetivação da

política de (re)ocupação da fronteira agrícola mato-grossense, a partir dos anos 1960.

Sua história de vida, recontada através de memórias de quando “começou a ver de

novo as pobres coisas do chão” (BARROS, 2008, p. 32), e que teceram sentido, significado e

redimencionaram momentos de sua infância, de sua escolarização, do período de migração

para a região Centro-Oeste do Brasil, bem como do fazer-se professora. Alguns momentos da

sua vida que “ajudaram a compor essas memórias, colaboradores destas memórias despertas e

doadores de suas fontes” (BARROS, 2008, p. 32).

Passou do sonho à realidade: fez-se professora por experiência e, muito depois, por

formação. O respeito a ela atribuído fazia com que não fosse questionada sua competência ou

formação pela comunidade da Reserva. O importante para os habitantes do lugar era a

existência da escola e o empenho da professora em ensinar seus filhos, a ler, a escrever e a

contar. A impossibilidade da formação profissional, mesmo contrária à vontade dela, faz com

que houvesse a reprodução, no efetivo trabalho da profissional, das diretrizes estabelecidas

pelas elites dominantes, uma vez que não foi oportunizado à profissional a possibilidade de

pensar o conhecimento de uma maneira mais crítica.

Fazer-se professora, mesmo sem habilitação, em região de colonização recente de

Mato Grosso, foi uma prática comum, que se constituía em elemento fundamental para a

consolidação dos empreendimentos realizados pelos projetos de colonização privados

(OLIVEIRA; BECK, no prelo).

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101

2.5 E os alunos, quem eram?

Crianças de diferentes idades, filhas de trabalhadores rurais, lavradores que

acreditavam nas riquezas da terra e na família composta de filhos homens e mulheres de

coragem, garra e fé, filhos de homens e mulheres que caminharam entre lembranças,

esperanças, lutas, conquistas e venceram seus próprios limites, superando desafios.

Tratava-se de famílias simples, oriundas de diversos lugares do país, caminhantes em

busca de trabalho, envolvidos em diferentes crenças, culturas, etnias, raças, costumes e

valores. Geralmente, eram elas numerosas e cujos membros, desde pequenos, aprenderam a

importância da labuta de sol a sol, a importância de se empenhar e se esforçar na lida do dia-

a-dia para ter o que por na mesa ao entardecer. Aprenderam, sobretudo, que a terra trazia

fartura e diversidade de alimentos produzidos por eles próprios; aprenderam que o

companheirismo, a ajuda mútua e o respeito são fundamentais para a convivência;

aprenderam que as vivências fortalecem a luta que sempre enfrentaram.

Para conhecer sobre esses alunos é preciso ouvir/ler suas histórias, experiências, artes

de fazer de um tempo que ficou vivo na memória, o que foi possível lançando mão das

entrevistas com ex-alunos da professora dona Iracema Casagrande.

Seguem algumas lembranças dessas crianças que viveram sua infância no período

inicial da colonização de Tangará da Serra e que, adultas, deixaram transparecer algumas de

suas memórias. Suas histórias, tecidas em muitas outras histórias, serão recontadas inúmeras

vezes. Diante de cada uma delas nos aproximamos de alguns modos de vida das crianças que

viveram uma época distante da experimentada hoje (FIGUEIREDO, 2002).

Severino da Silva Camilo45

, ex-aluno da escola, relata sobre o motivo da vinda de sua

família para essa região, nos anos de 1960, “Meu pai, tocava café em Naviraí. Ele veio pra cá

pra tocar café também, porque lá geava muito e aqui não, era um clima mais quente. A

plantação aqui saiu boa, heim!” (CAMILO. Depoimento. Tangará da Serra, 18/05/2014).

Em relação a sua chegada, descreve:

Meu pai veio antes, ele saiu de Mato Grosso do Sul, fez tudo a derrubada, aí

voltou pra buscar nós. Eu, meu irmão e minha mãe. Nesse meio tempo ele

pagou pra fazer uma casinha lá, tipo um barraquinho, sabe? Enquanto ele

voltou pra buscar nós, essa pessoa fez o barraquinho. Olha, quando nós

45

Foi um dos meninos que frequentaram a Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, na comunidade da

Reserva. Ainda morador daquela região, atualmente, planta verduras e legumes e vende aos domingos na Feira

do Produtor de Tangará da Serra com sua esposa, local onde foi entrevistado pela pesquisadora.

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102

viemos pra cá em 1968, viemos de ônibus até Cuiabá. Depois em Cuiabá, nós

pegou outro ônibus até Santo Afonso. E de Santo Afonso pra cá nós veio de

carona, por dentro dos campos aqui, que nem estrada praticamente não tinha.

Chegamo aqui o pai tinha empreitado uma derrubada pra fazer. E daqui de

Tangará pra lá também não tinha estrada, nós foi no carrinho de animal,

alugamo um carrinho de animal pra levar nós lá no sítio. Aí quando nós

chegamo entramos dentro do barraquinho, o pai fez a derrubadinha, muito

pequena. Plantou café e fizemos umas plantadinha de arroz e por aí foi… criar

galinha, criar uns porco... (CAMILO. Depoimento. Tangará da Serra,

18/05/2014).

As dificuldades permeavam o cotidiano da família, no entanto, a esperança de adquirir

terra própria e vê-la produzindo era motivo suficiente para superação dos problemas que se

apresentavam. Nesse sentido, Severino comenta:

Pro meu pai e minha mãe, pra eles foi a maior alegria aqui. Porque lá nós

pagava renda. E aqui não. Aqui, já foi propriedade nossa mesmo. Ele

comprou. Então, vixi, isso aí mudou muito. Aquela alegria danada sabe!?

Apesar que era sofrido, pra estudar mesmo, eu tinha que andar seis

quilômetros. Seis pra ir e seis pra voltar, dá doze quilômetros. Até pra fazer

compra, quando vinha fazer compra, vinha nós tudo, porque tinha que vir a

pé. Então eu levava um pouco, meu irmão levava outro, o pai levava um tanto,

a mãe levava outro. Isso lá a cada dois, três meses que nós vinha fazer

compra, sabe? Porque era muito difícil, tudo mato. O pai fazia tudo picado

sabe?! (CAMILO. Depoimento. Tangará da Serra, 18/05/2014).

No dia a dia do menino Severino estava presente o trabalho na roça, prática que

aprendeu com o pai e com a mãe. Em suas lembranças, ele relembra que “naquele tempo nós

começou a trabalhar muito novo, o que nós podia fazer, nós fazia. Ajudava a capinar, limpar

o café e quando colhia arroz também nós ajudava. Ajudava, até umas dez horas, depois se

lavava e ia pra escola”. (CAMILO. Depoimento. Tangará da Serra, 18/05/2014).

Marly Helena da Silva Mota46

também foi aluna da professora Iracema Casagrande, na

comunidade da Reserva. Em relação ao trabalho na roça, ela comenta:

[…] o pai ia pra roça e já levava a nossa roupa pra lá. Então da escola a

gente ia direto pra roça. Aí lá trocava a roupa de trabalho e só ia a noite

embora. A gente brincava na roça, debaixo dos pé de café, fazia aqueles

montinho de terra. A brincadeira nossa era essa, na estrada. Não tinha

tempo. Aí chegava da roça cansado, dormia nos bancos, as vezes nem

46

Paranaense que migrou com a família para o Mato Grosso em 1976, quando tinha 6 anos, lavradoura desde

pequenina, deu sequencia aos estudos quando tinha mais de 30 anos e desde o ano de 2011 é formada em

Pedagogia. Há 3 anos ministra aulas na rede Estadual na Educação de Jovens e Adultos – EJA, no período

noturno. Efetiva há 10 anos na Prefeitura Municipal de Tangará da Serra, na função de Serviços Gerais, no

entanto, há 5 anos atua na secretária do Centro Municipal Agrícola de Ensino Ulisses Guimarães, localizado na

comunidade Belo Horizonte, km 10, local onde cedeu o seu depoimento para a pesquisadora.

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103

tomava banho de cansaço. (MOTA. Depoimento. Tangará da Serra,

07/04/2014).

Percebe-se que naquele período o trabalho estava inserido no cotidiano infantil, pois as

crianças, como membros da família trabalhavam juntamente com seus pais na lavoura, que era

diversificada, para o sustento da família, “os lavradores geralmente reservavam espaço em sua

propriedade para as lavouras de café, arroz, feijão e milho, além de pastagem para o gado”

(OLIVEIRA, 2005, p. 89), ou nos afazeres domésticos. É o que Maria Julia Eler rememora:

No caminho da escola pra casa nós ia andando, correndo, brincando e

brigando também (risos). Criança, né... (risos) Quando chegava em casa,

nossa! Nós ainda ia trabalha na roça, tava cedo... em casa também nós tinha

serviço, que era varre um terrero, cata lenha, trata de um porco... tudo isso

nós que fazia. Minha mãe dividia o serviço, nosso pai já tinha falecido, ela

dividia o serviço... nós ajudava ela na roça, plantava arroz, milho, tinha café,

de tudo... feijão... nós também carpia, ajudava colher café, arroz... tudo pro

nosso consumo, a única coisa que a gente vendia era café e arroz, os outro era

pro nosso consumo. Eu era responsável pela cozinha, a Doca lavava roupa... a

tarde nós brincava, já escurecendo, mas nós tinha tempo e era bom, nossa!

Era bom demais, porque lá em casa era bastante, aí nos vizinho tinha, aí o

otro tinha, vinha tudo lá em casa... até os filho da dona Zilda que eu te falei,

eles morava mais longe, mas vinha de bicicleta e quando nós tinha mais tempo

ia aprende a anda de bicicleta, nós não tinha, era na bicicleta deles... vixi era

muito bom... a noite nós ia pra reza, pro terço, mais nossa, nós ia longe... uma

turma... cada dia era numa casa. (ELER. Depoimento. Tangará da Serra,

10/07/2014).

Desde pequenos aprendiam a trabalhar e a valorizar as lidas do campo como essenciais

para o sustento da família, geralmente grande. Mesmo nas crianças inseridas nessa rotina de

trabalho árduo, de sol a sol, é possível observar que a brincadeira era a linguagem utilizada pela

criança para compreender o mundo, pois, muitas delas ao capinar ou limpar o café envolviam-se

em brincadeiras, mesmo que sozinhas, e brincavam de trabalhar e trabalhavam brincando,

espontaneamente. Percebe-se que, através da “história oral temos um recurso que amplia as

possibilidades de abordagem da história da infância” (KUHLMANN JR, 1998, p. 29).

Antônio Francisco da Silva47

relembra:

Quando eu voltava da escola, eu levava o almoço, meus irmão tava tudo

trabalhando com o meu pai na lavora, finada minha mãe fazia a comida eu

pegava e ia leva 5 marmita na roça. Eles comia daí eu pegava a marmita e

voltava pra casa, a finada minha mãe ia lava e fazer a janta, eu ajudava

minha mãe nas coisa de casa. Brincava de corre, esconde, passa anel...

Depois nós foi crescendo mais um pouquinho, aí nós fazia arco de penera ou

47

Ex-aluno da professora Iracema nos anos 1970. Estudou a primeira e a segunda série com ela, após mudou-se

da comunidade da Reserva e consequentemente de escola.

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de bicicleta fazia uma arquinho e saia rodando, correndo atrás dele, uma

maravilha... na hora do descanso na roça ele dechava nós brincava, até o

finado meu pai em 75 compro uma bicicleta pra nós, nós pintamo de sete cor

a bicicleta, cada pedacinho de uma cor de pincel... ah! Um descia, o outro

montava, um descia, o outro montava, aquilo foi uma festa (risos) nós ia

longe com aquela bicicleta, hein!! (SILVA. Depoimento. Tangará da Serra,

17/08/2014).

A criança demonstra sua capacidade de fazer, desfazer e refazer coisas. Aprende

representando os exemplos dos adultos nas brincadeiras, geralmente exposta à decisão e ao

poder do adulto, confirmando o significado de lugar, que Certeau (1994) nos apresenta como

estático, uma ordem, um lugar de poder. As crianças e as infâncias podem ser definidas como

um conjunto de movimentos, de ações, de práticas que, portanto, combinam com espaço, ou

seja, torna o espaço um lugar praticado (CERTEAU, 1994).

As crianças estão sempre reinventando e essa capacidade é capaz de transformar tudo

em lazer, em diversão, mesmo ao relatar sobre a vida difícil na lavoura, sobre o exaustivo

trabalho no cabo da enxada, as brincadeiras faziam-se presentes quebrando a rotina cansativa.

A condição da criança em movimentar-se criativamente fazia divertido o espaço,

transformando em brinquedo o que tinha ao alcance das mãos, utilizando, algumas vezes, as

próprias ferramentas de trabalho.

Na roça, vivenciavam vários momentos de brincadeira, “na hora do descanso o pai

deixava nós brinca, fazia carrinho de carretel de linha, cortava tabuinha e colocava em cima,

nós brincava, ali era o nosso carro” (SILVA. Depoimento. Tangará da Serra, 17/08/2014).

Brincar de esconde-esconde entre os pés de café ficou na memória de vários adultos que

foram crianças no período em estudo:

A natureza sempre estava relacionada ao lazer das crianças, aproveitar os

rios, árvores, a chuva e a própria terra do quintal era um componente do

cotidiano de meninas e meninos da zona rural. Além de servir-se de

abóboras, buchas, espigas de milho como reprodução de animais ou de

bonecas. Os meninos armavam arapucas e faziam estilingues, reproduzindo a

atitude de caça dos adultos, atividade usada em regiões de colonização

recente. (OLIVEIRA, 2005, p. 92).

Dentre as brincadeiras são destacadas as de roda, de corda, balanço na árvore, bola,

corrida, esconde-esconde, casinha e boneca à sombra dos pés de manga, banho de rio,

pescaria, comidinha de verdade, chá de folha, queimada, corrida de carriola, pica pau,

amarelinha, fazer fogueira e queimar plástico. Participavam dos cultos e missas de domingo e

depois assistiam ao jogo de futebol da comunidade, e nos dias de semana participavam da

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oração do Terço na casa dos vizinhos. Sempre que havia festa na comunidade, todas as

famílias se reuniam para festejar, e as crianças aproveitavam para brincar.

Durante o percurso de casa à escola, “comia fruta nativa do mato, nós comia,

limãozinho que dá no mato e umas frutinha pequena” (SILVA. Depoimento. Tangará da

Serra, 17/08/2014), aproveitando para brincar de pega-pega e corrida, além de literalmente

correr de medo dos animais que encontravam pelo caminho, principalmente dos macacos, “eu

tinha medo de macaco, eles pulava eu ficava com medo, eu assustava (risos), corria, chegava

na escola chujo, muitas das vezes... ia de chinelo de dedo não tinha sapato fechado” (SILVA.

Depoimento. Tangará da Serra, 17/08/2014).

As crianças que frequentavam a escola eram moradoras do espaço rural da Reserva,

mas também “tinha umas crianças que vinham lá do Queima Pé48

, esses eram os que vinham

de mais longe, os outros vinham da redondeza mais pra baixo, mais pra lá um pouco...”

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 06/04/2014), próximo a comunidade da

Reserva existia outras, que foram se formando aos poucos: Córrego das Pedras, Km 11, Km

12, Pé de Galinha, entre outras. Como só existia a escola na Reserva, algumas crianças

frequentavam a Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, até que fosse criada uma

instituição escolar mais próxima de onde moravam.

Conforme os registros da SEMEC (2004), no ano de 1973, Tangará da Serra atendia

808 alunos de 1ª a 4ª séries, distribuídos entre as 20 Escolas Rurais Mistas Municipais, sendo

que naquele mesmo ano a Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio atendeu 43 alunos,

sendo 23 alunos da 1ª série, 16 alunos da 2ª série e 4 alunos da 3ª série.

A seguir, fica demonstrado, através de gráfico, o total de alunos matriculados nos anos

de 1973 até 1983, bem como o número de meninas e meninos que frequentaram a escola

nesse período:

48

Comunidade rural distante da escola que tinha algumas crianças frequentando a Escola Rural Mista Municipal

Santo Antonio, na comunidade da Reserva.

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Figura 20 Total de alunos, meninas e meninos (1973 até 1983)

010

2030

4050

60

1973

1974

1975

1976

1977

1978

1979

1980

1981

1982

1983

totaldealunos meninas meninos

Fonte: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 2014

Não tendo sido encontrados os documentos escolares de 1965 até 1972, nos arquivos

dos órgãos competentes, tem-se informações, através de fonte oral, que no primeiro ano de

funcionamento da escola encontravam-se matriculados 18 alunos, sendo 9 meninas e 9

meninos, e que, posteriormente, chegou-se a ter 80 alunos matriculados, sendo necessária a

reorganização das turmas, para o atendimento a todos. Nesse sentido, a professora Iracema

distribuiu as turmas em dois períodos, matutino e vespertino, mesmo com recebimento

salarial referente a 20h semanais, inferior ao período de trabalho.

Os dados obtidos através dos livros atas de matrículas, de 1973 até 1983, demonstram

o maior fluxo de alunos matriculados na escola, entre os anos de 1973, 1977, 1978 e 1981,

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apresentando o total de 43, 58, 60 e 53 alunos, respectivamente. A partir dos dados

observados, constata-se também relativo equilíbrio entre a quantidade de crianças do sexo

feminino e do masculino, pois, nesse período de 11 anos, a escola registrou 398 crianças

matriculadas, sendo, aproximadamente, 48% de meninos e 52% de meninas.

A disparidade em relação à quantidade de matrículas constatada refere-se ao fluxo de

migrantes, constante na comunidade, como demonstrado através dos dados demográficos

referentes ao levantamento realizado pelo Padre José Aleixo Kunraht junto às comunidades

rurais, no início dos anos 1960.

A Tabela a seguir estampa a idade dos alunos matriculados de 1ª à 4ª séries, durante o

ano de 1979:

Figura 21 Idade alunos por série/ano 1979

Idade

Série

06 a 07

3

___

___

___

08 a 09

13

1

___

___

10 a 11

7

5

2

___

12 a 14

1

2

2

3

24

8

4

3

Total

39

Fonte: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 2004

Através dos dados educacionais referente ao ano de 1979, percebe-se que a distorção

idade/série era uma constante na Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio da comunidade

da Reserva, situação que deveu a vários fatores, dentre eles a dificuldade de acesso à escola

para crianças provenientes de migração rural-rural, pelas longas distâncias da escola e, talvez,

a inexistência dela por muito tempo, pela necessidade de mão de obra para o trabalho na roça,

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desistência e/ou a reprovação, o fato dos pais, muitas vezes, serem analfabetos e não

valorizarem a escola e/ou não incentivarem os filhos à frequência escolar, as dificuldades da

professora leiga gerir o seu trabalho com turma multiseriada, além de ter que conciliar as

diferentes idades, 6 a 14 anos, que poderiam ter, talvez, o mesmo desempenho escolar, porém,

do ponto de vista do seu desenvolvimento afetivo, social e intelectual seriam diversas as

dificuldades de aprendizagem, entre outros.

O próximo gráfico diz respeito à naturalidade dos alunos matriculados na escola em

1979:

Figura 22 Naturalidade dos alunos matriculados em 1979

0 5 10 15 20 25 30

MatoGrosso

MatoGrossodoSul

Goiás

Paraná

SãoPaulo

númerodealunos

Fonte: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 2014

Através das informações sobre a naturalidade dos 39 alunos matriculados na escola em

1979, aproximadamente 11% eram mato-grossenses (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul),

68% paranaenses, 16% paulistas e 5% eram goianos. Portanto, compreende-se que, mesmo

correspondendo ao período do segundo fluxo migratório na região da Reserva, os dados

apontam que os paranaenses eram em maior número, seguidos dos paulistas. Mesmo

transcorridos 20 anos da chegada dos primeiros migrantes à região, a concentração de

moradores mato-grossenses na comunidade era pequena. Relevante é ressaltar que entre os

migrantes que seguiram a rota do café, além dos paulistas, “também estão neste fluxo os

nordestinos, cuja parte dos filhos daqueles que migraram para Tangará da Serra são

paranaenses” (OLIVEIRA, 2012, p. 39). As famílias migrantes, nos anos de 1970, foram

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também motivadas se deslocar a partir das propagandas de amigos e parentes que já residiam

na região, entusiasmados pela da terra fértil ” (OLIVEIRA, 2012).

Pode-se afirmar ser o aluno uma criança que, nas interações e práticas cotidianas

vivenciadas, construiu sua identidade pessoal e coletiva, portanto, além da educação escolar,

as vivências e relações sociais contribuíram na sua formação.

A infância é uma condição da criança e as experiências vividas por elas “[...] em

diferentes lugares históricos, geográficos e sociais é muito mais do que uma representação dos

adultos sobre esta fase da vida. É preciso considerar as crianças concretas, localizá-las nas

relações sociais, reconhecê-las como produtoras da história” (KUHLMANN JR, 1998, p. 31).

A partir desse ponto de vista, é difícil afirmar que a criança teve ou não infância.

“Seria melhor perguntar como é, ou como foi, sua infância” (KUHLMANN JR, 1998, p. 31).

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CAPITULO III

OS ESPAÇOS, AS RELAÇÕES E OS SABERES ESCOLARES: A CULTURA

ESCOLAR DA ESCOLA RURAL MISTA MUNICIPAL.

SANTO ANT

Fonte: Quadro a óleo de autoria do artista plástico Antonio Teixeira

Figura 23 Retrato falado da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, anos 1960

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111

A imagem da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, localizada na comunidade

rural da Reserva, em Tangará da Serra, ilustra o início do capítulo. Devido a não localização

de fotos, o artista plástico Antônio Teixeira49

pintou, especialmente, um retrato falado dessa

escola, com base na descrição do espaço escolar e seu entorno, feito pela professora

Iracema50

, que, conforme mencionado anteriormente, vivenciou o processo de sua criação, em

1965, e permaneceu trabalhando na instituição até 1983.

Uma pequena clareira aberta em meio à mata deu início ao processo escolar na

comunidade da Reserva, no sítio Santo Antônio, de propriedade de Antônio Galhardo.

Através da imagem pode-se conhecer como era distribuído o pequeno espaço que

compreendia a escola alguns anos após a sua criação, início anos 1970, pois já era de madeira

e media, aproximadamente, 12 x 6m, no entanto as telhas ainda eram de tabuinhas, a porta

posicionada na direção da estrada e tinha um placa, também de madeira, com sua nominação,

além de duas janelas de madeira de cada lado, sendo o piso de cimento. A sala estava

equipada com mesas e bancos que acomodavam até 8 crianças, 4 de cada lado, dois quadros

de giz pequenos, uma mesa, cadeira e cartazes confeccionados pela professora. O pátio da

escola era pequeno, de chão batido e uma cerca separava o pátio do pasto e das plantações de

café, posicionadas do outro lado. Atrás da escola havia uma pequena cobertura que protegia

um fogão feito de barrote e uma mesa, local onde era feita a merenda para as crianças. Poucos

metros dali, uma casinha de madeira, o banheiro e, finalmente um pouco mais distante um

poço. Desde a criação da escola, em 1965, o espaço foi sendo modificado pelas mãos da

comunidade.

Adentrando no seu interior, onde as relações entre professora, alunos, pais e

comunidade foram estabelecidas e a partir das quais se constituíram o espaço e o tempo

escolar, o método, os materiais e os saberes escolares que compõem a cultura da escola. Tudo

foi parcialmente reconstituído, pela presente investigação, tendo por base a memória daqueles

que viveram essa dinâmica, através dos recursos da História Oral, adicionados às fontes

icnográficas e escritas.

49

Acadêmico do curso de Arquitetura da UNEMAT/Barra do Bugres e residente em Tangará da Serra. 50

O artista plástico Antônio Teixeira esteve na residência da professora Iracema no mês de agosto de 2014 para

a realização do retrato falado, momento que Maria José Casagrande e Álvaro Casagrande, ambos filhos da

professora Iracema estavam presentes e colaboraram com suas memórias sobre a escola.

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112

3.1. A luz da memória: a história recontada

A escola, enquanto instituição social dedicada à produção e recriação de um saber

organizado, é promotora de uma maneira específica de educar, mas não única, pois as

vivências e relações sociais também contribuem para a educação das crianças.

Escrever sobre a cultura escolar materializada no interior da Escola Rural Mista

Municipal Santo Antonio torna-se um grande desafio ao historiador que tem as práticas como

artes de fazer (CERTEAU, 1994), que acredita que o ofício do historiador não é ler as marcas

que as pessoas comuns fizeram na história, “mas salvaguardar sua errância, sua ruptura

escolhida ou submetida à ordem (alterável) das coisas” (FARGE, 2011, p. 29).

Propõe-se, nesse sentido, através do campo da História Cultural analisar a cultura

escolar produzida pelos sujeitos escolares a partir das discussões de Dominique Julia (2001),

que a descreve como:

[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e

condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão

desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e

práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas

(finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização).

(JULIA, 2001, p. 10).

Portanto, para o mesmo autor, a cultura escolar compõe-se de normas que estabelecem

os conhecimentos a ensinar, condutas a impor e práticas, coordenadas às finalidades que são

variáveis. Salienta também a importância de se compreender novas construções na

constituição da cultura escolar, as relações entre diferentes culturas (cultura infantis, juvenis,

adultas, familiares, religiosas, entre outras) estabelecidas no interior da escola, como também

as diversas formas de interação de seus membros (JULIA, 2001), além do “significado de

perscrutar as relações interpessoais constituídas no cotidiano da escola, seja em função das

relações de poder ali estabelecidas, seja em razão das diversas culturas em contato” (VIDAL,

2009, p. 26).

Ao analisar normas e práticas, torna-se imprescindível levar em conta os profissionais

da educação que realmente são quem aplicam as normas através das práticas, utilizando-se de

vários dispositivos pedagógicos nessa busca (JULIA, 2001). Nesse caso, trata-se da

professora Iracema da Silva Machado Casagrande, que atuou como única professora da

instituição escolar rural durante, aproximadamente, 18 anos.

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O conceito de cultura escolar e que permite a ampliação da compreensão da função

social da escola destacando-a como transmissora e produtora de cultura específica, além de

percebê-la enquanto espaço de convivência de diferentes culturas, é recente:

Às denúncias sobre a ação da escola como aparelho ideológico do Estado

somaram-se interrogações sobre o funcionamento interno da instituição. O

olhar tem recaído principalmente sobre os sujeitos, com o objetivo de

perceber como traduziram e traduzem as regras legais, as normas

pedagógicas e os imperativos políticos em práticas escolares. Emergiram,

nesse cenário, pesquisas dedicadas a compreender os usos feitos dos

materiais escolares, dos espaços da escola e de seus tempos. (VIDAL, 2009,

p. 26).

Ao definir cultura escolar, Julia (2001, p. 13) utiliza, inclusive, uma “metáfora

aeronáutica, a ‘caixa preta’ da escola”. Essa concepção adotada na presente dissertação tem

por base o adentrar no espaço escolar rural particular, específico e singular, objeto central

desta pesquisa.

Sob a ótica dos estudos culturais, a partir da constituição de um sistema de

significação, o conhecimento é reconhecido como cultural (TADEU, 2011). Partindo dessa

premissa, entende-se que o currículo é lugar, espaço e saberes. Mas também relação de poder,

trajetória, escolhas, percurso: “O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no

currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é

documento de identidade” (TADEU, 2011, p. 150).

Como esclarecido, a Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio foi a primeira

instituição de ensino municipal criada em Tangará da Serra, que, na época de sua criação,

1965, pertencia administrativamente ao município de Barra do Bugres, até 1976. Portanto,

todo o espaço era considerado rural.

Na busca pelas fontes que registrassem as práticas produzidas pelos sujeitos históricos

que vivenciaram a trajetória dessa instituição escolar, foram encontradas algumas limitações.

Infelizmente, na prefeitura municipal de Barra do Bugres e na Secretaria Municipal de

Educação foram encontrados poucos documentos relacionados à educação nos anos 1960 e

1970, apenas dados referentes ao pagamento de vencimento dos professores relativos aos anos

de 1973, 1974 e 1975. Na Câmara Municipal de Barra do Bugres foram encontradas poucas

informações nas atas do legislativo durante o período de criação da escola até a emancipação

político-administrativa de Tangará da Serra (1965-1976). Na Secretaria Municipal de

Educação e Cultura de Tangará da Serra foram encontrados livros de matrícula e de exames

finais, de 1973 a 1983, e o livro ata de reuniões do setor de Educação, de 1981, 1982 e 1983.

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Portanto, as fontes disponíveis para a escritura da história da Escola Rural Mista Municipal

Santo Antonio se resumem a alguns livros de matrícula, alguns livros de exame final, ata de

instalação da escola e ata de posse da primeira professora, Livro Tombo da Reitoria de Nossa

Senhora Aparecida, a Tese de doutorado intitulada: “Migração de Escolarização: histórias de

instituições escolares de Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil 1964-1976”, escrita por

Carlos Edinei de Oliveira, o jornal Folha de Tangará, 1974-1975, algumas fotografias e as

entrevistas realizadas, com a professora Iracema da Silva Machado Casagrande; com os ex-

alunos; Maria José Casagrande, Marly Helena da Silva Mota, Severino da Silva Camilo,

Maria Julia Eler, Maria de Fátima Gomes, Assis de Souza Lacerda, Ivonete Maria Oliveira,

Altair de Souza Lacerda, Antonio Francisco da Silva, Roberto Gomes e Antônio José

Galhardo; com as mães de ex-alunos, Dorvilha Casagrande Galhardo e Zilda Dias de Souza

Lacerda; com a filha de um dos proprietários do sítio onde a escola funcionava, Ruth Matheus

Eler, e com José Gonçalves Capucho.

Os relatos de memória utilizados para análise e conhecimento da cultura escolar da

escola rural são referentes às práticas vivenciadas por diferentes atores, entre eles alunos,

professora e mães. Conforme Montenegro (2010, p. 69), “esses atores sociais anônimos

adquirem visibilidade através de narrativas que descrevem, com uma diversificada riqueza de

detalhes, experiências cotidianas, que comumente se perdem nos desvãos da história”.

Reconhecer a história oral como fonte para a pesquisa historiográfica foi uma grande

contribuição da École des Annales, enquanto ampliação da noção de documento histórico.

Como esclarece Febvre (1984):

A história se faz com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes

existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando

não existem. Com tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar

para fabricar o seu mel na falta das flores habituais. [...] numa palavra, com

tudo que pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem,

exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e a maneira

de ser do homem. (FEBVRE apud LE GOFF, 1984, p. 98).

Se lembrar não é reviver, mas refazer, refletir, repensar com imagens e ideias de hoje

as experiências do passado (BOSI, 1994), “narrar é reiterar o vivido, o compartilhado”

(VIDAL, 1990, p.77), é também trazer a tona o particular, o cotidiano para que a sociedade

possa conhecer e, talvez, reconhecer-se nas experiências vivenciadas por sujeitos históricos

que são transformados, mas também transformam, o meio em que vivem através de suas artes

de fazer num determinado espaço, nesse caso, o de colonização recente.

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Tendo a cultura escolar como objeto histórico,

[...] chegou o tempo de olhar com mais atenção para a internalidade do

trabalho escolar, nomeadamente os momentos de conflito e ruptura. O

funcionamento interno das escolas, o desenvolvimento do currículo, a

construção do conhecimento escolar, a organização do cotidiano escolar, as

vidas e a experiência dos alunos e dos professores: eis algumas das

problemáticas que precisam ser abordadas através de novos instrumentos

teóricos e metodológicos. (NÓVOA, 1994, p. 5).

Portanto, “o olhar para as práticas cotidianas da escola fixa-se nos acontecimentos

silenciosos do seu funcionamento interno. Silenciosos, seja pela ausência de documentos, ou

documentos pouco conservados, seja, ainda por não terem sido encontrados” (GONÇALVES;

FARIA FILHO, 2005, p. 33), ou pela presença dos possíveis ‘não ditos’ que também fazem

parte desse espaço particular.

3.2 A cultura material da escola

Como citado no capítulo anterior, a Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio foi

construída na zona rural da Reserva, pelas mãos dos migrantes que para lá foram em busca do

seu próprio “pedaço de chão”. O espaço foi reocupado a partir de 1959, quando chegaram as

primeiras famílias, portanto que impulsionaram a colonização recente na região Centro-Oeste

do país, e tudo estava por ser feito. As instituições escolares constaram apenas na promessa da

empresa colonizadora, até que as famílias, necessitadas de melhores condições de instrução

para seus filhos, pois o número de crianças estava crescendo a cada dia, sendo que algumas

precisavam dar continuidade aos estudos que haviam iniciado no lugar de origem, resolveram

construir, com as próprias mãos e custos, a primeira escola rural da Reserva.

As condições do espaço onde moravam era precária para suprir as necessidades das

famílias, que superavam os próprios desafios unindo-se como “uma grande família” (SILVA.

Depoimento. Tangará da Serra, 17/08/2014).

Para “erguer a escola”, como eles mesmos relatam, utilizaram dos materiais de que

dispunham na localidade, madeira, retirada do mato, e barro, justamente os mesmos materiais

que compunham as casas ou “ranchos” onde habitavam. A aluna da escola daquele período,

Ivonete Maria Oliveira, atualmente residente na cidade de Várzea Grande, casada com

Assis de Sousa Lacerda, que também estudou nesta instituição, conta o que lembra a esse

respeito:

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A escola era feita de coqueiro lavrado, eles abria o coqueiro e fazia a

escola, coberta de tabuinha, lá fora era um terrenão bruto, não tinha piso,

era chão, tinha um poço que a gente tirava água lá... tinha um pouco de

sombra... dentro da sala tinha aqueles bancão de pau bruto, que os pais

fizeram com a madeira que tiravam do mato, a mesa era de tábua bruta

também, um banco cabia quatro aluno, num banco só. A professora

organizava as criança que era da quarta série numa mesa, da terceira na

outra, a segunda na outra e a primeira... era tudo assim... separado por

mesa. Banheiro não tinha, era o mato mesmo, depois de um tempo fizeram

um mictório, um buraco no chão com uma casinha. Os pai dos aluno se

ajuntaram e tiraram as madeira do mato com o machado, que não tinha

muita ferramenta e carregaram nas costa esses pau tudinho, levantaram a

escolinha, aí a dona Iracema começo lecionar nessa escolinha e eu era uma

das alunas. (OLIVEIRA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

Pela imagem a seguir, pode-se observar como ficou a escola construída pelos pais das

crianças no período inicial de sua instalação:

Figura 24 Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio construída pelos migrantes em 1965

no espaço rural denominado Reserva

Fonte: Acervo da Sala de Memória de Tangará da Serra-MT

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A fotografia51

foi doada para o acervo da Sala de Memória por José Gonçalves

Capucho, imagem realizada durante suas visitas às escolas rurais, a fim de “levantar as

condições e necessidades das escolas para programação de sua construção em madeira e

telhas, pois a maioria era de pau-a-pique, cobertas de tabuinhas” (CAPUCHO. Depoimento.

Tangará da Serra, 08/12/2014), no período em que Tangará da Serra pertencia ao município de

Barra do Bugres. Responsável por esse trabalho, José Capucho fotografou todas as escolas

rurais que visitou e fez um relatório sobre as condições de cada uma delas, a fim de fazer uma

programação de sua construção. A Professora Iracema lembra: “[...] construiu uma escola de

madeira só depois que a prefeitura de Barra do Bugres veio e fez o levantamento tudo

certinho e ai então construiu uma escola de madeira” (CASAGRANDE, I. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

Ao direcionar o olhar para a arquitetura da escola, pode-se visualizar seu aspecto

rústico, comum a todas as entrevistas, inclusive as telhas, que eram feitas de tabuinhas com

uma ferramenta produzida pelos colonos. A seguir, exemplar fotografado da ferramenta

utilizada para fazer esse tipo de telha:

51

A inexistência de fotografia da escola no período de sua criação foi real até que esta imagem foi entregue na

Sala de Memória pela professora Odete Sebastiana Ribeiro a pedido de José Gonçalves Capucho, juntamente

com outras fotos que foram intituladas como: escolas rurais de Tangará da Serra, ao saber da existência dessas

fotografias pelo professor Dr. Carlos Edinei de Oliveira, no 2º semestre de 2014, a pesquisadora levou consigo

durante as entrevistas com os sujeitos da pesquisa, os quais reconheceram esta, como sendo a Escola Rural Mista

Municipal Santo Antonio, inclusive a professora Iracema e o seu filho, Álvaro, além de procurar por José

Gonçalves Capucho a fim de ter mais informações, diante das dificuldades para manter contato com ele,

conseguiu somente depois da ajuda da professora Vânia Chaves que colaborou significativamente para que a

pesquisadora conseguisse maiores informações e detalhes a respeito.

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Figura 25 Ferramenta utilizada pelos migrantes para confeccionar artesanalmente telhas para

as construções na região

Fonte: Foto da autora, 2014. Acervo da sala de Memória de Tangará da Serra

Essa ferramenta pertenceu a Antônio Vaz, mais conhecido por ‘Capichaba’, e foi

doada para compor o acervo da Sala de Memória do município, pelo seu filho, Loir Vaz. A

imagem foi realizada pela pesquisadora, no mês de julho de 2014.

Esses foram alguns dos objetos históricos construídos, adaptados ou até (re)inventados

pelos migrantes, grupo social que buscava maneiras de fazer para suprir as necessidades

coletivas.

A professora Iracema Casagrande descreve o espaço externo e interno da escola,

enfatizando seu aspecto rústico e as dificuldades enfrentadas:

Primeiro construiu de madeira de coqueiro e barrote, telha de tabuinha que

nem um ranchão... Era uma sala só, madeira grosseira, sabe? No começo as

janelas não tinha a parte de fecha, só tinha os buraco das janelas (riso) a

porta era grande, tinha uma porta velha que eles colocaram lá... era chão

batido. O banheiro era o mato, um pasto que tinha perto da escola (riso),

com o passar do tempo eles fizeram uma casinha. Depois de um tempo a

prefeitura da Barra mandou madeira para fazer a escola de madeira e telha,

as telha era muito pesada... de cimento (riso), fez a parte para fechar as

janelas, acho que era no tempo do prefeito Amando. Ai me deram um

quadro maior, que eu comecei com um quadro pequeno, pedi o quadro,

deram o quadro maior. Ai foi melhorando devagarinho... Os móveis dentro

da escola eram uns bancos feitos de madeira grosseira, que as crianças

podiam sentar e escrever em cima na mesa de tábua comprida... [...] quem

fez tudo foi o Galhardo que era o dono da propriedade aqui da escola,

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Antonio Galhardo e os outros pais de alunos tudo, reuniram com aquela

força de vontade, todo mundo trabalhou, fez, ajudou. (CASAGRANDE, I.

Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Severino da Silva Camilo, aluno que caminhava cerca de 6 km, sozinho, pelo mato

para estudar, em meio às memórias desse período de sua vida lembra que “[...] as carteiras

era tudo uns banco, feito uns banco mais baixo pra gente sentar e outro mais alto pra gente

escrever. [...] uma escola bem simplesinha mesmo que foi o pessoal lá mesmo que fizeram,

bem simplesinha”... (CAMILO. Depoimento. Tangará da Serra, 18/05/2014).

Nas lembranças de Altair de Souza Lacerda, os móveis da escola estavam presentes,

“era aquelas carterona grande sentava uns três quatro junto, era rústico o estilo da escola”

(LACERDA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

Com relação aos bancos e mesas construídos pela comunidade, pode e deve ser

lembrado que não eram eles apropriados à altura das crianças, considerando que a diferença

de idade entre os alunos variava. Com esses móveis, a posição forçada do corpo poderia gerar

desvios na coluna, ao contrário das mesas separadas da cadeira, que poderiam adequar-se

melhor a diferentes estaturas das crianças.

A professora Iracema Casagrande, lembra ainda que, depois que Tangará da Serra se

tornou município, em 1976, a primeira, perfeita Thais Barbosa, mandou umas carteiras para

os alunos:

[...] não era umas carteiras feitas, uma própria carteira de escola. Achei

que não podia, a primeira escola que eles abre aqui em Tangará merecia

carteira mesmo! Individual pras crianças sentarem, pra escrever, uma coisa

mais... cômoda. Ai pegamos as carteiras, colocamos tudo pra fora. Eu fui na

prefeitura e falei: Olha, eu não aceito essas carteiras não, a gente tem que

fazer a limpeza da escola esfregando e eu quero carteiras pras crianças! Ai

foi que o seu Amando falou com ela e mandaram carteiras individuais pra

escola. (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Através do relato da professora Iracema, fica evidente sua resistência em aceitar

materiais inadequados para as crianças, por muito tempo. Percebe-se, além da sensibilidade

humana, a coragem, a força e a determinação da professora, não apenas pelas suas vivências e

a dos sujeitos entrevistados, através da luta e das artes de fazer, que permearam o ambiente

escolar e a vida cotidiana da comunidade da Reserva, mas também pela superação dos

desafios enfrentados por ela desde sua chegada, mesmo que contrária a sua vontade, ao sertão

mato-grossense. Ao assumir a responsabilidade de ensinar as crianças da comunidade, mesmo

sem formação e “sem saber como ensinar”, ao decidir parar de ministrar aulas diante de meses

sem remuneração salarial, ao lutar por melhores condições de infraestrutura na escola, ao

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voltar a estudar depois de anos passados e ao assumir outras responsabilidades e funções na

Secretaria Municipal de Educação a partir de 1984, demonstrou seu compromisso com a

comunidade tangaraense.

Apesar de conflitos e tensões fazerem parte da vida real daquele núcleo populacional,

na maioria das vezes, durante os relatos de memória, os depoentes ficam adormecidos, ocultos

ou mesmo silenciosos, na tentativa de reconstruir somente imagens positivas e coerentes de si

mesmo e do grupo social a que pertencem.

Para Chartier, “práticas” e “representações” são complementares, e a cultura é

produzida pelos sujeitos produtores e receptores de cultura na relação interativa entre ambos,

resultando nos ‘modos de fazer’ e nos ‘modos de ver’, tanto individual quanto coletivamente

(BARROS, 2004). Nesse sentido, a História Cultural interessa pelos sujeitos produtores e

receptores de cultura, evidenciando que se constituem práticas culturais não somente às

técnicas e os objetos culturais produzidos por uma sociedade, mas também os usos e costumes

que a caracterizam, “os modos como em uma dada sociedade, os homens falam e se calam,

[...] conversam ou discutem, solidarizam-se ou hostilizam-se” (BARROS, 2004, p. 77).

Entre as poucas fotos existentes da escola, pertencentes ao acervo particular da

professora Iracema, segue a que representa o espaço interno da sala de aula, nos anos 1970.

Figura 26 Alunos e professora na sala de aula da Escola Rural Mista Municipal Santo

Antonio, anos 1970

Fonte: Acervo particular de Iracema da Silva Machado Casagrande

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Observa-se que nesse período a escola já era construída de madeira e as carteiras eram

individuais, como aparece uma delas logo à frente das crianças, e o chão era piso.

Provavelmente, a imagem refere-se ao final dos anos 1970. Percebe-se a presença de dois

quadros pequenos, cobertos com bandeiras do Brasil, expressando a forma de se fazer

presente uma das maiores representações do país, além de alguns cartazes, sendo um deles

relacionado aos valores religiosos, com a figura de duas mãos e está escrito, “repartir o pão”.

Importante ressaltar que quem confeccionava e organizava os cartazes na sala de aula era a

professora: “Nas paredes, a professora colocava desenho, umas figura que ela fazia e pintava

e pregava nas parede pra nós, ficava bonito” (SILVA. Depoimento. Tangará da Serra,

17/08/2014).

Durante as entrevistas, as fotografias foram mostradas a fim de identificar alguns

alunos pelos depoentes, além de possibilitar a revisitação às vivências da época. Vários foram

os sujeitos que se emocionaram ao visualizar a escola, os colegas e a professora e, dentre eles,

alguns se identificaram na foto. Da esquerda para a direita, o menino de camisa branca e calça

amarela é Roberto Gomes52

, aluno que estudou a 3ª e a 4ª série; ao lado dele, de camisa azul

estampada e calça azul escuro, está Altair de Sousa Lacerda53

; seguindo na mesma fileira de

crianças, a menina que está com calça estampada e camiseta vermelha é Maria de Fátima

Gomes54

e, atrás dela, sua irmã Fátima. Emocionada, Maria de Fátima Gomes relata que

sentiu “muita saudade ao “[...] rever uma foto tão antiga, aqui eu tinha 10 anos, hoje eu

tenho 50, então faz 40 anos essa foto, é emoção mesmo, olhar essa foto é pura recordação...”

(GOMES. Depoimento. Tangará da Serra, 13/07/2014). Reencontrar-se em momentos da

infância que ficaram na lembrança também foi oportunizado aos sujeitos depoentes através

dessa fotografia, até então desconhecida por eles.

Podemos, através desta imagem, reconhecer os elementos perenes da cultura escolar

(VIDAL, 2009), porém, Julia (2001) reforça sobre a relevância em observar as mudanças

mais sutis no cotidiano da escola, reconhecendo a singularidade e a permeabilidade da cultura

escolar. A perspectiva de Julia (2001) alia a atenção às normas ao interesse pelas práticas:

52

Estudou somente até a 4ª série, continua morando em Tangará da Serra com a sua família e trabalha no mesmo

posto de combustível há mais de 25 anos. 53

Depois de encerrar a 4ª série na Escola Santo Antonio, foi para a cidade morar na casa de seu irmão Assis para

seguir seus estudos, porém quando estava cursando o curso técnico de contabilidade, acabou desistindo.

Atualmente mora em Várzea Grande, município onde concluiu o ensino médio e formou-se em Administração

(ensino à distância). 54

Estudou até completar a 4ª série, é casada, tem 2 filhos e trabalha há mais de 15 anos como vendedora em uma

loja de roupas e acessórios em Tangará da Serra.

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[...] tentando perceber como professores e alunos traduzem as regras em

fazeres, expurgando diretrizes que consideram inadequadas e selecionando

dispositivos em detrimento de outros, numa verdadeira triagem e

reconversão do que lhe é proposto. Para tanto, esses sujeitos valem-se da

experiência (administrativa, docente e discente) construída social e

historicamente, o que comporta escolhas nem sempre conscientes e expressa

múltiplas diferenças sociais, sejam elas de gênero, geração, etnia, classe ou

grupo social. (VIDAL, 2009, p. 29).

A partir dessas múltiplas diferenças sociais, Julia (2001) propõe associar as culturas

familiares e infantis ao estudo sobre a cultura escolar. Percebe-se, portanto, no caso da

instituição em estudo, a presença marcante das culturas familiares e infantis, observáveis

através das imagens, da construção da escola e da sala de aula.

Em relação aos materiais utilizados pelos alunos na escola, todos os entrevistados

afirmaram que utilizavam apenas, lápis, borracha, caderno e alguns livros para leitura e

levavam os materiais dentro de um bornal55

, confeccionado pela mãe. A professora relata que

usava muito o giz, pois não havia disponibilidade de outros materiais didáticos. O prédio

escolar foi inaugurado com a presença do prefeito Wilson Almeida, do responsável pela SITA

e demais autoridades e membros da comunidade, porém, sem qualquer mobiliário ou material

pedagógico. Sendo assim, o funcionamento e provisão da escola ficaram sob a

responsabilidade dos pais e da professora, enfim, da comunidade.

“No começo foi bem difícil, não tinha nem um botequinho pequeno pra comprar

caderno, lápis...” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014). Uma das

alunas relata as dificuldades vivenciadas por ela:

O pai comprava um pacote de lápis, porque era muito difícil pra compra,

eles andava muitos quilômetros de a pé pra ir busca as coisa... ele comprava

uma dúzia de lápis. Esse lápis ele marcava o tanto que ia dá... se você

apontasse e gastasse, apanhava e se acabasse o caderno antes do prazo,

apanhava... eu arrancava página do meu caderno pra dá pros outro que não

tinha, chegava em casa e apanhava... eu cortava meu lápis no meio e dava

pros outro, apanhava... foi sofrido... (OLIVEIRA. Depoimento. Várzea

Grande, 10/08/2014).

Depois de algum tempo, a professora Iracema foi comprando alguns livros, os pais,

quando possível, adquiriam cadernos e lápis para os filhos. Segundo a professora, aos poucos

foram melhorando as condições materiais para estudar, mas revela que “a prefeitura nunca

mandou nenhum livro didático, algum tempo depois começou a mandar alguns cadernos,

uma época inclusive, mandaram um punhado de cadernos tudo comido de ... (riso) É já

55

Pequena bolsa com alça comprida, geralmente com sacaria de açúcar e confeccionada pelas mães, para as

crianças carregarem os materiais escolares.

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passei cada uma que não foi mole! Não é brincadeira! (CASAGRANDE, I. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

Depois da emancipação política e administrativa de Tangará da Serra, as condições

escolares mudaram “muito pouco, porque a prefeita começou do nada... a escola passou a

receber alguns materiais da prefeitura somente depois de 2, 3 anos. Pois até o salário a gente

recebia de 2 em 2 meses, ou até 3 meses... era assim” (CASAGRANDE, I. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

A presença dos materiais escolares, como lápis, caderno, borracha e livros, indicam o

universo da escrita e da leitura e que “os objetos e produtos do escrever ocupam um lugar

significativo no conjunto das práticas escolares e administrativas da escola” (VIDAL, 2009, p.

31).

A escola nunca exigiu uniforme, “uniforme não tinha... ia com a roupa tudo

remendada, quem tinha chinelo, ia de chinelo, quem não tinha ia descalço mesmo”...

(OLIVEIRA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

Pode-se notar na imagem da primeira escola (figura 24), correspondente ao início dos

anos 1960, que as crianças estavam descalças e com roupas claras, com modelos praticamente

iguais, isso devido ao fato de que as famílias compravam fardos de tecido dos

vendedores/viajantes que por lá passavam de vez em quando, sendo os tecidos, chamados de

“fazendas”, sempre da mesma cor ou muito parecidas.

Se comparar essa foto inicial com a figura 26, correspondente aos anos 1970, é

possível perceber a diferença de cor nas roupas das crianças, pois nesse período já existia um

comércio se estabelecendo na cidade, facilitando a vida das famílias moradoras de

comunidades rurais.

Percebe-se que as dificuldades não eram poucas, precisaram encontrar maneiras para

superar os problemas para prosseguir nos objetivos traçados. Com atenção aos aspectos

materiais da escola, considerados como vestígios da cultura escolar, “nos é possível acercar

das práticas escolares e dos saberes produzidos no interior da escola, como soluções possíveis

aos problemas enfrentados cotidianamente por professores e alunos no fazer da aula”

(VIDAL, 2009, p. 35).

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3.3 Os espaços e o tempo escolar

Refletir sobre os espaços e tempos escolares nos remete à lembrança o que Frago e

Escolano (2001, p. 26; 46) consideram a respeito, afirmando que ambos não são estruturas

neutras, nas quais acontece a ação escolar, ou seja, o “espaço-escola não é apenas [...] um

cenário formal no qual se situam os atores que intervêm no processo de ensino-aprendizagem

para executar um repertório de ações, é uma construção cultural e, portanto, histórica”.

Afirmam ainda que a “arquitetura escolar é uma espécie de discurso que institui um

sistema de valores” (FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 26), constituindo-se em um dos

elementos que compõem o currículo, uma nascente de descobertas, experiências e

aprendizagens.

Considerando que o espaço comunica o que o ser humano o transforma, pode-se dizer

que ele é um produto cultural específico, como o

Relógio incorporado ao edifício escola é um organizador da vida da

comunidade e também da vida da infância. Ele marca as horas de entrada na

escola e de saída dela, os tempos de recreio e todos os momentos da vida da

instituição. A ordem temporal se une, assim, à do espaço para regular a

organização acadêmica e para pautar as coordenadas básicas das primeiras

aprendizagens. (FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 44).

Como produto cultural específico, espaço e tempo da Escola Rural Mista Municipal

Santo Antonio foram se constituindo e se adequando conforme as necessidades dos sujeitos

escolares. Quando a escola começou a funcionar, o horário escolar compreendia 4 horas

diárias, iniciando às 8h00 e encerrando às 12h00, devido à professora ter filhos pequenos que

ficavam em casa, portanto, teria que se dedicar aos afazeres domésticos antes de seguir para o

trabalho. Porém, como a comunidade foi crescendo, a escola chegou a ter 80 alunos

matriculados, e a professora, por conta própria, precisou reorganizar o tempo escolar para

atender todas as crianças da comunidade, tomando a decisão de dividir os alunos em duas

turmas, sendo uma das 8h00 às 11h00 e a outra das 12h00 às 15h00, ou seja, trabalhou 6

horas, mesmo consciente de que o seu pagamento salarial continuaria correspondente a apenas

4 horas de trabalho.

A organização do tempo escolar era dividida entre: estudar, e uma pequena pausa para

se alimentar e brincar. Segundo relato dos alunos, “quando dava a hora, a professora

chamava pra forma a fila, tirava distância um do outro, cantava o hino, fazia oração”...

(OLIVEIRA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014), “todo dia ela fazia a oração”.

(LACERDA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

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A professora Iracema, fez questão de afirmar que,

[...] sempre mantive ordem com eles. Pra entrar na sala com fila, pra ir

embora, formava fila dentro da sala e ia saindo. Era assim que eu fazia.

Pode sair tudo correndo não, toda vida eu ensinei direitinho pra eles. (risos)

E até hoje quando eu encontro algum dos meus alunos, já é homem formado,

já é mulher, eles vem encontrar comigo e conversar. (CASAGRANDE, I.

Depoimento. Várzea Grande, 10/07/2014).

Observa-se que as representações da professora sobre espaço escolar e prática docente

estavam vinculadas às experiências vivenciadas por ela enquanto estudante, no período de

infância, ou seja, suas vivências de aluna permearam sua prática como professora.

Em relação à merenda, cada criança levava a sua, de casa; uns levavam comida, como

arroz e feijão, farofa, frango, já outros apenas um pedaço de pão ou de bolo e, outros levavam

milho e mandioca entre outros. Altair conta que, quando sua família chegou à comunidade da

Reserva, em 1971, ele estava na 1ª série e morava, aproximadamente, a um quilômetro e meio

da escola, trajeto que ele e dois irmãos faziam diariamente, “era de casa pra escola, já levava

o calderãozinho de comida que a mãe fazia e complementa contando uma situação descoberta

há pouco tempo:

[...] até outro dia, encontrando com um amigo meu, não lembro se ele tá

aqui nessa foto, é o Antônio do seu Jonas, ele contou que na hora do recreio

ele comia do meu calderãozinho escondido, é ele comia escondido (risos),

coisa de moleque, né, abria tirava o pedaço de frango, comia, guardava...

(risos) o Tonho hoje é músico, é violeiro, ele toca bem na região.

(LACERDA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

Maria José Casagrande, nascida em Tangará da Serra, filha e aluna de dona Iracema,

relembra que,

Todos levavam comida, a maioria levava comida de casa. (risos) Eu levava

era arroz, fejão em umas latinhas assim, de manteiga, naquela época não era

nem plástico. Eu me lembro que eu as vezes esquentava o arroz de

manhazinha e colocava cebola e tomate, aí fritava um ovo assim molinho e

botava por cima e tampava. Mas que gostoso, eu lembro. Ficava bem

cheiroso, gostoso. Mas eu comia com gosto (risos). Era difícil alguém que

levava um pão, alguma coisa assim, a maioria procurava levar comida porque

sentia fome naquele horário. Então era assim, cada um levava o que podia

levar. Levava do seu jeito. Eu lembro que eu levava essa latinha (risos). E eu

comia e achava uma delícia. (CASAGRANDE, M. Depoimento. Tangará da

Serra, 10/07/2014).

Prática comum entre as crianças era levar o seu alimento para a escola, pois estavam

acostumados a se alimentar também na roça durante o trabalho. Portanto, carregar o

‘caldeirãozinho de comida’, como relatou Altair, ou a ‘latinha cheia de comida’, como

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relembrou Maria José, fazia parte da rotina dos alunos da Escola Rural Mista Municipal Santo

Antonio, até que começaram a receber alguns ingredientes para a preparação da merenda na

própria escola. Nesse período, novas necessidades constituíram inovadoras maneiras de fazer

na/da comunidade:

Quando a prefeitura da Barra começou mandar a merenda para as

crianças, algumas coisas é claro, os pais se juntaram e fizeram um coberto

com um fogão de tijolo e barrote, eu mesma fazia, dava um exercício para

as crianças irem fazendo ia lá fazer o fogo, colocar a panela no fogo

ajeitava um pouco, depois tornava cuidar deles, depois tornava ir ver a

panela... era desse jeito... (riso) e quando não tinha poço ainda, cada um

tinha que trazer sua vasilha de água de casa. Custou pra eles furarem um

poço ali. (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Depois de terem feito o poço na escola, os alunos relembraram que “a professora

tirava água do poço, colocava num pote e deixava dentro da sala, quando queria beber ia lá

e bebia, na escola podia beber água a hora que quisesse e quando queria sair lá fora, dizia

dá licença de eu ir lá fora, quando um voltava o outro pedia pra sair pra ir no mato”... (riso)

(OLIVEIRA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014). “quando dava vontade de ir ao

banheiro, tinha uma tabuinha escrito ‘licença’, nós pegava aquela tabuinha e colocava na

nossa carteira, depois devolvia perto da professora, outro tinha vontade e fazia igual, mas

primeiro pedia licença. Um de cada vez” (SILVA. Depoimento. Tangará da Serra,

17/08/2014).

Em relação ao lanche servido na escola, a aluna Marly Helena da Silva Mota relembra

que “na hora do lanche era hora parte boa, tinha aquele leite gostoso, sopa de macarrão,

bolacha... e nós achava bom! Depois do lanche todos queriam ser prestativo, ajudar... isso é

a conduta de cada um, nós gostava de ajudar, era acostumado” (MOTA. Depoimento.

Tangará da Serra, 07/04/2014).

A esse respeito, a professora esclarece que o lanche,

[...] vinha pras escolas estaduais, aí eles distribuía. Quando vinha merenda

todo dia a gente fazia um lanche, uma sopa que fazia... Comprei um

panelão, eu tenho ele até hoje, um panelão grande. Eu dava um exercício

pra eles irem fazendo, ia lá, arrumava o fogo, colocava a panela no fogo e

ajeitava um pouco, voltava na sala, via o que tinham feito, atendia deles,

depois tornava voltar lá, era desse jeito (risos)... E, aí tinha umas meninas

já grande nos últimos tempo, aí elas me ajudavam. Ia lá colocava no fogo,

arrumava, deixava cozinhando e elas iam lá olhar pra mim. Aí quando tava

boa tirava do fogo né? Os meninos que eram maiorzinhos me ajudavam a

descer aquela panela do fogo. Aí, servia as crianças. Elas tinham que trazer

os pratos pra comer porque a escola não fornecia a vasilha não, só

merenda. (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

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Os alunos mais velhos ajudavam a professora na limpeza da escola e na cozinha, a

colaboração de todos era importante, pois a professora era a única funcionária da escola.

Maria Júlia Eler56

comenta sobre essas situações cotidianas,

Tinha uma área lá fora, um fogão de lenha onde que a dona Iracema fazia a

merenda, não era todo dia, quando tinha alguma coisa ela fazia a

merenda... o fogão era nos fundo, né, ela ia lá dava uma olhadinha e os

mais velho sempre olhava, ficava tomando conta dos outros... eu mesma

sempre ficava tomando conta pra ela, ajudava... os maior, os mais velho

ajudava a varrer, até lava, joga água no piso. Tinha um poço, os maior já

tiravam água lá pra professora e ela também tirava... (ELER. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

Para a aluna Ivonete, o recreio se resumia em “alegria e correria”; já para Severino e

Altair, em “futebol com a molecada”, e, para a Maria Júlia, as brincadeiras permanecera em

suas lembranças:

[...] a gente fazia comida colocava numa latinha de leite ninho, a mãe fazia

arroz, o dia que matava frango colocava um pedaço de frango, outra hora

ela cozinhava batata, botava mandioca, abóbora, era assim o lanche que

você levava pra escola... a mãe colocava uma vasilha pra nós três, pra mim

e meus dois irmão, nós três comia numa vasilha só, o povo tinha união...

depois de come a gente ia brinca de pega-pega, de barata, só brincadeira

doida pra corre, de pique esconde... a dona Iracema deixava a gente

brincando e ia correndo na casa dela, porque ela tinha criança pequena,

passava um pouco ela chegava e recolhia a gente pra dentro, era muito

bom... brincava todo mundo junto, menino e menina... (OLIVEIRA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

Nós brincávamos de pega-pega, um tal de salva, que hoje criança nem sabe

o que é isso. Tinha muitas brincadeiras que eu nem lembro mais. Mais era

futebol, tinha um campinho do lado da escola. Foi a molecada toda que

reuniu e fizeram o campinho, carpindo com enxada, era de terra limpa, não

era gramado não. Terra limpinha, sabe!? O que eu mais gostava de brincar

era futebol. (CAMILO. Depoimento. Tangará da Serra, 18/05/2014).

[...] bem perto da escola tinha um pomar de laranja, de laranja grande, no

intervalo a gente catava a laranja e ia lá pro campo joga bola na hora do

recreio, o gol era dois chinelo. Voltava tudo sujo, suado a laranja estourava

e sujava todo mundo... a laranja era a nossa bola mais isso quando agente

não levava as bolinha de meia na bolsa, mas as vezes a dona Iracema

tomava a bolinha da gente, aí a gente catava a laranja e ia joga [...]

aproveitava os 15 minutos que tinha de intervalo, aí o sininho dela...

56

Veio com sua família de Minas Gerais ainda criança, moravam num sítio ao lado da escola, reside em Tangará

da Serra onde tem um comércio de alimentos e bebidas há muitos anos. Seus dois filhos estão cursando

medicina, o mais velho já está no final do curso e a filha iniciou ano passado. Motivo que deixa Maria Júlia

orgulhosa e feliz.

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correndo o moleque chegava tudo suado na sala de aula, tudo sujo...

(LACERDA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

O que eu mais gosto de lembrar é das brincadeiras, de brincar... eu acho

que nós brincamos até dezoito, dezenove anos (risos). Nós brincava tudo

junto, brincava de pique bandeira, a lua clara, de pique esconde e outra,

não existia maldade, você podia brinca com os vizinhos que não tinha

maldade, era muito bom. (ELER. Depoimento. Tangará da Serra,

10/07/2014).

Os relatos evidenciam que o recreio era um momento esperado pelas crianças, pois,

era o tempo de que dispunham para criar, inventar, recriar e também fazer escolhas. Imenso

era o espaço que se propunham praticar. Criativamente, tornavam o chão batido, no entorno

da escola, um parque de diversões, onde a criança era a protagonista.

“A limpeza da escola até eu sair da escola, em 1984, era eu que fazia e quando

chegava o dia de jogar água as crianças vinham para me ajudar a carregar água (riso), isso

quando já tinha piso, pois antes era chão batido... só carregava água para beber... (riso).

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

As práticas cotidianas da escola eram divididas por períodos específicos dedicados ao

desenvolvimento de cada uma, sendo o trabalho docente constituído a partir das experiências

individuais e coletivas: “[...] de saberes sociais e pedagógicos e da arte de conciliar o uso do

espaço e do tempo escolares às necessidades de difusão de conteúdos; e conformado no trato

com o outro (o aluno, os pais) em relações desiguais de poder” (VIDAL, 2009, p. 35).

As relações de poder permearam a convivência na comunidade, no sentido de

respeitarem hierarquias e perceberem, na existência do espaço escolar, a presença da

professora e o atendimento às crianças como requisitos suficientes para acontecer a educação,

ou seja, para que os filhos aprendessem, não questionando a formação da professora e sobre o

que estava sendo ensinado. Diante de um cotidiano de tantas dificuldades para a comunidade,

a existência de uma escola ‘próxima’ e única no espaço rural na região, configurava como

conquista e benefício, além de respeitarem a professora como guia, orientadora, mestra, não

somente das crianças, mas aquela que assumia esse papel na comunidade.

Uma das mães da comunidade da Reserva, Zilda de Sousa Lacerda57

, comenta que os

pais consideravam a escola importante para as crianças, “[...] a professora, naquela época,

57

Vinda de Dourados com a família, em setembro de 1971, chegou na comunidade da Reserva com 5 filhos,

depois, teve mais um nascido na região. Viúva, continua em Tangará da Serra, apesar de alguns filhos terem ido

embora, inclusive para outro país. Trabalhadora desde a lavoura, terminou o Ensino Médio aos 68 anos,

trabalhando e estudando. Atualmente, é aposentada, no entanto, continua trabalhando, mas agora em trabalhos

manuais, na confecção de panos de prato pintados, toalhas de banho e de rosto decorados.

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era muito valorizada, a professora era ‘uma professora’. Quando alguém falava, fulano vai

casar com uma professora, menina, vai casar com uma professora? Tem sorte, hein, rapaz!

Casar com uma professora! Faz comparação com os dias atuais...” (LACERDA.

Depoimento. Tangará da Serra, 12/07/2014).

Relata também sobre a expectativa para os filhos: “Minha vontade era forma eles, eu

tinha um sonho de forma! Naquele tempo quem tinha até a 4ª série já era professor, quem

tinha a 4ª série naquele tempo era mais do que hoje quem tem ginásio...” (LACERDA.

Depoimento. Tangará da Serra, 12/07/2014). Seu relato demonstra não apenas a representação

que tinha da escola, da professora e do estudo, naquela época, mas também deixa pistas da sua

representação atual.

3. 4 Os saberes escolares

A Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio foi se construindo culturalmente

através de sua realidade, aliada às suas práticas, constituindo, assim, sua identidade, suas

especificidades e suas singularidades no espaço educacional tangaraense:

A discussão nos remete para o lugar central que os sujeitos ocupam na

construção da cultura escolar. Apesar da constatação óbvia, essa obviedade

não foi percebida a não ser muito recentemente. Foi somente a partir dos

anos 1970, que de instrumento de mediação ou de reprodução da sociedade e

de objeto de recepção e inculcação de normas sociais, professores e alunos

passaram a ser vistos como sujeitos privilegiados do processo de ensino-

aprendizagem, pelas escolhas que efetuam e pelos saberes que produzem. A

mudança de paradigma implicou na alteração das análises sobre a escola e a

escolarização, não apenas pela introdução de novos objetos de pesquisa,

como também pela produção e incorporação de outros referenciais teóricos e

metodológicos. Investigar a prática docente, compreendendo-a na

intersecção do saber e da ação de professores, instou a indagação sobre a

mistura de vontades, gostos, experiências, acasos que foram consolidando

gestos, rotinas, comportamentos identificados como docentes: o modo

particular de organizar aulas, de se movimentar na sala, de se dirigir aos

alunos, de utilizar os recursos didáticos e, mesmo, a maneira de organizar a

relação pedagógica. (VIDAL, 2009, p. 36).

Portanto, analisar o processo de escolhas e produção de saberes que a professora, os

alunos e a comunidade construíram, dando identidade à instituição em estudo, significa

voltar-se para os sujeitos escolares que possibilitaram a escola real. Nesse caso, a professora

Iracema Casagrande, que iniciou sua docência sem formação específica nem mesmo

orientação.

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Diante da frase “Eu comecei a dar aula sem saber como começava, peguei as aulas

com muita vontade porque tinha os meus filhos também...” (CASAGRANDE, I. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014) e tendo as ações dos sujeitos escolares, no caso, professora e

alunos como centro de constituição da cultura escolar, observa-se além dos ‘ditos’, os ‘não

ditos’, procurando analisar e confrontar as fontes documentais em mãos, a fim de

compreender quais as representações de escolarização da infância se materializara na cultura

escolar desse espaço coletivo de aprendizagem, além de conhecer a cultura escolar da

primeira escola da rede municipal de Tangará da Serra.

A maneira com que a professora Iracema, mesmo que sem saber como fazer para

ensinar as crianças, utilizou os recursos didáticos de que dispunha, organizou a disposição das

carteiras na sala de aula e das turmas, considerando que trabalhava com crianças da 1ª a 4ª

séries, no mesmo período e espaço, a maneira de se dirigir aos alunos e pais, suas experiências

vivenciadas como aluna, a preparação das aulas, a reprodução ou não das normas e a maneira

que conduziu suas escolhas ao longo do tempo, a fim de produzir saberes, resultaram em

novas práticas docentes e constituíram a cultura escolar da escola.

A professora Iracema, quando questionada se após a sua nomeação recebera

orientações de como planejar as aulas, sobre o que ensinar e como ensinar as crianças, sobre

os objetivos da educação naquele período histórico, respondeu prontamente: “Nada. Nadinha,

nadinha. Aí eu ia ensinando o que eu sabia” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da

Serra, 10/07/2014). e seguiu discorrendo sobre sua experiência inicial como professora:

[...] eu nunca tinha dado aula antes, nunca tinha mexido com escola. Eu fui

ensinando o que eu sabia, eu tirava da minha cabeça (risos), depois foi indo,

foi indo... Eu fiz até a quarta série só, mas era uma quarta série bem feita,

que eu fiz na cidade de Birigui, estado de São Paulo. Aí comecei fazer o

plano da minha maneira [...] o que eu tinha aprendido na escola, o que eu

aprendi desde a primeira série, eu comecei a ensinar para minhas crianças.

Eu tinha muitos cadernos guardados escritos, tinha livros que eu guardei,

no meu tempo em que eu estudei ainda. Ai eu comecei assim, o que vinha na

cabeça, era o que eu ensinava as crianças, era tanto que criança minha de

1º série, quando eles passavam pra 2º série, eles já sabiam completo o A B

C, já sabiam formar sentença, faziam ditado, eu fiz coisas muito forte, o que

deu para eles aprenderem eles aprenderam e assim foi. Quando eu comecei

a dar aula eram 18 crianças, 9 meninos e 9 meninas. Eu ensinava só de uma

maneira no começo, depois eu comecei dar aula de 1ª e 2ª série e comecei

assim... foi indo até que quando chegou o final do ano, o senhor José

Nodari que era secretário de educação na Barra chegou conversar com a

gente e a filha dele, a Ivone, veio junto para me orientar e aplicar as provas

de exame final. Ela me perguntou o que eu tinha preparado, eu falei, olha

Ivone, eu não sei, eu nunca dei aula então, vou te mostrar o que eu preparei

até agora. Ai ela me ajudou a preparar as aulas, me deu explicação, eu

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tinha as aulas já marcadas no caderno, tudo o que eu dei durante o semestre

de aulas. Que a aula começou em junho, então o período não podia

terminar, aquilo foi direto, foi até novembro. Só tinha um aluno de 2º série,

os outros tudo era de 1ª série. Nós fizemos o exame das crianças, dei a

prova final a eles. Quando foi em 75 ou 76 eu comecei ir fazer o plano junto

com os professores da Escola Emanuel Pinheiro, todo sábado fazia o plano

junto, era muito bom. (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra,

10/07/2014).

Como ainda não tinha experiência enquanto professora, nem mesmo formação para

atuar como profissional buscou em suas lembranças do tempo escolar na infância e nos

materiais daquele período, que havia guardado há muitos anos, as atividades que deveria

desenvolver com os seus alunos. Infelizmente, a professora não tem mais esses materiais,

pois, segundo ela, ao longo dos anos foi distribuindo aos colegas professores que iniciavam

sua trajetória profissional, como ela, sem formação específica, com o objetivo de ajudá-los na

prática docente.

Diante da percepção da professora sobre a qualidade do seu estudo durante a infância

no interior do estado de São Paulo, foi o que a impulsionou o início de sua caminhada

docente, procurando em seus guardados os materiais que ainda possuía daquele período, além

de usar as lembranças, também como recurso. É possível perceber em sua narrativa que, se

por um lado sentia segurança, por outro, a insegurança não parava de rondar suas escolhas,

vivenciando momentos antagônicos. Planejando a sua maneira, como ela mesma afirmou,

seguiu trabalhando, naquele primeiro semestre escolar, o mesmo conteúdo,

independentemente da turma que a criança estava matriculada.

Após os primeiros meses de experiência como docente, por ocasião da visita do

responsável pela educação na região, o professor José David Nodari, no encerramento do ano

letivo de 1965, chegou essa autoridade acompanhado de sua filha Ivone, que era professora

formada e que auxiliou a professora Iracema na elaboração de suas aulas, bem como orientou-

a nos fazeres da docência, escrituração de livros ata de matrículas e presença dos alunos, de

notas bimestrais e exames finais, mesmo que num período único e curto de tempo. Isso foi

suficiente para que a professora, no ano seguinte, arriscasse a organizar e trabalhar com as

crianças utilizando, não mais as mesmas atividades para as diversas séries, mas acrescentando

atividades diferentes para cada turma.

Torna-se importante salientar que, conforme as narrativas da professora Iracema esse

foi o único momento de orientação que ela teve durante o longo período de tempo. Ela revela

que, depois de alguns anos em Mato Grosso, quando foi visitar sua família “[...] no estado de

São Paulo, na casa da minha mãe, achei um caderno de planejamento da minha irmã, era um

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caderninho pequeno. Peguei ele e trouxe o caderno pra mim, pra me ajudar um pouco”

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014) e que foi, a partir de 1976,

após fazer amizade com as professoras da Escola Estadual Emanuel Pinheiro58

, que ficava no

espaço urbano, que ela passou, então, a se reunir com os professores dessa instituição, aos

sábados, para fazer o planejamento escolar:

[...] depois eu comecei a ir lá na escola Manoel Pinheiro no sábado que elas

faziam o planejamento da semana. Peguei amizade com as professoras lá e

comecei a fazer planejamento com elas. Com a Elma e outras lá. Foi aonde

que eu já trazia tudo prontinho, mas demorou um pouquinho. Porque até

que eu resolvi ir lá e tomei conhecimento com elas. Elas falava pode vir, que

a gente faz o plano aqui juntinho. [...] lá do sítio eu vinha aqui na cidade e

combinava com as professoras, aí eu fazia junto com elas o plano de aula,

assim que eu fiz... aí eu tinha um caderno próprio [...] achei muito bom fazer

o planejamento com outras professoras. Na prefeitura eles não usavam fazer

planejamento, então eu fazia aquele no estado servia pras duas escolas. E

foi assim, foi indo, foi indo, até que aprendi, mas eu ia sempre lá pra gente

ter aquele controle direitinho (risos). (CASAGRANDE, I. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

Na trajetória de fazer-se professora, além dos cadernos escolares que possuía do seu

tempo de escola, anos 1940, baseou-se também num ‘caderninho pequeno de planejamento’,

que sua irmã utilizou durante o período que substituiu alguns professores numa escola rural

no estado de São Paulo e, nos encontros aos sábados com colegas professores para planejar as

aulas, participou também de alguns poucos cursos que foram oferecidos na região e, “[...]

então... eu fui estudar, faze ginásio59

aqui depois de casada, aqui no Mato Grosso, aqui que

eu fui fazer o ginásio e depois fiz o Logus II60

, mas tudo isso eu já tava dando aula há

tempos...”. Complementa afirmando que “Oitenta e dois foi a formatura da primeira turma

do Logus e eu tava nessa primeira turma. Com segundo grau o salário aumentou (risos). Aí

58

Através do Decreto nº 275, de 06.11.1075, criou-se a Escola Estadual Emanuel Pinheiro que substituiu a

Escola Rural Mista de Instrução Primária de Tangará da Serra, ambas, sob a orientação e supervisão da

Delegacia Regional de Educação e Cultura de Rosário Oeste – MT. 59

A professora Iracema participou do Curso Supletivo de 1º Grau, oferecido pelo Instituto Universal Brasileiro,

no período de 29/08/1977 a 02/08/1978, por correspondência. 60

O projeto de formação para professores leigos, LOGOS, nasceu em 1973, pelo Parecer 699/72, do Ministério

da Educação. O LOGOS I se constituiu como uma etapa experimental do projeto e buscou estabelecer a eficácia

dos materiais e meios que seriam utilizados no curso. O LOGOS II foi desenvolvido na fase de expansão do

projeto em nível nacional. O LOGOS II foi desativado no Centro de Ensino Técnico de Brasília (CETEB), em

1990, sendo substituído pelo Programa de Valorização do Magistério (PVM). Este programa começou a ser

implantado em 1992, seguindo os mesmos moldes do LOGOS II. O PVM atende a professores que necessitam

desde a formação de 1º grau até a formação específica do magistério.

Leia mais em: http://www.webartigos.com/artigos/importancia-da-educacao-a-distancia-para-a-formacao-

continuada-de-educadores/84780/#ixzz3RHdgOref

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já me ajudou também, graças a Deus, me ajudou bastante” (CASAGRANDE, I. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

A representação da professora Iracema a respeito da educação, das práticas docentes,

de aprendizagem e de ensino foi permeada pela sua vivência, pelas suas escolhas, pelo lugar

social que ocupava. No entanto, foram sendo substituídas por novas representações à medida

que outras significações e sentidos foram sendo apropriados por ela, considerando que a

prática é a materialização da representação. Compreende-se que ela pode ter se apropriado de

normas, regras e novas técnicas de ensino, mas não ter materializado em novas práticas, por

sua escolha, pois a apropriação das normas e regras não quer dizer que elas seriam praticadas

pelo indivíduo, grupo ou pela comunidade. É nesse sentido que emergem as lutas de

representações, como tensões e confrontos das representações, “pelas quais os indivíduos e os

grupos dão sentido ao mundo que é o deles” (CHARTIER, 1991, p. 177), e as estratégias,

como regras impostas e táticas, como usos inventivos (CERTEAU, 1994).

Constata-se que a escola rural era mal assistida pela rede municipal de ensino, pois o

acesso a ela foi proporcionado através do próprio interesse e iniciativa da comunidade,

responsável pela sua estrutura física e material. A prefeitura municipal, na época da criação da

escola, responsabilizou-se apenas pelo provimento salarial da professora, que, por alguns

meses, ficou sem receber seus proventos, durante o governo do prefeito José Tuchen, o que

ocasionou, inclusive, o fechamento da escola, por sua decisão. A professora Iracema descreve

esse momento:

Quando criou mais escola, eu e outras que lecionava ia lá na Barra pra

receber. E uma vez nós fomos lá pra receber minha filha, chegamos lá, você

já pensou... o prefeito disse que não tinha dinheiro. É minha filha, eu e

outros, perdemos a viagem. Ainda pagando a viagem pra ir e voltar de

ônibus. A gente tinha que andar prevenida e segurando sabe!? Teve um dia

que eu posei na serra. Fui receber e não recebi, bem assim. E choveu uma

chuvarada e a serra aquele tempo era muito ruim, não era que nem hoje.

Era estreita, muito cheia de terra e ficou liso pro ônibus subir em certo

ponto dali da serra, menina posamos dentro do ônibus com chuva lá fora.

Foi, ih, minha filha, eu já passei por cada uma, cada uma que não é

brincadeira. Posa dentro do ônibus, sem pagamento, sem almoço, com um

lanchinho só que eu comprei, um lanche. Serviu, mas pra posar dentro do

ônibus... (risos) Eu trabalhava porque eu gostava das criança, eu tinha dó,

sabia que eles tinham que aprende, eu gostava muito do que eu fazia. Foi

um esforço meu, mas não que a gente merecia estar trabalhando lá, porque

não ganhava nada, me dispus a dar aula a troco de nada, eu posso dizer.

Meu marido ficava brabo comigo, eu falava mas a gente tem dó das criança,

tavam estudando e agora ficar aqui parado, né. E foi indo até que hoje em

dia encontro rapaz, eles falam, oi professora! Na feira, na rua... (risos).

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

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Pesquisando as atas da Câmara Municipal de Barra do Bugres, de 1959 à 1970, com o

objetivo de encontrar mais informações sobre a criação da Escola Rural Mista Municipal

Santo Antonio, verificou-se que somente no dia 15 de novembro de 1968 existe uma menção

à referida escola, pertencente àquele município. Na ata consta que:

O vereador Antonio Hortolani solicitou providências ao prefeito José Tuchen

sobre a Escola Santo Antonio e a Escola São Paulino em Tangará da Serra,

por não estar funcionando há meses. O mesmo vereador apresenta um

pedido ao Sr. Presidente para que envie um ofício ao diretor do

departamento de Correios e Telégrafos para Tangará da Serra. (CÂMARA

MUNICIPAL DE BARRA DO BUGRES, 1968, p. 146).

Após análise e cruzamento de fontes, percebe-se que o motivo de a Escola Santo

Antonio não funcionar durante meses, se deveu à falta de pagamento dos salários à

professora, que resolveu tomar uma atitude diante da situação, pois como ela bem esclarece:

“o salário era pouco e ainda ficar sem receber há meses... aí não dava... tive que fazer isso”

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Nos arquivos da Prefeitura e da Secretaria Municipal de Educação de Barra do Bugres

foi encontrado apenas a relação nominal dos professores rurais e seus respectivos salários,

referentes aos anos 1973, 1974 e 1975, conforme tabela a seguir:

Figura 27 Escolas rurais Tangará da Serra, anos 1973/1974/1975

Ano nº escolas nº professores nº turnos

1973 20 23 Não consta

1974 28 34 26 professores/ 1 turno

8 professores / 2 turnos

1975 33 38 32 professores/ 1 turno

6 professores / 2 turnos

Fonte: Secretaria Municipal de Educação de Barra do Bugres

O nome da professora Iracema da Silva Machado Casagrande consta em todas as

relações referentes aos anos citados na tabela. Na relação referente ao ano de 1973, não

informa os nomes das instituições escolares, nem o turno de trabalho de cada professor.

Percebe-se através desses dados que, aproximadamente, 24% dos professores atuavam nos

períodos matutino e vespertino, enquanto 76% somente em um turno de trabalho, pela rede

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municipal de ensino, em 1974. Em 1975, as informações revelam que, aproximadamente,

16% dos professores atuavam em dois períodos de trabalho, enquanto 84% somente em um

turno. Deve-se ressaltar que, apesar do nome da professora Iracema aparecer nas relações

como professora atuante em um turno de trabalho, ela acabou trabalhando, durante algum

tempo, em dois turnos, pois, de acordo com o número de alunos matriculados ela adaptava e

organizava as turmas e o tempo escolar, conforme considerava mais produtivo, mesmo não

recebendo salário correspondente. E, também, que a professora, após a emancipação político-

administrativa do município, passou a ministrar aulas para a rede estadual de ensino, o que

resultou anos mais tarde na sua aposentadoria nas duas redes de ensino. A esse respeito, ela

enfatiza que, “Trabalhei vinte e poucos anos na prefeitura e 18 anos no estado, no estado eu

aposentei por idade, porque eu já tinha 70 anos (risos)” (CASAGRANDE, I. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

Quanto às informações salariais, nas relações constam sempre o pagamento referente a

dois meses de trabalho e dois valores diferentes, um para quem atuava apenas um período e

outro para os professores que atuavam em dois períodos, demonstrando que todos os

professores eram leigos, ou seja, não possuíam formação profissional para atuar, alguns

tinham concluído a 4ª série, outros a 6ª série do ensino de 1º grau.

A professora Iracema relembra que as visitas à escola, realizadas pela Prefeitura

Municipal de Barra do Bugres, não eram periódicas, nem tampouco agendadas, “quando

menos esperava eles estavam chegando (risos), não tinha tempo marcado, o dia que resolvia

vim, vinha” e, que “vinham olhar como tava indo o ensino, como é que tava as crianças, se

tava aprendendo bem... essas coisas... (risos) ((CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da

Serra, 10/07/2014). Não foi encontrado qualquer registro a respeito dessas visitas durante o

período que a escola pertencia ao município de Barra do Bugres, mas apenas foram

encontrados registros de atas de reuniões com os professores das escolas rurais do setor de

educação de Tangará da Serra, referentes aos anos 1981, 1982 e 1983, os últimos 3 anos de

trabalho da professora na escola.

Ao analisar os registros, observa-se que as reuniões foram realizadas sempre na

Câmara Municipal, e os assuntos que permeavam as reuniões eram em relação aos aspectos de

infraestrutura das escolas, com a finalidade de verificar os problemas existentes e repassar aos

professores as regras e normas educacionais a serem seguidas. Com relação aos problemas

abordados, verifica-se a necessidade de construção de poços nas escolas, cerca no seu

entorno, material de limpeza, carteiras escolares, pintura nas escolas rurais e a falta de cozinha

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em algumas escolas, o que dificultava o trabalho dos professores. Além dessas solicitações,

uma especial chamou a atenção, a referente ao aumento salarial dos mesmos, especialmente

daqueles que haviam cursado o Logus II. Ameaçavam paralisar as atividades e entregar a

chave das escolas caso suas reivindicações não fossem atendidas.

Dentre as regras e normas estabelecidas pelo município, destacam os avisos sobre as

datas da vacinação preventiva da poliomielite e sobre a obrigação dos professores ajudarem

durante a vacinação na escola, sob pena de punição, além da solicitação aos professores que

servissem alimentação aos vacinadores em visita às escolas, sobre as dispensas de aulas sem

comunicar a chefe do setor de educação do município e o aviso de que somente seria

justificado o fechamento da escola, durante a semana, por justa causa ou motivo de doença,

sobre a ética profissional do professor, que deveria evitar conversas fora do local de trabalho,

sobre a carga horária de trabalho dos professores, sobre as médias dos alunos que ficassem

para recuperação, sobre a data de início das aulas no ano seguinte, sobre o calendário escolar

que seria o mesmo da rede estadual, sobre o período de matrícula (23 e 24 de janeiro), entrega

de notas na secretaria de educação, atraso do pagamento salarial aos professores, solicitação

para que eles servissem almoço ou outra alimentação para os grupos que fizessem o título de

eleitor nas escolas, a responsabilidade do professor na preparação da merenda e a não

aceitação da merenda por alguns alunos que disseram não gostar, sobre a colaboração dos

alunos durante a merenda e solicitação de devolução das vasilhas no final do ano e sobre

reclamações dos pais de alunos a respeito do uso indevido da merenda escolar pelos

professores, que levavam para casa alimentos destinados à esse tipo de alimentação escolar,

ressaltando que a merenda era de uso exclusivo dos alunos, sobre problemas de indisciplina

dos alunos de algumas escolas, relacionado à falta de autoridade dos professores para com os

alunos, solicitação para que eles fizessem reunião com os pais para falar sobre seus filhos e

sobre o problema de cessão da escola para fins políticos; devolução de livros dos alunos que

durante o ano não comparecessem, sobre as obrigações dos professores com horários, dias de

aulas e provas, entrega de notas, recuperação por mês ou no final de cada aula, pois cumpriam

com o planejado no calendário escolar, professores que estivessem aprovando alunos que não

estavam preparados para outras séries, que a documentação escolar que faltasse fosse entregue

na secretaria de educação para ser arquivada, informações sobre o concurso para efetivação

dos professores que já haviam cursado o segundo grau completo, leitura do Regimento

Escolar e seus direitos e deveres, sobre o atraso dos alunos para o início da aula, não sendo

permitido receber alunos como assistentes, somente com transferência, entre outros.

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Apesar dessas atas de reuniões corresponderem aos anos de 1981, 1982 e 1983, ou

seja, praticamente 18 anos após a criação da primeira escola rural no município, os problemas

de infraestrutura existentes eram os mesmos dos vivenciados pela comunidade escolar da

Reserva, que, na época, foram superados com a participação da comunidade, portanto, no

período correspondente a estas atas a infraestrutura da Escola Rural Mista Municipal Santo

Antonio permanecia ainda como nos anos 1970, o que foi constatado com o cruzamento dos

dados com os relatos de memória, inclusive com o depoimento da filha do proprietário do

sítio onde era localizada a escola nesse período.

Ruth Matheus61

relata que, depois que a professora Iracema parou de ministrar aula na

escola, o professor Edson assumiu e, no ano seguinte, a professora Marlene, porém, ao

descrever como era a escola, constatou que ela continuava como antes,

[...] tinha quatro janelas, duas do lado da estrada e duas pro lado de baixo

que fazia parte do sítio, e a porta da frente dava na estrada que hoje é BR.

[...] fora tinha uma área, a ‘coziinha’, na onde que tinha um fogão a lenha,

onde o professor fazia a merenda pros alunos e mais longe um pouco tinha o

banheiro que era uma casinha com um buraco dentro. Os móveis, era

aqueles móveis mais antigos, mesa grande e banco, cabia uns quatro em

cada banco, tinha quadro, tinha uma bandeira do Brasil do lado do quadro,

filtro pra beber água, [...] os alunos ajudava na limpeza e a recolher lenha

pra fazer a merenda no outro dia. [...] era aula de um a quatro, o professor

dividia o quadro, primeiro, segundo, terceiro e o quarto, tudo na mesma

sala. [...] a combe passava entregando os professor na beirada da estrada.

(MATHEUS. Depoimento. Tangará da Serra, 26/0/2014).

No entanto, é possível perceber que no início dos anos 1980, a infraestrutura das

outras escolas estavam aquém da apresentada pela Escola Santo Antonio, e que as orientações

por parte da secretaria de educação estavam relacionadas aos afazeres do professor, como o

registro de matrículas, notas bimestrais, frequência dos alunos, merenda escolar, atendimento

aos responsáveis pela vacinação e pelo título de eleitor. Assim, percebe-se que a indisciplina

estava atribuída à falta de ‘domínio’ do professor, e que questões relacionadas à

aprendizagem dos alunos e à formação dos professores não foram discutidas nessas reuniões.

Nesse percurso, “o cuidado com as permanências e o interesse por mudanças

permitem reconhecer o intramuros da escola como permeado por conflito e (re)construção

constante” (VIDAL, 2005, p. 16), evidenciando as relações de força e poder através da

61

Sua família veio do estado do Paraná, permaneceu por poucos anos em Tangará da Serra e devido a não

adaptação no lugar, no final dos anos de 1980 voltaram para o Paraná, permanecendo apenas ela que havia se

casado e já tinha filhos. Há alguns anos é concursada na Prefeitura Municipal e atua como merendeira nas

escolas municipais.

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constituição de estratégias, por um lado, e as táticas como a arte do fraco que procura formas

de fazer, (re)inventar, criar, subverter, por outro (CERTEAU, 1994).

Diante da realidade vivenciada, a professora (re)inventava, procurando maneiras para

prosseguir no trabalho com as crianças:

Depois que emancipou, eu ia na prefeitura, conversava com eles, pedia o

que precisava, aí eles levavam caderno, lápis, borracha, giz, mas era pouco,

não era o suficiente. Uma vez fui numa livraria lá em Cuiabá, comprei tanto

material que só vendo, comprei pras crianças, porque lá era mais barato e

aqui era tão difícil, as pessoas tinham que trazer de Cuiabá para vende. Vou

falar pra você, não foi fácil essas aula aí (risos). Boletim eu fabriquei,

menina (risos), olhava como era feito um verdadeiro, né, por aquele boletim

eu copiei os dados que eram certo ter, cortei o papel bem bonitinho ah!

Você nem imagina (risos), fiz tudo a mão os boletim das crianças.

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

A professora Iracema, segue contando como ela ensinava seus alunos e quais materiais

utilizava:

Eu tinha o quadro e tinha o giz, primeiro comecei escrevendo no quadro, eu

ainda não sabia que o negócio é coordenação motora, pra ver que eu não

tinha dado aula nunca né? Mas depois que eu conversei com a Ivone eu

comecei com bolinha, fazendo a perninha, o A, o E, o I, até o U.

Devagarinho, e com toda paciência, que eu sempre gostei muito de dar aula.

E assim foi que eu comecei com as crianças. E teve um dia que uma menina,

começou a chorar, chorar, chorar, falei: o que você tem minha filha? Por

que você ta chorando? E ela respondeu que não sabia fazer as tarefas. Aí eu

fui lá e peguei a mão dela, sem saber o que eu tava fazendo né? Ai eu peguei

a mão dela, tudo aquele rabisco. Fiz uma porção de vez assim e daquele dia

em diante, nós fizemos amizade, já não chorou mais! Os outros já tinham

mais capacidade pra fazer as letrinhas, devagarinho, desenhando.

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Observa-se que a professora buscava alternativas para conseguir seus objetivos e que

através das tentativas e erros ela ia construindo representações que sustentaram a sua

caminhada. Quando ela cita que “daquele dia em diante nós fizemos amizade”, ela percebeu a

importância do vínculo entre o professor e o aluno, e que a confiança e a segurança no outro é

possível a partir das vivências experienciadas.

A aluna Ivonete Maria Oliveira relata sobre suas facilidades e dificuldades de

aprendizagem:

A dona Iracema toda vida foi uma pessoa muito religiosa, muito

inteligente... aquele tempo não era que nem agora, era simples... sentava na

cartera, ela fazia a oração, não tinha material quase, não tinha nada era

pobre, pobre mesmo, não tinha nada... só tinha aquele livro lá... Eu lembro

que eu aprendi naquele livro do Pedro, Pedrinho, Pedroca... eu só sabia

essa lição, daí meu pai batia ne mim, naquele tempo o pai batia sabe... eu

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fiquei muito de castigo por causa dessas lição hein... eu era ruim de

aprende, menina do céu... meu negócio era trabalha, se mandasse eu

trabalhava, eu era inteligente pra faze as coisa, mais pra estuda... eu fiquei

três anos na primeira série, não saia da primeira série (riso). A professora

ensinava nós lê e escreve, ela ia tampando as letra pra ensina a gente ajunta

as letra, primeiro não tinha essas coisa de agora... a gente falava de

qualquer jeito... ela tinha um quadrinho pra ela escreve, nós só copiava no

caderno, eu achava mais difícil lê do que copia porque lá do quadro nós

tava vendo, mais pra aprende junta as letra que era difícil... a professora

ensinava a tabuada, aí se você não sabesse a tabuada você não saia pro

recreio, você ficava lá dentro, se perguntasse a tabuada pra mim eu nunca

sabia, podia pergunta a tabuada que eu não sabia, se mandasse eu faze a

tabuada eu fazia todinha, bem certinho. A hora que começava toma a

tabuada, eu já começava faze, eu fazia a tabuada sozinha, mais se

perguntasse eu não sabia, até hoje eu sô assim... Eu tinha dificuldade pra

aprende, mas eu gostava de ir pra escola pra brinca... a professora

explicava, ia passando nas mesas pra explica, pegava na mão pra ensina

que jeito que era pra escreve... tinha o caderno de caligrafia pra gente

aprende faze aquela letra mais bonitinha porque era muito feia... eu aprendi

faze continha de mais, menos, vezes, dividi, eu preferia a matemática,

gostava mais da matemática, mas pra lê, pra explica lá na frente eu não ia

de jeito nenhum... a gente tinha que lê lá na frente, né, tinha que pega o livro

e ir lá na frente... aí eu não queria ir, daí ficava de castigo, fica no canto da

sala ou na hora do recreio as crianças saiam e eu ficava na sala, perdia a

hora da brincadeira... Nós cantava poesia, ela colocava um banquinho lá,

você subia lá em cima ia fala a poesia... eu adorava... isso aí eu era pra

frente (riso) aprendia tudinho pra fala lá na frente... eu queria fala, eu

queria canta... mas pra lê... era péssima... (riso). (OLIVEIRA. Depoimento.

Várzea Grande, 10/08/2014).

Neste relato, a aluna Ivonete descreveu várias estratégias pedagógicas utilizadas pela

professora, oportunizando a reflexão a respeito das dificuldades de aprendizagem vivenciadas,

sobre a maneira com que seu pai tratava essas questões, como também sobre as possibilidades

de se pensar como a criança resolvia as situações difíceis ou conflitivas.

Percebe-se, através da fala do Altair de Souza Lacerda, que os exemplos dos adultos

são observados pelas crianças quando ele se referia à organização da professora no

desenvolvimento do seu trabalho. “[...] dividia as crianças por ano, aqui o primeiro, aqui o

segundo, aqui o terceiro... tudo junto numa sala só. Era muita criança mas ela conseguia

organiza e ensina a todos. Eu tinha muita dificuldade na matemática e ela me ajudou

aprender as operações básica” (LACERDA. Depoimento. Várzea Grande, 10/08/2014).

Com relação às dificuldades que não eram poucas, a professora procurava seguir as

normas, porém, de acordo com o que era possível e com a realidade que vivenciavam,

descrevendo que “mandava pouca tarefa pra casa porque tinha muitos que ajudavam o pai

na roça, principalmente os meninos que ajudavam mais” (CASAGRANDE, I. Depoimento.

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Tangará da Serra, 10/07/2014). A esse respeito, o aluno Antônio Francisco da Silva e a aluna

Marly Helena da Silva Mota relatam que,

Quando vinha tarefa pra fazer em casa, eu fazia como a professora ensinava

pra nós na escola, porque o meu finado pai e minha mãe não tinham leitura,

nunca estudaram, mas eles achavam importante estudar, toda vida

incentivaram nós e falavam que não tinham estudo porque o finado pai deles

não deu estudo naquele tempo, mas agora tem, então vocês vão estudar.

Todo ano ele comprava um caderno, um lápis e uma borrachinha, na cabeça

dele era isso. (SILVA. Depoimento. Tangará da Serra, 17/08/2014).

[...] a professora entendia quando a gente não fazia tarefa, pois o meu pai

levava a gente pra roça, os filhos tinham que ajudar os pais. Ainda hoje

alguns alunos fazem isso, mas é muito pouco, por causa da lei que proíbe

criança trabalhar... eu desde que nasci trabalho na roça e nunca imaginei

que depois de muitos anos (risos) eu iria ser uma professora e ainda iria

ceder entrevista por ser aluna da dona Iracema (risos). Eu aprendi um

pouco de cada coisa... (MOTA. Depoimento. Tangará da Serra, 07/04/2014).

Através do depoimento de Antônio, é possível perceber a importância, para seus pais,

da participação dos filhos na escola, e o relato da aluna Marly sobre a compreensão da

professora como um fator importante na relação entre docente x discente e destaca o trabalho

desde a infância como experiência significativa para ela.

Com relação às disciplinas ministradas aos alunos do ensino primário, os alunos

lembram que:

Naquela época pra dizer a verdade a gente só estudava o português e a

matemática, não tinha que nem hoje tantas matérias, acredito que tudo o

que ela usava numa serie acho que ela usava em outra também, até porque

não tinha tanto material, então a gente tinha que aprender o básico do

básico que já era o suficiente e, pra te falar a verdade, não era difícil

aprender o português e a matemática. Eu aprendia com facilidade.

(GOMES. Depoimento. Tangará da Serra, 13/07/2014).

Nós fazia prova na folha de papel almaço que ela já trazia pronta. Eu tinha

mais dificuldade na matemática, nós fazia as tarefas e levava pra ela

corrigi, ela dava uma nota. Aprendia escrever carta, um bilhete, nós fazia

isso. Usava lápis de cor também, você tinha que saber as cores, desenhar a

bandeira do Brasil, o mapa também, esses eram os desenhos que eu lembro

que a gente fazia. (ELER. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Era mais focado no abecedário, era o F da faca, o G do gato, o V da vaca

(risos) eu nunca vou esquecer isso (risos), hoje eu dou aula, eu faço isso

(risos)... a gente foi decorando assim, eu nunca esqueci dessa forma e eu já

ensinei aluno que quer tirar carteira de motorista, assim, o F qual é? É o F

da faca e assim por diante... era a primeira série. Tinha outros exercícios,

mas era da outra turma, separar sílaba, forma sílaba... eu sempre tive medo

da matemática, acertava as contas só com número pequeno. [...] não lembro

de ter livro não, ela criava as atividades, eu acredito que o conhecimento

que ela tinha... caderno também ela não exigia era conforme os pais podia.

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Nessa época eu lembro que eu não tinha uma bolsa pra levar os materiais,

estudei até a 4ª série levando em saco de arroz, bornal (risos), por saber que

as crianças eram de família bem humilde ela não exigia não, as vezes cedia

até algum material dela mesmo. (MOTA. Depoimento. Tangará da Serra,

07/04/2014).

As falas evidenciaram que as atividades que permaneceram na memória dos alunos e

também da professora são relacionadas a matemática e língua portuguesa, que,

provavelmente, foram as que prevaleceram em meio às práticas escolares. O reconhecimento

da importância da escola e da professora no que tocava à aprendizagem dos alunos, também

permearam os depoimentos. Roberto Gomes conta sobre a sua experiência, “eu aprendi muita

coisa, hein! As contas que eu faço eu não preciso de calculadora, eu faço na caneta, qualquer

operação eu faço. Eu agradeço a ela por ela ter me ensinado” (GOMES. Depoimento.

Tangará da Serra, 23/11/2014). E Maria Júlia esclarece que “[...] gostava de estudar, mas

depois acabou porque era só até a 4ª série que tinha lá, se tivesse mais ou se eu tivesse tido

oportunidade eu tinha continuado o estudo” (ELER. Depoimento. Tangará da Serra,

10/07/2014), demonstrando que as condições de acesso à continuidade nos estudos não

chegou a comunidade da Reserva e que poucos foram os alunos que tiveram a possibilidade

de dar continuidade aos estudos na cidade.

A aluna Maria de Fátima revela que “não tinha aula de educação física, não tinha

como, era quatro turmas e muita matéria, não sobrava tempo... (GOMES. Depoimento.

Tangará da Serra, 13/07/2014), mas a professora diz que, quando sobrava um tempinho,

depois das crianças terminarem o que tinham para fazer, ela dizia, “vou contar uma

historinha pra vocês, conta sim! Conta sim, professora! (risos) Eu contava histórias pras

crianças, histórias do meu tempo de criança, João e Maria, Branca de Neve e os sete anões.

As criança ficavam prestando atenção eles gostavam de ouvir (risos) (CASAGRANDE, I.

Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Os saberes escolares foram regidos pelas escolhas que a professora fazia em meio a

rede de significados que permeavam a sua experiência de aluna-professora-aprendiz.

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3. 5 As relações constituídas no cotidiano da escola

Nunca imaginei que ficaria famosa por ter sido aluna da professora Iracema

(risos), ela é muito importante pra mim, pois a professora da 1ª série tem

muita importância na vida do aluno... eu nunca esqueci dela, ela era muito

boazinha, muito paciente, não lembro dela brigar com os alunos, estressar

não, não lembro disso porque geralmente a gente não esquece tanto na

parte ruim, quanto na parte boa. Eu nunca esqueci o jeito dela tratar os

alunos, as atividades, o carinho... ela foi muito importante pra muitos

alunos. Eu tinha 7 anos quando eu estudei com ela na 1ª série, uma época

bastante marcante pra mim, as crianças eram filhos de pais trabalhadores,

trabalhavam na roça, não tinham muito tempo pra ajudar nas tarefa e

muitas vezes não tinham estudo, mas ela, um poço de paciência, ajudou

muitos alunos. Agradeço meus pais que me ensinaram bastante também, a

moral... valores que hoje é esquecido... ela também era da mesma época, ela

falava a mesma linguagem dos pais, os pais falavam que não podia em casa,

ela também falava na escola que não podia, então ela só reforçava a

disciplina de casa. (MOTA. Depoimento. Tangará da Serra, 07/04/2014).

A opção de iniciar esse assunto, com a citação da aluna Marly, está relacionada ao fato

de poder, através dela, evidenciar a importância das relações não só para o/no

desenvolvimento/desempenho escolar das crianças, mas para a constituição das vivências em

comunidade, pois as relações interpessoais tornam-se relevantes para a comunidade escolar,

na medida em que as trocas de experiência fortalecem o grupo de pessoas. Pode-se perceber

que o ambiente educacional estabelecido na instituição através deste e também de outros

relatos, foi acolhedor, de respeito mutuo e compreensão entre a professora e os alunos, entre

os pais e a professora, enfim, entre a comunidade escolar, sem deixar de reconhecer que neste

fazer-se há lugares de poder constituídos.

A simplicidade da vida no campo, de homens, mulheres e crianças em situações

concretas do fazer ordinário de lavradores, permitiu que a aluna, e talvez os demais depoentes,

se surpreendessem ou admirassem o interesse na escrita desse tempo histórico, que Certeau

(1994) expressa como história muda, onde práticas cotidianas e comuns foram vivenciadas

por heróis anônimos e teceram a história de uma comunidade escolar rural e práticas culturais,

“configuradas a partir de dispositivos de poder” (VIDAL, 2005, p. 14), mas que “desenham as

astúcias de interesses outros e de desejos que não são nem determinados, nem captados pelos

sistemas onde se desenvolvem” (CERTEAU, 1994, p. 45).

Nesse entrelaçar de relações, a professora Iracema utiliza táticas que, segundo Certeau

(1994), podem se diferenciar conforme a ocasião e a maneira de influenciar o querer do outro:

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Eu gostava muito dos meus alunos e eles me respeitavam... As crianças eram

comportadas porque eu já uma senhora de idade, porque não era nova

(risos) e, eu tratava eles de forma séria, nunca briguei, nem bati em

ninguém, mas tratava as crianças séria, eu conversava com eles, tinha dia

que não tinha mais o que fazer, eu contava história, era assim... amiga

deles, mas não dava aquela liberdade pra eles fazerem o que queriam.

Então eles me obedeciam, me respeitavam muito, graças a Deus!!!

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

A aluna Maria Júlia Eler, expõe sobre o que mais gostava na escola,

[...] olha o que eu mais gostava era da amizade, porque a gente veio de

outro lugar e na escola eu tinha muita amizade, eu não esqueço deles, eu

gostava da escola, da professora, ela era excelente! Ela era calma, mais

tudo a gente obedecia, tinha as ordens, ninguém desrespeitava, inclusive se

ela saísse pra fazer a merenda ninguém bagunçava, todo mundo respeitava

ela. Eu sempre ajudava, era a mais velha e também porque eu acho que ela

gostava de mim, do meu jeito... eu ajudava limpar, varrer, olhar as outras

crianças, ou ir mexer a merenda, fazer o suco, porque naquela época tinha

quisuco, fazia quisuco no balde, ajudava ela servir... (ELER. Depoimento.

Tangará da Serra, 10/07/2014).

A amizade está presente nos relatos de todos os depoentes, demonstrando sua

importância para a convivência na comunidade. E o aluno Antônio Francisco da Silva revela,

também, a respeito da escola, dos amigos e da professora:

Era tudo amigo, não tinha briga, não tinha nada... a professora era

excelente, até hoje admiro ela, pois ela foi a mesma coisa que uma mãe pra

mim. Ela era da roça também, ela ensinava a gente, respeitava nossa mãe,

nosso pai, toda vida, ela foi exemplo... cobrava pra nós aprende, pra nós

luta, que ela estava ensinando pra nós no dia de amanhã ter um futuro pra

frente. Ela falava pra nós, o estudo é tudo, vocês tem que aprender, vocês

são criança a mentinha vai abrindo... ela ia falando pra nós. Eu gostava de

estudar porque eu gostava dela e gostava dos amigos da escola, quando eu

estava ali era um divertimento, era uma família. (SILVA. Depoimento.

Tangará da Serra, 17/08/2014).

Percebe-se que o uso da expressão ‘excelente’ transmite o sentimento máximo de

satisfação e carinho, pois ele era também utilizado pela professora ao escrever elogios ou

estímulos nos cadernos das crianças. “A professora elogiava a gente no caderno, parabéns,

continue assim” (ELER. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014). Os sentimentos de

pertença, de igualdade e de familiaridade, recorrentes nos relatos de memória, eram

recíprocos entre os alunos e a professora, a qual dedicava atenção, trabalho e incentivo para

com os alunos.

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Diante da diferença de idade entre os alunos, Maria José conta que “[...] às vezes saia

alguma discussãozinha, mas ninguém ficava com raiva de ninguém, a gente era tudo amigo”

(CASAGRANDE, M. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014), uma vez que estavam

sempre reunidos, interagindo. É certo que demonstravam suas afinidades e preferências por

colegas, mas “eles se combinavam, iam brincar, quando tinha alguma briga eu apartava,

conversava, dava conselho [...] por de castigo eu cheguei por, mas por mal criação, ficava

em pé no canto meia hora mais ou menos” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da

Serra, 10/07/2014). A ‘correção’ era feita utilizando o castigo, como a professora mesmo

relata, deixando a criança por um tempo no canto da sala, quando necessário. Os alunos

também emitem opinião sobre essa prática da professora:

[...] ela sempre foi uma pessoa rigorosa, mas nunca vi ela brava, ela dava

castigo, assim, por no canto de joelho, mas nada aquela coisa de rigor de

caroço de milho, nunca passamos por isso não, mas uma professora e uma

mãezona... o carinho que ela tinha pela gente era muito grande. Eu fiz da 1ª

até a 4ª série com ela, ela me alfabetizo, ela me deu a catequese. A

catequese foi muito especial pra mim, a gente é muito católico até hoje.

Tudo eu aprendi com ela. (LACERDA. Depoimento. Várzea Grande,

10/08/2014). Os meus pais nunca foram de carinho e atenção, eram muito rígidos, e ela

era muito carinhosa, abraçava a gente, a forma de tratar os alunos fazia que

a gente tivesse respeito por ela. O que marcou muito foi o carinho dela, era

atenciosa, ia na carteira dos alunos... (MOTA. Depoimento. Tangará da

Serra, 07/04/2014).

A gente aprendia muito, a dona Iracema era exigente, se ela ensinasse ou

explicasse alguma coisa ela só desistiria de ensina aquilo quando ela tivesse

certeza que a gente tinha aprendido. Ela era muito exigente nisso, se ela

passasse uma matéria enquanto ela não tivesse a certeza que todos sabiam o

que ela passou ela não desistia, ela ensinava... era bem professora mesmo!

Eu só estudei esses quatro anos mas valeu muito, porque o que foi ensinado

foi de bom aproveito, foi aprendido mesmo. Ela era bem exigente com os

alunos e muito boazinha eu não lembro dela por ninguém de castigo, as

crianças gostavam dela, ela era bem querida. (GOMES. Depoimento.

Tangará da Serra, 13/07/2014).

A paciência para estudar também foi uma característica forte da professora, que fazia

questão que os seus alunos não ficassem com dúvidas, visto que seu objetivo era o de que eles

aprendessem bem os conteúdos, como ela mesma aprendeu durante o seu tempo escolar no

interior de São Paulo. Ela também acreditava que, para muitos dos alunos, talvez o estudo

ficasse restrito apenas ao ensino primário, devido às próprias condições da região.

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A reciprocidade na relação entre a professora e os alunos é constatada nos

depoimentos destes, e a relação entre as famílias e a professora era de respeito e confiança,

uma vez que os pais confiavam no trabalho realizado por ela e davam a liberdade para que

corrigisse as atitudes dos filhos que, porventura, não fossem adequadas. Os pais eram os

responsáveis pela efetivação da matrícula dos filhos, porém, depois disso, só compareciam na

escola quando eram chamados pela professora. A comunicação entre eles se realizava através

de bilhetes no caderno dos alunos, quando necessário: “os pais iam na escola só quando a

professora chamava, geralmente se tivesse com dificuldade em alguma matéria, ela escrevia

no caderno um bilhete para os pais que era pra estuda mais, a mãe brigava e tinha que

estudar, não podia reprovar” (ELER. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

A aluna Marly confirma através desse relato, “Minha mãe foi fazer a matrícula com a

dona Iracema, mas não lembro dela ir outro dia lá falar com ela, porque nós também não

dava trabalho. Só precisava mãe ir na escola se a gente tivesse dando trabalho, se não, não

precisava (risos). (MOTA. Depoimento. Tangará da Serra, 07/04/2014).

Durante o período em que a professora lecionou na instituição escolar (1965-1983),

não era comum acontecerem comemorações ou festas na escola que reunisse toda a

comunidade, mas as ‘festinhas’ para as crianças eram momentos especiais que fazia parte das

práticas escolares enquanto estratégia da professora para premiar o esforço e a dedicação dos

alunos e alegrá-los com uma confraternização, o que é objetivado no relato da professora que

“quando chegava dia de feriado eles falavam: dona Iracema, vamos fazer uma festinha? Um

trazia frango feito, outros traziam bolo, outros não sei o que... (risos) eu fazia suco de

groselha, um caldeirão assim... cheio de suco de groselha (risos), essas crianças ficavam

contente”... (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

A seguir, a imagem que foi fotografada pelo Alexandre, cunhado da professora,

registrando ela e alunos trazendo o caldeirão de suco para a realização de uma ‘festinha’.

Através dessa ilustração pode-se observar a cerca que impedia o acesso do gado ao pátio da

escola e que dois alunos ajudavam a professora transportar os recipientes que traziam o

‘delicioso suco de groselha’, que ela mesma preparava. Nesse período, essa bebida não fazia

parte do cotidiano das famílias e, pela dificuldade de trazer gelo da cidade, várias vezes

saboreavam o suco apenas com o frescor da água do poço.

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FONTE: Acervo particular da professora Iracema Casagrande

A aluna Marly conta que “[...] pra gente era normal buscar a merenda ou esse

caldeirão, não achava dificuldade. Eu lembro desse caldeirão como hoje, esse caldeirão

ficou gravado na minha mente (risos). Pra mim isso não é só uma foto, é real (risos)”

(MOTA. Depoimento. Tangará da Serra, 07/04/2014). A professora relembra que “eles

gostavam tanto que passava um tempo eles falavam: dona Iracema, vamos fazer festinha?

Vamos fazer festinha?” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014) e

Maria José, aluna e filha da professora, diz que “[...] nós sempre pedia para fazer festinha,

porque todo mundo gostava do suco de groselha porque era uma novidade pra nós, ainda

mais se colocasse gelo, nossa, era gostoso, todos bebiam e não sobrava nem uma gotinha.

Era vapt e vupt! (risos)” (CASAGRANDE, M. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Na época, na comunidade da Reserva não tinha nada para se fazer de diferente, então,

era fácil agradar os alunos:

Ia em Tangará, nas lojas que eu já era conhecida e pedia uns lápis de cor,

caderno, qualquer coisa assim, porque tinha festinha pros meus alunos e eu

precisava dar um presentinho pra eles... muitas vezes eu ganhei, chegava lá

na hora da festinha eu dava caderno pra um, lápis pro outro, ficava tudo

contente, com um lápis... você veja só... agradava eles de todo jeito (risos).

(CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará da Serra, 10/07/2014).

Figura 28 Professora e alunos carregando suco de groselha para a 'festinha'

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Em meio às lembranças dos alunos, os significados que foram construídos através

dessas vivências se fazem presentes e se encontram ‘vivos’ na memória. As ‘festinhas’ que

eles ajudavam a professora a organizar, eram momentos de diversão, de alegria e de partilha,

“a gente repartia aquelas coisas que eles traziam, bolo, biscoito, de tudo um pouco... Eles

ficavam contentes, nossa! Uns traziam irmãozinho de casa, eu falava, pode trazer, as vezes

vinha até a mãe (risos), era bom, era muito bom” (CASAGRANDE, I. Depoimento. Tangará

da Serra, 10/07/2014). Para a aluna, Maria de Fátima Gomes, a “dona Iracema, foi a melhor

professora que eu tive [...] amada, era muito carinhosa, não lembro dela ter sido ruim com os

alunos, a gente tinha muito carinho por ela, pela amizade, [...] uma professora em tanto!

Muita saudade, tenho muitas lembranças boas, ela era uma pessoa maravilhosa” (GOMES.

Depoimento. Tangará da Serra, 13/07/2014).

Percebe-se que as relações foram se constituindo como elos que configuram vínculo

com o outro, na medida em que a compreensão, a confiança e o respeito foram se

estabelecendo no cotidiano escolar da comunidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o período de pesquisa foram vivenciados diferentes momentos, situações e

aprendizagens que possibilitaram reflexões e novas apropriações, as quais contribuíram para a

escritura da dissertação. Relevante se faz salientar que esse processo historiográfico significa

uma representação sobre o acontecido, considerando que o “tempo histórico não é o tempo

vivido” (MONTENEGRO, 2010, p. 10), uma vez que entre eles há diferenças e é na escritura

sobre o acontecido que está localizado o fazer próprio do historiador.

Nesse sentido, buscou-se evidenciar as representações de escolarização da infância,

materializadas na cultura escolar da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio,

comunidade denominada “Reserva”, entre 1965 e 1983.

No primeiro capítulo o foco foi o período de colonização de Tangará da Serra, iniciado

no final dos anos 1950, que configura-se num pequeno espaço da região central do Brasil,

onde pessoas, incentivadas pelos governos federal e estadual a migrar em busca de melhores

condições de vida através da conquista da própria terra, dinamizando uma política de

ocupação dos “espaços vazios”, mas que se configurava em sua (re)ocupação de espaços

anteriormente habitados por índios. A empresa responsável por estimular e criar condições

para a migração dessa região mato-grossense foi a Sociedade Comercial Imobiliária de Tupã

para a Agricultura Ltda. (SITA).

O segundo capítulo traz as discussões sobre a educação escolar em nosso país que

foram construídas no decorrer dos acontecimentos sociais atrelados à economia e à política

dominante. Durante os anos 1960 e 1970, período político-militar no Brasil, destaca-se como

finalidade da educação a formação de recursos humanos ou força de trabalho para o

desenvolvimento econômico, no interior da política capitalista. É nesse contexto que ocorreu

a criação das primeiras escolas rurais em Tangará da Serra, sob a iniciativa de algumas

famílias migrantes.

A cultura escolar é apresentada no terceiro capítulo, trazendo as seguintes evidências;

como os sujeitos escolares traduziram, nos fazeres cotidianos, as normas e práticas escolares,

constituindo-se a escola enquanto transmissora e produtora de uma cultura específica, coletiva

e plural. A escola determina um espaço de interação onde convivem múltiplas culturas

permeadas por tensões e “configuradas a partir de dispositivos de poder” (VIDAL, 2005, p.

14), mas que “desenham as astúcias de interesses outros e de desejos que não são nem

determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolvem” (CERTEAU, 1994, p. 45).

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Através dos relatos de memória e de outros documentos, percebe-se que os segmentos,

governo, famílias, professora e alunos expressaram diferentes representações de escolarização

da infância capazes de materializar a cultura escolar da Escola Rural Mista Municipal Santo

Antonio. Nesse sentido, além do projeto educacional do governo, através das legislações que

estabeleceram normas e regras, a professora que conduziu o processo educacional e as

famílias, ao lado dos responsáveis legais, possibilitaram, ou não, acesso e frequência das

crianças à escola.

Com relação às representações de escolarização da infância, expressas pelo projeto

educacional dos governos através do corpo legal, pode-se concluir que a educação mantinha

fortes vínculos aos interesses políticos e econômicos, que objetivaram a formação de pessoas

para o trabalho, em nome do desenvolvimento econômico do país, evidenciando a formação

do aluno trabalhador e defensor da pátria. Nesse contexto, foi priorizado o atendimento

educacional nas áreas urbanas, evidenciando a valorização da cidade em detrimento do

campo; a universalização da escolarização primária visando o desenvolvimento do raciocínio

e da expressão da criança, bem como sua integração ao meio físico e social; o currículo

organizado em núcleo comum obrigatório, ditado em âmbito nacional, contendo uma parte

diversificada em função das peculiaridades; no entanto, a legislação, nos anos 1960 e 1970,

não garantiram sua efetivação em ações concretas, no país, uma vez que é possível perceber o

distanciamento entre as práticas e os discursos, principalmente pela ausência de condições de

infraestrutura, de materiais pedagógicos e de recursos humanos que as estatísticas referentes

aos anos 1960, no Brasil, registrou que 45% dos professores eram leigos e, no estado de Mato

Grosso, 60% deles não tinham formação pedagógica para o exercício da função.

Evidenciou-se a valorização da escolarização da infância como possibilidade da

criança ‘vir a ser’ um cidadão comprometido e preparado para o mercado de trabalho, ao

mesmo tempo que estimulou a participação das crianças na escola diante da impossibilidade

da continuidade da escolarização, visto as dificuldades de acesso à escola. Isso evidenciou que

as práticas vivenciadas pela professora Iracema Casagrande, enquanto aluna primária,

permearam sua prática docente, pois, inicialmente, se utilizou dos materiais de seu tempo

escolar disponíveis na memória e em seus guardados, para reproduzir aos alunos, ou seja, o

ensino primário vivenciado por ela nos anos 1940, no estado de São Paulo, fizeram parte da

construção do currículo elaborado ainda conforme os recursos materiais de que dispunha na

escola rural. A representação da memorização vinculada ao estudo e à aprendizagem

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sobrepunha as ações do brincar e de contar histórias, que aconteceram nos momentos que

‘sobravam’ depois do ‘estudo’.

As famílias apresentaram diferentes representações, no entanto, a constituição

daquelas coletivas foram constituídas por pequenos grupos de famílias, pois, para algumas

famílias, aprender a ler e a escrever era suficiente para viver bem, principalmente para os pais

analfabetos. Já para outras, finalizar o ensino primário era considerado o essencial, o

necessário, inclusive o suficiente para ‘ser professora’. Outras famílias consideravam a escola

necessária para se aprender a contar, a ler e a escrever, e para isso não era preciso muitos

anos, nem muito tempo, portanto, consideravam os estudos escolares perda de tempo em

detrimento do trabalho familiar. Já outras famílias se esforçaram ao máximo para que os

filhos dessem continuidade aos estudos, pois acreditavam que quanto mais estudos tivessem,

mais oportunidades teriam de uma vida melhor que aquela que vivenciada pelos membros do

núcleo familiar.

A escola se constituía, para os alunos, em espaço para estudar e aprender, para ‘ser

alguém’ mais importante do que apenas um trabalhador da roça, mas, sobretudo, como um

espaço preferido, comparado com o espaço de trabalho, pois, mesmo durante pequeno

período, poderiam também, brincar, correr, jogar bola (ou laranja) com os amigos, enfim, a

escola era considerada um espaço divertido e alegre, apesar do esforço e concentração

necessários para se apreender. Deve-se considerar que os depoimentos são de adultos que, no

passado, foram alunos da Escola Rural Mista Municipal Santo Antonio, contribuindo para

estampar as representações do tempo vivenciado enquanto crianças.

Através da produção de significados que as famílias, a professora, os alunos e o

governo apresentam sobre a escolarização da infância nesse período, percebe-se como a

comunidade escolar foi construída, ou seja, permite-se compreender as representações do

mundo social que são determinadas pelos interesses do grupo, ao que Chartier (1990)

considera como o principal objetivo da História Cultural.

As discussões e análises foram construídas a partir de corpus documental pertencentes

a arquivos públicos e pessoais, ambos configurados em elementos materiais que rememoram a

história da colonização e seus reflexos na criação da primeira escola rural (municipal). Os

acervos pessoais possibilitaram realizar análises iconográficas do contexto escolar e do

trabalho na lavoura, da organização dos espaços sociais, como também das representações

materializadas na cultura escolar que foi se constituindo através das vivências e práticas dos

sujeitos escolares.

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Sob o olhar da História Cultural, a tentativa foi de uma escrita que valorizasse a

história de quem a vivenciou, portanto, a produziu e (re)inventou novas formas de fazer. Uma

história significada pelos sujeitos, produtores do cotidiano, reveladores de sentido, uma

história de lutas, decepções e conquistas, mas, sobretudo, uma história de homens, mulheres e

crianças silenciados pela história oficial.

Portanto, dar voz a esses sujeitos desconhecidos, homens ordinários colocados à

margem através do exercício da escuta do outro, reconhecendo o outro numa relação

dialógica, conforme considerou Certeau (1994), para conhecer uma ‘face’ do que foi o

período inicial de colonização e a educação escolar na região. Evidenciou-se que “[...] o que

sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer

pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos

que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa os historiadores” (LE GOFF, 1994,

p. 535).

As considerações não se apresentam como únicas e estanques, mas como

representações constituídas a partir de um lugar social. Deve-se salientar que a partir delas

podem ser abertas possibilidades para novas indagações e questionamentos que compõem

uma rede de significados e representações sobre o objeto de pesquisa em questão.

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CASAGRANDE, Iracema da Silva Machado. Depoimento [maio, 2001]. Entrevistador: João

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CASAGRANDE, Iracema da Silva Machado. Depoimento [fevereiro 2006]. Entrevistador:

Carlos Edinei de Oliveira. Tangará da Serra: UNEMAT. 2006. (2:48:17 min.). Entrevista

concedida ao Núcleo de Documentação de História Escrita e Oral (NUDHEO).

CASAGRANDE, Iracema da Silva Machado. Depoimento [julho 2014]. Entrevistadora:

Kátia Maria Kunntz Beck. Cuiabá: IE/UFMT. 2014. (0:13:17 min.). Entrevista concedida ao

Grupo de Pesquisa em História da Educação e Memória (GEM).

CASAGRANDE, Maria José. Depoimento [abril 2014]. Entrevistadora: Kátia Maria Kunntz

Beck. Cuiabá: IE/UFMT. 2014. (0:34:16 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa

em História da Educação e Memória (GEM).

ELER, Maria Júlia. [julho 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá: IE/UFMT 2014.

(0:37:00 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da Educação e

Memória(GEM).

GALHARDO, José Antônio: Depoimento [dez. 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck.

Cuiabá: IE/UFMT 2014. (0:46 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História

da Educação e Memória (GEM).

GALHARDO, Dorvilha Casagrande: Depoimento [jun. 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck.

Cuiabá: IE/UFMT 2014. (0: 17 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História

da Educação e Memória (GEM).

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GOMES, Maria de Fátima. [julho 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá: IE/UFMT

2014. (0: 27: 04 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da Educação e

Memória (GEM).

GOMES, Roberto. [novembro, 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá: IE/UFMT

2014. (0: 48: 34 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da Educação e

Memória (GEM).

LACERDA, Zilda Dias de Sousa. [julho 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá:

IE/UFMT 2014. (0: 41: 04 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da

Educação e Memória (GEM).

LACERDA. Assis de Sousa.. [agost. 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá:

IE/UFMT 2014. (0: 20: 54 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da

Educação e Memória (GEM).

LACERDA, Altair de Sousa, [agost. 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá: IE/UFMT

2014. (0: 20: 13 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da Educação e

Memória (GEM).

MOTA, Marly Helena da Silva. Depoimento [abril 2014]. Entrevistadora: Kátia Maria Kunntz

Beck. Cuiabá: IE/UFMT. 2014. (0:36:49 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa

em História da Educação e Memória (GEM).

OLIVEIRA, Ivonete Maria. Depoimento [agost., 2014]. Entrevistadora: Kátia Maria Kunntz

Beck. Cuiabá: IE/UFMT. 2014. (0:39 CAMILO, Severino da Silva. [maio 2014].

Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá: IE/UFMT 2014. (0: 25: 54 min.). Entrevista

concedida ao Grupo de Pesquisa em História da Educação e Memória (GEM).

MATHEUS, Ruth. [junho 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck. Cuiabá: IE/UFMT 2014. (0:

11: 38 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da Educação e Memória

(GEM).

SILVA, Antonio Francisco da. Depoimento [agos. 2014]. Entrevistadora: K. M. K. Beck.

Cuiabá: IE/UFMT 2014. (42 min.). Entrevista concedida ao Grupo de Pesquisa em História da

Educação e Memória (GEM).

Documentos

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Músicas

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TIÃO CARREIRO & PARDINHO. A mão e o tempo. Sucessos de ouro, 24 faixas, 2002.

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Jornais

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