vivÊncia de rua e alcoolizaÇÃo: a produÇÃo de

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES CURSO DE PSICOLOGIA VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA Autor: Paulo André Sousa Teixeira BANCA EXAMINADORA ___________________________________ Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço (Orientadora) __________________________________ Profa. Dra. Ângela de Alencar Araripe Pinheiro Membro da Banca Examinadora __________________________________ Prof. Dr. César Wagner de Lima Góis Membro da Banca Examinadora __________________________________ Esp. Silvana Garcia de Andrade Lima Membro da Banca Examinadora ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA: Rua Tiradentes, 641, B:H Ap:201 Parque Araxá – 60430-560 Fortaleza – CE TELEFONES: (85) 32231804 – (85) 88845979 EMAIL: [email protected]

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Page 1: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES

CURSO DE PSICOLOGIA

VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA

Autor: Paulo André Sousa Teixeira

BANCA EXAMINADORA

___________________________________

Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço (Orientadora)

__________________________________

Profa. Dra. Ângela de Alencar Araripe Pinheiro Membro da Banca Examinadora

__________________________________

Prof. Dr. César Wagner de Lima Góis Membro da Banca Examinadora

__________________________________

Esp. Silvana Garcia de Andrade Lima Membro da Banca Examinadora

ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA: Rua Tiradentes, 641, B:H Ap:201 Parque Araxá – 60430-560 Fortaleza – CE TELEFONES: (85) 32231804 – (85) 88845979 EMAIL: [email protected]

Page 2: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO

DE SENTIDO EM (EX) MORADORES DE RUA

RESUMO

A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno social como em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos longe de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna em relação ao uso e, principalmente, ao abuso de drogas: “Por que o sujeito se vale dessas substâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir, intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desde os compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual – ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Paripasso ao fenômeno do uso/ abuso de drogas, temos uma realidade – que semelhante à drogadição também não é nova – que é a dos moradores de rua. Do encontro da rua com as drogas, o que podemos esperar? Nesse sentido, nossa pesquisa teve por objetivo investigar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis, construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida. A referida entidade é uma congregação religiosa, vinculada à Igreja Católica. A amostra desta pesquisa é composta por três sujeitos abrigados na Fraternidade Toca de Assis e que residem há mais de um ano na casa. Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método de coleta de dados. A partir dos dados colhidos através das entrevistas, os submetemos (os dados) à análise semiótica, segundo a qual o processo de interpretação é concebido com um processo de produção de sentidos. O sentido é o meio e o fim de nossa tarefa de pesquisa. Tomamos por base teórica a Produção de Sentido no Cotidiano por meio das Práticas Discursivas e concepção de Produção de Subjetividade. A partir de nossa incursão empírica na Fraternidade Toca de Assis, pudemos perceber que uma gama de sentidos foram construídos em relação à bebida alcoólica. Aspectos como: masculinidade, família, trabalho e precarização do mundo laboral e acontecimentos veiculados pela mídia estão intimamente ligados à produção da realidade dos moradores de rua e da sua vivência com o álcool. A Psicologia tem a contribuir tanto como ciência – na compreensão das variáveis envolvidas, na problematização da realidade e na desnaturalização dos “óbvios” – como na proposição de uma práxis contextualizada, na capacitação de pessoal e, principalmente, no planejamento de ações interdisciplinares. Palavras-chave: Moradores de Rua, Álcool, Produção de Sentido.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

PARECER SOBRE MONOGRAFIA

Como orientadora da monografia de Curso de Graduação intitulada VIVÊNCIA

DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE SENTIDO EM (EX)

MORADORES DE RUA do aluno Paulo André Sousa Teixeira, do Curso de

Psicologia da UFC, recomendo a sua inscrição para concorrer ao Prêmio Silvia Lane

que será concedido pela Associação Brasileira de Ensino de Psicologia – ABEP,

considerando a relevância do tema no campo da Psicologia Social e a qualidade do

estudo, que obteve a nota 9.3 pela banca examinadora, por ocasião da defesa pública da

monografia.

Fortaleza, 30 de março de 2007

Veriana de Fátima Rodrigues Colaço

Professora Doutora do Departamento de Psicologia da UFC

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INTRODUÇÃO

A temática da drogadição já é tida como antiga, tanto em termos de fenômeno

social como em relação ao estudo científico desse comportamento. Entretanto, estamos

longe de responder, em definitivo, as perguntas que assolam a sociedade moderna em

relação ao uso e, principalmente, o abuso de drogas1: “Por que o sujeito se vale dessas

substâncias?” (sejam elas lícitas ou ilícitas); “O que ele busca experimentar, fugir,

intensificar, conhecer... ao usá-las?”; “Quais os múltiplos sentidos subjacentes – desde

os compartilhados com uma determinada cultura aos produzidos de forma individual –

ao comportamento de uso/abuso de certas substâncias entorpecentes?”. Certamente

essas e outras questões estão longe do esgotamento. É nesse sentido que visamos,

através desta pesquisa, contribuir com avanço na discussão e problematização dos

contextos diferenciados que indivíduos se valem no uso de drogas diversas.

Paripasso ao fenômeno do uso/abuso de drogas, temos uma realidade – que,

semelhante à drogadição, também não é nova – que é a dos moradores de rua. Prenhe de

variáveis e multicasual, homens, mulheres, crianças, jovens, adultos habitam as ruas e

fazem delas suas moradas. Mais comum – porém não exclusivo - nas grandes capitais, a

situação do morador de rua se confronta, diariamente, com o direito à moradia, à

dignidade, ao respeito e a tantos outros. Essas pessoas, por não gozarem de lugar fixo

para sua habitação, acabam também prescindindo de outros direitos sociais como

educação, saúde e lazer - para citar apenas os mais gritantes. A invisibilidade é a marca

desta população. Na trama social, são sempre pano de fundo de uma paisagem, como se

naturalmente fizessem parte do contexto. Mas não o são. “Vale ressaltar que o estudo

referente à temática moderadores de rua é bastante escasso, seja na construção de

trabalho acadêmico, pesquisa ou tese, seja na produção bibliográfica [...]”,

(ALCÂNTARA, 2004, p. 94) ou ainda:

Apesar de se tratar de uma população que cresce diariamente na cidade de São Paulo, poucos trabalhos de Psicologia (até 2002) foram produzidos a respeito do tema (moradores de rua). Em outras áreas do conhecimento a situação não é muito diferente (SERRANO, 2004, p.15).

1 Definiremos, na seqüência, o que entendemos por uso e abuso de entorpecentes.

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Do encontro da rua com as drogas, o que podemos esperar? Seria também essa

uma aproximação lógica e fatalista, como as aproximações que alguns fazem em relação

à pobreza e à marginalidade? A rua e a droga permitem o deslocamento espacial – tanto

no sentido físico como “a viagem” do efeito de certos entorpecentes – fazendo com que

o sujeito transite livremente, mesmo em locais que lhe são, a todo momento,

interditados por sua condição socioeconômica e, principalmente, pela sua

impossibilidade de consumo. E quem será que vem primeiro? Para estar na rua, a droga

se faz necessária ou será a droga que leva o sujeito ao mundo incerto das calçadas e das

pontes?

Estudos recentes (CAMPOS; FERREIRA; MATTOS, 2004, p.1-2) apontam que

há relação, sim, entre os moradores de rua e o alcoolismo. Segundo os autores,

[...] o alcoolismo apresenta-se ora como um dos motivos primordiais da rualização, ora como uma conseqüência do ingresso no mundo da rua. Outras vezes, entretanto, surge, simultaneamente, como condição e efeito da situação de rua.

Nesse sentido, é esperado que o álcool gere uma maior suscetibilidade a

enfermidades, dificuldades no engajamento laboral e outros problemas inerentes. Por

outro lado, o álcool também assume, por vezes, o caráter de “anestesia”, principalmente

em relação ao sofrimento cotidiano. Prescindir da alcoolização é, por vezes, entrar em

contato com uma realidade cruel, quase insuportável. Diante dessa dinâmica – como

causa, conseqüência ou os dois eventos simultâneos –, é muito provável que o aspecto

da dependência química enraíze ainda mais o sujeito na situação de rua,

impossibilitando, muitas vezes, sua saída. Campos e colaboradores ainda acrescentam:

[...] as propostas que respondem às necessidades de trabalho e moradia são imprescindíveis para a consecução da saída das ruas, o que a maioria das políticas públicas oferece. Porém, acreditamos que necessariamente também haja a inclusão de medidas que atentem para a questão do alcoolismo, para que os programas voltados a essa população possam ser efetivos (2004, p.2).

Pautado em uma realidade concreta de vivência com sujeitos que passaram pela

experiência de rualização, nosso interesse surgiu pela inserção, como estagiário, na

Fraternidade Toca de Assis. A referida instituição é uma comunidade religiosa,

vinculada à Igreja Católica, que trabalha com o acolhimento e cuidado de moradores de

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rua. Os “irmãos de rua”, como os religiosos os chamam, são todos adultos e homens;

escolha esta que, segundo eles, se deve ao maior contingente encontrado nas ruas. O

nosso contato com a instituição se deu por intermédio de um estágio em Psicologia

Clínica, vinculado à Formação em Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico-

Existencial com o Instituto Reluz, ONG criada para prestar atendimentos diversos à

Fraternidade.

Uma vez imerso nessa realidade, percebemos – religiosos, estagiários,

profissionais e seguindo a fala dos próprios abrigados – que a problemática das drogas,

com ênfase acentuada no álcool, permeava grande parte dos conflitos e falas que

circulavam na instituição. Fugindo de uma perspectiva higienista ou policialesca, na

qual iríamos em busca de uma causa para explicar, ou mesmo de ações para extirpar

esse tipo de comportamento, visamos uma abordagem que buscasse a compreensão das

multiplicidades de sentidos que estão presentes no fenômeno do abuso de álcool,

especificamente. A escolha do álcool nessa pesquisa se deu pela abrangência, facilidade

de acesso e recorrência na instituição. No entanto, não queremos dizer, com isso, que o

abuso de álcool aparece isoladamente. Segundo nossas observações e incursões gerais,

muito pelo contrário. Ao mesmo tempo em que não advogamos a favor da tese

determinista de que álcool é “necessariamente” a “porta de entrada” para drogas mais

“pesadas”. Pensamentos dessa natureza só corroboram com os simplismos e

estereótipos decorrentes deste.

Esse tipo de enfoque, no nosso entender, é qualitativamente mais apropriado por

alguns motivos: parte da realidade dos próprios sujeitos, conhecedores, por excelência,

de suas próprias motivações e de seus desejos; entende que a ação do abuso de álcool,

mesmo com sua conotação social tida como autodestrutiva, possui um significado e não

pode ser simplesmente extirpado; não descarta a possibilidade, a partir dos

conhecimentos produzidos e acumulados no transcorrer da evolução científica, de se

fazer uma intervenção curativa e, sobretudo, preventiva.

Para tanto, valeremo-nos das contribuições das diversas áreas do conhecimento –

Psicologia, Sociologia, Medicina, entre outras – para aprofundar a compreensão das

reações fisiológicas, da evolução histórico-social, das repercussões subjetivas do

referido fenômeno. Optamos por trabalhar com a situação de abuso de álcool como um

objeto de estudo não problemático em si, num sentido pejorativo (apesar de não

negarmos que, em certos momentos, se torna realmente um problema, principalmente

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no âmbito da saúde pública2). Entretanto, Bucher (apud GOMES; RIGOTTO, 2002, p.

96) ainda aponta que “há consenso sobre o aumento acelerado do consumo em

decorrência do narcotráfico e da demanda por produtos psicotrópicos”. É quando o

álcool sai da esfera exclusiva do indivíduo e passa a interferir na família, na

comunidade, no trabalho – e, por sua vez, no sistema econômico – que ele se torna um

problema que traz consigo gastos vultosos para o Estado e, por conseqüência tributária,

para a sociedade. Como ainda afirma Silva (2000, p. 30) “Não podemos ignorar que há

um custo gradativo no tratamento de doenças derivadas do uso de drogas: custo

hospitalar, desemprego, produtividade, prostituição e criminalidade”. Visto a

complexidade do fenômeno, nossa reflexão sobre ele também não pode reduzir-se a

uma explicação reducionista, seja de ordem biológica, social ou psicológica.

A esfera da saúde pública – visto a amplitude de disciplinas que a compõem –

nos oferece dados de grande relevância no sentido de compreender as repercussões da

alcoolização no Brasil nos últimos anos. Quando falamos de doenças da

contemporaneidade, os transtornos relacionados ao “abuso de substâncias aparecem

lado a lado com os transtornos alimentares e as compulsões por jogo, sexo e compras”

(MOREIRA, 2006, p. 3). Só no ano de 1999 foram realizadas 37.754 internações

hospitalares, número correspondente a 85% dos problemas decorrentes do uso de drogas

psicotrópicas em geral (CEBRID, 2000, apud CAMPOS et al, 2004, p.2). Ademais,

ainda para o referido ano, o coordenador do GREA (Grupo Interdisciplinar de Estudos

de Álcool e Drogas) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo,

Prof. Dr. Arthur Guerra de Andrade (apud CAMPOS et al, 2004, p. 2), afirmou, no

encontro “Álcool e suas Repercussões Médico-Sociais”,

[...] que o Brasil gasta 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB), por ano, para tratar de problemas relacionados ao álcool - desde o tratamento do dependente, até a perda da produtividade por causa da bebida - como a indústria do álcool movimenta somente 3,5% do PIB.

2 “A prevalência do álcool é de 11,2% na população brasileira, e a maior taxa de dependentes está na população cuja faixa etária é a de 12 a 24 anos, sendo 17,1% da população masculina e 5,7% da população feminina” (CEBRID apud CAMPOS, 2004, p. 1380). Além do que “sabe-se que o início do uso de drogas está ocorrendo com pessoas cada vez mais jovens e com substância de teor tóxico mais elevado” (GOMES; RIGOTTO, 2002, p. 96).

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Diante de dados estarrecedores como estes, é preocupante observarmos o trato

sócio-culturalmente legitimado, já que observamos que a problemática não está na pauta

de discussões de governos, políticas públicas, nem das articulações da sociedade civil.

Podemos, mesmo que superficialmente, pensar nas repercussões negativas que esta

problemática traz nos acidentes de trânsito, nos acidentes de trabalhos, na

desestruturação familiar, nos gastos com medicamentos e, em último caso, nos

volumosos investimentos em clínicas de reabilitação. A publicidade também deve entrar

como variável de análise, no sentindo de se constituir uma grande incentivadora do

aumento do consumo nos últimos anos3. Refletindo com os dados anteriormente

apresentados pelo coordenador do GREA, concluímos que, em termos sociais, o abuso

de álcool traz consequências indesejáveis ao bem-estar da população.

Remetendo-nos novamente à problemática da alcoolização ligada ao mundo das

ruas, é de fácil constatação a representação socialmente compartilhada da pessoa

alcoolizada em situação de rua ser apenas “um bêbado qualquer, um desinteressado, um

caído, um coitado...”. Tais imagens tendem a desresponsabilizar as autoridades

competentes, bem como a sociedade, diante da sua participação na produção (ou

omissão em combater) deste fenômeno. A culpabilização exclusiva do “bêbado”

apresenta-se como deslocada da realidade sócio-cultural, como se o comportamento não

fosse aprendido, permitido, ensinado e, em grande parte, incentivado. É um

reducionismo psicológico que deve ser, a todo custo, refutado.

Num contexto laboral altamente precário, a questão da falta de trabalho, das

condições desfavoráveis, da intensa flexibilização dos contratos, da falta de poder de

reivindicação por parte das classes trabalhadoras, são variáveis que também devem ser

levadas em consideração. A saída para as ruas não é um evento abrupto. Por vezes, vem

acompanhada do desemprego crônico, da dissolução dos laços familiares, do intenso

sentimento de culpa e vergonha e, por fim, de uma “fuga” da realidade vivenciada. Em

relação ao círculo familiar, estudos afirmam a intrínseca relação entre o alcoolismo e a

violência doméstica (NASSER; ESCOREL apud CAMPOS et al, 2004, p. 8), sendo esta

realidade um fator primordial de dissolução ou até mesmo de rompimento das relações

familiares.

Outros dados alarmantes ainda nos lançam para a problematização da relação do

álcool com as ruas. Segundo Rosa (apud CAMPOS, 2004, p.8), em relação à população

3 O consumo no Brasil aumentou 74.53% entre os anos de 1970 e 1996 (CARLINI-MARLATT apud CAMPOS et al, 2004, p.3).

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em situação de rua que faz abuso de álcool, “entre nove que fazem uso de bebida, oito

começaram a beber antes da chegada às ruas”, além de acrescentar que “os que estão

há pouco tempo na rua sentem a pressão exercida pela bebida; se não aderem, são

tratados como diferentes; é preciso falar a mesma linguagem, caso contrário sofrem

represálias” (ROSA apud CAMPOS et al, 2004, p.11). Diante destas indicações, não se

pode pensar um problema ou outro isoladamente ou desconsiderando o sistema

socioeconômico, isso pode ser fonte de superficialidades e/ou conclusões apressadas.

À guisa de um esquema para estas relações, Campos (et al) atesta:

Fica explícita a influência do álcool na ruptura com os ambientes familiares; na manutenção de trabalhos intermitentes que favoreciam uma maior liberdade para o exercício de sua dependência química; por fim, em situação de rua, todos rendimentos auferidos tinham como destino a re-produção desse círculo vicioso que o levou a esta condição (2004, p.10).

Uma vez inseridos na cultura de rua, há também que se atentar para o caráter

socializador que o uso de álcool assume. Há uma criação em torno do ato beber, de uma

série de ritos, comportamentos socialmente aceitos (e recusados), entre estes os

estabelecimentos de horários, legitimação de compadrio e outras nuanças. Porém, como

afirma Mattos:

[...] ao lado da confraternização, o álcool também é elemento de discórdia, criando uma configuração contraditória nas relações entre estas pessoas: surge com um aspecto de solidariedade, mas gera a violência; ao lado da união, promove a desintegração do relacionamento entre as pessoas, perpassando desde boas conversas e risadas até grandes discussões e brigas até “fatais” (apud CAMPOS et al, 2004, p.11).

Vale ressaltar que o interesse desta pesquisa não é constatar nem refutar a

interdependência existente entre o álcool e a situação de rua. Para nós, e segundo os

estudos realizados, a ligação intrínseca é notória, porém não fatalista. Nosso interesse

diz respeito a compreender, a partir da história de vida destes sujeitos, como o álcool foi

sendo significado ao longo da vida destes usuários, quais os personagens relevantes,

quais os cenários marcantes, os sentimentos etc. Mais especificamente, seria então

investigar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis,

construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida.

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1) AS VEREDAS DA PESQUISA

Diante da complexidade das pesquisas que têm a subjetividade como enfoque,

optamos por uma pesquisa eminentemente qualitativa. Tal delimitação dá-se, entre

outros fatores, devido ao nosso objeto de estudo – a produção de sentido, a situação de

rua, o álcool e a construção da subjetividade – e à nossa concepção de que a pesquisa

qualitativa apresenta uma metodologia consoante com nossos propósitos de

investigação.

Circunscrevemos esta epistemologia de estudo também por corroborar com

González Rey (2002), quando este concebe a epistemologia qualitativa como:

Um esforço na busca de formas diferentes de produção de conhecimento em psicologia que permitam a criação teórica acerca da realidade plurideterminada, diferenciada, irregular, interativa histórica, que representa a subjetividade humana (p. 29).

Ademais, a ruptura com um modelo mecanicista, nos moldes do positivismo, foi

uma atitude metodológica frente às limitações que tal modelo apresentava.

Extrapolando os objetivos destes, temos que a:

Abordagem qualitativa no estudo da subjetividade volta-se para a elucidação, o conhecimento dos complexos processos que constituem a subjetividade e não tem como objetivos a predição, a descrição e o controle. Nenhuma dessas três dimensões, que historicamente estão na base da filosofia dominante na pesquisa psicológica, forma parte do ideal orientado pelo modelo qualitativo de ciência (Ibidem, p. 48).

Spink (2000), por sua vez, da mesma forma que González Rey, trata a

perspectiva qualitativa não apenas como uma metodologia, mas uma epistemologia.

Nesse sentindo, a opção sai da esfera técnica e passa a coadunar com os objetivos da

investigação. Entendido então como epistemologia, dentro de uma perspectiva do

Construcionismo Social (ver capítulo sobre produção de subjetividades e sentidos), a

combinação de estratégias quantitativas e qualitativas deixa de ser uma querela,

superando também outras dicotomias, como realismo e idealismo ou indivíduo e

sociedade.

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1.1) A Produção de Sentido como método Um conceito capital em nossa pesquisa será a noção de sentido. Na concepção

de Medrado e Spink “dar sentido ao mundo é uma força poderosa e inevitável na vida

em sociedade” (2000, p. 41). O sentido é sempre uma construção social e coletiva, que

se dá por meio da interação e das relações, a partir das quais as pessoas compreendem e

atuam em seu cotidiano. Não entendemos o sentido como apenas uma produção intra-

individual, muito menos uma mera atividade cognitiva. Como prática social, ele é

sempre dialógico, visto o movimento dinâmico da linguagem.

Esta noção é cerne também do entendimento que o Construcionismo Social traz

acerca da apreensão da realidade, já que “é a compreensão de que os termos em que o

mundo é compreendido são artefatos sociais, produtos das trocas historicamente

situadas entre as pessoas” (GERGEN apud MENEGON e SPINK, 2000, p.76). Com

isso, essa perspectiva intenta a descrição dos fenômenos, na qual as pessoas explicam o

mundo, incluindo-se nele.

Dessa forma, tomamos por base a noção de “práticas discursivas”, já que a

linguagem encontra-se em movimento, constantemente. “Podemos definir, assim,

práticas discursivas como a linguagem em ação, isto é, as maneiras a partir das quais

as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas”

(MEDRADO e SPINK, 2000, p. 45). A compreensão dos sentidos é sempre um

confronto de vários sentidos construídos, não uma produção isolada.

Tomaremos por base também as variações temporais que são próprias da

produção de sentido. Queremos dizer, com isso, que há vários “tempos”, a citar: um

longo, um curto e um vivido. O primeiro marca os conteúdos culturais e a história de

uma dada sociedade; o segundo diz respeito aos processos dialógicos, às interações

face-a-face; já o terceiro versa sobre as linguagens apreendidas a partir da socialização,

são as experiências da pessoa ao longo de sua história (MEDRADO e SPINK, 2000,

p.51).

Nossa compreensão só estará minimamente qualificada quando levar em conta

esses três tempos, articulando-os e considerando suas contradições inerentes. Nesse

instante, separações como indivíduo/sociedade, sujeito/objeto, bem como fora e dentro

do sujeito não fazem mais sentido. A perspectiva do Construcionismo Social, base

epistemológica na compreensão das práticas discursivas, no enfoque de Spink, supera

Page 12: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

ainda a dicotomia realismo/subjetivismo, representada no pensamento filosófico pelas

correntes empiristas e idealistas.

As tensões e paradoxos, ao invés de refutados na nossa investigação, fazem parte

do processo de pesquisa. A interpretação levou em conta o pesquisador e sua

subjetividade, assim como a noção histórica como variável que impulsiona

transformações. Ou, como enfatizam Medrado e Spink:

Por meio dessa abordagem, buscamos construir um modo de observar os fenômenos sociais que tenha como foco a tensão entre a universalidade e particularidade, entre o consenso e a diversidade, com vistas a produzir uma ferramenta útil para transformações da ordem social. (2000, p. 61).

1.2) Lócus de Pesquisa

A pesquisa foi realizada na Fraternidade Toca de Assis4 (Casa Aliança São

José), localizada na Avenida João Pessoa, N. 5052, Bairro Damas, na cidade de

Fortaleza - CE. O local foi fundado em 2003. Quanto à sua estrutura física, conta com

dois andares, três banheiros, seis dormitórios, uma capela, um escritório, uma

enfermaria, dois salões, uma cozinha, um alpendre na parte superior, um jardim na parte

inferior da casa e uma sala para atendimentos diversos (inclusive psicológico, feito

pelos membros do Instituto Reluz, mencionado na Introdução desta monografia). A casa

é bastante ampla e agradável.

A casa abriga cerca de 60 moradores de rua e conta com aproximadamente dez

membros da Fraternidade para prestar assistência aos “irmãos de rua”. A casa é

exclusivamente masculina, com exceção de uma cozinheira e de algumas consagradas

da comunidade5 que realizam visitas com certa freqüência. A idade dos abrigados varia

dos 18 aos 70 anos. Há uma heterogeneidade também quantos às características dos

abrigados: existem vários moradores com transtornos mentais, comprometimentos

físicos, dependência de álcool (não severa), entre outros. O lugar de origem também é

bastante variado: há pessoas que chegam desde o Norte do país até o extremo Sul, com

prevalência de pessoas de Fortaleza.

4 Para mais informações ver: http://www.tocadeassis.org.br/principal.html#tela02 5 Nomenclatura referente às religiosas mulheres que não moram na casa, mas a freqüentam.

Page 13: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

A Toca de Assis tem como principais atividades as tarefas domésticas e os

momentos de oração. Este segundo ponto é facultativo aos abrigados. São trabalhos na

cozinha, no jardim, arrumação geral da casa e coleta de lixo. Constantemente há algum

serviço de pedreiro ou bombeiro hidráulico a ser realizado, atividades estas que

mobilizam grande parte da casa. Já houve aulas de EJA (Educação de Jovens e

Adultos), ministradas por uma voluntária. Os trabalhos voluntários são constantes,

porém, há um problema com a falta de continuidade destes.

Entretanto, apesar deste leque de tarefas, algo que marca a instituição é a

ociosidade. Logo ao adentrarmos o espaço, nos deparamos com uma série de abrigados

deitados pelo chão, jogando baralho/dominó, ou, literalmente, “vendo o tempo passar”.

Esta é uma limitação que os membros da casa tentam sanar, mas que por causa das

limitações estruturais e de pessoal (e pelo próprio propósito da instituição) ainda há

muito que se fazer. O objetivo central da casa é o acolhimento, este entendido como

recolhimento e conforto espiritual. Há também atividades externas, as chamadas

“pastorais de rua”.

1.3) Sujeitos da Pesquisa

A amostra dessa pesquisa foi composta por três sujeitos abrigados na

Fraternidade Toca de Assis que residiam há mais de um ano na casa. A seleção dos

sujeitos da pesquisa foi feita por conveniência, ou seja, explicitamos os objetivos da

pesquisa para os consagrados da casa e membros do Instituto Reluz, e pedimos para que

estes nos indicassem possíveis candidatos para as entrevistas. O critério, além do tempo

de permanência na casa, foi o abuso de álcool (ver conceito de abuso no referencial

teórico que consta no segundo capítulo) no período da coleta de dados ou em período

recente, bem como a disponibilidade e aceitação dos indivíduos para a entrevista (ver

termo de consentimento no apêndice).

Importante esclarecer a razão pela qual utilizamos a expressão (ex) moradores de

rua e não apenas moradores de rua. Os sujeitos da nossa pesquisa, como já adiantamos,

estão abrigados. No entanto, existe uma variação quanto ao modo como os sujeitos se

identificam. Alguns acham que a estadia na Toca de Assis é passageira, identificando-se

ainda como morador de rua. Outros, ao contrário, se vêem como ex-moradores de rua.

Como esta é uma questão delicada e não é objeto de nosso estudo, preferimos o uso dos

parênteses para englobar as duas concepções, respeitando, contudo, esta diferenciação.

Page 14: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

1.4) Coleta de dados

Entendemos que o instrumento de coleta de dados, bem como toda a

metodologia, devem ser escolhidos a partir do próprio objeto de pesquisa. Ou seja, o

problema e os objetivos de pesquisa norteiam a escolha de um método e não o contrário.

Banister, nesse sentido, comenta que “nenhum modelo de prática ou análise pode ser

determinado de antemão, abstraindo-se o tópico e o contexto da investigação

particular” (apud PINHEIRO, 2000, p.183).

Utilizamos a entrevista semi-estruturada como método de coleta de dados (ver

roteiro de entrevista no apêndice). Para o registro das entrevistas, usamos um gravador

para guardar a fidelidade das falas dos entrevistados. Relatar experiências relativas ao

abuso de álcool geralmente é uma narrativa emocionalmente carregada e, por isso,

escolhemos proceder à coleta de dados de forma individual.

A escolha da entrevista esteve situada na compreensão de que esta se apresenta

como uma abordagem relacional por excelência. Menegom e Spink continuam

explicando que

[...] a expressão e produção de práticas discursivas aí situadas devem ser compreendidas também como fruto dessa interação, ou seja, os integrantes, incluindo o pesquisador, são pessoas ativas no processo de produção de sentidos (2000, p.85).

Como nos situamos na seara das pesquisas qualitativas - ou seja, não temos

pretensão de generalizar nossos dados –, acreditamos que aprofundar as histórias de

vida6 de três sujeitos é suficiente para levantar dados relevantes para a compreensão do

fenômeno. O importante é o acompanhamento do movimento discursivo,

compreendendo que é nesse fluxo que o sentindo vai sendo tecido. “Práticas

discursivas são diferentes maneiras em que as pessoas, através dos discursos,

ativamente produzem realidades psicológicas e sociais” (DAVIES E HARRÉ apud

PINHEIRO, 2000, p.186).

Ao abordamos a entrevista como prática discursiva estamos, sobretudo,

compreendendo-a como uma ação, uma inter-ação. A negociação é a marca deste tipo

de relação. Pinheiro aprofunda tal negociação explicando que

6 A história de vida a qual nos referimos não diz respeito a uma metodologia, mas as narrativas que os sujeitos faziam em relação às suas próprias histórias.

Page 15: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Numa conversa o locutor posiciona-se e posiciona o outro, ou seja, quando falamos, selecionamos o tom, as figuras, os trechos de histórias, os personagens que correspondem ao posicionamento assumido diante de outro que é posicionado por ele. As posições não são irrevogáveis, mas continuamente negociadas (PINHEIRO, 2000, p.186).

Antes das entrevistas propriamente ditas, tivemos um momento de apresentação

da proposta de pesquisa e um esclarecimento coletivo com os sujeitos que foram

indicados em meados de setembro. Foi um momento importante, principalmente porque

se deu em grupo, evitando possíveis fantasias quanto aos objetivos da pesquisa.

Explicamos exaustivamente os passos, as motivações e como a experiência de cada um

seria fundamental na compreensão das intercessões entre a realidade de rua e o álcool.

As entrevistas ocorreram no final de setembro e transcorreram de forma

tranqüila, sem grandes contratempos. Tivemos apenas que remarcar uma delas por conta

da indisposição de um dos entrevistados. Todas tiveram duração de, aproximadamente,

uma hora e aconteceram nas dependências da própria Fraternidade.

1.5) Análise dos dados

A partir dos dados colhidos através das entrevistas, realizamos o procedimento

de análise semiótica, segundo a qual “[...] o processo de interpretação é concebido,

aqui, como um processo de produção de sentidos. O sentido é, portanto, o meio e o fim

de nossa tarefa de pesquisa” (LIMA e SPINK, 2000, p. 105). Ou seja, não há separação

entre o momento da coleta de dados e o da interpretação destes. A interpretação, assim,

faz parte do processo de pesquisa, visto que a objetividade buscada perpassa o âmbito

da intersubjetividade. Dessa forma, reconhecemos a possibilidade de produção de novos

sentidos influenciados pelas discussões entre os sujeitos entrevistados.

Utilizado esse método, efetuamos uma leitura dos conteúdos, buscando captar os

sentidos para, só a partir daí, realizar uma classificação dos dados coletados, ou seja,

não buscaremos encaixar os dados em uma classificação existente a priori. Mesmo que

haja tematizações pré-existentes, advindas da escolha de um determinado referencial

teórico, estas não se propõem a servir de enquadre para os dados coletados, uma vez que

“há um confronto possível entre sentidos construídos no processo de pesquisa e de

Page 16: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

interpretação e aqueles decorrentes da familiarização prévia com nosso campo de

estudo (nossa revisão bibliográfica) e nossas teorias de base” (ibidem, p. 106).

Após o surgimento das categorias – a citar: construção da subjetividade do

morador de rua, a realidade da rua e o sentido do álcool -, trabalhamos com mapas de

associação de idéias. “Utilizamos categorias para organizar, classificar, e explicar o

mundo. Falamos por categorias” (MENEGOM e SPINK, 2000, p.78). Estes

correspondem a uma espécie de tabela em que os conteúdos são organizados de acordo

com as categorias, sem que se perca a ordem das falas, a fim de preservar o contexto no

qual surgiram.

O aprofundamento e a análise do material empírico serão temas do último

capítulo desta monografia. Na ocasião, faremos as devidas descrições, bem como as

problematizações e as relações com a teoria apresentada.

Page 17: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

2) A REALIDADE DOS MORADORES DE RUA E SUA

VIVÊNCIA COM O ÁLCOOL: CONCEITUANDO

Neste capítulo, temos por objetivo discorrer sobre os fenômenos do alcoolismo e

dos moradores de rua. Ambos possuem suas especificidades e, nem sempre, estão

atrelados um ao outro. É nesse sentindo que discorreremos sobre as repercussões do

álcool como substância, numa abordagem biopsicossocial. Na seqüência, trataremos do

fenômeno dos moradores de rua – tentando compreender sua antropologia, a partir da

dicotomia da experiência entre o público e o privado.

2.1) O álcool em uma perspectiva biopsicossocial

Historicamente, o tratamento dispensado às drogas, em geral, centrou atenção

particularizada como um fenômeno de base unicamente orgânica. Diante da limitação

de tal modelo biomédico, foi necessário compreender como fatores psicológicos,

culturais e sociais somariam esforços na compreensão de por que o homem faz uso de

certas substâncias entorpecentes, chegando, por vezes, a prejudicar seu próprio modo de

vida. Tais prejuízos foram aglomerados em torno das chamadas “teorias da adição”.

Nestas, segundo West (apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 31), “o indivíduo

apresenta prejuízos de saúde, psicológicos e sociais, e tem sua liberdade de escolha

violada”. É uma primeira forma, ainda abrangente, de abordar as repercussões negativas

do abuso de drogas.

Entretanto, não queremos cair em um outro extremo, que seria a recusa de uma

abordagem fisiológica. Vale ressaltar que a ação da droga no organismo funciona,

prioritariamente, por reforço positivo, visto seus efeitos estimulantes (WISE;

BOZARTH apud FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.31). O reforço positivo é

responsável pelo sustento do hábito por conta de estados agradáveis – em geral, euforia

e prazer - ao organismo. Tais efeitos são cruciais no estabelecimento da dependência. A

dopamina é o principal neurotransmissor das vias de recompensa cerebral (mesolímbica

e mesocortical), atuando, primordialmente, no núcleo accumbens do cérebro. Eis o ciclo

do processo de recompensa. Outra característica que aumenta a influência orgânica da

droga é seu caráter difuso, ou seja, ela atua em diversas regiões do Sistema Nervoso

Central (SNC) (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 32-33).

O estudo de drogas lícitas e ilícitas, por vezes generalizado, acoberta as

especificidades de cada substância. Cuidaremos, então, do álcool como produtor de

Page 18: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

reações psicofisiológicas específicas, bem como inserido em um código cultural

também peculiar. Em termos populacionais, os dados apontados por Julião e Niel (2006,

p. 135) nos chamam a atenção, uma vez que:

O alcoolismo figura entre os dez principais problemas de saúde pública no mundo, sendo a quarta doença mais incapacitante, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde. De acordo com dados do CEBRID (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas) de 2002, o álcool é a substância psicoativa mais utilizada no Brasil, e o seu uso durante a vida variou de 53% na região norte a 71,7% na região sudeste. Com relação à dependência de álcool, a prevalência entre homens é de três a quatro vezes maior que entre mulheres.

No tocante aos aspectos culturais, podemos observar que o álcool é uma droga

lícita e socialmente aceita, sendo o seu uso considerado aceitável e, por vezes,

estimulado. Ademais, vale ressaltar o fácil acesso e baixo custo, aliado à falta de

fiscalização quanto à proibição da venda para crianças e adolescentes.

Quando nos referimos ao álcool, fica implícito que nossa real intenção é abordar

os fenômenos decorrentes da exposição de sujeitos a essa substância. O álcool, em si, é

de fácil definição. Do ponto de vista da Química, o álcool consiste em “um composto

orgânico em que um átomo de H, de um alcano, é substituído por um grupo hidroxila,

OH”7. Desta constatação, verificamos ainda que há uma subdivisão da substância álcool

em alguns subprodutos, entre os mais conhecidos temos o metanol e o etanol. Seus

principais usos são como reagentes químicos e na para produção de combustíveis

diversos.

Nosso interesse estará voltado para as reações do etanol. Este é obtido,

principalmente, a partir da fermentação dos açúcares de frutas, com destaque para a

cana-de-açúcar. O etanol é o álcool encontrado em bebidas, sendo sua concentração

variável de 4% a 50%. Esta concentração varia de acordo com a fermentação ou

destilação da bebida. Citamos como exemplo a cerveja e a cachaça, respectivamente.

Bebidas apenas fermentadas não apresentam um teor alcoólico muito elevado. Já as

destiladas, como cachaça e uísque, apresentam alto teor alcoólico. Como já havíamos

antecipado, nosso foco central não está na substância em si, mas nos efeitos que esta

produz no comportamento humano.

7 http://www.quiprocura.net/alcool.htm (acessado em 25/06/06)

Page 19: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Quanto à sua Psicofisiologia, podemos afirmar que o álcool atua como agente

depressor no cérebro, na parte do sistema nervoso central (SNC). Quando este afeta o

SNC, há uma sensação de euforia por parte do indivíduo (geralmente atrelada ao

sentimento de desinibição); efeito que logo se atenua e torna-se depressivo quando o

efeito da droga sucumbe. Depois de ingerido, o álcool é absorvido pelas paredes

intestinais e vai se metabolizar no fígado (SILVA, 2000, p. 15).

Outro enfoque que podemos dar ao nosso estudo é sobre a evolução histórico-

antropológica do conceito de álcool. Segundo Bessa e Gigliotti (2004, p. 11),

O álcool é uma substância que acompanha a humanidade desde seus primórdios e sempre ocupou um local privilegiado em todas as culturas, como elemento fundamental nos rituais religiosos, fonte de água não contaminada ou ainda presença constante nos momentos de comemoração e de confraternização, quando se brinda a todos e a tudo. [...] Através da história, o álcool tem tido múltiplas funções, atuando como veículo de remédios, perfumes e poções mágicas e, principalmente, sendo o componente essencial de bebidas que acompanham os ritos de alimentação dos povos. Faz parte do hábito diário de famílias em todo o mundo, servindo de alimento e de laço de comunhão entre as pessoas.

Silva ainda acrescenta:

Historicamente, o uso do álcool data de 8000 a.C. quando na idade paleolítica era extraído do mel. Somente nos anos 6400 a.C. é que a cerveja e o vinho começaram a ser feitos. O abuso de álcool, contudo, tem acontecido desde o momento em que ele foi inventado. Em sociedades ocidentais atualmente estas bebidas são consumidas sem controle (2000, p. 15).

Nesse sentido histórico, o álcool ocupou significados diversos, desde integrante

de confraternizações familiares e selador de acordos entre governos até propulsor de

festas orgiásticas e bacanais. Diante dos comportamentos atuais, frutos de exposições

exageradas a essa substância, observamos que houve uma mudança considerável na

forma da sociedade lidar com ela. O mesmo vinho que outrora simbolizava a comunhão

agora divide espaço com a representação do consumo arbitrário desestruturador de

famílias. “Gradativamente, o que era pecado foi se tornando crime e, mais

Page 20: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

recentemente, doença” (MOREIRA; SILVERIA, 2006, p. 4). O que se observou então

foi, principalmente na sociedade ocidental, uma passagem do liberalismo exagerado

para uma interdição total, isso no que diz respeito às drogas ilícitas. A intolerância é um

aspecto em destaque.

Ainda no sentido histórico, quanto ao aspecto legal, o consumo de várias

substâncias psicoativas foi proibido no Ocidente – inclusive o álcool – mais

notadamente nos Estados Unidos, onde passou de 1919 a 1933 por um período de

ilegalidade8. Outrora tratados como fármacos, componentes de rituais religiosos e outras

conotações, as drogas, nesse período, assumiram novos valores sociais, culturais e

morais na sociedade. Segundo Escohotado (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 9),

são “as atitudes sociais que determinam quais as drogas são admissíveis e atribuem

qualidades éticas aos produtos químicos”. Paradoxalmente, a proibição nos EUA gera

também um aumento exacerbado no consumo. A repressão torna-se um estímulo. Ainda

segundo Silveira (apud ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12), este foi “o único momento

da história onde, em conseqüência da dificuldade de acesso a bebidas alcoólicas, foram

registrados casos de uso de álcool injetável”. Porém, o modelo europeu, diante do fato

da ineficácia das práticas proibitivas, resolveu adotar novas formas de abordar o

problema, incluindo a flexibilização no trato com a temática (MAIEROVITCH, apud

ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p.14)

Acrescentamos ainda a apropriação econômica como fator que determina,

sobremaneira, certa droga como lícita ou ilícita. Por sua vez, tal escolha não é, como

muitos pensam, pautada em determinações científicos. Basta observamos que o uso do

cigarro de nicotina, consumido na mesma proporção ao de maconha, é muito mais

prejudicial à saúde do indivíduo. Para fugirmos da querela religiosa ou moral,

corroboramos com Araújo e Moreira (2006, p. 9) quando afirmam que:

Cabe ao entendimento histórico desmistificar os preconceitos, sejam estes de caráter repressivo ou libertário, por meio de uma análise cronológica e comparativa capaz de abandonar conceitos maniqueístas, em busca de subsídios que permitam a construção de uma nova consciência coletiva.

8 “Nos Estados Unidos, este ciclo (em relação ao período de intolerância ao uso de substâncias psicoativas) iniciou com a perseguição ao ópio em forma de fumo na Califórnia na década de 1870, passou pela campanha contra a cocaína e a primeira leia contra ela - o chamado Harrison Act, assinado em 1914 – e culminou na aprovação de um dispositivo legal que proibia a venda, distribuição e consumo de bebidas alcoólicas em todo território americano: o Volstead Act, mais conhecido como Lei Seca, que vigorou de 1919 a 1933”. (ARAÚJO; MOREIRA, 2006, p. 12)

Page 21: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Segundo Bessa e Gigliotti (2004), o alcoolismo só começou a ser visto como

doença em meados do século XVIII, após a Revolução Industrial, diante do aumento da

produção e da comercialização do álcool. Estudiosos como Benjamim Rush e Thomas

Trotter começaram a pensar a exposição freqüente ao álcool como um problema que

merecia a atenção das autoridades e, principalmente, da medicina da época. Pensado

então como doença, o alcoolismo pode ser assim considerado quando o usuário

apresenta, basicamente, três características: tolerância, abstinência e perda de controle.

Entendemos o conceito de tolerância como

[...] a necessidade de doses cada vez maiores de álcool para que exerça o mesmo efeito, ou diminuição do efeito do álcool com as doses anteriormente tomadas; e por síndrome de abstinência um quadro de desconforto físico e/ou psíquico quando da diminuição ou suspensão do consumo etílico (BESSA e GIGLIOTTI, 2004, p.12).

Outra diferenciação importante para o nosso estudo diz respeito às noções de

uso, abuso e dependência de álcool. O primeiro refere-se à exposição “moderada” às

substâncias que contenham etanol. Já o abuso consiste em “padrões de uso patológico e

prejuízos nas funções sociais e ocupacionais relacionados ao uso, e para a categoria de

dependência, além disso, exigia a presença de tolerância ou de abstinência” (BESSA e

GIGLIOTTI, 2004, p. 12). Anteriormente era utilizada a nomenclatura “vício”, que

passou a ser substituída por “dependência” pela conotação moralista da primeira

(SILVA, 2000, p. 13). “Um dos elementos essenciais na caracterização de uma

dependência é a perda de controle de consumo de uma substância” (MOREIRA;

SILVEIRA, 2006, p. 4). Entendemos também que a dependência não seja induzida pelo

uso agudo, mas sim pelo uso repetido do álcool (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p.

33). Vale ressaltar que estamos interessados no estudo do abuso, em detrimento ao uso

ou à dependência.

Apesar dessas acepções, para alguns autores, como Karam (2003), a definição

precisa do que viria a ser o alcoolismo ainda é algo distante. Ao analisar o CID-10

(Classificação Internacional de Doenças), o autor verifica que “apenas o delirium

tremens continua sendo a única forma clínica indiscutível de alcoolismo” (KARAM,

2003, p. 469). A Síndrome de Abstinência de Álcool (SAA) é ocasionada quando

pacientes de uso prolongado de álcool diminuem a ingestão ou param de beber.

Page 22: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Os sinais e sintomas mais comuns são: tremores, taquicardia, hipertensão arterial, náuseas, vômito, ansiedade, agitação psicomotora e alteração do humor (irritabilidade e disforia). Podendo evoluir para um quadro de delirium tremens, cursando com confusão mental, alucinações, idéias deliróides e hipertemia. Convulsões tônico-clônicas generalizadas também podem ocorrer (DI PIETRO, 2006, p. 148).

Teremos também que fazer uma distinção conceitual entre alcoolismo e

alcoolização. O primeiro se refere ao comportamento de abuso de álcool, já o segundo

diz respeito ao ato de alcoolizar algo ou alguém; no nosso entender, aproxima-se do

conceito que já apresentamos de uso de álcool.

Diante de todos esses conceitos provenientes, em suma, de um referencial

biomédico de processo de saúde-doença, é importante atentarmos que a tradição no

estudo do alcoolismo é biologizante, reduzindo ao organismo e às suas reações

fisiológicas todas as explicações sobre aquele (CAMPOS et al, 2004).

Ao contrário de um trato que privilegie a compreensão do processo de

alcoolização como causa-conseqüência, entendemos que uma intervenção mais

apropriada se dá na compreensão da relação que o sujeito estabelece com a substância.

Ou seja, não é o álcool em si que provoca alterações comportamentais indesejáveis9,

muito menos o sujeito, que tem distúrbios perturbadores. É do encontro que poderá

surgir algum tipo de descompasso. Para Moreira e Silveira (2006, p. 4), o padrão de

consumo decorre da interação de vários fatores, entre eles: o tipo de droga utilizada, as

características biológicas e psicológicas do usuário (cabe destacar que a dependência

também é compreendida a partir destes dois enfoques) e o contexto em que se dá o uso

de drogas (característica por demais negligenciada). Ou, nas palavras de Claude

Olivenstein (apud LESCHER; LOUREIRO, 2006, p. 22), de que “o fenômeno se

organiza a partir de uma tríplice conjunção de fatores: a subjetividade do indivíduo, as

características farmacológicas do produto e contexto sociocultural desse encontro”. A

conotação relacional pode ser melhor compreendida a partir de dados estatísticos que 9 Vale ressaltar que as propagandas contra substâncias entorpecentes, no geral, enfatizam a idéia de que o álcool, em si, pode provocar algum tipo de comportamento. Há um descompasso gritante entre a realidade midiática apresentada (supostamente generalizada) e o contexto vivenciado no cotidiano. Moreira e Silveira ainda acrescentam: “A exposição destas questões nos meios de comunicação, habitualmente, gera intensa mobilização popular. Mobilização sem orientação gera desespero, e a população fica desorientada diante de tantas informações. Atitudes extremas, originadas do medo, só fazem piorar a situação, minando fatores protetores como a qualidade da comunicação entre pais e filhos e o vínculo com instituições como escola, aumentando o risco para o abuso de substâncias” (2006, p.4).

Page 23: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

mostram que menos de 10% dos usuários de álcool e maconha vão se tornar

dependentes (MOREIRA; SILVEIRA, 2006, p. 6).

Silva (2000) aborda o desenvolvimento do alcoolismo através de fases. Na

primeira, denominada pré-alcoólica ou fase social, os sintomas ainda estão latentes. Em

seguida, temos a fase de tolerância (ver definição supracitada), com doses acentuadas, o

indivíduo chega ao terceiro momento, a chamada fase da necessidade. É neste período

que a droga serve como “cura” para a ansiedade, a depressão e o tédio.

Numa acepção genética, pesquisas apontam que filhos de pais alcoólatras,

quando adotados por pais não alcoólatras, terminam bebendo ou com qualquer tipo de

dependência química (GOODWIN apud SILVA, 2000, p. 19). Entretanto, não podemos,

a partir destes dados, inferir argumentos pseudocientíficos que “condenam” filhos de

alcoólatras a se submeterem ao mesmo tipo de comportamento. “Assim como para

outras doenças psiquiátricas, a variância genética para o comportamento pode explicar

no máximo metade da variância fenotípica, sendo a outra metade atribuída aos fatores

ambientais” (FORMIGONI; QUADROS, 2006, p. 35).

2.2) Morador de rua: a problemática do público e do privado

Após as devidas contextualizações quanto aos aspectos biopsicossociais do

uso/abuso de álcool, nos deteremos em problematizar a realidade dos moradores de rua.

Segundo Justo e Nascimento (2000, p.3), “Em nossa pesquisa sobre o fenômeno da

errância na sociedade contemporânea, constatamos, preliminarmente, que o uso do

álcool é bastante acentuado entre os ‘trecheiros10’".

Partiremos das relações entre o público e o privado no cenário da sociedade11

brasileira (discutiremos como entram em choque na realidade dos moradores de rua)

para pensarmos tal questão. Os mitos, ritos, significados, sentidos, afetos, impressões

sobre o espaço domiciliar contrastados com os do espaço público produzem ricas

compreensões. Principalmente quando observamos que as contradições afetivas e

comportamentais presentes entre a casa e a rua são experenciadas, por vezes, por um

mesmo sujeito. DaMatta (1997, p. 19) acrescenta: 10 Nomenclatura atribuída aos moradores de rua que enfatiza o seu caráter transeunte. 11 Corroboramos com a idéia de DaMatta quando o autor afirma: “A idéia de sociedade que norteia este livro [ensaio], portanto, não é aquela da sociedade como um conjunto de indivíduos, como tudo mais sendo um mero epifenômeno ou ocorrência secundária de seus interesses, ações e motivações. Ao contrário, a sociedade aqui é uma entidade entendida de modo globalizado. Uma realidade que forma um sistema. Um sistema que tem suas próprias leis e normas” (1997, p. 13)

Page 24: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Conforme vai surgir repetidamente em todos os ensaios que formam este livro, é possível ‘ler’ o Brasil de um ponto de vista da casa, da rua e do ângulo do outro mundo. E mais: essas possibilidades estão institucionalizadas entre nós. Não se trata de uma mera variação empírica, dessas que ocorrem na Inglaterra, Espanha ou Pasárgada [...]. Leituras pelo ângulo da casa ressaltam a pessoa. São discursos arrematadores de processos ou situações.

Neste trabalho, discorreremos sobre as representações vigentes da rua como

espaço público; e da casa como espaço privado; das inversões existentes e, sobretudo,

das sobreposições, ou seja, quando a casa e a rua coincidem. Tal coincidência pode ser

observada na situação dos moradores de rua. Estes sujeitos habitam, em sua maioria, as

ruas das grandes capitais brasileiras. Chamamos de ruas as pontes, praças, calçadas,

entradas de igrejas e todos os outros locais onde observamos a habitação dessas pessoas.

DaMatta, na mesma obra, explicita os meandros da casa em oposição ao espaço

da rua. Entretanto, em nenhum momento, atenta para quando estes mundos – no âmbito

físico e simbólico – coincidem. Esta reflexão proporá exatamente esta investigação.

Deter-nos-emos em três momentos, a citar: a) quando casa e rua são espaços

completamente distintos; b) quando a casa e a rua “confundem” seus papéis, ou seja, na

ocorrência de inversões simbólicas pontuais; e c) quando a casa e a rua se fundem

concretamente, situação que analisaremos a partir da vivência dos moradores de rua. “O

segredo de uma interpretação correta do Brasil jaz na possibilidade de estudar aquilo

que está ‘entre’ as coisas” (DAMATTA, 1997, p. 25).

2.2.1) A casa e a rua: “cada qual no seu canto”

Esta acepção, na qual o espaço domiciliar e o espaço público são tidos como

diametralmente opostos, talvez seja a mais corriqueira, até porque é a mais presente no

senso-comum. Neste sentido, a casa é o oposto à rua. O que é dito, feito e até pensado

em casa não se repete na rua e vice-versa. A noção de papéis sociais cabe bem para

entendermos tal significação, já que os roteiros estão previamente escritos, cabendo aos

atores apenas sua “interpretação”. Nesse sentindo, está previamente determinado o que

deve/pode ser dito e feito dentro de casa e o que pode ser desempenhado (fazendo

alusão à nomenclatura teatral) no espaço da rua.

Page 25: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

A partir da moral, podemos também compreender as diferenças existentes entre

a casa e a rua. É comum observarmos que certos temas são próprios do lar, como os

demais ficam execrados ao espaço público. Sexo, religião, política e outros assuntos

“polêmicos” são dedicados, quase exclusivamente, à rua. A casa é o lugar dos consensos

e a rua o espaço dos conflitos. “Sabemos que em casa podemos fazer coisa que são

condenadas na rua” (DAMATTA, 1997, p. 20).

O enfoque do anonimato pode nos esclarecer também sobre as nuanças

existentes entre esses espaços. Na casa todos são chamados pelo nome, possuem uma

história, são “personalizados”. Ao contrário, na rua, há um anonimato quase que

generalizado. Não há reconhecimento das pessoas como pessoas, no sentido de um

contato mais próximo. Na rua, todos são “apenas mais um”. No espaço doméstico,

mesmo que alguém não componha determinada família, a categoria de “visita” já o

destaca, concedendo-lhe visibilidade.

Quanto ao cuidado despendido, podemos encontrar um maior esmero em relação

à casa em detrimento ao espaço público. Em geral, preocupamo-nos em demasia com a

limpeza, organização e manutenção do domicílio, mas relegamos a segundo plano

quando pensamos que também somos responsáveis pelos espaços coletivos. “Limpamos

ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimônia ou pejo...” (DAMATTA, 1997, p.

20). Importante concebermos tal representação como uma produção cultural, evitando

naturalizações descabidas que partem para análise da sociedade brasileira como se

houvesse um “código genético” natural a ser decifrado.

Existem também certos códigos/normas que são próprios de cada espaço. Os

códigos da casa, por exemplo, são fundados, prioritariamente, na amizade, na lealdade,

na pessoa, no compadrio. Já os códigos da rua são baseados em leis universais, num

formalismo jurídico-legal, na impessoalidade (como já apontamos). Os conflitos podem

ser deflagrados quando esses códigos não são reconhecidos ou, por opção ou omissão,

são desrespeitados. A partir daí, o judiciário é acionado, a mídia explicita o equívoco

ou, simplesmente, a própria comunidade local trata de penalizar o “infrator”.

Não dormimos na rua12, não fazemos amor nas varandas, não comemos com comensais desconhecidos, não ficamos nus em público, não rezamos fora das igrejas etc. Os exemplos, conforme sabe o leitor, são legião. Ora,

12 Interessante perceber que DaMatta exemplifica o “não dormi na rua” como ação incomum; e realmente o é em termos gerais. Entretanto, os dados (ALCÂNTARA, 2004) evidenciam que cada vez mais há uma defasagem do sistema habitacional, ocasionando uma legião de pessoas que tem a rua como sua morada.

Page 26: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

a festa (do carnaval) promove precisamente os deslocamentos destas atividades dos seus, digamos, “espaços normais”. Isso, então, permite a sensação de um tempo louco, notavelmente lento ou, como ocorre com o nosso carnaval13, uma temporalidade acelerada, vibrante e invertida (DAMATTA, 1997, p.41 e 42, grifo nosso).

2.2.2) Invertendo os papéis: quando casa e rua se “confundem”

Entre os extremos de entendermos a rua como espaço simbólico diametralmente

diferente da casa e de entendermos a sua sobreposição, temos ainda a ocorrência de

situações nas quais pequenas permutas ocorrem, confundindo, temporariamente, o que é

próprio da rua em casa e vice-versa.

No geral, quando estas trocas ocorrem, alguns conflitos podem ser deflagrados.

Em nossos tempos, essas limitações estão cada vez mais tênues. O trabalho realizado

em casa é um exemplo categórico. Diante da crescente demanda por trabalhos via

internet, perde-se a razão de ter um local de trabalho. A casa, nestes termos, assume a

dupla função de lar e de espaço de trabalho. A flexibilização temporal é apontada, com

positividade, como uma grande característica deste tipo de relação laboral. Entretanto,

não há uma demarcação de tempo também para os afazeres domésticos, o lazer e, acima

de tudo, para o ócio. A inversão temporal, não só espacial, marca esse tipo de relação.

Podemos compreender também o nepotismo como uma das manifestações em

que os “códigos da casa” (agora em termos essencialmente simbólicos) são levados para

o espaço público. É cultura da família a preferência pelos seus. O critério é basicamente,

além do vínculo sanguíneo, o afeto peculiar despendido para um determinado membro

(agregados e pessoas próximas da família também entram neste critério). O problema –

e o encaramos com tal – é quando esse tipo de relação extrapola o espaço doméstico e

passa a gerir uma determinada parte da esfera pública. Ao invés do mérito, do

merecimento, do esforço e do reconhecimento, mede-se, promove-se ou demite-se pelo

discernimento se há parentesco com alguém que detenha poder na instituição.

Retornando a problemática da casa como espaço físico, podemos afirmar

também que a casa possui espaços com significações semelhantes às da rua. São as

13 DaMatta cita o carnaval como uma produção cultural na qual essas inversões de tempo, espaços, papéis sociais, entre outros, apresentam grande visibilidade. Para maior aprofundamento, ver obra do autor sobre o tema: DaMatta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis - Para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Page 27: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

varandas, amplas janelas para o exterior, salas de visita, quintais, jardins... Espaços

esses que ora assemelham-se ao espaço da rua – ocorrência de festas, mudança na

linguagem, menos zelo – e ora são readmitidos à dinâmica doméstica. “Mas, assim

como a rua tem espaços de moradia e/ou de ocupação, a casa também tem seus espaços

‘arruados’” (DAMATTA, 1997, p.56). Não observamos, na obra do antropólogo, o

desenvolvimento da noção que o espaço público e o privado se encontram intimamente

imbricados. Faremos tal discussão no tópico a seguir.

2.2.3) A casa e a rua se fundem: a experiência dos moradores de rua.

A miscigenação, a pluralidade cultural, o sincretismo religioso, a enorme

extensão territorial, as contradições sócio-políticas entre norte e sul do país; todas essas

variáveis nos indicam que qualquer tentativa de explicação da sociedade brasileira

pautada em homogeneidades estará fadada ao fracasso. Muito além das polaridades (do

“isso ou aquilo”), nossa sociedade é baseada, sobretudo, nas coincidências (no caso, “o

isso e aquilo”).

O candomblé é a expressão da união entre a umbanda e o catolicismo, a capoeira

nasceu de um jogo-luta, a feijoada foi concebida a partir da “mistura dos restos” da casa

do senhor de engenho, o caboclo nasce do encontro entre brancos e índios e o morador

de rua como a figura representativa da fusão entre espaço público e privado. É claro que

tal fusão, muito mais que uma produção eminentemente cultural, tem suas

determinações econômicas. Muitos dos moradores de rua (a maioria) desgarraram-se de

suas famílias por conta do desemprego, de conflitos intrafamiliares e, sobretudo, por

conta da dependência química, em especial o álcool (SERRANO, 2004).

Essas características – que permitem o encontro de variáveis aparentemente

diferentes - extrapolam ainda nas produções dos símbolos culturais. Os espaços e

tempos também se fundem e confundem, gerando novas possibilidades de socialização.

É assim que observamos nas arquiteturas (arranha-céus dividem espaços com

construções da época do barroco) e, com ênfase acentuada, nas práticas e nos discursos

políticos. Os coronelismos e currais eleitorais coexistem com discursos tidos como

“progressistas”, como a participação popular e o controle do aparelho público.

Retomando a aparente dicotomia entre a casa e a rua, é notório que a situação do

morador de rua inverte a noção de um espaço público e um outro privado. Estes se

confundem de tal forma que fica difícil estabelecer qualquer delimitação. A dificuldade

Page 28: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

de compreensão está no âmbito de quem está fora, observando, mas, sobretudo, do

ponto de vista de quem vivencia a situação de rua. Como falar em privacidade, limites

(físicos ou simbólicos) em espaços como esses? Como pensar a higiene, o lugar de

dormir, de comer, de estar e de sair, se todos já estão “fora”?

Além do espaço, o tempo é outra categoria fundamental para entendimento dessa

imbricação. A rua possui uma lei própria, dotada de códigos de sobrevivência claros e

rígidos. Assim, a noite não é só um tempo de descanso, mas também o momento de se

proteger, “um olho no gato e o outro no peixe” (SERRANO, 2004, p.30). Por isso,

observamos, com tanta freqüência, pessoas que dormem em plena luz do dia. Há uma

inversão temporal. A noite representa, além do momento de autoproteção, o instante de

receber ajuda (os conhecidos “sopões”), de trabalhar (no caso dos catadores de lixo) e,

quiçá, de cometer algum tipo de delito.

Um outro tipo de paradoxo que consideramos bastante fértil diz respeito ao

caráter de transitoriedade em contraponto ao significado da rua como espaço de morada

fixa. Talvez esta seja a maior contradição, tanto em termos de representação como de

fato, quando pensamos o que significa uma pessoa habitar um logradouro qualquer.

Como já apontamos alhures, o que é próprio da passagem e do itinerante torna-se, na

situação do morador de rua, algo permanente. Entretanto, essa permanência alterna-se

ainda com a mobilidade, criando uma situação complexa, na qual tipos de pensamentos

polares não dão conta de explicar o fenômeno.

Além de transitório ou permanente, DaMatta trata dos sentidos vinculados aos

espaços públicos também como eternos ou provisórios. “Mas nossos espaços nem

sempre são marcados pela eternidade. Há também espaços transitórios e problemáticos

que recebem um tratamento muito diferente” (DAMATTA, 1997, p. 45). A igreja, o

paço municipal, as praças históricas - entre outras peças arquitetônicas que compõem os

cenários das grandes cidades - são entendidas a partir de “representações eternas”, ou

seja, há um caráter histórico que os legitimam como peças fundamentais de certo centro

urbano. Daí decorrem os movimentos de revitalização, preservação, tombamento e as

demais ações que visam conservar a “matriz sócio-cultural” de uma determinada urbe.

Esta noção também é questionada a partir da instalação dos moradores de rua. Há uma

“provisoriezação14 do eterno”. Aquilo que outrora era de uma esfera quase sagrada

agora foi “banalizada”, tornou-se provisório.

14 Considerar o neologismo para fins metodológicos.

Page 29: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Em termos das conseqüências dessas diversas sobreposições entre o espaço da

casa e o espaço da rua, consideramos que a principal é a invisibilidade – uma vez que

não temos claro se alguém está transitando ou morando – e, por conseqüência, a

restrição da cidadania. Entendemos o conceito de cidadania muito além de uma mera

efetivação dos direitos políticos e sociais e o cumprimento das normas jurídico-sociais.

A cidadania, no nosso entender, deve estar pautada também na possibilidade de

expressão e participação, deslocando a noção da passividade do sujeito para a

necessidade de sua ação (PINHEIRO, 2006).

Os moradores de rua, em geral, além de não serem contemplados pelo poder

público e pela sociedade com benefícios básicos (como alimentação, saúde, educação e

própria moradia) também não se reconhecem como detentores dessas benesses. Vale

observar a inexistência de organizações de classe e outras formas de mobilização. Não

estamos afirmando que a descrença na exeqüibilidade dos direitos sociais é própria

dessa camada da população. Estamos afirmando, sim, que tal realidade se agrava, por

questões culturais, educacionais e de outras ordens.

Se quisermos aprofundar a temática da rua como espaço socialmente construído

de exclusão social, basta nos reportarmos aos vários provérbios e expressões populares

que denotam bem tal conotação15. “Quem quer se perder se cria asas” induz pensarmos

na rua como lugar de perdição, como se “criar asas”, ou seja, sair de casa fosse

indicativo de atos moralmente condenáveis. “Vá para o olho da rua” aponta o espaço

extrafamiliar como sendo do castigo e do menosprezo, uma espécie de “inferno na

terra”. A rua assume o lugar do tenebroso, que oferece perigo. Já o dito “estou na rua da

amargura” é expressivo para demonstrar o caráter pejorativo que a rua assume em certos

contextos.

Ao contrário, a casa é percebida, também a partir de determinados provérbios,

como lugar do acolhimento, da segurança e do conforto. Basta lembrar como nos

referimos quando nos sentimentos bem em certo lugar: “estou me sentindo em casa”; ou

quando atrelamos ao espaço laboral uma conotação positiva: “este trabalho é minha

segunda casa”. Desta forma, questionamo-nos como os moradores de rua se situam

nesse emaranhado de sentidos, uma vez que são extirpados de referências imediatas de

domicílio. Cabe destacar o imediato, visto que a inexistência de um lugar de morada

não retira deles a representação de lar, muito menos a apropriação de certos códigos

15 Fonte: http://www.deproverbio.com/DPbooks/VELLASCO/COLETANEA.html. (Acessado em 19/11/2006).

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semióticos; no sentindo de que o fato de não possuírem uma residência não os furta de

uma representação de domicílio.

Podemos ainda falar da apropriação da casa e da rua em termos afetivos. A casa

pode ser distinguida como lugar da calmaria, do repouso, da recuperação, da

hospitalidade, do carinho e de todos esses adjetivos que circunscrevem a casa como

lugar onde as pessoas, no geral, gostam de estar. A rua é o diametralmente oposto. Ela

é, sobretudo, o lugar do perigo, principalmente na contemporaneidade em que a

violência se tornou pauta permanente dos veículos de comunicação. Por ser um espaço

prioritariamente de trânsito, poucos se preocupam em fazer da rua um lugar aprazível,

como se vê no âmbito doméstico.

Tudo isso revela gritantemente como o espaço público é perigoso e como tudo que o representa é, em princípio, negativo porque tem um ponto de vista autoritário, impositivo, falho, fundado no descaso e na linguagem da lei que, igualando, subordina e explora. O ponto crítico da identidade social no Brasil é, sem dúvida, o isolamento (e a individualização), quando não há nenhuma possibilidade de definir alguém socialmente por meio de sua relação com alguma coisa (seja pessoa, instituição ou até mesmo objeto ou atividade). Nada pior do que não saber responder à tremenda pergunta: ‘Afinal de contas, de quem se trata?’ (DAMATTA, 1997, p. 59).

O antropólogo conclui um pensamento já apontando outro de igual

relevância. Paripasso à conotação de invisibilidade dos moradores de rua,

observamos ainda a significativa situação de anonimato em que essas pessoas se

encontram. São sujeitos que, do ponto de vista da identidade, nem são reconhecidos

– seja como cidadãos ou até mesmo como pessoa – pela sociedade que os cerca.

Esse grau de anonimato chega a tal ponto que muitos não possuem sequer carteira

de identidade ou outro documento identificatório (SERRANO, 2004). Em estágios

mais acentuados (que não são tão incomuns) esse anonimato pode levar aos quadros

de transtornos mentais severos ou outros tipos de debilidades.

2.3) Algumas palavras sobre o morador de rua

Antes de referenciarmos o que estamos concebendo por “morador de rua”, faz-se

mister localizarmos este fenômeno socialmente. Tal situação, na qual a privação ao

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direito social à habitação - vide Constituição Federal, Art. 5º (BRASIL, 1996) - é o

grande marco, não é exclusiva de países subdesenvolvidos. Cidades com grande

acúmulo de capital – como Tóquio, Los Angeles e Paris16 - também enfrentam sérios

problemas em relação aos bolsões de pobreza e, por conseguinte, a falta de moradia

adequada para suas populações.

A situação de extrema desigualdade social – abismo socioeconômico na divisão

de renda – gera, por sua vez, uma grave situação de exclusão social. Exclusão esta que

perpassa diversos níveis, desde a impossibilidade de acesso a uma variedade de espaços

(que, em nosso tempo, estão cada vez mais privatizados), até a não efetivação dos

direitos sociais básicos.

Apesar de limitada, a bibliografia especializada cita alguns termos comumente

utilizados para descrever essa população. São os mendigos, trecheiros, moradores de

rua, homens de rua, povo da rua ou população em situação de rua. Cada nomenclatura

implica algum enfoque em detrimento de outra ênfase. Por exemplo, “população em

situação de rua” enfatiza conotação de transitoriedade destas pessoas em relação à rua,

evitando, assim, uma naturalização e atentando para a-historidade deste processo. Já “o

mendigo” enfatiza o caráter de pedinte, alguém que mendiga (MATTOS apud

SERRANO, 2004, p. 23). Para os efeitos deste ensaio, estaremos nos referindo neste

estudo ao morador de rua, não nos interessando o caráter de mendicância em si. O que o

caracterizará, para nós, é a vivência de morar na rua, independente do período ou do

local específico.

É nessa configuração social que surge a pessoa do morador de rua. Extirpado, a

princípio, do seu direito à habitação (mas não só!), ele “perambula” por ruas e vielas

interessado na sua sobrevivência imediata. Além disso, a invisibilidade é outro aspecto

marcante dessa camada da população. Em geral, esses apenas são percebidos quando

cometem algum tipo de delito, atrapalham o trânsito ou exalam algum odor que chama a

atenção. Ou seja, a percepção é sempre norteada pelo negativo, pelo que falta. Até

órgãos oficiais, como o IBGE, não contabilizam nem possuem dados precisos sobre a

população que vive nesta situação.

Segundo estudos pontuais, como o da professora Maria Cecília Loschiavo dos

Santos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, chama a atenção o crescente

número de famílias que vivem na rua. Ademais, cerca de 86% da população é do sexo

16 Informação colhida em matéria do Jornal da USP. Acessado em 06/07/2006. http://www.usp.br/jorusp/arquivo/2004/jusp700/pag0405.htm

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masculino. Entretanto, apesar de prevalecer um perfil masculino, há uma participação

de sujeitos desde a infância até a terceira idade morando nas ruas, independente do sexo.

(ALCÂNTARA apud SANTOS, 2004, p.35). Ainda sobre o perfil desta camada

populacional:

Pesquisas sobre a situação dos moradores de rua da cidade de Chicago, por exemplo, revelam que mais de 70% dos moradores de rua tinham algum transtorno mental identificado, sendo que 16% apresentavam problema com álcool e 12% com drogas. Estudos sobre a morbidade entre essa população mostram que 25% dos homens que vivem em abrigos são esquizofrênicos e 36% preenchem critérios para o abuso de substâncias, sendo que nesta amostra observou-se que 40% apresentavam dano cognitivo (ibid., p.36).

De acordo com pesquisa realizada pela CNBB em 1994 (apud ALCÂNTARA,

2004), existem vários motivos que podem levar uma pessoa a “escolher” a rua como sua

morada. As razões variam desde migrantes que vinham em busca de emprego e se

defrontam com a miséria das grandes capitais, até pessoas que foram expulsas de sua

moradia pela carestia dos aluguéis, doentes mentais que perderam suas referências,

crianças e adolescentes que fogem da violência doméstica, desemprego estrutural, entre

outras.

São, em geral, excluídos de múltiplas formas: porque são pobres, porque não têm saúde, porque inspiram medo, porque ‘enfeiam’ a cidade, porque sua moral é considerada ‘duvidosa’... Freqüentemente há quem se queixe porque estão ‘ocupando um lugar público’, mas, na verdade, seu espaço é lugar nenhum. Por isso sofrem violência policial, frio etc.; quando morrem são enterrados como indigentes (CNBB apud ALCÂNTARA, 2004, p. 37).

A realidade dos moradores de rua já é marcada, em si, pela penúria e o descaso –

seja das autoridades competentes, familiares ou da sociedade como um todo. Além da

vivência concreta dessas pessoas, temos ainda uma série de representações pejorativas

que legitimam e, por vezes, impedem reflexões e proposições de alternativas para esta

população. O olhar dirigido aos moradores de rua mescla a “pena” (aquele sentimento

judaico-cristão que pelo simples fato de haver comoção já se está supostamente

implicado com uma dada realidade e, por isso, não é necessário ir além), o nojo (o mal-

Page 33: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

cheiro), o medo (o risco de assalto), o asco, a intolerância, o julgamento (“Como pode

um homem tão novo vagabundando no meio da rua?”) e tantos outros. O que há de

comum nesses sentimentos é a indiferença, a dessensibilização com outro que, por

motivos diversos, está numa situação de extrema vulnerabilidade social.

Estudos feitos por Mattos e Ferreira (2004) explicitam as representações sociais

que mais comumente circulam em relação aos moradores de rua, quais sejam:

“vagabundo, preguiçoso, bêbado, sujo, perigoso, coitado, mendigo” (p.2). Do ponto de

vista da identidade, o autor aborda o quanto essas representações pejorativas

influenciam negativamente o próprio movimento existencial dos moradores de rua.

Muitos destes atributos estão pautados numa concepção individualista, que

compreende que a “culpa” pela realidade da rua é exclusiva do sujeito. A

“culpabilização” é uma alternativa coerente com o nosso modo de produção capitalista,

que credita ao indivíduo todas as responsabilidades por seu possível sucesso ou

fracasso. Qualquer situação de dificuldade é “culpa” exclusiva da pessoa, já que ela tem

“todas as condições” de garantir seu progresso. A realidade é entendida, nesta

perspectiva, como pano de fundo, e não como condição de possibilidade (ou

impossibilidade) para o desdobramento de novas conjunturas.

O “psicologismo”, aliado à “culpabilização”, são instrumentos eficazes no

sentido da responsabilização unívoca do sujeito. A procura de nuanças da personalidade

que o tornam “desestruturado”, o estudo dos conteúdos inconscientes e outras investidas

“psicológicas” são no intuito de descobrir, no sujeito, as causas de seu desajuste e, por

sua vez, da sua condição de rua. As noções de normalidade e desvio são comuns neste

tipo de abordagem. Vemos este tipo de pensamento no estudo de Merton (apud JUSTO;

NASCIMENTO, 2000, p.4), no qual o autor afirma que compreende a:

[...] vida errante como uma estrutura social anômica. [...] a associalização decorre da falta de capacidade do sujeito para competir na sociedade em função de repetidos fracassos no mundo social. Snyder (1954) compreende o alcoolismo como uma conduta desviante e, nesse sentido, nos dizeres do autor, os alcoolistas são pessoas anômicas – desorganizadas, vazias, angustiadas, compulsivamente independentes e que desconhecem toda autoridade.

Estruturando melhor as representações com maior recorrência, Mattos e Ferreira

(2004) nos apresentam algumas delas. O morador de rua, então, é visto,

Page 34: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

prioritariamente, como vagabundo, ainda no sentindo da “culpabilização individual” por

aquela situação; como louco, pautado no senso comum e em uma histórica intervenção

psiquiátrica, sobretudo no período da criação dos grandes manicômios17; como pessoa

suja e maltrapilha, o discurso higienista é a tônica deste tipo de representação; como

pessoa perigosa, nesta acepção os códigos jurídicos deveriam manter o morador de rua

afastado, já que são, a priori, pessoas perigosas e, por fim, baseado no discurso

religioso, temos o morador de rua como “coitado”, digno de misericórdia. Nesta última

representação, é como se os moradores de rua estivessem pagando por seus pecados,

sendo então uma espécie de “estado de regeneração da alma”.

Fica evidente que em todas essas representações o caráter de mudança ou

questionamento não está presente. O que se tem são imagens que tentam dar sentindo à

realidade justificando-as e, por vezes, legitimando-as. Além da imobilidade social

causada por estas representações, temos ainda a repercussão nos próprios moradores de

rua, uma vez que tais pressupostos são compartilhados. A interiorização dessas vozes

impede mudanças, dificultando percepções e atitudes diferentes.

Por outro lado, a realidade pregressa dos moradores de rua é bastante reveladora

das motivações para a saída de suas casas, bem como para o abuso do álcool. Muitas

destas evidências serão melhor trabalhadas no tópico em que analisaremos as histórias

de vida pesquisadas. Justo e Nascimento mostram que “o desemprego, a falta de apoio

familiar e as desavenças conjugais são os principais motivos que levam os sujeitos a

romperem com a vida sedentária” (2000, p.4). Vemos então presentes na compreensão

do fenômeno uma variável estrutural e uma familiar, refutando o psicologismo de

outrora. Os autores ainda complementam:

O fenômeno da errância parece estar associado a um complexo de fatores que modelam o mundo contemporâneo. A globalização, a flexibilização do trabalho, a informatização e automação da produção, a substituição da sociedade industrial pela de serviços, a virtualização da realidade, a dispersão, o individualismo, a aceleração do tempo e a expansão do espaço têm exercido um papel considerável na desterritorialização do sujeito e na sua impulsão para o nomadismo (ibidem, 2000, p.11).

17 Para maior aprofundamento sobre os manicômios e o contexto higienista que ver: FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica, São Paulo: Perspectiva, 1978.

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Estas pesquisas tendem a enfatizar o abuso de álcool como uma “fuga da

realidade”, um mecanismo de defesa às adversidades vividas. Entretanto, encaramos tal

perspectiva legitimando uma visão de sujeito passivo, como se o abuso de álcool não

fosse, também, uma forma possível de enfretamento de suas questões existenciais. Nem

defendemos uma explicação causualista – em que os fatores “negativos” explicam o

nomadismo – nem visões de homem que prezam pela vitimização e/ou leitura deslocada

da realidade concreta.

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3) A LINGUAGEM EM AÇÃO: O MOVIMENTO DA

PALAVRA SIGNIFICADA NA CONSTRUÇÃO DA

SUBJETIVIDADE

3.1) A construção da subjetividade humana

Em nosso estudo, uma das categorias capitais para a compreensão do

comportamento de alcoolismo e da situação de rua é a subjetividade18. Isto porque quem

faz uso do álcool é um sujeito concreto - situado em uma realidade com igual

concretude – com uma vivência impregnada de sentidos e significados complexos.

Durante muito tempo a idéia de sujeito estava ligada à noção cartesiana, ou seja,

de ordem, integilibilidade e consciência. O sujeito que se postulava era o sujeito

racional, próprio de algumas correntes filosóficas da modernidade.

A idéia de um sujeito da razão, capaz de dominar o mundo e a si mesmo na produção de verdades universais, constituiu uma representação que se arraigou fortemente na cultura ocidental, mediando diferentes modelos de ciência, política, educação, assim como a produção do senso comum. (GONZÁLEZ REY, 2003, p.221).

A postulação de várias correntes psicológicas foi influenciada, direta ou

indiretamente, por essa noção do sujeito da razão. Daí o princípio da dicotomia

sujeito/objeto, já que um suposto sujeito cognoscente, dotado de razão, poderá ordenar o

mundo a partir do seu cogito.

A idéia de universalidade, base para essa noção de sujeito, permite a formulação

de idéias que são tomadas como verdades, uma vez que derivaram do método dito

científico. Para González Rey (2003), estas são erigidas como dogmas e apenas outras

idéias, dentro do mesmo sistema, podem refutá-la. A divisão estática do mundo em

“bom e mau” também é uma das decorrências desse sistema. Tudo que não advém do

sujeito da razão é descartado.

18 Apesar de González Rey (2003) fazer uma distinção entre subjetividade individual e subjetividade social, não entraremos nesta discussão. Uma vez que sendo, a subjetividade construída socialmente, nela se insere as dimensões do singular e do social.

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No outro extremo, González Rey refere-se a um grupo de autores pós-

estruturalistas franceses que postulam a morte do sujeito. Deste ponto de vista

decorreram também algumas escolas psicológicas, principalmente aquelas que

enfatizavam suas contribuições a partir do empirismo e da metafísica (GONZÁLEZ REY,

2003, p.222).

Ao contrário do que abordamos, compreendemos o movimento de construção

dessa subjetividade como uma interseção permanente entre o indivíduo e seu entorno.

Várias foram as dicotomias que nortearam a formação epistêmica da Psicologia como

ciência: o “confronto” entre sujeito e sociedade; o privilégio do aspecto intrapsíquico ou

do aspecto interpsíquico, para falar apenas dos principais e dos que trouxeram

influências mais significativas para a formação do pensamento psicológico.

Uma influência significativa foi a ênfase da psicologia em estudar os fenômenos

ditos “próprios da psiquê” ou meramente individuais. “A essa concepção dominante se

opôs o behaviorismo que ‘tirou’ a psique de dentro e a colocou ‘fora’, no

comportamento” (GONZÁLEZ REY, 2003, p.121). Entretanto, não se observava

movimentos no sentido da superação desta polarização. Ou se estudava o inconsciente, a

personalidade, as emoções (como reações fisiológicas), a motivação; ou se decompunha

o comportamento humano, em termos de análise funcional (congruente com o

positivismo vigente), para, assim, dar um caráter “científico” à Psicologia. Desta forma,

a Psicologia caminhou por grande parte do século XX.

Para Molon (2003), teóricos sucessores de Vygotsky perpetuaram as dicotomias

que o psicólogo russo tanto refutava. Para ela, a constante ênfase ora no funcionamento

intrapsicológico, ora no funcionamento interpsicológico é uma evidência desta cisão.

Van der Veer e Valsiner são apontados como os principais representantes que valorizam

o intrapsicológico. A noção de “cultura pessoal” é central na crítica de Molon. Esta

consiste “não somente ao fenômeno subjetivo internalizado (processo intrapsicológico),

mas às imediatas (centrado na pessoa) externalizações destes processos” (VALSINER

apud MOLON, 2003, p.51).

Enfatizando o aspecto interpsicológico, Molon aponta Wertsch como o maior

representante. Os conceitos de “níveis de intersubjetividade” e “definição de situação”

são apresentados como aportes da ênfase. Molon esclarece os termos afirmando que:

A definição da situação é o modo como se representam ou se definem os objetos e os acontecimentos em uma

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situação. E os níveis de intersubjetividade estão relacionados às diferentes maneiras de participação, compartilhadas pelos interlocutores em uma definição da situação (2003, p.54).

Molon apresenta a pesquisadora da UNICAMP, Luiza Bustamante Smolka, como

baloarte da ênfase que integra, de forma dialética, as dimensões intra e interpsicológica.

Nesse sentindo, a pesquisadora investe na dimensão semiótica, já que a constituição do

sujeito é marcada pelo outro e, sobretudo, pela palavra. A polissemia da palavra está

intrinsecamente ligada ao sentido subjetivo. Alteridade e dialogia são moleculares nessa

nova compreensão (MOLON, 2003, p.57).

Entretanto, o sujeito não é um mero signo, mas tem o que dizer, sentir, agir,

pensar. Ele é então construído nas e pelas relações sociais. É uma “multiplicidade na

unidade” (MOLON, 2003, p.115).

A autora apresenta a teoria sociointeracionista como facilitadora deste

pensamento que integra aspectos intra e interpsicológicos da constituição do psiquismo.

Noções como interação e mediação se apresentam como basilares. Por interação,

compreendemos mais que um encontro face-a-face, mas a possibilidade de contato pela

via do simbólico. Estamos afirmando, com isso, que a interação também ocorre

materialmente, principalmente por meio dos instrumentos cotidianos dotados de

significado.

A cultura é o grande cenário propício para a interação É nela que,

dialeticamente, o sujeito recebe os códigos, transformando-se, bem como atua no

mundo, transformando-o. “A mediação é um processo, não é o ato em que alguma coisa

se interpõe; mediação não está entre dois termos que estabelecem relação. É a própria

relação” (MOLON, 2003, p.102). A mediação é central para diferenciar os atributos

humanos e não humanos por meio das funções psicológicas superiores.

O desenvolvimento de uma teoria da subjetividade pautada na relação

indivíduo/sociedade permite, pelo menos no âmbito teórico, a superação desta

dicotomia.

Um aspecto complexo para as representações atuais dominantes no conhecimento psicológico é como articular os processo de subjetivação dos espaços sociais e individuais sem antropomorfizar os espaços sociais e sem reduzir a gênese da subjetivação aos indivíduos (GONZÁLEZ REY, 2003, p.204).

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A grande dificuldade da ciência psicológica não é postular a dita síntese entre

sujeito e objeto ou indivíduo e sociedade, mas criar condições para uma prática - seja

esta entendida como intervenção de pesquisa ou práxis profissional - que atrele as

diversas variáveis existentes entre esses pólos.

Vygotsky foi quem compreendeu, já na velha Rússia soviética, que essas

separações estavam impedindo o avanço da Psicologia. Sua vasta produção – em áreas

diversas como aprendizagem, personalidade, desenvolvimento, artes, dentre outras –

mostrou a necessidade de se criar uma macroteoria que estivesse pautada nas que já

existiam, mas avançasse para águas mais profundas. “[...] a intencionalidade de

Vygotsky na compreensão do sujeito articulava tanto o projeto de construção de uma

nova Psicologia quanto o projeto de construção de uma nova sociedade” (MOLON,

2003, p.63). O ponto central nesse intento vygotskyano foi a superação dessas

dicotomias através da dialética. Ao contrário de outros teóricos do seu tempo, que

meramente faziam leituras da realidade com nomenclaturas marxistas, o psicólogo russo

foi nas raízes dos escritos de Marx e fez uma leitura da psicologia a partir de sua

episteme.

Na obra de Vygotsky não se encontram as respostas definitivas nem soluções dos dilemas da Psicologia, mas ela rompe com a dicotomia entre o indivíduo e o social e entre o sujeito abstrato e o sujeito empírico, supera a transcendência do eu e a tirania do outro, acabando com a pretensão de tornar os sujeitos homogêneos e uniformes, meros reflexos da realidade social ou mônadas pensantes condutoras da história. (MOLON, 2003, p.121)

O psiquismo foi então compreendido como uma síntese de diferentes processos

que se influenciam mutuamente. A categoria afeto foi trazida para o centro das

discussões que norteavam o comportamento humano, compondo uma unidade com o

aspecto cognitivo. Foi uma forma de superar as tendências cognitivistas e

comportamentalistas que predominavam na época (GONZÁLEZ REY, 2003, p.189).

A construção da subjetividade pressupõe um sujeito formado no amálgama de

sua inserção sócio-cultural. Não dá para se falar em indivíduo sem nos remetermos ao

seu contexto, muito menos em sociedade sem atentar para sua base constituinte. Como

estamos na seara psicológica, faz-se mister que nosso olhar seja do ponto de vista

Page 40: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

psíquico, sem que este seja compreendido como um epifenômeno do contexto. Estamos

de acordo com González Rey, quando este afirma que a subjetividade:

[...] é um complexo e plurideterminado sistema, afetado pelo próprio curso da sociedade e das pessoas que a constituem dentro do contínuo movimento das complexas redes de relações que caracterizam o desenvolvimento social (2003, p.IX).

A realidade é vivida como sentindo subjetivo e objetivo. Juntamente com outras

nuanças que constituem o sujeito - seu raciocínio, suas emoções, sua história, seu

discurso – o sentido vai sendo tecido, compondo o entorno e criando condições para que

este forme o indivíduo. Dialeticamente, as realidades vão se desintegrando, reintegrando

e estruturando-se.

Pensar a subjetividade é estar permanentemente atento às outras categorias que a

auxiliam. Gênero, posição sócio-econômica, etnia, costumes, configuração familiar,

para pensarmos apenas em algumas delas. Isto para ficar claro que, quando

conceituamos a subjetividade como uma categoria complexa, estamos nos referindo a

essa diversidade de “conceitos auxiliares” que estão subentendidos quando falamos na

construção do sujeito.

Categorias como tempo e espaço também são fundamentais na compreensão

desse movimento de construção da subjetividade. Como ficará mais evidente no

próximo capítulo (no qual discutiremos os dados coletados), o espaço no qual o sujeito

produz um determinado sentido é fundante para a sua experiência. Compreendo que este

espaço também é dotado de sentido. O tempo aqui é entendido não como cronologia

uniforme, um ordenamento de fatos, mas como processualidade, como tempo subjetivo,

que, por vezes, comporta supressões de fatos, sobreposições, incongruências e fantasias.

Há uma ligação estreita entre presente, passado e futuro. “Na subjetividade, qualquer

momento da história do sujeito pode aparecer como um elemento de sentido da

configuração subjetiva atual de sua experiência” (GONZÁLEZ REY, 2003, p.220).

Em relação aos sujeitos que fazem abuso de bebida alcoólica e são (ex)

moradores de rua, nosso estudo objetiva acompanhar o movimento histórico que eles

trafegaram até chegar ao lugar onde hoje eles se encontram. O apreço pela história de

vida como metodologia não é apenas uma convenção científica. É a partir da linguagem

presentificada como prática discursiva que os sentidos vão sendo recuperados,

Page 41: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

lembrados, ressignificados, reconstruídos, confrontados, bem como vividos em toda sua

intensidade (trataremos da produção de sentido propriamente dita no próximo tópico).

Entre o sujeito e sua linguagem há uma relação intrínseca, já que esta não é

apenas uma manifestação simbólica dos discursos que circulam socialmente, mas uma

expressão simbólica do sujeito em relação ao seu posicionamento no mundo e na sua

participação social. A linguagem também é prenhe de sentidos subjetivos, emoções,

afetos, entre outros. “A construção de uma experiência por meio da linguagem e sua

articulação com um pensamento próprio é um dos processos que definem o ser sujeito”

(GONZÁLEZ REY, 2003, p.236).

Vale ressaltar que a categoria emoção é deveras esquecida na maior parte das

vezes em que se teoriza sobre a constituição do sujeito. Este parece ser composto apenas

de pensamento e linguagem, sendo estudado ou do ponto de vista de suas produções

discursivas ou de suas representações mentais. González Rey (2003, p.236) vai nos

alertar que pensamento e linguagem se articulam com a emoção a partir da idéia de que

é o estado emocional do indivíduo que norteará o que ele pensa ou diz (compreendendo

este dizer não apenas como manifestação verbal, mas como qualquer produção

simbólica que fale deste sujeito).

Ainda em relação à linguagem, esta não se apresenta apenas como manifestação

simbólica, mas é também a própria expressão do sujeito. Há uma trama de sentidos

subjetivos envolvidos na sua produção. Esta também traduz emoções complexas, ao

mesmo tempo em que gera novas emoções. Trataremos melhor das peculiaridades da

linguagem no próximo tópico, no qual abordaremos a produção de sentidos e as práticas

discursivas. No entanto, antes disso, trataremos do Construcionismo Social como pilar

das práticas discursivas e da produção de sentido, enfatizando suas características, as

críticas dirigidas e as contradições inerentes.

3.2) O Construcionismo Social como pilar da Produção de Sentido

A produção de sentido no cotidiano situa-se no âmbito da Psicologia Social.

Como ramo do conhecimento, valemo-nos das práticas discursivas para melhor

compreendê-las e aprofundá-las. Temos ainda como filiação epistemológica da

produção de sentido o Construcionismo Social. Aprofundaremos, primeiramente, as

contribuições deste último para a produção de sentido e para as práticas discursivas

para. Em seguida, tratarmos propriamente destes dois conceitos.

Page 42: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

A perspectiva construcionista, segundo Frezza e Spink (2000, p.23), é resultante

de três movimentos: uma reação ao representacionismo, na Filosofia; uma

desconstrução da retórica da verdade, na Sociologia do Conhecimento; e uma busca de

maior participação e visibilidade dos grupos sociais com menos credibilidade, no

âmbito da Política. Como precursores, temos as figuras de Peter Beger e Thomas

Luckmann com o lançamento da obra intitulada “A Construção Social da Realidade”,

publicada originalmente em 1966.

A crítica central apresentada por essa corrente teórica é o descaso com que eram

tratados os conhecimentos produzidos no senso comum. A crítica pauta-se também na

compreensão intelectualista de ciência “que restringe ao pensamento teórico, pois,

nessa dimensão, não se leva em conta o conhecimento que as pessoas têm da realidade,

ou seja, o conhecimento do sendo comum” (FREZZA; SPINK, 2000, p.24-25). A

importância de centrar nessa dimensão do conhecimento é porque esse é prenhe de

significados e constitui a base do tecido social.

Como objetivo, em artigo publicado no American Psychologist em 1985, Gergen

(apud FREZZA; SPINK, 2000, p.26) defende que: “A investigação sócio-interacionista

preocupa-se sobretudo com a explicação dos processos por meio dos quais as pessoas

descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si mesmos) em que vivem”.

Ou seja, que sentidos elas produzem para se apropriarem, situarem e agirem no mundo.

É nesse aspecto que os conhecimentos tecidos no senso comum ganham status, já que

não são apenas meros conhecimentos, mas são formulações importantes na orientação

da trama social.

No cerne da teoria do conhecimento, temos que o construcionismo compreende

que o mundo é interpretado a partir dos seus artefatos sociais. E estes, por suas vez, são

produtos de trocas historicamente situadas, realizadas por pessoas concretas. “A

realidade não existe independentemente do nosso modo de acessá-la” (MENEGON;

SPINK, 2000, p.77). Ibañez vai ao encontro desse enfoque ao afirmar que:

Ningún objeto existe como tal en la realidad, no es cierto que el mundo está constituido por un número determinado de objetos que están ahí fuera de una vez por todas y con independencia de nosotros. Lo que tomamos por objetos naturales no son sino obtetivaciones que resultan de nuestras características, de nuestras convenciones y de nuestas prácticas. Esas prácticas de objetivación incluyen, por supuesto el conocimiento, científico o no, las categorias

Page 43: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

conceptuales que hemos forjado, las convenciones que utilizamos, el lenguaje en lo cual se hace possible la operación de pensar (apud MENEGON e SPINK, 2000, p.78).

Ao contrário de se colocar numa postura de um suposto “isolamento científico”,

o Construcionismo Social se debruça exatamente sobre aquilo que outrora era

rechaçado, que não se via possibilidade de produção e intervenção, no caso do

conhecimento do senso comum. Esta forma de posicionar-se diante do conhecimento

implica o abandono de uma visão representacionista da realidade, ou seja, conceber a

realidade como espelho da natureza. Esta não estaria já pronta, esperando ser

“desvendada”, mas agora é concebida como construída, principalmente por meio da

linguagem.

Percebe-se que é necessária a desconstrução de várias noções arraigadas na

cultura. Tanto os conceitos como as formas de intervenção/investigação socialmente

cultivados partem da noção de uma realidade estratificada.

Historicamente, a dualidade entre sujeito-objeto marcou diversas posturas

epistemológicas, a citar: o empirismo, o idealismo e o interacionismo. No dizer de

Frezza e Spink:

Para o empirismo, o objeto é a determinação última do conhecimento, de modo que o projeto científico consiste em aproximações, cada vez mais precisas, a esse objeto. Já para o idealismo, a possibilidade do conhecimento não se encontra ao lado do objeto, mas sim no sujeito. Trata-se das categorias do entendimento, constitutivas da mente humana, as quais são universais e necessárias para o conhecimento. Por fim, para o interacionismo, conhecimento é produzido na interação entre sujeito e objeto, apresentando, portanto, características de ambos. Essa é, a bem dizer, uma versão fraca do construcionismo (2000, p.28).

Para o construcionismo, tanto o sujeito como o objeto são construções sócio-

históricas que devem ser problematizadas e reconstruídas. A noção de realidade também

deve ser explicitada. Nesta abordagem teórico-metodológica, concebe-se que

apreendemos a realidade a partir de nossas categorias, práticas, linguagens, ou seja, a

partir de nossa inserção no mundo.

Page 44: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Compreender o pensamento e o conhecimento como fenômenos sociais

possibilita ainda a superação de algumas premissas que o construcionismo refuta, como:

o internalismo, que centra nos processos cognitivos e reduz a explicação aos processos

neurológicos; o essencialismo, que trata a cognição de forma naturalizada; e o

universalismo; que tenta canonizar o pensamento científico, em termos de dotá-lo de

caráter totalizante (FREZZA; SPINK, 2000, p.31).

3.2.1) Críticas ao Construcionismo Social

Mesmo sendo uma teoria que revisa uma série de conceitos e propõe uma nova

visão no cerne da epistemologia, principalmente a de cunho qualitativo, o

construcionismo não escapa de uma série de críticas, a nosso ver, com bastante

fundamento. As críticas foram sendo formuladas em diversos contextos. Atribuímos,

principalmente, à história recente da disciplina, que ainda tem muito para avançar. As

principais críticas dizem respeito ao caráter relativista e ao reducionismo lingüístico,

supostamente realizado pelo construcionismo.

Em relação ao relativismo, é como se tudo de reduzisse aos espaços de

conversas. Nesse sentido, a retirada de determinados atributos individuais - como o

pensamento e a memória – pode dissolver o indivíduo na trama social produzindo

concepções, no dizer de González Rey (2003), bizarras.

Quanto à segunda crítica, no tocante ao reducionismo lingüístico, não há dúvida

de que o aspecto lingüístico adquire um estatuto que anteriormente não se observava.

Entretanto, da afirmação que tudo se reduz à linguagem tem-se uma distância

considerável. Fazer isso seria separar a linguagem do sujeito que se expressa nela.

Frezza e Spink (2000, p.33) apontam Vygotsky como um precursor na perspectiva d

tomar a linguagem como central no desenvolvimento cognitivo e, principalmente,

trabalhar com ela, em intrínseca relação com o pensamento, numa abordagem social.

González Rey (2003) acrescenta, além da crítica em relação ao reducionismo

lingüístico e ao relativismo, a questão do Construcionismo Social transmitir uma

impressão de superficialidade em sua crítica, uma vez que homogeneíza algumas

tendências do pensamento psicológico e apresenta visões epistemológicas bastante

diferenciadas.

Page 45: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

O mesmo autor ainda afirma que certos autores construcionistas19 negam a

subjetividade, ou seja, negam a conceituação de um sujeito concreto, visto que as

práticas discursivas já dariam conta de pensar o indivíduo do ponto de vista psicológico.

A expressão da subjetividade se daria apenas no momento da narrativa.

Portanto, o desconhecimento do sujeito, de seu caráter criativo e generativo, leva os autores construcionistas a estudar as formas de linguagem, de suas conversações como um fim em si mesmo, sem ver que essas expressões do sujeito não estão definidas não mais pelo contexto dialógico de sua relação com outros, mas pela sua história, pelos elementos de sentido que se expressam na linguagem, ao que Vygotsky, por exemplo, deu relevância especial (GONZÁLEZ REY, 2003, p.156)

Percebemos então que a crítica ao reducionismo lingüístico encontra íntima

relação com a ressalva quanto à desconsideração da realidade que contribui na produção

de subjetividade. Em relação à nossa pesquisa, é como se considerássemos o problema

do alcoolismo e da realidade de rua uma mera construção discursiva, bastando mudá-la

para, por sua vez, modificar a realidade.

González Rey (2003) ainda destaca que o rechaço à noção de sujeito parece ser

uma tentativa equivocada de resposta às produções da ciência psicológica tradicional.

Esta, em seu período áureo, enfatizava suas produções pautando-se no sujeito

individual, concebendo uma psicologia individualista e essencialista. Agora, por outro

lado, o autor coloca como se o construcionismo realizasse um culto ao social via

linguagem. Considerando os devidos extremismos da crítica, concebemo-a mais como

um alerta do que como uma leitura unívoca da teoria.

3.3) As Práticas Discursivas e a Produção de Sentido no Cotidiano

“Como damos sentido ao mundo?”. Este é o questionamento base que

desencadeou uma série de estudos, sobretudo na Lingüística, História, Antropologia,

Filosofia e, mais recentemente, na Psicologia. A percepção da potência da palavra como

sentido, além da sua denotação gramatical, conduziu estudos que indicaram a palavra

como variável na construção da realidade. 19 Vale ressaltar que o construcionismo apresenta uma variedade de divergências internas. Não queremos, contudo, homogeneizar as críticas que estamos tecendo.

Page 46: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Anteriormente, as pesquisas em Psicologia Social passavam ao largo desta

discussão. As atenções estavam voltadas para os estudos sobre a percepção, as atitudes,

a cognição, a interação grupal, entre outros. O ranço da Psicologia Científica ainda

ditava os rumos da disciplina. Tudo deveria ser pautado na experimentação - de cunho

positivista, obviamente -, na possibilidade de demonstração empírica e na generalização

dos resultados. Ainda nesse período, surge a Psicologia Social Experimental como

vertente da Psicologia Experimental (FREZZA; SPINK, 2000, p.19).

Hegemonicamente, observava-se o movimento que conduzia os psicólogos

sociais cada vez mais aos laboratórios, distanciando-se dos primórdios dos inspiradores

da disciplina, como George Mead e Kurt Lewin. O estudo das atitudes é um exemplo

significativo desse movimento, uma vez que se observava uma progressiva

individualização dos conceitos centrais da Psicologia Social.

O paradigma dominante em Psicologia Social começou a ser questionado entre

os anos cinqüenta e sessenta. Dois questionamentos foram decisivos nesse sentido: a

valorização dos comportamentos em situações naturais e o estudo de comportamentos

em seu ambiente natural. O ensino da Etologia nos cursos de graduação foi marcante

para o redirecionamento das pesquisas (FREZZA; SPINK, 2000, p.20).

Ainda na esteira histórica, percebemos o surgimento de importantes reflexões

críticas no que diz respeito à naturalização do fenômeno psicológico. Estes ocultavam a

perspectiva de que os conceitos e as teorias são produções culturais, bem como

conhecimentos socialmente construídos e legitimados. O caráter despolitizado da

“velha” Psicologia Social coadunava com a influência do positivismo na formulação da

disciplina.

Este movimento propiciou o entendimento de que outras categorias seriam

importantes na compreensão do fenômeno psicológico. O estudo da produção de

sentidos (PS) por meio das práticas discursivas (PD) surgiu nesse contexto20. Outrossim,

Quando a questão do sentido não pode mais ser respondida somente no âmbito da língua, da sintaxe, e da semântica; quando a produção do conhecimento começa a ser questionada por desconsiderar, justamente, aquilo que é sua base, o senso comum; quanto a Psicologia Social começa a fazer sua própria crítica quando ao que produz e quanto à despolitização

20 Vale ressaltar que a trajetória histórica que mencionamos da Psicologia Social está longe de ser linear. Queremos dizer, com isso, que o novo e o velho coexistem. Principalmente pela polissemia na qual a Psicologia Social é entendida.

Page 47: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

daí resultante, tem-se, então a configuração de um contexto propício para as novas buscas: conceitos, métodos, epistemologia, teoria, visão de mundo (FREZZA; SPINK, 2000, p.39).

Por sentido, compreendemos uma construção social no plano da interação na

qual as pessoas se situam para compreender e se posicionar no mundo. É um conceito

que leva em consideração as dinâmicas históricas e as produções culturais. A partir das

contribuições de Medrado e Spink, percebemos que “dar sentido ao mundo é uma força

poderosa e inevitável na vida em sociedade” (2000, p.41). Essa potência do sentido

também é acompanhada por uma pluralidade, por vezes, de caráter “aparentemente”

contraditório. Dizemos isto porque a PS está longe de pressupor que os sentidos são

produzidos de forma linear, sem contradições.

Uma diferenciação capital para o nosso estudo é a relação subjetiva entre o

sentido e a significação construída. Esta última é compreendida por sua maior relação

com a historicidade social, fazendo com que o sujeito apreenda uma noção que foi

apresentada pela cultura e formada no decorrer dos tempos. Dentro dessa construção de

significados, os sentidos são múltiplos, uma vez que outras variáveis são fundamentais

para sua formação como, por exemplo, o contexto da experiência individual. Por isso, a

partir da conceituação de Leontiev (1978), “o sentido pessoal traduz precisamente a

relação do sujeito com os fenômenos objetivos conscientizados” (p.98).

Cabe ressaltar ainda que a PS não é uma atividade meramente cognitiva, muito

menos apenas um atributo intra-individual. Ela, ao contrário, é uma prática social e

dialógica, que implica a linguagem e seu movimento inerente. Nesse âmbito, apresenta-

se como um fenômeno sociolingüístico (MEDRADO; SPINK, 2000, p.42). A

linguagem, nesse sentido, é solo fértil para práticas sociais. Estas, por sua vez, são

substratos na geração de sentidos. A separação que fazemos entre linguagem e práticas

sociais é meramente didática, visto que isso ocorre de maneira intricada na realidade

cotidiana.

Quando nos referimos à linguagem, estamos adotando um conceito pautado

nesta em movimento, em uso. A linguagem, além de estar relacionada com as práticas

sociais, é por si só uma prática social. Isto é importante para sairmos das teorias que

concebem apenas como código de transmissão de informação, enfatizando sua estrutura

e reduzido-a às partes que a compõem: semântica, ortografia ou sintaxe.

Page 48: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Jobim e Sousa (1995, p.12) se vale de Bakhtin para mostrar que a linguagem é

uma categoria complexa e só pode ser analisada considerando este aspecto, visto que ela

é um fenômeno sócio-ideológico, dialógico e histórico. A grande crítica do lingüista é

exatamente que as demais teorias desconsideram a língua como um acontecimento

social. “A palavra é a revelação de um espaço onde os valores fundamentais de uma

dada sociedade se explicitam e se confrontam” (Jobim e Sousa, 1995, p.27).

Vygotsky, ainda lembrado por Jobim e Sousa (1995, p.12), se preocupava com a

elaboração de uma reflexão sócio-psicológica que envolvesse a relação entre

pensamento e palavra de forma dinâmica. A linguagem estaria intimamente relacionada

com as funções psicológicas superiores e estas, por sua vez, são fundamentais na

compreensão da construção da subjetividade.

Ressaltamos, finalmente, que tanto Bakhtin como Vygotsky elaboraram uma teoria que coloca a linguagem como ponto de partida na investigação das questões humanas e sociais e também como um desvio que permite que as ciências humanas transitem para fora dos paradigmas cientificistas, priorizando uma abordagem ético-estética da realidade (JOBIM E SOUSA, 1995, p.13).

A concepção de linguagem defendida por Bakhtin tem na categoria de interação

verbal sua chave analítica. Na base deste conceito, temos a noção de dialogia, ou seja,

que a comunicação é um processo ininterrupto. Não há enunciados isolados, mas eles

estão na cadeia daqueles que o precederam e os que o sucederão. É o elo de uma cadeia

que se forma e transcende o tempo e o espaço presentes. “Para Bakhtin, as relações

dialógicas são muito particulares e não podem ser reduzidas às relações que se

estabelecem entre réplicas de um diálogo real” (JOBIM E SOUSA, 1995, p.16). São

bem mais amplas, heterogêneas e complexas.

A percepção da atuação da cultura e da história na formatação lingüística

permitiu que a significação passasse de uma categoria monológica para outra dialógica.

Na primeira, o sentido era restrito, “dicionarizado”. Para a dialogia, as significações são

infinitas, variando de acordo com o contexto histórico, bem como com a situação

cotidiana de uso da palavra. Não estamos pretendendo aqui conceber uma linguagem

relativista, que tudo pode, dependendo do contexto. Há uma normatização que deve ser

observada. Contudo, há também uma nuança que escapa, que foge à rigidez da norma e

que se transmuta constantemente.

Page 49: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Isto que “escapa” não era contemplado na antiga análise lingüística, como as

expressões faciais, os gestos, o tom de voz, o conhecimento mútuo do assunto abordado,

entre outros. Numa situação de entrevista – como a nossa pesquisa procedeu – os gestos

e emoções de um influenciam na colocação do outro. A mudança de entonação de uma

pergunta pode influenciar radicalmente a resposta. É nesse sentido que afirmamos que a

compreensão se dá na interação entre o nível verbal e o não-verbal (JOBIM E SOUSA,

1995, p.20).

A Produção de Sentido se expressa por meio das Práticas Discursivas. Estas

constituem foco de estudo para Psicologia Social, nesta vertente que estamos adotando

que propicia as bases do construcionismo. Elas são compreendidas como ações,

seleções, escolhas, linguagens, contextos e outras expressões relevantes no contexto

social. São veredas privilegiadas de compreensão das produções de sentido.

Por definição, podemos afirmar que as Práticas Discursivas constituem a

linguagem em ação, a forma objetiva pelas quais as pessoas produzem sentidos e

relacionam-se no cotidiano (MEDRADO; SPINK, 2000, p.45). Há uma diferença

conceitual entre discurso e práticas discursivas. O primeiro focaliza o habitual, aquilo

que é gerado pelos processos de institucionalização. A segunda, enfatizando a

mobilidade, preocupa-se com as ressignificações, as rupturas e os demais momentos

ativos de uso da linguagem. Há uma maior abertura para a diversidade neste último.

Medrado e Spink, ao teorizarem sobre as Práticas Discursivas, concluem que:

A compreensão das práticas discursivas deve levar em conta tanto as permanências como, principalmente, as rupturas históricas, pela identificação do velho no novo e vice-versa, o que possibilita a explicitação da dinâmica das transformações históricas e impulsiona sua transformação constante. Por meio dessa abordagem, buscamos construir um modo de observar os fenômenos sociais que tenha como foco a tensão entre a universalidade e a particularidade, entre o consenso e a diversidade, com vistas a produzir uma ferramenta útil para transformações da ordem social (MEDRADO e SPINK, 2000, p.61).

Outro aspecto que ganhou uma nova roupagem foi a noção de emocionalidade.

Assim como já adiantamos, quando tratamos do seu aspecto central da produção de

subjetividade, na PS a emoção também ganha um papel de destaque. Ela também é

responsável pela capacidade do sujeito gerar sentido. Não falamos do antigo tratamento

Page 50: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

despendido às emoções, de cunho meramente fisiológico, como resposta do sujeito às

condições sociais. Temos um acréscimo, já que a cultura e os significados que ela

produz corroboram para o sujeito produzir uma série de sentidos carregados

afetivamente.

Page 51: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

4) CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE DE (EX)

MORADORES DE RUA E A PRODUÇÃO DE SENTIDO(S) DE

ÁLCOOL

A partir de nossa incursão empírica na Fraternidade Toca de Assis, pudemos

perceber que uma gama de sentidos foram (e são) construídos em relação à bebida

alcoólica. Antes de tratarmos da questão propriamente dita do álcool, iremos discorrer

sobre como apreendemos, via entrevistas, como esses sujeitos foram construindo suas

subjetividades, o percurso de suas histórias de vida; bem como foram significando a

realidade de rua, suas trajetórias pelas alamedas da cidade de Fortaleza. Ambos os

aspectos são fundamentais na compreensão de como o álcool entrou no cotidiano de

cada um, as conseqüências e os conhecimentos produzidos.

Vale ressaltar ainda que a separação que fazemos é meramente didática. Na

dinâmica da realidade cotidiana é impossível separar cada tópico deste, visto que todos

se constituem mutuamente. Compreendemos a realidade de forma complexa, na qual as

variáveis que tentamos separar metodologicamente aparecem simultaneamente, de

forma imbricada.

O mais importante não são as constatações em si (como, por exemplo, a

imbricada relação entre o álcool e a rua), mas os desdobramentos, os sentidos que são

produzidos. Com isso, saímos de uma perspectiva causalística – que enfatiza os porquês

– para uma abordagem que se centra no processo, no como determinada realidade se

manifesta. Daí a riqueza na história de cada morador de rua, nas emoções que estão

envolvidas, nas narrativas que são, ao mesmo tempo, coletivas e singulares.

É nesse sentido que, antes adentramos com as categorias, faremos uma breve

descrição de cada entrevistado. Consideramos importante situar quem fala para se

compreender o que se fala. Todos possuem algumas características em comum: a

vivência de rua e a experiência com o álcool. Contudo, estão longe de ter histórias

padronizadas. A riqueza está na alternância da singularidade com a aparente constância

(dizemos aparente porque o sentido que cada um constrói sobre uma determinada

realidade, como a de rua, é idissiocrático).

a) A. L. C., 41 anos, natural da cidade de Sobral, é conhecido pelos moradores da Toca

de Assis como “o varredor”, visto que a atividade que desempenha na casa. Morou com

Page 52: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

os pais no interior até os 15 anos. Nesse período, seus pais faleceram e ele veio para

Fortaleza trabalhar como autônomo. Trabalhou como jardineiro, limpador de piscina,

camelô no centro da cidade, entre outros “bicos”. A partir do começo da década de 90

ficou desempregado e passou a morar na rua e beber (vale ressaltar que ele não bebia

antes de ir para a rua). Entrou na Toca de Assis em 2001.

b) J. C. V., 49 anos, natural de Fortaleza, é chamado pelo abrigados como o “J. da

lavanderia”, já que este é seu serviço na instituição. Passou grande parte de sua infância

em um colégio interno, em Maracanaú. Depois foi concluir os estudos em Sobral. Tem

três irmãos por parte de mãe e oito irmãos por parte de pai. Perdeu contato com o pai,

mas sabe onde a mãe mora, porém prefere não ir lá. Já foi casado e tem três filhos.

Narra uma vivência de mais de 15 anos na rua. Em 2000, operou a perna, fruto de um

acidente de carro. Foi tentar atravessar a rua embriagado e o carro o acertou. Depois

disso, fez uma cirurgia e foi acolhido na Toca de Assis no começo de 2001.

c) A. G. S., 53 anos, natural de Pentecoste. Saiu de sua terra natal para Maranguape,

depois Quixeramobim e só depois veio para Fortaleza. Tem três filhos, dois homens e

uma mulher. Passou a infância trabalhando na agricultura. Quando adulto, conta que já

trabalhou em grandes empresas, como Vicunha, Marquise e outras. Conta um pouco da

trajetória de como foi parar na rua: “Vivia bem, tava bem. Os filho tudo estudando.

Comecei com um negócio de brincar e tudo. Bebendo, brincando. Rasgando dinheiro.

Tinha um capitalzinho na Caixa, no Bradesco, depois eu tirei. Perdi o emprego. A

mulher adoeceu. Abri um negócio e o negócio não deu certo. Aí eu fechei. Comecei a

brincar demais.”. O chamaremos de “D. Juan” porque é recorrente o saudosismo do

tempo em que conquistava várias mulheres. Mora na Toca de Assis desde 2004.

Além deste último, usaremos também os demais apelidos para nos referirmos

aos sujeitos, tanto como sigilo quanto para identificá-los com alguns atributos que

são/foram centrais nos respectivos movimentos de construção da subjetividade.

4.1) A construção da subjetividade em (ex) moradores de rua

A construção da subjetividade, como já tratamos no capítulo anterior, é uma

temática complexa. A constituição do sujeito humano é perpassada por uma série de

vetores psicológicos, sociais, culturais, biológicos, entre outros.

Page 53: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Na realidade dos (ex) moradores de rua da Toca de Assis, percebemos três

variáveis centrais que eram constantemente citadas: o trabalho, a família e o aspecto de

gênero (este último iremos aprofundar nos tópicos seguintes). Aliadas a estas, tínhamos

também a presença de acontecimentos que eram veiculados pela mídia, bem como a

noção da alteridade como fundamental na construção do eu.

Quando questionávamos sobre as histórias de vida de cada um, o saudosismo e a

fala afetuosa eram sempre presentes. Foi comum lembrar dos momentos com os pais, a

grande quantidade de irmãos e, principalmente, da solidão que sentem hoje por estarem

distantes dos entes queridos. Como iremos explorar mais adiante, o álcool, em algumas

ocasiões, já fazia parte da rotina das suas respectivas casas. Esses sujeitos tiveram

vivências de família, tanto como filhos e também como chefes de casa. Há um

preconceito vigente de que moradores de rua não têm nem tiveram uma referência

familiar. Pensamento este fruto da naturalização que voga quando pensamos neste

público. É como se os moradores de rua, naturalmente, “brotassem da terra”. Tal

raciocínio estanque, como podemos notar em termos de políticas específicas para a área,

também gera ações limitadas. Inverdade que pudemos comprovar a partir das falas:

O que eu me lembro da minha história de vida? Quando eu vivia na casa dos meus pais, né? Meus pais eram vivos que eu morava na companhia deles. Aí era o meu melhor momento de vida. Logo quando eu tinha meus quinze anos. Meus pais ainda eram vivos. Aí, depois que eles faleceram, meus irmãos e minhas irmãs se debandaram. Um pro canto, outro pro outro canto. Hoje a gente não se encontra mais. (Varredor)

O trabalho, a partir da Psicologia Histórico-Cultural (LEONTIEV, 1978), é

fundante na constituição do homem. O homem, através da atividade, atua no mundo

transformando-o e transformando-se. Percebemos esta premissa também nos relatos que

coletamos. O trabalho é apresentado como fonte de dignificação, uma espécie de cartão

de identificação (sou fulano pedreiro). Interessante que dois de nossos entrevistados

eram conhecidos pelas atividades que desempenhavam na casa: o varredor e o J. da

lavanderia. Utilizaremos estes atributos para nos referirmos aos entrevistados no

decorrer deste capítulo. Isto só reforça nossa idéia de que o trabalho é uma categoria

central quando pensamos sobre a constituição do psiquismo e da subjetividade humana.

Outra categoria central na construção da subjetividade do morador de rua é

presença da alteridade como referência para a definição do eu. A percepção de si é

atravessada pela percepção do outro. O que disseram sobre ele (presença da linguagem

como constituinte da subjetivação) também o constrói. Uma situação expressiva dessa

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afirmação foi quando uma senhora, em visita à Toca de Assis, questionou um

entrevistado: “se eu era desse meio de rua, porque me achou diferente, e eu disse que

não era mesmo não. Todo dia eu tava aqui todo limpinho, todo arrumadinho”. (Dom

Juan). Ou seja, ele não deveria ser um morador de rua porque andava limpo.

Percebemos que os preconceitos que circulam socialmente não são exclusivos da

população em geral em relação aos moradores de rua. Eles próprios compartilham

impressões depreciativas sobre suas vivências, falas e imagens. Ademais, o entrevistado

nega sua condição de rua a partir da diferença que ele apresenta perante os demais

moradores de rua.

Além disso, a fala do nosso entrevistado demarca a singularidade – já que ele se

recusa à ser massificadamente classificado como mais um morador de rua -, outro

aspecto presente quando pensamos a constituição do sujeito. Importante para esta

pesquisa como dado de uma realidade não homogênea, produzindo um sentido que

preza pela demarcação da diferença, variável que possivelmente seria esquecida em

pesquisas quantitativas. O diferente, por vezes, é simplesmente tratado como exceção. O

diverso, ao contrário, é prenhe de riqueza. Exatamente o que destoa da norma que

aparece como sentido peculiar. A percepção hegemônica em relação aos moradores de

rua é aquela do sujeito “magro, sujo, cabeludo, descalço” (Varredor).

A cobertura de fatos de grande repercussão pela mídia aparece também como

variável recorrente nas narrativas. O Varredor, por exemplo, destaca todos os

acontecimentos importantes de sua vida a partir de grandes eventos cobertos pelos

jornais impressos e telejornais. O primeiro foi quando ele veio para Fortaleza, em 1982,

“foi no ano que caiu aquele avião lá na serra de Aratanha” (referindo-se ao acidente

que envolveu Edson Queiroz). Em seguida, remonta ao período em que saiu da Toca de

Assis para beber, “no começo de 2001, no anos daquele acontecimento lá nos Estados

Unidos” (atentado às Torres Gêmeas). Por último, fala do retorno à instituição, uma

data bastante significativa para o entrevistado. “Eu voltei no dia que caiu aquele avião

da Gol. Dia 29, numa sexta feira. Foi!”. O que nos chama a atenção nestas demarcações

temporais é como se o entrevistado utilizasse uma referência extra – fora o calendário -

para a sua localização espaço-temporal. Um auxiliar, já que na rua a precisão do tempo

é uma variável bastante fluida. Tal evidência apareceu apenas em uma entrevista, porém

a julgamos significativa em termos de explicitação da realidade de rua.

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4.2) A experiência de rua dos (ex) moradores de rua da Fraternidade Tocas

de Assis

Fizemos questão de demarcar no título desta seção que a vivência de rua, a qual

estamos nos referindo, não é qualquer uma, mas a experiência concreta e particular dos

(ex) moradores de rua daquela instituição religiosa. É evidente que esta guarda

semelhanças com as histórias que poderíamos colher em outros locais ou mesmo na rua.

No entanto, acreditamos que o contexto influencia, sobremaneira, a forma dos

indivíduos se colocaram no presente. Por exemplo, certamente o cenário religioso é uma

variável a ser considerada. O fato de eles não mais estarem na rua é outra variável.

Percebemos que eles falam de uma “realidade passada”, muito diferente de uma em que

eles ainda estivessem vivenciando as agruras da situação de rua.

“Eu vivo mais isolado, sozinho, escutando o meu rádio e pronto. Não fico em

grupinho onde fica três ou quatro em conversinha não.” (Varredor). A rua, a partir das

falas dos entrevistados e da nossa pesquisa bibliográfica, constrói um ethos no qual é

necessário aprender a viver “isolado”. Isso repercute diretamente na dinâmica da

instituição, dificultando a formação de vínculos mais duradouros, tanto interpessoais

quanto no tocante ao espaço21. Na rua, um dos únicos espaços de socialização são as

chamadas “rodas de bebida”.

Outro aspecto que dificulta uma maior apropriação do espaço por parte dos

abrigados é a alta rotatividade dos religiosos. Anualmente, ou antes disso, os irmãos da

casa revezam suas moradias nas casas espalhadas pelo País e pelo mundo. É notório que

essa fragilidade na construção do sentimento de pertinência por parte dos abrigados

corrobora para eventuais saídas e, consequentemente, a ingestão de álcool. Por isso

somos favoráveis à idéia de que o sentido de álcool na instituição é peculiar, pois é

perpassado por esta realidade, modificando também a forma com a qual o sujeito se

relaciona com a bebida alcoólica. A fala a seguir denota o que estamos afirmando:

Eu fui pro sítio, aí não passei esse tempo na rua não. Voltei para o Papicu e só depois voltei [a Toca de Assis também possui uma casa masculina nesse bairro]. Me deu vontade de ir pra rua. A gente tem apego com os religiosos, são os benfeitor, os guardiões [coordenadores das casas]. Ai quando começam a ir embora muitos vão por causa disso, por causas dos religiosos (Varredor).

21 Para estudo mais aprofundado sobre a formação de grupos como facilitador de vínculos interpessoais na própria Toca de Assis, consultar: Alcântara, 2004.

Page 56: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Uma das formas de acesso à realidade da rua, como já havíamos antecipado no

segundo capítulo, é a extrema situação de penúria e o desemprego. O sujeito, por vezes,

não tem dinheiro para pagar o aluguel da casa ou, o é mais comum em nossas

entrevistas, sente-se profundamente envergonhado por não ter condição de ser o

provedor da casa e daí parte “errante” para as ruas. “Ai não achei mais emprego e fui

pra rua” (D. Juan). Nesse sentido, é importante atentar para uma variável de gênero que

está muito clara neste contexto, já que é supostamente próprio do homem o sustento da

casa. Como veremos mais adiante, o próprio ato de beber tem muito a ver com uma

forma de afirmação da masculinidade, já que o sujeito fica desinibido para cortejar as

mulheres, torna-se mais corajoso, ou seja, sente-se mais viril.

Compreendemos que o contexto não é determinante de uma dada realidade,

porém é inegável que a conjuntura é variável fundante na construção da subjetividade.

Queremos dizer, com isso, que a situação de precarização do mundo laboral deve ser

levada em consideração quando analisamos a realidade em estudo. A falta de trabalho é,

por vezes, substituída pela situação de rua e, conseqüentemente, pela experimentação

etílica. Não estamos afirmando que exista uma relação causualística e necessária entre

os dois, mas que, em determinados momentos, isto pode ocorrer e, de fato, acontece.

O anonimato é outra característica que acompanha os moradores de rua. Esta

característica está intimamente ligada à homogeneização à qual nos referimos

anteriormente. O anonimato a que nos referimos vai além da simples falta de referência

ao nome, chega ao ponto da profunda despersonalização. Acrescente-se um outro fato

que é bastante comum entre a população de rua: a perda dos documentos. J. da

Lavanderia é esclarecedor ao afirmar que “o único (documento) que (eu) tinha era a

certidão de casamento e eu perdi na rua”. Esta se liga também à impossibilidade de

viver a cidadania de forma plena, já que vários espaços, por conta disso, os são negados.

O acesso à educação é quase inexistente, a saúde é limitada, sendo a habitação o grande

problema. Vale ressaltar que este último ponto, como tentamos descrever no decorrer

desta pesquisa, vai além do mero déficit habitacional e abrange problemas de ordem

econômica, intrafamiliar, psicológica, dentre outras.

Apesar de a rua ser constantemente significada como um local aversivo, há uma

vinculação com essa por parte dos moradores de rua. Muitos deles fazem alguns poucos

amigos, criam laços afetivos com algum comerciante que os ajuda, demarcam

determinado território público como “meu”. Mais uma vez, observamos o paradoxo

como parte constituinte da realidade. A liberdade é um atributo positivo altamente

Page 57: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

valorizado pelos entrevistados. Entretanto, esta não aparece isolada, mas como uma

possibilidade de experimentação etílica, já que fica vedado o uso de substância

entorpecente, uma vez estando na instituição.

A Toca (abreviação comumente utilizada para se referir à fraternidade) é

significada com uma considerável carga afetiva. É o lugar de referência que antes eles

não tinham. Cada um é chamado pelo nome (ou algum apelido que traz da rua ou é dado

pelos os abrigados), tem uma cama, obedece a uma rotina que varia entre as refeições e

as orações. Segundo J. da Lavanderia, “A Toca de Assis pra mim é uma família, é a

minha casa. Se eu sair daqui, eu procuro o mesmo caminho, a CEART, lá pra aqueles

lados da Aldeota”.

Nesse contexto, a rua incorpora uma série de atributos, no sentido psicológico.

Vários signos são utilizados pelos moradores de rua para descrevê-la. Todos são

carregados de metáforas, afetos, exemplos do cotidiano, denotando a multiplicidade de

sentidos ali produzidos. Muito do que encontramos nas falas assemelha-se com o

anteriormente colhido em nossa pesquisa bibliográfica. Outros sentidos extrapolam a

literatura.

Por vezes, a rua é significada como um ambiente hostil. “O meio da rua, é o tipo

da coisa, ninguém é de ninguém. [...] Tem que saber viver na rua” (J. da Lavanderia). O

individualismo também é bastante presente, cada um é responsável exclusivamente por

si. Os espaços de convivência grupal, como as famosas “rodas de papudim”, não

garantem, em si, a formação de uma coesão grupal. Há um aprendizado de viver só no

meio da multidão. Quando falamos que existe uma invisibilidade tomamos esta num

sentido bilateral, ou seja, tanto os morados de rua não são reconhecidos em termos das

urgências sociais como eles também se camuflam no meio da população. Outra

característica da situação de rua é que ela, segundo os entrevistados, é responsável por

tornar uma pessoa ruim:

A rua não tem muita coisa pra pessoa não. Tem só cara que se envolve no mundo do crime, que não presta, que cai no mundo das drogas, se torna assassino, faz parte de gangue. Tem nada na rua não. Tem aqueles que saem, quando vem é com a cabeça quebrada, é o braço ferido, ponteado. Nunca vem bom. Só chega com algum problema. Quando volta, ou é pela polícia ou por assistente social (J. da Lavanderia).

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Como já nos deparamos no noticiário, no conhecido caso do índio Pataxó22, em

que adolescentes de classe média alta justificaram incendiar o índio porque “pensavam

que era apenas um mendigo”, a violência é outra marca da situação de rua. Além da

violência psicológica a que estamos todo tempo nos referindo, é presente também a

violência física. É comum o morador de rua acordar à ponta pés de policiais, assim

como levarem pedradas durante a noite. Consideramos bastante ilustrativa a descrição

feita pelo Varredor:

Os perigos da rua não tá durante o dia, tá à noite. Eu já vi muitos. Já vi não, já tomei conhecimentos de muitos moradores de rua que foi morto dormindo com pedrada e como paulada. Conheço um que foi tocado fogo, é todo cheio de cicatriz. Na rua se depara muito com isso, com o perigo. A pessoa mesmo, às vezes, bonzinho mesmo, ele ta sabendo que vai dormir na rua, num local assim, e não sabe se acorda com vida. Então é o seguinte, a pessoa boazinha, sem ter tomado álcool, ele não dorme com tranqüilidade. É um olho fechado e outro aberto. Não tem, assim, uma tranqüilidade para dormir, que a pessoa sabe dos perigos que corre.

A ociosidade é outra marca do contexto de rua. O alcoolismo está diretamente

vinculado com esta peculiaridade, visto que a falta do que fazer possibilita a formação

de pequenos grupos, que têm como objetivo a bebida e o jogo. Quando questionado

sobre a realidade da rua, J. da Lavanderia afirmou que:

Muito é desgosto [...]. Não tem o que fazer. Dos que vivem no meio da rua, muitos não são nem alcoólatras totalmente. É mais por causa da droga, das pedras, crack. E qualquer dois contos é fácil, até um cigarrinho. Mas a maioria da galera que eu vivia no meio é mais alcoólatra.

Aparece também uma falta de perspectiva aliada a um pensamento fatalista23. Na

rua, “eu num tive futuro nenhum, não tive nem vi futuro em nada” (Varredor). Foi a

realidade da Toca de Assis que possibilitou o acesso a uma perspectiva diferente, bem

como de ver que ela realmente existe. Com o passar do tempo, o fatalismo vai dando

espaço ao projeto de vida. Eles vão percebendo, paulatinamente, que a instituição é um

local passageiro e que cabe a eles o salto para a mudança.

Podemos afirmar também, a partir das narrativas e da literatura, que há uma

relação intrínseca entre o álcool e a rua. Ora um percebido como causa, ora como

conseqüência, alternando-se, dependendo do contexto específico. Varredor conta que:

“Aprendi tudo na rua: a bebida alcoólica, o cigarro [...] Ela [a rua] oferece todo o tipo 22 Para ver a notícia na íntegra: http://www.sindicato.com.br/artigos/cimi.htm (Acesso em 02/01/2007). 23 Aos seres humanos não resta outra opção senão acatar seu destino, se submeter à sorte que lhe determina. (MARTÍN-BARÓ, 1987, p. 137).

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de termos de vício, seja lá qual for, da bebida, da droga, de tudo”. Quando estão

ociosos, “sempre chega um e ‘vem cá, toma uma aí’. Nesse toma aí, a pessoa não bebe

só uma”. Na própria Toca, vários não suportam a situação de ficar sem beber e voltam

para a rua.

Observamos então que há um vínculo circular de dependência entre o sujeito

morador de rua, a bebida alcoólica e a situação de rua. Ambos se retroalimentam

mutuamente. “É porque é o seguinte: passou a morar na rua, dá aquela vontade de

beber! Não tem nem como ficar sem beber” (Varredor). A rua conduz ao álcool que, por

sua vez, dificulta a superação da situação de rua. O sujeito bebe para suportar a

realidade e, ao mesmo tempo, se aprisiona nela. O interessante é que os próprios

sujeitos reconhecem esta relação.

Diferente da vinculação que existe entre a rua e o álcool é a relação entre a rua e

as drogas ilícitas, que não é tão evidente assim. “Nunca me envolvi com esse negócio de

cheirar cola, usar drogas. Então o que tive como droga na minha vida foi a cachaça”.

(J. da Lavanderia). Nossos três entrevistados não eram usuários de drogas ilícitas, ao

mesmo tempo em que há o indício da cachaça como droga, numa conotação

explicitamente pejorativa.

4.3) Sentido(s) de álcool em (ex) moradores de rua

Após termos contextualizado como compreendemos o movimento de

constituição da subjetividade dos moradores de rua e de sua realidade, explicitaremos,

com maior ênfase, os sentidos produzidos, através das narrativas, sobre a vivência com

o álcool. Já antecipamos algumas questões, visto que a realidade é complexa e

imbricada. Por ora, focaremos atenção específica no álcool e na sua relação com o

cotidiano dos moradores de rua.

A produção de sentido no cotidiano é marcada pela pluralidade e pela

contradição. Foi este movimento que percebemos em relação às vivências atreladas ao

alcoolismo. Como também é perpassado pela cultura, o primeiro sentido de álcool que

percebemos foi a noção de brincadeira, de divertimento. A desinibição e a

confraternização marcam situações de convivência social. “Dava vontade e cantar” (J.

da Lavanderia). “Quando eu tô bebendo, tudo pra mim é divertimento, tudo, seja lá o

que for. Às vezes, um negócio que não é, mas quando tô bebendo, é divertimento. Tudo

pra mim é alegria, é tudo” (Varredor). Tendo a realidade da rua como cenário

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(significada constantemente de forma bastante aversiva), compreendemos o quão

prazeroso são esses momentos, uma espécie de “oásis no deserto”.

Ligado ao sentido anterior, temos a acepção de coragem atribuída ao álcool. “Eu

num tinha medo não, tava bebendo” (D. Juan). “Quando eu tou parado, eu tenho

vergonha. Mas quando eu tomo uma ou duas, eu não tou nem aí. Passa toda a

vergonha” (Varredor). É como se a bebida os dotasse de uma força. Aliado a isso, temos

a noção de onipotência, já que eles relatam que embriagados são capazes de tudo: entrar

em brigas, correr riscos (como andar de moto embriagado) e entrar em lugares perigosos

em horários impróprios.

O álcool surge também como possibilidade de encontro. A situação de

confraternização é o suficiente para despertar nos sujeitos a vontade de ingerir bebida

alcoólica. “Lá pela rua, eu sinto uma vontade. Eu vejo as pessoas tudo bebendo,

naquela conversadeira toda, naquela animação. Aí vem a vontade de tomar uma dose”

(Varredor).

Atrelar os festejos à prática de alcoolização, segundo os relatos das histórias de

vida dos entrevistados, é um fato antigo. Todos eles aprenderam a beber em rodas de

amigos ou fazendo companhia a algum familiar, sempre em situação de celebração. Não

é à toa que agora o contrário ocorra, ou seja, que a situação elicie a vontade de beber.

O sentido da desinibição está atrelado intimamente com o sentido da

confraternização. O primeiro leva ao segundo. As festas já começam desde cedo e

incitam o jovem às experimentações etílicas. “Comecei a beber novo, adolescente. Nas

tertúlias, tomava leite de onça, comecei por ai” (J. da Lavanderia). “Não, eu devia ter

uns 25 anos. Mas comecei a beber antes. Negócio de aniversário, né? Com uns 19 anos,

eu já bebia. Era só com a turminha do bairro mesmo. Comecei a beber novo” (J. da

Lavanderia). Reforçamos, mais uma vez, o porquê de nem todos que iniciaram a bebida

precocemente tornaram-se alcoólatras. Pesquisas revelam, como explicitamos no

segundo capítulo, que apenas 10% da população possuem essa inclinação (MOREIRA;

SILVEIRA, 2006, p. 6). O nosso problema, em termos sociais, é que há uma grande

exposição da juventude a essas práticas, agravando ainda mais os índices.

Na situação de rua, o significado da bebida como possibilidade de encontro se

confirma. Varredor nos narra uma situação corriqueira:

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Por coincidência, tem o um conhecido seu e fala “ei, fulano, vem cá”. Aí pronto. Aí vai lá. Quando você chega nos três, falam, “toma a tua aí”. “Não quero não”. “Toma uma aí, rapaz.” Aí nessa de tanto de insistir, a pessoa acaba aceitando. Aí toma a primeira. Depois que toma a primeira, se engancha na patotinha deles. Aí continua mesmo. Bebe mesmo pra valer.

Outro tema recorrente é o sentido do álcool atrelado à doença mental. Há uma

idéia socialmente compartilhada que entende o alcoolismo como um transtorno de

personalidade e, por isso, passível de internação em instituição psiquiátrica. Escutamos,

a partir das narrativas, relatos de situações como estas. Dos três entrevistados, dois

passaram por instituições de cunho psiquiátrico.

Uma vez inseridos nestes locais, os sujeitos são, como eles contam, massificados

(mesmo remédio para todos) e tornam-se meros objetos. É comum a comparação com

animais. A comparação com jaulas (quartos) é uma alusão aproximada da realidade de

um zoológico. Um entrevistado, J. da Lavanderia, chegou a relatar que cerca de 90%

das internações são decorrentes de problemas com a síndrome de abstinência alcoólica

(SAA). Nosso pesquisado aponta que há uma inadequação com o tipo de tratamento

dispensado, visto que não existem cuidados diferenciais. Como não se sabe ao certo o

que fazer ao se observar os sintomas, interna-se arbitrariamente em instituições de saúde

mental.

Este dado é fundamental, uma vez que aponta o descuido da sociedade e das

autoridades com essa população. Além da generalização, o hospital psiquiátrico é

tomado como espaço de higienização social. Outro aspecto importante é perceber que o

sujeito tem consciência disso, contrariando representações que colocam a população de

baixa renda, alcoólatra ou portador de transtorno mental como desconhecedores de sua

realidade e passivos na sua existência. A visão de homens que postulamos no terceiro

capítulo deste trabalho vai de encontro a tal perspectiva.

Um sentido bastante recorrente diz respeito à culpabilização, por parte dos

moradores de rua, em relação ao álcool como substância. “A bebida é que traz muita

desgraça no mundo. Talvez se não fosse a bebida nada disso teria acontecido. [...] a

cachaça me fez andar por cantos que se eu tivesse bom, não teria chegado nem perto”

(D. Juan, grifo nosso). A responsabilidade pelo ato é atribuída exclusivamente ao

álcool. Talvez este seja o sentido principal que impeça uma real superação, uma vez que

a questão basal do tratamento é o reconhecimento de que há uma relação – no caso a do

sujeito com o álcool - a ser transformada.

Page 62: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Entendemos que há uma diferença entre culpabilizar a bebida e compreender que

o comportamento de beber é responsável por algumas situações do cotidiano dos

moradores de rua. Essa diferenciação é fundamental porque retira da substância em si a

responsabilidade e as conseqüências do ato, e volta atenção para a relação da pessoa

com droga (lícita ou não). Esta é uma outra naturalização corriqueira, pautada em

estereótipos, tanto da parte dos sujeitos, como da parte das ações voltadas para esta

camada da população.

Podemos pensar esta situação também como uma forma de alienação. Não há o

reconhecimento, por parte do sujeito, de seus limites, as causas e as consequências de

seus atos. Indagado sobre como ele percebia a influência do álcool em toda a sua vida –

família, trabalho e amigos – um entrevistado (Varredor) disse que não existia nenhuma

relação, que a cachaça não atrapalhava em nada. Esta fala entrou em contradição com

todo o contexto do que era narrado por ele, uma vez que o álcool foi o grande

responsável (segundo ele mesmo, em um outro momento) pela sua saída de uma casa de

abrigo para a rua.

É comum o abuso da sustância aparecer atrelada a outras vivências como, por

exemplo, a conquista de mulheres. Há um ciclo complexo nesse sentido: os locais onde

se faz uso de álcool são cheios de mulheres; elas, por sua vez, valoram positivamente

quem bebe; é preciso ter coragem para “chegar junto”. Então, faz-se uso de bebida

alcoólica. Toda essa realidade concorre para o favorecimento do vício. “Nada me levou

pra provar da cerveja. Mas também uma coisa me influenciou. Na época, eu era mais

novo, aí eu conheci umas mulher lá” (Varredor).

O abuso de álcool foi significado também como fuga da realidade. Chegando a

níveis insuportáveis de sofrimento, o sujeito abusava da cachaça, como um tipo de

analgésico existencial.

“A cachaça pra mim é como um refúgio. Mas fazia era piorar. Não tinha coragem de procurar uma pessoa para dialogar. Ai me afogava no álcool. Aí pra mim tava tudo bem. [...] Só que na rua, qualquer raivazinha a gente vai pegar no álcool” (J. da Lavanderia).

A cachaça é a bebida mais consumida e mais popular entre os moradores de rua. Como já alertamos no segundo capítulo, as bebidas destiladas são aquelas que possuem teor alcoólico mais elevado. Com isso, sua ação no comportamento e os prejuízos neuronais são mais incisivos. No contexto da situação de rua, essa escolha não é aleatória: é a bebida mais barata, que se encontra com maior facilidade e traz efeitos de maneira mais ágil. Além disso, é a representação do “macho nordestino”, que suporta a sensação inflamadora que a bebida proporciona, da “dose que desce queimando a

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garganta”. Mais uma vez, gostaríamos de atentar para esta questão de gênero que, a nosso ver, é um significado fundamental na construção do imaginário que gira em torno do consumo etílico. Em relação ao uso da bebida alcoólica vinculado a algum tipo de droga ilícita,

não observamos essa aproximação de forma direta. Isto foi importante porque a

significação socialmente compartilhada é a noção de “porta de entrada”, ou seja, que

uma droga de menor efeito sedativo leva o sujeito à experimentação de substâncias mais

pesadas. Pesquisas realizadas com a maconha negam esse movimento24. Mesmo assim,

é interessante a forma como a bebida é significada como uma droga: “Então o que tive

como droga na minha vida foi a cachaça” (J. da Lavanderia).

No momento do uso intensivo da substância, o sintoma mais citado é a

“tremedeira e as alucinações” (delirium tremens). Em relação às repercussões a longo

prazo, a grande queixa em relação às consequências é uma defasagem considerável na

capacidade de memorização e a depressão. Em relação à primeira, D. Juan narra uma

situação bastante representativa:

E outra, que mais pro final, eu já tava fazendo as coisas e não lembrava mais. O que eu fazia, muitas vezes, eu esquecia. Às vezes, eu chegava em casa, e eu não sabia se no outro dia eu tinha bebido, se eu tinha voltado de bicicleta ou andando. Ia ver se a bicicleta tava dentro de casa e era a mulher que botava pra dentro. Eu sei que eu chegava de bicicleta, não sei como não caía.

A seqüela em curto prazo apontada foi a ressaca. Os incômodos fisiológicos são

recorrentes. “Agora só que as conseqüências vêm na ressaca, né? Quando eu passo de

dez dia no álcool direto, quando eu paro, as consequências vem na ressaca”

(Varredor). No entanto, a ressaca é compreendida também como “ressaca moral”, um

envergonhamento público por conta de um comportamento que sofre grande sanção

social. Interessante que, ao mesmo tempo em que há o estímulo publicitário, o

reconhecimento da masculinidade via bebida, a inserção do álcool em uma série de ritos

de passagem, ultrapassar o limite é motivo de repúdio social. Nesse sentido, há uma

norma a ser seguida, nem a ausência, muitos menos os excessos. O sujeito deve ser

padronizado, normatizado.

Para melhor explicar a realidade de rua atrelada à experimentação etílica, todos

os entrevistados se referiram à noção de “papudim”, esta como a caracterização de um

comportamento bem definido. Entendemos também como uma forma de delimitação

24 Para ver matéria completa consultar: http://www.opovo.com.br/opovo/cienciaesaude/654174.html (Acesso em 17/12/06)

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dos grupos, de reconhecimento de si e do outro. “Bem, para aqueles que bebem, assim,

o dia todo e todo dia. Isso tem um nome, né? Na rua, eles são conhecidos mesmo já

como papudinho” (Varredor). Este significado encontra aproximação com o que

entendemos por dependência, conceito que adiantamos no segundo capítulo deste

trabalho.

O significado supracitado encontra consonância com a diferença entre uso e

abuso de álcool (conceitos que também discutimos no segundo capítulo). Interessante

notar que o senso comum também se vale de conceitos, com menos precisão que o

conceito científico, mas que, de forma semelhante, ajudam no compartilhamento de uma

dada realidade. Estes são saberes qualitativamente diferentes, mas nem por isso um é

inferior ao outro. Ambos dão conta de uma mesma realidade, porém com objetivos e

métodos distintos. Varredor, ao explicar o porquê de se evitar o “primeiro gole”, faz

uma explanação bem esclarecedora da diferença entre uso e abuso:

É porque, vou explicar: as pessoas que bebem, esses que bebem só no final de semana, por esporte, esses tudo bem. Eu acho que se controla (uso). Mas as pessoas que passam 10 a 15 dias no álcool, aí, mesmo parando, passando uma temporada sem provar no álcool, assim dois, três, quatro ou cinco meses, sem provar no álcool. Aí, vamos supor que uma pessoa esteja cinco meses sem provar no álcool, aí um dia ele pensa: “É tou um tempo sem beber. Vou tomar só uma ali pra poder esquentar, uma ou duas”. Mas só que a pessoa não fica só numa. De jeito nenhum. Tomou a primeira, pronto. A primeira desce ruim. Desce rasgando e queimando. A segunda desce mais macio (abuso).

O ato de beber, em determinadas situações, é colocado como uma necessidade

básica, ao lado da alimentação. O trabalho aparece como fonte de renda que sustenta

tanto a alimentação básica quanto o álcool. Varredor nos explica com uma situação:

Aí passei a trabalhar na minha conta própria. Arrumei um estacionamento para trabalhar. Ali ao lado da escola normal, em frente à igreja do Pequeno Grande. Aí olhava o carro lá para poder me virar e sobreviver. Olhava o carro, lavava um carro. Era assim. Para ganhar alguma coisa. Tanto para o meu alimento, como quando eu quisesse tomar uma, né?

No geral, o sentido conclusivo atribuído ao álcool é bastante negativo.

Chamamos de sentido conclusivo as adjetivações que tendem à conclusão, a nomear de

maneira sucinta e lacônica uma determinada experiência. “Eu sei que o cão da bebida, é

o de mais ruim pode existir no mundo. [...] Eu costumo dizer que a cachaça não dá

caminho a ninguém não” (D. Juan). Após pensar um pouco sobre o que iria dizer,

Page 65: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Varredor afirma categoricamente: “O álcool é, pra mim, uma derrota”. O prejuízo, a

perda e sofrimento também são alguns sentidos constantes nos discursos.

Os sentidos produzidos sobre o álcool, como pudemos observar, são diversos.

Cada um surge de maneira singular, atrelado às histórias de vida, às produções culturais

e às práticas cotidianas. Uma vez inseridos nos contexto de rua, onde existe uma maior

permissividade para a alcoolização, os sentidos vão sendo, mais uma vez,

ressignificados.

Concebemos ainda a própria situação de entrevista e de produção escrita desta

monografia como momentos de elaboração dessas vivências. Nossas análises também

são interpretações parciais, sem pretensões de reproduzir fidedignamente o sentido e o

significado das narrativas. Nosso estudo visou a compreensão, entendendo esta de

forma localizada e datada.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

De antemão, gostaria de reforçar um clichê acadêmico que considero de suma

importância: a substituição de uma suposta “conclusão” para algumas “considerações

finais”. A processualidade desta segunda nomenclatura vai ao encontro da proposta

deste trabalho. Nesse sentido, há a possibilidade desta produção se desdobrar em outras,

em outros momentos, por outros atores.

Não tivemos o intuito de dados generalizáveis, mas que estes pudessem

contribuir para a compreensão de uma dada realidade. Importante que esta pesquisa,

longe de pretender ser um saber canônico, é mais um sentido produzido sobre a

realidade dos moradores de rua e sua vivência com o álcool. É um movimento em que a

academia também se apropria de uma temática que era anteriormente postergada.

Pudemos perceber a riqueza dos dados. Coletamos informações que poderiam

subsidiar outras pesquisas, como a relação da família com o morador de rua, o uso de

drogas ilícitas na situação de rua (que é uma outra realidade), a influência do gênero no

consumo etílico, sempre evitando as causalidades fáceis e aparentemente lógicas.

Quando tratamos do álcool no contexto de rua, observamos que a substância

predileta é a cachaça. Tal escolha não é aleatória – como já apontamos em nosso

trabalho – mas, principalmente, por causa da nossa cultura nordestina, essa eleição é

repleta de representações. Desde a época dos cangaceiros, ela foi associada à virilidade

e à força, demonstrada na cena em que o sujeito “toma uma, dose e esta desce

queimando”. Os demais, apenas reconhecem a força do sujeito. Podemos pensar

também numa questão de gênero e observar que não é à toa que mais da metade dos que

fazem uso de álcool, a nível nacional, são homens. Pesquisas nesse sentido poderiam ser

produzidas, aprofundando melhor essas relações entre masculinidade e álcool.

Outro ponto fundamental é a (re)formulação de políticas públicas, já que as

existentes não são suficientes e/ou são pensadas de maneira desarticulada. Essencial

seria a construção de mais casas de abrigos, a articulação destes com a rede de saúde, o

atendimento especializado à população dependente, a possibilidade de reinserção

laboral de alto nível e não apenas aquelas que reproduzem a cultura da pobreza. Falta

interesse real por parte das autoridades para com esta camada da população. Talvez seja

pela impossibilidade de mobilização e pela inexpressividade de votos dos moradores de

rua, uma vez que muitos nem título de eleitor possuem.

Page 67: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Uma vez proposta alguma ação, é importante atentar, sobretudo, que ao estar na

rua o sujeito cria vínculos com o espaço e com as pessoas ao seu derredor. Isto deve ser

levado em consideração. Não queremos dizer, com isso, que o espaço da rua é bom, mas

que qualquer intervenção, para ser eficiente, tem que ser pensada do ponto de vista do

sujeito a quem se dirige a ação. Não atentar para as peculiaridades na formulação de

políticas, na maioria das vezes, prescindindo de variáveis centrais, acaba fadando o

projeto ao fracasso. Quando do encontro do álcool com o mundo da rua, há a produção

de uma realidade ainda mais complexa. Por vezes, desconsideram-se as peculiaridades,

principalmente, de quem é portador da Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA).

A Psicologia tem a contribuir tanto como ciência – na compreensão das

variáveis envolvidas, na problematização da realidade e na desnaturalização dos

“óbvios” – como na proposição de uma práxis contextualizada, na capacitação de

pessoal e, principalmente, no planejamento de ações interdisciplinares. O movimento

histórico da saída dos consultórios e de um atendimento eminentemente individualizado

para práticas mais amplas está reverberando em termos sociais. Já existe um maior

requerimento da Psicologia na ponta de políticas sociais – como os CREAS (Centro

Especializado de Referência da Assistência Social). Este movimento só tende a crescer.

Percebemos, então, que a realidade de rua é mais que um simples problema de

habitação – no sentindo da falta de moradia para todos – mas há também fatores de

convivência familiar, do contexto sócio-econômico e, sobretudo, de problemas como o

alcoolismo. A Psicologia tem contribuição importante nesse sentindo, principalmente

atuando na área de prevenção e promoção, no esclarecimento, na proposição de grupos

operativos, na potencialização da família como rede afetiva etc.

Ao escutar as narrativas dos moradores em situação de rua, pudemos perceber

que são histórias arraigadas de muito sentimento, principalmente de sofrimento. É como

se cada morador de rua travasse uma luta diária pela sobrevivência, e o grande troféu

seja chegar ao final do dia com sua vida em punho. Quando falamos que o sujeito se

forja na imbricada relação entre seus desejos, suas peculiaridades e a trama sócio-

cultural compreendemos tal premissa nitidamente na fala de cada entrevistado. A

realidade certamente seria outra se houvesse mais oportunidades de emprego. O

fatalismo dispensado à temática, a partir do momento em que é historicizado, perde o

caráter de imutabilidade e começa a entrar em movimento. Outras possibilidades

surgem no horizonte. E elas existem, de fato!

Page 68: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

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Fontes.

Page 72: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

APÊNDICE 1

Roteiro de entrevista semi-estruturada

1) História de Vida

- Falar livremente sobre sua história de vida - Como chegou até a Toca de Assis - Noções da infância, adolescência e modo de vida 2) Contato com álcool

- Como foi o primeiro contato com álcool - O que o levou/motivou a experimentar - Quais as pessoas significativas que ele recorda que faziam uso dessa substância. 3) Uso/abuso de álcool

- Quais as situações de uso/abuso - Quais os tipos de bebida mais freqüente - Quais as implicações deste comportamento para a atividade laboral e a vida em geral - Quais as sensações e repercussões 4) Significado/Sentido do álcool

- Compreensão acerca do uso/abuso de bebida alcoólica (o que é) - Relação entre álcool e drogas (lícitas ou ilícitas) - Auto-percepção acerca do uso/abuso de álcool

Page 73: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

APÊNDICE 2

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO PARA PARTICIPAÇÃO EM PESQUISA

Estamos realizando uma pesquisa intitulada “Produção de Sentido(S) de Álcool em ex-Moradores de Rua”, cujo objetivo é estudar quais os sentidos que os ex-moradores de rua, da Fraternidade Toca de Assis, construíram em relação ao abuso de álcool no transcorrer de suas histórias de vida. Esta pesquisa trará contribuições importantes para a Psicologia Social. A sua participação será da seguinte forma: o pesquisador fará algumas perguntas através de uma entrevista que será gravada para melhor organizar as informações. É importante ressaltar que seu nome será mantido em sigilo. Com essas informações, gostaria de saber a sua aceitação em participar da pesquisa. É necessário esclarecer que: 1. a sua aceitação/autorização deverá ser de livre e espontânea vontade; 2. que você não ficará exposto a nenhum risco ou problema; 3. a identificação de todos os envolvidos será mantida em segredo; 4. que você poderá desistir de participar a qualquer momento, sem qualquer problema para você; 5. será permitido o acesso às informações sobre procedimentos relacionados à pesquisa ; 6. somente depois de ter entendido o que foi explicado, deverá assinar este documento. Em caso de dúvida, poderá falar com a responsável pela pesquisa, a Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço, Departamento de Psicologia, Av. Universidade, 2762, Benfica, CEP: 60020-180, fone: 40097728.

O Comitê de Ética em Pesquisa da UFC encontra-se disponível para reclamações referentes à pesquisa pelo telefone (85) 40098338

Fortaleza, ___de_________de____.

______________________________ Assinatura do sujeito da pesquisa

______________________________ Profa. Dra. Veriana de Fátima Rodrigues Colaço

Assinatura da responsável pela pesquisa

______________________________ Assinatura de quem obteve o termo de consentimento

Page 74: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

ANEXO 1

O Resto Do Mundo Gabriel Pensador

Composição: Gabriel O Pensador

Eu queria morar numa favela

Eu queria morar numa favela

Eu queria morar numa favela

O meu sonho é morar numa favela

Eu me chamo de excluido como alguém me chamou

Mas pode me chamar do que quiser seu dotô

Eu num tenho nome

Eu num tenho identidade

Eu num tenho nem certeza se eu sou gente de verdade

Eu num tenho nada

Mas gostaria de ter

Aproveita seu dotô e dá um trocado pra eu comer...

Eu gostaria de ter um pingo de orgulho

Mas isso é impossivel pra quem come o entulho

Misturado com os ratos e com as baratas

E com o papel higiênico usado

Nas latas de lixo

Eu vivo como um bicho ou pior que isso

Eu sou o resto

O resto do mundo

Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo

Eu sou... Eu num sou ninguém

Eu tô com fome

Tenho que me alimentar

Eu posso num ter nome mas o estômago tá lá

Por isso eu tenho que ser cara-de-pau

Ou eu peço dinheiro ou fico aqui passando mal

Tenho que me rebaixar a esse ponto porque a necessidade é maiordo que a moral

Eu sou sujo eu sou feio eu sou anti-social

Eu num posso aparecer na foto do cartão postal

Porque pro rico e pro turista eu sou poluição

Sei que sou um brasileiro

Mas eu não sou cidadão

Eu não tenho dignidade ou um teto pra morar

E o meu banheiro é a rua

E sem papel pra me limpar

Honra?

Não tenho

Page 75: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Eu já nasci sem ela

E o meu sonho é morar numa favela

Eu queria morar numa favela

Eu queria morar numa favela

Eu queria morar numa favela

O meu sonho é morar numa favela

A minha vida é um pesadelo e eu não consigo acordar

E eu não tenho perspectivas de sair do lugar

A minha sina é suportar viver abaixo do chão

E ser um resto solitário esquecido na multidão

Eu sou o resto

O resto do mundo

Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo

Eu sou o resto do mundo

Eu num sou ninguém

Eu num sou nada

Eu num sou gente

Eu sou o resto do mundo

u sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo

Eu sou o resto

Eu num sou ninguém

Frustração

É o resumo do meu ser

Eu sou filho da miséria e o meu castigo é viver

Eu vejo gente nascendo com a vida ganha e eu não tenho umachance

Deus! Me diga por quê?

Eu sei que a maioria do Brasil é pobre

Mas eu num chego a ser pobre eu sou podre!

Um fracassado

Mas não fui eu que fracassei

Porque eu num pude tentar

Então que culpa eu terei

Quando eu me revoltar quebrar queimar matar

Não tenho nada a perder

Meu dia vai chegar

Será que vai chagar?

Mas por enquanto

Eu sou o resto

O resto do mundo

Eu sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo

Eu sou o resto do mundo

Eu num sou ninguém

Eu num sou nada

Eu num sou gente

Eu sou o resto do mundo

Page 76: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

u sou mendigo um indigente um indigesto um vagabundo

Eu sou o resto

Eu num sou ninguém

Eu num sou registrado

Eu num sou batizado

Eu num sou civilizado

Eu num sou filho do Senhor

Eu num sou computado

Eu num sou consultado

Eu num sou vacinado

Contribuinte eu num sou

Eu num sou comemorado

Eu num sou considerado

Eu num sou empregado

Eu num sou consumidor

Eu num sou amado

Eu num sou respeitado

Eu num sou perdoado

E também sou pecador

Eu num sou representado por ninguém

Eu num sou apresentado pra ninguém

Eu num sou convidado de ninguém

E eu num posso ser visitado por ninguém

Além da minha triste sobrevivência eu tento entender a razão daminha existência

Por quê que eu nasci?

Por quê tô aqui?

Um penetra no inferno sem lugar pra fugir

Vivo na solidão mas não tenho privacidade

E não conheço a sensação de ter um lar de verdade

Eu sei que eu não tenho ninguém pra dividir o barraco comigo

Mas eu queria morar numa favela amigo

Eu queria morar numa favela

Eu queria morar numa favela

Eu queria morar numa favela

O meu sonho é morar numa favela.

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ANEXO 2

+ 1 Dose Gabriel Pensador

Composição: Pensador/frejat/rodrigo/guto/peninha/fernando/tiago

Mais uma dose

É claro que eu tô afim

A noite nunca tem fim

Por que que agente é assim?

Aê! Garçom! Traz aqui pra mim

Mais uma dose, "é claro que eu tô afim"

Tin tin! Como diz o ditado: "A noite é uma criança", mas eu é que tô sempre mamado

É mel na chupeta, pinga na chupeta, cerva na chupeta, vinho na chupeta

Uísque na chupeta, mamãe eu quero mamar

Dá a chupeta pro neném não chorar!

Eu quero álcool! Pode encher a tarça

Nem quero saber se é champanhe ou cachaça

Passa pra cá! Passa o goró

E deixa eu virar num gole só!

... Foi mal, pô

Num tô legal

Tô com muito sangue no meu álcool

Daqui a pouco vou parar num hospital para tomar injeção de glicose

E depois vou acabar num caixão com cirrose

Mas por enquanto eu quero mais uma dose

Mais uma dose

É claro que eu tô afim

A noite nunca tem fim

Porquê que agente é assim?

Quando eu tô triste eu bebo pra esquecer

Quando eu tô feliz eu bebo pra comemorar

Quando eu não tenho motivo pra beber

Eu encho a cara de bebida até vomitar

"Você pensa que cachaça é água, vacilão? Cachaça não é água não"

Não! Nem me fale em água filtrada nem água mineral

Que se eu bebo um troço desse eu passo mal

Água pra mim só se for aguardente

Até pra tomar banho ou escovar os dentes

Sem bebida a vida não presta

Se tem festa eu sou o chato e se tá chato eu sou a festa

Eu num como ninguém, mas eu bebo bem

Page 78: VIVÊNCIA DE RUA E ALCOOLIZAÇÃO: A PRODUÇÃO DE

Da número um a número dez, a número cem, a número mil!! "Eu sou da turma do funil!"

Bebo até cair mas depois me levanto

Abro mais uma e dou um gole pro santo

A birita é sagrada: A minha religião

A dieta equilibrada: É um copo em cada mão

"Uma cervejinha pra abrir o apetite

e mais um chopinho acompanhando a refeição

Depois a caipirinha pra tomar de sobremesa

e só um licorzinho prafazer a digestão

E agora? Vamô embora?"

- Num fala besteira! Garçom, a saideira!

Mais uma dose

É claro que eu tô afim

A noite nunca tem fim

Porque que agente é assim?

Ai... Que ressaca! Minha cabeça tá doendo paca

Eu não passo de um babaca

Corpo podre, mente fraca, que psicose!

Ontem entrei no tapa só por causa de uma dose

Que onda errada!

No fim do mês ainda tenho aquela conta pendurada lá no bar

Vou ter que deixar a metade do salário

Na olimpíada do copo eu sou o primeiro voluntário

Comigo é páreo duro, eu engulo qualquer mistura

Quanto eu tô duro serve até cachaça pura

Loucura? Não. Doença, cara!

Eu nem me lembro como ontem eu cheguei em casa

Só sei que eu acordei com uma baranga do meu lado e lembrei que a minha mina já tinha me

abandonado

Ih! Que dia é hoje? Hoje é segunda!

Ah, mas no trabalho eu já levei um pé na bunda

E eu continuo me afogando nessa poça de álcool só que a poça tá ficando muito funda!