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VIVÊNCIA DE CORPO E ALMA

Vivência de Corpo e Alma

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Capa e Ilustração/Edição Fotográfica/diagramação e Layout:Renata Silva e Vivian Souza

Entrevista com os prficionais responsáveis pela intervenção:Vivian Souza

Entrevista com os pacientes da casa de Saúde Anchieta:Carolina Robortella

Pesquisa:Renata Silva

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“...Como repetir, dia seguinte após dia seguinte,a fábula inconclusa,

suportar a semelhança das coisas ásperasde amanhã com as coisas ásperas de hoje?...”

Carlos Drummond de Andrade

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Agradecimentos

Fazer um trabalho como este requer tempo, disciplina epaciência, mas não apenas vindas de nós, autoras destelivro. Sem as pessoas à nossa volta, com certeza não teríamoschegado ao fim desta etapa. Elas nos deram a força queprecisávamos, na hora certa, mesmo com todas asdificuldades do dia-a-dia.

Primeiramente, agradecemos aos nossos entrevistados, etambém às pessoas que nos ajudaram de todas as formas,para tornar nosso trabalho possível.

À nossa orientadora, Helena Gomes, somos eternamentegratas. Sabemos que não é fácil orientar vários grupos aomesmo tempo, como aconteceu com você. Mas mesmo comesta dificuldade, demonstrou atenção e paciência nas horasmais precisas, nos mostrou o caminho no momento maisdifícil, e, o mais importante, soube respeitar nossas idéias,e, por outro lado, quando era preciso nos deu a “bronca”necessária nos momentos de confusão.

Agradecemos também à professora Karina Batista, quealém de amiga nos deu uma grande ajuda com a diagramaçãodeste livro.

Este trabalho significa o fim de uma importante fase denossas vidas: o final da faculdade. Sabemos que, de agoraem diante, como jornalistas formadas, os obstáculos só irãoaumentar de tamanho. Não sabemos o futuro que nos espera,mas temos em mente que não chegaríamos até aqui sem a

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confiança e a paciência deles: nossos pais e parentes.À Osvaldo, Suzana, Mariana, Oswaldo e Jenny, família da

Carolina; Gercio, Albertina, Cristina, Alynne e Isabella, famíliada Renata; Carlos, Tânia, Manuela e Vitor, família da Vivian,e a todos os nossos demais familiares, agradecemos todo oesforço feito para que nós chegássemos até aqui. Difícildescrever o quanto vocês nos ajudaram, e o tamanho dagratidão que sentimos... São imensuráveis.

Não poderíamos deixar de agradecer aos nossos amigos enamorados, que nos entenderam nos momentos depreocupação, e nas horas de estresse, muitas vezes nosdando palavras de apoio e tranqüilidade em momentosextremamente importantes.

Agradecemos também a todos os professores do curso deJornalismo da Unimonte, e aos nossos colegas de sala, quepassaram por este momento conosco nos apoiando com atroca de experiências.

E por fim, porém mais importante, a Deus, que nospossibilitou a vida, nos privilegiando com as nossas familias,e essas pessoas à nossa volta, fazendo com que nossaexistência fizesse sentido.

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Sumário

Prólogo ..................................................................... 11Capítulo 1 - O início da nossa história ......................... 19Capítulo 2 - A influência da arte .................................. 35Capítulo 3 - Os NAPS ................................................. 51Capítulo 4 - Os Pacientes ........................................... 67Capítulo 5 - Luta antimanicomial ............................... 101Capítulo 6 - A fábula ................................................ 105Cronograma ............................................................ 109Arquivo Fotográfico .................................................. 113Bibliografia ............................................................. 122

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Prólogo

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Os problemas psiquiátricos não fazem parte apenas da recente históriada humanidade. Há milênios, o ser humano trava um intenso e cruciantecombate com forças mentais até agora pouco conhecidas e, invariavel-mente, perde a batalha em meio a conflitos reais ou imaginários.

Quando revisamos relatos de épocas remotas e seguimos rumo aos diasatuais, percebemos claramente que a “loucura” sempre esteve, está eprovavelmente continuará presente na humanidade.

Fato relevante é notar que não há uma relação direta com o fatorsócio-financeiro daqueles que desse fel sentem o gosto e os efeitos.Pobres, ricos, negros, brancos, todas as raças, das mais desenvolvidasaté aquelas recém-descobertas em meio a florestas ainda virgens, todasas comunidades em todos os tempos têm suas histórias reais sobre essemal que afeta não apenas quem o sente no corpo e na alma, mas tambéma todos em seu meio.

O assunto é fértil e propicia as mais acaloradas divergências de opini-ões, justamente por se tratar de algo que ainda não podemos dominar coma exatidão da matemática, com a comprovação da física e, portanto, sobraespaço para pesquisa e estudos, opiniões e observações sempre valiosas.

Várias são as correntes que “entendem” o assunto a seu modo. Algunspela formação acadêmica e pelos anos no tratamento a pacientes portado-res de problemas psiquiátricos. Outros pelas crenças religiosas. Mas, narealidade, o caminho para o entendimento total e domínio do assunto pare-ce ser sinuoso e de difícil acesso.

A mente humana, até agora, é algo indecifrável. Passamos do amor aoódio, do desejo a repulsa, da compreensão ao aniquilamento animalescode nossos semelhantes de maneira incompreensível. Inconcebível se le-varmos em conta que somos seres dotados de capacidade de discernimentoe inteligência superior a todas as outras criaturas que conhecemos emnosso planeta.

Neste livro, o leitor encontrará um apanhado de fatos diante de ummundo vasto e desconhecido, caminhos trilhados por tantos seres huma-nos forjados na dor e no sofrimento, no esquecimento e abandono, nas

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internações intermináveis, nos atos desumanos sofridos e praticados, en-fim, na vida vazia e intrínseca de alguém cuja mente obscurece o corpo e aalma que anima uma matéria incompreensível. São depoimentos de ex-pacientes da Casa de Saúde Anchieta, propriedade privada que começou afuncionar em 1951.

Os internos estereotipados como “loucos” eram torturados, marginaliza-dos e esquecidos desde aquela época. A sociedade os excluía de seu meio.Era cômodo fazer de conta que essas pessoas que sofriam de algum distúr-bio mental simplesmente não existiam. Parecia simples, fácil, deixar de ladotantas almas inquietas, subjugadas em um mundo cujo corpo material, bemmaior do ser humano, não fizesse a menor diferença no mundo em que nós,“seres perfeitos”, vivemos no esplendor mental.

A história da Casa de Saúde Anchieta começou a ser notória em 1989,quando aconteceu sua intervenção pela Prefeitura de Santos. A princípio,a realidade de maus-tratos, conhecida apenas na região, não demorou aser fato discutido em nível nacional, chegando ao ápice de divulgaçãoquando se tornou assunto de interesse mundial.

Conhecido como “Casa dos Horrores”, o local exibia um quadro desuperlotação, medicação sem controle, falta de atendimento clínico ade-quado aos pacientes, aplicação de eletrochoques como meio de tratamen-to e até o relacionamento pernicioso entre aqueles que deveriam aplicar aterapia e os pacientes da instituição. Casos de abuso de poder por partedos médicos que deveriam tratar dos pacientes são inúmeros, assim comobrigas, descaso dos familiares e até mortes ocorridas no Anchieta. Tudoisto você irá encontrar no decorrer deste livro.

O processo de intervenção se iniciou com uma avaliação clínica dosdoentes que se encontravam em total estado de abandono. Muitos apre-sentavam ferimentos infeccionados e casos de desidratação, entre outrosproblemas. Além disto, as instalações da instituição eram degradantes eassustadoras. Havia cadeados nas portas que davam acesso aos pátios decirculação interna, enfermarias trancadas, dias pré-determinados e horári-os rígidos para as visitas, falta de chuveiros com água quente e até prisões

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de pacientes no chamado “chiqueirinho” (área de confinamento dos consi-derados perigosos).

Tendo em vista este modo desumano de tratamento, foi acionado,então, um grupo de profissionais de saúde a fim de melhorar as condiçõesde vida daquelas pessoas. Médicos, enfermeiros e pessoas da área dasaúde, com poder de fazer muito pela saúde mental, se uniram com o idealde acabar com aquela situação.

A partir da intervenção do Anchieta, foram criados por estes profissio-nais os Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), com uma nova forma detratar os doentes mentais, pioneira no país, que seria depois “copiada” porvárias outras cidades. Os pacientes passaram a ser tratados, então, deuma forma completamente diferente, sendo respeitados como pessoas,com acesso aos direitos mínimos que todo cidadão tem, como um locallimpo para dormir, roupas limpas e diversas, banhos diários em chuveirosquentes, comida de qualidade. Além disso, começaram a ter acesso à arte,música, passeios pela cidade, participação de eventos. Enfim, os pacientessão tratados como “gente”. Este acontecimento gerou mudanças na cida-de, no país e no mundo, servindo de exemplo para muitos outros hospitais.Um fato mostrou que a sociedade está mudando, buscando dizer o quepensa e fazer o mundo melhor, prezando, sempre, a dignidade humana.

Uma das autoras do livro, a Carolina, quando tinha 8 anos de idade,acompanhou de perto o momento da intervenção. Ela viveu aquele aconte-cimento por ser filha de um dos profissionais chamados para fazer a inter-venção, a psiquiatra Suzana Robortella, que será apresentada em um dosnossos capítulos. Vários profissionais, que atuaram na intervenção, tam-bém foram entrevistados para este livro.

Não podemos deixar de relatar o quanto nos apavorou os momentos emque nos víamos em situações parecidas com as vividas por pacientes querecebem tratamento psiquiátrico. Foi então que nos lembramos de um dita-do popular que nos tranqüilizou: “de médico e louco, todo mundo tem umpouco”. Todas as experiências vivenciadas por nós enquanto produzíamoseste livro serviram para nos deixar seguras na hora de escrever sobre um

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tema que não é apenas complexo, mas também fascinante.Um momento difícil foi quando fomos entrevistar os ex-pacientes do

Anchieta. Logo nos veio à cabeça: como será entrevistar doentes men-tais? Durante os quatro anos de faculdade, aprendemos que, ao escreversobre algo, temos que responder às perguntas do “lead”, o primeiro pará-grafo da matéria jornalística: que, quem, quando, onde, como e por que.Mas... e quando não temos nenhum destes fatores? O que acontece quan-do nossos entrevistados provavelmente não sabem falar o que passaramno Anchieta, seja porque não se lembram ou porque sua “doença” não trazà tona o que realmente aconteceu? O que pensar no instante em que o seuentrevistado responde “4 mil anos” à pergunta: “há quanto tempo vocêesteve em tratamento?”

Pessoas perdidas, que não sabem dizer o que pensam, não conseguemdescrever o que ocorreu com elas nos momentos tão pavorosos de suasvidas. O que se esconde por trás daquelas vozes dopadas por remédios,das cicatrizes de maus-tratos, das tentativas de suicídio e seus cortesgrotescos em rostos, pulsos, no corpo e na alma?

Para estes pacientes, todo o sofrimento, a falta de humanidade comque eram tratados no passado, acaba fazendo com que eles mesmos seachem um fardo para a mesma sociedade que os exilou. Perdem a vontadede conseguir voltar a conviver normalmente nas ruas, em meio à coletivi-dade, tentando levar uma vida normal. Tudo isto se agrava com a falta deincentivo e auxílio por parte da família e até mesmo de alguns profissionaisda área de saúde. Mesmo assim, os pacientes nos deram um pouco de seutempo e pensamentos. Nos deram a chance de poder contar, mesmo queapenas em fragmentos, como foi para eles aquele momento tão intenso noAnchieta. Sabemos que não é nada fácil lembrar momentos ruins da vida emuito mais difícil contar para alguém que mal conhecemos um momento tãoíntimo, tão sofrido, que, com certeza, não será esquecido.

Um dia aqui, outro ali, marcamos hora, conversamos com jeito, explica-mos para os pacientes que faríamos um livro sobre a intervenção no An-chieta. Acabamos conseguindo que estes pacientes compartilhassem

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conosco o que foi vivido entre aquelas paredes, hoje envelhecidas pelotempo e pelo esquecimento, mas não pelas almas que por ali vagaram emdor, angústia, revolta e, com certeza, muito sofrimento em comum.

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CAPÍTULO 1O início da nossa história

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“Olho a baía de Botafogo, cheio de tristeza. Não acho tão belacomo sempre achei. Ao longe, os Órgãos não se vêem; estãomergulhados em névoa. As montanhas de Niterói estão sem ocobalto de sempre; (...) o casario está mergulhado, confuso,não se desenha bem no horizonte. Tudo é triste. O céu muitobaixo, cheio de fuligem, fumaça. O pão de Açúcar está emoldu-rado de nuvens brancas, parecem abaixar do cume. Vê-se ochalé do caminho aéreo. A Urca, também chanfrada, é de umaestupidez diante daquele cenário! A Urca não Muda.” (Lima Bar-reto)

De dezembro de 1919 a janeiro de 1920, o jornalista e escritor AfonsoHenriques de Lima Barreto foi internado no hospício Dom Pedro II, primeiromanicômio da América Latina, situado no Rio de Janeiro. Durante essainternação, escreveu sobre toda sua experiência, que deu origem às obrasO cemitério dos vivos e Diário íntimo. Ele morreu em 1922, de um colapsocardíaco, aos 41 anos.

Pessoas com mentes brilhantes e talentosas, muitas vezes são vistascomo perturbadas e incompreendidas desde os tempos mais remotos. As-sim como no caso do escritor Lima Barreto, muitos intelectuais famosos eoutros talentos anônimos sofriam e sofrem até os dias de hoje com opreconceito da sociedade que não tem entendimento da visão diferenciadada mente de cada ser.

Uns nascem com vocação para desenho, outros para exercer a medici-na. Bem, não importa qual a ocupação do indivíduo. A verdade é quesempre quando alguém se sobressai com idéias que fogem do comum, dohabitual, causam um impacto que leva a um distanciamento por parte dosque se consideram “normais”.

Não raro, familiares, amigos e até vizinhos buscam internar pesso-as com problemas relacionados ao uso de drogas, sejam elas legais(caso das bebidas alcoólicas) ou ilegais (maconha, cocaína e tantasoutras). O caminho encontrado, em geral, ainda é o que termina nas

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casas de saúde.O desconhecimento sobre o assunto, aliado ao sofrimento por que pas-

sam e vêem passar alguém tão próximo, levam a pessoa comum a imaginara internação em tais instituições como a solução ideal para recuperar asanidade mental daqueles a quem quer ajudar.

Por muito, muito tempo, não apenas pensamos assim, como agimosexatamente dessa maneira. Grande engano.

Sabemos hoje, felizmente, que há outras alternativas que possibilitam areadaptação, quando não a recuperação total do indivíduo e sua reinserçãona sociedade, sem que haja a necessidade de se trilhar os caminhos deantigamente.

Grupos de auto-ajuda constituem hoje importante papel na recuperaçãodo indivíduo, auxiliando-o a entender e a buscar a lucidez, o equilíbrioemocional, o autocontrole e, principalmente, como se manter afastado dacausa principal de seus males.

Os métodos utilizados por tais grupos são tão simples e práticos que,a princípio, é difícil crer em sua eficácia. Entretanto, nem todos obtêmos resultados desejados, já que vários são os fatores que impedem taisconquistas.

Podemos, sem constrangimento, citar algumas situações que dificul-tam ou até impedem a recuperação de pessoas, tais como a recusaabsoluta em aceitar e admitir sua doença, a idéia fixa de que é capaz dese controlar diante daquilo que lhe causa os problemas que enfrenta,velhos hábitos e o afastamento precoce das reuniões em grupo. Istotorna o indivíduo, efetivamente, o ser estigmatizado que, com algumarazão, chamamos de “louco”.

Por definição, a perda do controle emocional, ainda que temporária,transforma o indivíduo em “louco” aos olhos da sociedade, pois, nesselapso de tempo, ele pode agir de forma tresloucada, tomando atitudes ereagindo de forma desequilibrada mentalmente. Este comportamento podelhe causar sérias conseqüências e complicações, colocando em risco nãoapenas sua segurança e integridade física, mas de todos que atravessam

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seu tortuoso caminho.Há uma variedade substancial de causas para que um indivíduo che-

gue às raias da “loucura”. A ciência evolui e pesquisa a mente humana acada novo amanhecer. Portanto, não devemos desanimar diante do qua-dro desolador da figura de um ser humano tomado pela “loucura”. Antes,devemos crer na determinação dos pesquisadores e cientistas que cer-tamente encontrarão alguma luz capaz de iluminar os obscuros cami-nhos da mente humana.

O tema é simplesmente fascinante e, ao mesmo tempo misterioso, poispodemos conduzi-lo de várias maneiras. Para alguns, a “loucura” é umcastigo de Deus. Para outros, é uma provação a ser suportada. Não faltamaqueles que, incrédulos, só vêem os fatos segundo sua própria conveniên-cia. Há, ainda, a ciência que busca, pesquisa, experimenta e desenvolvenovos modelos e métodos para encontrar a cura do mal.

Nosso desejo é tentar compreender uma determinada época que setornou um marco na reforma psiquiátrica do país. Por isso, vamos aotema principal deste estudo: Casa de Saúde Anchieta, de propriedadeparticular, situada no litoral sul de São Paulo, na cidade de Santos.Fundada em 1951, era o único hospital psiquiátrico da região e abrigavatoda a classe excluída e marginalizada pela sociedade da época. O tra-tamento neste local era, no mínimo, espantoso, além de ser comumencontrar pacientes sendo maltratados ou até mesmo à mercê da pró-pria sorte, sem receber os tratamentos adequados.

Em 1989, a situação chegou ao extremo, com três mortes que ocorre-ram dentro do hospital. No dia 3 de maio, aconteceu a intervenção doAnchieta pela Prefeitura de Santos, sob o comando da prefeita Telma deSouza, do Partido dos Trabalhadores (PT).

O processo da intervenção teve início com uma avaliação clínica detodos os pacientes. Muitos estavam com ferimentos infeccionados etambém tinham outros problemas de saúde, conseqüência do modo comoeram mal cuidados. Fora isso, problemas nas instalações tornavam olocal ainda mais perturbador. Era possível se deparar com cadeados nas

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portas de acesso aos pátios. Normalmente, as enfermarias ficavamtrancadas. Existia até uma área de isolamento dos internos tidos comoperigosos, locais que pareciam prisões e que eram chamados de“chiqueirinho”. Os pacientes eram obrigados a tomar banhos gelados,pois faltavam chuveiros com água quente.

A instituição era chamada pela população de “Casa dos Horrores” porvários motivos, como o caos da superlotação, o atendimento clínico precá-rio, a utilização de eletrochoques como forma de tratamento, a falta decontrole nas medicações, entre outros graves problemas. Casos de abusode poder por parte dos médicos, que deveriam tratar desses pacientes,são inúmeros, além de brigas e descaso por parte dos familiares. Era umaverdadeira desorganização.

Com todos os problemas que começaram a fugir do controle e setornaram inaceitáveis, a administração municipal decidiu intervir como objetivo de resgatar a dignidade dos internos. Neste momento, ospacientes passaram a receber cuidados com o objetivo de reintegrá-los à sociedade.

A partir daí, foi formada uma comissão que contava com técnicos daSecretaria Municipal de Saúde comandada pelo psiquiatra RobertoTykanori Kinoshita, representantes da OAB, entidades da sociedadecivil, a Comissão de Direitos Humanos e vários veículos de comunica-ção da cidade. A realidade cruel do Anchieta se tornou de conheci-mento geral.

Segundo trecho do livro Anchieta 15 anos, de Paulo Matos:

“Eram cinqüenta pessoas que tiveram a oportunidade de confe-rir, naquela hora, o absurdo da situação que descrevemos, da-queles seres. (...) A imprensa descreve o quadro encontrado:homens e mulheres caminhando em círculos ou deitados pelochão. (...) A maioria não presta atenção e nem tem condiçõesde manter os olhos abertos, por culpa dos medicamentosfortíssimos e eletrochoques”.

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A INSPIRAÇÃO PARA O ANCHIETA

O Programa de Saúde Mental de Santos foi baseado na experiência dareforma psiquiátrica da cidade italiana de Trieste, coordenada pelo psiquia-tra Franco Basaglia (1924-1980). O médico teve importante peso nas mo-dificações ocorridas na política de saúde mental da Itália.

Basaglia mantinha um movimento que era conhecido como PsiquiatriaDemocrática, que se preocupava com a humanização do tratamento pres-tado aos doentes mentais, eliminando todas as formas de confinamento eos métodos abusivos de clinicar.

Estudando os conceitos do filósofo francês Michel Foucalt (1926-1984),Basaglia concordava com a idéia de que o manicômio era obsoleto, fruto doiluminismo e do capitalismo.

O Serviço Psiquiátrico de Trieste foi reconhecido pela Organização Mun-dial de Saúde (OMS) como a principal referência mundial para a reformulaçãoda assistência em saúde mental. E por fim, em 1978, foi aprovada na Itáliaa lei 180 de Reforma Psiquiátrica, que também é conhecida como lei Basaglia.

Alguns profissionais brasileiros trouxeram as experiências de Trieste eobservaram ser plausível o tratamento dos “loucos” sem a exclusão social.

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“Por isso o sistema foiÀ mais completa falência

Somando dez em fracassoZero em eficiência

Permitindo que nascesseUma nova consciência”

Manuel MonteiroLiteratura de Cordel

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O INTERVENTOR

“É preciso levar a sério o que pequenas desavenças significampara o paciente. Mas o ideal é que a internação passe a ser umsofá amigo e não uma cama de hospital”

Roberto Tykanori Kinoshita, psiquiatra

Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta em 1989

Entrevista realizada em 19/9/2005

Convidado por David Capistrano, Secretário de Saúde de Santos naépoca, Roberto Tykanori, com apenas 30 anos de idade, assumiu a defesada humanização do sistema de saúde mental da cidade. Baseado nas novastécnicas terapêuticas desenvolvidas no Centro Psiquiátrico Regional deTrieste, na Itália, onde passou um ano, Tykanori, deu início ao trabalhoconhecido como “A Intervenção do Anchieta”.

O psiquiatra foi para Itália quando estava no quinto ano da faculdade demedicina, no início dos anos 80. Em Trieste, ingressou na condição devoluntário da Saúde Mental, acompanhando de perto a reforma psiquiátricaarticulada pelo médico Franco Basaglia e aprendendo como lidar com oproblema que já havia se instalado por anos no Anchieta. “Tinha gentemachucada, com diarréia, infecções, pessoas sem braços de tanto ficaremamarradas”, lembra Tykanori ao se referir ao Anchieta. Ele precisou come-çar do zero: reorientar profissionais, treiná-los, criar condições para otrabalho. “Nada se resolve na porrada”, explica Tykanori.

ARQUIVO DESORGANIZADO

Quando Tykanori chegou ao Anchieta havia muitos pacientes em condi-ções de receber alta, mas isto não ocorria por que não existia o interessede reavaliação dos quadros clínicos de nenhum paciente por partes dosprofissionais que já trabalhavam no local.

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O arquivo do hospital estava entulhado de envelopes empoeirados comas fichas dos pacientes. A maioria dessas fichas não esclarecia quasenada da história dos internos. “Algumas pessoas foram internadas váriasvezes por motivos diferentes, e, no histórico, só constava o motivo daprimeira internação”. O paciente entrava no Anchieta e era rotulado comalgum tipo de distúrbio psicológico. Sempre que voltava ao hospital, con-tinuava sendo tratado com base no mesmo diagnóstico que havia causa-do a primeira entrada.

Tykanori procurou mudar essa situação. “Uma das nossas maiores preo-cupações foi a de reconstruir a identidade, a história pessoal dos pacientes”.

A DOENÇA DA INTERNAÇÃO

Muitos dos pacientes haviam perdido totalmente os laços com a socie-dade ou não eram mais aceitos por suas famílias. “Essas pessoas se torna-ram parte do processo de cronificação da doença mental incentivado pelaestrutura convencional de tratamento”, relata Tykanori. As assistentessociais concentraram seu trabalho na tentativa de colocação profissionaldesses pacientes. O processo foi lento e complicado, principalmente devi-do à resistência inicial da sociedade em aceitar alguém que, durante algumtempo, foi rotulado como doente mental. “Os trabalhos interno e externoforam complementares e indissociáveis”, explica Tykanori.

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“A exclusão social,A falta de meio antigo

A imposição das regrasPor quem não parece amigo

Eom vez de curar aumentamAs dimensões do castigo”

Manuel MonteiroLiteratura de Cordel

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EM SITUAÇÕES DIFÍCEIS, A MELHOR ATITUDE:ESCUTAR E APRENDER

“Ninguém bate sem motivo, nem mesmo o louco. Se você apa-nhar, pode ter certeza que lá no fundo você deu oportunidadepara que o motivo, mesmo que banal e sem sentido para mui-tos. Para o louco houve um bom motivo!”

Fátima Michellet, Assistente Social

Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta de 1989 a 1990

Entrevista realizada em 22/8/2005

O COMEÇO

A experiência da intervenção foi inovadora para muita gente. Uma incrí-vel lição de doação, competência e, acima de tudo, a descoberta de comotrabalhar com pessoas que estão em posição menos privilegiada. Com Fáti-ma, não foi diferente. Na época, havia se formado há somente três anos etudo era muito novo e desafiador. “Nós fazíamos de tudo”, declara Fátima.

Os profissionais mais experientes cuidavam dos mais novos e ajudavammuito para que aprendessem cada vez mais. “A gente podia dizer: eu nãosei!”. Quando ela não sabia como fazer alguma coisa, Tikanori dizia:

- Não sabe isso, mas sabe outra coisa, então vamos lá!Isto era muito interessante. O assistente social precisa ter bastante

noção de cidadania, liberdade, respeito e direito. E isto, com certeza,quem não tinha aprendeu.

Fátima já havia trabalhado na área da saúde, mas nunca tinha vistonada parecido com o novo desafio que aceitou.

Ela diz que o começo foi muito difícil. Com somente 23 anos, muitasvezes sentiu uma certa invasão corporal com o assédio dos pacientes, quenão estavam acostumados com pessoas de fora. Eles a puxavam pelosbraços. “Eles pegavam na gente o tempo todo, uns suplicavam pelas famí-

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lias, outros imploravam atenção ou reclamavam. Sempre estavam pedindoalgo. Isso é enlouquecedor!”.

Fátima confessa que, muitas vezes, sentiu até medo dos gritos e atitu-des de alguns pacientes que poderiam agredi-la. “Certa vez, sai correndoem direção à porta e bati desesperadamente. Ela só abria por fora e eugritava para que Jesus (o apelido do guarda responsável pela porta) abris-se logo aquela porta para que eu saísse e não voltasse nunca mais. Foi aíque Tikanori me chamou pra conversar e tomar um café. Ele me acalmou efez com que eu ficasse”.

VOLTANDO PARA CASA

Pelo fato de haver muitas pessoas internadas no Anchieta por um longoperíodo sem contato com as famílias, foi instaurada uma comissão de alta.

Este era o serviço de reintegração do paciente com a família e a socie-dade. Essa comissão de alta iniciou então alguns testes que funcionavamda seguinte maneira: o paciente passava o final de semana em casa e, nasegunda-feira, todos se reuniam, família, paciente e profissionais, parauma avaliação. Parece uma coisa muito fácil, porém contratempos existempara que sejam criadas novas maneiras de agir. Sobre o caso de Ercílio, umdos pacientes, vale a pena deixar a própria descrição de Fátima:

“Muitas famílias não iam até o Anchieta e a gente não tinha otelefone e endereço de muitas. Então, tínhamos que ir até acasa do paciente que, muitas vezes, nem lembrava onde era.Num certo dia, uma colega foi com o Ercílio procurar a família,que morava em São Vicente.Entraram na perua a assistente social, o motorista e aquelehomem de cabelos compridos e chinelão no pé, o Ercílio. Quan-do a perua do Anchieta parou em frente à casa dele, foi ape-drejada pela população. O motorista voltou correndo e elesretornaram para o hospital.

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As pessoas tinham pavor do Ercílio, porque se lembravam deleem crise indo para o Anchieta. Nesta época, o Renato (Di Renzo)começou a trabalhar teatro com o Ercílio que, por sua vez,começou a se sentir com o poder, se sentia artista.Um belo dia, o Renato nos convidou para ir à casa do Ercílionovamente. Domingão, entramos na perua, só que desta vezcom um frango assado e um refrigerante. A partir desse almo-ço, a relação de Ercílio com sua família começou a mudar. Hojeem dia, ele mora com ela no mesmo lugar em São Vicente etrabalha no Lixo Limpo (um programa de reciclagem do lixo)para sustentar a casa. Hoje ele é o cidadão Ercílio”.

O processo de reintegração familiar, formulado pela comissão de alta,iniciou um novo seguimento na parte da reintegração social, pois eramcometidas atitudes nada convencionais para que o paciente pudesse vol-tar ao lar. Certa vez, Fátima chegou a simular com um juiz uma ordemjudicial. Ela atendia uma família que tinha uma casa velha e em péssimascondições de moradia. Até pés de feijão brotavam dentro da casa. Umdos filhos dessa família denunciou o pai dele, que foi chamado para umaaudiência no Fórum.

No dia da audiência, Fátima foi ao Fórum e conversou com o juiz. Pediupara que ele retirasse o processo e simulasse uma ordem para que a famíliapermanecesse unida e não perdesse a casa. O juiz “deferiu” a seguintesentença: o pai deveria organizar a casa dentro de um prazo e deixar queas pessoas o ajudassem nesta organização.

A DOENÇA ALÉM DA LOUCURA

Havia no Anchieta um paciente bastante polêmico. Vamos chamá-lo deJoão. Ele veio da Bahia e não tinha parentes na região. Começou a fazeruso de bebidas alcoólicas e foi internado no Anchieta. Lá se deu inicio amelhora de João. Psicologicamente, ele estava cada vez melhor, porém,

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fisicamente, estava definhando.“Um dia, João veio até mim e disse que iria embora para a Bahia, que

havia contraído HIV e que queria morrer na terra dele”, conta Fátima.Fátima insistiu para que João ficasse e se tratasse, mas foi em vão. Ele

queria somente morrer junto à sua família.João, mesmo doente, estava feliz em poder rever seus familiares e levou

para eles vários presentes, roupas e sapatos. Por falta conhecimento so-bre a doença, seus parentes queimaram tudo o João havia levado. “Umacena triste que presenciei foi João voltando da Bahia completamente deto-nado”, desabafa Fátima.

Foi dado início a uma grande batalha. Agora teriam que tratar de João.“Ninguém queria interná-lo porque ele era portador de HIV e era louco”,afirma Fátima.

Com a ajuda de muita gente, Fátima conseguiu tratamento para João,que viveu ainda alguns anos, unindo os dois programas, o de AIDS e o desaúde mental.

A INTERVENÇÃO COMO ESCOLA

Atualmente, Fátima, aos 46 anos, diz que aprendeu muito mais doque uma profissão, que aprendeu a viver. Aprendeu a se relacionar me-lhor com as pessoas e que tem uma ótima experiência de vida parapassar para seus alunos na Universidade Católica de Santos, onde leci-ona. “Procuro contar a historia do Anchieta para os meus alunos logo noprimeiro ano em que estão na faculdade. Foi um momento muito intensoe não pode ser esquecido”.

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CAPÍTULO 2A influência da arte

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Existem diversos tipos de tratamento para pessoas que sofrem de trans-tornos mentais, mas muitos desses meios são grotescos e desumanos. Nãolevam em consideração que se trata de indivíduos que merecem recebertoda a assistência necessária, com o máximo de respeito e dignidade.

Foi pensando em tudo isso que, em 1946, a psiquiatra Nise da Silveiracomeçou a usar a terapia ocupacional como um novo método de tratamen-to para os doentes mentais. Empregando apenas atividades como pintura,modelagem e xilogravura, fazia com que os pacientes consolidassem seussofrimentos, angústias e medos. A técnica resultava em uma suavizaçãodos problemas dos que estavam em tratamento. Os médicos conseguiammelhores resultados, fazendo com que a terapêutica com remédios ga-nhasse uma grande força.

Todos os tipos de arte (não apenas as pinturas, mas tudo que envolva acriatividade e a sensibilidade do indivíduo) são de notável importância notratamento dos que sofrem de algum desvio mental. Nós mesmos podemosnotar o quanto é relaxante ouvir uma boa música, escrever um poema,assistir a um bom programa de TV, apreciar, ou até mesmo arriscar fazer umquadro ou uma escultura. Isso nos dá a impressão de estarmos sendoúteis, importantes, nos permitindo expressar nossos desejos inconscientese libertar nossas mentes, que normalmente estão presas às coisas docotidiano. O novo procedimento, a Terapia Ocupacional, só foi reconhecidode fato, como tratamento médico, na década de 60.

O fundamental para Nise era desvendar qual seria a importância dasimagens para os pacientes. E foi exatamente esse fato que a levou a sededicar e se aprofundar nos desenhos e símbolos feitos por cada indivíduo.

A psiquiatra não se conformava com os métodos de tratamento usuaisdaquela época e resolveu ajudar da sua maneira, mostrando a importân-cia da humanização, afeto e reconhecimento de capacidade de cadapaciente. Os trabalhos perpetuados pelos pacientes foram tantos e tãobem recebidos pelo meio artístico que acabaram dando origem ao Museude Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952, no Rio de Janeiro.Todas as obras foram reconhecidas e participaram de várias exposições

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pelo Brasil e no exterior.Vale ressaltar que o aspecto mais importante era, sem dúvidas, o lado

científico do acervo, já que todas as obras expressavam somente imagensdo inconsciente de pacientes que, em sua maioria, sofriam de esquizofrenia.O museu tem hoje mais de 350 mil obras e constitui um dos maiores acer-vos do gênero no mundo.

Nise morreu em 1999, mas deixou sua luta e seu intenso trabalho dededicação aos doentes mentais, o que hoje serve de inspiração para todosaqueles que se interessam por causas humanitárias, justas e nobres. Seutrabalho fica na história da reforma psiquiátrica do País e será sempre umareferência na saúde mental.

JÁ NO ANCHIETA...

A Associação Projeto TamTam, desenvolvida por Renato Di Renzo, teveinício no Hospital Anchieta, no ano de 1989, época da intervenção. Otrabalho, realizado com base no conceito artístico do ser humano, visavagerar a felicidade e a alegria mental, contribuindo assim para o aumento daqualidade de vida e de saúde mental de toda uma população. Começoucom aulas de teatro para os internos do hospital e logo se estendeu para apintura, música e dança.

Quando chegou ao Anchieta, Renato se espantou com a quantidade depacientes isolados do mundo e resolveu se dedicar a mudar essa situação.A partir daí, a rotina do hospital começou a mudar.

O início do trabalho consistia em ganhar a confiança dos pacientes paraque eles mesmos pudessem identificar suas próprias vontades e desejos.Começaram a produzir o jornal TamTam Urgente, que tinha oito páginassobre o hospital. Era uma produção dos ex-internos. Na área da pintura,faziam painéis e coloriam as paredes das alas, o que possibilitava uma realreabilitação e relação entre os internos.

Criaram uma grife, a TamTam Line, pintando a mão camisetas que eramcobiçadas por toda população da cidade. Houve também a TV TamTam,

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uma produção de vídeos com o cotidiano do Anchieta, que chegou até aser premiada em um concurso de vídeos de Santo André. Apenas oprimeiro contou com a colaboração de uma produtora. As outras grava-ções já foram feitas exclusivamente pelos internos e ex-internos. Então,surgiu o principal, a Rádio TamTam, que a princípio funcionava apenasdentro do Anchieta. Mas cresceu tanto que acabou se expandindo e, nodia 5 de novembro de 1990, deixou de ser interna e passou a ser trans-mitida pela AM.

E aqui reproduzimos uma abertura do programa da Rádio TamTam,publicada no encarte da edição nº 257 do jornal D.O. Urgente de 3 demaio de 1990:

“A Rádio vem aí!E agora, no ar... Rádio TamTam!A ousadia era tanta que se já não bastasse a TV TamTam esurge então... TamTamratam, Rádio TamTam. A pioneira a trans-mitir nas ondas malucas de um hospital psiquiátrico, para omundo dos sãos e também para quem não é.A programação, como não poderia deixar de ser, será bem vari-ada, isso para não fugir à regra. Os equipamentos já estãoencaixotados em algum “canto” do hospital. Os locutores afi-nando suas gargantas. Logo surgirão aulas de dicção, portugu-ês, mixagem, aulas para disque jóqueis etc etc.Não se surpreendam se um dia, ao ligarem a rádio de seuscarros, tiverem o grande prazer de viajar ao lado da agradávelcompanhia de um paciente do Anchieta”.

A Rádio era feita de forma simples e bem coloquial, produzida com aintenção de levar a sociedade para dentro da realidade do Anchieta. Enada melhor do que um veículo de comunicação para expressar a novarealidade que começava a fazer parte do dia-a-dia das pessoas.

Foi assim, seguindo o exemplo dos projetos realizados por Renato, que

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começaram a surgir em várias partes do Brasil e até mesmo fora do Paísorganizações como Rádio e TV Pinel (Rio de Janeiro), Grupo Biruta (SãoVicente), Projeto e Rádio Lokomotiva (Natal) e Rádio La Colifata (BuenosAires), entre outros.

Sem sede fixa desde 1997, a principal ação da ONG TamTam vem acon-tecendo no Espaço Cultural Café Teatro Rolidei, um multiplicador e mantenedordas atuais ações da ONG. Desta forma, mantém acesa a discussão sobre aexclusão/inclusão social e seus estigmas e rótulos, sob a ótica da arte e desua ação junto à sociedade contemporânea. Não como terapia, mas simcomo qualidade de vida e opção ética e estética na construção de umanova ordem e na desconstrução dos saberes absolutos e indissolúveis.

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“Quem ‘sabe criar’ e queré estimulado a isso

mas cria com liberdadesem limite ou compromissoporque as regras embaçam

da arte o brilho e viço”Manuel Monteiro

Literatura de Cordel

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A NOVELA DA RAZÃO

“Quando você está com dor de barriga e vai ao médico, ele nãomanda tirar a barriga. Ele manda tirar a dor. Com a loucura, é amesma coisa. Você não tira a loucura e sim a dor. Se arrancar-mos a loucura, perderemos sonhos, utopias, a vontade de viver!”

Renato Di Renzo, Arte-Educador e pós-graduado em Pedagogia

Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta de 1989 a 1990

Entrevista realizada em 17/8/2005

O DESTINO

Convidado pela psiquiatra Suzana Robortella para trabalhar no Anchieta,Renato ficou empolgado com a idéia. Nascido na cidade de Santos, eleteve uma experiência um tanto peculiar com o hospital.

Quando criança, Renato morava na rua ao lado do Anchieta e costuma-va ficar do lado de fora dos enormes muros do hospital ouvindo os gritosdos pacientes. Seus amigos já previam o destino da criança que mais tardese tornaria um dos grandes contribuintes para a melhoria da saúde mentaldo País. Em tom de brincadeira, a garotada sempre dizia para Renato:

- Você ainda vai acabar parando no Anchieta!

A ARTE COMO VEÍCULO DO DESEJO À VIDA

O modelo de reforma psiquiátrica era muito preso à cidade de Trieste, naItália, onde este trabalho foi iniciado. No Brasil, ainda faltava alguma coisa.O arranque deveria ser dado, mas precisava ser de forma inovadora. Erapreciso criar uma nova cultura.

Para Renato Di Renzo, fundador do projeto Tam-Tam, o próprio projetonão passava de uma loucura dentro da loucura. “Tirar pessoas que estãohá 18 anos internadas, ou até mais, e recolocá-las na sociedade, é coisa

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de doido! Estávamos quebrando uma cultura já fixada”, lembra.A diferença do que foi feito em Santos para o que era feito no restante

do mundo foi uma só: o meio com que a arte foi usada. “Oficinas terapêu-ticas existem em todos os lugares. Na Inglaterra, por exemplo, há oficinase comunidades terapêuticas. Trazer artistas para desenvolver um trabalhotodo mundo faz. Desde que eu era moleque e ia lá, no Juquery, porqueestudava em São Paulo, já existia gente ensinando os doidos a pintar. Ogrande boom é que encontramos uma nova maneira. Fizemos diferente:colocamos a arte no processo de vida dessas pessoas. Somente aprendera pintar é insignificante. É preciso tirar disso um novo significado para avida da pessoa”.

O movimento artístico não consiste em transformar um paciente emartista para que ele deixe de ser louco e sim para que ele comece a seinovar, com vontade de fazer algo. O importante é recuperar o desejodessas pessoas. Todo o resto vem junto. “Quando se recupera o desejo,também se recupera o desejo de uma melhor comida, melhor moradia,melhor família”.

A PRIMEIRA CENA

Um dos pacientes perguntou para Renato o que ele tinha ido fazer lá.Renato respondeu:

- Teatro!“Ele ficou me olhando com uma cara de quem não tinha entendido.

Foi aí que olhei no pátio e vi que tinha uma TV. Então, eu disse: ‘vimfazer novela!’”.

A idéia de novela foi entendida imediatamente.Esse mesmo paciente disse que tinha vontade de fazer o papel do Papa.

Outro paciente queria ser um pirata.Pronto! Já estava montada a peça. O pirata ia para o Vaticano roubar

todo o dinheiro do Papa e fugir de barco.Enquanto uns pacientes montavam um roteiro improvisado, outros as-

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sistiam, surpresos. “Perguntei aos outros se eles haviam gostado doque eu tinha ido fazer lá. Entusiasmados, me responderam que sim”,lembra Renato.

O ENCONTRO

Renato disse aos pacientes que poderiam fazer novela juntos e lhespropôs um encontro. Marcaram, então, um dia, hora e local para que esseencontro acontecesse. Todos que gostariam de participar da cena deveri-am estar no pátio perto de um dos muros. “Foi a coisa mais engraçada domundo. Quando cheguei lá, os enfermeiros estavam todos intrigados por-que tinham vários pacientes encostados no muro desde cedo”.

Quando o artista disse aos enfermeiros que os pacientes estavam láporque ele havia marcado um encontro com eles, os enfermeiros gargalha-ram. Não acreditavam que loucos pudessem respeitar horários e compro-missos sem que lhes fosse imposto.

“Quando os vi encostados no muro, tive a certeza de que ia dar certo!”,conta Renato. Os acordos eram respeitados porque os pacientes eram,antes de tudo, consultados sobre eles. Estavam começando a se sentirimportantes, a perceber que não eram bichos e sim seres humanos.

Ainda havia no Anchieta o problema da restrição em juntar homens emulheres. Os técnicos do local queriam evitar a mistura por receio deenvolvimentos emocionais e sexuais. “Eu ia na ala feminina e combinava comas meninas de ir para a ala masculina para desenvolver um trabalho. Quemnão tivesse a fim de trabalhar não precisava ir”, conta Renato. Desta manei-ra, conseguiu, para a surpresa de muitos, integrar os pacientes homens e aspacientes mulheres sem que ocorresse qualquer tipo de problema.

CONTRATO VERBAL

Renato ressalta que o importante para que tudo corresse bem era sem-pre fazer as coisas marcadas e bem combinadas com os pacientes.

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Certa vez, Renato chamou alguns pacientes e avisou:- Preciso sair para buscar umas coisas. Vou trabalhar. Quem quer

trabalhar comigo?Quatro pacientes decidiram acompanhá-lo. No caminho, um dos

pacientes perguntou:- Será que a gente pode dar uma paradinha na praia pra fumar um baseado?E Renato respondeu:- Foi isso que nós combinamos?Assim, o paciente não insistiu. “Procuro trabalhar assim. É muito impor-

tante manter uma linha de respeito, chamar o paciente pelo nome, ouvir oque ele diz. A gente pode fazer tudo, brincar de tudo, desde que sejamosconvidados a entrar no metro quadrado de cada um”, explica Renato.

INFORMATIVO TAMTAM

O Jornal TamTam começou pela necessidade que havia de comunicaçãoentre os pacientes, médicos e técnicos. A comunicação interna em geralprecisava de alguma coisa nova que, além de informar, trouxesse inspira-ção para os pacientes.

A elaboração das pautas e dos textos do jornal era feita por Renato,juntamente com os internos.

As matérias falavam sobre os acontecimentos do hospital. “Teve um dia emque um açougue doou vários quilos de filé mingnon para o hospital e tivemosum almoço maravilhoso. No dia seguinte, o Ministério da Justiça mandou retirara carne que havia sobrado. Foi assim que saiu a matéria: O boi deu bode”.

Também era publicada no jornal uma agenda sobre os eventos do local.Quando o NAPS 1 (Núcleo de Apoio Psicossocial) foi inaugurado, o pes-

soal do TamTam pintou todas as paredes do local. Foi quando saiu a ediçãonúmero zero do jornal, com as ilustrações que enfeitavam, além das pare-des do NAPS, as páginas do informativo.

Com o passar das edições, o jornal foi ficando cada vez melhor. “Inven-tamos colagens e várias outras formas de aprimoramento”.

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A GRANDE FESTA

Antes da intervenção, ninguém se lembrava da rua São Paulo, ondese localizava o Anchieta. Muitos nem sabiam que ela existia. Ninguémpoderia imaginar que, com a intervenção, se tornaria um local onde aspessoas tinham vontade de passar, de ver e conhecer. Renato se em-polga ao relembrar a festa feita em comemoração a um ano de inter-venção. “Nós abrimos as portas do hospital. Algumas pessoas que fazi-am parte do TamTam e eu pintamos o prédio inteiro com várias cores,colocamos plantas na rua, trouxemos a banda do colégio Ateneu San-tista, que veio desfilando pelo Canal 2 até entrar na rua São Paulo.Dentro do hospital, a festa teve bolos, preparados com ingredientescedidos por uma fábrica de farinha. Fizemos churrasco e uma série decoisas. Convidamos todos os parentes dos pacientes internados. Aquelesque já estavam com a família também foram chamados. Foi uma belafesta, com queima de fogos e tudo! O mais interessante é que nenhumpaciente aproveitou para fugir”.

A festa foi um grande marco na história da saúde mental santista. Haviacartazes nas ruas. A mobilização dos vizinhos foi enorme. Eles ajudaram apintar o prédio durante a noite, colocavam seus carros em frente ao localcom os faróis acessos para iluminar o local, levavam cafezinhos e sucospara quem estava trabalhando na reforma, inclusive para os pacientes, quecolaboravam para que tudo ficasse muito bom. “Imagina um bando deloucos, que tomam remédios para dormir, acordados durante a madrugadapintando a fachada do prédio!”.

LOUCURA À SOLTA

Para Renato Di Renzo, o primeiro recurso usado para adesinstitucionalização do hospital foi o de “imitar” a Itália. Mas o que deucerto mesmo foi criar um novo caos dentro do caos já existente. Foiquebrar a barreira do “não”, parar com o “não pode isso” ou “não pode

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aquilo”. Hoje, a loucura está solta em todos os lugares. Existem muitostipos de depressões e, com isso, a indústria farmacêutica também cres-ceu bastante. O motivo é que agora existe remédio específico para cadatipo de loucura.

“Muitos têm síndrome do pânico. A gente vê a garotada tomando medi-camento como se fosse chiclete”, afirma Renato. “Você pode ter uma de-pressão chamada doença do afeto, que é uma falta de equilíbrio paradistribuir seu afeto”. Então, para o artista, a loucura está em tudo e emtodos. Qualquer motivo simples pode desencadear uma síndrome.

O próprio sistema educacional é uma grande loucura. “A escola quenós temos hoje é uma escola que castra as pessoas. Você pega umacriança na melhor fase no sentido de evolução, quando ela tem todaenergia do mundo, tudo funciona, não tem dor na cervical, não tem dorno braço, não tem nada, está tudo fresquinho, e põe trancada numasala de aula, por cinco ou seis horas, às vezes em período integral.Quando a criança chega em casa fica mais umas oito horas em frente auma televisão ou um computador. Colocam na escola um monte de psi-cólogos. Qualquer coisa que a criança faça é desvio de comportamentoe, na verdade, nada mais é do que uma manifestação de criança. Isto écastrar, é amordaçar a loucura”.

A LOUCURA COMO FUGA

Renato explica que afetos e carinhos são bons para o indivíduo emqualquer situação. Ser lembrado, independente da maneira que for, é omais importante. Tanto faz para uma criança ser colocada de castigo ouser elogiada. A professora se lembrou dela: ou porque é boa ou má. Istotambém acontece com as crianças de rua. “As pessoas têm medo do mole-que de rua, mas ele sabe que, de alguma maneira, desperta a atenção demuitos, seja por medo, desconfiança ou até mesmo dó. Ele é lembrado”.

Também é costumeiro ouvir a frase:- Coitadinho do louco...

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Mas, se pensarmos de outra maneira, poderemos entender um pouco domotivo pelo qual um indivíduo enlouquece. “Eu não tenho coisa alguma, maspasso a ter a partir do momento em que enlouqueço, começo a ter assistên-cia, a colocar medo, a ter poder, a ser classificado. Como louco, todos têmuma classificação na sociedade. Agora sou o louco esquizofrênico no quartonúmero quatro. Sou uma porcentagem! A pessoa consegue uma requalificaçãoatravés da dor”.

A padronização das pessoas é feita porque é muito mais fácil para classificá-las. “Ninguém vai para um baile para dançar com o mais feio. A gente apren-deu que existe um padrão e temos que seguir. Hoje, o homem tem que tiraros cabelos do peito. Teve uma época que pêlo no peito era sinal de virilida-de. As mulheres adoravam”.

CAFÉ TEATRO ROLIDEI

Atualmente, a ONG TamTam não tem sede própria. Seu únicomantenedor é o Café Rolidei. Trata-se de um espaço de cultura, ondecerca de 500 pessoas, por final de semana, se reúnem para dançar eassistir a peças elaboradas pelo grupo teatral Orgone. O Café fica den-tro do Teatro Municipal de Santos, em um cantinho bem escondido.“Vários empresários olharam esse lugar e disseram que era um lixo, quenada poderia ser feito. Então eu disse: ‘me dá que eu quero!’”. Renatoesclarece que a primeira tentativa desse tipo de bar foi feita na épocaem que o ex-prefeito de Santos, David Capistrano ainda era vivo. Mas obar que se chamava ZAZARAZÁ não durou muito, apenas quatro meses.O lugar era muito sofisticado e faltava uma pitadinha de loucura.

Agora o Rolidei é conhecido por muitos em Santos e até mesmo nascidades vizinhas, o que traz ótimas perspectivas para a ONG TamTam,já que os lucros do local são revertidos para a entidade. É interessan-te ressaltar que os atores são os garçons, faxineiros, divulgadores.Eles fazem todos os tipos de serviços voluntariamente e são dirigidospor Renato.

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COMO RENATO DI RENZO ESTÁ HOJE?

“O Renato continua do mesmo jeito que era naquela época do An-chieta, só que com menos cabelos. Continuo trabalhando muito”. Éassim que Renato descreve sua vida atual. Além da ONG TamTam, eledirige a escola de teatro da Secult.

Aos 52 anos, ele diz: “poucas pessoas da minha idade podem dizerque fizeram coisas que as deixasse bem. Eu posso”.

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CAPÍTULO 3Os NAPS

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Era necessário dar continuidade aos cuidados dos doentes mentais, aomesmo tempo em que se buscava encontrar algum meio de melhorar e modifi-car o modelo até então existente. Foi assim que teve início a criação de umanova proposta: os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS), que cuidam daassistência aos pacientes, e os Núcleos de Apoio Psicossocial (NAPS), que,além dos pacientes, cuidam também de suas famílias e de toda a sociedade.Existe ainda o Selab, um Serviço de Abrigo, para os pacientes com casoscrônicos . Estes pacientes são muito mais graves do que os dos NAPS.

O principal objetivo era inovar no tratamento, que não seria mais de internaçãoe exclusão, mas sim de uma readaptação com a sociedade, pois havia ficadoevidente a ineficiência do antigo modo de tratamento.

Os CAPS e NAPS são baseados no trabalho em equipes formadas porprofissionais de diversas áreas dentro da saúde, assim como psiquiatras,psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, musicoterapeutas, auxiliares deEnfermagem, visitadores domiciliares e monitores de oficinas. As responsabi-lidades são distribuídas igualmente e cada um exerce um papel importante nodesenvolvimento individual dos pacientes.

A organização deste novo meio de tratamento também contou coma comunidade e, principalmente, com a família dos que necessitamdesses serviços.

Hoje é possível encontrar unidades dos CAPS e NAPS beneficiando vári-os estados e municípios do Brasil, como São Paulo, Minas Gerais, Rio deJaneiro, Ceará, Bahia, Paraná, Paraíba, Goiás e Pernambuco.

NA CIDADE DE SANTOS

O primeiro NAPS a ser inaugurado foi o da Zona Noroeste em 1989. Otratamento era destinado aos internos da Casa de Saúde Anchieta. No início doprograma, coube aos assistentes sociais uma pesquisa intensa e aprofundadatanto sobre a situação dos pacientes quanto de seus familiares. Este núcleotambém contava com acompanhamento psiquiátrico com o propósito de ir libe-rando gradualmente os doentes, para que estes continuassem o tratamento

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fora do estado de internação.Outro benefício oferecido pelo NAPS era a preocupação em proporcionar

procedimentos terapêuticos apropriados para conter as crises sofridas pelospacientes, oferecendo abrigos temporários aos que não fossem capazes deficar em suas casas.

Depois da unidade da Zona Noroeste, foram organizados mais quatro núcleosque ficam nos bairros Encruzilhada, Boqueirão, Vila Mathias e Campo Grande.Eles oferecem os mesmos recursos.

As unidades oferecem diversas atividades artísticas que visam possibilitar eincentivar o lado criativo e produtor. Há a possibilidade do paciente passar o diatodo no núcleo e retornar para casa apenas para dormir, ou o inverso também.Não podemos deixar de mencionar que essas pessoas têm necessidades espe-ciais e diferenciadas, o que torna o trabalho mais intenso e personalizado.

Vale deixar registrado a Lei 10.216, sancionada em 6 de abril de 2001,pelo deputado Paulo Delgado (PT), cuja maior importância é a descrição dosdireitos concebidos às pessoas que sofrem de transtornos mentais.

“- Proíbe a internação em instituições com características asi-lares (hospícios e manicômios, por exemplo).- Determina a necessidade de autorização médica parainternação.- Exige a notificação compulsória do Ministério Público, no pra-zo de 72 horas, em caso de internamento contra a vontadeexpressa do paciente.- Diagnóstico e terapia passam a depender de autorização dopaciente ou de seu responsável legal”.

E O ANCHIETA?

Aos poucos, os pacientes da Casa de Saúde Anchieta foram sendo encami-nhados para os NAPS e Selab. O prédio onde funcionava o hospital ainda existe.Hoje, inúmeras famílias moram no local, que foi transformado em cortiço.

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“Quem quiser que seu doentevolte logo ao gozo da razão

pode aplicar-lhe na veiaamor e compreensãoque a resposta serábreve recuperação”

Manuel MonteiroLiteratura de Cordel

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UM NOVO CONCEITO EM PISIQUIATRIA

“É possível ficar louco, o que não dá é para ficar na solidão!”

Suzana Robortella, Médica Psiquiatra

Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta em 1989

Trabalhou no NAPS de 1989 a 1992

Entrevista realizada em 7/9/2005

MEMÓRIAS

Os maus-tratos que os pacientes do Anchieta sofriam não marcaramsomente a vida deles. Também deixaram muitas “marcas” em quem passoupelo local para intervir na selvageria indiscriminada.

Este é o caso de Suzana, hoje com 29 anos de psiquiatria, que lembrafatos mais do que emocionantes do ano de 1989, quando trabalhou nadesativação do Anchieta e na criação do primeiro Núcleo de Apoio Psicos-social (NAPS).

O primeiro contato de Suzana com o hospital psiquiátrico havia sidoanos antes da intervenção, como estagiária, quando estava no quarto anoda faculdade de medicina. É interessante ressaltar que maus-tratos nãoprejudicam somente quem os recebe, como também quem assiste a eles.Um grande exemplo disso é que Suzana apagou da mente a fase em que foiestagiária, guardando somente uma lembrança: mulheres colocadas contrauma parede, todas nuas, com os cabelos raspados, enquanto uma funcio-nária do local dava banho nelas com uma mangueira de água fria. “A ima-gem era semelhante à imagem de um campo de concentração”, explica.

O CONVITE

Suzana não trabalhava no Anchieta no início da intervenção, mas selembra com exatidão da data em que voltou a pisar no local. Um mês após

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o começo da desmontagem do hospital, no dia 21 de junho de 1989, Suza-na deu o primeiro passo para uma nova experiência profissional, que tam-bém trouxe mudanças em sua vida pessoal.

Antes, ela trabalhava na psiquiatria do Hospital Guilherme Álvaro, exis-tente até os dias atuais. Como não havia certeza se o proprietário doAnchieta conseguiria reverter a intervenção municipal na justiça, Suzananão sabia se seria de fato contratada pela Prefeitura. Corria o risco de ficarsem emprego.

Porém, ao receber a proposta para trabalhar na intervenção, Suzana seviu com uma grande oportunidade nas mãos.

DESAFIANDO A FORMAÇÃO ACADÊMICA

Na época com 13 anos de profissão, ela estava acostumada ao concei-to aprendido na faculdade: as pessoas com problemas mentais tinham queficar trancafiadas e, muitas vezes, amarradas. Como viveu o período daditadura, a idéia de abrir as portas dos hospitais, criar uma comunidadeterapêutica e disponibilizar novos serviços era uma coisa totalmente dife-rente da que estava acostumada.

Suzana chegou no Anchieta no dia de uma festa junina. Foi quandoconheceu o psiquiatra italiano Franco Rotelli, que vinha sempre dar pales-tras e contar suas experiências na cidade de Trieste, na Itália. “Tudo eramuito interessante. Poder sair às ruas e fazer passeata no dia da lutaantimanicomial, ver um novo movimento libertário e, acima de tudo, estarjunto com os pacientes”, diz Suzana.

PACIENTE TAMBÉM ENSINA

A convivência com os pacientes foi um grande marco na vida de Suza-na. Foi a partir daí que seus conceitos começaram a mudar. “Eles meperguntavam: ‘doutora, já tomou sua medicação hoje?’. Me confundiamcom eles. Esta proximidade me ensinou muito do que eu sei. Talvez mais do

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que a faculdade tenha me ensinado. Foi esse aprendizado que eu tivecom os pacientes no dia-a-dia. Aprendendo a respeitar, ouvir, entenderos motivos deles”.

Às vezes, Suzana achava que era necessária a mudança de medica-ção, mas, se o próprio paciente não concordava, então ela voltavaatrás ou esperava um tempo para que ele entendesse e se acostumassecom a mudança.

Esta aproximação era muito importante para o relacionamento médico-paciente. Fazia com que eles confiassem uns nos outros. O tratamentopoderia, assim, seguir com mais tranqüilidade. Melhores resultados eramobtidos. “Ao invés do doutor que é o dono da verdade, que sabe o que émelhor para o outro, eu consegui encontrar o lugar de quem está junto,porque é o que realmente funciona”.

Suzana diz que aprendeu muito e que todos os profissionais envolvidoscom a intervenção tiveram ganhos na vida pessoal. As relações se estrei-taram, muitas pessoas se conheceram, houve casamentos e nasceramcrianças, estas chamadas de “filhos da intervenção”. Para a médica, aexplicação deste acontecimento é que todo esse processo foi muitoenriquecedor. As pessoas estavam mais abertas e sinceras, o que fez comque ocorressem muitas possibilidades afetivas.

AS DIFICULDADES

O fato de existir uma batalha jurídica era um dos maiores obstáculos aosucesso da nova proposta terapêutica. Por três vezes, a justiça decretouo final da intervenção. “A gente tinha que sair do hospital, voltavam osantigos administradores, voltava tudo ao que era. Havia nisso um sofrimen-to muito grande, por parte dos pacientes e da gente, porque não consegu-íamos colocar o trabalho para funcionar”, conta a psiquiatra.

A notificação da terceira decisão judicial que ordenava a saída dosinterventores, por algum motivo, não chegou às mãos do responsável.Houve uma comoção geral por parte da comunidade, pacientes e profissio-

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nais em geral. Como o comunicado oficial não foi feito, ninguém saiu dohospital. “A gente achava que não deveria sair para não colocar em risco avida dos pacientes, o projeto que estava se desenvolvendo, porque agente acreditava muito que valia a pena”.

As pessoas iam se revezando, passavam a noite junto aos pacientes,tudo para não correr o risco de não poder continuar o trabalho. “A genteficava lá, mas também havia voluntários, gente de todos os lugares, sindi-catos, igrejas, estudantes e vizinhos, ao invés das pessoas quererem sairde lá, todo mundo ia entrando!”.

Suzana conta que o papel da imprensa no caso foi muito importante. Asemissoras de TV exibiam em sua programação o drama do Anchieta, osjornais publicavam todo o processo da intervenção, fazendo com que hou-vesse uma comoção geral e apoio em nível nacional, o que dificultava odecreto do final da intervenção. “Acho que o apoio da imprensa foi deter-minante para que as coisas pudessem continuar”.

Enquanto essa notificação não era feita oficialmente, foi tramitandooutro processo paralelo em instância superior da Justiça, que deferiu aintervenção de uma vez por todas.

ZONA NOROESTE

O Núcleo de Apoio Psicossocial 1 (NAPS 1) foi montado em cima de umposto de saúde na Zona Noroeste. O preconceito por parte as pessoasque trabalhavam nesse posto de saúde era muito grande. “Me lembro deuma faxineira que não queria limpar os colchões, para que os nossospacientes dormissem. Ela dizia que limpar colchão de louco a faria pegar aloucura”, diz Suzana.

Fazer com que a comunidade da Zona Noroeste aceitasse seus doentesde volta não foi uma tarefa fácil. “Ninguém mais os conhecia”.

Suzana fez jus à expressão “dar um jeitinho brasileiro”. O marido delapossuía um Fusca. Então, ele guiava o seu veículo para alguma praça ourua e exibia o vídeo que tinha sido feito na intervenção. “Ele parava em

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frente às igrejas, praças, qualquer lugar que tivesse gente. As pessoasassistiam e a gente promovia um debate sobre o assunto. Era incrível areação e a tristeza das pessoas”, relembra Suzana.

Durante bastante tempo, também foram realizadas no NAPS reuniões,festas e bailes. Os moradores da área sempre estiveram presentes. “AZona Noroeste era muito carente de atividades de lazer e a gente propor-cionava isso para a comunidade”, explica. Como a comunidade ia ao NAPSpara ter esse momento de lazer, segundo Suzana, era inevitável o contatocom os loucos. Aos poucos, as pessoas foram aceitando os novos vizinhos.

Mesmo com todas as dificuldades, as coisas estavam acontecendo bem.A Prefeitura estava ao lado dos interventores, o que fez com que os paci-entes pudessem freqüentar as escolas públicas, trabalhar e se integrar àsociedade novamente. “A gente teve que tecer de novo o tecido da vidasocial das pessoas. Estava tudo esgarçado”.

RELATOS DE AJUDA

Suzana diz que os pacientes a ajudavam bastante no tratamento deoutros pacientes. A própria médica nos conta como:

“A primeira experiência marcante que eu tive no NAPS foi comuma jovem paciente.Ela estava grávida e não podia tomar medicação. E, para piorar,tinha um problema cardíaco.Essa paciente estava muito acelerada, andava pelo corredor deum lado para o outro. No corredor tinha umas pinturas quealguns pacientes fizeram com o Renato Di Renzo, criador doprojeto TamTam. Na primeira fase do TamTam, os desenhos eramtodos escuros. Havia várias cores, vermelho, azul preto, mastodas muito fortes.A paciente grávida cismou que o desenho da parede era umdemônio e isso fazia com que ela ficasse mais agitada. Ela

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esmurrava o demônio, ficava muito brava.A gente tinha que ficar andando com ela para frente e paratrás, sem saber o que fazer. Ela descia as escadas, ia para oposto de saúde, e lá estavam pessoas da comunidade, mulhe-res grávidas, mães com bebês, pessoas que estavam fazendoalgum tratamento. Tínhamos medo de que ela fizesse algumacoisa com essas pessoas.Eu não tinha uma equipe de profissionais grande, ninguémqueria trabalhar lá. Eu cheguei a ser uma médica para 300pacientes. Não tinha muita gente para ajudar nesses casos.Um outro paciente do NAPS ficou muito preocupado e deuuma sugestão:- Vamos pegar um lençol e cobrir o desenho.O paciente mesmo foi e cobriu a parede. Conversou com apaciente grávida, dizendo que o demônio tinha ido embora. Apartir daí, ela começou a se aquietar.Outro acontecimento em que precisei da ajuda de paciente foidurante um plantão.Eram umas oito horas, o pessoal da noite não tinha chegado e odo dia tinha ido embora. Eu estava sozinha com os pacientes.Já estava chegando a hora de servir o jantar. Enquanto euestava resolvendo o jantar, tinha uma paciente em crise e che-gou uma outra no posto de saúde quebrando tudo. Ela entrouno consultório dentário e começou a quebrar todos os vidrinhos,os ferrinhos, as cadeiras.Eu, lá de cima, ouvia a quebradeira lá embaixo. Tinha que resol-ver as coisas e estava com a paciente em crise junto de mim.Me lembro que ela dizia:- Estou mal, estou em crise.E eu disse para ela:- Olha, tem alguém lá em baixo quebrando tudo, e essa pessoaestá pior do que você. Então, você não quer descer comigo pra

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ver o que está acontecendo?Descemos, a paciente e eu. E combinei com ela:- Como você está melhor do que ela, vai lá e a segura, poisamanhã a gente vai ter que dizer para a diretora por que oconsultório está quebrado. Vou levar uma bronca. A gente nãopode deixar ela continuar quebrando tudo!E nós fizemos isso. Foi uma doida em crise que me ajudou a tiraroutra doida em crise do consultório dentário”.

Este relato mostra como é possível o médico fazer parceriascom os doentes. “Quando a gente pede ajuda e eles percebemque a gente está do lado deles e que eles são úteis, são muitoleais e fiéis. Eles ajudam para valer”. Suzana diz que muitos deseus pacientes viraram seus amigos.

COMO ESTÁ SUZANA HOJE?

Aos 52 anos, Suzana fica bastante feliz em falar das suas lembranças daintervenção. Atualmente, coordena o Centro de Apoio Psicossocial (CAPS)de Diadema, em São Paulo.

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“Hoje os especialistasJá têm plena conciência

Que os distúrbios mentaisPoderão ser consequência

Do estresse progressivoDo pavor da violência”

Manuel MonteiroLiteratura de Cordel

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RESGATANDO DIREITOS PARA A LIBERDADE RACIONAL

“É necessário transformar as relações que existem entre aspessoas com a experiência do sofrimento psíquico e suas redessociais, para que não pareça que só o louco é o problema,quando a sociedade também está neste contexto!”

Maria Fernanda de Silvio Nicácio, Terapeuta Ocupacional

Trabalhou na Casa de Saúde Anchieta em 1989

Trabalhou no NAPS I de 1989 a 1996

Entrevista realizada em 15/8/2005

VINDO PARA SANTOS

Na época da intervenção, Fernanda fazia parte da Plenária dos Traba-lhadores de Saúde Mental de São Paulo. E foi pela Plenária que ela acabouindo trabalhar no Anchieta. “Quando foi decretada a intervenção, eu co-mecei a vir para Santos. Na época, eu vinha uma ou duas vezes porsemana”, conta a terapeuta.

Em 1989, Fernanda também era professora do curso de Terapia Ocupa-cional da Universidade de São Paulo (USP), onde leciona até hoje.

POSSIBILIDADES DE INOVAÇÕES

Surgiu em Fernanda a idéia de agrupar suas atividades. Então ela arti-culou na universidade um trabalho chamado de extensão ao serviço àcomunidade. Os alunos vinham uma vez por semana estagiar no Anchieta.Porém, este projeto não durou muito. “Era um tempo pequeno semanal etambém foi um tempo pequeno em termos de duração, porque logo fuifazer um trabalho muito maior no NAPS (Núcleo de Apoio Psicossocial)”,explica Fernanda.

Entretanto, por causa de um convênio mantido entre a USP e a Prefei

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tura de Santos, os alunos continuaram a estagiar na cidade até 1996.Em setembro de 1989, quando foi criado o primeiro NAPS, Fernanda se

envolveu totalmente nesse novo trabalho. “O NAPS é um lugar muito inten-so. Procurávamos manter todas as relações bastante abertas, interagindocom os pacientes”, conta Fernanda. Ela conta que exisita a preocupaçãode fazer com que não fosse criado um manicômio de portas abertas, já quea internação hospitalar para os pacientes em estado mais graves ainda eramantida. ”Os NAPS deveriam representar a base do novo sistema de SaúdeMental”, justifica Fernanda.

RELACIONANDO A VONTADE

Desenvolver relações era um dos maiores objetivos da terapeuta. “Aidéia de transformar as relações das pessoas no geral, para que elas te-nham participação igual a do resto da sociedade, fazia com que se iniciasseum processo de verificação dos meios de desejo”, conta Fernanda.

Um bom argumento para o resgate das relações é construir junto com osfamiliares a capacitação pessoal do paciente.

Mas o que fazer? Pensar em projetos terapêuticos a partir da necessi-dade de cada um. Para Fernanda, é assim que se deve tratar o louco. “Éclaro que estes projetos são bastante complexos, mas a questão funda-mental é tentar pensar em emancipações”, explica. “O direito de ser acimade tudo cidadão, de fazer parte da sociedade e mais ainda o direito de terdireitos é o que deve ser resgatado”.

O RESGATE

Para Fernanda, o primeiro passo é pensar a partir da reconstrução dahistória do indivíduo, do seu jeito de estar no mundo. “Encontrar aquilo queo indivíduo tem, mas não sabe”, argumenta a terapeuta.

O paciente precisa produzir e sentir que tem valor social. Aí são váriasas possibilidades. “Para algumas pessoas é a arte, o trabalho ou a recons

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trução de suas relações. E também voltamos na questão do direito, porque na discussão com o louco existe uma série de questões em que ele nãotem direito”, explica Fernanda.

TRABALHAR COM AMOR

Fernanda Nicácio se envolveu totalmente no processo de intervençãoda Casa de Saúde Anchieta até chegar à supervisão do NAPS. Hoje, aos 46anos, ela foi bastante receptiva quando convidada a relembrar de todoprocesso de reestruturação da saúde mental santista. A paixão com quefala de seu trabalho é surpreendente. “Foi para isso que me formei!”, co-menta, entusiasmada.

Sua tese de mestrado foi baseada na experiência da intervenção doHospital Anchieta.

Experiência que ela descreve em sua tese como: “Uma experiência na qual mergulhamos, tecida por muitas mãos, pai-

xões e loucuras...”.

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Capítulo 4Os Pacientes

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Frigidez do Ser

Em meio a tanta gente,Me sinto tão sozinha.

A caminhar nesse beco, estreito e escuro.Sinto o gosto gelado em mim, nesse beco,

Beco gelado e seco.Com jeito manso e largo de ser

Indo fundo em mim.Gosto de ser paciente.

Pois a calma é dos pacientes.Pois a paciência traz a paz.

Paz tranqüila do ser.Paz que me traz a calma e a paciência,

De viver todo dia, os momentos futuros.

Rita Moreira de OliveiraPaciente psiquiátrica

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Foto

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UMA SENHORA MUITO VAIDOSA...

Júlia (nome fictício), 76 anos, paciente do Anchieta de 1970 a 1989

Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP

Entrevista realizada em 23/8/2005

Júlia chegou até nós com a maior timidez, mas disposta a nos dar aten-ção. “Vocês vão me entrevistar mesmo?”.

Super preocupada com o visual, pediu para esperarmos enquanto elapassava um batom nos lábios. Júlia, com 76 anos, é a mais vaidosa dospacientes, segundo os funcionários do Selab.

Sempre com uma bolsa a tiracolo, roupas arrumadas, cabelo penteado,mesmo sabendo que não vai sair daquele local tão cedo, Júlia faz questãode estar bela. No decorrer da nossa entrevista, percebe-se que tudo issofaz muito bem. Ela cuida de si, mesmo longe de sua família e amigos.

Júlia sabe muito bem se virar sozinha, mas não foi sempre assim. Aos 47anos, foi internada na Casa de Saúde Anchieta, com o diagnóstico dedepressão. “Meu ex-marido me colocou lá porque eu estava doente,depressiva”. Ela não culpa o marido. Não guarda rancor, não reclama. É umexemplo de força de vontade.

Pelo pouco tempo que passamos com Júlia, já nos sentimos bem. É umapessoa com um astral incrivelmente positivo, que gosta de conversar, defalar sobre sua vida. Apenas uma coisa a incomoda muito: a dificuldade quetem de falar, pois, para quem a ouve, é preciso fazer uma força paraentendê-la e estar sempre olhando para os seus lábios, a fim de realmenteidentificar o que diz.

Algumas vezes, em nossa entrevista, Júlia repetiu três ou quatro vezesa mesma coisa para que a entendêssemos. A impressão que tivemos aoentrevistá-la é que a única coisa que a impede de sair daquele local e vivernormalmente é o seu modo de falar, pois ela é totalmente “sã” do que diz,lembra-se de tudo o que aconteceu com ela, dentro do Anchieta e foradele também. E fala muito bem das pessoas que tratavam dela após a

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intervenção. O que ela não lembra com gosto é do modo como era tratadano Anchieta antes do fechamento da Casa dos Horrores...

A chegada

“Foi na Copa de 70, no mês de julho”, disse Júlia sobre a primeira vez emque esteve no Anchieta. “Eu tomava remédio três vezes por dia. Falavamque era pra eu ficar boa”.

Segundo o livro Manicômios, Prisões e Conventos, de Erving Goffman, oprocesso de chegada do paciente ao manicômio (chamado pelo autor deprocesso de admissão) é dividido em várias fases. Desde este momento, jáse percebe que a pessoa começa a perder as suas características individu-ais devido aos maus tratos:

“O internado descobre que perdeu alguns dos seus papéis emvirtude da barreira que o separa do mundo externo. Geralmen-te, o processo de admissão também leva a outros processos deperda e mortificação. Muito frequentemente verificamos que aequipe dirigente emprega o que denominamos processos de ad-missão: obter uma história de vida, tirar fotografia, pesar, tirarimpressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar benspessoais para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfe-tar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar ins-truções quanto a regras, designar um local para o internado”.Segundo o autor, os processos de admissão podem ser chama-dos de “arrumação” ou “programação”, pois, ao ser “enquadra-do”, o novato admite ser conformado e codificado em um obje-to que pode ser colocado conforme as regras do local, modela-do suavemente pelas operações de rotina. “Muitos desses pro-cessos dependem de alguns atributos – por exemplo, peso ouimpressões digitais - que o indivíduo possui apenas porque émembro da mais ampla e abstrata das categorias sociais, a de

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ser humano. A ação realizada com base em tais atributos ne-cessariamente ignora a maioria de suas anteriores de auto-identificação”.

Ainda segundo o autor, “os processos de admissão e os testes de obedi-ência podem ser desenvolvidos numa forma de iniciação que tem sido de-nominada ‘as boas-vindas’ - onde a equipe dirigente ou os internados, ouos dois grupos, procuram dar ao novato uma noção clara de sua situação.Como parte desse rito de passagem ele pode ser chamado por um termocomo ‘peixe’ ou ‘calouro’, que lhe diz que é apenas um internado, e, maisainda, que tem uma posição baixa mesmo nesse grupo baixo.

O processo de admissão pode ser caracterizado como uma despedida eum começo, e o ponto médio do processo pode ser marcado pela nudez.Segundo Goffman, outro momento que marca muito esta desfiguração dascaracterísticas do paciente é a perda da identidade, pois em alguns mani-cômios, os pacientes não são chamados pelo nome”.

NÃO DOÍA...

Além dos remédios, que na sua maioria serviam para dopar o pacientepara que este ficasse mais fácil de ser manipulado, Júlia passou por ummomento vivido pela maioria dos pacientes entrevistados por nós: oeletrochoque. “Eles colocavam borracha na minha boca, na hora doeletrochoque. Não doía, mas não me falavam pra que servia aquilo”.

O tema eletrochoque gera muitas discussões entre pessoas da área desaúde. Alguns especialistas defendem este tipo de tratamento, mas aspessoas envolvidas na intervenção do Hospital Anchieta são contra, emsua maioria. Segundo o interventor Roberto Tykanori, o eletrochoque paraalguns serve como forma de punição. Neste caso, uma mesma sessão deeletrochoques é dada várias vezes ao paciente para que ele fique“abobalhado” e sem vontade de contradizer o que os outros mandam.“Tira-se o poder de expressão daquela pessoa”, explica Tykanori.

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Ainda segundo Tykanori, outros dizem que uma sessão de eletrochoqueapenas é capaz de melhorar o paciente em alguns aspectos. Desdequando dar choque em alguém vai ajudar essa pessoa a se sentir cuida-da? Pelo que vimos em nossas entrevistas, este tipo de tratamento nãofez bem a ninguém...

MORANDO NO ANCHIETA

“Eu não queria fazer nada no Anchieta, só chorar”. Júlia virou a mão, olhandotristemente para nós, e mostrou sua cicatriz no pulso. “Cortei o pulso”.

Ela nos contou que, antes da intervenção, ficava trancada em um quar-to, como se fosse uma prisão, com mais duas moças. “Eu ficava o diainteiro naquele quarto. Só saía para o banho de sol, que não durava muito,e depois voltava. A gente acordava cedo para tomar banho, às 5h damanhã. Mas o banho não era frio, não. Era quente”.

Então perguntamos o que é inesquecível para ela sobre o Anchieta.Esperávamos uma resposta emocionada, algo de ruim que alguém tives-se feito com ela, os eletrochoques, os maus-tratos. “Não me esqueçode quando me mandavam arrumar as camas, todo dia, em troca decigarro e cerveja”.

A troca de favores, como arrumar a cama e varrer, por coisas que opaciente gosta é uma prática comum em alguns manicômios.

Como diz Goffman: “haja muito ou pouco trabalho, o indivíduo que nomundo externo estava orientado para o trabalho, tende a tornar-se des-moralizado pelo sistema de trabalho do manicômio. Um exemplo dessa des-moralização é a prática, em hospitais estaduais para doentes mentais, de‘tapear’ ou ‘usar o trabalho de outro’ em troca de uma moeda de dez oucinco centavos que pode ser gasta na cantina. As pessoas fazem isso,embora no mundo externo considerem tais ações como abaixo de seu amor-próprio” (1992:22).

Como pode alguém que sofreu tanto não ter guardado rancor de tudoaquilo e ter como inesquecível a cerveja e o cigarro? Júlia nos impressionou

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muito pelo desprendimento com o que sofreu naquele local. Ela contouainda que passava a semana toda com a mesma roupa, porque, segundoela, todos os pacientes trocavam de roupa apenas nos finais de semana. Eela não gostava disso. E quem gosta?

A última coisa que ela se lembra é da comida do Anchieta. “Era horrível!Aqui é bem melhor!”, desabafa, aliviada.

FAMÍLIA

Júlia tem um filho e três netos. Mas sua historia não é tão boa quantoparece. Faz quatro anos que não os vê...

Através de pesquisas feitas com os profissionais que cuidam dela hoje,soubemos que, realmente, não é nada boa a relação dela com sua família.Elizete da Silva, a coordenadora do Selab, nos contou que tentou umaaproximação dos netos com Júlia... Isto aconteceu há quatro anos. Um deseus netos a encontrou, porém, nunca mais voltou, nem a procurou. “Aimpressão que dá é que ele se assustou com a situação dela hoje”, conta acoordenadora do local. “Mas vamos continuar tentando”.

Júlia segue a vida, de cabeça erguida, sempre vendo o lado bom dosacontecimentos. “Hoje estou bem melhor”, resumiu.

Aproveitamos a descontração do momento e perguntamos sobre namo-rados... Já que é tão vaidosa, não é possível que alguém não tenha seinteressado por ela. Júlia ri, fica encabulada, e faz questão de deixar claro:“Não tenho namorado...”. E, olhando discretamente para nós, completou:“Só com meu marido”. Nem precisávamos perguntar ao que ela se referia...

DEPOIS DO ANCHIETA

“Quem me ensinou a pintar foi a Dirce e a Antonieta. Eu gosto muito depintar”. Júlia se lembrou dos momentos de arte que os pacientes tinham,coordenados pelo artista Renato Di Renzo. No local onde ela se trata hoje,encontramos um desenho seu. Seus trabalhos mostram, na maioria, casas

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e árvores. O que será que ela quer dizer com eles? Será que sente falta decasa? Será que desenhou o local que está hoje? Será que ela gostaria deestar morando no campo? Esta é uma pergunta que todos que a tratamcostumam fazer.

Na época da intervenção do Anchieta, Júlia pintava, enquanto outrospacientes faziam esculturas, quadros. O que mais ajudou no tratamentodaquelas pessoas foi a Rádio TamTam e o Jornal Tam- Tam Urgente, que,assim como aquele momento histórico na cidade de Santos, foram exem-plos para muitos outros hospícios do Brasil. Pipocou, em cada hospital, umanova rádio, um novo jeito de fazer música. Estas rádios eram totalmentefeitas pelos pacientes, os “loucutores”, que escolhiam as músicas e ostemas a serem abordados nos programas.

Para o coordenador destes trabalhos, Renato Di Renzo, os trabalhos dearte fazem com que os pacientes voltem a sonhar e usar a imaginação, e,segundo ele, sonhar é extremamente importante para a recuperação deles.

Nossa entrevistada não foge à regra do que Renato diz sobre sonhos.Com certeza, Júlia ainda sonha em voltar a ver sua família e ter uma vidanormal novamente. Trinta e cinco anos em ambientes psiquiátricos a fize-ram sofrer muito. No entanto, não foram o suficiente para que ela desistis-se de seus ideais.

Eis uma pessoa de quem Júlia e todos os pacientes entrevistados nãoesqueceram: David Capistrano. Hoje falecido, na época era secretário deSaúde da cidade, e, juntamente com Roberto Tykanori, chegou à conclu-são de que aquele modo desumano de tratar as pessoas precisava acabar.Júlia lembra-se dele com carinho.

O MUNDO HOJE

Atualmente, Júlia vive no Selab, juntamente com outros pacientes, al-guns deles vindos do Anchieta como ela, e outros mais novos, cada umcom um diagnóstico diferente. Ali ficam doentes mais graves, enquanto nosNAPS ficam pacientes menos graves.

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Júlia dorme em um dos quartos do local, que abrigam de dois a trêspacientes. Divide o quarto com duas pacientes, cada uma com uma cama eum armário para colocar seus pertences.

No momento da entrevista, aconteciam em Brasília várias denúncias decorrupção, envolvendo os partidos do governo e outros também. Comopercebemos que nossa entrevistada era muito inteligente, aproveitamospara perguntar: o que a senhora acha do que está acontecendo agoracom o Brasil? Ela respondeu na mesma hora: “uma roubalheira, né?”. Ecomeçou a rir...

Júlia ainda quis falar mais: “acho que o Lula não tem nada a ver com oque está acontecendo. Ele não tem culpa. Quem tem culpa é quem estáacusando ele!”.

Pois é, nossa primeira entrevistada nos mostrou que, mesmo tendo pas-sado por momentos tão difíceis, não se deixou abalar. E segue com seussonhos de um dia reencontrar sua família...

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Sempre

Inda choram dentro de mim,choro longo

tão triste, nunca tem fim.

Qualquer dia pego elas:angústia e dor,

enterro bem fundo em cima boto flor.

Íris Erica Koehler BigarellaPaciente psiquiátrica

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DE OUTRO MUNDO...

Vanda (nome fictício), 38 anos, paciente do Anchieta de 1987 a 1993

Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP

Entrevista realizada em 23/8/2005

Fomos um dia antes das entrevistas ao Selab para ver quais seriam osnossos entrevistados para este trabalho. Afinal, já sabíamos que não seriade uma hora para outra que conseguiríamos arrancar dos pacientes ummomento tão difícil quanto o tempo que eles passaram no Anchieta. Che-gando lá, fomos recebidas por um dos funcionários do local, o Ciro, que jásabia quais eram as nossas intenções, já que passamos a semana anteriorinteira ligando para marcar o melhor dia para as entrevistas.

Logo fomos apresentadas a cada um dos pacientes que haviam passadopelo Anchieta por algum motivo. Conversamos com cada um, explicamosnosso objetivo, e fomos muito bem recebidas por eles, mesmo sabendoque, em sua maioria, são pessoas com patologias muito graves. Ao final davisita, recebemos um cumprimento... “Oi! Tudo bem?”, ouvimos de algumlugar. Viramos para trás e cumprimentamos aquela moça aparentementenova, que sorria ao falar conosco. Ela nos fez refletir sobre a carência deatenção que aquelas pessoas sofrem. Então, fomos embora, já preparadaspara a maratona de entrevistas do dia seguinte.

Chegada a hora das entrevistas, na manhã seguinte, Ciro nos lembroude que havia mais uma paciente do Anchieta que ele não nos apresentarano dia anterior. E, para surpresa nossa, fomos apresentadas a Vanda, aquelamoça sorridente!

Vanda trajava um vestido florido, com a saia na altura do joelho. Decabelos bem curtos, tipo “Joãozinho”, magra e não muito alta, conversouconosco logo após a entrevista com Julia. Vanda não conteve sua vontadede nos contar o que passou no Anchieta, mas, diferentemente da impres-são que nos deu no dia anterior, ela mantinha uma expressão fechada...

Sentou-se na cadeira que havíamos colocado à nossa frente, para os

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entrevistados, e esperou pelas perguntas. Começamos pela mais simples,para ver o rumo que nossa conversa tomaria, para sentir se Vanda estavamesmo disposta a falar conosco...

- Quantos anos você tem?- 48 - respondeu ela.Então, já fomos direto ao assunto:- Você se lembra da época do Anchieta?- Lembro mais ou menos. Eu não tinha muita visita lá.Vanda nos deu esta resposta com um jeito tristonho. Com isso, já

desconfiávamos de fatos que, ao final da entrevista, seriam confirma-dos. Vanda era uma pessoa muito sozinha quando paciente da Casados Horrores. Tanto que o primeiro fato que se lembrou foi das poucasvisitas que recebia...

- Quem ia te visitar lá?- Minha vó. E, em outros dias, era a assistente social que ia visitar...Vanda nos contou o nome da assistente social – Cecília – e olhou de um

lado para outro como se procurasse alguém, ou como se quisesse ver o queacontecia ao seu redor. Mas somente o que enxergava eram pacientesandando para diversos lados, dentro do pátio grande e fechado em queestávamos, e um enfermeiro sentado em uma mesa, olhando para os paci-entes, preparando o remédio que deveriam tomar naquele momento.

CHOQUES DE LEMBRANÇA

Não é à toa que nossa entrevistada exibia um ar melancólico. Pergunta-mos a ela sobre o aspecto físico do Anchieta...

- Era bonito lá dentro?Vanda nos olhou com aquele jeito desconfiado, mexendo em seu ves-

tido florido:- Era...Ela pára, pensa mais um pouco...- Era nada! Davam choque na gente!

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A partir daí, Vanda nos contaria toda a sua impressão sobre as seçõesde eletrochoque a que era submetida. Não foi nada fácil para ela.

- Grudou na minha fronte e eu gritei: AI!Assim como nossa primeira entrevistada, Vanda se recorda muito bem,

com detalhes, do que viveu no Anchieta. Foi direta ao dizer que coloca-vam um protetor para que ela não se machucasse... que hipocrisia!“Doía. É que grudava na fronte. Colocavam pano, borracha, alguma coi-sa para não mordermos a língua”. E continuou: “eles davam muito cho-que em mim. Eles fingiam que iam dar choque. E eu me escondia, maseles viam onde eu estava. Eles queriam que eu tomasse, mas eu nãotomava, não. Eu me escondia”.

Descobrimos que Vanda já havia passado por vários hospitais psiquiátri-cos do Estado e que, em todos eles, era submetida a eletrochoques. Alémde se esconder, empurrava algumas enfermeiras que iam buscá-la, davapontapés, coisas deste tipo. Com isso, ela conseguia fugir deste “trata-mento”, mas nem todos os pacientes eram ágeis como ela. Acabavamtomando várias sessões de eletrochoques.

É impressionante como as pessoas que tratam o paciente ficam namemória dele. Mesmo 16 anos depois de tudo acontecer no Anchieta,Vanda se lembra do nome dos médicos e, principalmente, dos que a trata-vam mal, do que eles faziam para que ela ficasse “abobalhada”.

É possível perceber que ela é paciente psiquiátrica pelo fato de apre-sentar um jeito meio “perdido”. Os olhos da paciente vagam pelos lugares,sem rumo, parecendo que não sabem para onde vão. Mas, mesmo assim,no caso de Vanda, seu olhar triste vai sendo explicado a cada palavra,principalmente no caso do eletrochoque e das visitas que não recebia.

MORANDO NO ANCHIETA

Vanda nos contou que, na época do Anchieta, tomava remédio trêsvezes ao dia, um pela manhã, outro à tarde e outro à noite. “Quando agente tomava remédio, ia pro pátio. E ia pra lá também depois de tomar

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banho”. Segundo ela, os pacientes tomavam banho todos os dias e após asessão de eletrochoques também.

O pátio era o lugar onde a maioria das coisas acontecia. “A gente pas-sava o dia todo lá”. Não tinha televisão, jogos, nenhuma forma de ocupa-ção para aquelas pessoas. Elas só passaram a se ocupar após a interven-ção, pintando, fazendo programas de rádio, entre outras atividades jácitadas neste livro.

Vanda ficava em um quarto. “Eu dormia em uma cama, que eu mesmaarrumava”. Ao contrário de Júlia, Vanda não ganhava cigarro e cerveja paraarrumar outras camas. Ela se lembrou da dificuldade que tinha para dormir.“Eu demorava pra dormir, não tinha sono. Até aqui eu não tenho sono. Nãoconsigo dormir...”. Por que será que Vanda tem insônia até hoje? Mesmonão sendo maltratada como era nos hospitais por onde passou, algo lhepersegue: a solidão.

Ao perguntarmos a ela sobre filhos, sua resposta foi curta e simples.“Não. Eu não sou mais virgem, mas não tenho filhos”.

- Nunca casou também?- Nunca.E foi tudo o que disse sobre família. Sempre que entrávamos neste

assunto, Vanda dava um jeito de desconversar. Sabendo disso, o que pas-sou por nossos pensamentos é que a explicação para toda essa tristeza éa falta de alguém que a ame. Ela não quis falar de mãe, pai e irmãos, enfim,não quis entrar no assunto.

Segundo Erving Goffman, há uma explicação para que Vanda nãoesteja ligada à sua família. Conforme explica o autor, o novato chegaao hospital psiquiátrico com uma idéia de si mesmo que se tornoupossível por algumas disposições sociais estáveis no mundo onde elevivia até chegar ali. Ao entrar, logo deixa de ter o apoio que tinha no“mundo exterior”. Como sempre aconteceu nos manicômios de todo omundo, de acordo com o livro, começa, então, uma série de rebaixa-mentos, degradações e humilhações interiores do paciente. Sua indivi-dualidade, naquele momento, é morta. Ele perde todas as suas carac-

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terísticas individuais. “O paciente, então, começa a passar por algu-mas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira compostapelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que tem a seurespeito e a respeito dos outros que são significativos para ele”(1992:24).

Em vista disto, percebemos que Vanda “esqueceu” o que viveuantes, os maus-tratos ao longo da sua passagem pelos vários hospi-tais. É como se, para ela, nunca tivesse existido uma família.

OUTROS MUNDOS

Como já mencionamos, Vanda passou por “outros mundos” que nãoo do Anchieta apenas. O primeiro, pelo que ela nos contou, foi oHospital Municipal de Pirituba, em São Paulo. Reparamos umas cicatri-zes em seu rosto, pareciam arranhões, na região das têmporas. “Podeser do grampo que me arranharam, quando eu tava no Hospital Pirituba”.

As marcas no rosto de Vanda têm um sentido muito maisprofundo do que apenas cicatrizes. Segundo Goffman, elassão ruins para o paciente pelo fato de marcarem fisicamen-te e interiormente.

“Além da deformação pessoal que decorre do fato de apessoa perder sua identidade, existe também a desfigura-ção pessoal que decorre de mutilações diretas e permanen-tes do corpo – por exemplo, marcas ou perda de membros”(1992:29). O autor explica que é comum o fato de estasmarcas gerarem a perda de um sentido de segurança pesso-al. “Pancadas, terapia de choque, ou, em hospitais paradoentes mentais, cirurgia – qualquer que seja o objetivo daequipe diretora ao dar tais serviços para os internados –podem levar estes últimos a sentirem que estão num ambi-ente que não garante sua integridade física”(1992:29).

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CROCHÊ

- Você já foi pro Juquery?- Já...- E como era lá? Era pior ou melhor do que o Anchieta?Vanda nos passou a impressão de não ter achado o Juquery tão ruim

quanto o Anchieta. “Me lembro de uma moça que ficava fazendo crochê,junto com as filhas dela. Lá era um pouco melhor que o Anchieta”.

- Por quais outros hospitais você passou?- Vila Mariana, Sanatório Vera Cruz, que foi o primeiro hospital que eu

entrei, e o de Botucatu.Como podemos ver, Vanda conhece “outros mundos” muito bem, mas,

mesmo assim, tem o Anchieta como o pior deles...

MAIS LEMBRANÇAS

A cada minuto a mais que conversávamos com Vanda, mais víamos asua necessidade por carinho e mais aprendíamos com ela sobre aquelemomento tão ruim de sua vida. Como quem tem pena de si, sempre quefalava dos maus-tratos que sofria, contava com o máximo de detalhes paraque sentíssemos pena dela. Não de propósito, claro, mas indiretamente erao que ela fazia.

Perguntamos o que, na visão dela, é melhor: as pessoas que tratam delahoje ou quem tratava dela na Casa dos Horrores. Lógico que já sabíamos aresposta, mas queríamos ouvir as palavras que Vanda daria, do jeito dela. Eentão, começou a contar de um caso em que ela se machucou...

- Bati a cara na porta e eu sentei e fiquei com os olhos fechados. Etodas as moças falando, nossa, coitada, a menina tá com os olhos incha-dos, fechados e... Credo, tá horrível isso! Elas falavam...

Vanda falava assim mesmo. Sem pausas. Sem esquecer de um detalhedaquele momento. E continuou nos contando, dessa vez, lembrando deuma pessoa que cuidava dela:

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- E, depois, na hora de chamar a gente pra dormir, a tia Angela chama-va nós pra dormir e ela falava.... Que foi isso no seu olho, hein, menina? Eeu falei é que eu amanheci com os olhos pretinhos... E ela falou que eunão ia subir a escada com esse olho inchado, não, vai dormir aqui. Edepois eu dormi lá...

Sem perder o ritmo da fala, Vanda quis nos contar ainda sobre o remédiousado para “sarar os olhos pretinhos”: “... e eu levantei e pingaram remé-dio, colírio, pra ver se sarava, mas não adiantou nada”. Ela não se esque-ceu da febre e nem de como foi tratada neste momento:

- E eu acordei quase de manhã e a tia Angela pôs a mão aqui em mim. Efalou que eu tava com febre. E ela pôs o termômetro e depois eu não fiqueimais com febre.

AS PIORES LEMBRANÇAS

- Qual é a coisa mais triste que a senhora lembra de lá?Vanda olhou para nós, pensou, fez como se quisesse falar algo...- A Ana já bateu... Ah, não vou falar, não...Mesmo assim, nós insistimos...- Conta pra nós...- ...É que ela já bateu na enfermeira que queria dar remédio pra ela.Ana (nome fictício) também foi paciente da Casa de Saúde Anchieta e

hoje está no Selab. Foi apresentada para nós no dia em que fomos conhe-cer a todos, mas, segundo o funcionário Ciro, ela não teria condições deconversar conosco, por ser uma paciente extremamente grave. Ele noscontou que ela passou por muitas seções de eletrochoque. É uma daquelaspessoas que não suportaram o tratamento levado no Anchieta. Nem todosse lembram nitidamente do que passaram, como Júlia e Vanda.

Mais uma vez, Vanda nos mostrou que queria muito contar o que passoue como era maltratada. Começou a falar de um médico que não gostava, oque ele fazia para ela e como ela reagia a isso:

- Quando o Dr. Márcio (nome fictício) queria ser o meu médico, ele me

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chamava pra conversar com ele, e eu não queria. Eu ficava sentada nochão, embirrada de não querer conversar com ele. E uma moça veio portrás de mim e me deu gravatada.

A relação paciente-profissional é bastante complicada. Nos ma-nicômios, existe uma divisão básica entre um grande número dosinternados, os pacientes, e uma pequena equipe de profissionais.Segundo Goffman:

“geralmente, os internados vivem na instituição e têmcontato restrito com o mundo existente fora de suas pa-redes; a equipe profissional muitas vezes trabalha numsistema de oito horas por dia e está integrada no mundoexterno. Cada grupo tende a conceber o outro atravésde estereótipos limitados e se opondo a ele – os profissi-onais muitas vezes vêem os internados como amargos,reservados e não merecedores de confiança; os interna-dos muitas vezes vêem os que os tratam como arbitrári-os e mesquinhos. Os participantes da equipe de profissi-onais tendem a sentir-se superiores e corretos; os inter-nados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sen-tir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados”.

REBELDIA

Vanda fez questão de dizer o que ela fez para essa moça que apegou. Não teve medo de mostrar como era rebelde...

- E eu fiz força, dei pontapé, e virei assim, dei pontapé na “opera-ção” dela, e falei bem feito pra você! Ela perguntou por que eu tinhadado pontapé e eu respondi que era porque ela me pegou de trás, degravatada, pra me levar pra conversar com o médico. E nem o doutoreu obedeci ele. Fiquei sentada lá no chão um pouquinho e saí de pertopra não conversar com ele.

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Segundo os funcionários do Selab, os pacientes como Vanda tendema ficar violentos no caso de serem provocados, ou seja, quando al-guém faz com que eles fiquem assim. Vanda sabia que, se fosse “con-versar” com o médico, ele faria algo de ruim a ela, pois já havia feitoantes. E, com isso, ela usou a violência para se defender.

Aproveitando que Vanda estava se abrindo conosco, sem medo, fi-zemos uma pergunta mais forte.

- A senhora sabe de alguém que morreu dentro do Anchieta?Ela não pensou muito para responder.- Lá eu nunca vi ninguém morrer, não. Só uma moça, que comeu

sabão em pó e levaram ela deitada, segurando nas mãos e nos pésdela, pro pátio, até que ela morreu mesmo.

DEPOIS DO ANCHIETA

Mas não é apenas das coisas ruins que Vanda se lembra. Ela viveu operíodo da intervenção, aquele momento histórico da cidade que trouxenova vida a todas as pessoas internadas no Anchieta. E sabe muito bem oque significou aquele momento...

Perguntamos a ela o que é melhor: a época do Anchieta ou os dias dehoje. Nossa entrevistada não hesitou ao dizer que hoje é muito melhor.

- Por quê?- Por que não tem mais choque... É melhor morar aqui porque nós

temos tudo de comer e temos tudo de tomar, do que andar na rua feitomaloqueira. E, às vezes, eu ficava na rua pedindo cigarro e ninguémqueria morar comigo...

- Depois que o Anchieta fechou, você tomou choque?- Não, nunca. Fui pro Manequinho.O “Manequinho” a que Vanda se referia era a República Manequinho,

uma casa para onde eram levados alguns pacientes que não tinhamfamília, logo após a intervenção. A casa levou este nome graças ao seuprimeiro morador, o Manequinho, um paciente com Síndrome de Down.

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ANIMAIS

Vanda é mais uma prova do que um manicômio, como o Anchieta, écapaz de fazer a uma pessoa. Totalmente perdida em sua vida, sem so-nhos, sem lembranças, sem amor, sem família. Pacientes psiquiátricos queforam tratados como animais, sem vontades e sem esperanças. E do tantoque são maltratados, acabam por achar que são realmente animais. E seesquecem de si...

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Olhar nos Olhos

Às vezes me vejoOlhando em meus olhos

Procurando por mim mesmoPasso por vários lugares

Sem que ninguém me veja.

Três sombras em minha frenteTodas elas eram minhas

Nenhuma delas era eu

Juventino José Galhardo Jr.Paciente psiquiátrico

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MARCAS ETERNAS

Marco (nome fictício), 49 anos, paciente do Anchieta de 1989 a 1990

Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP

Entrevista realizada em 23/8/2005

Chegamos perto do Marco para entrevistá-lo. Ele vestia uma bermudaazul e uma camiseta branca. Estava sozinho em um canto do pátio doSelab, sorridente, pensativo... Já havíamos conversado com ele antes,quando perguntamos se poderíamos entrevistá-lo para nosso trabalho. Eneste segundo contato, assim que chegamos, ele falava conosco como senos conhecesse há tempos... E falou:

- Dona Regina...Queríamos “entrar no papo” dele, para que se sentisse vontade de con-

versar conosco... - Dona Regina?...E ele continuou:- Aí passou a dona Iraíde. Eu imaginava de um pavilhão, pavilhão mais

alto, mais novo, do Anchieta, eu imaginava uma moça de motoca. Jaquetãode couro, calça de couro, e tudo. Aí tinha um maiorzinho...

- Maiorzinho, quem? Um profissional?- Paciente.Mesmo estando no auge de suas alucinações, como foi dito a nós por

um dos enfermeiros do Selab, sentimos que Marco estava realmentedisposto a falar conosco. E conseguimos um “gancho” para começarnosso assunto:

- Ah! Paciente! Você se lembra dos pacientes do Anchieta?Marco tinha a expressão calma, mas seus olhos estavam como os de

Vanda, perdidos. Ele respondia as perguntas sempre repetindo as nossaspalavras, como fez na resposta a esta questão que fizemos:

- Lembro de paciente...- E você se lembra das pessoas que cuidavam de você?

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Sua resposta nos deixou mais calmas. Descobrimos que o que ele nosfalava no início da entrevista não eram alucinações! Ele já estava tentandose lembrar do Anchieta, já que o havíamos avisado que iríamos conversarsobre isso. A resposta dele foi a seguinte:

- Tá faltando uma lá que eu não sei o nome, além da Regina.Regina! Aquela a que ele se referiu no início... E então perguntamos a

ele se lembrava de quando fechou o Anchieta. Mais uma vez com poucaspalavras, ele respondeu:

- Lembro.- Você se lembra de quem estava lá dentro?- Tinha o Carlos, tinha... Por nome não me lembro, lembro por fisionomia.Então vimos que estávamos realmente enganadas por acharmos que

Marco é um paciente “totalmente fora de si”, que não fala “coisa comcoisa”, como pensamos no início. Na maior parte das vezes, ele não res-pondia com muitas palavras ao que perguntávamos. Mas, de repente, elefalou o que mais nos marcou entre todos os pacientes que entrevistamos...

- Então, eu tô com dificuldade pra falar com você sobre o Anchieta,porque aconteceram coisas ali que me marcou muito, meu corpo inteiro,minha alma, meu coração, me marcou muito... Me marcou muito...

Silêncio. Fomos pegas de surpresa.

LEMBRANÇAS E MAIS LEMBRANÇAS...

Percebemos uma lágrima se insinuando em seus olhos, meio tímida. Elenos olhava diretamente, sem vergonha ou timidez.

Quem o olha pode pensar que Marco não “bate muito bem” da cabeça,pois ele fala pouco, observa muito e, como já mencionamos, seu olharperdido dá realmente a impressão de que ele não está bem. Mas quempoderia imaginar que, além de se lembrar do que vivera, ele saberia falardestas coisas de um modo tão simples, mas bonito? Aquilo ficou em nossasmentes por muito tempo...

Após aquela revelação interessante, tínhamos que dar continuidade à

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nossa entrevista. Ele voltou a ser repetitivo...- Era muito ruim pra você aquela época, né?- Foi muito ruim, foi muito ruim.- O senhor nem gosta de lembrar, né?...- Nem gosto de lembrar.Quando questionado sobre o tratamento no Anchieta, Marco nos

surpreendeu mais uma vez...- No Anchieta? No Anchieta não! A minha vida não precisa de hos-

pital. Eu não preciso de hospital, em toda minha vida eu nunca preci-sei de hospital.

Ele tem a consciência de que um manicômio torna uma pessoa pior.Sabe que está assim só por ter entrado ali.

Como havíamos feito com os outros entrevistados, perguntamos aele sobre o banho e a comida. Achamos interessante falar sobre isso,por que estes dois serviços do hospital psiquiátrico mostram bem omodo como estas pessoas eram tratadas ou, pelo menos, como elaspercebiam que eram tratadas. Observamos que, realmente, cada umdava o seu ponto de vista.

Na maioria das vezes, os pacientes do Anchieta tomavam banho ecomiam da mesma forma, mas, mesmo assim, ouvimos histórias dife-rentes de cada um.

- Tomei banho de banheira uma vez. Uma vez só. O banho era bom. - Era você sozinho ou com várias pessoas? - Com várias, com várias. Era com chuveiro, chuveiro quente.Ao perguntarmos sobre a comida, foi interessante. Para falar a verdade,

não conseguimos, ao final, entender muito bem como era a comida ali. Per-guntamos sobre isto duas vezes e, nas duas, Marco respondeu lembrando-se de outras coisas. Não sabemos se ele estava falando mesmo sobre acomida ou se estava tendo mais uma alucinação...

- Comida era... Quando eu fugi daqui e eu passei por lá, eu percebi que acomida era melhor lá, a comida era um pouquinho melhor que aqui...

Até aí entendemos. Mas depois disto, Marco começou a contar de uma

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vez que foi ao dentista, que fugiu... Foi aí que ficamos confusas... - ... Porque eu cheguei a bater a cabeça na perua, quando eu fui

no dentista, uma “força maior” me fez incorporar na placa dentista. Eupassei. Quando eu fugi, eu passei lá, no dentista...

Complicado de entender. Um pouco depois, perguntamos novamentesobre isso.

- A comida lá no Anchieta, você lembra?- Lembro, lembro. Eu lembro até que alguém fez a mesa lá no pátio

do colégio lá que eu jogava petequinha com a moça, com uma moçaloirinha, eu jogava petequinha, né...

Foi interessante. Não entendemos o que ele quis dizer sobre a comi-da, mas descobrimos uma coisa que ele gostava de fazer - jogar pete-ca! Marco nos lembrou um pouco Julia. Ele tem as marcas dos maus-tratos, ainda mais do que ela, mas ainda conseguiu manter o bomhumor e as boas lembranças.

OS ELETROCHOQUES E OS REMÉDIOS...

Perguntamos a ele: “Você chegou a tomar eletrochoque?”- Cheguei. Tomei.- Era muito ruim? O que você lembra?Desta vez, nos lembramos de Vanda falando dos eletrochoques que

tomava, de quando ela se escondia, do pavor que sentia...- Eu não lembro de nada, eu não lembro de nada. Eu me lembro quando

eu tomei a primeira vez, eu me lembro que tinha uma senhora da cozinhaque teve pena de mim e me protegeu. Me protegeu com as mãos pra nãodar o choque elétrico.

E, então, descreveu o que sentia quando passava por isto...- Mas apagava a mente da gente, apagava tudo, queimava a pele.

Machucava muito.A última pergunta que fizemos a respeito do Anchieta foi sobre os remé-

dios. “Ah, remédio eu sempre tomei, né!”, respondeu ele, sorrindo.

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COM O FECHAMENTO DA CASA DOS HORRORES...

Perguntamos a Marco se sua vida melhorou após o fechamento da Casade Saúde Anchieta...

- Melhorou bastante, melhorou bastante.- O que o senhor lembra que mudou?Marco olhou para nós, coçou a cabeça...- Eu lembro que mudou assim...Pausa...- Quando fechou o Anchieta?Tivemos que repetir a pergunta.- Isso. Depois que fechou o Anchieta você foi para onde, você lembra?- Não lembro não...Aproveitamos para ver se ele nos falava das festas que eram feitas

após a intervenção.- Tinha festa lá no Anchieta, depois da intervenção?- Tinha festa.- Você gostava das festas?- Tinha música da Xuxa a noite inteirinha.Será que para ele as músicas da Xuxa a noite inteira era bom? Pergun-

tamos sobre as pessoas que tocavam violão e sanfona, pois sabíamos queisto acontecia.

- Lembrei! Lembrei! Era no pavilhão de cá, era um tal de seu José quetocava, parece...

A última coisa que lhe perguntamos foi como ele é tratado no Selab,hoje. Marco nos deu a entender que as pessoas falam muito dele, e que émuito difícil estar ali por isso...

- Acho que é pela minha força de vontade. Acho que é pela minha forçade vontade, o que fala no meu ouvido, entra por um lado e sai pelo outro.

Perguntamos a ele se as pessoas falam muito dele no Selab.- Não falam muito, mas eu acho que eu consigo as coisas pra mim, o

meu valor, corretamente, só que dá mais um tempinho e já destrambelha

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tudo já. Já sai tudo fora do normal...Sentimos que foi um desabafo de Marco. Percebemos que ele tem ainda

sonhos e vontades. Mas vive as angústias que todos nós vivemos, asfrustrações, as coisas que não dão certo. Percebemos que ele está que-rendo melhorar e ir atrás de seus desejos. E isto é muito bom.

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TempoTempo, tempo, tempo passa

O cérebro passaAs plantas morrem

Os pássaros passamO dia passa

O cérebro passaA vida passa

E eu passo, passo e passoMas não adianta nada

Eu fico...

José Hélio Mazorra NetoPaciente psiquiátrico

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DEZENOVE ANOS

Rosa (nome fictício), 37 anos, paciente do Anchieta de 1989 a 1992

Atual paciente do Serviço Lar Abrigo (Selab), em Santos-SP

Entrevista realizada em 23/8/2005

Quando fomos apresentadas a Rosa, logo fomos avisadas de que elaseria a pessoa mais difícil de se conversar. E logo percebemos isto... Osoutros três pacientes entrevistados dormem, hoje, em quartos da casaonde funciona o Selab, com outros pacientes, mas sem a vigilância dosenfermeiros. Eles têm até alguma liberdade para ficarem em seu canto, emsua cama, fazendo suas atividades. Mas Rosa, não...

Ela dorme na enfermaria do local, vigiada 24 horas por dia, pelos enfer-meiros e outros técnicos. Não tem apenas o olhar parado, conforme repa-ramos nos outros. Rosa é uma paciente com todos os sintomas da épocaem que ficou no Anchieta. Segundo as pessoas que cuidam dela, suadoença chama-se Esquizofrenia.

Rosa despertou nossa curiosidade sobre o que ela contaria da época doAnchieta, mesmo não se lembrando bem das coisas. Queríamos saber comoé conversar com uma pessoa como ela. E mais: queríamos mostrar emnosso livro o que um manicômio é capaz de fazer com seus pacientes...

Um dos funcionários do local nos disse que ela já havia passado tambémpelo Juquery. Aproveitamos para começar a conversa neste ponto.

- Você veio do Juquery, né?- Eu vim - respondeu ela.- Durante quanto tempo você ficou lá?- 4 mil anos...Já começou deste momento nosso cuidado para conversarmos com a

paciente. Vimos que, realmente, não seria fácil fazer com que ela noscontasse sobre tudo o que passou na Casa dos Horrores. Com certeza, nãoforam coisas boas...

- Você se lembra como foi quando você entrou no Juquery?

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Nenhuma resposta. Rosa olhava para todos os lados do pátio, com osolhos totalmente perdidos.

Então tentamos outra pergunta.- O primeiro hospital que você entrou foi o Juquery, não foi?- Foi.Ufa! Ao menos, uma resposta. Perguntamos se ela se lembrava de quem

a colocou no Anchieta. “Foi um rapaz chamado Neto”, respondeu.- Você lembra o que você sentiu neste dia?- Não.Sempre rápida em suas respostas, Rosa, pela primeira vez, falou algo

sem perguntarmos.- Eu saí do Juquery doida...Pois é. Sabíamos que, infelizmente, não íamos conseguir pegar muitas

informações com ela.

MORANDO NO ANCHIETA

No decorrer da nossa conversa, percebemos mais uma característica deRosa. Ela respondia ao que perguntávamos como uma jovem, uma adoles-cente. Queríamos saber a idade dela...

- Eu tenho 19 anos.Aí então, entendemos. Ela realmente fala como uma adolescente de 19

anos. A esquizofrenia pode fazer com que as pessoas pensem que sãooutra pessoa, ou os faz pensar que são bem mais novos do que agora.Continuamos conversando com ela...

- Então, quando estava no Anchieta, você era bem novinha... Você nãose lembra mais.

- É (risos). Eu me lembro sim. Eu me lembro, mas não posso falar queisso é feio.

Insistimos...- Com a gente não tem problema, você pode falar. O que você

lembra de lá?

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- Eu não tenho lembrança disso mais. Como é que eu vou falar?Rosa disse esta última frase com o tom exato de uma garota com a

idade que ela disse ter, meiga, um pouco ingênua, com jeito de menina.Perguntamos a ela quando a levaram para o Anchieta e fomos surpreen-

didas. Ela ficou chateada.- Quando mandaram a senhora para o Anchieta?- Não sou senhora ainda!!! Sou menina-moça!Ficamos um pouco sem jeito, mas continuamos...- Você se lembra como foi, quando você foi para o Anchieta?- Eu não posso falar. Posso falar os anos que estou aqui, 4 mil anos.Mais uma vez, ela teimou em dizer os 4 mil anos. O que será, na cabeça

dela, que isto significa? Queríamos saber o que ela achava do Anchieta.Então a questionamos se ela gostava de lá.

- Eu não gostava, mas eu ia, ficava lá internada.- O que você fazia lá?- Eu tomava remédio, não sarei, sarei aqui.Ela sabe que o Anchieta não curou ninguém... Então perguntamos sobre

as pessoas que trabalhavam na Casa dos Horrores...- Eu não me lembro de nome, lembro de moços e moças, umas mulheres

e homens. Eles davam remédio pra mim e pra todo mundo que tava lá.- O que acontecia quando a senhora tomava remédio. Dormia?- Eu tava cansada e sem dormir.

QUANTO AOS CHOQUES...

- Você chegou a levar choque?- Eu cheguei a levar choque. Tomei.Rosa não percebeu, ao longo dos anos de internação, que o choque era

dado como punição. Na opinião dela, servia para melhorar sua situação.Perguntamos sobre a dor...

- Doía nada. Ele punha no meu corpo pra eu sarar.- Era na cabeça? Como era?

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- Na boca, na boca.Rosa não nos deu as informações exatamente como queríamos. Mas

forneceu algo muito maior. Muito mais do que colher dados exatos sobre omomento, muito mais do que ver exatamente como era antes e depois doAnchieta, ela nos mostrou que, apenas por estarmos falando com ela,naquele momento, por ela nos ter dado atenção e tentado se lembrar doque viveu, já era uma vitória para nós. Rosa é o exemplo do que ummanicômio é capaz de fazer com uma pessoa. Se era isto o que queríamos,no início de nossa pesquisa sobre este trabalho, foi isto o que tivemos.

Não se pode esperar de uma pessoa como ela respostas diretas e fá-ceis. E nem explicações sobre o que ela fala. O objetivo de fazer estasentrevistas com os pacientes é exatamente lidar com o conceito de “mun-do real” e “mundo imaginário”. É estar junto com eles neste pensamento,tentar entender e ver que o mundo não é só o que passamos no dia-a-dia... Existem pessoas, como eles, que vêem a vida de uma forma total-mente diferente.

Para terminar a parte do “antes” da intervenção no Anchieta, como depraxe, perguntamos sobre banho e comida.

- Durante o dia, o que você fazia, além de tomar remédio?- Eu não lembro mais...- Como você tomava banho? Você lembra?- Tinha dois banheiros, um de um lado, outro de outro.Para Rosa, a comida do Anchieta era melhor do que a do Selab, hoje. Ela

fala bem do refeitório do Anchieta, de como era a comida no geral.- E, na hora da refeição, o que vocês comiam, como era? Era tipo um

refeitório grande?- Era. Tinha mesmo um lugar grande de comer na cozinha, com cadeira,

mesa. Era bonzinho...Questionamos o gosto da comida no Anchieta.- Era boa, era feijão, arroz, pão e doce. Era gostoso.- O que você come aqui?- Nossa... feijão sem sal, arroz sem sal, carne sem tempero, tudo ruim a

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comida daqui. Lá a comida era boa, tinha sabor, aqui não tem sabor.

DEPOIS DA INTERVENÇÃO

Rosa não se lembra do dia da intervenção. Quando falamos sobre isso,percebemos que ela não entedia.

- Você se lembra quando eles fecharam o Anchieta e você teve que sairde lá? Você se lembra como foi? Você se lembra daquele dia?

- Não, não me lembro.Outra pergunta que fizemos a todos foi sobre as festas. Perguntamos a

ela se haviam festas, depois da intervenção, mas ela não se lembrou.- E você chegou a participar de alguma festa hoje em dia?- Aqui dentro teve festa. É boa!- O que a senhora faz nessas festas?- Por que senhora? Eu chamo você!Ops! Esquecemos que estávamos falando com uma moça de 19 anos...Rosa foi a paciente mais grave que entrevistamos, mas foi a que mais

nos ajudou a entender o mundo do doente mental. Estávamos frente afrente com o resultado de maus-tratos manicomiais, e crônicos, pois se-gundo a coordenadora do local, Elizete da Silva, provavelmente e infeliz-mente, Rosa nunca mais voltará “ao normal”.

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Capítulo 5Luta Antimanicomial

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Familiares dos portadores de sofrimentos mentais, cansados e revolta-dos com o modo de tratamento fornecido a essas pessoas que precisamde cuidados especiais, começaram a se reunir e estudar as possibilidadesde estarem contribuindo de alguma maneira para a melhorar a situação.Formaram um movimento contra os manicômios.

Desde o início, contaram com o importante apoio, desempenho e parti-cipação de profissionais da área da saúde mental.

Mas as obras do movimento só começaram a ser notórias com a 1ªConferência Nacional de Saúde Mental e com o 2º Congresso Nacionaldos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru, no dia 18 de maio de1987. A data ficou, desde então, registrada como o dia da lutaantimanicomial. A proposta desses encontros era trazer de volta a ci-dadania dos pacientes que haviam perdido grande parte de suas vidastrancados e excluídos da sociedade.

O movimento contou com diversas iniciativas políticas, sociais, cultu-rais, administrativas e jurídicas que procuravam modificar aquela situação,garantindo assim um tratamento digno e decente.

Hoje existem grupos antimanicomiais em diversos estados do País. Elesorganizam encontros, palestras e caminhadas, entre outros eventos, emprol da luta contra os antigos regimes de tratamento. Persistência e de-terminação traduzem exatamente este trabalho humanitário.

CENÁRIO ATUAL

A saúde pública, mesmo que precariamente, tem compreendido aimportância de atendimentos diferenciados para cada caso de distúrbiomental. Entende-se hoje que os problemas de alcoolismo e drogas,causadores de transtornos psiquiátricos graves, também necessitam detratamento adequado, tanto para os que utilizam desses males, quantopara seus familiares, que precisam aprender a lidar da melhor formapossível com o problema.

A modificação no modelo hospitalar com uma forte base comunitária é a

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proposta principal para uma organização extra-hospitalar.O maior desafio é conseguir fortalecer políticas de saúde, estabilizando

e aumentando as redes comunitárias de tratamento, implantando meios degeração de empregos aos portadores de distúrbios mentais e, por último,mas com maior importância, um aumento de recursos no orçamento do SUSdestinado à saúde mental do País.

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Capítulo 6A Fábula

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O livro A Instituição Negada, do psiquiatra Franco Basaglia, cita umahistória que consegue mostrar bem o que acontece com o paciente demanicômios quando ele é totalmente dominado pela instituição psiquiátrica.Como aconteceu com todos os nossos entrevistados...

“Uma fábula oriental conta a história de um homem em cujaboca, enquanto ele dormia, entrou uma serpente. A serpentechegou ao seu estômago, onde se alojou e de onde passou aimpor ao homem a sua vontade, privando-o assim da liberdade.O homem estava à mercê da serpente: já não se pertencia. Atéque uma manhã o homem sente que a serpente havia partido eque era livre de novo. Então se dá conta de que não sabe o quefazer da sua liberdade: ‘No longo período de domínio absolutoda serpente, ele se habituara de tal maneira a submeter àvontade dela a sua vontade, aos desejos dela os seus desejos,e aos impulsos dela os seus impulsos, que havia perdido a ca-pacidade de desejar, de tender para qualquer coisa e de agirautonomamente’. ‘Em vez de liberdade ele encontrara o vazio’,porque ‘junto com a serpente saíra a sua nova ‘essência’, ad-quirida no cativeiro’, e não lhe restava mais do que reconquistarpouco a pouco o antigo conteúdo humano de sua vida.”

O homem da fábula foi dominado e destruído pela serpente, assim comoos pacientes de manicômios são destruídos pelo modo como são tratados,chegando muitas vezes a perder toda a memória do que aconteceu antesde pisarem pela primeira vez em um hospital psiquiátrico. Estas pessoasacabam virando escravas deste novo sistema.

Júlia, Vanda, Marco e Rosa são apenas alguns exemplos do que pacien-tes psiquiátricos vivem. Certamente existem pessoas, em todo o mundo,com muito mais histórias de vivências pessoais para contar, outras pessoasque tenham sofrido tanto quanto eles, ou até mais do que eles. Muitoslivros já foram escritos em todo o mundo sobre este assunto. E muitos

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ainda serão escritos. Mas nenhum será capaz de fazer o leitor sentir real-mente o que aquelas pessoas viveram, sabendo do tamanho sofrimentoque elas passaram. Elas, e somente elas, sabem realmente o quanto sesofre nas garras de um manicômio como era a Casa dos Horrores.

Ainda hoje existem pacientes psiquiátricos sofrendo tanto quanto nos-sos entrevistados, em todo o mundo. Ainda há muito que se fazer para queestas pessoas nunca mais sofram estes maus-tratos. Ainda existem pesso-as achando que, para tratar um doente mental, é preciso trancafiá-locomo um animal, ou até, em muitos casos, pior do que animais.

Mesmo com o avanço das tecnologias e das novas ciências, o ser huma-no muitas vezes teima em continuar com seus velhos pensamentos. E nãosão apenas os hospitais psiquiátricos que têm cenas desumanas em seuscorredores e salas. Não é preciso ir muito longe...

Em cada esquina, a cada dia, temos provas de que as figuras estãotrocadas. Em manicômios como o Anchieta, os profissionais na verdade éque são os loucos, por se acharem os donos da verdade, defendendo quedoentes mentais não são dignos de respeito. Mas, no nosso dia-a-dia, serepararmos bem, veremos que isto também acontece bem ao nosso lado.Políticos roubam nosso dinheiro pelas costas e ainda se classificam deinteligentes e dignos de respeito. O cidadão trabalha o mês inteiro e, mui-tas vezes, gasta todo o seu salário para pagar as taxas impostas por estespolíticos, que, claro, não precisam pagá-las, pois eles são muito importan-tes para isso. Percebe a troca de lugares?

Pois é, vivemos em um grande manicômio...

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Cronograma:

Em respeito ao nosso leitor, aqui está um cronograma dos fatos ocorri-dos em 1989 na intervenção da Casa de Saúde Anchieta.

21 de abril – David Capistrano denuncia irregularidades e estabelece pra-zo de uma semana para que sejam sanadas. Prefeitura ameaça intervenção.

3 de maio – Prefeitura vistoria hospital. Persistem as irregularidades.A prefeita Telma de Souza decreta a intervenção, pelo prazo de 120dias, prorrogáveis.

4 de maio – Sehig implanta medidas de emergência e começa avaliaçãodo hospital e dos doentes.

10 de maio- 1ª Vara de Fazendas Públicas do Fórum de Santos concedeliminar aos proprietários, suspendendo a intervenção.

11 de maio – Prefeitura entra com recurso junto ao Tribunal de Justiçado Estado, pedindo a cassação de liminar.

16 de maio – Suds/52 ameaça descredenciar o Anchieta.

17 de maio – Prefeitura retoma intervenção, depois de o Tribunal deJustiça de São Paulo cassar a liminar obtida pelos proprietários no dia 10.

19 de maio – Prefeitura promove debate sobre Saúde Mental, na Facul-dade de Serviço Social, com exibição de vídeos sobre a situação encontra-da no Anchieta.

20 de maio – Volta a assistência odontológica no Anchieta, há muito

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suspensa pela instituição.

25 de maio – Estagiárias de Psicologia começam a atuar no hospital.

27 de maio – Limitado atendimento a alcoólatras.

2 de junho – David Capistrano denuncia movimento para sabotar a políti-ca de tratamento implantada pela Prefeitura. Funcionários do hospital aban-donam o trabalho, dizendo-se ameaçados pela falta de maior controle dosinternos. A situação é contornada com reforço da equipe médica.

7 de junho – Prefeita assina decreto declarando o Anchieta de utilidadepública, para fins de desapropriação.

8 de junho – Funcionários recebem aumento salarial de 100%.

17 de junho – Franco Rotelli, diretor do Centro Psiquiátrico Regional deTrieste, Itália, visita o Anchieta.

23 de junho – Juiz Ricardo de Almeida Dias, da 1ª Vara de FazendasPúblicas, ameaça suspender a intervenção.

26 de junho – Comunidade, funcionários, pacientes e familiares fazemato público defronte do hospital, defendendo intervenção.

28 de junho – Telma de Souza inaugura no Anchieta o Ambulatório deApoio Psicossocial, para os pacientes com alta.

3 de julho – Despacho do Tribunal de Justiça de São Paulo suspende osefeitos da sentença de Juiz de Santos. Continua a intervenção.

13 de julho – Marcos Pacheco de Toledo Ferraz, diretor da Divisão

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Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde, visita o Anchieta eaprova intervenção. À noite, faz palestra sobre Implantação Política deSaúde Mental.

1º de agosto – É divulgado despacho do presidente do Tribunal de Justiçade São Paulo. Nereu César de Moraes, considerando “um retrocesso inad-missível ao retorno da Casa de Saúde Anchieta a administração particular”.

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Arquivo Fotográfico

FOTOS RETIRADAS DA HEMEROTECA MUNICIPAL DESANTOS “ROLDÃO MENDES ROSA” ESPAÇO LYGIA FEDERICH

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A inação fazia parte do

dia-a-dia do hospital

Prefeita Telma confere o

estado do Anchieta

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Médicos cuidaram dos pacientes com maiores problemas

O descaso com os pacientes era evidente e preocupante

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O famoso “chiqueirinho”: exclusão e sofrimento

A triste situação das fichas médicas e documentos do Hospital

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Psiquiatra Suzana Robortella

O artista Renato Di Renzo

O interventor Roberto Tykanori

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Jô Soares recebe Renato com o pessoal do projeto TamTam

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Os “loucutores” agitam as ondas do rádio com o TamTam

Oficina de arte dentro do Anchieta

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Com paredes

pintadas pacientes

em nova fase

A arte cada vez

mais presente

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Bibliografia

D. O. Urgente, 03.05.1990 – Encarte da edição nº 257 do jornal - 1ano depois

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Roberto FidalgoD.O. Urgente Especial, 14.08.1989 – As varias etapas da intervençãoJornal Candura – espaço coberto para um novo pensamento, 06.2005Documento da Prefeitura Municipal de Santos – Saúde Mental, 1993.Jornal do Brasil, suplemento cidade, 24.07.1991 – Os 150 anos da loucuraJornal Folha de São Paulo, 18.05.1991 – Pais desmonta “indústria”

psiquiátricaJornal O Globo, 29.10.1989 – “Psiquiatria Democrática” avança no Brasil

– Mauri Alexandrino

www.paulodelgado.com.brwww.saudemental.med.br/CAPS1.htmwww.orgone.com.brhttp://noticias.uol.com.br/saude/ultnet/2005/03/24/ult11u2412.jhtmCentenário de Nise da Silveira: Psiquiatra revolucionou tratamento de

doentes mentais – Juliana Lopes – 24/03/2005 – 14h32

Revista Viver Psicologia – Matéria Especial “Para Onde Vão os loucos”Revista Isto É, 30.05.1990- Contra o Apartheid mental

MATOS, Paulo. Anchieta 15 anos. Cegraf: Gráfica e Editora Ltda – ME.Santos / SP, 2004.

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GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Pers-pectiva S.A., 1992.

ASSIS, Machado de. O Alienista.

BASAGLIA, Franco. A Instituição Negada. Rio de Janeiro: Edições Graal,1985.

Manuel Monteiro, Novos Tempos para o Doente Mental - Literatura deCordel, distribuição: Prefeitura de Campina Grande-PB, maio 2004