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1 VIII ENEC - Encontro Nacional de Estudos do Consumo Comida e Alimentação na Sociedade Contemporânea 09, 10 e 11 de novembro de 2016 - Niterói/RJ Universidade Federal Fluminense A ESTETIZAÇÃO DO(S) GÊNERO(S) NA MODA CONTEMPORÂNEA: DISCUSSÕES A PARTIR DA MARCA GUCCI Mário de Faria Carvalho 1 Márcia Taísa da Siva 2 RESUMO O presente artigo faz uma análise de algumas peças das últimas coleções da marca Italiana Gucci assinadas pelo estilista Alessandro Michele. Sobretudo as coleções masculinas, tendo- as como exemplificações de desconstrução de padrões tradicionais de gênero nas vestimentas. A partir de um referencial teórico situamos momentos sociais e ideológicos a fim de construir um raciocínio que nos permita observar a relação entre moda e gênero. Utilizamos os estudos desenvolvidos por Butler (1990), Crane (2006) e Maffesoli (2010) como aportes a construção da noção de estetização do(s) gênero(s) nas dinâmicas da moda contemporânea. Palavras-Chave: Moda. Gucci. Gênero. Estetização. 1 INTRODUÇÃO Este estudo refere-se à dissolução da estética masculina cristalizada a partir das coleções da marca italiana Gucci, demonstrando como tais representações expressam uma polissemia social da atualidade. Consideramos a importância da moda enquanto fenômeno transformador de vivências e influenciador da totalidade social. Desta forma observamos nas coleções da Gucci fatores que contribuem para discussões sobre gênero. A visibilidade da maison e a repercussão através da imagem de moda auxiliam na quebra de tabu sob o corpo masculino. A partir de um estudo fenomenológico busca-se a observação de imagens a fim de perceber os sentidos evocados. Realizamos a pesquisa com base na visão pós-estrutural de Judith Butler (1990), no que se refere à teoria da performatividade, na compreensão sociológica da modernidade e da pós-modernidade e a visão sobre a complexidade 1 Doutor em Sciences Sociales - Université René Descartes, Paris V, Sorbonne. Professor do Núcleo de Design da Universidade Federal de Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste. Coordenador do Laboratório de Pesquisas Transdisciplinares sobre Moda (LPTM- UFPE/CNPq). E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Design - Universidade Federal de Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste. Pesquisadora no Projeto de Pesquisa “Trajetos de Gênero(s) nas Dinâmicas da Moda Contemporânea”. Integrante do Laboratório de Pesquisas Transdisciplinares sobre Moda (LPTM-UFPE/CNPq). Bolsista Voluntária PIBIC/CNPq (2016-2017). E- mail: [email protected].

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VIII ENEC - Encontro Nacional de Estudos do Consumo

Comida e Alimentação na Sociedade Contemporânea 09, 10 e 11 de novembro de 2016 - Niterói/RJ

Universidade Federal Fluminense

A ESTETIZAÇÃO DO(S) GÊNERO(S) NA MODA CONTEMPORÂNEA: DISCUSSÕES

A PARTIR DA MARCA GUCCI

Mário de Faria Carvalho1

Márcia Taísa da Siva2

RESUMO

O presente artigo faz uma análise de algumas peças das últimas coleções da marca Italiana

Gucci assinadas pelo estilista Alessandro Michele. Sobretudo as coleções masculinas, tendo-

as como exemplificações de desconstrução de padrões tradicionais de gênero nas vestimentas.

A partir de um referencial teórico situamos momentos sociais e ideológicos a fim de construir

um raciocínio que nos permita observar a relação entre moda e gênero. Utilizamos os estudos

desenvolvidos por Butler (1990), Crane (2006) e Maffesoli (2010) como aportes a construção

da noção de estetização do(s) gênero(s) nas dinâmicas da moda contemporânea.

Palavras-Chave: Moda. Gucci. Gênero. Estetização.

1 INTRODUÇÃO

Este estudo refere-se à dissolução da estética masculina cristalizada a partir das

coleções da marca italiana Gucci, demonstrando como tais representações expressam uma

polissemia social da atualidade. Consideramos a importância da moda enquanto fenômeno

transformador de vivências e influenciador da totalidade social. Desta forma observamos nas

coleções da Gucci fatores que contribuem para discussões sobre gênero. A visibilidade da

maison e a repercussão através da imagem de moda auxiliam na quebra de tabu sob o corpo

masculino.

A partir de um estudo fenomenológico busca-se a observação de imagens a fim de

perceber os sentidos evocados. Realizamos a pesquisa com base na visão pós-estrutural de

Judith Butler (1990), no que se refere à teoria da performatividade, na compreensão

sociológica da modernidade e da pós-modernidade e a visão sobre a complexidade

1 Doutor em Sciences Sociales - Université René Descartes, Paris V, Sorbonne. Professor do Núcleo de Design da

Universidade Federal de Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste. Coordenador do Laboratório de Pesquisas

Transdisciplinares sobre Moda (LPTM- UFPE/CNPq). E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Design - Universidade Federal de Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste. Pesquisadora no

Projeto de Pesquisa “Trajetos de Gênero(s) nas Dinâmicas da Moda Contemporânea”. Integrante do Laboratório de

Pesquisas Transdisciplinares sobre Moda (LPTM-UFPE/CNPq). Bolsista Voluntária PIBIC/CNPq (2016-2017). E-

mail: [email protected].

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contemporânea relatada por Michel Maffesoli (2010). Consideramos igualmente as

transformações sobre moda e sociedade citadas por Diana Crane (2006). Acreditamos que as

correspondências entre a estética da Gucci e o simbolismo dionisíaco exemplificam a

estetização contemporânea, portanto necessitam de uma análise, contribuindo para uma

reflexão sobre a forma como a pluralidade é demonstrada e repercutida pela moda.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Identidade de gênero

O pensamento pós-estruturalista de Judith Butler, teoria queer, desconstrói noções

biologizantes sobre sexo e gênero ressaltando uma perspectiva pluralista. Butler questiona o

feminismo, visto que o movimento pressupunha uma identidade fixa, a mulher, que

substancializava e enfraquecia a sua contestação. Nesse sentido, Butler afirma: “O gênero é

uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais exibida em qualquer

conjuntura considerada” (1990, p. 37).

Ou seja, em relação ao binarismo de gênero, não existe uma identidade estável que

defina um modelo a ser seguido, mas sim “mulheres” e “homens”, sendo assim o gênero como

algo unificado e finalizado passa a ser questionado e entendido não como natural, mas como

construto social, como afirma Butler (1990, pág. 197).

No lugar de uma identificação original a servir como causa determinante, a

identidade de gênero pode ser reconcebida como uma história pessoal/cultural de

significados recebidos, sujeitos a um conjunto de práticas imitativas que se

referem lateralmente a outras imitações e que, em conjunto, constroem a ilusão

de um eu de gênero primário e interno marcado pelo gênero, ou parodiam o

mecanismo dessa construção.

Para Butler o corpo é marcado historicamente, ou seja, sua performance está

suscetível a transformações, contrapondo-se a uma noção de identidade fixa e finalizada, assim

o gênero assume um caráter ficcional, por ser sustentado por uma performatividade que

consiste em repetições de atos e gestos perpassados.

Segundo Butler (1990, p. 235):

Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais são performativos, no

sentido de que a essência ou identidade de que por outro lado pretende-se

expressar, são fabricaçõesmanufaturadas e sustentadas por signos corpóreos e

outros meios discursivos.

Desde o nascimento, o corpo é classificado dentro do binarismo de gênero

masculino/feminino, onde é inscrito em papéis normatizados pela cultura. É possível perceber

que somos considerados inteligíveis a partir da classificação de gênero. Somos inseridos em

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uma série de códigos semióticos que correspondem ao nosso respectivo gênero. O corpo é

imerso em uma ordem compulsória que exige uma coerência entre sexo, gênero e

sexualidade, isto implica na maneira como o indivíduo se comporta e se veste. O queer é um

bom exemplo de contestação desta lógica normatizante, entretanto a contestação também

ocorre através do indivíduo cisgênero que não seguem essa ordem compulsória.

2.2 A construção da masculinidade

Norbert Elias (1995) ilustra a teoria do Processo civilizador, o auge desse processo seria

a modernidade e a concepção de superioridade da autoimagem europeia. Este processo diz

respeito a um movimento cada vez maior de controle dos instintos, onde a estrutura emocional

do indivíduo institui-se absorvendo uma série de códigos da conduta Ocidental, moralmente

aceitáveis, baseados nos princípios da cristandade do Império Romano. Através da

sociogênese, que corresponde às mudanças sociais que interferem na personalidade do

indivíduo e da psicogênese que corresponde às mudanças na personalidade do indivíduo que

acarretam em mudanças sociais. Da relação mútua entre sociogênese e psicogênese emerge o

processo civilizador. É interessante destacar dois momentos, primeiramente a assimilação no

fim do século XVIII, momento no qual a burguesia tenta firmar-se ao lado da corte, classe

dominante. Para isso a burguesia adere aos símbolos desta classe, assim como compra títulos

nobres. Com a deflagração da Revolução Industrial, o poder aquisitivo e social da burguesia

cresce e no fim do século XIX a burguesia situa-se em um momento de repulsa aos símbolos

nobres, entretanto a civilidade continua sendo um padrão universal de conduta que assegura o

poder da classe dominante.

Neste contexto de mudanças os valores vigentes eram advindos do trabalho, a figura do

homem provedor do lar, forte e político, apropriadamente representado com vestes austeras de

linhas retas sem muitas cores e adornos, definiu o estereótipo da masculinidade. A

feminilidade por sua vez era o oposto. Segundo Maffesoli (2010), a valorização da razão e o

moralismo que permeiam a modernidade formam uma “lógica da dominação”, na qual se

legitimam conceitos que vão de oposição à emoção e ao imaginário.

Segundo Crane (2006), os estilos de vestuário masculino seguiram uma tradição limitada

e estável, sempre voltados para o passado, as inspirações masculinas, por muito tempo,

ativeram-se ao período anterior a Segunda Grande Guerra. Fato que destoa do vestuário

feminino que oscilou entre quebras importantes como a silhueta garçonne criada por Coco

Chanel na década de 1920 e a volta a tradição com o New Look Dior da década de 1940.

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Na década de 1960 ocorreu uma variação com essa representação masculina

hegemônica, mudanças importantes ocorreram advindas da pós industrialização, a cultura se

torna cada vez mais complexa. Houve um crescimento de elementos do vestuário de lazer no

vestuário de trabalho e os mesmos passam a ser questionados desde a década de 1950, com a

popularização do jeans.

A ascensão do prêt-à-porter (pronto para vestir) e a decadência da da Alta-Costura e da

figura do estilista como o expoente da moda, revolucionou a forma como as pessoas viam e

consumiam a moda, que passava a ser criada a partir dos novos comportamentos juvenis e

direcionada aos mesmos, passando a ser interativa e transformada pelos consumidores. A moda

recebia uma conotação revolucionária de contestação aos padrões vigentes. Neste contexto o

homem pavoneia-se, o uso de estampas psicodélicas, cores fortes e acessórios passam a ser

comuns. Era a época do youthquake3, que tinha Londres como berço. Segundo Crane (2006,

p.339): “Para ser bem-sucedido, o vestuário masculino de lazer deve estar sincronizado com a

cultura de mídia da maneira como ela se expressa na televisão, no cinema e na música

popular”.

A emergência das atividades de lazer demonstra como a constituição da personalidade

não se pauta mais em requisitos pré-estabelecidos e definidos e sim em gostos e interesses

diversos que comunicam mais sobre o indivíduo e sobre o que o mesmo consome.

O feminismo e os demais movimentos de contracultura essaltaram o debate sobre gênero,

dando uma profundidade ao discurso que, além de questionar o papel social da mulher,

permite à mulher ingressar em ambientes antes apenas “masculinos”. Pelas vestimentas as

minorias emancipam seus corpos, como afirma Crane (2006): “Em geral, os que pertencem a

minorias alicerçadas em raça, etnia ou preferência sexual tendem a usar o estilo como meio de

expressão de se sua identidade e resistência à cultura dominante” (CRANE, 2006, p. 340).

Neste cenário de transformações sociais e inovações tecnologicas, o homem passa a

dispensar um tempo à sua aparência e se expressa através da moda que agora passa a ser

efêmera para os homens que acompanham as mudanças de sua época. A identidade masculina

passa a ter novos contornos e ressignificações que resultam em masculinidade(s).

Com a fragmentação das identidades na segunda metade do século XX, a

visão conservadora da masculinidade começa a sofrer profundas

transformações. Papéis e funções sociais são constantemente questionados,

no que é chamado de crise da masculinidade: “muitos homens relutam em

projetar uma imagem que se desvie dessas normas. Em geral, para a

3 Youthquake significa terremoto jovem, é uma denominação referente ao movimento cultural na moda, música e

nas mídias, influenciado pelos jovens na década de 1960.

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mentalidade popular, a identidade masculina e fixa e inata, e não socialmente

construída. (CRANE, 2006.p. 354)

A mídia tem uma grande importância neste cenário, no qual legitima modismos vindos

das ruas, o fenômeno do Buble Up4. As tribos urbanas exemplificam a diversidade de estilos

que representam conceitos que vão além de divisões delineadas por classe e gênero. Sobre a

importância da moda neste contexto pós-moderno, Crane (2006) afirma que a moda atua na

comunicação desses novos parâmetros para a sociedade, assim como participa da construção

de novas identidades pela escolha do vestuário.

2.3 O mundo pós-moderno

Maffesoli (2010) descreve a contemporaneidade como um período híbrido e

efervescente, onde as novas tecnologias compactuam com as novas formas de se relacionar,

ou seja, é um período suscetível a um estetismo ou “assentimento à vida”. Aceitando tudo que

a compõe, propiciando sensibilidades e identificações diversas, constituídas a partir de

atrações e repulsões irreprimíveis. A estética é então, com o exercício dos sentidos, a ligação

com o outro, o “sentir em comum”.

Este vínculo emocional se contrapõe ao ideal do mundo moderno, ordenado e sólido em

que o indivíduo era provido de uma individualidade condicionada a fatores externos

normatizados pelas instituições. Dessa forma entendemos que o sujeito era classificado por

raça, idade, credo, classe social, e etc. Na pós-modernidade estas informações sistemáticas não

são capazes de proporcionar identificações, pois o sujeito torna-se mais complexo assim como

a cultura. Como exemplo dessas transformações temos a dinâmica de consumo micro target,

onde o objetivo é atingir um grupo segmentado com especificações, isto reflete como os

gostos e singularizações dos sujeitos falam mais sobre o mesmo, que dados demográficos.

A descentralização de padrões na pós-modernidade fomentou aspectos como: a

pluralidade, relativização, fluidez, imprevisibilidade. O culto às imagens sugere um

narcisismo coletivo, alimentado pelas novas mídias digitais que se renovam e fazem cada

vez mais parte da vida. A velocidade das informações e da imagem propicia a socialidade,

porém a exposição constante do corpo proporciona uma exposição desenfreada a qual exalta até

mesmo situações trágicas.

Contra todas as doutrinas ascéticas, lembremos simplesmente que, para ser a

vida deve parecer. Trata-se de um truísmo de consequências epistemológicas

4 Bubble Up é uma teoria difundida na década de 1990, corresponde ao fenômeno de tendências que surgem das

ruas e chegam ao mainstream.

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múltiplas, de um truísmo que nos obriga a considerar o corpo (individual,

social) e suas diversas aparências como pivô, em torno do qual vai se

ordenar, em círculos concêntricos, toda a vida social, o corpo como axis

mundi, de certo modo (MAFFESOLI, 2010, p. 137).

Dessa forma, percebemos que o sujeito impulsionado por um mundo imaginal e lúdico,

onde imperam as relações cotidianas, tem a possibilidade de expressar quem é ou quem deseja

ser, o ser e o parecer, trata-se de uma liberdade de singularização ou de pertencimento. A

valorização dos simbolismos e o desprendimento de motivos racionais de convívio ocasionam

o vínculo social.

Esta espetacularização do indivíduo e do mundo é descrita por Maffesoli (2010, p.

163): “Pode-se postular que é a explosão dos valores sociais, o relativismo ideológico, a

diversificação dos modos de vida que engendram essa barroquização da existência com a qual

estamos, de novo, confrontados”.

Maffesoli (2010) faz uma analogia comparando a contemporaneidade à arte e ao

período barroco, tido como um período tipicamente sensualista, que se apresenta como

uma tendência que ressurge em determinadas épocas. No que concerne a analogia entre o

barroco e a vida, as curvas da arquitetura barroca servem como metáforas para o fator cíclico

que se faz presente na contemporaneidade, as várias fases do indivíduo, a concreticidade

atribui uma tridimensionalidade a seus atos, que se desprendem de uma atitude sistemática e

progressiva.

A barroquização também é descrita por Maffesoli (2010) como um tipo de

sensibilidade que provém de um “vitalismo barroco” fomentado por uma efervescente

experiência dos sentidos na vida cotidiana. As pessoas se relacionam, formando novas

maneiras de estar-junto, compondo o corpo social, o que sugere uma solidariedade e

unicidade, onde a estética se torna ética e rompe com a intelectualização. A estética não é

mais somente referente às obras de arte nos museus, demonstra que a vida em seus variados

sentidos pode ser arte.

Uma das principais características da contemporaneidade é o rompimento com a

uniformização cultural, portanto é interessante analisar os polos de oposição apolíneo e

dionisíaco, utilizados por Nietzsche. Referente à mitologia grega, Apolo é o deus do sol, da

luz dos limites, representa a racionalidade, a harmonia, o equilíbrio entre as formas, da arte.

Em contraponto, temos Dioniso, deus das festas, do vinho, representa a contestação de

limites, a aventura, a concreticidade terrena, a ecologia, os prazeres e o orientalismo. Assim, a

volta à inspiração grega, profana elimina a política de controle do corpo e suas consequências.

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Assim, o corpo nas suas diversas modulações, o sonho a imaginação, o

sentido da natureza, a preocupação com o coletivo, são tantas categorias

“desordenadas” que o Oriente mais ou menos mítico, souberam proteger, e

que retornam com força nas nossas sociedades (MAFFESOLI 2010, p. 179).

Essa mística quanto ao corpo leva-nos a pensar sobre a relação entre o coletivo e o

individual, a ideia de unicidade da barroquização, mas também que a ambiguidade de papéis

na sociedade nos faz levar a crer que na pluralidade se reflete as mais honestas formas de ser.

3 GUCCI

A Gucci é uma maison Italiana, criada em Florença no ano de 1921 por Guccio Gucci,

a marca começou a ganhar notoriedade pelo trabalho artesanal feito em couro. Durante a

década de 1970 já era administrada pelos herdeiros de Guccio, foi uma época de grande

prosperidade para maison, porém durante as décadas de 1980 e 1990 houve algumas crises

internas que desestabilizaram o negócio. Após a entrada de Tom Ford a maison obteve uma

ascensão. Ele tinha a proposta de uma estética sexy e moderna para as vestimentas,

estética essa que também foi apropriada por sua sucessora, Frida Giannini.

Alessandro Michele, que já trabalhava para marca como diretor criativo de acessórios

assumiu a função de estilista em janeiro de 2015 e na sua primeira coleção outono/inverno

2015/2016, podemos ver o conceito de androginia se estabelecendo como característica da

nova Gucci. Elementos como: a renda, a mistura de influências rêtro, geek modernizados,

como os babados feitos de paetê, davam uma ilusão de ótica nas peças da coleção de

primavera-verão 2016 feminina. O orientalismo pode ser percebido em algumas estampas de

dragões, além do naturalismo, representado pela fauna e a flora, proporcionou uma atmosfera

lúdica aos desfiles. Estes fatores representam o hibridismo cultural e a complexidade pós-

moderna, características construídas em suas demais coleções: outono inverno 2015/2016

feminina, primavera verão 2016/2017 feminina e masculina, outono inverno 2016/2017

feminina e masculina e primavera verão 2017, feminina e masculina.

Alessandro Michele ganhou o prêmio de estilista do ano em 2015 no British Fashion

Awards5 e o Prêmio Internacional de CFDA

6 em 2016. Artistas como Madonna Florence Welch

Jared Letto e Margot Robie vestem suas criações. É importante ressaltar que sua influência no

universo da moda vem sendo repercutida midiaticamente. A Gucci tem sido uma das marcas

5 Britsh Fashion Awards é um evento anual da moda Britânica que premia destaques na moda, nacionais e

internacionais. 6 CFDA Fashion Awards ou Council of Fashion Designers of America é uma premiação que homenageia os

principais ícones do mundo da moda.

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mais rentáveis do consumo de luxo. Um fator importante para a dinâmica de consumo como

um todo, pois a Gucci posiciona-se contra o “See now, buy now”, trata-se de uma nova forma

de consumo, na qual grandes marcas tais como: Burberry, Tom Ford e Ralph Lauren tem

aderido, esta nova forma de consumir consiste no acesso à compra logo após o desfile, na

tentativa de evitar a copia pelo pret-a-porter.

Isto sugere uma série de consequências que implicam nas possibilidades de criação dos

estilistas. Na visão de Michele a melhor forma de distanciar-se do prêt-à-porter é indo contra

esta proposta. Podemos observar que a estética da Gucci vem sendo construída a cada coleção,

priorizando a emoção o espetáculo do desfile, o estilista consegue captar uma sensualidade

mística em suas peças, que transmitem romantismo. A mistura de referências forma a

excentricidade que torna a figura masculina em um indivíduo em contato com as mudanças

sociais, com a cultura, com a arte. Essas referências são utilizadas para compor sua aparência,

desfazendo padrões normativos de representação, ou seja, há um processo de singularização

que ganha força na atualidade, fazendo com que pensemos a moda além de lucros imediatos

3.1 ANÁLISES GUCCI: SOBRE A ESTETIZAÇÃO DO(S) GÊNERO(S) NA MODA

CONTEMPORÂNEA

Figura 1. Sem título

Fonte: Site: Pinterest8

As bolsas da imagem fazem parte da linha Dionysus, percebemos a presença de

motivos que remetem à natureza, como flores, pássaro e insetos, inseridos sob fundo

estampado com a monograma da Gucci. Nos fechos das bolsas há duas cabeças de tigre,

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segundo a mitologia o deus Dioniso teria se transformado em um animal para atravessar o rio

Tigre carregando uma jovem Ninfa.

Figura 2. Sem título

Fonte: Site: Fashion Forward

Imagem da campanha de verão 2016 ambientada em Berlim. Observamos que os

modelos estão em um ambiente urbano, uma estação antiga de metrô, o que reforça a ideia de

cotidiano, onde são vividas as emoções do convívio social, em contraste ao banal temos um

pavão, símbolo do fausto e da ostentação, que se torna inusitado neste ambiente, assim a

imagem torna-se onírica. Sobre as vestimentas, o modelo da esquerda usa um sobretudo

marrom com listras e uma calça estampada com uma barra levemente aberta, com sapatos

dourados, a gola de sua camisa rosa tem babados e uma flor, os óculos possuem lentes

quadradas, característica dos anos 1970. O modelo da direita usa um conjunto esportivo

vermelho de estampa floral, associando a modernidade esportiva com a ornamentação

barroca.

8 Endereço do site: http://ffw.com.br/

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Figuras 3 e 4. Sem título.

Fonte: site Lilian Pacce

A primeira coleção de Michele para Gucci estabeleceu a androginia, de uma forma

mais simples e baseada em tons terrosos. Os homens vestiam golas de laços, mangas com

babados e algumas modelos vestiam ternos mais austeros de linhas retas com algum detalhe

de laço na gola, como demonstrado na primeira imagem. A renda e a transparência estão

presentes como equilíbrio em relação à alfaiataria da calça na segunda imagem.

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Figura 5 e 6. Sem título.

Fonte: Site Lilian Pacce

A primeira imagem é da coleção de outono/inverno 2016/2017 masculina. Nesta coleção

observamos a mistura do retrô com personagens da cultura pop, o brocado, o floral e cores

variadas fazem dessa coleção uma evolução natural do novo estilo proposto. Na imagem da

esquerda o modelo usa um sobretudo bege com brocado verde, com decote V e manga três

quartos que dão ares de uma sensualidade romântica. A calça com “boca de sino” rosa salmon

faz referência aos anos 1970. Os óculos demonstram a inspiração geek e os anéis são acessórios

presentes é quase todos os modelos, o chocker, um acessório tipicamente feminino também foi

incorporado aos looks. E ao mocassim, símbolo da Gucci, foram aderidos spikes, assim como

em outros modelos, plumas tornando-se pantufa.

A segunda imagem é da coleção de primavera verão 2017 masculina, nesta coleção

observamos looks com inspiração militar, jeans manchado e o navy como temas. O modelo usa

e um suéter com estampa do pato Donald, ícone da cultura pop, os tons de rosa, verde, amarelo

da camisa e o azul da calça, percata e o chapéu de cowboy ressaltam o aspecto lúdico do look,

na camisa há uma gola, outro elemento muito usado por Michele.

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Figura 7 e 8. Sem título.

Fonte: Site Lilian Pacce

A coleção de verão 2016 estabeleceu a popularidade desta nova proposta da Gucci, os

temas naturais são predominantes, as cores e as estampas das peças são vibrantes, além das

camisas de renda e os conjuntos de seda, forma de pijama. A referencia aos anos 1970 é

igualmente presente em outras coleções da Gucci. Na primeira imagem o modelo veste um

suéter em xadrez vichy com bordado de abelha, pássaros, flores e um mini short preto. A

sapatilha foi o calçado que predominou no desfile.

A segunda imagem é referente ao desfile de pré-primavera/verão 2017. A coleção teve

Londres como inspiração e os elementos vão desde a bandeira Inglesa e o tradicional tartan a

estética punk. O modelo veste uma jaqueta jeans com tachas e Spikes com uma gola alfaiate

com estampa que remete à pele de onça, fazendo referência ao movimento punk, simbolizado no

coturno, das décadas de 1970 e 1980. A calça jeans tem uma estampa de tigre e é cigarrete com

cintura alta, referência aos anos 1970, mas ao mesmo tempo, contemporânea. O monograma da

Gucci, presente no cinto, é algo que o estilista restabeleceu desde as primeiras coleções.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da estética da Gucci nos permite observar como os elementos citados

representam um simbolismo dionisíaco, aspecto relevante da contemporaneidade, sobretudo a

multiplicidade, a sinergia entre referências diversas. As coleções masculinas da Gucci são

modernizadas e tem elementos românticos como as variadas estampas com motivos naturais

e composições barrocas, o laço e a renda, somados a tendências street como a gargantilha,

tipicamente feminina, ou referências da cultura pop, exemplificando assim a dissolução de

uma representação masculina hegemônica.

A moda é um dos mais expressivos acervos imaginários, ou seja, a imagem de moda

está historicamente no imaginário coletivo, transformando o repertório das pessoas,

construindo ou subvertendo noções que conceituam a masculinidade e a feminilidade

substanciais. Partindo desse princípio e entendendo o gênero como performativo, percebemos

que a moda nos faz questionar os estereótipos, pois auxilia na transformação do

comportamento a partir da expressividade das vestimentas. Trata-se de como a totalidade

social interage com o individuo ou tribos que se posicionam transformando as formas de

convívio social.

Dessa forma, a moda tem uma importância política, pois proporciona visibilidade a

gêneros não binários, desmarginaliza-os. A estética da Gucci tem causado uma

repercussão para além do consumo de luxo, a proposta tem atingido o Fast

Fashion por sua característica jovial. É importante destacar que campanhas como a da C&A,

intituladas “Misture, ouse, divirta-se” e “Dia dos Misturados”, são interessantes meios de

expressão e repercussão midiática.

A transitoriedade da moda faz surgir efervecências presentes no cotidiano, vindas da

rua, palco de contestação. Temos como exemplo o jeans patchwork, uma tedência que voltou a

moda, popularizando-se pelo instagram, entre outras mídias digitais. É uma das tendências

mais vistas no fast fashion, por ser suscetível a personalização. Considerando o valor da

imagem na contemporaneidade, é importante que a androginia seja um tema influenciado pela

Gucci, pois a visibilidade e popularidade da marca junto a artistas e os resultados econômicos

alcançados pela mesma podem fazer com que mais marcas com diferentes abordagens tenham

essa preocupação de ressaltar a reflexão sobre gênero nas suas coleções.

Page 14: VIII ENEC - Encontro Nacional de Estudos do Consumo Comida ...€¦ · Judith Butler (1990), no que se refere à teoria da performatividade, na compreensão ... linhas retas sem muitas

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REFERÊNCIAS

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