or uma poética da performatividade: o teatro performativo · eu objetivo hoje é apresentar os...

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M P or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: or uma poética da performatividade: o teatr o teatr o teatr o teatr o teatro performativo o performativo o performativo o performativo o performativo J osette Féral Josette Feral é professorada Universidade do Quebéc. Tradução: Lígia Borges. Revisão da tradução: Cícero Alberto de Andrade Oliveira. 1 Laurent Goumarre, Christophe Kihm. “Performance contemporaine” [Performane contemporânea] in Artpress, Paris, n. 7, nov-déc-janv., 2008. eu objetivo hoje é apresentar os concei- tos de performance e performatividade, amplamente utilizados nos Estados Uni- dos há duas décadas, e que gostaria de utilizar para redefinir o teatro que se faz hoje e carrega em seu cerne estas duas noções. Esse teatro, que chamarei de tea- tro performativo, existe em todos os pal- cos, mas foi definido como teatro pós-dramáti- co a partir do livro de Hans-Thies Lehmann, publicado em 2005, ou como teatro pós-mo- derno. Gostaria de lembrar aqui que seria mais justo chamar este teatro de ‘performativo’, pois a noção de performatividade está no centro de seu funcionamento. Para realizar este objetivo, uma incursão em direção à noção de performance se impõe, performance concebida aqui como forma artís- tica (a performance art) e a performance conce- bida como ferramenta teórica de conceituação do fenômeno teatral, conceito popularizado por Richard Schechner, particularmente nos Esta- dos Unidos, e que constitui a base principal so- bre a qual se estruturam os “Estudos da Perfor- mance” nos países anglo-saxões. Minha abordagem será feita em três mo- mentos: por um lado, tentarei delimitar as no- ções em vigor, traçando um mapa dos princi- pais sentidos que lhe são atribuídos; em seguida, tentarei estabelecer algumas das características da performatividade e, enfim, por meio de exemplos e excertos de peças, tentarei mostrar como alguns dos espetáculos evocados são pro- priamente performativos. Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: Por uma poética da performatividade: o teatr o teatr o teatr o teatr o teatro performativo o performativo o performativo o performativo o performativo “A performance poderia ser hoje um ponto nevrálgico do contemporâneo”. 1 Existe, desde sempre, entre a performance e o teatro, uma desconfiança recíproca que não pa- rou de se desenvolver ao longo dos anos, uma desconfiança que Michael Fried resume nestas palavras lapidares, freqüentemente evocadas: “A arte degenera à medida em que se aproxima do teatro” ou ainda “O sucesso, ou mesmo a sobrevivência das artes, começa crescentemente 197 R4-A1-JosetteFeral.PMD 15/04/2009, 08:25 197

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Josette Feral professorada Universidade do Quebc. Traduo: Lgia Borges. Reviso da traduo:Ccero Alberto de Andrade Oliveira.

1 Laurent Goumarre, Christophe Kihm. Performance contemporaine [Performane contempornea] inArtpress, Paris, n. 7, nov-dc-janv., 2008.

eu objetivo hoje apresentar os concei-tos de performance e performatividade,amplamente utilizados nos Estados Uni-dos h duas dcadas, e que gostaria deutilizar para redefinir o teatro que se fazhoje e carrega em seu cerne estas duasnoes. Esse teatro, que chamarei de tea-tro performativo, existe em todos os pal-

cos, mas foi definido como teatro ps-dramti-co a partir do livro de Hans-Thies Lehmann,publicado em 2005, ou como teatro ps-mo-derno. Gostaria de lembrar aqui que seria maisjusto chamar este teatro de performativo, poisa noo de performatividade est no centro deseu funcionamento.

Para realizar este objetivo, uma incursoem direo noo de performance se impe,performance concebida aqui como forma arts-tica (a performance art) e a performance conce-bida como ferramenta terica de conceituaodo fenmeno teatral, conceito popularizado porRichard Schechner, particularmente nos Esta-dos Unidos, e que constitui a base principal so-bre a qual se estruturam os Estudos da Perfor-mance nos pases anglo-saxes.

Minha abordagem ser feita em trs mo-mentos: por um lado, tentarei delimitar as no-es em vigor, traando um mapa dos princi-pais sentidos que lhe so atribudos; em seguida,tentarei estabelecer algumas das caractersticasda performatividade e, enfim, por meio deexemplos e excertos de peas, tentarei mostrarcomo alguns dos espetculos evocados so pro-priamente performativos.

Por uma potica da performatividade:Por uma potica da performatividade:Por uma potica da performatividade:Por uma potica da performatividade:Por uma potica da performatividade:o teatro teatro teatro teatro teatro performativoo performativoo performativoo performativoo performativo

A performance poderia ser hoje umponto nevrlgico do contemporneo.1

Existe, desde sempre, entre a performance e oteatro, uma desconfiana recproca que no pa-rou de se desenvolver ao longo dos anos, umadesconfiana que Michael Fried resume nestaspalavras lapidares, freqentemente evocadas:A arte degenera medida em que se aproximado teatro ou ainda O sucesso, ou mesmo asobrevivncia das artes, comea crescentemente

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a depender de sua capacidade de negar o tea-tro2. Entretanto, se h uma arte que se benefi-ciou das aquisies da performance, certamen-te o teatro, dado que ele adotou alguns doselementos fundadores que abalaram o gnero(transformao do ator em performer, descriodos acontecimentos da ao cnica em detri-mento da representao ou de um jogo de ilu-so, espetculo centrado na imagem e na ao eno mais sobre o texto, apelo uma receptivi-dade do espectador de natureza essencialmenteespecular ou aos modos das percepes pr-prias da tecnologia...). Todos esses elementos,que inscrevem uma performatividade cnica,hoje tornada freqente na maior parte das ce-nas teatrais do ocidente (Estados Unidos, Pa-ses-Baixos, Blgica, Alemanha, Itlia, ReinoUnido em particular), constituem as caracters-ticas daquilo a que gostaria de chamar de tea-tro performativo. Desejaria discutir algumasdas caractersticas deste teatro e de sua evoluoposicionando-o em relao s prticas artsticasnorte-americanas, mas tambm flamengas, bri-tnicas, etc....

* * *

Primeiramente, e para contextualizar estareflexo, parece-me que um retorno rpido so-

bre o sentido (ou os diferentes sentidos) da pa-lavra performance se faz necessrio. Gostaria defaz-lo rapidamente lembrando as publicaesde duas obras fundadoras de dois eixos ao lon-go dos quais a questo da performance seriadiscutida no decorrer dos anos 80, duas obrascujo impacto no meio acadmico literrio e ar-tstico seria importante. A primeira, The End ofHumanism de Richard Schechner (1982, PAJPublications)3. Ela abria de certa forma a dca-da e reunia textos publicados no decorrer dosanos precedentes por uma questo fundamen-tal: O que a performance? Ou melhor, o que uma performance? Schechner ampliava ali anoo para alm do domnio artstico para nelaincluir todos os domnios da cultura. Em suaabordagem, a performance dizia respeito tantoaos esportes quanto s diverses populares, [tan-to] ao jogo [quanto] ao cinema, [tanto] aos ri-tos dos curandeiros ou de fertilidade [quanto]aos rodeios ou cerimnias religiosas. Em seusentido mais amplo, a performance era tnicae intercultural, histrica e a-histrica, esttica eritualstica, sociolgica e poltica4.

Esse trabalho de definio daquilo quepode recobrir a noo ir se afinando mas,tambm, tornando-se cada vez mais abrangente nos livros que se seguiriam, particularmenteem Teoria da Performance5 e em Estudos Perfor-mativos: uma introduo (2002)6. Em quadros

2 Paris in Art and objecthood, publicado inicialmente in Artforum 5, Nova York, June 1967, depois reto-mado em Dutton. P. P. Minimal Art: A Critical Anthology. New York: Battcock, 1968, p. 139 e 145.

3 Era o segundo livro da srie Performance studies, lanado por Brooks McNamara, o primeiro sendoaquele de Victor Turner, From Ritual to Theatre: The Human Seriousness of Play. New York: PerformanceArt Journal, 1982.

4 Proposta de Brooks McNamara e Richard Schechner no texto de apresentao da srie.5 Publicado desde 1977, mas retomado em 1988e depois em 2003, Nova York, Routledge.6 R. Schechner, Performance studies: an introduction, New York, Routledge, 2002, mas tambm em The

future of ritual: writings on culture and performance, New York, Routledge, 1993; By Means ofperformance: intercultural studies of theatre and ritual, Cambridge, Cambridge University Press, 1990;Between Theater and antropology, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1985.

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cada vez mais inclusivos que ele desenvolver (es-boo pp. 71 e 72 e p. 245 vers fr)7, Schechnerchega a incluir neles, junto noo de perfor-mance, todas as formas de manifestaes teatrais,rituais, de divertimento e toda manifestao docotidiano8. Uma incluso to vasta suscita, semdvida, um problema importante. Por tantoquerer abarcar, no nos arriscamos a diluir a no-o e sua eficcia terica? Esta uma primeiraquesto que convm ser colocada.

Por trs dessa redefinio da noo deperformance e de sua inscrio no vasto dom-nio da cultura, preciso antes ver um desejopoltico muito fortemente ancorado na ideo-logia americana dos anos 80 (ideologia que per-dura at hoje) de reinscrever a arte no dom-nio do poltico, do cotidiano, qui do comum,e de atacar a separao radical entre cultura deelite e cultura popular, entre cultura nobre ecultura de massa. A expanso da noo de per-formance sublinha portanto (ou quer sublinhar)o fim de um certo teatro, do teatro dramticoparticularmente e, com ele, o fim do prprioconceito de teatro tal como praticado h algu-mas dcadas. Mas esse teatro est realmentemorto, apesar de todas as declaraes que afir-mam seu fim? A questo permanece atual mes-mo nos Estados Unidos. Esta a segunda ques-to que gostaramos de levantar.

Levantando os mesmos questionamentos,mas de um ponto de vista terico diferente (fi-losfico e esttico desta vez) um segundo livro publicado alguns anos mais tarde (1986) cujottulo After the Great Divide analisa os laosentre o modernismo, cultura de massa e ps-modernismo (Modernism, Mass culture, Postmo-dernism)9. Andreas Huyssen, professor em Co-lumbia, rene ali artigos que testemunham umareflexo iniciada no fim dos anos 70 e no co-meo dos anos 80 e se empenha em mostrar,desta vez sob uma perspectiva puramente arts-tica e no sociolgica e antropolgica , o que o modernismo e no as vanguardas histri-cas que responsvel por uma ruptura entreuma viso elitista da arte e da cultura popular eque igualmente responsvel pelo afastamentoda arte das esferas poltica, econmica e social.Huyssen lembra que as vanguardas histricasrecusam separar a arte de sua inscrio no real.Sua viso trata da performance no seu sentidopuramente artstico e no antropolgico. Elese coloca numa viso essencialmente estticaque continua a dominar na maior parte denossos departamentos das artes do espetculo.A performance, no seu sentido, a performancearte, uma arte que abalou nossa viso de artenas dcadas de 70 e 80. (Tratarei das caracters-ticas dessa arte um pouco mais adiante).

7 Ver quadro p. 71 (3.1 Overlaping circles) e 72 (3.2 Theater can be considered a specialezed kind ofperformance [o teatro pode ser considerado uma forma especializada de performance]) da edio 2003de Performance theory, Nova York, Routledge, 2003 e o quadro p. 245 (2.2 La boucle infinie [A voltainfinita] ref. do croquis na verso inglesa: p. 68 de Performance studies, an introduction). A voltainfinita ilustra a positividade da dinmica de intercmbio [troca]. Os dramas sociais afetam os dramasestticos e vice-versa. As aes visveis de um dado drama social so sustentadas moldadas, condicio-nadas, guiadas por processos estticos subjacentes e tcnicas teatrais/retricas especficas. De maneirarecproca, a esttica teatral numa dada cultura sustentada moldada, condicionada, guiada porprocessos de interao social subjacentes in R. Schechner, Performance (trad. Mari Percorari), p. 245.

8 O que Elizabeth Burns e Erving Goffmann j haviam feito antes dele. Burns tinha, assim, mostradoque a teatralidade impregna o cotidiano. Ver E. Burns, Theatricality, Londres, Longman, 1973; E.Goffman, La mise em scne de la vie quotidienne [ A colocao em cena da vida cotidiana], Paris, ditionsde Minuit, 1973 [1959].

9 Andreas Huyssen, Blommington, Indiana, Univ Press, 1986.

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Meu objetivo aqui no o de favoreceruma viso mais que outra, mas de enfatizar queemergem, por meio destas duas vises deperformance uma herdada da vanguarda e daarte da performance (a de Huyssen e de tudoque poderei chamar, para ser breve, de tradioeuropia dos pases latinos), a outra herdada deuma viso antropolgica e intercultural com aqual Schechner contribui fortemente para suadifuso os dois grandes eixos a partir dos quaispodemos pensar o teatro e, mais amplamen-te, as artes hoje.

A concepo de Schechner dominantenos pases anglo-saxes; a de Huyssen em cer-tos pases europeus (Frana), ou Canad, emnossas universidades, nas escolas de formaoque buscam preservar uma viso puramente es-ttica da arte.

O interesse da evocao desses dois eixos(performance como arte e performance comoexperincia e competncia) vem do fato de queemerge, no cruzamento deles, uma grande par-te do teatro atual, um teatro cuja diversidadedas caractersticas atuais Hans-Thies Lehmannanalisou com preciso e que ele definiu comops-dramticas, mas para o qual eu gostaria depropor a denominao teatro performativo,que me parece mais exata e mais de acordo comas questes atuais.

De fato, se evidente que a performanceredefiniu os parmetros permitindo-nos pensara arte hoje, evidente tambm que a prtica daperformance teve uma incidncia radical sobreprtica teatral como um todo. Dessa forma, se-

ria preciso destacar tambm, mais profunda-mente, essa filiao que opera uma rupturaepistemolgica nos termos e adotar a expressoteatro performativo.

* * *

Performer, quer seja num sentido primei-ro de superar ou ultrapassar os limites de umpadro ou ainda no [sentido] de de se engajarnum espetculo, um jogo ou um ritual, impli-ca ao menos em trs operaes, diz Schechner.

1. ser/estar10 (being), ou seja, se comportar(to behave);2. fazer (doing). a atividade de tudo o queexiste, dos quarks11 aos seres humanos;3. mostrar o que faz (showing doing, ligado natureza dos comportamentos humanos). Esteconsiste em dar-se em espetculo, em mostrar(ou se mostrar).

Estes verbos (que representam aes), quetodo o artista reconhece em seu processo decriao, esto em jogo em qualquer performan-ce. Por vezes separados, por outras combinados,eles no se excluem jamais. Muito pelo contr-rio, eles interagem com freqncia no processocnico. Performer, no seu sentido schechneriano,evoca a noo de performatividade (antes mes-mo da de teatralidade) utilizada por Schechnere por toda a escola americana12. Mais recenteque a de teatralidade, e de uso quase exclusiva-mente norte-americano (mesmo se Lyotard uti-

10 Em francs, bem como no ingls, o verbo tre tem a ambivalncia de ser e estar e, dentro docontexto, ambas definies parecem apropriadas (N. T.).

11 Quarks: subpartculas atmicas, formadoras das menores partes de um tomo.12 Schechner, com certeza, que esteve no centro desta mutao lingstica e epistemolgica e na origem

da onda dos Performance studies nos Estados Unidos, que ele contribuiu fortemente para implementarnos estudos tericos sobre as artes do espetculo), mas tambm Philip Auslander, Michael Benamou,Judith Butler, Marvin Carlson, Dwight Conqueergood, Barbara Kirshenblatt-Gmblett, Bill Worthen evrios outros que contriburam igualmente na reflexo coletiva sobre o assunto.

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liza o termo), sua origem poderia ser retraadanas pesquisas lingsticas de Austin e Searle, queforam os primeiros a impor o conceito pelo visdos verbos performativos que executam umaao. Eis uma primeira considerao.

Essa noo valoriza a ao em si, mais queseu valor de representao, no sentido mimticodo termo. O teatro est inexoravelmente ligado representao de um sentido, passe ele pelapalavra ou pela imagem. O espetculo nele se-gue uma narrativa [rcit], uma fico. Ele pro-jeta ali um sentido, um significado. Essa liga-o com a representao que Artaud recolocouem questo na seqncia das grandes correntesartsticas do incio do sculo XX, deixou igual-mente sua marca no teatro, ainda que mais tar-diamente. No reconstituirei aqui toda a hist-ria da evoluo da prtica artstica no decorrerdo sculo XX, mas possvel dizer que diversosautores e encenadores buscaram criar essa dis-sociao unvoca entre um discurso (verbal ouvisual) e um sentido dado. Logo, quandoSchechner menciona a importncia da execu-o de uma ao na noo de performer, ele,na realidade, no faz seno insistir neste pontonevrlgico de toda performance cnica, do fa-zer. evidente que esse fazer est presente emtoda forma teatral que se d em cena. A dife-rena aqui no teatro performativo vem dofato de que esse fazer se torna primordial e umdos aspectos fundamentais pressupostos na per-formance. Para ilustrar essa importncia, gosta-ria de tomar dois exemplos que exprimem bemessa argumentao, esse enquadramento po-der-se-ia dizer, para retomar a expresso deTurner, do fazer. Trata-se de um excerto de LaChambre dIsabella (O Quarto de Isabella), espe-tculo de Juan Lauwers apresentado, pela pri-meira vez, em Avignon em 2004 e que desde

ento no parou de rodar pela Europa e pelaAmrica do Norte, mas tambm pela sia (Seul,2007) e pela Amrica Latina (Bogot, 2008),e um outro excerto de Dortoir (Dormitrio) deum encenador do Quebc, Gilles Maheu.

O quarto de IsabellaO quarto de IsabellaO quarto de IsabellaO quarto de IsabellaO quarto de Isabella

a histria de uma mulher velha e cega queconta a histria de sua vida, de 1910 aos diasatuais. Mas ela no a conta sozinha. Todos aque-les que tiveram importncia para ela contam ahistria consigo: os numerosos mortos de suavida: Anna e Arthur, seus amantes Alexander eFrank. E juntos, no apenas contam a histriade Isabella, como a cantam tambm. No aprimeira vez que a msica tocada ao vivo eque os atores cantam em cena em um espetcu-lo de Juan Lauwers, mas isso nunca havia sidofeito de uma maneira to aberta e convidativaquanto aqui. Rapidamente, entretanto, perce-be-se que a vida de Isabella dominada por umamentira. Seus pais adotivos, Arthur e Anna, quemoram juntos num farol, numa ilha, ondeArthur o vigia, fizeram-lhe acreditar que filha de um prncipe do deserto que desapare-ceu na ocasio de uma expedio. Isabella parteem busca desse pai e essa viagem leva-a no frica, mas a um quarto em Paris, cheio de ob-jetos antropolgicos e etnolgicos13. Essa his-tria comporta alguns episdios diretamenteinspirados na vida do prprio Lauwers. De fato,ele conta que quando seu pai faleceu deixou-lhe de herana em torno de 5800 objetos etno-lgicos e arqueolgicos. Seu pai era mdico, masnas horas livres tambm era etngrafo amador.Quando criana isso nunca despertou questio-namentos em sua casa e ele cresceu entre esses

13 Texto de Erwin Jans.14 Primeiro excerto: o quarto de Isabella, Juan Lauwers. O incio da narrao livremente adaptado a partir

do site da companhia.

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objetos... Tendo falecido seu pai, ele se viu comessa coleo nos braos. Foi-lhe necessrio de-cidir o que fazer com aquilo. Era igualmenteuma questo tica, j que alguns daqueles ob-jetos tinham, sem dvida, sido roubados da-queles que os haviam feito. Donde a histriaque Lauwers concebeu. Ela contada por umamulher, Isabella Morandi que, na realidade, ja-mais existiu.14

Primeiro excerto: o quarto de Isabella,Juan Lauwers. O incio da narrao

PrimeirPrimeirPrimeirPrimeirPrimeiro excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabelao excerto: o quarto de Isabela

Esse excerto sublinha de maneira muito clara acolocao em primeiro plano da execuo dasaes por parte dos performers, que cantam,danam, contam, s vezes encarnam o persona-gem, mas que na seqncia saem dele comple-tamente. O ator aparece a, antes de tudo, comoum performer. Seu corpo, seu jogo, suas compe-tncias tcnicas so colocadas na frente. O es-pectador entra e sai da narrativa, navegandosegundo as imagens oferecidas ao seu olhar.O sentido a no redutivo. A narrativa incita auma viagem no imaginrio que o canto e a dan-a amplificam. Os arabescos do ator, a elasti-cidade de seu corpo, a sinuosidade das formasque solicitam o olhar do espectador em primei-ro plano, esto no domnio do desempenho.O espectador, longe de buscar um sentido paraa imagem, deixa-se levar por esta performativi-dade em ao. Ele performa.

Segundo excerto: a coleoSegundo excerto: a coleoSegundo excerto: a coleoSegundo excerto: a coleoSegundo excerto: a coleo

O interesse deste excerto que para alm dadescrio exata dos objetos mencionados quefazem parte da coleo do pai de Isabella, a

performatividade dos atores toma o primeirolugar e termina por veicular como um excesso,um demais pleno, uma clera, uma frustraoda qual podemos facilmente imaginar que foiaquela do prprio Lauwers, de quando confron-tado com essa coleo legada por seu pai comoherana. Estamos bem inseridos na performati-vidade do ator (e fora de um personagem),aquela da ao que se executa. O espectador confrontado com este fazer, com estas aespostas [colocadas], das quais s lhe resta, a siprprio, encontrar o sentido.

O segundo excerto vem do espetculoLe Dortoir (O Dormitrio), que j um poucomais antigo, j que ele foi criado em meadosdos anos 80. Todavia, parece-me que ele ofere-ce um exemplo quase perfeito desse teatro queHans-Thies Lehmann chamou de teatro ps-dramtico e que desejaria, de preferncia, defi-nir como teatro performativo.

Le Dortoir, um pouco imagem de LaChambre dIsabella, uma viagem pela me-mria (um quarto de memria diria Kantor),memria da vida de um dormitrio nos anos60, na poca da morte de Kennedy. Trata-se,portanto, da vida de um grupo, realizandoaes rotineiras (todas estilizadas sob a formade coreografias) ligadas a uma vida numa es-cola dirigida por religiosas. Mas nesse casulo,aparentemente fechado, se apresentam todasa atualidade do momento, principalmente amorte de John Fitzgerald Kennedy. GillesMaheu um encenador do Qubc, forma-do em mmica, que fundou em 1968 Lesenfants du paradis (As crianas do paraso) que em 1981 tornou-se Carbone 14 (Carbo-no 14) e que evoluiu gradativamente na di-reo do teatro corporal, e na seqncia per-formativo e em direo dana-teatro, semrealmente deixar o teatro.15

15 Segundo excerto: Dortoir, Maheu. LHistoire de ls anns 60.

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Este excerto me parece eloqente na me-dida em que apresenta, de forma cristalina, nu-merosas caractersticas desse teatro performati-vo que ocupa as cenas teatrais.

De fato, no cerne da noo de performan-ce reside uma segunda considerao, a de queas obras performativas no so verdadeiras, nemfalsas. Elas simplesmente sobrevm. As playacts, performative are not true or false, rightor wrong, they happen disse Schechner(2002, p. 127). Essa uma segunda considera-o. Insistiremos, portanto, nesse carter de des-crio dos eventos16 que se torna, assim, umacaracterstica fundamental da performance (ithappens, disse Schechner). A esse respeito, ostextos falam de eventness. Ela coloca em cena,com esse fim, o processo. Ela amplifica, portan-to, o aspecto ldico dos eventos bem como o as-pecto ldico daqueles que dele participam(performers, objetos ou mquinas). Existe umrisco real para o performer.

Derrida ser o primeiro a prolongar estanoo introduzindo nela um fator importante,o de sucesso ou malogro. Mesmo se o essencialda reflexo deste ltimo recaia sobre a escritaenquanto obra performativa por excelncia, eleafirmar que a obra, para ser realmente perfor-mativa, pode ou no atingir os objetivos visados.A reflexo de Derrida marca um redirecio-namento na evoluo do conceito de performa-

tividade na medida em que ele afirma que a aocontida no enunciado performativo pode ouno ser efetiva. Portanto, na medida em que essaobservao se torna um real princpio inerente prpria natureza dessa categoria de locuo, ovalor do risco, o malogro tornam-se consti-tutivos da performatividade e devem ser consi-derados como lei. Insistiremos, portanto, nessecarter de descrio de eventos que se torna,dessa maneira, uma caracterstica fundamentalda performatividade17.

Se seguirmos nosso primeiro impulso,duas fortes idias esto no centro da obra per-formativa: De um lado, seu carter de descriodos fatos. Por outro, as aes que o performerali realiza. A performance toma lugar no real eenfoca essa mesma realidade na qual se inscrevedesconstruindo-a, jogando com os cdigos e ascapacidades do espectador (como pode fazerGuy Cassier, Jan Lauwers, Heiner Goebbels,Marianne Weems ou a Societas Raffaelo Sanzio,de maneiras diversas). Essa desconstruo passapor um jogo com os signos que se tornam inst-veis, fluidos forando o olhar do espectador a seadaptar incessantemente, a migrar de uma refe-rncia outra, de um sistema de representaoa outro, inscrevendo sempre a cena no ldico etentando por a escapar da representao mim-tica. O performer instala a ambigidade de sig-nificaes, o deslocamento dos cdigos, os desli-

16 Evnementiel (vocbulo do qual provavelmente vnementialit tenha derivado) utilizado para desig-nar aquilo que apenas descreve os acontecimentos; dessa forma, histoire vnementielle seria aquelaque apenas descreve os grandes fatos histricos (guerras conquistas, etc). Em seu estudo Entre pointsdentres et points de ruptures pistmologique(s): lvnementialit architecturale...en question (quepode ser acessado em http://www.afscet.asso.fr/resSystemica/Paris05/ismail.pdf ), Maldiney faz algu-mas reflexes sobre o sentido que a vnementialit que nos parecem pertinentes: [...] O evento[lvnement] freqentemente considerado como sinnimo de referncia [repre] ou de desconti-nuidade, ou seja, de ruptura de continuidade (...). O ponto de partida epistemolgico da questo davnementialit cria um espao de reflexo e de emergncia de e sobre o conhecimento; ele se inscreve,no entanto, neste duplo movimento: como referncia [repre] temporal e como significante (parmetroagindo) de uma ruptura produtora de sentido [...].

17 assim que Derrida consegue fazer a performatividade sair de sua aporia austiniana, permitindo-lhetornar-se uma verdadeira ferramenta terica transfervel a outros campos alm do da lingstica.

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zes de sentido. Trata-se, portanto, de desconstruira realidade, os signos, os sentidos e a linguagem.

Tomemos um terceiro exemplo, empres-tado dessa vez de Robert Lepage. Em 1994,Lepage funda sua prpria companhia, Ex Ma-china, aps ter sido membro do Thatre Reprede 80 a 86. Seu objetivo o de favorecer a per-meabilidade das disciplinas e a multidiscipli-naridade em cena. Portanto, de renovar o tea-tro por meio das outras artes. Ele quer fazer umteatro em sintonia com nossa poca. Ele vai de-senvolver uma potica tecnolgica na qual astecnologias esto a servio da arte do teatro.18

O interesse dessa passagem o de ver na obra amaneira pela qual Lepage desenvolve a narrati-va, imbrica as narraes em jogo nos espaos(interior/exterior) encaixando-as, invertendo-as.Como ele escreveu, o teatro uma arte datransformao em todos os nveis.19 Lepage vai,portanto, buscar novas maneiras de contar ecriar uma expatriao. Ele poetisa o banal. a tecnologia que o leva a transformar em po-esia este cotidiano. Onde sentimos, com certe-za, a influncia do cinema (cortes ntidos; fusesencadeadas; mudanas de foco). uma arte dametfora que permite a estratificao do senti-do (dos sentidos) a partir de um mesmo ele-mento, de um mesmo objeto (uma escotilha).Para Lepage, com intuito de estar de acordocom sua poca, o teatro deve dar conta da evo-

luo dos modos de narrao, dos modos depercepo e compreenso do mundo. No sepode mais fazer o mesmo teatro seno pelo pas-sado, mesmo se no fundo so sempre as mes-mas histrias que nele so contadas.

O performer confunde o sentido unvoco de uma imagem ou de um texto a unidadede uma viso nica e institui a pluralidade, aambigidade, o deslize do sentido talvez dossentidos na cena. Esse teatro procede por meioda fragmentao, paradoxo, sobreposio designificados (Hotel pro forma), por colagens-montagens (Big Art Group), intertextualidade(Wooster Group), citaes, ready-mades(Weems, Lepage). Encontramos as noes dedesconstruo, disseminao e deslocamento,de Derrida20. A escrita cnica no a mais hie-rrquica e ordenada; ela desconstruda e ca-tica, ela introduz o evento21 [vnement], reco-nhece o risco. Mais que o teatro dramtico, ecomo a arte da performance, o processo, aindamais que produto, que o teatro performativocoloca em cena: Kantor praticava j esta anteci-pao da obra sendo feita. Lepage a coloca nocentro de sua conduta de criador.

Meu quarto exemplo a partir de Eraritja-ritjakat-muse des phrases22 de Heiner Goebbels.

Heiner Goebbels, compositor e ence-nador, monta essa pea em 2004 no ThtreVidy de Lausanne. baseada na obra de Elias

18 Excertos: Lepage, La face cahe de la lune (A face oculta da lua) (2000): la machime laver devenuecosmonaute (A mquina de lavar tornada cosmonauta). (NOTA) Extrait: Kentridge. Woyzech.

19 Perelli-Contos, Irene e Chantal Hbert, La tempte Robert Lepage, em Nuit Blanche, no. 55, Prima-vera de 1994, p. 64 entrevista).

20 Quanto aos signos, necessariamente presentes pois impossvel escapar a qualquer representao estes permanecem decodificveis, mais seu sentido freqentemente tributrio da relao cnica bemmais que de um referente pr-existente. A fico em si, assim que est presente, no constitui necessari-amente o corao da obra. Ela est ali como um dos componentes de uma forma em que a colagem dasformas e dos gneros, a justaposio das aes domina. Performativa, no sentido de Derrida, ela preco-niza a disseminao escapando ao horizonte da unidade do sentido.

21 A etimologia da palavra vnement [evento, acontecimento], segundo Henry Maldiney, remeteria quiloque acontece e talvez da venha a sua associao com a palavra avnement [advento].

22 O ttulo da pea remete a uma palavra australiana que significa esperar [esprer] algo perdido.

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Canetti, romancista alemo de origem blgara(dirio e anotaes, aforismos) e foi interpreta-da por Andr Wilms e o Mondrian StringQuartett no Teatro Vidy de Lausanne. Canettinela explora as maneiras como um artista per-cebe e absorve o mundo. Sabemos pouco, ob-serva Goebbels, apenas que Canetti preencheu5 ou 6 cadernetas com observaes feitas coti-dianamente durante seus passeios, olhando pelajanela, lendo os jornais e olhando as pessoas nometr ou no trem [tramways]. a partir destasanotaes e aforismos que se constri a pea,como uma longa meditao interior por partedo personagem principal que atravessa o mun-do. Essa entrada no esprito de um indivduoagrada Goebbels particularmente, pois isto per-mite tornar visvel o invisvel23. Trata-se de umgnero no dramtico na medida em que ne-nhuma narrativa linear mantm os elementosunidos. Fato importante, a msica ocupa umlugar to relevante quanto os do ator e do tex-to. Estabelece-se entre os trs um dilogo que oespectador acompanha com fascnio e prazer. Amsica de uma grande variedade emprestadade diferentes compositores, de Bryars, Kurtag(Crumbs Black Angel), e Scelsi, a Bach (Lartde la fugue), passando por Shostakovich eRavel. A pea comea pelo 8. Quarteto de cor-das de Shostakovich.

Quarto excerto:Quarto excerto:Quarto excerto:Quarto excerto:Quarto excerto:Erarit jarit jakat-muse des phrases:Erarit jarit jakat-muse des phrases:Erarit jarit jakat-muse des phrases:Erarit jarit jakat-muse des phrases:Erarit jarit jakat-muse des phrases:

aforismos em msicaaforismos em msicaaforismos em msicaaforismos em msicaaforismos em msica

Goebbels afirmava: Como a msica pode servisvel? Isso algo que experimento em Eraritja-ritjakat: no apenas como a mente pode ser vi-svel de maneira muito divertida, mas tambm

como a msica pode ser visvel24. A segundaparte que escutaremos tocada ao mesmo tem-po em que o ator descasca cebolas, bate umomelete no mesmo ritmo que o pizzicato doQuarteto de Ravel.

Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.Excerto complementar de Goebbels.O banal do cotidianoO banal do cotidianoO banal do cotidianoO banal do cotidianoO banal do cotidiano

Trata-se precisamente de um jogo com os siste-mas de representao, um jogo de iluso em queo real e a fico se interpenetram. Ali onde oespectador cr estar no real, ele descobre que ti-nha sido enganado e que o que era dado comoreal, era apenas iluso. Essa cmera ao vivo, quesurge no interior do teatro, somente iluso.Houve, ao mesmo tempo, precisamente umaderrota [mise en chec] do real e da representa-o. Ao invs de perceber o real mediado pelatela, ele descobre um efeito de real, e o teatroretoma todos os seus direitos. Acrescento quenas colocaes em situao [mises en situation]que os espetculos performativos instalam, ainter-relao, conectando o performer, os obje-tos e os corpos, que primordial. O objetivodo performer no absolutamente o de cons-truir ali signos cujo sentido definido de umavez por todas, mas de instalar a ambigidade dassignificaes, o deslocamento dos cdigos, odeslizamento de sentido. Ele joga ali com os sig-nos, transforma-os, atribui-lhes um outro sig-nificado (Lepage criando o foguete a partir deum pacote de salgadinho em La face cache dela lune, o Big Art Group em House of no morecriando os objetos cnicos por meio de umabricolagem de natureza cinematogrfica a par-tir de simples truques de luz). O que o especta-dor olha, e aquilo pelo que ele se deixa seduzir,

23 What I love so much in this genre of non dramatic literature is that you can attend somebodys thinking.I try to make it visible or audible. Site de Gobbels na internet.

24 How can be music be visible? Thats something I try in Eraritjaritjaka: not only how the mind can bevisible in a very entertaining way but also how music can be visible Site de Goebbels.

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precisamente esta arte da esquiva, da falsa apa-rncia, do jogo em que ele est precisamentenum lugar onde no sabia que estava. Ele des-cobre assim a fora da iluso.

O ltimo exemplo proveniente deMarianne Weems que fundou em 1994 a com-panhia Builders Association, aps ter sido dra-maturga e assistente de Elizabeth Lecompte doWooster Group. Trata-se de um teatro que aliatecnologia, performance e arquitetura. Seus tra-balhos gostam de colocar em paralelo as ima-gens do real com o real reproduzido pelo vdeo.Ela tambm deseja modificar as modalidadesatuais de narrao, buscando criar na cena ummundo que reflita a cultura contempornea.A obra de Weems questiona o uso da tecnolo-gia em sua relao com o homem. sua ma-neira, ela procura aumentar as fronteiras do te-atro. Como ela mesma afirma, a tecnologia opersonagem principal de suas peas e os per-formers devem aprender a compor com ela, noa sentindo como um perigo, mas como umacmplice. Jet Lag foi criada em 1998, Alladeenem 2003.

Jet Lag relata dois excertos da vida extra-dos de fatos vividos. Um, conta a histria de umeletricista que empreende uma corrida ao redordo mundo num veleiro, patrocinado pela BBC.Vendo que no conseguir, ele usa um estrata-gema que consiste em fazer crer, por meio deuma instalao tecnolgica que est ganhandoa corrida. Ele transmite as imagens de sua corri-da por satlite, enviando dados falsos que o co-locam na dianteira. Ele desaparece antes que o

subterfgio seja desvendado. Apenas seu barcoabandonado encontrado25.

O que comum a todos esses excertos, um jogo com a representao. Uma forma de re-presentao que se nega a si mesma (ele agecomo se estivesse na dianteira e encena sua vi-tria). Escrevemos bastante sobre a fuga da re-presentao ou a desconstruo que colocavaem xeque o teatro atual, tentando por vezes ope-rar nos limites do simblico, na descrio puradas aes (Annie Sprinkle, Laurie Anderson),ou na falta de referencialidade por trs dele.26

precisamente esta falta de referencialidadeque Jet Lag encena. O personagem se contentaem nos fazer crer que ele est onde no est.E Weems nos mostra, graas tecnologia, essejogo de iluso. Mas, ao nos mostrar o procedi-mento, ela dissipa o jogo da iluso, mantendoao mesmo tempo vista do espectador a iluso(ele est no mar) e sua enganao (vemos suainstalao rudimentar). Estamos aqui diante deuma performatividade da tecnologia que des-monta habilmente a teatralidade do processopara trazer luz sua performatividade.

O segundo trecho baseado em Alladeen,joga para ainda mais longe o sistema, centrando,dessa vez, toda a performatividade sobre os pro-cedimentos tecnolgicos que no apenas permi-tem o jogo da iluso mas que o desmontam doavesso, na medida em que assistimos constru-o do cenrio (que fortemente realista). Masao colocar em primeiro plano o processo,Weems coloca em xeque a teatralidade, colocan-do a performatividade tanto a dos performers

25 Trechos, Weems, Jet Lag. A segunda narrativa de Jet Lag trata de uma viagem em alta velocidade deuma mulher que foge para salvar seu neto da internao. Os dois encontram-se como prisioneiros dosaeroportos fazendo 167 vezes a ida e volta Amsterd-Nova Yorque. A av no sobreviver a esta experi-ncia e morrer de jet lag [cansao extremo ocasionado pelo excesso de viagens].

26 [...] o performativo no tem seu referente [...] fora dele ou, em todo caso, antes dele e diante dele. Eleno descreve algo que existe fora da linguagem e antes dela. Ele produz ou transforma uma situao, eleopera; e si podemos dizer que um enunciado constativo efetua tambm algo e sempre transforma umasituao, no se pode dizer que isso constitui sua estrutura interna, sua funo ou seu destino manifes-tos [...]. J. Derrida, Marges de la Philosophie, Minuit, 1972.

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quanto a das mquinas no centro da cena. o que demonstra essa passagem de Alladeen.

Alladeen conta a histria verdica de curan-deiros indianos engajados em atender aos te-lefonemas dos clientes, americanos, que seencontram nos Estados Unidos. As exignci-as da profisso fazem com que eles tenhamque ter um sotaque americano, o que far osclientes acreditarem que eles no esto longe,e que eles so mesmo americanos. Assistimos,portanto, a uma lio de cultura americanaque tende pouco a pouco a modificar seusreferentes culturais e os faz adentrar em umuniverso, do qual so, a priori, excludos.27

O ato performativo se inscreveria assimcontra a teatralidade que cria sistemas, do sen-tido e que remete memria. L onde a teatra-lidade est mais ligada ao drama, estruturanarrativa, fico e iluso cnica que a distan-cia do real, a performatividade (e o teatro per-formativo) insiste mais no aspecto ldico dodiscurso sob suas mltiplas formas (visuais ouverbais: as do perfromer, do texto, das imagensou das coisas). Ela os faz dialogar em conjunto,completarem-se e se contradizerem ao mesmotempo, como nos espetculos de A. Platel ounos de Gmez Pena e Coco Fusco. Mas real-mente possvel escapar de toda a referenciali-dade e, assim, representao? A questo per-manece aberta.

Eu dizia que havia duas idias principaisno cerne da obra performativa. A segunda con-siste no engajamento total do artista colocandoem cena o desgaste que caracteriza suas aes(Nadj, Fabre). No se trata necessariamente deuma intensidade energtica do corpo no mode-lo grotowskiano, mas de um investimento de si

mesmo pelo artista. Os textos evocam a vivaci-dade (liveness) dos performers, de uma presenafortemente afirmada que pode ir at uma situa-o de risco real e implica em um gosto pelorisco (veja-se o excerto de Jan Lauwers que mos-tramos anteriormente).

Poderamos tentar aqui uma anlise maisaprofundada dessas duas caractersticas do tea-tro performativo, mostrando os grandes princ-pios e a diversidade das prticas que fazem par-te dele, do Thtre de Reza Abdoh ao de RobertWilson, das encenaes de Wajdi Mouawad sde Ivo van Hove, dos espetculos de KarenFinley aos de Anne Bogart, dos do Big ArtGroup s performances de Annie Sprinkle. Se-ria muito longo para faz-lo nos limites dessacomunicao, mas necessrio insistir no pa-norama bastante diversificado das prticas quese inscrevem nele, com a performatividade pe-netrando em todas as formas de teatro, incluin-do as mais tradicionais, assim como o dramaimpregna todas as formas ps-dramticas.

Quanto ao espectador, ele est, assimcomo o performer, situado na intimidade daao, absorvido por seu imediatismo ou pelosriscos implicados no jogo (Le Dortoir, de GillesMaheu). Mas ele pode tambm ficar no exteriorda ao, gravar com frieza as aes que se de-senrolam diante dele28, mantendo um direitode olhar que permanece exterior, como ele o fazdiante de certas performances. Sua maneira depercepo, portanto, nem sempre implica a ab-soro na obra. Ele pode tambm sustentar umdireito de olhar que permanece exterior.

Vale ainda dizer que nas outras formas te-atrais (particularmente as dramticas), o teatroperformativo toca na subjetividade do performer.Para alm dos personagens evocados, ele impeo dilogo dos corpos, dos gestos e toca na den-

27 Excerto Weems, Alladeen.28 Pode tambm tratar-se de uma alternncia destas duas formas de recepo (adeso, distncia),como em

Castorf ou Marianne Weems.

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sidade da matria, sejam as do performer emcena ou das mquinas performativas: vdeos,instalaes, cinema, arte virtual, simulao (Thebuilders Association, Big Art Group, Castrof ).

Quais as concluses a tirar desse percur-so traado?

1. Inicialmente, uma ressalva: apesar do quadroque tentamos esboar de maneira ampla, qual-quer generalizao no domnio da prtica em sino bem vinda. O panorama teatral bastan-te diversificado tanto na Amrica do Nortequanto na Frana. As prticas atuais no sonem uniformes nem unvocas e elas no podemser comparadas umas com as outras sem quais-quer falsos apontamentos. Todas elas empres-tam de diversas filiaes tanto a do texto,quanto a da imagem, do formalismo das artes

29 Termo que nos parece mais adequado que teatro ps-dramtico, cuja definio dada par Lehmann aseguinte: O teatro ps-dramtico um teatro que exige um evento [acontecimento] cnico que seria ,a tal ponto, pura representao, pura presentificao do teatro, que ele apagaria toda idia de reprodu-o, de repetio do real in Sarrazac, Critique du thtre (2000, p. 63), citado pelo prprio Lehman(14). evidente que no pode existir pura representao do teatro, no mais no teatro ps-dramticoque no teatro performativo. A tese de Lehmann de que a profunda ruptura das vanguardas nosarredores de 1900 a [...] continuou a preservar o essencial do teatro dramtico, em despeito de todasas inovaes revolucionrias. As formas teatrais que surgiram ento, continuaram a servir representa-o, a partir de ento modernizada com universos textuais (28). Estas mesmas vanguardas s coloca-vam em questo o modo transmitido da representao e da comunicao teatral de maneira limitada,permanecendo, finalmente, fiis ao princpio de uma mmesis, de uma ao no palco (28). na estei-ra do desenvolvimento, seguido da onipresena das mdias na vida cotidiana desde os anos 1970, [que]surge uma prtica do discurso teatral nova e diversificada, aquela a que Lehmann qualifica de teatrops-dramtico (28). O epteto ps-dramtico aplica-se a um teatro levado a operar para alm do dra-ma; isto , que o drama nele subsiste como estrutura do teatro normal, numa estrutura, enfraquecida eem perda de crdito: como espera de uma grande parte de seu pblico, como base de inmeras de suasformas de representao, enquanto norma de dramaturgia funcionando automaticamente (35). Serpreciso esperar os anos 80, fato ainda observado por Lehmann, para que o teatro obrigue, para tomaros termos de Michael Kirby, a considerar que uma ao abstrata, um teatro formalista em que o proces-so real da performance substitua o mimetic acting, um teatro com textos poticos nos quais pratica-mente nenhuma ao seja ilustrada, no define mais somente um extremo, mas uma dimenso pri-mordial da nova realidade do teatro (49). O teatro ps-dramtico tem certo parentesco com a idiadesenvolvida por J. F. Lyotard de teatro energtico que no ser sobremaneira teatro da significao,mas teatro das foras, das intensidades, das pulses em sua presena [...]. Um teatro energtico existi-ria para alm da representao o que, certamente, no quer simplesmente dizer sem representao,

visuais e da interpretao e nem sempre f-cil distinguir as influncias e as rupturas. Serianecessrio, portanto, para aproximar a realida-de da prtica, oferecer de preferncia o quadrocaleidoscpico das formas e das estticas.

2. Existe, apesar de tudo, uma linha fraturandoduas vises do teatro: uma que rompeu com atradio e se inspira na performance e outra quemantm uma viso mais clssica da cena teatral.A primeira mais livre e inventa os parmetrosque permitem pens-la, a segunda permaneceem certa medida tributria do texto e da fala,mesmo que esse ltimo no seja mais, necessa-riamente, o seu motor. Os encenadores de quefalamos (americanos, flamengos, e alemes par-ticularmente), em sua grande maioria, privile-giam a primeira destas opes, a qual chamare-mos de teatro performativo29. J as referncias

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francesas e do Quebc, por exemplo, permane-cem, uma e outra, claramente, mais teatrais.

3. Se a arte da performance se dispersou nas nu-merosas prticas performativas atuais, ela o fezem maior grau do lado americano, anglo-saxo,dever-se-ia dizer, mas, tambm, flamengo, bel-ga, britnico, italiano, suo e alemo. Uma dasprincipais caractersticas desse teatro que elecoloca em jogo o processo sendo feito, processoesse que tem maior importncia do que a produ-o final. Mesmo que essa seja meticulosamenteprogramada e ritmada, assim como na perfor-mance, o desenrolar da ao e a experincia queela traz por parte do espectador so bem maisimportantes do que o resultado final obtido.

4. A diferena entre as duas abordagens igual-mente perceptvel no nvel dos discursos teri-cos e das abordagens analticas, os universitriosamericanos tendo preferido desenvolver o con-ceito de performance em seu sentido antro-polgico, multicultural e multidisciplinar, abar-cando pelo fato em si toda a imensidade do reale perdendo, nesta empreitada, a especificidadeda obra artstica em si. Do lado francs, a resis-tncia ao conceito grande (o conceito perma-

mas antes no sujeito sua lgica (52). E de acrescentar, somente quando os meios teatrais alm dalngua forem colocados no mesmo nvel que o texto e pensveis mesmo sem o texto, que poder sefalar de teatro ps-dramtico (81). A ao tende a desaparecer, assim como o comeo de processosfictcios (105); desaparece tambm a descrio e narratividade fabuladora do mundo. Esta definio deLehmann deve, certamente, ser nuanada, como ele mesmo faz. Ela constitui um horizonte de esperamais que uma realidade, na medida em que impossvel para uma forma teatral, qualquer que ela seja,de escapar narratividade e, de fato, representao. In Hans-Thies Lehmann, O teatro ps-dramtico.Paris, LArche, 2002.

nece ali desconhecido ou subestimado), comoj havia sido com a performance arte. A visopermanece definitivamente esttica.

5. No teatro performativo, o ator chamado afazer (doing), a estar presente, a assumir osriscos e a mostrar o fazer (showing the doing),em outras palavras, a afirmar a performatividadedo processo. A ateno do espectador se colocana execuo do gesto, na criao da forma, nadissoluo dos signos e em sua reconstruo per-manente. Uma esttica da presena se instaura (semet en place).

6. Nesta forma artstica, que d lugar perfor-mance em seu sentido antropolgico, o teatro as-pira a produzir evento, acontecimento, reencon-trando o presente, mesmo que esse carter dedescrio das aes no possa ser atingido. A peano existe seno por sua lgica interna que lhed sentido, liberando-a, com freqncia, de todadependncia, exterior a uma mmesis precisa, auma fico narrativa construda de maneira li-near. O teatro se distanciou da representao.

Mas, ele se distanciou, de fato, da teatra-lidade? A questo merece ser colocada.

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RESUMO: o texto delimita os conceitos de performance e performatividade para empreender umaredefinio do teatro contemporneo e uma anlise de seu funcionamento. A partir da sntese dasprincipais caractersticas da performatividade so avaliados espetculos de diversos encenadores, comnfase nos aspectos performativos das criaes.PALAVRAS-CHAVE: performance, performatividade, teatro contemporneo, teatro ps-dramtico.

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