vivÊncia de rua e alcoolizaÇÃo: a produÇÃo de
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE PSICOLOGIA
VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA
Autor: Paulo André Sousa Teixeira
BANCA EXAMINADORA
___________________________________
Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço (Orientadora)
__________________________________
Profa. Dra. Ângela de Alencar Araripe Pinheiro Membro da Banca Examinadora
__________________________________
Prof. Dr. César Wagner de Lima Góis Membro da Banca Examinadora
__________________________________
Esp. Silvana Garcia de Andrade Lima Membro da Banca Examinadora
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA: Rua Tiradentes, 641, B:H Ap:201 Parque Araxá – 60430-560 Fortaleza – CE TELEFONES: (85) 32231804 – (85) 88845979 EMAIL: [email protected]
VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO
DE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA
RESUMO
A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno social como em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos longe de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna em relação ao uso e, principalmente, ao abuso de drogas: “Por que o sujeito se vale dessas substâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir, intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desde os compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual – ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Paripasso ao fenômeno do uso/ abuso de drogas, temos uma realidade – que semelhante à drogadição também não é nova – que é a dos moradores de rua. Do encontro da rua com as drogas, o que podemos esperar? Nesse sentido, nossa pesquisa teve por objetivo investigar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis, construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida. A referida entidade é uma congregação religiosa, vinculada à Igreja Católica. A amostra desta pesquisa é composta por três sujeitos abrigados na Fraternidade Toca de Assis e que residem há mais de um ano na casa. Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método de coleta de dados. A partir dos dados colhidos através das entrevistas, os submetemos (os dados) à análise semiótica, segundo a qual o processo de interpretação é concebido com um processo de produção de sentidos. O sentido é o meio e o fim de nossa tarefa de pesquisa. Tomamos por base teórica a Produção de Sentido no Cotidiano por meio das Práticas Discursivas e concepção de Produção de Subjetividade. A partir de nossa incursão empírica na Fraternidade Toca de Assis, pudemos perceber que uma gama de sentidos foram construídos em relação à bebida alcoólica. Aspectos como: masculinidade, família, trabalho e precarização do mundo laboral e acontecimentos veiculados pela mídia estão intimamente ligados à produção da realidade dos moradores de rua e da sua vivência com o álcool. A Psicologia tem a contribuir tanto como ciência – na compreensão das variáveis envolvidas, na problematização da realidade e na desnaturalização dos “óbvios” – como na proposição de uma práxis contextualizada, na capacitação de pessoal e, principalmente, no planejamento de ações interdisciplinares. Palavras-chave: Moradores de Rua, Álcool, Produção de Sentido.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PARECER SOBRE MONOGRAFIA
Como orientadora da monografia de Curso de Graduação intitulada VIVÊNCIA
DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM (EX)
MORADORES DE RUA do aluno Paulo André Sousa Teixeira, do Curso de
Psicologia da UFC, recomendo a sua inscrição para concorrer ao Prêmio Silvia Lane
que será concedido pela Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP,
considerando a relevância do tema no campo da Psicologia Social e a qualidade do
estudo, que obteve a nota 9.3 pela banca examinadora, por ocasião da defesa pública da
monografia.
Fortaleza, 30 de março de 2007
Veriana de Fátima Rodrigues Colaço
Professora Doutora do Departamento de Psicologia da UFC
INTRODUÇÃO
A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno
social como em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos
longe de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna em
relação ao uso e, principalmente, o abuso de drogas1: “Por que o sujeito se vale dessas
substâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir,
intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desde
os compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual –
ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Certamente
essas e outras questões estão longe do esgotamento. É nesse sentido que visamos,
através desta pesquisa, contribuir com avanço na discussão e problematização dos
contextos diferenciados que indivíduos se valem no uso de drogas diversas.
Paripasso ao fenômeno do uso/abuso de drogas, temos uma realidade – que,
semelhante à drogadição, também não é nova – que é a dos moradores de rua. Prenhe de
variáveis e multicasual, homens, mulheres, crianças, jovens, adultos habitam as ruas e
fazem delas suas moradas. Mais comum – porém não exclusivo - nas grandes capitais, a
situação do morador de rua se confronta, diariamente, com o direito à moradia, à
dignidade, ao respeito e a tantos outros. Essas pessoas, por não gozarem de lugar fixo
para sua habitação, acabam também prescindindo de outros direitos sociais como
educação, saúde e lazer - para citar apenas os mais gritantes. A invisibilidade é a marca
desta população. Na trama social, são sempre pano de fundo de uma paisagem, como se
naturalmente fizessem parte do contexto. Mas não o são. “Vale ressaltar que o estudo
referente à temática moderadores de rua é bastante escasso, seja na construção de
trabalho acadêmico, pesquisa ou tese, seja na produção bibliográfica [...]”,
(ALCÂNTARA, 2004, p. 94) ou ainda:
Apesar de se tratar de uma população que cresce diariamente na cidade de São Paulo, poucos trabalhos de Psicologia (até 2002) foram produzidos a respeito do tema (moradores de rua). Em outras áreas do conhecimento a situação não é muito diferente (SERRANO, 2004, p.15).
1 Definiremos, na seqüência, o que entendemos por uso e abuso de entorpecentes.
Do encontro da rua com as drogas, o que podemos esperar? Seria também essa
uma aproximação lógica e fatalista, como as aproximações que alguns fazem em relação
à pobreza e à marginalidade? A rua e a droga permitem o deslocamento espacial – tanto
no sentido físico como “a viagem” do efeito de certos entorpecentes – fazendo com que
o sujeito transite livremente, mesmo em locais que lhe são, a todo momento,
interditados por sua condição socioeconômica e, principalmente, pela sua
impossibilidade de consumo. E quem será que vem primeiro? Para estar na rua, a droga
se faz necessária ou será a droga que leva o sujeito ao mundo incerto das calçadas e das
pontes?
Estudos recentes (CAMPOS; FERREIRA; MATTOS, 2004, p.1-2) apontam que
há relação, sim, entre os moradores de rua e o alcoolismo. Segundo os autores,
[...] o alcoolismo apresenta-se ora como um dos motivos primordiais da rualização, ora como uma conseqüência do ingresso no mundo da rua. Outras vezes, entretanto, surge, simultaneamente, como condição e efeito da situação de rua.
Nesse sentido, é esperado que o álcool gere uma maior suscetibilidade a
enfermidades, dificuldades no engajamento laboral e outros problemas inerentes. Por
outro lado, o álcool também assume, por vezes, o caráter de “anestesia”, principalmente
em relação ao sofrimento cotidiano. Prescindir da alcoolização é, por vezes, entrar em
contato com uma realidade cruel, quase insuportável. Diante dessa dinâmica – como
causa, conseqüência ou os dois eventos simultâneos –, é muito provável que o aspecto
da dependência química enraíze ainda mais o sujeito na situação de rua,
impossibilitando, muitas vezes, sua saída. Campos e colaboradores ainda acrescentam:
[...] as propostas que respondem às necessidades de trabalho e moradia são imprescindíveis para a consecução da saída das ruas, o que a maioria das políticas públicas oferece. Porém, acreditamos que necessariamente também haja a inclusão de medidas que atentem para a questão do alcoolismo, para que os programas voltados a essa população possam ser efetivos (2004, p.2).
Pautado em uma realidade concreta de vivência com sujeitos que passaram pela
experiência de rualização, nosso interesse surgiu pela inserção, como estagiário, na
Fraternidade Toca de Assis. A referida instituição é uma comunidade religiosa,
vinculada à Igreja Católica, que trabalha com o acolhimento e cuidado de moradores de
rua. Os “irmãos de rua”, como os religiosos os chamam, são todos adultos e homens;
escolha esta que, segundo eles, se deve ao maior contingente encontrado nas ruas. O
nosso contato com a instituição se deu por intermédio de um estágio em Psicologia
Clínica, vinculado à Formação em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico-
Existencial com o Instituto Reluz, ONG criada para prestar atendimentos diversos à
Fraternidade.
Uma vez imerso nessa realidade, percebemos – religiosos, estagiários,
profissionais e seguindo a fala dos próprios abrigados – que a problemática das drogas,
com ênfase acentuada no álcool, permeava grande parte dos conflitos e falas que
circulavam na instituição. Fugindo de uma perspectiva higienista ou policialesca, na
qual iríamos em busca de uma causa para explicar, ou mesmo de ações para extirpar
esse tipo de comportamento, visamos uma abordagem que buscasse a compreensão das
multiplicidades de sentidos que estão presentes no fenômeno do abuso de álcool,
especificamente. A escolha do álcool nessa pesquisa se deu pela abrangência, facilidade
de acesso e recorrência na instituição. No entanto, não queremos dizer, com isso, que o
abuso de álcool aparece isoladamente. Segundo nossas observações e incursões gerais,
muito pelo contrário. Ao mesmo tempo em que não advogamos a favor da tese
determinista de que álcool é “necessariamente” a “porta de entrada” para drogas mais
“pesadas”. Pensamentos dessa natureza só corroboram com os simplismos e
estereótipos decorrentes deste.
Esse tipo de enfoque, no nosso entender, é qualitativamente mais apropriado por
alguns motivos: parte da realidade dos próprios sujeitos, conhecedores, por excelência,
de suas próprias motivações e de seus desejos; entende que a ação do abuso de álcool,
mesmo com sua conotação social tida como autodestrutiva, possui um significado e não
pode ser simplesmente extirpado; não descarta a possibilidade, a partir dos
conhecimentos produzidos e acumulados no transcorrer da evolução científica, de se
fazer uma intervenção curativa e, sobretudo, preventiva.
Para tanto, valeremo-nos das contribuições das diversas áreas do conhecimento –
Psicologia, Sociologia, Medicina, entre outras – para aprofundar a compreensão das
reações fisiológicas, da evolução histórico-social, das repercussões subjetivas do
referido fenômeno. Optamos por trabalhar com a situação de abuso de álcool como um
objeto de estudo não problemático em si, num sentido pejorativo (apesar de não
negarmos que, em certos momentos, se torna realmente um problema, principalmente
no âmbito da saúde pública2). Entretanto, Bucher (apud GOMES; RIGOTTO, 2002, p.
96) ainda aponta que “há consenso sobre o aumento acelerado do consumo em
decorrência do narcotráfico e da demanda por produtos psicotrópicos”. É quando o
álcool sai da esfera exclusiva do indivíduo e passa a interferir na família, na
comunidade, no trabalho – e, por sua vez, no sistema econômico – que ele se torna um
problema que traz consigo gastos vultosos para o Estado e, por conseqüência tributária,
para a sociedade. Como ainda afirma Silva (2000, p. 30) “Não podemos ignorar que há
um custo gradativo no tratamento de doenças derivadas do uso de drogas: custo
hospitalar, desemprego, produtividade, prostituição e criminalidade”. Visto a
complexidade do fenômeno, nossa reflexão sobre ele também não pode reduzir-se a
uma explicação reducionista, seja de ordem biológica, social ou psicológica.
A esfera da saúde pública – visto a amplitude de disciplinas que a compõem –
nos oferece dados de grande relevância no sentido de compreender as repercussões da
alcoolização no Brasil nos últimos anos. Quando falamos de doenças da
contemporaneidade, os transtornos relacionados ao “abuso de substâncias aparecem
lado a lado com os transtornos alimentares e as compulsões por jogo, sexo e compras”
(MOREIRA, 2006, p. 3). Só no ano de 1999 foram realizadas 37.754 internações
hospitalares, número correspondente a 85% dos problemas decorrentes do uso de drogas
psicotrópicas em geral (CEBRID, 2000, apud CAMPOS et al, 2004, p.2). Ademais,
ainda para o referido ano, o coordenador do GREA (Grupo Interdisciplinar de Estudos
de Álcool e Drogas) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo,
Prof. Dr. Arthur Guerra de Andrade (apud CAMPOS et al, 2004, p. 2), afirmou, no
encontro “Álcool e suas Repercussões Médico-Sociais”,
[...] que o Brasil gasta 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB), por ano, para tratar de problemas relacionados ao álcool - desde o tratamento do dependente, até a perda da produtividade por causa da bebida - como a indústria do álcool movimenta somente 3,5% do PIB.
2 “A prevalência do álcool é de 11,2% na população brasileira, e a maior taxa de dependentes está na população cuja faixa etária é a de 12 a 24 anos, sendo 17,1% da população masculina e 5,7% da população feminina” (CEBRID apud CAMPOS, 2004, p. 1380). Além do que “sabe-se que o início do uso de drogas está ocorrendo com pessoas cada vez mais jovens e com substância de teor tóxico mais elevado” (GOMES; RIGOTTO, 2002, p. 96).
Diante de dados estarrecedores como estes, é preocupante observarmos o trato
sócio-culturalmente legitimado, já que observamos que a problemática não está na pauta
de discussões de governos, políticas públicas, nem das articulações da sociedade civil.
Podemos, mesmo que superficialmente, pensar nas repercussões negativas que esta
problemática traz nos acidentes de trânsito, nos acidentes de trabalhos, na
desestruturação familiar, nos gastos com medicamentos e, em último caso, nos
volumosos investimentos em clínicas de reabilitação. A publicidade também deve entrar
como variável de análise, no sentindo de se constituir uma grande incentivadora do
aumento do consumo nos últimos anos3. Refletindo com os dados anteriormente
apresentados pelo coordenador do GREA, concluímos que, em termos sociais, o abuso
de álcool traz consequências indesejáveis ao bem-estar da população.
Remetendo-nos novamente à problemática da alcoolização ligada ao mundo das
ruas, é de fácil constatação a representação socialmente compartilhada da pessoa
alcoolizada em situação de rua ser apenas “um bêbado qualquer, um desinteressado, um
caído, um coitado...”. Tais imagens tendem a desresponsabilizar as autoridades
competentes, bem como a sociedade, diante da sua participação na produção (ou
omissão em combater) deste fenômeno. A culpabilização exclusiva do “bêbado”
apresenta-se como deslocada da realidade sócio-cultural, como se o comportamento não
fosse aprendido, permitido, ensinado e, em grande parte, incentivado. É um
reducionismo psicológico que deve ser, a todo custo, refutado.
Num contexto laboral altamente precário, a questão da falta de trabalho, das
condições desfavoráveis, da intensa flexibilização dos contratos, da falta de poder de
reivindicação por parte das classes trabalhadoras, são variáveis que também devem ser
levadas em consideração. A saída para as ruas não é um evento abrupto. Por vezes, vem
acompanhada do desemprego crônico, da dissolução dos laços familiares, do intenso
sentimento de culpa e vergonha e, por fim, de uma “fuga” da realidade vivenciada. Em
relação ao círculo familiar, estudos afirmam a intrínseca relação entre o alcoolismo e a
violência doméstica (NASSER; ESCOREL apud CAMPOS et al, 2004, p. 8), sendo esta
realidade um fator primordial de dissolução ou até mesmo de rompimento das relações
familiares.
Outros dados alarmantes ainda nos lançam para a problematização da relação do
álcool com as ruas. Segundo Rosa (apud CAMPOS, 2004, p.8), em relação à população
3 O consumo no Brasil aumentou 74.53% entre os anos de 1970 e 1996 (CARLINI-MARLATT apud CAMPOS et al, 2004, p.3).
em situação de rua que faz abuso de álcool, “entre nove que fazem uso de bebida, oito
começaram a beber antes da chegada às ruas”, além de acrescentar que “os que estão
há pouco tempo na rua sentem a pressão exercida pela bebida; se não aderem, são
tratados como diferentes; é preciso falar a mesma linguagem, caso contrário sofrem
represálias” (ROSA apud CAMPOS et al, 2004, p.11). Diante destas indicações, não se
pode pensar um problema ou outro isoladamente ou desconsiderando o sistema
socioeconômico, isso pode ser fonte de superficialidades e/ou conclusões apressadas.
À guisa de um esquema para estas relações, Campos (et al) atesta:
Fica explícita a influência do álcool na ruptura com os ambientes familiares; na manutenção de trabalhos intermitentes que favoreciam uma maior liberdade para o exercício de sua dependência química; por fim, em situação de rua, todos rendimentos auferidos tinham como destino a re-produção desse círculo vicioso que o levou a esta condição (2004, p.10).
Uma vez inseridos na cultura de rua, há também que se atentar para o caráter
socializador que o uso de álcool assume. Há uma criação em torno do ato beber, de uma
série de ritos, comportamentos socialmente aceitos (e recusados), entre estes os
estabelecimentos de horários, legitimação de compadrio e outras nuanças. Porém, como
afirma Mattos:
[...] ao lado da confraternização, o álcool também é elemento de discórdia, criando uma configuração contraditória nas relações entre estas pessoas: surge com um aspecto de solidariedade, mas gera a violência; ao lado da união, promove a desintegração do relacionamento entre as pessoas, perpassando desde boas conversas e risadas até grandes discussões e brigas até “fatais” (apud CAMPOS et al, 2004, p.11).
Vale ressaltar que o interesse desta pesquisa não é constatar nem refutar a
interdependência existente entre o álcool e a situação de rua. Para nós, e segundo os
estudos realizados, a ligação intrínseca é notória, porém não fatalista. Nosso interesse
diz respeito a compreender, a partir da história de vida destes sujeitos, como o álcool foi
sendo significado ao longo da vida destes usuários, quais os personagens relevantes,
quais os cenários marcantes, os sentimentos etc. Mais especificamente, seria então
investigar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis,
construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida.
1) AS VEREDAS DA PESQUISA
Diante da complexidade das pesquisas que têm a subjetividade como enfoque,
optamos por uma pesquisa eminentemente qualitativa. Tal delimitação dá-se, entre
outros fatores, devido ao nosso objeto de estudo – a produção de sentido, a situação de
rua, o álcool e a construção da subjetividade – e à nossa concepção de que a pesquisa
qualitativa apresenta uma metodologia consoante com nossos propósitos de
investigação.
Circunscrevemos esta epistemologia de estudo também por corroborar com
González Rey (2002), quando este concebe a epistemologia qualitativa como:
Um esforço na busca de formas diferentes de produção de conhecimento em psicologia que permitam a criação teórica acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa histórica, que representa a subjetividade humana (p. 29).
Ademais, a ruptura com um modelo mecanicista, nos moldes do positivismo, foi
uma atitude metodológica frente às limitações que tal modelo apresentava.
Extrapolando os objetivos destes, temos que a:
Abordagem qualitativa no estudo da subjetividade volta-se para a elucidação, o conhecimento dos complexos processos que constituem a subjetividade e não tem como objetivos a predição, a descrição e o controle. Nenhuma dessas três dimensões, que historicamente estão na base da filosofia dominante na pesquisa psicológica, forma parte do ideal orientado pelo modelo qualitativo de ciência (Ibidem, p. 48).
Spink (2000), por sua vez, da mesma forma que González Rey, trata a
perspectiva qualitativa não apenas como uma metodologia, mas uma epistemologia.
Nesse sentindo, a opção sai da esfera técnica e passa a coadunar com os objetivos da
investigação. Entendido então como epistemologia, dentro de uma perspectiva do
Construcionismo Social (ver capítulo sobre produção de subjetividades e sentidos), a
combinação de estratégias quantitativas e qualitativas deixa de ser uma querela,
superando também outras dicotomias, como realismo e idealismo ou indivíduo e
sociedade.
1.1) A Produção de Sentido como método Um conceito capital em nossa pesquisa será a noção de sentido. Na concepção
de Medrado e Spink “dar sentido ao mundo é uma força poderosa e inevitável na vida
em sociedade” (2000, p. 41). O sentido é sempre uma construção social e coletiva, que
se dá por meio da interação e das relações, a partir das quais as pessoas compreendem e
atuam em seu cotidiano. Não entendemos o sentido como apenas uma produção intra-
individual, muito menos uma mera atividade cognitiva. Como prática social, ele é
sempre dialógico, visto o movimento dinâmico da linguagem.
Esta noção é cerne também do entendimento que o Construcionismo Social traz
acerca da apreensão da realidade, já que “é a compreensão de que os termos em que o
mundo é compreendido são artefatos sociais, produtos das trocas historicamente
situadas entre as pessoas” (GERGEN apud MENEGON e SPINK, 2000, p.76). Com
isso, essa perspectiva intenta a descrição dos fenômenos, na qual as pessoas explicam o
mundo, incluindo-se nele.
Dessa forma, tomamos por base a noção de “práticas discursivas”, já que a
linguagem encontra-se em movimento, constantemente. “Podemos definir, assim,
práticas discursivas como a linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais
as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas”
(MEDRADO e SPINK, 2000, p. 45). A compreensão dos sentidos é sempre um
confronto de vários sentidos construídos, não uma produção isolada.
Tomaremos por base também as variações temporais que são próprias da
produção de sentido. Queremos dizer, com isso, que há vários “tempos”, a citar: um
longo, um curto e um vivido. O primeiro marca os conteúdos culturais e a história de
uma dada sociedade; o segundo diz respeito aos processos dialógicos, às interações
face-a-face; já o terceiro versa sobre as linguagens apreendidas a partir da socialização,
são as experiências da pessoa ao longo de sua história (MEDRADO e SPINK, 2000,
p.51).
Nossa compreensão só estará minimamente qualificada quando levar em conta
esses três tempos, articulando-os e considerando suas contradições inerentes. Nesse
instante, separações como indivíduo/sociedade, sujeito/objeto, bem como fora e dentro
do sujeito não fazem mais sentido. A perspectiva do Construcionismo Social, base
epistemológica na compreensão das práticas discursivas, no enfoque de Spink, supera
ainda a dicotomia realismo/subjetivismo, representada no pensamento filosófico pelas
correntes empiristas e idealistas.
As tensões e paradoxos, ao invés de refutados na nossa investigação, fazem parte
do processo de pesquisa. A interpretação levou em conta o pesquisador e sua
subjetividade, assim como a noção histórica como variável que impulsiona
transformações. Ou, como enfatizam Medrado e Spink:
Por meio dessa abordagem, buscamos construir um modo de observar os fenômenos sociais que tenha como foco a tensão entre a universalidade e particularidade, entre o consenso e a diversidade, com vistas a produzir uma ferramenta útil para transformações da ordem social. (2000, p. 61).
1.2) Lócus de Pesquisa
A pesquisa foi realizada na Fraternidade Toca de Assis4 (Casa Aliança São
José), localizada na Avenida João Pessoa, N. 5052, Bairro Damas, na cidade de
Fortaleza - CE. O local foi fundado em 2003. Quanto à sua estrutura física, conta com
dois andares, três banheiros, seis dormitórios, uma capela, um escritório, uma
enfermaria, dois salões, uma cozinha, um alpendre na parte superior, um jardim na parte
inferior da casa e uma sala para atendimentos diversos (inclusive psicológico, feito
pelos membros do Instituto Reluz, mencionado na Introdução desta monografia). A casa
é bastante ampla e agradável.
A casa abriga cerca de 60 moradores de rua e conta com aproximadamente dez
membros da Fraternidade para prestar assistência aos “irmãos de rua”. A casa é
exclusivamente masculina, com exceção de uma cozinheira e de algumas consagradas
da comunidade5 que realizam visitas com certa freqüência. A idade dos abrigados varia
dos 18 aos 70 anos. Há uma heterogeneidade também quantos às características dos
abrigados: existem vários moradores com transtornos mentais, comprometimentos
físicos, dependência de álcool (não severa), entre outros. O lugar de origem também é
bastante variado: há pessoas que chegam desde o Norte do país até o extremo Sul, com
prevalência de pessoas de Fortaleza.
4 Para mais informações ver: http://www.tocadeassis.org.br/principal.html#tela02 5 Nomenclatura referente às religiosas mulheres que não moram na casa, mas a freqüentam.
A Toca de Assis tem como principais atividades as tarefas domésticas e os
momentos de oração. Este segundo ponto é facultativo aos abrigados. São trabalhos na
cozinha, no jardim, arrumação geral da casa e coleta de lixo. Constantemente há algum
serviço de pedreiro ou bombeiro hidráulico a ser realizado, atividades estas que
mobilizam grande parte da casa. Já houve aulas de EJA (Educação de Jovens e
Adultos), ministradas por uma voluntária. Os trabalhos voluntários são constantes,
porém, há um problema com a falta de continuidade destes.
Entretanto, apesar deste leque de tarefas, algo que marca a instituição é a
ociosidade. Logo ao adentrarmos o espaço, nos deparamos com uma série de abrigados
deitados pelo chão, jogando baralho/dominó, ou, literalmente, “vendo o tempo passar”.
Esta é uma limitação que os membros da casa tentam sanar, mas que por causa das
limitações estruturais e de pessoal (e pelo próprio propósito da instituição) ainda há
muito que se fazer. O objetivo central da casa é o acolhimento, este entendido como
recolhimento e conforto espiritual. Há também atividades externas, as chamadas
“pastorais de rua”.
1.3) Sujeitos da Pesquisa
A amostra dessa pesquisa foi composta por três sujeitos abrigados na
Fraternidade Toca de Assis que residiam há mais de um ano na casa. A seleção dos
sujeitos da pesquisa foi feita por conveniência, ou seja, explicitamos os objetivos da
pesquisa para os consagrados da casa e membros do Instituto Reluz, e pedimos para que
estes nos indicassem possíveis candidatos para as entrevistas. O critério, além do tempo
de permanência na casa, foi o abuso de álcool (ver conceito de abuso no referencial
teórico que consta no segundo capítulo) no período da coleta de dados ou em período
recente, bem como a disponibilidade e aceitação dos indivíduos para a entrevista (ver
termo de consentimento no apêndice).
Importante esclarecer a razão pela qual utilizamos a expressão (ex) moradores de
rua e não apenas moradores de rua. Os sujeitos da nossa pesquisa, como já adiantamos,
estão abrigados. No entanto, existe uma variação quanto ao modo como os sujeitos se
identificam. Alguns acham que a estadia na Toca de Assis é passageira, identificando-se
ainda como morador de rua. Outros, ao contrário, se vêem como ex-moradores de rua.
Como esta é uma questão delicada e não é objeto de nosso estudo, preferimos o uso dos
parênteses para englobar as duas concepções, respeitando, contudo, esta diferenciação.
1.4) Coleta de dados
Entendemos que o instrumento de coleta de dados, bem como toda a
metodologia, devem ser escolhidos a partir do próprio objeto de pesquisa. Ou seja, o
problema e os objetivos de pesquisa norteiam a escolha de um método e não o contrário.
Banister, nesse sentido, comenta que “nenhum modelo de prática ou análise pode ser
determinado de antemão, abstraindo-se o tópico e o contexto da investigação
particular” (apud PINHEIRO, 2000, p.183).
Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método de coleta de dados (ver
roteiro de entrevista no apêndice). Para o registro das entrevistas, usamos um gravador
para guardar a fidelidade das falas dos entrevistados. Relatar experiências relativas ao
abuso de álcool geralmente é uma narrativa emocionalmente carregada e, por isso,
escolhemos proceder à coleta de dados de forma individual.
A escolha da entrevista esteve situada na compreensão de que esta se apresenta
como uma abordagem relacional por excelência. Menegom e Spink continuam
explicando que
[...] a expressão e produção de práticas discursivas aí situadas devem ser compreendidas também como fruto dessa interação, ou seja, os integrantes, incluindo o pesquisador, são pessoas ativas no processo de produção de sentidos (2000, p.85).
Como nos situamos na seara das pesquisas qualitativas - ou seja, não temos
pretensão de generalizar nossos dados –, acreditamos que aprofundar as histórias de
vida6 de três sujeitos é suficiente para levantar dados relevantes para a compreensão do
fenômeno. O importante é o acompanhamento do movimento discursivo,
compreendendo que é nesse fluxo que o sentindo vai sendo tecido. “Práticas
discursivas são diferentes maneiras em que as pessoas, através dos discursos,
ativamente produzem realidades psicológicas e sociais” (DAVIES E HARRÉ apud
PINHEIRO, 2000, p.186).
Ao abordamos a entrevista como prática discursiva estamos, sobretudo,
compreendendo-a como uma ação, uma inter-ação. A negociação é a marca deste tipo
de relação. Pinheiro aprofunda tal negociação explicando que
6 A história de vida a qual nos referimos não diz respeito a uma metodologia, mas as narrativas que os sujeitos faziam em relação às suas próprias histórias.
Numa conversa o locutor posiciona-se e posiciona o outro, ou seja, quando falamos, selecionamos o tom, as figuras, os trechos de histórias, os personagens que correspondem ao posicionamento assumido diante de outro que é posicionado por ele. As posições não são irrevogáveis, mas continuamente negociadas (PINHEIRO, 2000, p.186).
Antes das entrevistas propriamente ditas, tivemos um momento de apresentação
da proposta de pesquisa e um esclarecimento coletivo com os sujeitos que foram
indicados em meados de setembro. Foi um momento importante, principalmente porque
se deu em grupo, evitando possíveis fantasias quanto aos objetivos da pesquisa.
Explicamos exaustivamente os passos, as motivações e como a experiência de cada um
seria fundamental na compreensão das intercessões entre a realidade de rua e o álcool.
As entrevistas ocorreram no final de setembro e transcorreram de forma
tranqüila, sem grandes contratempos. Tivemos apenas que remarcar uma delas por conta
da indisposição de um dos entrevistados. Todas tiveram duração de, aproximadamente,
uma hora e aconteceram nas dependências da própria Fraternidade.
1.5) Análise dos dados
A partir dos dados colhidos através das entrevistas, realizamos o procedimento
de análise semiótica, segundo a qual “[...] o processo de interpretação é concebido,
aqui, como um processo de produção de sentidos. O sentido é, portanto, o meio e o fim
de nossa tarefa de pesquisa” (LIMA e SPINK, 2000, p. 105). Ou seja, não há separação
entre o momento da coleta de dados e o da interpretação destes. A interpretação, assim,
faz parte do processo de pesquisa, visto que a objetividade buscada perpassa o âmbito
da intersubjetividade. Dessa forma, reconhecemos a possibilidade de produção de novos
sentidos influenciados pelas discussões entre os sujeitos entrevistados.
Utilizado esse método, efetuamos uma leitura dos conteúdos, buscando captar os
sentidos para, só a partir daí, realizar uma classificação dos dados coletados, ou seja,
não buscaremos encaixar os dados em uma classificação existente a priori. Mesmo que
haja tematizações pré-existentes, advindas da escolha de um determinado referencial
teórico, estas não se propõem a servir de enquadre para os dados coletados, uma vez que
“há um confronto possível entre sentidos construídos no processo de pesquisa e de
interpretação e aqueles decorrentes da familiarização prévia com nosso campo de
estudo (nossa revisão bibliográfica) e nossas teorias de base” (ibidem, p. 106).
Após o surgimento das categorias – a citar: construção da subjetividade do
morador de rua, a realidade da rua e o sentido do álcool -, trabalhamos com mapas de
associação de idéias. “Utilizamos categorias para organizar, classificar, e explicar o
mundo. Falamos por categorias” (MENEGOM e SPINK, 2000, p.78). Estes
correspondem a uma espécie de tabela em que os conteúdos são organizados de acordo
com as categorias, sem que se perca a ordem das falas, a fim de preservar o contexto no
qual surgiram.
O aprofundamento e a análise do material empírico serão temas do último
capítulo desta monografia. Na ocasião, faremos as devidas descrições, bem como as
problematizações e as relações com a teoria apresentada.
2) A REALIDADE DOS MORADORES DE RUA E SUA
VIVÊNCIA COM O ÁLCOOL: CONCEITUANDO
Neste capítulo, temos por objetivo discorrer sobre os fenômenos do alcoolismo e
dos moradores de rua. Ambos possuem suas especificidades e, nem sempre, estão
atrelados um ao outro. É nesse sentindo que discorreremos sobre as repercussões do
álcool como substância, numa abordagem biopsicossocial. Na seqüência, trataremos do
fenômeno dos moradores de rua – tentando compreender sua antropologia, a partir da
dicotomia da experiência entre o público e o privado.
2.1) O álcool em uma perspectiva biopsicossocial
Historicamente, o tratamento dispensado às drogas, em geral, centrou atenção
particularizada como um fenômeno de base unicamente orgânica. Diante da limitação
de tal modelo biomédico, foi necessário compreender como fatores psicológicos,
culturais e sociais somariam esforços na compreensão de por que o homem faz uso de
certas substâncias entorpecentes, chegando, por vezes, a prejudicar seu próprio modo de
vida. Tais prejuízos foram aglomerados em torno das chamadas “teorias da adição”.
Nestas, segundo West (apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 31), “o indivíduo
apresenta prejuízos de saúde, psicológicos e sociais, e tem sua liberdade de escolha
violada”. É uma primeira forma, ainda abrangente, de abordar as repercussões negativas
do abuso de drogas.
Entretanto, não queremos cair em um outro extremo, que seria a recusa de uma
abordagem fisiológica. Vale ressaltar que a ação da droga no organismo funciona,
prioritariamente, por reforço positivo, visto seus efeitos estimulantes (WISE;
BOZARTH apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.31). O reforço positivo é
responsável pelo sustento do hábito por conta de estados agradáveis – em geral, euforia
e prazer - ao organismo. Tais efeitos são cruciais no estabelecimento da dependência. A
dopamina é o principal neurotransmissor das vias de recompensa cerebral (mesolímbica
e mesocortical), atuando, primordialmente, no núcleo accumbens do cérebro. Eis o ciclo
do processo de recompensa. Outra característica que aumenta a influência orgânica da
droga é seu caráter difuso, ou seja, ela atua em diversas regiões do Sistema Nervoso
Central (SNC) (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 32-33).
O estudo de drogas lícitas e ilícitas, por vezes generalizado, acoberta as
especificidades de cada substância. Cuidaremos, então, do álcool como produtor de
reações psicofisiológicas específicas, bem como inserido em um código cultural
também peculiar. Em termos populacionais, os dados apontados por Julião e Niel (2006,
p. 135) nos chamam a atenção, uma vez que:
O alcoolismo figura entre os dez principais problemas de saúde pública no mundo, sendo a quarta doença mais incapacitante, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde. De acordo com dados do CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas) de 2002, o álcool é a substância psicoativa mais utilizada no Brasil, e o seu uso durante a vida variou de 53% na região norte a 71,7% na região sudeste. Com relação à dependência de álcool, a prevalência entre homens é de três a quatro vezes maior que entre mulheres.
No tocante aos aspectos culturais, podemos observar que o álcool é uma droga
lícita e socialmente aceita, sendo o seu uso considerado aceitável e, por vezes,
estimulado. Ademais, vale ressaltar o fácil acesso e baixo custo, aliado à falta de
fiscalização quanto à proibição da venda para crianças e adolescentes.
Quando nos referimos ao álcool, fica implícito que nossa real intenção é abordar
os fenômenos decorrentes da exposição de sujeitos a essa substância. O álcool, em si, é
de fácil definição. Do ponto de vista da Química, o álcool consiste em “um composto
orgânico em que um átomo de H, de um alcano, é substituído por um grupo hidroxila,
OH”7. Desta constatação, verificamos ainda que há uma subdivisão da substância álcool
em alguns subprodutos, entre os mais conhecidos temos o metanol e o etanol. Seus
principais usos são como reagentes químicos e na para produção de combustíveis
diversos.
Nosso interesse estará voltado para as reações do etanol. Este é obtido,
principalmente, a partir da fermentação dos açúcares de frutas, com destaque para a
cana-de-açúcar. O etanol é o álcool encontrado em bebidas, sendo sua concentração
variável de 4% a 50%. Esta concentração varia de acordo com a fermentação ou
destilação da bebida. Citamos como exemplo a cerveja e a cachaça, respectivamente.
Bebidas apenas fermentadas não apresentam um teor alcoólico muito elevado. Já as
destiladas, como cachaça e uísque, apresentam alto teor alcoólico. Como já havíamos
antecipado, nosso foco central não está na substância em si, mas nos efeitos que esta
produz no comportamento humano.
7 http://www.quiprocura.net/alcool.htm (acessado em 25/06/06)
Quanto à sua Psicofisiologia, podemos afirmar que o álcool atua como agente
depressor no cérebro, na parte do sistema nervoso central (SNC). Quando este afeta o
SNC, há uma sensação de euforia por parte do indivíduo (geralmente atrelada ao
sentimento de desinibição); efeito que logo se atenua e torna-se depressivo quando o
efeito da droga sucumbe. Depois de ingerido, o álcool é absorvido pelas paredes
intestinais e vai se metabolizar no fígado (SILVA, 2000, p. 15).
Outro enfoque que podemos dar ao nosso estudo é sobre a evolução histórico-
antropológica do conceito de álcool. Segundo Bessa e Gigliotti (2004, p. 11),
O álcool é uma substância que acompanha a humanidade desde seus primórdios e sempre ocupou um local privilegiado em todas as culturas, como elemento fundamental nos rituais religiosos, fonte de água não contaminada ou ainda presença constante nos momentos de comemoração e de confraternização, quando se brinda a todos e a tudo. [...] Através da história, o álcool tem tido múltiplas funções, atuando como veículo de remédios, perfumes e poções mágicas e, principalmente, sendo o componente essencial de bebidas que acompanham os ritos de alimentação dos povos. Faz parte do hábito diário de famílias em todo o mundo, servindo de alimento e de laço de comunhão entre as pessoas.
Silva ainda acrescenta:
Historicamente, o uso do álcool data de 8000 a.C. quando na idade paleolítica era extraído do mel. Somente nos anos 6400 a.C. é que a cerveja e o vinho começaram a ser feitos. O abuso de álcool, contudo, tem acontecido desde o momento em que ele foi inventado. Em sociedades ocidentais atualmente estas bebidas são consumidas sem controle (2000, p. 15).
Nesse sentido histórico, o álcool ocupou significados diversos, desde integrante
de confraternizações familiares e selador de acordos entre governos até propulsor de
festas orgiásticas e bacanais. Diante dos comportamentos atuais, frutos de exposições
exageradas a essa substância, observamos que houve uma mudança considerável na
forma da sociedade lidar com ela. O mesmo vinho que outrora simbolizava a comunhão
agora divide espaço com a representação do consumo arbitrário desestruturador de
famílias. “Gradativamente, o que era pecado foi se tornando crime e, mais
recentemente, doença” (MOREIRA; SILVERIA, 2006, p. 4). O que se observou então
foi, principalmente na sociedade ocidental, uma passagem do liberalismo exagerado
para uma interdição total, isso no que diz respeito às drogas ilícitas. A intolerância é um
aspecto em destaque.
Ainda no sentido histórico, quanto ao aspecto legal, o consumo de várias
substâncias psicoativas foi proibido no Ocidente – inclusive o álcool – mais
notadamente nos Estados Unidos, onde passou de 1919 a 1933 por um período de
ilegalidade8. Outrora tratados como fármacos, componentes de rituais religiosos e outras
conotações, as drogas, nesse período, assumiram novos valores sociais, culturais e
morais na sociedade. Segundo Escohotado (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 9),
são “as atitudes sociais que determinam quais as drogas são admissíveis e atribuem
qualidades éticas aos produtos químicos”. Paradoxalmente, a proibição nos EUA gera
também um aumento exacerbado no consumo. A repressão torna-se um estímulo. Ainda
segundo Silveira (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12), este foi “o único momento
da história onde, em conseqüência da dificuldade de acesso a bebidas alcoólicas, foram
registrados casos de uso de álcool injetável”. Porém, o modelo europeu, diante do fato
da ineficácia das práticas proibitivas, resolveu adotar novas formas de abordar o
problema, incluindo a flexibilização no trato com a temática (MAIEROVITCH, apud
ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p.14)
Acrescentamos ainda a apropriação econômica como fator que determina,
sobremaneira, certa droga como lícita ou ilícita. Por sua vez, tal escolha não é, como
muitos pensam, pautada em determinações científicos. Basta observamos que o uso do
cigarro de nicotina, consumido na mesma proporção ao de maconha, é muito mais
prejudicial à saúde do indivíduo. Para fugirmos da querela religiosa ou moral,
corroboramos com Araújo e Moreira (2006, p. 9) quando afirmam que:
Cabe ao entendimento histórico desmistificar os preconceitos, sejam estes de caráter repressivo ou libertário, por meio de uma análise cronológica e comparativa capaz de abandonar conceitos maniqueístas, em busca de subsídios que permitam a construção de uma nova consciência coletiva.
8 “Nos Estados Unidos, este ciclo (em relação ao período de intolerância ao uso de substâncias psicoativas) iniciou com a perseguição ao ópio em forma de fumo na Califórnia na década de 1870, passou pela campanha contra a cocaína e a primeira leia contra ela - o chamado Harrison Act, assinado em 1914 – e culminou na aprovação de um dispositivo legal que proibia a venda, distribuição e consumo de bebidas alcoólicas em todo território americano: o Volstead Act, mais conhecido como Lei Seca, que vigorou de 1919 a 1933”. (ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12)
Segundo Bessa e Gigliotti (2004), o alcoolismo só começou a ser visto como
doença em meados do século XVIII, após a Revolução Industrial, diante do aumento da
produção e da comercialização do álcool. Estudiosos como Benjamim Rush e Thomas
Trotter começaram a pensar a exposição freqüente ao álcool como um problema que
merecia a atenção das autoridades e, principalmente, da medicina da época. Pensado
então como doença, o alcoolismo pode ser assim considerado quando o usuário
apresenta, basicamente, três características: tolerância, abstinência e perda de controle.
Entendemos o conceito de tolerância como
[...] a necessidade de doses cada vez maiores de álcool para que exerça o mesmo efeito, ou diminuição do efeito do álcool com as doses anteriormente tomadas; e por síndrome de abstinência um quadro de desconforto físico e/ou psíquico quando da diminuição ou suspensão do consumo etílico (BESSA e GIGLIOTTI, 2004, p.12).
Outra diferenciação importante para o nosso estudo diz respeito às noções de
uso, abuso e dependência de álcool. O primeiro refere-se à exposição “moderada” às
substâncias que contenham etanol. Já o abuso consiste em “padrões de uso patológico e
prejuízos nas funções sociais e ocupacionais relacionados ao uso, e para a categoria de
dependência, além disso, exigia a presença de tolerância ou de abstinência” (BESSA e
GIGLIOTTI, 2004, p. 12). Anteriormente era utilizada a nomenclatura “vício”, que
passou a ser substituída por “dependência” pela conotação moralista da primeira
(SILVA, 2000, p. 13). “Um dos elementos essenciais na caracterização de uma
dependência é a perda de controle de consumo de uma substância” (MOREIRA;
SILVEIRA, 2006, p. 4). Entendemos também que a dependência não seja induzida pelo
uso agudo, mas sim pelo uso repetido do álcool (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.
33). Vale ressaltar que estamos interessados no estudo do abuso, em detrimento ao uso
ou à dependência.
Apesar dessas acepções, para alguns autores, como Karam (2003), a definição
precisa do que viria a ser o alcoolismo ainda é algo distante. Ao analisar o CID-10
(Classificação Internacional de Doenças), o autor verifica que “apenas o delirium
tremens continua sendo a única forma clínica indiscutível de alcoolismo” (KARAM,
2003, p. 469). A Síndrome de Abstinência de Álcool (SAA) é ocasionada quando
pacientes de uso prolongado de álcool diminuem a ingestão ou param de beber.
Os sinais e sintomas mais comuns são: tremores, taquicardia, hipertensão arterial, náuseas, vômito, ansiedade, agitação psicomotora e alteração do humor (irritabilidade e disforia). Podendo evoluir para um quadro de delirium tremens, cursando com confusão mental, alucinações, idéias deliróides e hipertemia. Convulsões tônico-clônicas generalizadas também podem ocorrer (DI PIETRO, 2006, p. 148).
Teremos também que fazer uma distinção conceitual entre alcoolismo e
alcoolização. O primeiro se refere ao comportamento de abuso de álcool, já o segundo
diz respeito ao ato de alcoolizar algo ou alguém; no nosso entender, aproxima-se do
conceito que já apresentamos de uso de álcool.
Diante de todos esses conceitos provenientes, em suma, de um referencial
biomédico de processo de saúde-doença, é importante atentarmos que a tradição no
estudo do alcoolismo é biologizante, reduzindo ao organismo e às suas reações
fisiológicas todas as explicações sobre aquele (CAMPOS et al, 2004).
Ao contrário de um trato que privilegie a compreensão do processo de
alcoolização como causa-conseqüência, entendemos que uma intervenção mais
apropriada se dá na compreensão da relação que o sujeito estabelece com a substância.
Ou seja, não é o álcool em si que provoca alterações comportamentais indesejáveis9,
muito menos o sujeito, que tem distúrbios perturbadores. É do encontro que poderá
surgir algum tipo de descompasso. Para Moreira e Silveira (2006, p. 4), o padrão de
consumo decorre da interação de vários fatores, entre eles: o tipo de droga utilizada, as
características biológicas e psicológicas do usuário (cabe destacar que a dependência
também é compreendida a partir destes dois enfoques) e o contexto em que se dá o uso
de drogas (característica por demais negligenciada). Ou, nas palavras de Claude
Olivenstein (apud LESCHER; LOUREIRO, 2006, p. 22), de que “o fenômeno se
organiza a partir de uma tríplice conjunção de fatores: a subjetividade do indivíduo, as
características farmacológicas do produto e contexto sociocultural desse encontro”. A
conotação relacional pode ser melhor compreendida a partir de dados estatísticos que 9 Vale ressaltar que as propagandas contra substâncias entorpecentes, no geral, enfatizam a idéia de que o álcool, em si, pode provocar algum tipo de comportamento. Há um descompasso gritante entre a realidade midiática apresentada (supostamente generalizada) e o contexto vivenciado no cotidiano. Moreira e Silveira ainda acrescentam: “A exposição destas questões nos meios de comunicação, habitualmente, gera intensa mobilização popular. Mobilização sem orientação gera desespero, e a população fica desorientada diante de tantas informações. Atitudes extremas, originadas do medo, só fazem piorar a situação, minando fatores protetores como a qualidade da comunicação entre pais e filhos e o vínculo com instituições como escola, aumentando o risco para o abuso de substâncias” (2006, p.4).
mostram que menos de 10% dos usuários de álcool e maconha vão se tornar
dependentes (MOREIRA; SILVEIRA, 2006, p. 6).
Silva (2000) aborda o desenvolvimento do alcoolismo através de fases. Na
primeira, denominada pré-alcoólica ou fase social, os sintomas ainda estão latentes. Em
seguida, temos a fase de tolerância (ver definição supracitada), com doses acentuadas, o
indivíduo chega ao terceiro momento, a chamada fase da necessidade. É neste período
que a droga serve como “cura” para a ansiedade, a depressão e o tédio.
Numa acepção genética, pesquisas apontam que filhos de pais alcoólatras,
quando adotados por pais não alcoólatras, terminam bebendo ou com qualquer tipo de
dependência química (GOODWIN apud SILVA, 2000, p. 19). Entretanto, não podemos,
a partir destes dados, inferir argumentos pseudocientíficos que “condenam” filhos de
alcoólatras a se submeterem ao mesmo tipo de comportamento. “Assim como para
outras doenças psiquiátricas, a variância genética para o comportamento pode explicar
no máximo metade da variância fenotípica, sendo a outra metade atribuída aos fatores
ambientais” (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 35).
2.2) Morador de rua: a problemática do público e do privado
Após as devidas contextualizações quanto aos aspectos biopsicossociais do
uso/abuso de álcool, nos deteremos em problematizar a realidade dos moradores de rua.
Segundo Justo e Nascimento (2000, p.3), “Em nossa pesquisa sobre o fenômeno da
errância na sociedade contemporânea, constatamos, preliminarmente, que o uso do
álcool é bastante acentuado entre os ‘trecheiros10’".
Partiremos das relações entre o público e o privado no cenário da sociedade11
brasileira (discutiremos como entram em choque na realidade dos moradores de rua)
para pensarmos tal questão. Os mitos, ritos, significados, sentidos, afetos, impressões
sobre o espaço domiciliar contrastados com os do espaço público produzem ricas
compreensões. Principalmente quando observamos que as contradições afetivas e
comportamentais presentes entre a casa e a rua são experenciadas, por vezes, por um
mesmo sujeito. DaMatta (1997, p. 19) acrescenta: 10 Nomenclatura atribuída aos moradores de rua que enfatiza o seu caráter transeunte. 11 Corroboramos com a idéia de DaMatta quando o autor afirma: “A idéia de sociedade que norteia este livro [ensaio], portanto, não é aquela da sociedade como um conjunto de indivíduos, como tudo mais sendo um mero epifenômeno ou ocorrência secundária de seus interesses, ações e motivações. Ao contrário, a sociedade aqui é uma entidade entendida de modo globalizado. Uma realidade que forma um sistema. Um sistema que tem suas próprias leis e normas” (1997, p. 13)
Conforme vai surgir repetidamente em todos os ensaios que formam este livro, é possível ‘ler’ o Brasil de um ponto de vista da casa, da rua e do ângulo do outro mundo. E mais: essas possibilidades estão institucionalizadas entre nós. Não se trata de uma mera variação empírica, dessas que ocorrem na Inglaterra, Espanha ou Pasárgada [...]. Leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações.
Neste trabalho, discorreremos sobre as representações vigentes da rua como
espaço público; e da casa como espaço privado; das inversões existentes e, sobretudo,
das sobreposições, ou seja, quando a casa e a rua coincidem. Tal coincidência pode ser
observada na situação dos moradores de rua. Estes sujeitos habitam, em sua maioria, as
ruas das grandes capitais brasileiras. Chamamos de ruas as pontes, praças, calçadas,
entradas de igrejas e todos os outros locais onde observamos a habitação dessas pessoas.
DaMatta, na mesma obra, explicita os meandros da casa em oposição ao espaço
da rua. Entretanto, em nenhum momento, atenta para quando estes mundos – no âmbito
físico e simbólico – coincidem. Esta reflexão proporá exatamente esta investigação.
Deter-nos-emos em três momentos, a citar: a) quando casa e rua são espaços
completamente distintos; b) quando a casa e a rua “confundem” seus papéis, ou seja, na
ocorrência de inversões simbólicas pontuais; e c) quando a casa e a rua se fundem
concretamente, situação que analisaremos a partir da vivência dos moradores de rua. “O
segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo
que está ‘entre’ as coisas” (DAMATTA, 1997, p. 25).
2.2.1) A casa e a rua: “cada qual no seu canto”
Esta acepção, na qual o espaço domiciliar e o espaço público são tidos como
diametralmente opostos, talvez seja a mais corriqueira, até porque é a mais presente no
senso-comum. Neste sentido, a casa é o oposto à rua. O que é dito, feito e até pensado
em casa não se repete na rua e vice-versa. A noção de papéis sociais cabe bem para
entendermos tal significação, já que os roteiros estão previamente escritos, cabendo aos
atores apenas sua “interpretação”. Nesse sentindo, está previamente determinado o que
deve/pode ser dito e feito dentro de casa e o que pode ser desempenhado (fazendo
alusão à nomenclatura teatral) no espaço da rua.
A partir da moral, podemos também compreender as diferenças existentes entre
a casa e a rua. É comum observarmos que certos temas são próprios do lar, como os
demais ficam execrados ao espaço público. Sexo, religião, política e outros assuntos
“polêmicos” são dedicados, quase exclusivamente, à rua. A casa é o lugar dos consensos
e a rua o espaço dos conflitos. “Sabemos que em casa podemos fazer coisa que são
condenadas na rua” (DAMATTA, 1997, p. 20).
O enfoque do anonimato pode nos esclarecer também sobre as nuanças
existentes entre esses espaços. Na casa todos são chamados pelo nome, possuem uma
história, são “personalizados”. Ao contrário, na rua, há um anonimato quase que
generalizado. Não há reconhecimento das pessoas como pessoas, no sentido de um
contato mais próximo. Na rua, todos são “apenas mais um”. No espaço doméstico,
mesmo que alguém não componha determinada família, a categoria de “visita” já o
destaca, concedendo-lhe visibilidade.
Quanto ao cuidado despendido, podemos encontrar um maior esmero em relação
à casa em detrimento ao espaço público. Em geral, preocupamo-nos em demasia com a
limpeza, organização e manutenção do domicílio, mas relegamos a segundo plano
quando pensamos que também somos responsáveis pelos espaços coletivos. “Limpamos
ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimônia ou pejo...” (DAMATTA, 1997, p.
20). Importante concebermos tal representação como uma produção cultural, evitando
naturalizações descabidas que partem para análise da sociedade brasileira como se
houvesse um “código genético” natural a ser decifrado.
Existem também certos códigos/normas que são próprios de cada espaço. Os
códigos da casa, por exemplo, são fundados, prioritariamente, na amizade, na lealdade,
na pessoa, no compadrio. Já os códigos da rua são baseados em leis universais, num
formalismo jurídico-legal, na impessoalidade (como já apontamos). Os conflitos podem
ser deflagrados quando esses códigos não são reconhecidos ou, por opção ou omissão,
são desrespeitados. A partir daí, o judiciário é acionado, a mídia explicita o equívoco
ou, simplesmente, a própria comunidade local trata de penalizar o “infrator”.
Não dormimos na rua12, não fazemos amor nas varandas, não comemos com comensais desconhecidos, não ficamos nus em público, não rezamos fora das igrejas etc. Os exemplos, conforme sabe o leitor, são legião. Ora,
12 Interessante perceber que DaMatta exemplifica o “não dormi na rua” como ação incomum; e realmente o é em termos gerais. Entretanto, os dados (ALCÂNTARA, 2004) evidenciam que cada vez mais há uma defasagem do sistema habitacional, ocasionando uma legião de pessoas que tem a rua como sua morada.
a festa (do carnaval) promove precisamente os deslocamentos destas atividades dos seus, digamos, “espaços normais”. Isso, então, permite a sensação de um tempo louco, notavelmente lento ou, como ocorre com o nosso carnaval13, uma temporalidade acelerada, vibrante e invertida (DAMATTA, 1997, p.41 e 42, grifo nosso).
2.2.2) Invertendo os papéis: quando casa e rua se “confundem”
Entre os extremos de entendermos a rua como espaço simbólico diametralmente
diferente da casa e de entendermos a sua sobreposição, temos ainda a ocorrência de
situações nas quais pequenas permutas ocorrem, confundindo, temporariamente, o que é
próprio da rua em casa e vice-versa.
No geral, quando estas trocas ocorrem, alguns conflitos podem ser deflagrados.
Em nossos tempos, essas limitações estão cada vez mais tênues. O trabalho realizado
em casa é um exemplo categórico. Diante da crescente demanda por trabalhos via
internet, perde-se a razão de ter um local de trabalho. A casa, nestes termos, assume a
dupla função de lar e de espaço de trabalho. A flexibilização temporal é apontada, com
positividade, como uma grande característica deste tipo de relação laboral. Entretanto,
não há uma demarcação de tempo também para os afazeres domésticos, o lazer e, acima
de tudo, para o ócio. A inversão temporal, não só espacial, marca esse tipo de relação.
Podemos compreender também o nepotismo como uma das manifestações em
que os “códigos da casa” (agora em termos essencialmente simbólicos) são levados para
o espaço público. É cultura da família a preferência pelos seus. O critério é basicamente,
além do vínculo sanguíneo, o afeto peculiar despendido para um determinado membro
(agregados e pessoas próximas da família também entram neste critério). O problema –
e o encaramos com tal – é quando esse tipo de relação extrapola o espaço doméstico e
passa a gerir uma determinada parte da esfera pública. Ao invés do mérito, do
merecimento, do esforço e do reconhecimento, mede-se, promove-se ou demite-se pelo
discernimento se há parentesco com alguém que detenha poder na instituição.
Retornando a problemática da casa como espaço físico, podemos afirmar
também que a casa possui espaços com significações semelhantes às da rua. São as
13 DaMatta cita o carnaval como uma produção cultural na qual essas inversões de tempo, espaços, papéis sociais, entre outros, apresentam grande visibilidade. Para maior aprofundamento, ver obra do autor sobre o tema: DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis - Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
varandas, amplas janelas para o exterior, salas de visita, quintais, jardins... Espaços
esses que ora assemelham-se ao espaço da rua – ocorrência de festas, mudança na
linguagem, menos zelo – e ora são readmitidos à dinâmica doméstica. “Mas, assim
como a rua tem espaços de moradia e/ou de ocupação, a casa também tem seus espaços
‘arruados’” (DAMATTA, 1997, p.56). Não observamos, na obra do antropólogo, o
desenvolvimento da noção que o espaço público e o privado se encontram intimamente
imbricados. Faremos tal discussão no tópico a seguir.
2.2.3) A casa e a rua se fundem: a experiência dos moradores de rua.
A miscigenação, a pluralidade cultural, o sincretismo religioso, a enorme
extensão territorial, as contradições sócio-políticas entre norte e sul do país; todas essas
variáveis nos indicam que qualquer tentativa de explicação da sociedade brasileira
pautada em homogeneidades estará fadada ao fracasso. Muito além das polaridades (do
“isso ou aquilo”), nossa sociedade é baseada, sobretudo, nas coincidências (no caso, “o
isso e aquilo”).
O candomblé é a expressão da união entre a umbanda e o catolicismo, a capoeira
nasceu de um jogo-luta, a feijoada foi concebida a partir da “mistura dos restos” da casa
do senhor de engenho, o caboclo nasce do encontro entre brancos e índios e o morador
de rua como a figura representativa da fusão entre espaço público e privado. É claro que
tal fusão, muito mais que uma produção eminentemente cultural, tem suas
determinações econômicas. Muitos dos moradores de rua (a maioria) desgarraram-se de
suas famílias por conta do desemprego, de conflitos intrafamiliares e, sobretudo, por
conta da dependência química, em especial o álcool (SERRANO, 2004).
Essas características – que permitem o encontro de variáveis aparentemente
diferentes - extrapolam ainda nas produções dos símbolos culturais. Os espaços e
tempos também se fundem e confundem, gerando novas possibilidades de socialização.
É assim que observamos nas arquiteturas (arranha-céus dividem espaços com
construções da época do barroco) e, com ênfase acentuada, nas práticas e nos discursos
políticos. Os coronelismos e currais eleitorais coexistem com discursos tidos como
“progressistas”, como a participação popular e o controle do aparelho público.
Retomando a aparente dicotomia entre a casa e a rua, é notório que a situação do
morador de rua inverte a noção de um espaço público e um outro privado. Estes se
confundem de tal forma que fica difícil estabelecer qualquer delimitação. A dificuldade
de compreensão está no âmbito de quem está fora, observando, mas, sobretudo, do
ponto de vista de quem vivencia a situação de rua. Como falar em privacidade, limites
(físicos ou simbólicos) em espaços como esses? Como pensar a higiene, o lugar de
dormir, de comer, de estar e de sair, se todos já estão “fora”?
Além do espaço, o tempo é outra categoria fundamental para entendimento dessa
imbricação. A rua possui uma lei própria, dotada de códigos de sobrevivência claros e
rígidos. Assim, a noite não é só um tempo de descanso, mas também o momento de se
proteger, “um olho no gato e o outro no peixe” (SERRANO, 2004, p.30). Por isso,
observamos, com tanta freqüência, pessoas que dormem em plena luz do dia. Há uma
inversão temporal. A noite representa, além do momento de autoproteção, o instante de
receber ajuda (os conhecidos “sopões”), de trabalhar (no caso dos catadores de lixo) e,
quiçá, de cometer algum tipo de delito.
Um outro tipo de paradoxo que consideramos bastante fértil diz respeito ao
caráter de transitoriedade em contraponto ao significado da rua como espaço de morada
fixa. Talvez esta seja a maior contradição, tanto em termos de representação como de
fato, quando pensamos o que significa uma pessoa habitar um logradouro qualquer.
Como já apontamos alhures, o que é próprio da passagem e do itinerante torna-se, na
situação do morador de rua, algo permanente. Entretanto, essa permanência alterna-se
ainda com a mobilidade, criando uma situação complexa, na qual tipos de pensamentos
polares não dão conta de explicar o fenômeno.
Além de transitório ou permanente, DaMatta trata dos sentidos vinculados aos
espaços públicos também como eternos ou provisórios. “Mas nossos espaços nem
sempre são marcados pela eternidade. Há também espaços transitórios e problemáticos
que recebem um tratamento muito diferente” (DAMATTA, 1997, p. 45). A igreja, o
paço municipal, as praças históricas - entre outras peças arquitetônicas que compõem os
cenários das grandes cidades - são entendidas a partir de “representações eternas”, ou
seja, há um caráter histórico que os legitimam como peças fundamentais de certo centro
urbano. Daí decorrem os movimentos de revitalização, preservação, tombamento e as
demais ações que visam conservar a “matriz sócio-cultural” de uma determinada urbe.
Esta noção também é questionada a partir da instalação dos moradores de rua. Há uma
“provisoriezação14 do eterno”. Aquilo que outrora era de uma esfera quase sagrada
agora foi “banalizada”, tornou-se provisório.
14 Considerar o neologismo para fins metodológicos.
Em termos das conseqüências dessas diversas sobreposições entre o espaço da
casa e o espaço da rua, consideramos que a principal é a invisibilidade – uma vez que
não temos claro se alguém está transitando ou morando – e, por conseqüência, a
restrição da cidadania. Entendemos o conceito de cidadania muito além de uma mera
efetivação dos direitos políticos e sociais e o cumprimento das normas jurídico-sociais.
A cidadania, no nosso entender, deve estar pautada também na possibilidade de
expressão e participação, deslocando a noção da passividade do sujeito para a
necessidade de sua ação (PINHEIRO, 2006).
Os moradores de rua, em geral, além de não serem contemplados pelo poder
público e pela sociedade com benefícios básicos (como alimentação, saúde, educação e
própria moradia) também não se reconhecem como detentores dessas benesses. Vale
observar a inexistência de organizações de classe e outras formas de mobilização. Não
estamos afirmando que a descrença na exeqüibilidade dos direitos sociais é própria
dessa camada da população. Estamos afirmando, sim, que tal realidade se agrava, por
questões culturais, educacionais e de outras ordens.
Se quisermos aprofundar a temática da rua como espaço socialmente construído
de exclusão social, basta nos reportarmos aos vários provérbios e expressões populares
que denotam bem tal conotação15. “Quem quer se perder se cria asas” induz pensarmos
na rua como lugar de perdição, como se “criar asas”, ou seja, sair de casa fosse
indicativo de atos moralmente condenáveis. “Vá para o olho da rua” aponta o espaço
extrafamiliar como sendo do castigo e do menosprezo, uma espécie de “inferno na
terra”. A rua assume o lugar do tenebroso, que oferece perigo. Já o dito “estou na rua da
amargura” é expressivo para demonstrar o caráter pejorativo que a rua assume em certos
contextos.
Ao contrário, a casa é percebida, também a partir de determinados provérbios,
como lugar do acolhimento, da segurança e do conforto. Basta lembrar como nos
referimos quando nos sentimentos bem em certo lugar: “estou me sentindo em casa”; ou
quando atrelamos ao espaço laboral uma conotação positiva: “este trabalho é minha
segunda casa”. Desta forma, questionamo-nos como os moradores de rua se situam
nesse emaranhado de sentidos, uma vez que são extirpados de referências imediatas de
domicílio. Cabe destacar o imediato, visto que a inexistência de um lugar de morada
não retira deles a representação de lar, muito menos a apropriação de certos códigos
15 Fonte: http://www.deproverbio.com/DPbooks/VELLASCO/COLETANEA.html. (Acessado em 19/11/2006).
semióticos; no sentindo de que o fato de não possuírem uma residência não os furta de
uma representação de domicílio.
Podemos ainda falar da apropriação da casa e da rua em termos afetivos. A casa
pode ser distinguida como lugar da calmaria, do repouso, da recuperação, da
hospitalidade, do carinho e de todos esses adjetivos que circunscrevem a casa como
lugar onde as pessoas, no geral, gostam de estar. A rua é o diametralmente oposto. Ela
é, sobretudo, o lugar do perigo, principalmente na contemporaneidade em que a
violência se tornou pauta permanente dos veículos de comunicação. Por ser um espaço
prioritariamente de trânsito, poucos se preocupam em fazer da rua um lugar aprazível,
como se vê no âmbito doméstico.
Tudo isso revela gritantemente como o espaço público é perigoso e como tudo que o representa é, em princípio, negativo porque tem um ponto de vista autoritário, impositivo, falho, fundado no descaso e na linguagem da lei que, igualando, subordina e explora. O ponto crítico da identidade social no Brasil é, sem dúvida, o isolamento (e a individualização), quando não há nenhuma possibilidade de definir alguém socialmente por meio de sua relação com alguma coisa (seja pessoa, instituição ou até mesmo objeto ou atividade). Nada pior do que não saber responder à tremenda pergunta: ‘Afinal de contas, de quem se trata?’ (DAMATTA, 1997, p. 59).
O antropólogo conclui um pensamento já apontando outro de igual
relevância. Paripasso à conotação de invisibilidade dos moradores de rua,
observamos ainda a significativa situação de anonimato em que essas pessoas se
encontram. São sujeitos que, do ponto de vista da identidade, nem são reconhecidos
– seja como cidadãos ou até mesmo como pessoa – pela sociedade que os cerca.
Esse grau de anonimato chega a tal ponto que muitos não possuem sequer carteira
de identidade ou outro documento identificatório (SERRANO, 2004). Em estágios
mais acentuados (que não são tão incomuns) esse anonimato pode levar aos quadros
de transtornos mentais severos ou outros tipos de debilidades.
2.3) Algumas palavras sobre o morador de rua
Antes de referenciarmos o que estamos concebendo por “morador de rua”, faz-se
mister localizarmos este fenômeno socialmente. Tal situação, na qual a privação ao
direito social à habitação - vide Constituição Federal, Art. 5º (BRASIL, 1996) - é o
grande marco, não é exclusiva de países subdesenvolvidos. Cidades com grande
acúmulo de capital – como Tóquio, Los Angeles e Paris16 - também enfrentam sérios
problemas em relação aos bolsões de pobreza e, por conseguinte, a falta de moradia
adequada para suas populações.
A situação de extrema desigualdade social – abismo socioeconômico na divisão
de renda – gera, por sua vez, uma grave situação de exclusão social. Exclusão esta que
perpassa diversos níveis, desde a impossibilidade de acesso a uma variedade de espaços
(que, em nosso tempo, estão cada vez mais privatizados), até a não efetivação dos
direitos sociais básicos.
Apesar de limitada, a bibliografia especializada cita alguns termos comumente
utilizados para descrever essa população. São os mendigos, trecheiros, moradores de
rua, homens de rua, povo da rua ou população em situação de rua. Cada nomenclatura
implica algum enfoque em detrimento de outra ênfase. Por exemplo, “população em
situação de rua” enfatiza conotação de transitoriedade destas pessoas em relação à rua,
evitando, assim, uma naturalização e atentando para a-historidade deste processo. Já “o
mendigo” enfatiza o caráter de pedinte, alguém que mendiga (MATTOS apud
SERRANO, 2004, p. 23). Para os efeitos deste ensaio, estaremos nos referindo neste
estudo ao morador de rua, não nos interessando o caráter de mendicância em si. O que o
caracterizará, para nós, é a vivência de morar na rua, independente do período ou do
local específico.
É nessa configuração social que surge a pessoa do morador de rua. Extirpado, a
princípio, do seu direito à habitação (mas não só!), ele “perambula” por ruas e vielas
interessado na sua sobrevivência imediata. Além disso, a invisibilidade é outro aspecto
marcante dessa camada da população. Em geral, esses apenas são percebidos quando
cometem algum tipo de delito, atrapalham o trânsito ou exalam algum odor que chama a
atenção. Ou seja, a percepção é sempre norteada pelo negativo, pelo que falta. Até
órgãos oficiais, como o IBGE, não contabilizam nem possuem dados precisos sobre a
população que vive nesta situação.
Segundo estudos pontuais, como o da professora Maria Cecília Loschiavo dos
Santos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, chama a atenção o crescente
número de famílias que vivem na rua. Ademais, cerca de 86% da população é do sexo
16 Informação colhida em matéria do Jornal da USP. Acessado em 06/07/2006. http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2004/jusp700/pag0405.htm
masculino. Entretanto, apesar de prevalecer um perfil masculino, há uma participação
de sujeitos desde a infância até a terceira idade morando nas ruas, independente do sexo.
(ALCÂNTARA apud SANTOS, 2004, p.35). Ainda sobre o perfil desta camada
populacional:
Pesquisas sobre a situação dos moradores de rua da cidade de Chicago, por exemplo, revelam que mais de 70% dos moradores de rua tinham algum transtorno mental identificado, sendo que 16% apresentavam problema com álcool e 12% com drogas. Estudos sobre a morbidade entre essa população mostram que 25% dos homens que vivem em abrigos são esquizofrênicos e 36% preenchem critérios para o abuso de substâncias, sendo que nesta amostra observou-se que 40% apresentavam dano cognitivo (ibid., p.36).
De acordo com pesquisa realizada pela CNBB em 1994 (apud ALCÂNTARA,
2004), existem vários motivos que podem levar uma pessoa a “escolher” a rua como sua
morada. As razões variam desde migrantes que vinham em busca de emprego e se
defrontam com a miséria das grandes capitais, até pessoas que foram expulsas de sua
moradia pela carestia dos aluguéis, doentes mentais que perderam suas referências,
crianças e adolescentes que fogem da violência doméstica, desemprego estrutural, entre
outras.
São, em geral, excluídos de múltiplas formas: porque são pobres, porque não têm saúde, porque inspiram medo, porque ‘enfeiam’ a cidade, porque sua moral é considerada ‘duvidosa’... Freqüentemente há quem se queixe porque estão ‘ocupando um lugar público’, mas, na verdade, seu espaço é lugar nenhum. Por isso sofrem violência policial, frio etc.; quando morrem são enterrados como indigentes (CNBB apud ALCÂNTARA, 2004, p. 37).
A realidade dos moradores de rua já é marcada, em si, pela penúria e o descaso –
seja das autoridades competentes, familiares ou da sociedade como um todo. Além da
vivência concreta dessas pessoas, temos ainda uma série de representações pejorativas
que legitimam e, por vezes, impedem reflexões e proposições de alternativas para esta
população. O olhar dirigido aos moradores de rua mescla a “pena” (aquele sentimento
judaico-cristão que pelo simples fato de haver comoção já se está supostamente
implicado com uma dada realidade e, por isso, não é necessário ir além), o nojo (o mal-
cheiro), o medo (o risco de assalto), o asco, a intolerância, o julgamento (“Como pode
um homem tão novo vagabundando no meio da rua?”) e tantos outros. O que há de
comum nesses sentimentos é a indiferença, a dessensibilização com outro que, por
motivos diversos, está numa situação de extrema vulnerabilidade social.
Estudos feitos por Mattos e Ferreira (2004) explicitam as representações sociais
que mais comumente circulam em relação aos moradores de rua, quais sejam:
“vagabundo, preguiçoso, bêbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo” (p.2). Do ponto de
vista da identidade, o autor aborda o quanto essas representações pejorativas
influenciam negativamente o próprio movimento existencial dos moradores de rua.
Muitos destes atributos estão pautados numa concepção individualista, que
compreende que a “culpa” pela realidade da rua é exclusiva do sujeito. A
“culpabilização” é uma alternativa coerente com o nosso modo de produção capitalista,
que credita ao indivíduo todas as responsabilidades por seu possível sucesso ou
fracasso. Qualquer situação de dificuldade é “culpa” exclusiva da pessoa, já que ela tem
“todas as condições” de garantir seu progresso. A realidade é entendida, nesta
perspectiva, como pano de fundo, e não como condição de possibilidade (ou
impossibilidade) para o desdobramento de novas conjunturas.
O “psicologismo”, aliado à “culpabilização”, são instrumentos eficazes no
sentido da responsabilização unívoca do sujeito. A procura de nuanças da personalidade
que o tornam “desestruturado”, o estudo dos conteúdos inconscientes e outras investidas
“psicológicas” são no intuito de descobrir, no sujeito, as causas de seu desajuste e, por
sua vez, da sua condição de rua. As noções de normalidade e desvio são comuns neste
tipo de abordagem. Vemos este tipo de pensamento no estudo de Merton (apud JUSTO;
NASCIMENTO, 2000, p.4), no qual o autor afirma que compreende a:
[...] vida errante como uma estrutura social anômica. [...] a associalização decorre da falta de capacidade do sujeito para competir na sociedade em função de repetidos fracassos no mundo social. Snyder (1954) compreende o alcoolismo como uma conduta desviante e, nesse sentido, nos dizeres do autor, os alcoolistas são pessoas anômicas – desorganizadas, vazias, angustiadas, compulsivamente independentes e que desconhecem toda autoridade.
Estruturando melhor as representações com maior recorrência, Mattos e Ferreira
(2004) nos apresentam algumas delas. O morador de rua, então, é visto,
prioritariamente, como vagabundo, ainda no sentindo da “culpabilização individual” por
aquela situação; como louco, pautado no senso comum e em uma histórica intervenção
psiquiátrica, sobretudo no período da criação dos grandes manicômios17; como pessoa
suja e maltrapilha, o discurso higienista é a tônica deste tipo de representação; como
pessoa perigosa, nesta acepção os códigos jurídicos deveriam manter o morador de rua
afastado, já que são, a priori, pessoas perigosas e, por fim, baseado no discurso
religioso, temos o morador de rua como “coitado”, digno de misericórdia. Nesta última
representação, é como se os moradores de rua estivessem pagando por seus pecados,
sendo então uma espécie de “estado de regeneração da alma”.
Fica evidente que em todas essas representações o caráter de mudança ou
questionamento não está presente. O que se tem são imagens que tentam dar sentindo à
realidade justificando-as e, por vezes, legitimando-as. Além da imobilidade social
causada por estas representações, temos ainda a repercussão nos próprios moradores de
rua, uma vez que tais pressupostos são compartilhados. A interiorização dessas vozes
impede mudanças, dificultando percepções e atitudes diferentes.
Por outro lado, a realidade pregressa dos moradores de rua é bastante reveladora
das motivações para a saída de suas casas, bem como para o abuso do álcool. Muitas
destas evidências serão melhor trabalhadas no tópico em que analisaremos as histórias
de vida pesquisadas. Justo e Nascimento mostram que “o desemprego, a falta de apoio
familiar e as desavenças conjugais são os principais motivos que levam os sujeitos a
romperem com a vida sedentária” (2000, p.4). Vemos então presentes na compreensão
do fenômeno uma variável estrutural e uma familiar, refutando o psicologismo de
outrora. Os autores ainda complementam:
O fenômeno da errância parece estar associado a um complexo de fatores que modelam o mundo contemporâneo. A globalização, a flexibilização do trabalho, a informatização e automação da produção, a substituição da sociedade industrial pela de serviços, a virtualização da realidade, a dispersão, o individualismo, a aceleração do tempo e a expansão do espaço têm exercido um papel considerável na desterritorialização do sujeito e na sua impulsão para o nomadismo (ibidem, 2000, p.11).
17 Para maior aprofundamento sobre os manicômios e o contexto higienista que ver: FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo: Perspectiva, 1978.
Estas pesquisas tendem a enfatizar o abuso de álcool como uma “fuga da
realidade”, um mecanismo de defesa às adversidades vividas. Entretanto, encaramos tal
perspectiva legitimando uma visão de sujeito passivo, como se o abuso de álcool não
fosse, também, uma forma possível de enfretamento de suas questões existenciais. Nem
defendemos uma explicação causualista – em que os fatores “negativos” explicam o
nomadismo – nem visões de homem que prezam pela vitimização e/ou leitura deslocada
da realidade concreta.
3) A LINGUAGEM EM AÇÃO: O MOVIMENTO DA
PALAVRA SIGNIFICADA NA CONSTRUÇÃO DA
SUBJETIVIDADE
3.1) A construção da subjetividade humana
Em nosso estudo, uma das categorias capitais para a compreensão do
comportamento de alcoolismo e da situação de rua é a subjetividade18. Isto porque quem
faz uso do álcool é um sujeito concreto - situado em uma realidade com igual
concretude – com uma vivência impregnada de sentidos e significados complexos.
Durante muito tempo a idéia de sujeito estava ligada à noção cartesiana, ou seja,
de ordem, integilibilidade e consciência. O sujeito que se postulava era o sujeito
racional, próprio de algumas correntes filosóficas da modernidade.
A idéia de um sujeito da razão, capaz de dominar o mundo e a si mesmo na produção de verdades universais, constituiu uma representação que se arraigou fortemente na cultura ocidental, mediando diferentes modelos de ciência, política, educação, assim como a produção do senso comum. (GONZÁLEZ REY, 2003, p.221).
A postulação de várias correntes psicológicas foi influenciada, direta ou
indiretamente, por essa noção do sujeito da razão. Daí o princípio da dicotomia
sujeito/objeto, já que um suposto sujeito cognoscente, dotado de razão, poderá ordenar o
mundo a partir do seu cogito.
A idéia de universalidade, base para essa noção de sujeito, permite a formulação
de idéias que são tomadas como verdades, uma vez que derivaram do método dito
científico. Para González Rey (2003), estas são erigidas como dogmas e apenas outras
idéias, dentro do mesmo sistema, podem refutá-la. A divisão estática do mundo em
“bom e mau” também é uma das decorrências desse sistema. Tudo que não advém do
sujeito da razão é descartado.
18 Apesar de González Rey (2003) fazer uma distinção entre subjetividade individual e subjetividade social, não entraremos nesta discussão. Uma vez que sendo, a subjetividade construída socialmente, nela se insere as dimensões do singular e do social.
No outro extremo, González Rey refere-se a um grupo de autores pós-
estruturalistas franceses que postulam a morte do sujeito. Deste ponto de vista
decorreram também algumas escolas psicológicas, principalmente aquelas que
enfatizavam suas contribuições a partir do empirismo e da metafísica (GONZÁLEZ REY,
2003, p.222).
Ao contrário do que abordamos, compreendemos o movimento de construção
dessa subjetividade como uma interseção permanente entre o indivíduo e seu entorno.
Várias foram as dicotomias que nortearam a formação epistêmica da Psicologia como
ciência: o “confronto” entre sujeito e sociedade; o privilégio do aspecto intrapsíquico ou
do aspecto interpsíquico, para falar apenas dos principais e dos que trouxeram
influências mais significativas para a formação do pensamento psicológico.
Uma influência significativa foi a ênfase da psicologia em estudar os fenômenos
ditos “próprios da psiquê” ou meramente individuais. “A essa concepção dominante se
opôs o behaviorismo que ‘tirou’ a psique de dentro e a colocou ‘fora’, no
comportamento” (GONZÁLEZ REY, 2003, p.121). Entretanto, não se observava
movimentos no sentido da superação desta polarização. Ou se estudava o inconsciente, a
personalidade, as emoções (como reações fisiológicas), a motivação; ou se decompunha
o comportamento humano, em termos de análise funcional (congruente com o
positivismo vigente), para, assim, dar um caráter “científico” à Psicologia. Desta forma,
a Psicologia caminhou por grande parte do século XX.
Para Molon (2003), teóricos sucessores de Vygotsky perpetuaram as dicotomias
que o psicólogo russo tanto refutava. Para ela, a constante ênfase ora no funcionamento
intrapsicológico, ora no funcionamento interpsicológico é uma evidência desta cisão.
Van der Veer e Valsiner são apontados como os principais representantes que valorizam
o intrapsicológico. A noção de “cultura pessoal” é central na crítica de Molon. Esta
consiste “não somente ao fenômeno subjetivo internalizado (processo intrapsicológico),
mas às imediatas (centrado na pessoa) externalizações destes processos” (VALSINER
apud MOLON, 2003, p.51).
Enfatizando o aspecto interpsicológico, Molon aponta Wertsch como o maior
representante. Os conceitos de “níveis de intersubjetividade” e “definição de situação”
são apresentados como aportes da ênfase. Molon esclarece os termos afirmando que:
A definição da situação é o modo como se representam ou se definem os objetos e os acontecimentos em uma
situação. E os níveis de intersubjetividade estão relacionados às diferentes maneiras de participação, compartilhadas pelos interlocutores em uma definição da situação (2003, p.54).
Molon apresenta a pesquisadora da UNICAMP, Luiza Bustamante Smolka, como
baloarte da ênfase que integra, de forma dialética, as dimensões intra e interpsicológica.
Nesse sentindo, a pesquisadora investe na dimensão semiótica, já que a constituição do
sujeito é marcada pelo outro e, sobretudo, pela palavra. A polissemia da palavra está
intrinsecamente ligada ao sentido subjetivo. Alteridade e dialogia são moleculares nessa
nova compreensão (MOLON, 2003, p.57).
Entretanto, o sujeito não é um mero signo, mas tem o que dizer, sentir, agir,
pensar. Ele é então construído nas e pelas relações sociais. É uma “multiplicidade na
unidade” (MOLON, 2003, p.115).
A autora apresenta a teoria sociointeracionista como facilitadora deste
pensamento que integra aspectos intra e interpsicológicos da constituição do psiquismo.
Noções como interação e mediação se apresentam como basilares. Por interação,
compreendemos mais que um encontro face-a-face, mas a possibilidade de contato pela
via do simbólico. Estamos afirmando, com isso, que a interação também ocorre
materialmente, principalmente por meio dos instrumentos cotidianos dotados de
significado.
A cultura é o grande cenário propício para a interação É nela que,
dialeticamente, o sujeito recebe os códigos, transformando-se, bem como atua no
mundo, transformando-o. “A mediação é um processo, não é o ato em que alguma coisa
se interpõe; mediação não está entre dois termos que estabelecem relação. É a própria
relação” (MOLON, 2003, p.102). A mediação é central para diferenciar os atributos
humanos e não humanos por meio das funções psicológicas superiores.
O desenvolvimento de uma teoria da subjetividade pautada na relação
indivíduo/sociedade permite, pelo menos no âmbito teórico, a superação desta
dicotomia.
Um aspecto complexo para as representações atuais dominantes no conhecimento psicológico é como articular os processo de subjetivação dos espaços sociais e individuais sem antropomorfizar os espaços sociais e sem reduzir a gênese da subjetivação aos indivíduos (GONZÁLEZ REY, 2003, p.204).
A grande dificuldade da ciência psicológica não é postular a dita síntese entre
sujeito e objeto ou indivíduo e sociedade, mas criar condições para uma prática - seja
esta entendida como intervenção de pesquisa ou práxis profissional - que atrele as
diversas variáveis existentes entre esses pólos.
Vygotsky foi quem compreendeu, já na velha Rússia soviética, que essas
separações estavam impedindo o avanço da Psicologia. Sua vasta produção – em áreas
diversas como aprendizagem, personalidade, desenvolvimento, artes, dentre outras –
mostrou a necessidade de se criar uma macroteoria que estivesse pautada nas que já
existiam, mas avançasse para águas mais profundas. “[...] a intencionalidade de
Vygotsky na compreensão do sujeito articulava tanto o projeto de construção de uma
nova Psicologia quanto o projeto de construção de uma nova sociedade” (MOLON,
2003, p.63). O ponto central nesse intento vygotskyano foi a superação dessas
dicotomias através da dialética. Ao contrário de outros teóricos do seu tempo, que
meramente faziam leituras da realidade com nomenclaturas marxistas, o psicólogo russo
foi nas raízes dos escritos de Marx e fez uma leitura da psicologia a partir de sua
episteme.
Na obra de Vygotsky não se encontram as respostas definitivas nem soluções dos dilemas da Psicologia, mas ela rompe com a dicotomia entre o indivíduo e o social e entre o sujeito abstrato e o sujeito empírico, supera a transcendência do eu e a tirania do outro, acabando com a pretensão de tornar os sujeitos homogêneos e uniformes, meros reflexos da realidade social ou mônadas pensantes condutoras da história. (MOLON, 2003, p.121)
O psiquismo foi então compreendido como uma síntese de diferentes processos
que se influenciam mutuamente. A categoria afeto foi trazida para o centro das
discussões que norteavam o comportamento humano, compondo uma unidade com o
aspecto cognitivo. Foi uma forma de superar as tendências cognitivistas e
comportamentalistas que predominavam na época (GONZÁLEZ REY, 2003, p.189).
A construção da subjetividade pressupõe um sujeito formado no amálgama de
sua inserção sócio-cultural. Não dá para se falar em indivíduo sem nos remetermos ao
seu contexto, muito menos em sociedade sem atentar para sua base constituinte. Como
estamos na seara psicológica, faz-se mister que nosso olhar seja do ponto de vista
psíquico, sem que este seja compreendido como um epifenômeno do contexto. Estamos
de acordo com González Rey, quando este afirma que a subjetividade:
[...] é um complexo e plurideterminado sistema, afetado pelo próprio curso da sociedade e das pessoas que a constituem dentro do contínuo movimento das complexas redes de relações que caracterizam o desenvolvimento social (2003, p.IX).
A realidade é vivida como sentindo subjetivo e objetivo. Juntamente com outras
nuanças que constituem o sujeito - seu raciocínio, suas emoções, sua história, seu
discurso – o sentido vai sendo tecido, compondo o entorno e criando condições para que
este forme o indivíduo. Dialeticamente, as realidades vão se desintegrando, reintegrando
e estruturando-se.
Pensar a subjetividade é estar permanentemente atento às outras categorias que a
auxiliam. Gênero, posição sócio-econômica, etnia, costumes, configuração familiar,
para pensarmos apenas em algumas delas. Isto para ficar claro que, quando
conceituamos a subjetividade como uma categoria complexa, estamos nos referindo a
essa diversidade de “conceitos auxiliares” que estão subentendidos quando falamos na
construção do sujeito.
Categorias como tempo e espaço também são fundamentais na compreensão
desse movimento de construção da subjetividade. Como ficará mais evidente no
próximo capítulo (no qual discutiremos os dados coletados), o espaço no qual o sujeito
produz um determinado sentido é fundante para a sua experiência. Compreendo que este
espaço também é dotado de sentido. O tempo aqui é entendido não como cronologia
uniforme, um ordenamento de fatos, mas como processualidade, como tempo subjetivo,
que, por vezes, comporta supressões de fatos, sobreposições, incongruências e fantasias.
Há uma ligação estreita entre presente, passado e futuro. “Na subjetividade, qualquer
momento da história do sujeito pode aparecer como um elemento de sentido da
configuração subjetiva atual de sua experiência” (GONZÁLEZ REY, 2003, p.220).
Em relação aos sujeitos que fazem abuso de bebida alcoólica e são (ex)
moradores de rua, nosso estudo objetiva acompanhar o movimento histórico que eles
trafegaram até chegar ao lugar onde hoje eles se encontram. O apreço pela história de
vida como metodologia não é apenas uma convenção científica. É a partir da linguagem
presentificada como prática discursiva que os sentidos vão sendo recuperados,
lembrados, ressignificados, reconstruídos, confrontados, bem como vividos em toda sua
intensidade (trataremos da produção de sentido propriamente dita no próximo tópico).
Entre o sujeito e sua linguagem há uma relação intrínseca, já que esta não é
apenas uma manifestação simbólica dos discursos que circulam socialmente, mas uma
expressão simbólica do sujeito em relação ao seu posicionamento no mundo e na sua
participação social. A linguagem também é prenhe de sentidos subjetivos, emoções,
afetos, entre outros. “A construção de uma experiência por meio da linguagem e sua
articulação com um pensamento próprio é um dos processos que definem o ser sujeito”
(GONZÁLEZ REY, 2003, p.236).
Vale ressaltar que a categoria emoção é deveras esquecida na maior parte das
vezes em que se teoriza sobre a constituição do sujeito. Este parece ser composto apenas
de pensamento e linguagem, sendo estudado ou do ponto de vista de suas produções
discursivas ou de suas representações mentais. González Rey (2003, p.236) vai nos
alertar que pensamento e linguagem se articulam com a emoção a partir da idéia de que
é o estado emocional do indivíduo que norteará o que ele pensa ou diz (compreendendo
este dizer não apenas como manifestação verbal, mas como qualquer produção
simbólica que fale deste sujeito).
Ainda em relação à linguagem, esta não se apresenta apenas como manifestação
simbólica, mas é também a própria expressão do sujeito. Há uma trama de sentidos
subjetivos envolvidos na sua produção. Esta também traduz emoções complexas, ao
mesmo tempo em que gera novas emoções. Trataremos melhor das peculiaridades da
linguagem no próximo tópico, no qual abordaremos a produção de sentidos e as práticas
discursivas. No entanto, antes disso, trataremos do Construcionismo Social como pilar
das práticas discursivas e da produção de sentido, enfatizando suas características, as
críticas dirigidas e as contradições inerentes.
3.2) O Construcionismo Social como pilar da Produção de Sentido
A produção de sentido no cotidiano situa-se no âmbito da Psicologia Social.
Como ramo do conhecimento, valemo-nos das práticas discursivas para melhor
compreendê-las e aprofundá-las. Temos ainda como filiação epistemológica da
produção de sentido o Construcionismo Social. Aprofundaremos, primeiramente, as
contribuições deste último para a produção de sentido e para as práticas discursivas
para. Em seguida, tratarmos propriamente destes dois conceitos.
A perspectiva construcionista, segundo Frezza e Spink (2000, p.23), é resultante
de três movimentos: uma reação ao representacionismo, na Filosofia; uma
desconstrução da retórica da verdade, na Sociologia do Conhecimento; e uma busca de
maior participação e visibilidade dos grupos sociais com menos credibilidade, no
âmbito da Política. Como precursores, temos as figuras de Peter Beger e Thomas
Luckmann com o lançamento da obra intitulada “A Construção Social da Realidade”,
publicada originalmente em 1966.
A crítica central apresentada por essa corrente teórica é o descaso com que eram
tratados os conhecimentos produzidos no senso comum. A crítica pauta-se também na
compreensão intelectualista de ciência “que restringe ao pensamento teórico, pois,
nessa dimensão, não se leva em conta o conhecimento que as pessoas têm da realidade,
ou seja, o conhecimento do sendo comum” (FREZZA; SPINK, 2000, p.24-25). A
importância de centrar nessa dimensão do conhecimento é porque esse é prenhe de
significados e constitui a base do tecido social.
Como objetivo, em artigo publicado no American Psychologist em 1985, Gergen
(apud FREZZA; SPINK, 2000, p.26) defende que: “A investigação sócio-interacionista
preocupa-se sobretudo com a explicação dos processos por meio dos quais as pessoas
descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si mesmos) em que vivem”.
Ou seja, que sentidos elas produzem para se apropriarem, situarem e agirem no mundo.
É nesse aspecto que os conhecimentos tecidos no senso comum ganham status, já que
não são apenas meros conhecimentos, mas são formulações importantes na orientação
da trama social.
No cerne da teoria do conhecimento, temos que o construcionismo compreende
que o mundo é interpretado a partir dos seus artefatos sociais. E estes, por suas vez, são
produtos de trocas historicamente situadas, realizadas por pessoas concretas. “A
realidade não existe independentemente do nosso modo de acessá-la” (MENEGON;
SPINK, 2000, p.77). Ibañez vai ao encontro desse enfoque ao afirmar que:
Ningún objeto existe como tal en la realidad, no es cierto que el mundo está constituido por un número determinado de objetos que están ahí fuera de una vez por todas y con independencia de nosotros. Lo que tomamos por objetos naturales no son sino obtetivaciones que resultan de nuestras características, de nuestras convenciones y de nuestas prácticas. Esas prácticas de objetivación incluyen, por supuesto el conocimiento, científico o no, las categorias
conceptuales que hemos forjado, las convenciones que utilizamos, el lenguaje en lo cual se hace possible la operación de pensar (apud MENEGON e SPINK, 2000, p.78).
Ao contrário de se colocar numa postura de um suposto “isolamento científico”,
o Construcionismo Social se debruça exatamente sobre aquilo que outrora era
rechaçado, que não se via possibilidade de produção e intervenção, no caso do
conhecimento do senso comum. Esta forma de posicionar-se diante do conhecimento
implica o abandono de uma visão representacionista da realidade, ou seja, conceber a
realidade como espelho da natureza. Esta não estaria já pronta, esperando ser
“desvendada”, mas agora é concebida como construída, principalmente por meio da
linguagem.
Percebe-se que é necessária a desconstrução de várias noções arraigadas na
cultura. Tanto os conceitos como as formas de intervenção/investigação socialmente
cultivados partem da noção de uma realidade estratificada.
Historicamente, a dualidade entre sujeito-objeto marcou diversas posturas
epistemológicas, a citar: o empirismo, o idealismo e o interacionismo. No dizer de
Frezza e Spink:
Para o empirismo, o objeto é a determinação última do conhecimento, de modo que o projeto científico consiste em aproximações, cada vez mais precisas, a esse objeto. Já para o idealismo, a possibilidade do conhecimento não se encontra ao lado do objeto, mas sim no sujeito. Trata-se das categorias do entendimento, constitutivas da mente humana, as quais são universais e necessárias para o conhecimento. Por fim, para o interacionismo, conhecimento é produzido na interação entre sujeito e objeto, apresentando, portanto, características de ambos. Essa é, a bem dizer, uma versão fraca do construcionismo (2000, p.28).
Para o construcionismo, tanto o sujeito como o objeto são construções sócio-
históricas que devem ser problematizadas e reconstruídas. A noção de realidade também
deve ser explicitada. Nesta abordagem teórico-metodológica, concebe-se que
apreendemos a realidade a partir de nossas categorias, práticas, linguagens, ou seja, a
partir de nossa inserção no mundo.
Compreender o pensamento e o conhecimento como fenômenos sociais
possibilita ainda a superação de algumas premissas que o construcionismo refuta, como:
o internalismo, que centra nos processos cognitivos e reduz a explicação aos processos
neurológicos; o essencialismo, que trata a cognição de forma naturalizada; e o
universalismo; que tenta canonizar o pensamento científico, em termos de dotá-lo de
caráter totalizante (FREZZA; SPINK, 2000, p.31).
3.2.1) Críticas ao Construcionismo Social
Mesmo sendo uma teoria que revisa uma série de conceitos e propõe uma nova
visão no cerne da epistemologia, principalmente a de cunho qualitativo, o
construcionismo não escapa de uma série de críticas, a nosso ver, com bastante
fundamento. As críticas foram sendo formuladas em diversos contextos. Atribuímos,
principalmente, à história recente da disciplina, que ainda tem muito para avançar. As
principais críticas dizem respeito ao caráter relativista e ao reducionismo lingüístico,
supostamente realizado pelo construcionismo.
Em relação ao relativismo, é como se tudo de reduzisse aos espaços de
conversas. Nesse sentido, a retirada de determinados atributos individuais - como o
pensamento e a memória – pode dissolver o indivíduo na trama social produzindo
concepções, no dizer de González Rey (2003), bizarras.
Quanto à segunda crítica, no tocante ao reducionismo lingüístico, não há dúvida
de que o aspecto lingüístico adquire um estatuto que anteriormente não se observava.
Entretanto, da afirmação que tudo se reduz à linguagem tem-se uma distância
considerável. Fazer isso seria separar a linguagem do sujeito que se expressa nela.
Frezza e Spink (2000, p.33) apontam Vygotsky como um precursor na perspectiva d
tomar a linguagem como central no desenvolvimento cognitivo e, principalmente,
trabalhar com ela, em intrínseca relação com o pensamento, numa abordagem social.
González Rey (2003) acrescenta, além da crítica em relação ao reducionismo
lingüístico e ao relativismo, a questão do Construcionismo Social transmitir uma
impressão de superficialidade em sua crítica, uma vez que homogeneíza algumas
tendências do pensamento psicológico e apresenta visões epistemológicas bastante
diferenciadas.
O mesmo autor ainda afirma que certos autores construcionistas19 negam a
subjetividade, ou seja, negam a conceituação de um sujeito concreto, visto que as
práticas discursivas já dariam conta de pensar o indivíduo do ponto de vista psicológico.
A expressão da subjetividade se daria apenas no momento da narrativa.
Portanto, o desconhecimento do sujeito, de seu caráter criativo e generativo, leva os autores construcionistas a estudar as formas de linguagem, de suas conversações como um fim em si mesmo, sem ver que essas expressões do sujeito não estão definidas não mais pelo contexto dialógico de sua relação com outros, mas pela sua história, pelos elementos de sentido que se expressam na linguagem, ao que Vygotsky, por exemplo, deu relevância especial (GONZÁLEZ REY, 2003, p.156)
Percebemos então que a crítica ao reducionismo lingüístico encontra íntima
relação com a ressalva quanto à desconsideração da realidade que contribui na produção
de subjetividade. Em relação à nossa pesquisa, é como se considerássemos o problema
do alcoolismo e da realidade de rua uma mera construção discursiva, bastando mudá-la
para, por sua vez, modificar a realidade.
González Rey (2003) ainda destaca que o rechaço à noção de sujeito parece ser
uma tentativa equivocada de resposta às produções da ciência psicológica tradicional.
Esta, em seu período áureo, enfatizava suas produções pautando-se no sujeito
individual, concebendo uma psicologia individualista e essencialista. Agora, por outro
lado, o autor coloca como se o construcionismo realizasse um culto ao social via
linguagem. Considerando os devidos extremismos da crítica, concebemo-a mais como
um alerta do que como uma leitura unívoca da teoria.
3.3) As Práticas Discursivas e a Produção de Sentido no Cotidiano
“Como damos sentido ao mundo?”. Este é o questionamento base que
desencadeou uma série de estudos, sobretudo na Lingüística, História, Antropologia,
Filosofia e, mais recentemente, na Psicologia. A percepção da potência da palavra como
sentido, além da sua denotação gramatical, conduziu estudos que indicaram a palavra
como variável na construção da realidade. 19 Vale ressaltar que o construcionismo apresenta uma variedade de divergências internas. Não queremos, contudo, homogeneizar as críticas que estamos tecendo.
Anteriormente, as pesquisas em Psicologia Social passavam ao largo desta
discussão. As atenções estavam voltadas para os estudos sobre a percepção, as atitudes,
a cognição, a interação grupal, entre outros. O ranço da Psicologia Científica ainda
ditava os rumos da disciplina. Tudo deveria ser pautado na experimentação - de cunho
positivista, obviamente -, na possibilidade de demonstração empírica e na generalização
dos resultados. Ainda nesse período, surge a Psicologia Social Experimental como
vertente da Psicologia Experimental (FREZZA; SPINK, 2000, p.19).
Hegemonicamente, observava-se o movimento que conduzia os psicólogos
sociais cada vez mais aos laboratórios, distanciando-se dos primórdios dos inspiradores
da disciplina, como George Mead e Kurt Lewin. O estudo das atitudes é um exemplo
significativo desse movimento, uma vez que se observava uma progressiva
individualização dos conceitos centrais da Psicologia Social.
O paradigma dominante em Psicologia Social começou a ser questionado entre
os anos cinqüenta e sessenta. Dois questionamentos foram decisivos nesse sentido: a
valorização dos comportamentos em situações naturais e o estudo de comportamentos
em seu ambiente natural. O ensino da Etologia nos cursos de graduação foi marcante
para o redirecionamento das pesquisas (FREZZA; SPINK, 2000, p.20).
Ainda na esteira histórica, percebemos o surgimento de importantes reflexões
críticas no que diz respeito à naturalização do fenômeno psicológico. Estes ocultavam a
perspectiva de que os conceitos e as teorias são produções culturais, bem como
conhecimentos socialmente construídos e legitimados. O caráter despolitizado da
“velha” Psicologia Social coadunava com a influência do positivismo na formulação da
disciplina.
Este movimento propiciou o entendimento de que outras categorias seriam
importantes na compreensão do fenômeno psicológico. O estudo da produção de
sentidos (PS) por meio das práticas discursivas (PD) surgiu nesse contexto20. Outrossim,
Quando a questão do sentido não pode mais ser respondida somente no âmbito da língua, da sintaxe, e da semântica; quando a produção do conhecimento começa a ser questionada por desconsiderar, justamente, aquilo que é sua base, o senso comum; quanto a Psicologia Social começa a fazer sua própria crítica quando ao que produz e quanto à despolitização
20 Vale ressaltar que a trajetória histórica que mencionamos da Psicologia Social está longe de ser linear. Queremos dizer, com isso, que o novo e o velho coexistem. Principalmente pela polissemia na qual a Psicologia Social é entendida.
daí resultante, tem-se, então a configuração de um contexto propício para as novas buscas: conceitos, métodos, epistemologia, teoria, visão de mundo (FREZZA; SPINK, 2000, p.39).
Por sentido, compreendemos uma construção social no plano da interação na
qual as pessoas se situam para compreender e se posicionar no mundo. É um conceito
que leva em consideração as dinâmicas históricas e as produções culturais. A partir das
contribuições de Medrado e Spink, percebemos que “dar sentido ao mundo é uma força
poderosa e inevitável na vida em sociedade” (2000, p.41). Essa potência do sentido
também é acompanhada por uma pluralidade, por vezes, de caráter “aparentemente”
contraditório. Dizemos isto porque a PS está longe de pressupor que os sentidos são
produzidos de forma linear, sem contradições.
Uma diferenciação capital para o nosso estudo é a relação subjetiva entre o
sentido e a significação construída. Esta última é compreendida por sua maior relação
com a historicidade social, fazendo com que o sujeito apreenda uma noção que foi
apresentada pela cultura e formada no decorrer dos tempos. Dentro dessa construção de
significados, os sentidos são múltiplos, uma vez que outras variáveis são fundamentais
para sua formação como, por exemplo, o contexto da experiência individual. Por isso, a
partir da conceituação de Leontiev (1978), “o sentido pessoal traduz precisamente a
relação do sujeito com os fenômenos objetivos conscientizados” (p.98).
Cabe ressaltar ainda que a PS não é uma atividade meramente cognitiva, muito
menos apenas um atributo intra-individual. Ela, ao contrário, é uma prática social e
dialógica, que implica a linguagem e seu movimento inerente. Nesse âmbito, apresenta-
se como um fenômeno sociolingüístico (MEDRADO; SPINK, 2000, p.42). A
linguagem, nesse sentido, é solo fértil para práticas sociais. Estas, por sua vez, são
substratos na geração de sentidos. A separação que fazemos entre linguagem e práticas
sociais é meramente didática, visto que isso ocorre de maneira intricada na realidade
cotidiana.
Quando nos referimos à linguagem, estamos adotando um conceito pautado
nesta em movimento, em uso. A linguagem, além de estar relacionada com as práticas
sociais, é por si só uma prática social. Isto é importante para sairmos das teorias que
concebem apenas como código de transmissão de informação, enfatizando sua estrutura
e reduzido-a às partes que a compõem: semântica, ortografia ou sintaxe.
Jobim e Sousa (1995, p.12) se vale de Bakhtin para mostrar que a linguagem é
uma categoria complexa e só pode ser analisada considerando este aspecto, visto que ela
é um fenômeno sócio-ideológico, dialógico e histórico. A grande crítica do lingüista é
exatamente que as demais teorias desconsideram a língua como um acontecimento
social. “A palavra é a revelação de um espaço onde os valores fundamentais de uma
dada sociedade se explicitam e se confrontam” (Jobim e Sousa, 1995, p.27).
Vygotsky, ainda lembrado por Jobim e Sousa (1995, p.12), se preocupava com a
elaboração de uma reflexão sócio-psicológica que envolvesse a relação entre
pensamento e palavra de forma dinâmica. A linguagem estaria intimamente relacionada
com as funções psicológicas superiores e estas, por sua vez, são fundamentais na
compreensão da construção da subjetividade.
Ressaltamos, finalmente, que tanto Bakhtin como Vygotsky elaboraram uma teoria que coloca a linguagem como ponto de partida na investigação das questões humanas e sociais e também como um desvio que permite que as ciências humanas transitem para fora dos paradigmas cientificistas, priorizando uma abordagem ético-estética da realidade (JOBIM E SOUSA, 1995, p.13).
A concepção de linguagem defendida por Bakhtin tem na categoria de interação
verbal sua chave analítica. Na base deste conceito, temos a noção de dialogia, ou seja,
que a comunicação é um processo ininterrupto. Não há enunciados isolados, mas eles
estão na cadeia daqueles que o precederam e os que o sucederão. É o elo de uma cadeia
que se forma e transcende o tempo e o espaço presentes. “Para Bakhtin, as relações
dialógicas são muito particulares e não podem ser reduzidas às relações que se
estabelecem entre réplicas de um diálogo real” (JOBIM E SOUSA, 1995, p.16). São
bem mais amplas, heterogêneas e complexas.
A percepção da atuação da cultura e da história na formatação lingüística
permitiu que a significação passasse de uma categoria monológica para outra dialógica.
Na primeira, o sentido era restrito, “dicionarizado”. Para a dialogia, as significações são
infinitas, variando de acordo com o contexto histórico, bem como com a situação
cotidiana de uso da palavra. Não estamos pretendendo aqui conceber uma linguagem
relativista, que tudo pode, dependendo do contexto. Há uma normatização que deve ser
observada. Contudo, há também uma nuança que escapa, que foge à rigidez da norma e
que se transmuta constantemente.
Isto que “escapa” não era contemplado na antiga análise lingüística, como as
expressões faciais, os gestos, o tom de voz, o conhecimento mútuo do assunto abordado,
entre outros. Numa situação de entrevista – como a nossa pesquisa procedeu – os gestos
e emoções de um influenciam na colocação do outro. A mudança de entonação de uma
pergunta pode influenciar radicalmente a resposta. É nesse sentido que afirmamos que a
compreensão se dá na interação entre o nível verbal e o não-verbal (JOBIM E SOUSA,
1995, p.20).
A Produção de Sentido se expressa por meio das Práticas Discursivas. Estas
constituem foco de estudo para Psicologia Social, nesta vertente que estamos adotando
que propicia as bases do construcionismo. Elas são compreendidas como ações,
seleções, escolhas, linguagens, contextos e outras expressões relevantes no contexto
social. São veredas privilegiadas de compreensão das produções de sentido.
Por definição, podemos afirmar que as Práticas Discursivas constituem a
linguagem em ação, a forma objetiva pelas quais as pessoas produzem sentidos e
relacionam-se no cotidiano (MEDRADO; SPINK, 2000, p.45). Há uma diferença
conceitual entre discurso e práticas discursivas. O primeiro focaliza o habitual, aquilo
que é gerado pelos processos de institucionalização. A segunda, enfatizando a
mobilidade, preocupa-se com as ressignificações, as rupturas e os demais momentos
ativos de uso da linguagem. Há uma maior abertura para a diversidade neste último.
Medrado e Spink, ao teorizarem sobre as Práticas Discursivas, concluem que:
A compreensão das práticas discursivas deve levar em conta tanto as permanências como, principalmente, as rupturas históricas, pela identificação do velho no novo e vice-versa, o que possibilita a explicitação da dinâmica das transformações históricas e impulsiona sua transformação constante. Por meio dessa abordagem, buscamos construir um modo de observar os fenômenos sociais que tenha como foco a tensão entre a universalidade e a particularidade, entre o consenso e a diversidade, com vistas a produzir uma ferramenta útil para transformações da ordem social (MEDRADO e SPINK, 2000, p.61).
Outro aspecto que ganhou uma nova roupagem foi a noção de emocionalidade.
Assim como já adiantamos, quando tratamos do seu aspecto central da produção de
subjetividade, na PS a emoção também ganha um papel de destaque. Ela também é
responsável pela capacidade do sujeito gerar sentido. Não falamos do antigo tratamento
despendido às emoções, de cunho meramente fisiológico, como resposta do sujeito às
condições sociais. Temos um acréscimo, já que a cultura e os significados que ela
produz corroboram para o sujeito produzir uma série de sentidos carregados
afetivamente.
4) CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE DE (EX)
MORADORES DE RUA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO(S) DE
ÁLCOOL
A partir de nossa incursão empírica na Fraternidade Toca de Assis, pudemos
perceber que uma gama de sentidos foram (e são) construídos em relação à bebida
alcoólica. Antes de tratarmos da questão propriamente dita do álcool, iremos discorrer
sobre como apreendemos, via entrevistas, como esses sujeitos foram construindo suas
subjetividades, o percurso de suas histórias de vida; bem como foram significando a
realidade de rua, suas trajetórias pelas alamedas da cidade de Fortaleza. Ambos os
aspectos são fundamentais na compreensão de como o álcool entrou no cotidiano de
cada um, as conseqüências e os conhecimentos produzidos.
Vale ressaltar ainda que a separação que fazemos é meramente didática. Na
dinâmica da realidade cotidiana é impossível separar cada tópico deste, visto que todos
se constituem mutuamente. Compreendemos a realidade de forma complexa, na qual as
variáveis que tentamos separar metodologicamente aparecem simultaneamente, de
forma imbricada.
O mais importante não são as constatações em si (como, por exemplo, a
imbricada relação entre o álcool e a rua), mas os desdobramentos, os sentidos que são
produzidos. Com isso, saímos de uma perspectiva causalística – que enfatiza os porquês
– para uma abordagem que se centra no processo, no como determinada realidade se
manifesta. Daí a riqueza na história de cada morador de rua, nas emoções que estão
envolvidas, nas narrativas que são, ao mesmo tempo, coletivas e singulares.
É nesse sentido que, antes adentramos com as categorias, faremos uma breve
descrição de cada entrevistado. Consideramos importante situar quem fala para se
compreender o que se fala. Todos possuem algumas características em comum: a
vivência de rua e a experiência com o álcool. Contudo, estão longe de ter histórias
padronizadas. A riqueza está na alternância da singularidade com a aparente constância
(dizemos aparente porque o sentido que cada um constrói sobre uma determinada
realidade, como a de rua, é idissiocrático).
a) A. L. C., 41 anos, natural da cidade de Sobral, é conhecido pelos moradores da Toca
de Assis como “o varredor”, visto que a atividade que desempenha na casa. Morou com
os pais no interior até os 15 anos. Nesse período, seus pais faleceram e ele veio para
Fortaleza trabalhar como autônomo. Trabalhou como jardineiro, limpador de piscina,
camelô no centro da cidade, entre outros “bicos”. A partir do começo da década de 90
ficou desempregado e passou a morar na rua e beber (vale ressaltar que ele não bebia
antes de ir para a rua). Entrou na Toca de Assis em 2001.
b) J. C. V., 49 anos, natural de Fortaleza, é chamado pelo abrigados como o “J. da
lavanderia”, já que este é seu serviço na instituição. Passou grande parte de sua infância
em um colégio interno, em Maracanaú. Depois foi concluir os estudos em Sobral. Tem
três irmãos por parte de mãe e oito irmãos por parte de pai. Perdeu contato com o pai,
mas sabe onde a mãe mora, porém prefere não ir lá. Já foi casado e tem três filhos.
Narra uma vivência de mais de 15 anos na rua. Em 2000, operou a perna, fruto de um
acidente de carro. Foi tentar atravessar a rua embriagado e o carro o acertou. Depois
disso, fez uma cirurgia e foi acolhido na Toca de Assis no começo de 2001.
c) A. G. S., 53 anos, natural de Pentecoste. Saiu de sua terra natal para Maranguape,
depois Quixeramobim e só depois veio para Fortaleza. Tem três filhos, dois homens e
uma mulher. Passou a infância trabalhando na agricultura. Quando adulto, conta que já
trabalhou em grandes empresas, como Vicunha, Marquise e outras. Conta um pouco da
trajetória de como foi parar na rua: “Vivia bem, tava bem. Os filho tudo estudando.
Comecei com um negócio de brincar e tudo. Bebendo, brincando. Rasgando dinheiro.
Tinha um capitalzinho na Caixa, no Bradesco, depois eu tirei. Perdi o emprego. A
mulher adoeceu. Abri um negócio e o negócio não deu certo. Aí eu fechei. Comecei a
brincar demais.”. O chamaremos de “D. Juan” porque é recorrente o saudosismo do
tempo em que conquistava várias mulheres. Mora na Toca de Assis desde 2004.
Além deste último, usaremos também os demais apelidos para nos referirmos
aos sujeitos, tanto como sigilo quanto para identificá-los com alguns atributos que
são/foram centrais nos respectivos movimentos de construção da subjetividade.
4.1) A construção da subjetividade em (ex) moradores de rua
A construção da subjetividade, como já tratamos no capítulo anterior, é uma
temática complexa. A constituição do sujeito humano é perpassada por uma série de
vetores psicológicos, sociais, culturais, biológicos, entre outros.
Na realidade dos (ex) moradores de rua da Toca de Assis, percebemos três
variáveis centrais que eram constantemente citadas: o trabalho, a família e o aspecto de
gênero (este último iremos aprofundar nos tópicos seguintes). Aliadas a estas, tínhamos
também a presença de acontecimentos que eram veiculados pela mídia, bem como a
noção da alteridade como fundamental na construção do eu.
Quando questionávamos sobre as histórias de vida de cada um, o saudosismo e a
fala afetuosa eram sempre presentes. Foi comum lembrar dos momentos com os pais, a
grande quantidade de irmãos e, principalmente, da solidão que sentem hoje por estarem
distantes dos entes queridos. Como iremos explorar mais adiante, o álcool, em algumas
ocasiões, já fazia parte da rotina das suas respectivas casas. Esses sujeitos tiveram
vivências de família, tanto como filhos e também como chefes de casa. Há um
preconceito vigente de que moradores de rua não têm nem tiveram uma referência
familiar. Pensamento este fruto da naturalização que voga quando pensamos neste
público. É como se os moradores de rua, naturalmente, “brotassem da terra”. Tal
raciocínio estanque, como podemos notar em termos de políticas específicas para a área,
também gera ações limitadas. Inverdade que pudemos comprovar a partir das falas:
O que eu me lembro da minha história de vida? Quando eu vivia na casa dos meus pais, né? Meus pais eram vivos que eu morava na companhia deles. Aí era o meu melhor momento de vida. Logo quando eu tinha meus quinze anos. Meus pais ainda eram vivos. Aí, depois que eles faleceram, meus irmãos e minhas irmãs se debandaram. Um pro canto, outro pro outro canto. Hoje a gente não se encontra mais. (Varredor)
O trabalho, a partir da Psicologia Histórico-Cultural (LEONTIEV, 1978), é
fundante na constituição do homem. O homem, através da atividade, atua no mundo
transformando-o e transformando-se. Percebemos esta premissa também nos relatos que
coletamos. O trabalho é apresentado como fonte de dignificação, uma espécie de cartão
de identificação (sou fulano pedreiro). Interessante que dois de nossos entrevistados
eram conhecidos pelas atividades que desempenhavam na casa: o varredor e o J. da
lavanderia. Utilizaremos estes atributos para nos referirmos aos entrevistados no
decorrer deste capítulo. Isto só reforça nossa idéia de que o trabalho é uma categoria
central quando pensamos sobre a constituição do psiquismo e da subjetividade humana.
Outra categoria central na construção da subjetividade do morador de rua é
presença da alteridade como referência para a definição do eu. A percepção de si é
atravessada pela percepção do outro. O que disseram sobre ele (presença da linguagem
como constituinte da subjetivação) também o constrói. Uma situação expressiva dessa
afirmação foi quando uma senhora, em visita à Toca de Assis, questionou um
entrevistado: “se eu era desse meio de rua, porque me achou diferente, e eu disse que
não era mesmo não. Todo dia eu tava aqui todo limpinho, todo arrumadinho”. (Dom
Juan). Ou seja, ele não deveria ser um morador de rua porque andava limpo.
Percebemos que os preconceitos que circulam socialmente não são exclusivos da
população em geral em relação aos moradores de rua. Eles próprios compartilham
impressões depreciativas sobre suas vivências, falas e imagens. Ademais, o entrevistado
nega sua condição de rua a partir da diferença que ele apresenta perante os demais
moradores de rua.
Além disso, a fala do nosso entrevistado demarca a singularidade – já que ele se
recusa à ser massificadamente classificado como mais um morador de rua -, outro
aspecto presente quando pensamos a constituição do sujeito. Importante para esta
pesquisa como dado de uma realidade não homogênea, produzindo um sentido que
preza pela demarcação da diferença, variável que possivelmente seria esquecida em
pesquisas quantitativas. O diferente, por vezes, é simplesmente tratado como exceção. O
diverso, ao contrário, é prenhe de riqueza. Exatamente o que destoa da norma que
aparece como sentido peculiar. A percepção hegemônica em relação aos moradores de
rua é aquela do sujeito “magro, sujo, cabeludo, descalço” (Varredor).
A cobertura de fatos de grande repercussão pela mídia aparece também como
variável recorrente nas narrativas. O Varredor, por exemplo, destaca todos os
acontecimentos importantes de sua vida a partir de grandes eventos cobertos pelos
jornais impressos e telejornais. O primeiro foi quando ele veio para Fortaleza, em 1982,
“foi no ano que caiu aquele avião lá na serra de Aratanha” (referindo-se ao acidente
que envolveu Edson Queiroz). Em seguida, remonta ao período em que saiu da Toca de
Assis para beber, “no começo de 2001, no anos daquele acontecimento lá nos Estados
Unidos” (atentado às Torres Gêmeas). Por último, fala do retorno à instituição, uma
data bastante significativa para o entrevistado. “Eu voltei no dia que caiu aquele avião
da Gol. Dia 29, numa sexta feira. Foi!”. O que nos chama a atenção nestas demarcações
temporais é como se o entrevistado utilizasse uma referência extra – fora o calendário -
para a sua localização espaço-temporal. Um auxiliar, já que na rua a precisão do tempo
é uma variável bastante fluida. Tal evidência apareceu apenas em uma entrevista, porém
a julgamos significativa em termos de explicitação da realidade de rua.
4.2) A experiência de rua dos (ex) moradores de rua da Fraternidade Tocas
de Assis
Fizemos questão de demarcar no título desta seção que a vivência de rua, a qual
estamos nos referindo, não é qualquer uma, mas a experiência concreta e particular dos
(ex) moradores de rua daquela instituição religiosa. É evidente que esta guarda
semelhanças com as histórias que poderíamos colher em outros locais ou mesmo na rua.
No entanto, acreditamos que o contexto influencia, sobremaneira, a forma dos
indivíduos se colocaram no presente. Por exemplo, certamente o cenário religioso é uma
variável a ser considerada. O fato de eles não mais estarem na rua é outra variável.
Percebemos que eles falam de uma “realidade passada”, muito diferente de uma em que
eles ainda estivessem vivenciando as agruras da situação de rua.
“Eu vivo mais isolado, sozinho, escutando o meu rádio e pronto. Não fico em
grupinho onde fica três ou quatro em conversinha não.” (Varredor). A rua, a partir das
falas dos entrevistados e da nossa pesquisa bibliográfica, constrói um ethos no qual é
necessário aprender a viver “isolado”. Isso repercute diretamente na dinâmica da
instituição, dificultando a formação de vínculos mais duradouros, tanto interpessoais
quanto no tocante ao espaço21. Na rua, um dos únicos espaços de socialização são as
chamadas “rodas de bebida”.
Outro aspecto que dificulta uma maior apropriação do espaço por parte dos
abrigados é a alta rotatividade dos religiosos. Anualmente, ou antes disso, os irmãos da
casa revezam suas moradias nas casas espalhadas pelo País e pelo mundo. É notório que
essa fragilidade na construção do sentimento de pertinência por parte dos abrigados
corrobora para eventuais saídas e, consequentemente, a ingestão de álcool. Por isso
somos favoráveis à idéia de que o sentido de álcool na instituição é peculiar, pois é
perpassado por esta realidade, modificando também a forma com a qual o sujeito se
relaciona com a bebida alcoólica. A fala a seguir denota o que estamos afirmando:
Eu fui pro sítio, aí não passei esse tempo na rua não. Voltei para o Papicu e só depois voltei [a Toca de Assis também possui uma casa masculina nesse bairro]. Me deu vontade de ir pra rua. A gente tem apego com os religiosos, são os benfeitor, os guardiões [coordenadores das casas]. Ai quando começam a ir embora muitos vão por causa disso, por causas dos religiosos (Varredor).
21 Para estudo mais aprofundado sobre a formação de grupos como facilitador de vínculos interpessoais na própria Toca de Assis, consultar: Alcântara, 2004.
Uma das formas de acesso à realidade da rua, como já havíamos antecipado no
segundo capítulo, é a extrema situação de penúria e o desemprego. O sujeito, por vezes,
não tem dinheiro para pagar o aluguel da casa ou, o é mais comum em nossas
entrevistas, sente-se profundamente envergonhado por não ter condição de ser o
provedor da casa e daí parte “errante” para as ruas. “Ai não achei mais emprego e fui
pra rua” (D. Juan). Nesse sentido, é importante atentar para uma variável de gênero que
está muito clara neste contexto, já que é supostamente próprio do homem o sustento da
casa. Como veremos mais adiante, o próprio ato de beber tem muito a ver com uma
forma de afirmação da masculinidade, já que o sujeito fica desinibido para cortejar as
mulheres, torna-se mais corajoso, ou seja, sente-se mais viril.
Compreendemos que o contexto não é determinante de uma dada realidade,
porém é inegável que a conjuntura é variável fundante na construção da subjetividade.
Queremos dizer, com isso, que a situação de precarização do mundo laboral deve ser
levada em consideração quando analisamos a realidade em estudo. A falta de trabalho é,
por vezes, substituída pela situação de rua e, conseqüentemente, pela experimentação
etílica. Não estamos afirmando que exista uma relação causualística e necessária entre
os dois, mas que, em determinados momentos, isto pode ocorrer e, de fato, acontece.
O anonimato é outra característica que acompanha os moradores de rua. Esta
característica está intimamente ligada à homogeneização à qual nos referimos
anteriormente. O anonimato a que nos referimos vai além da simples falta de referência
ao nome, chega ao ponto da profunda despersonalização. Acrescente-se um outro fato
que é bastante comum entre a população de rua: a perda dos documentos. J. da
Lavanderia é esclarecedor ao afirmar que “o único (documento) que (eu) tinha era a
certidão de casamento e eu perdi na rua”. Esta se liga também à impossibilidade de
viver a cidadania de forma plena, já que vários espaços, por conta disso, os são negados.
O acesso à educação é quase inexistente, a saúde é limitada, sendo a habitação o grande
problema. Vale ressaltar que este último ponto, como tentamos descrever no decorrer
desta pesquisa, vai além do mero déficit habitacional e abrange problemas de ordem
econômica, intrafamiliar, psicológica, dentre outras.
Apesar de a rua ser constantemente significada como um local aversivo, há uma
vinculação com essa por parte dos moradores de rua. Muitos deles fazem alguns poucos
amigos, criam laços afetivos com algum comerciante que os ajuda, demarcam
determinado território público como “meu”. Mais uma vez, observamos o paradoxo
como parte constituinte da realidade. A liberdade é um atributo positivo altamente
valorizado pelos entrevistados. Entretanto, esta não aparece isolada, mas como uma
possibilidade de experimentação etílica, já que fica vedado o uso de substância
entorpecente, uma vez estando na instituição.
A Toca (abreviação comumente utilizada para se referir à fraternidade) é
significada com uma considerável carga afetiva. É o lugar de referência que antes eles
não tinham. Cada um é chamado pelo nome (ou algum apelido que traz da rua ou é dado
pelos os abrigados), tem uma cama, obedece a uma rotina que varia entre as refeições e
as orações. Segundo J. da Lavanderia, “A Toca de Assis pra mim é uma família, é a
minha casa. Se eu sair daqui, eu procuro o mesmo caminho, a CEART, lá pra aqueles
lados da Aldeota”.
Nesse contexto, a rua incorpora uma série de atributos, no sentido psicológico.
Vários signos são utilizados pelos moradores de rua para descrevê-la. Todos são
carregados de metáforas, afetos, exemplos do cotidiano, denotando a multiplicidade de
sentidos ali produzidos. Muito do que encontramos nas falas assemelha-se com o
anteriormente colhido em nossa pesquisa bibliográfica. Outros sentidos extrapolam a
literatura.
Por vezes, a rua é significada como um ambiente hostil. “O meio da rua, é o tipo
da coisa, ninguém é de ninguém. [...] Tem que saber viver na rua” (J. da Lavanderia). O
individualismo também é bastante presente, cada um é responsável exclusivamente por
si. Os espaços de convivência grupal, como as famosas “rodas de papudim”, não
garantem, em si, a formação de uma coesão grupal. Há um aprendizado de viver só no
meio da multidão. Quando falamos que existe uma invisibilidade tomamos esta num
sentido bilateral, ou seja, tanto os morados de rua não são reconhecidos em termos das
urgências sociais como eles também se camuflam no meio da população. Outra
característica da situação de rua é que ela, segundo os entrevistados, é responsável por
tornar uma pessoa ruim:
A rua não tem muita coisa pra pessoa não. Tem só cara que se envolve no mundo do crime, que não presta, que cai no mundo das drogas, se torna assassino, faz parte de gangue. Tem nada na rua não. Tem aqueles que saem, quando vem é com a cabeça quebrada, é o braço ferido, ponteado. Nunca vem bom. Só chega com algum problema. Quando volta, ou é pela polícia ou por assistente social (J. da Lavanderia).
Como já nos deparamos no noticiário, no conhecido caso do índio Pataxó22, em
que adolescentes de classe média alta justificaram incendiar o índio porque “pensavam
que era apenas um mendigo”, a violência é outra marca da situação de rua. Além da
violência psicológica a que estamos todo tempo nos referindo, é presente também a
violência física. É comum o morador de rua acordar à ponta pés de policiais, assim
como levarem pedradas durante a noite. Consideramos bastante ilustrativa a descrição
feita pelo Varredor:
Os perigos da rua não tá durante o dia, tá à noite. Eu já vi muitos. Já vi não, já tomei conhecimentos de muitos moradores de rua que foi morto dormindo com pedrada e como paulada. Conheço um que foi tocado fogo, é todo cheio de cicatriz. Na rua se depara muito com isso, com o perigo. A pessoa mesmo, às vezes, bonzinho mesmo, ele ta sabendo que vai dormir na rua, num local assim, e não sabe se acorda com vida. Então é o seguinte, a pessoa boazinha, sem ter tomado álcool, ele não dorme com tranqüilidade. É um olho fechado e outro aberto. Não tem, assim, uma tranqüilidade para dormir, que a pessoa sabe dos perigos que corre.
A ociosidade é outra marca do contexto de rua. O alcoolismo está diretamente
vinculado com esta peculiaridade, visto que a falta do que fazer possibilita a formação
de pequenos grupos, que têm como objetivo a bebida e o jogo. Quando questionado
sobre a realidade da rua, J. da Lavanderia afirmou que:
Muito é desgosto [...]. Não tem o que fazer. Dos que vivem no meio da rua, muitos não são nem alcoólatras totalmente. É mais por causa da droga, das pedras, crack. E qualquer dois contos é fácil, até um cigarrinho. Mas a maioria da galera que eu vivia no meio é mais alcoólatra.
Aparece também uma falta de perspectiva aliada a um pensamento fatalista23. Na
rua, “eu num tive futuro nenhum, não tive nem vi futuro em nada” (Varredor). Foi a
realidade da Toca de Assis que possibilitou o acesso a uma perspectiva diferente, bem
como de ver que ela realmente existe. Com o passar do tempo, o fatalismo vai dando
espaço ao projeto de vida. Eles vão percebendo, paulatinamente, que a instituição é um
local passageiro e que cabe a eles o salto para a mudança.
Podemos afirmar também, a partir das narrativas e da literatura, que há uma
relação intrínseca entre o álcool e a rua. Ora um percebido como causa, ora como
conseqüência, alternando-se, dependendo do contexto específico. Varredor conta que:
“Aprendi tudo na rua: a bebida alcoólica, o cigarro [...] Ela [a rua] oferece todo o tipo 22 Para ver a notícia na íntegra: http://www.sindicato.com.br/artigos/cimi.htm (Acesso em 02/01/2007). 23 Aos seres humanos não resta outra opção senão acatar seu destino, se submeter à sorte que lhe determina. (MARTÍN-BARÓ, 1987, p. 137).
de termos de vício, seja lá qual for, da bebida, da droga, de tudo”. Quando estão
ociosos, “sempre chega um e ‘vem cá, toma uma aí’. Nesse toma aí, a pessoa não bebe
só uma”. Na própria Toca, vários não suportam a situação de ficar sem beber e voltam
para a rua.
Observamos então que há um vínculo circular de dependência entre o sujeito
morador de rua, a bebida alcoólica e a situação de rua. Ambos se retroalimentam
mutuamente. “É porque é o seguinte: passou a morar na rua, dá aquela vontade de
beber! Não tem nem como ficar sem beber” (Varredor). A rua conduz ao álcool que, por
sua vez, dificulta a superação da situação de rua. O sujeito bebe para suportar a
realidade e, ao mesmo tempo, se aprisiona nela. O interessante é que os próprios
sujeitos reconhecem esta relação.
Diferente da vinculação que existe entre a rua e o álcool é a relação entre a rua e
as drogas ilícitas, que não é tão evidente assim. “Nunca me envolvi com esse negócio de
cheirar cola, usar drogas. Então o que tive como droga na minha vida foi a cachaça”.
(J. da Lavanderia). Nossos três entrevistados não eram usuários de drogas ilícitas, ao
mesmo tempo em que há o indício da cachaça como droga, numa conotação
explicitamente pejorativa.
4.3) Sentido(s) de álcool em (ex) moradores de rua
Após termos contextualizado como compreendemos o movimento de
constituição da subjetividade dos moradores de rua e de sua realidade, explicitaremos,
com maior ênfase, os sentidos produzidos, através das narrativas, sobre a vivência com
o álcool. Já antecipamos algumas questões, visto que a realidade é complexa e
imbricada. Por ora, focaremos atenção específica no álcool e na sua relação com o
cotidiano dos moradores de rua.
A produção de sentido no cotidiano é marcada pela pluralidade e pela
contradição. Foi este movimento que percebemos em relação às vivências atreladas ao
alcoolismo. Como também é perpassado pela cultura, o primeiro sentido de álcool que
percebemos foi a noção de brincadeira, de divertimento. A desinibição e a
confraternização marcam situações de convivência social. “Dava vontade e cantar” (J.
da Lavanderia). “Quando eu tô bebendo, tudo pra mim é divertimento, tudo, seja lá o
que for. Às vezes, um negócio que não é, mas quando tô bebendo, é divertimento. Tudo
pra mim é alegria, é tudo” (Varredor). Tendo a realidade da rua como cenário
(significada constantemente de forma bastante aversiva), compreendemos o quão
prazeroso são esses momentos, uma espécie de “oásis no deserto”.
Ligado ao sentido anterior, temos a acepção de coragem atribuída ao álcool. “Eu
num tinha medo não, tava bebendo” (D. Juan). “Quando eu tou parado, eu tenho
vergonha. Mas quando eu tomo uma ou duas, eu não tou nem aí. Passa toda a
vergonha” (Varredor). É como se a bebida os dotasse de uma força. Aliado a isso, temos
a noção de onipotência, já que eles relatam que embriagados são capazes de tudo: entrar
em brigas, correr riscos (como andar de moto embriagado) e entrar em lugares perigosos
em horários impróprios.
O álcool surge também como possibilidade de encontro. A situação de
confraternização é o suficiente para despertar nos sujeitos a vontade de ingerir bebida
alcoólica. “Lá pela rua, eu sinto uma vontade. Eu vejo as pessoas tudo bebendo,
naquela conversadeira toda, naquela animação. Aí vem a vontade de tomar uma dose”
(Varredor).
Atrelar os festejos à prática de alcoolização, segundo os relatos das histórias de
vida dos entrevistados, é um fato antigo. Todos eles aprenderam a beber em rodas de
amigos ou fazendo companhia a algum familiar, sempre em situação de celebração. Não
é à toa que agora o contrário ocorra, ou seja, que a situação elicie a vontade de beber.
O sentido da desinibição está atrelado intimamente com o sentido da
confraternização. O primeiro leva ao segundo. As festas já começam desde cedo e
incitam o jovem às experimentações etílicas. “Comecei a beber novo, adolescente. Nas
tertúlias, tomava leite de onça, comecei por ai” (J. da Lavanderia). “Não, eu devia ter
uns 25 anos. Mas comecei a beber antes. Negócio de aniversário, né? Com uns 19 anos,
eu já bebia. Era só com a turminha do bairro mesmo. Comecei a beber novo” (J. da
Lavanderia). Reforçamos, mais uma vez, o porquê de nem todos que iniciaram a bebida
precocemente tornaram-se alcoólatras. Pesquisas revelam, como explicitamos no
segundo capítulo, que apenas 10% da população possuem essa inclinação (MOREIRA;
SILVEIRA, 2006, p. 6). O nosso problema, em termos sociais, é que há uma grande
exposição da juventude a essas práticas, agravando ainda mais os índices.
Na situação de rua, o significado da bebida como possibilidade de encontro se
confirma. Varredor nos narra uma situação corriqueira:
Por coincidência, tem o um conhecido seu e fala “ei, fulano, vem cá”. Aí pronto. Aí vai lá. Quando você chega nos três, falam, “toma a tua aí”. “Não quero não”. “Toma uma aí, rapaz.” Aí nessa de tanto de insistir, a pessoa acaba aceitando. Aí toma a primeira. Depois que toma a primeira, se engancha na patotinha deles. Aí continua mesmo. Bebe mesmo pra valer.
Outro tema recorrente é o sentido do álcool atrelado à doença mental. Há uma
idéia socialmente compartilhada que entende o alcoolismo como um transtorno de
personalidade e, por isso, passível de internação em instituição psiquiátrica. Escutamos,
a partir das narrativas, relatos de situações como estas. Dos três entrevistados, dois
passaram por instituições de cunho psiquiátrico.
Uma vez inseridos nestes locais, os sujeitos são, como eles contam, massificados
(mesmo remédio para todos) e tornam-se meros objetos. É comum a comparação com
animais. A comparação com jaulas (quartos) é uma alusão aproximada da realidade de
um zoológico. Um entrevistado, J. da Lavanderia, chegou a relatar que cerca de 90%
das internações são decorrentes de problemas com a síndrome de abstinência alcoólica
(SAA). Nosso pesquisado aponta que há uma inadequação com o tipo de tratamento
dispensado, visto que não existem cuidados diferenciais. Como não se sabe ao certo o
que fazer ao se observar os sintomas, interna-se arbitrariamente em instituições de saúde
mental.
Este dado é fundamental, uma vez que aponta o descuido da sociedade e das
autoridades com essa população. Além da generalização, o hospital psiquiátrico é
tomado como espaço de higienização social. Outro aspecto importante é perceber que o
sujeito tem consciência disso, contrariando representações que colocam a população de
baixa renda, alcoólatra ou portador de transtorno mental como desconhecedores de sua
realidade e passivos na sua existência. A visão de homens que postulamos no terceiro
capítulo deste trabalho vai de encontro a tal perspectiva.
Um sentido bastante recorrente diz respeito à culpabilização, por parte dos
moradores de rua, em relação ao álcool como substância. “A bebida é que traz muita
desgraça no mundo. Talvez se não fosse a bebida nada disso teria acontecido. [...] a
cachaça me fez andar por cantos que se eu tivesse bom, não teria chegado nem perto”
(D. Juan, grifo nosso). A responsabilidade pelo ato é atribuída exclusivamente ao
álcool. Talvez este seja o sentido principal que impeça uma real superação, uma vez que
a questão basal do tratamento é o reconhecimento de que há uma relação – no caso a do
sujeito com o álcool - a ser transformada.
Entendemos que há uma diferença entre culpabilizar a bebida e compreender que
o comportamento de beber é responsável por algumas situações do cotidiano dos
moradores de rua. Essa diferenciação é fundamental porque retira da substância em si a
responsabilidade e as conseqüências do ato, e volta atenção para a relação da pessoa
com droga (lícita ou não). Esta é uma outra naturalização corriqueira, pautada em
estereótipos, tanto da parte dos sujeitos, como da parte das ações voltadas para esta
camada da população.
Podemos pensar esta situação também como uma forma de alienação. Não há o
reconhecimento, por parte do sujeito, de seus limites, as causas e as consequências de
seus atos. Indagado sobre como ele percebia a influência do álcool em toda a sua vida –
família, trabalho e amigos – um entrevistado (Varredor) disse que não existia nenhuma
relação, que a cachaça não atrapalhava em nada. Esta fala entrou em contradição com
todo o contexto do que era narrado por ele, uma vez que o álcool foi o grande
responsável (segundo ele mesmo, em um outro momento) pela sua saída de uma casa de
abrigo para a rua.
É comum o abuso da sustância aparecer atrelada a outras vivências como, por
exemplo, a conquista de mulheres. Há um ciclo complexo nesse sentido: os locais onde
se faz uso de álcool são cheios de mulheres; elas, por sua vez, valoram positivamente
quem bebe; é preciso ter coragem para “chegar junto”. Então, faz-se uso de bebida
alcoólica. Toda essa realidade concorre para o favorecimento do vício. “Nada me levou
pra provar da cerveja. Mas também uma coisa me influenciou. Na época, eu era mais
novo, aí eu conheci umas mulher lá” (Varredor).
O abuso de álcool foi significado também como fuga da realidade. Chegando a
níveis insuportáveis de sofrimento, o sujeito abusava da cachaça, como um tipo de
analgésico existencial.
“A cachaça pra mim é como um refúgio. Mas fazia era piorar. Não tinha coragem de procurar uma pessoa para dialogar. Ai me afogava no álcool. Aí pra mim tava tudo bem. [...] Só que na rua, qualquer raivazinha a gente vai pegar no álcool” (J. da Lavanderia).
A cachaça é a bebida mais consumida e mais popular entre os moradores de rua. Como já alertamos no segundo capítulo, as bebidas destiladas são aquelas que possuem teor alcoólico mais elevado. Com isso, sua ação no comportamento e os prejuízos neuronais são mais incisivos. No contexto da situação de rua, essa escolha não é aleatória: é a bebida mais barata, que se encontra com maior facilidade e traz efeitos de maneira mais ágil. Além disso, é a representação do “macho nordestino”, que suporta a sensação inflamadora que a bebida proporciona, da “dose que desce queimando a
garganta”. Mais uma vez, gostaríamos de atentar para esta questão de gênero que, a nosso ver, é um significado fundamental na construção do imaginário que gira em torno do consumo etílico. Em relação ao uso da bebida alcoólica vinculado a algum tipo de droga ilícita,
não observamos essa aproximação de forma direta. Isto foi importante porque a
significação socialmente compartilhada é a noção de “porta de entrada”, ou seja, que
uma droga de menor efeito sedativo leva o sujeito à experimentação de substâncias mais
pesadas. Pesquisas realizadas com a maconha negam esse movimento24. Mesmo assim,
é interessante a forma como a bebida é significada como uma droga: “Então o que tive
como droga na minha vida foi a cachaça” (J. da Lavanderia).
No momento do uso intensivo da substância, o sintoma mais citado é a
“tremedeira e as alucinações” (delirium tremens). Em relação às repercussões a longo
prazo, a grande queixa em relação às consequências é uma defasagem considerável na
capacidade de memorização e a depressão. Em relação à primeira, D. Juan narra uma
situação bastante representativa:
E outra, que mais pro final, eu já tava fazendo as coisas e não lembrava mais. O que eu fazia, muitas vezes, eu esquecia. Às vezes, eu chegava em casa, e eu não sabia se no outro dia eu tinha bebido, se eu tinha voltado de bicicleta ou andando. Ia ver se a bicicleta tava dentro de casa e era a mulher que botava pra dentro. Eu sei que eu chegava de bicicleta, não sei como não caía.
A seqüela em curto prazo apontada foi a ressaca. Os incômodos fisiológicos são
recorrentes. “Agora só que as conseqüências vêm na ressaca, né? Quando eu passo de
dez dia no álcool direto, quando eu paro, as consequências vem na ressaca”
(Varredor). No entanto, a ressaca é compreendida também como “ressaca moral”, um
envergonhamento público por conta de um comportamento que sofre grande sanção
social. Interessante que, ao mesmo tempo em que há o estímulo publicitário, o
reconhecimento da masculinidade via bebida, a inserção do álcool em uma série de ritos
de passagem, ultrapassar o limite é motivo de repúdio social. Nesse sentido, há uma
norma a ser seguida, nem a ausência, muitos menos os excessos. O sujeito deve ser
padronizado, normatizado.
Para melhor explicar a realidade de rua atrelada à experimentação etílica, todos
os entrevistados se referiram à noção de “papudim”, esta como a caracterização de um
comportamento bem definido. Entendemos também como uma forma de delimitação
24 Para ver matéria completa consultar: http://www.opovo.com.br/opovo/cienciaesaude/654174.html (Acesso em 17/12/06)
dos grupos, de reconhecimento de si e do outro. “Bem, para aqueles que bebem, assim,
o dia todo e todo dia. Isso tem um nome, né? Na rua, eles são conhecidos mesmo já
como papudinho” (Varredor). Este significado encontra aproximação com o que
entendemos por dependência, conceito que adiantamos no segundo capítulo deste
trabalho.
O significado supracitado encontra consonância com a diferença entre uso e
abuso de álcool (conceitos que também discutimos no segundo capítulo). Interessante
notar que o senso comum também se vale de conceitos, com menos precisão que o
conceito científico, mas que, de forma semelhante, ajudam no compartilhamento de uma
dada realidade. Estes são saberes qualitativamente diferentes, mas nem por isso um é
inferior ao outro. Ambos dão conta de uma mesma realidade, porém com objetivos e
métodos distintos. Varredor, ao explicar o porquê de se evitar o “primeiro gole”, faz
uma explanação bem esclarecedora da diferença entre uso e abuso:
É porque, vou explicar: as pessoas que bebem, esses que bebem só no final de semana, por esporte, esses tudo bem. Eu acho que se controla (uso). Mas as pessoas que passam 10 a 15 dias no álcool, aí, mesmo parando, passando uma temporada sem provar no álcool, assim dois, três, quatro ou cinco meses, sem provar no álcool. Aí, vamos supor que uma pessoa esteja cinco meses sem provar no álcool, aí um dia ele pensa: “É tou um tempo sem beber. Vou tomar só uma ali pra poder esquentar, uma ou duas”. Mas só que a pessoa não fica só numa. De jeito nenhum. Tomou a primeira, pronto. A primeira desce ruim. Desce rasgando e queimando. A segunda desce mais macio (abuso).
O ato de beber, em determinadas situações, é colocado como uma necessidade
básica, ao lado da alimentação. O trabalho aparece como fonte de renda que sustenta
tanto a alimentação básica quanto o álcool. Varredor nos explica com uma situação:
Aí passei a trabalhar na minha conta própria. Arrumei um estacionamento para trabalhar. Ali ao lado da escola normal, em frente à igreja do Pequeno Grande. Aí olhava o carro lá para poder me virar e sobreviver. Olhava o carro, lavava um carro. Era assim. Para ganhar alguma coisa. Tanto para o meu alimento, como quando eu quisesse tomar uma, né?
No geral, o sentido conclusivo atribuído ao álcool é bastante negativo.
Chamamos de sentido conclusivo as adjetivações que tendem à conclusão, a nomear de
maneira sucinta e lacônica uma determinada experiência. “Eu sei que o cão da bebida, é
o de mais ruim pode existir no mundo. [...] Eu costumo dizer que a cachaça não dá
caminho a ninguém não” (D. Juan). Após pensar um pouco sobre o que iria dizer,
Varredor afirma categoricamente: “O álcool é, pra mim, uma derrota”. O prejuízo, a
perda e sofrimento também são alguns sentidos constantes nos discursos.
Os sentidos produzidos sobre o álcool, como pudemos observar, são diversos.
Cada um surge de maneira singular, atrelado às histórias de vida, às produções culturais
e às práticas cotidianas. Uma vez inseridos nos contexto de rua, onde existe uma maior
permissividade para a alcoolização, os sentidos vão sendo, mais uma vez,
ressignificados.
Concebemos ainda a própria situação de entrevista e de produção escrita desta
monografia como momentos de elaboração dessas vivências. Nossas análises também
são interpretações parciais, sem pretensões de reproduzir fidedignamente o sentido e o
significado das narrativas. Nosso estudo visou a compreensão, entendendo esta de
forma localizada e datada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De antemão, gostaria de reforçar um clichê acadêmico que considero de suma
importância: a substituição de uma suposta “conclusão” para algumas “considerações
finais”. A processualidade desta segunda nomenclatura vai ao encontro da proposta
deste trabalho. Nesse sentido, há a possibilidade desta produção se desdobrar em outras,
em outros momentos, por outros atores.
Não tivemos o intuito de dados generalizáveis, mas que estes pudessem
contribuir para a compreensão de uma dada realidade. Importante que esta pesquisa,
longe de pretender ser um saber canônico, é mais um sentido produzido sobre a
realidade dos moradores de rua e sua vivência com o álcool. É um movimento em que a
academia também se apropria de uma temática que era anteriormente postergada.
Pudemos perceber a riqueza dos dados. Coletamos informações que poderiam
subsidiar outras pesquisas, como a relação da família com o morador de rua, o uso de
drogas ilícitas na situação de rua (que é uma outra realidade), a influência do gênero no
consumo etílico, sempre evitando as causalidades fáceis e aparentemente lógicas.
Quando tratamos do álcool no contexto de rua, observamos que a substância
predileta é a cachaça. Tal escolha não é aleatória – como já apontamos em nosso
trabalho – mas, principalmente, por causa da nossa cultura nordestina, essa eleição é
repleta de representações. Desde a época dos cangaceiros, ela foi associada à virilidade
e à força, demonstrada na cena em que o sujeito “toma uma, dose e esta desce
queimando”. Os demais, apenas reconhecem a força do sujeito. Podemos pensar
também numa questão de gênero e observar que não é à toa que mais da metade dos que
fazem uso de álcool, a nível nacional, são homens. Pesquisas nesse sentido poderiam ser
produzidas, aprofundando melhor essas relações entre masculinidade e álcool.
Outro ponto fundamental é a (re)formulação de políticas públicas, já que as
existentes não são suficientes e/ou são pensadas de maneira desarticulada. Essencial
seria a construção de mais casas de abrigos, a articulação destes com a rede de saúde, o
atendimento especializado à população dependente, a possibilidade de reinserção
laboral de alto nível e não apenas aquelas que reproduzem a cultura da pobreza. Falta
interesse real por parte das autoridades para com esta camada da população. Talvez seja
pela impossibilidade de mobilização e pela inexpressividade de votos dos moradores de
rua, uma vez que muitos nem título de eleitor possuem.
Uma vez proposta alguma ação, é importante atentar, sobretudo, que ao estar na
rua o sujeito cria vínculos com o espaço e com as pessoas ao seu derredor. Isto deve ser
levado em consideração. Não queremos dizer, com isso, que o espaço da rua é bom, mas
que qualquer intervenção, para ser eficiente, tem que ser pensada do ponto de vista do
sujeito a quem se dirige a ação. Não atentar para as peculiaridades na formulação de
políticas, na maioria das vezes, prescindindo de variáveis centrais, acaba fadando o
projeto ao fracasso. Quando do encontro do álcool com o mundo da rua, há a produção
de uma realidade ainda mais complexa. Por vezes, desconsideram-se as peculiaridades,
principalmente, de quem é portador da Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA).
A Psicologia tem a contribuir tanto como ciência – na compreensão das
variáveis envolvidas, na problematização da realidade e na desnaturalização dos
“óbvios” – como na proposição de uma práxis contextualizada, na capacitação de
pessoal e, principalmente, no planejamento de ações interdisciplinares. O movimento
histórico da saída dos consultórios e de um atendimento eminentemente individualizado
para práticas mais amplas está reverberando em termos sociais. Já existe um maior
requerimento da Psicologia na ponta de políticas sociais – como os CREAS (Centro
Especializado de Referência da Assistência Social). Este movimento só tende a crescer.
Percebemos, então, que a realidade de rua é mais que um simples problema de
habitação – no sentindo da falta de moradia para todos – mas há também fatores de
convivência familiar, do contexto sócio-econômico e, sobretudo, de problemas como o
alcoolismo. A Psicologia tem contribuição importante nesse sentindo, principalmente
atuando na área de prevenção e promoção, no esclarecimento, na proposição de grupos
operativos, na potencialização da família como rede afetiva etc.
Ao escutar as narrativas dos moradores em situação de rua, pudemos perceber
que são histórias arraigadas de muito sentimento, principalmente de sofrimento. É como
se cada morador de rua travasse uma luta diária pela sobrevivência, e o grande troféu
seja chegar ao final do dia com sua vida em punho. Quando falamos que o sujeito se
forja na imbricada relação entre seus desejos, suas peculiaridades e a trama sócio-
cultural compreendemos tal premissa nitidamente na fala de cada entrevistado. A
realidade certamente seria outra se houvesse mais oportunidades de emprego. O
fatalismo dispensado à temática, a partir do momento em que é historicizado, perde o
caráter de imutabilidade e começa a entrar em movimento. Outras possibilidades
surgem no horizonte. E elas existem, de fato!
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Fontes.
APÊNDICE 1
Roteiro de entrevista semi-estruturada
1) História de Vida
- Falar livremente sobre sua história de vida - Como chegou até a Toca de Assis - Noções da infância, adolescência e modo de vida 2) Contato com álcool
- Como foi o primeiro contato com álcool - O que o levou/motivou a experimentar - Quais as pessoas significativas que ele recorda que faziam uso dessa substância. 3) Uso/abuso de álcool
- Quais as situações de uso/abuso - Quais os tipos de bebida mais freqüente - Quais as implicações deste comportamento para a atividade laboral e a vida em geral - Quais as sensações e repercussões 4) Significado/Sentido do álcool
- Compreensão acerca do uso/abuso de bebida alcoólica (o que é) - Relação entre álcool e drogas (lícitas ou ilícitas) - Auto-percepção acerca do uso/abuso de álcool
APÊNDICE 2
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA
Estamos realizando uma pesquisa intitulada “Produção de Sentido(S) de Álcool em ex-Moradores de Rua”, cujo objetivo é estudar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis, construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida. Esta pesquisa trará contribuições importantes para a Psicologia Social. A sua participação será da seguinte forma: o pesquisador fará algumas perguntas através de uma entrevista que será gravada para melhor organizar as informações. É importante ressaltar que seu nome será mantido em sigilo. Com essas informações, gostaria de saber a sua aceitação em participar da pesquisa. É necessário esclarecer que: 1. a sua aceitação/autorização deverá ser de livre e espontânea vontade; 2. que você não ficará exposto a nenhum risco ou problema; 3. a identificação de todos os envolvidos será mantida em segredo; 4. que você poderá desistir de participar a qualquer momento, sem qualquer problema para você; 5. será permitido o acesso às informações sobre procedimentos relacionados à pesquisa ; 6. somente depois de ter entendido o que foi explicado, deverá assinar este documento. Em caso de dúvida, poderá falar com a responsável pela pesquisa, a Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço, Departamento de Psicologia, Av. Universidade, 2762, Benfica, CEP: 60020-180, fone: 40097728.
O Comitê de Ética em Pesquisa da UFC encontra-se disponível para reclamações referentes à pesquisa pelo telefone (85) 40098338
Fortaleza, ___de_________de____.
______________________________ Assinatura do sujeito da pesquisa
______________________________ Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço
Assinatura da responsável pela pesquisa
______________________________ Assinatura de quem obteve o termo de consentimento
ANEXO 1
O Resto Do Mundo Gabriel Pensador
Composição: Gabriel O Pensador
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela
Eu me chamo de excluido como alguém me chamou
Mas pode me chamar do que quiser seu dotô
Eu num tenho nome
Eu num tenho identidade
Eu num tenho nem certeza se eu sou gente de verdade
Eu num tenho nada
Mas gostaria de ter
Aproveita seu dotô e dá um trocado pra eu comer...
Eu gostaria de ter um pingo de orgulho
Mas isso é impossivel pra quem come o entulho
Misturado com os ratos e com as baratas
E com o papel higiênico usado
Nas latas de lixo
Eu vivo como um bicho ou pior que isso
Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou... Eu num sou ninguém
Eu tô com fome
Tenho que me alimentar
Eu posso num ter nome mas o estômago tá lá
Por isso eu tenho que ser cara-de-pau
Ou eu peço dinheiro ou fico aqui passando mal
Tenho que me rebaixar a esse ponto porque a necessidade é maiordo que a moral
Eu sou sujo eu sou feio eu sou anti-social
Eu num posso aparecer na foto do cartão postal
Porque pro rico e pro turista eu sou poluição
Sei que sou um brasileiro
Mas eu não sou cidadão
Eu não tenho dignidade ou um teto pra morar
E o meu banheiro é a rua
E sem papel pra me limpar
Honra?
Não tenho
Eu já nasci sem ela
E o meu sonho é morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela
A minha vida é um pesadelo e eu não consigo acordar
E eu não tenho perspectivas de sair do lugar
A minha sina é suportar viver abaixo do chão
E ser um resto solitário esquecido na multidão
Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou o resto do mundo
Eu num sou ninguém
Eu num sou nada
Eu num sou gente
Eu sou o resto do mundo
u sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou o resto
Eu num sou ninguém
Frustração
É o resumo do meu ser
Eu sou filho da miséria e o meu castigo é viver
Eu vejo gente nascendo com a vida ganha e eu não tenho umachance
Deus! Me diga por quê?
Eu sei que a maioria do Brasil é pobre
Mas eu num chego a ser pobre eu sou podre!
Um fracassado
Mas não fui eu que fracassei
Porque eu num pude tentar
Então que culpa eu terei
Quando eu me revoltar quebrar queimar matar
Não tenho nada a perder
Meu dia vai chegar
Será que vai chagar?
Mas por enquanto
Eu sou o resto
O resto do mundo
Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou o resto do mundo
Eu num sou ninguém
Eu num sou nada
Eu num sou gente
Eu sou o resto do mundo
u sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo
Eu sou o resto
Eu num sou ninguém
Eu num sou registrado
Eu num sou batizado
Eu num sou civilizado
Eu num sou filho do Senhor
Eu num sou computado
Eu num sou consultado
Eu num sou vacinado
Contribuinte eu num sou
Eu num sou comemorado
Eu num sou considerado
Eu num sou empregado
Eu num sou consumidor
Eu num sou amado
Eu num sou respeitado
Eu num sou perdoado
E também sou pecador
Eu num sou representado por ninguém
Eu num sou apresentado pra ninguém
Eu num sou convidado de ninguém
E eu num posso ser visitado por ninguém
Além da minha triste sobrevivência eu tento entender a razão daminha existência
Por quê que eu nasci?
Por quê tô aqui?
Um penetra no inferno sem lugar pra fugir
Vivo na solidão mas não tenho privacidade
E não conheço a sensação de ter um lar de verdade
Eu sei que eu não tenho ninguém pra dividir o barraco comigo
Mas eu queria morar numa favela amigo
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
Eu queria morar numa favela
O meu sonho é morar numa favela.
ANEXO 2
+ 1 Dose Gabriel Pensador
Composição: Pensador/frejat/rodrigo/guto/peninha/fernando/tiago
Mais uma dose
É claro que eu tô afim
A noite nunca tem fim
Por que que agente é assim?
Aê! Garçom! Traz aqui pra mim
Mais uma dose, "é claro que eu tô afim"
Tin tin! Como diz o ditado: "A noite é uma criança", mas eu é que tô sempre mamado
É mel na chupeta, pinga na chupeta, cerva na chupeta, vinho na chupeta
Uísque na chupeta, mamãe eu quero mamar
Dá a chupeta pro neném não chorar!
Eu quero álcool! Pode encher a tarça
Nem quero saber se é champanhe ou cachaça
Passa pra cá! Passa o goró
E deixa eu virar num gole só!
... Foi mal, pô
Num tô legal
Tô com muito sangue no meu álcool
Daqui a pouco vou parar num hospital para tomar injeção de glicose
E depois vou acabar num caixão com cirrose
Mas por enquanto eu quero mais uma dose
Mais uma dose
É claro que eu tô afim
A noite nunca tem fim
Porquê que agente é assim?
Quando eu tô triste eu bebo pra esquecer
Quando eu tô feliz eu bebo pra comemorar
Quando eu não tenho motivo pra beber
Eu encho a cara de bebida até vomitar
"Você pensa que cachaça é água, vacilão? Cachaça não é água não"
Não! Nem me fale em água filtrada nem água mineral
Que se eu bebo um troço desse eu passo mal
Água pra mim só se for aguardente
Até pra tomar banho ou escovar os dentes
Sem bebida a vida não presta
Se tem festa eu sou o chato e se tá chato eu sou a festa
Eu num como ninguém, mas eu bebo bem
Da número um a número dez, a número cem, a número mil!! "Eu sou da turma do funil!"
Bebo até cair mas depois me levanto
Abro mais uma e dou um gole pro santo
A birita é sagrada: A minha religião
A dieta equilibrada: É um copo em cada mão
"Uma cervejinha pra abrir o apetite
e mais um chopinho acompanhando a refeição
Depois a caipirinha pra tomar de sobremesa
e só um licorzinho prafazer a digestão
E agora? Vamô embora?"
- Num fala besteira! Garçom, a saideira!
Mais uma dose
É claro que eu tô afim
A noite nunca tem fim
Porque que agente é assim?
Ai... Que ressaca! Minha cabeça tá doendo paca
Eu não passo de um babaca
Corpo podre, mente fraca, que psicose!
Ontem entrei no tapa só por causa de uma dose
Que onda errada!
No fim do mês ainda tenho aquela conta pendurada lá no bar
Vou ter que deixar a metade do salário
Na olimpíada do copo eu sou o primeiro voluntário
Comigo é páreo duro, eu engulo qualquer mistura
Quanto eu tô duro serve até cachaça pura
Loucura? Não. Doença, cara!
Eu nem me lembro como ontem eu cheguei em casa
Só sei que eu acordei com uma baranga do meu lado e lembrei que a minha mina já tinha me
abandonado
Ih! Que dia é hoje? Hoje é segunda!
Ah, mas no trabalho eu já levei um pé na bunda
E eu continuo me afogando nessa poça de álcool só que a poça tá ficando muito funda!