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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 02 Nº 03 – 2006 ISSN 1809-3264 ISSN 1809-3264 Revista Querubim 2006 Ano 02 Nº 03 – 171 p. (jun/dez-2006) Rio de Janeiro: Querubim, 2006 1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais - Periódicos. I. Título: Revista Querubim Digital. CONSELHO EDITORIAL Presidente: Aroldo Magno de Oliveira (UFT-TO) Secretária: Flora Magno de Jesus Oliveira Consultores Alice Akemi Yamasaki (UFT-TO) Elanir França Carvalho (USP-SP) Geralda Therezinha Ramos (UNIBH-MG) Guilherme Wyllie (UFMT / ILTC / IBFCRL-MT) Janete Silva dos Santos (UFT-TO) João Carlos de Carvalho (UFAC-AC) José Carlos de Freitas (UNIRG-TO) Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT-TO) Mônica Cairrão Rodrigues (UNI-SÃO LUÍS-SP) Ruth Luz dos Santos Silva (UNIBEU-RJ) Vanderlei Mendes de Oliveira (UFT-TO) Venício da Cunha Fernandes (C. F. PEDRO II-RJ) EDITOR Aroldo Magno de Oliveira DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO TÉCNICA Aroldo Magno de Oliveira PROJETO GERAL Aroldo Magno de Oliveira 1

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Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 02 Nº 03 – 2006

ISSN 1809-3264

ISSN 1809-3264Revista Querubim 2006 Ano 02 Nº 03 – 171 p. (jun/dez-2006)Rio de Janeiro: Querubim, 2006

1. Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais - Periódicos. I. Título: Revista Querubim Digital.

CONSELHO EDITORIAL

Presidente: Aroldo Magno de Oliveira (UFT-TO)Secretária: Flora Magno de Jesus Oliveira

Consultores

Alice Akemi Yamasaki (UFT-TO)Elanir França Carvalho (USP-SP)Geralda Therezinha Ramos (UNIBH-MG)Guilherme Wyllie (UFMT / ILTC / IBFCRL-MT)Janete Silva dos Santos (UFT-TO)João Carlos de Carvalho (UFAC-AC)José Carlos de Freitas (UNIRG-TO)Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT-TO)Mônica Cairrão Rodrigues (UNI-SÃO LUÍS-SP)Ruth Luz dos Santos Silva (UNIBEU-RJ)Vanderlei Mendes de Oliveira (UFT-TO)Venício da Cunha Fernandes (C. F. PEDRO II-RJ)

EDITORAroldo Magno de Oliveira

DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO TÉCNICAAroldo Magno de Oliveira

PROJETO GERALAroldo Magno de Oliveira

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ISSN 1809-3264

SUMÁRIO

01 A crítica literária e a identidade nacional na formação da literatura brasileira Alexandra Vieira de Almeida

03

02 Os Atenuadores Discursivos em Linguagem de Venda Ana Lúcia S. de Oliveira Villaça

13

03 A Utilização de Filmes para Desenvolver a Fluência em Língua Inglesa Arlene KoglinAni Carla Marchesan

26

04 Formação de professores – as cores da metáfora Patrícia Colavitti Braga

39

05 Coerência, coesão e cognição em perspectiva semiótica Darcilia Simões

53

06 Pragmatismo, Semiótica e Tradução: pontos de contato Lucyana do Amaral Brilhante

60

07 O caráter modelar do personagem cnêmon, na comédia o misantropo, de menandroEnéias Farias Tavares Carlos Roberto Ludwig

68

08 A (contra) nacionalidade de Diogo MainardiJosé Luiz Foureaux de Souza Júnior

78

09 Dois Olhares para Eveline: A Psicanálise e a Estética da RecepçãoJunia Zaidan

91

10 O conceito de timé na IlíadaMaurício Silva

103

11 Flexibilidade, Empregabilidade, Eficiência e Produtividade: elementos para análise das reformas educacionais brasileiras a partir dos anos 90Patrícia Spósito Mechi

107

12 Uma reflexão sobre a(s) visão (ões) de língua e cultura no PCN de língua estrangeira do ensino fundamentalSelma Silva Bezerra

114

13 São Bernardo – uma leitura reflexivaVania Rodrigues dos Santos

124

14 O deslocamento espacial em “Aqui e em outros lugares” de Oswaldo França JúniorMaria José Ladeira Garcia

132

15 A publicidade na intimidadeMilton Chamarelli Filho

139

16 Cavalos, estrangeiros, andarilhos vagam sem rumo e sem chão.Ciomara Breder Krempser

150

17 RESENHAPESSOA, Simone. Dissertação não é bicho-papão: desmistificando monografias, teses e escritos acadêmicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, 157p. Ângela de Alencar Carvalho

161

18 RESENHACARDOSO, Lúcio. Maleita. Edições Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1953, 252 p.Rosiane Vieira de Rezende

163

19 Machado de Assis e a nação em cena: no seu tempo, no nosso tempoJussara Bittencourt de Sá

165

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A crítica literária e a identidade nacional na formação da literatura brasileira

Alexandra Vieira de Almeida

Resumo:O presente trabalho pretende analisar como a crítica literária foi construindo sua percepção sobre a literatura brasileira. Para isso, veremos como a questão da identidade nacional se constituiu como um problema na análise crítica, assim como o critério de abordagem dos princípios de uma literatura genuinamente brasileira. No entanto, pretendo desconstruir a visão crítica da tradição literária, principalmente quando pensarmos na teoria proposta por Oswald de Andrade a partir de sua antropofagia.

Palavras-chave: Identidade, Formação, Antropofagia

Abstract:This work intends to analyse how the critique of literature builds its own view on Brazilian literature. For this, we will see how the question of national identity was settled as a problem in critical analysis, as well as the approach of the beginnings of a Brazilian genuine literature. However, we intend to deconstruct the critical view of a literary tradition, mainly when we think about the purpose of Oswald de Andrade’s theory through its anthropophagy.

Key-words: Identity, Foundation, Antropophagy

Ao nos deparamos com o problema da origem da literatura brasileira, várias vertentes são possíveis, ainda que não definitivas. Alguns teóricos afirmaram que desde o início houve uma literatura, através das cartas dos viajantes. Outros afirmaram que só existiu uma literatura brasileira a partir da época em que o país se tornou independente. Antonio Candido estabelece uma posição mais sintética e filiada aos movimentos transdicisplinares, ao conjugar o pólo estético e o sociológico-histórico. Separa uma época de “manifestações literárias”, isoladas e não sistematizadas para se constituir uma literatura propriamente brasileira; e o sistema literário, possível através da relação triádica autor-obra-público e a formação de uma tradição, em que a idéia de continuidade seria uma forma de diálogo entre autores. A partir disso, em sua Formação da Literatura Brasileira (1959) situa o Arcadismo como início de uma literatura sistematicamente brasileira. A produção de Gregório de Matos não formaria parte do sistema “literatura brasileira”, por exemplo, não influenciando as gerações diretamente seguintes.

No tocante à literatura brasileira, muitos críticos viram no imaginário nacional uma forma de os escritores se afastarem do modelo europeu, delimitando um novo lugar para o intelectual brasileiro, facilitado mais ainda pela motivação política. Quais seriam, assim, os temas para se diferenciarem dos europeus? E, ao mesmo tempo, paradoxalmente, qual seria a influência de outros países da Europa na utilização desses temas? Um novo nativismo influenciaria um romantismo já normalizado, depurado e domesticado? Dessa forma, como a

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questão referencial, em que se vê a literatura como documento da nação, mais aliado ao fator extrínseco do que ao literário, caracterizaria nossa literatura?

De acordo com Luiz Costa Lima, em “Documento e nacionalismo no Brasil”, o romantismo propagado por Gonçalves de Magalhães já é um “romantismo domesticado”1. Já não teríamos um romantismo rebelde, revolucionário, característico dos primeiros românticos, mas um romantismo domesticado, ligado aos valores morais, ausente de reflexão mais profunda. No século XIX, ainda segundo Costa Lima, a idéia de pátria se constitui em “princípio básico de identidade grupal”2, tanto no plano político quanto do ponto de vista literário, devido ao projeto de os românticos divulgarem a nação a partir da Independência, um projeto político-estratégico, que reuniu intelectuais e políticos no Brasil.

No romantismo brasileiro, tanto a ênfase na natureza pátria quanto o culto do eu do poeta atestariam o “primado do testemunhal”3, base para a criação de uma identidade nacional através da caracterização de nossa nação e do próprio sentimento do indivíduo brasileiro. Da mesma forma que a observação exterior confirmaria o caráter documental, o eu do poeta permitiria fazer um exame interior. A interioridade do escritor transformar-se-ia também em objeto de uma análise profundamente sentimental. A observação do eu substituiria a da natureza, sem afetar o primado do testemunhal. Naturalmente, esse processo inclui uma visão particularizada e pormenorizada do sujeito que vive nos trópicos, influindo o exterior no interior, através do processo de simbiose tão presente nos românticos.

No texto “O superego europeu e a domesticação do ficcional”, Luiz Costa Lima afirma como predominante no romantismo brasileiro, o testemunho, fator que comprometeria a “possibilidade de entendimento da literatura como forma discursiva”4. Assim, o autor romântico, preocupado com a fixação de traços particulares de sua natureza e dos costumes de sua sociedade, relegava a segundo plano a força ficcional que caracterizaria o discurso literário propriamente dito. Costa Lima utiliza a expressão “movência do ficcional”, tentando articulá-la à questão do “ângulo de refração”5, como caracterizadora do discurso literário, pois essa expressão implica em uma dissipação tanto de uma constituição generalizada quanto da expressão do eu. Nele, o eu se torna móvel, ou seja, sem se centralizar num ponto, adquirindo vários núcleos vazantes. Dessa forma, poderíamos supor que a visão generalizada de relatar uma nação ou a identidade de um indivíduo puramente brasileiro não são fatores inerentes à obtenção do objeto literário enquanto linguagem. O abrasileiramento torna-se uma condição essencial para a formação da literatura brasileira, segundo Flora Süssekind, em O Brasil não é longe daqui. Seria necessário um tempo de formação anterior, em que Iracema seria o grande exemplo do indianismo da “utopia regressiva”, em que se sublinha o ideal de Rousseau da bondade natural corrompida pela sociedade ou contato com o estrangeiro.

Importantes também são os paratextos dos romances de José de Alencar, em que temos a sua preocupação em formar um público leitor. No posfácio do livro Iracema, temos a crítica ao indianismo de Gonçalves Dias, que utilizaria elementos inverossímeis. Para Alencar deveria haver uma preocupação com as etimologias, na tentativa de criar uma identidade nacional6. Mas o escritor poderia estar equivocado, criando um fosso entre o paratexto e o texto em si. Quando analisarmos a obra Ubirajara, veremos que a proposta estética de Alencar de criar uma literatura genuinamente nacional cai por terra, pois esse adota elementos

1 LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 201.2 Idem, p. 202.3 Idem, ibid, p. 208.4 Idem, ibid, p. 231.5 Idem, ibid, p. 238.6 José de Alencar comenta no posfácio de Iracema, intitulado “Carta ao Dr. Jaguaribe”, que o “conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem...” Iracema. Edição do centenário. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1965, p. 227.

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híbridos que podemos encontrar no terreno do mito. Flora Süssekind é categórica em relação ao projeto romântico de abrasileiramento. Roberto Scharwz demonstra a nossa dependência global com relação a categorias impróprias ao solo brasileiro, que aparentemente poderiam ser vistas como defeito. A fratura entre o modelo de literatura que se importava e a prática da realidade brasileira torna-se patente, em que temos a oposição entre a ideologia liberal e a ideologia do favor. O “tamanho fluminense” como uma espécie de Dioniso, que não parece participar coerentemente da ordem vigente do mundo olímpico, produz um deslocamento no eixo de sistematização entre a grandiloqüência européia e a pequenez da sociedade brasileira: “Em suma, também nas Letras a dívida externa é inevitável, sempre complicada, e não é parte apenas da obra em que aparece”7. O autor vê que a fratura não é tão inverossímil na obra artística, pois ela constituía a própria sociedade brasileira. A causa da fratura formal dos romances brasileiros fornece, na realidade, matéria-prima para o ficcional. Assim, aquilo que veríamos como defeito torna-se, originalmente, constitutivo da literatura brasileira, principalmente em Alencar, em que temos a hibridização de dois discursos possíveis de existirem no plano real. Dessa forma, Alencar mimetizaria uma fratura formal da realidade brasileira, sendo essa representação não uma imitação de modelos europeus, mas uma via mimética criativa de conciliação dos opostos, em que o elemento universal se complementa ao local como num rito antropofágico.

O que muitos críticos acertaram foi a caracterização dessa constante conciliação dos opostos como forma de diluir os conflitos no interior dos romances alencarianos, principalmente em Iracema. Contrário ao que preconizava o processo histórico-dialético, do embate entre tese e antítese, a literatura romântica brasileira teria diluído a contradição entre o dominador e o dominado, transformando o processo de conquista violenta, que o europeu impôs ao índio brasileiro, na temática da dominação passiva, em que o índio rebelde, primitivo e natural se vestiria de ornamentos artificiais europeus, configurando a idéia da civilização européia do “bom selvagem”, como podemos ver na postura etnocêntrica de Alfredo Bosi no texto “Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar”8. Essa coincidentia oppositorum seria trabalhada, por exemplo, de acordo com Bosi, em Iracema, além de citar exaustivamente o romance O guarani. Assim, os protagonistas Iracema e Martim produziriam uma neutralização das oposições através da configuração poética dos valores românticos. Nele, vemos a figura de Martim, representando Portugal, ou melhor, o dominador, que domesticaria a terra brasileira, representada na figura de Iracema, cheia de “bons sentimentos portugueses”. Por amor, Iracema submete-se ao colonizador, aceitando passivamente o seu domínio, traindo, assim, sua própria raça, seus valores e costumes. José de Alencar, portanto, mostraria em sua obra uma conjunção erótico-política, projetada no par romântico Martim/Iracema; consolidando as nações de Portugal e do Brasil, o que quebra, dessa forma, com a própria proposta estética romântica, a da identidade e autonomia nacionais. Assim, o índio não ocuparia o lugar que lhe caberia, o papel de rebelde. Por isso, o sentido do “complexo sacrificial”, apontado por Bosi na mitologia romântica de Alencar, em que temos a imolação voluntária dos protagonistas mais fracos, no caso, os índios brasileiros. Nele, o colonizador tornar-se-ia o herói e o índio transformar-se-ia no escravo passivo, sacrificando seus ritos e costumes em favor do branco.

Essa visão etnocêntrica de Alfredo Bosi pode ser verificada ao analisarmos o livro História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, em que se demonstra a superioridade da raça branca, chegando a desprezar até a participação do indígena na formação do povo brasileiro, ainda que quisesse valorizar seu hibridismo: “(...) o primeiro lugar há de ser dado ao português”9. Por isso, a influência estrangeira é tão dominante em nossa cultura: “(...) os

7 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades, 1977, p. 36.8 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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modelos, as formas do pensamento cultural vêm de fora, vêm da Europa e dos Estados-Unidos”10.

Antonio Candido, no segundo volume da Formação da Literatura Brasileira indica a maneira diferenciada entre o indianismo dos românticos e dos neoclássicos: aqueles teriam uma tendência universalista, idealizando os índios dentro dos padrões universalistas; estes seriam particularistas, idealizando os índios dentro dos padrões individualistas. Um texto fundamental para discussão e diálogo entre vários críticos sobre o problema da dependência cultural do Brasil em relação a culturas mais “avançadas” é “O discurso crítico brasileiro”11, de Eneida Maria de Souza, em que ela revela alguns princípios que continuaram de épocas anteriores, principalmente nos anos 50, em que teríamos um estudo mais sistematizado sobre esta questão. Analisa o conceito de transculturação, oriundo da área da antropologia e sua relação com o processo de modernização. Busca ainda as relações da literatura com formas mais amplas de conhecimento, principalmente a partir da Crítica Cultural. Aborda os paradigmas e épocas diferentes, em que o problema do nacional é recolocado e modificado, citando as metáforas que compõem o imaginário, entre elas, a antropofagia oswaldiana, que discutirei mais adiante. Reflete sobre nosso processo lento de modernização, alocando as relações entre saberes locais e saberes globais. O processo de globalização e a pós-modernidade trariam modificações sobre o conceito de cultura, articulando as mudanças epistemológicas e terminológicas com relação ao campo cultural: “analisar o discurso crítico a partir de parâmetros que o coloquem em situação de mobilidade frente ao olhar analítico do presente”12. Cita Antonio Candido como paradigmático na discussão sobre as relações entre o local e o estrangeiro. Refere-se a Joaquim Nabuco como eurocêntrico, reportando-se a um texto de Silviano Santiago, que veria relações entre o pensamento de Antonio Candido e Joaquim Nabuco, como sintetizadores do nacional e do universal que caracterizaria a literatura brasileira. Menciona o texto “Literatura e subdesenvolvimento”, de Candido, que se refere à literatura brasileira como secundária em relação à Europa, sublinhando a dependência cultural, a lógica implícita nos termos fonte e influência. A autora afirma que a posição de Candido é essencialmente de origem iluminista, na relação de causalidade, hierarquização dos discursos e busca de uma origem, uma fonte, ampliando o sentido de causa e efeito. Eneida Maria de Souza observa que Candido percebe o sentimento de “dualidade que caracteriza a mentalidade do intelectual vivendo num país periférico”13. A estrutura dialética da literatura brasileira também se encontraria em Formação da literatura brasileira, oscilando o local com o universal. Por outro lado, podemos ver que este não é um problema constitutivo da literatura brasileira em particular. Constitui um espaço de intersecção que ocorreu em outras culturas, consideradas desenvolvidas no âmbito paradigmático ocidental. Podemos problematizar também esse movimento considerado específico nos povos denominados atrasados, a transculturação. Essa relação se opera num eterno retorno, em que temos, por exemplo, o lugar de culturas como a latina, a alemã, dentre outras, vivendo essas relações dualistas no espaço cultural.

A autora apresenta a dualidade como recorrente também no pensamento de Roberto Schwarz, sendo que este teria uma posição distinta com relação a Antonio Candido. Descreve o papel das vanguardas no desenvolvimento daquilo que seria a descolonização nacional. Posteriormente, vai analisar mais especificamente as décadas de 60/70, citando Paulo Emílio Salles Gomes, que mostraria o sentimento de inadequação entre centro e periferia, com a oscilação entre dois estágios culturais. Roberto Schwarz (1977), no célebre ensaio “Idéias fora 9 ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953, p. 117.10 Idem, p. 336.11 SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.12 Idem, p. 49.13 Idem, ibid, p. 51.

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do lugar”, analisaria a relação entre modernização e países dependentes, periféricos. Já Silviano Santiago (1972), no importante texto “O entre-lugar do discurso latino-americano”, quebraria com as antinomias e hierarquias presentes no discurso dialético colonizado/colonizador, influenciado pela filosofia francesa desconstrutivista e pelo pensamento de Borges. Para a autora, ele deslocaria conceitos como periférico/central, inscrevendo-se “sob o signo da contradição e do paradoxo, desfazendo-se a rigidez das oposições”14. Disserta sobre a importância do texto de Silviano Santiago com relação à antropofagia de Oswald de Andrade, que promoveria uma positivação dos conceitos de “atraso” e “subdesenvolvimento”, sem a questão tão inconfortável do mal-estar ou do descompasso de nossa cultura.

Passando finalmente para a década de 80, apresenta mais uma vez Silviano Santiago em seu ensaio “Apesar de dependente, universal” (1981), em que a antropofagia seria um dos exemplos de reação cultural à dependência. A antropofagia retomaria o processo de desconstrução das culturas estrangeiras. Confronta o artigo acima citado, de Silviano Santiago, e o texto de Haroldo de Campos “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira” (1983), como semelhantes na posição descentralizadora da antropofagia: “(...) coloca a literatura nacional em posição de igualdade na concorrência com a estrangeira, pela confiança no aspecto positivo e alegre da transculturação”15. A autora sublinha o aspecto desconstrutor da antropofagia, relacionando-a com a subversão de noções como cópia/original. Discutindo o ensaio “Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil” (1981), mostra que Luiz Costa Lima aborda o problema mais específico da dependência com relação ao controle do imaginário, pois a cultura auditiva no Brasil se afastaria de uma tradição crítica, em que a argumentação do pensamento sistemático é imperativa. O discurso ensaístico brasileiro seria predominantemente oral, utilizando a improvisação e não uma reflexão mais filosófica. Por isso, teríamos a dependência cultural, devido ao nosso sistema intelectual precário.

Portanto, a autora discute criticamente conceitos como transculturação, não só a partir dos críticos, mas também a partir das propostas estéticas modernistas, o processo de internacionalização, a consciência de subdesenvolvimento e sua operação mimética crítica e original, discussões complexas sobre cultura e sua transformação conceitual num plano mais amplo do processo histórico.

Abordando mais especificamente os textos de Antonio Candido “Literatura e subdesenvolvimento” e de Silviano Santiago “Apesar de dependente, universal”; podemos ver suas concordâncias e divergências.

Antonio Candido afirma que os conceitos de pátria e natureza são diretamente interligados quando se fala em literatura brasileira, ampliando, como conseqüência, os valores regionais e exóticos de nossa nação em aspectos otimizadores, devido ao nosso atraso cultural e material. A contaminação terra/pátria torna-se efeito incondicional da causa do nosso subdesenvolvimento com relação aos povos mais avançados. Cita duas épocas diferentes quanto à consciência de subdesenvolvimento e sua relação com o aspecto cultural, em que teríamos a “consciência amena do atraso”16, relacionando-a ao ideário de “país novo” e a “consciência catastrófica de atraso”, casando-se ao reconhecimento de “país subdesenvolvido”17. O desejo de instrução e ilustração seriam as formas principais para erigir-se a liberdade e a evolução de nossa nação, levando-nos a superar o atraso da tradição oral: “(...) na maioria dos nossos países há grandes massas ainda fora do alcance da literatura

14 Idem, ibid, p. 52.15 Idem, ibid, p. 54.16 In MORENO, César Fernández (coord e intr). América Latina em sua Literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 345.17 Idem, p. 345.

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erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral”18. Dessa forma, a incultura, num nível mais amplo, produziria uma interferência na cultura e na qualidade das obras. Se o autor cita inicialmente o exotismo e a identidade nacional como predominantes por falta de uma reflexão mais aguda, faz o caminho inverso ao relacionar nossa fraqueza cultural ao retorno a padrões metropolitanos e europeus em sua generalidade: “Com efeito, na medida em que não existia público local suficiente, ele escrevia como se na Europa estivesse o seu público ideal, e assim se dissociava muitas vezes da sua terra”19. Dessa forma, o autor coloca o aspecto dual de nossa formação, que se dirige a sugestões européias, mas, que, simultaneamente, afirma-se como independente no projeto nacional. Cita os pólos do cosmopolitismo e regionalismo como os elementos pendulares de nossa literatura. Amplia a visão da dependência cultural com relação aos centros dominantes: “As nossas literaturas latino-americanas (como também as da América do Norte) são, basicamente, galhos das metropolitanas”20. Nesse movimento etnocêntrico, não deixa margem para a atitude criativa e original de nossa literatura em seu aspecto emulativo de superação do modelo, mas como cópia secundária da árvore universal européia que nos engloba em seu “vínculo placentário”, que, para Candido, afigura-se como um fato “natural”, biologicamente falando, e não como uma “opção”. Assim, o vínculo não poderia ser uma atitude de articulação ativa e determinante de nossa suposta liberdade de escolha dentre as várias opções possíveis, mas uma filiação natural ao gosto dos cientificistas que analisam o processo gradual de fonte e influência, causa e efeito. Por outro lado, diz que o movimento hispânico serve como uma linha desafiadora e progressista desse fio causativo-biológico em sua dimensão fecunda e criativa. A superação da dependência biológica é possível na medida em que a influência não é mais externa, mas interna: “(...) influenciados não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores”21. Afirma que a consciência do subdesenvolvimento operaria essa modificação das estruturas internas, dando maior objetividade ao encararmos problemas como as influências, que não se apresentariam como um problema ou mal-estar, mas como importantes no plano da cultura ao promoverem a interação, o diálogo com o outro. O reconhecimento da vinculação não seria mais traumático, mas problematizador para as inúmeras discussões interculturais. Para o autor, tanto o conceito de originalidade pitoresca quanto o servilismo cultural seriam doenças, pois a partir, principalmente, dos movimentos estéticos do decênio de 1920, teríamos a integração transnacional, “pois o que era imitação vai cada vez mais virando assimilação recíproca”22. O empréstimo ajustar-se-ia ao aprofundamento crítico do romancista de país “subdesenvolvido”. O determinado localismo só acentuaria a “consciência amena de atraso” que seria superada quando se opera a “consciência do subdesenvolvimento”, que quebraria com a suposta originalidade da temática local vista, principalmente, pelo movimento romântico.

Silviano Santiago também apresenta o processo de dependência, mas a partir do que ele chama de ocidentalização do mundo. O autor afirma a relação entre o país dominado e a cultura tardia, tendo como base os princípios etnocêntricos para avaliar-se a literatura brasileira. Apesar de apontar o discurso etnocêntrico, caracterizando-o, não adere a ele completamente. Mostra fatores como a hierarquização e a diminuição do produto da cultura dominada a partir do eurocentrismo e emprega duas categorias para definir o país dominado: a temporal, através do atraso da modernização, e a qualitativa, a partir da falta de originalidade. Menciona os antídotos contra o equívoco do enciclopedismo eurocêntrico, como a antropofagia cultural, “num desejo de incorporar, criativamente, a sua produção dentro de um

18 Idem, ibid, p. 347.19 Idem, ibid, p. 350.20 Idem, ibid, p. 352.21 Idem, ibid, p. 352.22 Idem, ibid, p. 356.

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movimento universal”23. Enfatiza, como Antonio Candido, a consciência de que a dependência existe, mas não de forma imitativa, mas criadora. O localismo do negro ou do autóctone se deslocaria de sua via gloriosa, apontando para esse processo universalizante, subvertendo-se os valores de “atraso” e “originalidade”. Distanciando-se da visão de dependência natural, apresentada por Antonio Candido, avalia o processo de expansão da universalidade das obras dos europeus e sua resposta não-etnocêntrica realizada pelos escritores brasileiros, demonstrando a maior complexidade dos textos da cultura “dominada”: “(...) por conter em si uma representação do texto dominante e uma resposta a esta representação no próprio nível da fabulação...”24 Assim, com a ajuda da antropologia, desloca a posição inicial e etnocêntrica da história universalizante européia para enfocar a universalidade diferenciadora presente nas culturas dominadas. Enquanto Antonio Candido apresenta o par local/universal, Silviano Santiago mostra o maior grau de complexidade das obras em que opera essa linha complementar nas culturas ditas “periféricas”.

Observando o percurso tomado pelos teóricos literários brasileiros, percebemos uma atitude logocêntrica, dividindo os espaços entre centro e periferia, em sua dimensão dialética excludente, hierarquizando os discursos a partir do conceito de mímesis como imitatio e da busca da “origem”, do momento preciso do começo de uma literatura com características peculiares no Brasil, que conseqüentemente traz a configuração da identidade nacional frente aos colonizadores europeus. A construção dos termos fonte e influência, torna-se modelo exemplar de imitação incessante por parte dos críticos para compreender-se o que se entende por “literatura brasileira” e “identidade nacional”.

Investigando o Brasil, considerando a raça e o meio que encontrou, o francês Ferdinand Denis observa a realidade local dos indígenas que foram subjugados aos brancos; a devastação promovida pelo branco e singularidade e grandeza que possui a natureza dos trópicos. Segundo Luiz Costa Lima, “condensa-se assim um pólo negativo: a sociedade branca, culturalmente carente, religiosamente farsante. A este pólo se contrapõe o espetáculo do homem de paixão, o selvagem recuava ante a aproximação do branco”25.

Assim, o movimento centralizador não seria uma via de mão única. Do pólo colonizador, que quer legitimar-se como uma raça superior tanto cultural quanto socialmente, contrapõe-se o colonizado que quer se diferenciar a partir da cor local, acentuando vários elementos caracterizadores como o exotismo da flora e da fauna, o indígena, a pátria.

Sílvio Romero, por exemplo, incorpora uma atitude logocêntrica e centralizadora de um europeu “culto” e “civilizado”, pois mostra uma visão unilateral, que não é complexificadora. Seu ponto de vista é de um europeu distanciado que considera a cultura do “colonizado” como inferior, porque imita modelos vindos de fora. Roberto Schwarz em “Nacional por subtração” faz uma reflexão sobre o caráter identitário brasileiro e o mal-estar daí proveniente, averiguando certo sentimento de inferioridade dos latino-americanos por fazerem a experiência imitativa da vida cultural européia, dominando parte de nossa reflexão crítica há muito tempo. Apresenta o nosso desejo por novidades, atualizando nossas concepções sobre o que vem de fora, provocando uma falta de maior aprofundamento intelectual. Cita os diversos nacionalismos e questiona a busca de uma identidade nacional como forma de alcançarmos uma vida intelectual mais amadurecida. A contradição entre o real e o ideológico quebraria com a visão restritiva de economia nacional no campo acadêmico do estudante de Letras, pois como seria uma vida cultural sem contaminações? Por isso, vê, principalmente, com o fenômeno da internacionalização, essa fratura ideológica

23 SANTIAGO, Silviano. “Apesar de dependente, universal”. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 21.24 Idem, p. 23.25 LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e iluminação nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 133.

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nacional. A “mitificação da comunidade brasileira”26 é colocada como uma ilusão desde o século XIX até a atualidade, servindo para subtrair, eliminar o que vem de fora, criando-se uma suposta identidade nacional purificada, através da exclusão de elementos estrangeiros. O autor demonstra que “o sentimento de que a defesa de singularidades nacionais contra a universalização imperialista é um tópico vazio”27. A dimensão internacional da cultura deslocaria esse foco de unificação de uma cultura genuína, que é criticada pelo autor. Nosso mal-estar intelectual proviria da construção binária, com base no par fonte e influência, e da idéia de cópia, tendo valor secundário com relação ao modelo. Assim, Roberto Schwarz apresenta autores como Foucault e Derrida, que destruíram esses esquemas hierarquizantes. O autor também questiona se a ruptura conceitual com o problema da origem acaba com as relações de subordinação. Cita, como outros autores apresentaram, o “Manifesto Antropófago” como “interpretação triunfalista de nosso atraso”28, descentralizando os conceitos de cópia e inadequação. A valoração apresentada no Modernismo tinha uma postura irreverente e sem o sentimento hierarquizante de submissão e inferioridade. Desde o século XIX, o autor sugere que o sentimento entre nós é de meros copiadores do estrangeiro. O autor desacredita, por outro lado, dos mecanismos de defesa a esse impasse, como até mesmo, contraditoriamente, o movimento antropofágico. Para ele, a destruição da noção de cópia, referindo-se aos desconstrutivistas; assim como a renúncia ao empréstimo para viver mais nacionalmente, não resolveriam o problema central que preocupa a inteligência brasileira com relação à dependência cultural. Schwarz quer descomplicar essas questões e faz ótimas observações sobre Sílvio Romero, afirmando que este veria a cópia como um problema só surgido após a Independência. Antes disso, não havia o conceito pejorativo de imitação. Por outro lado, critica a visão de Sílvio Romero sobre o caráter imitativo de nossa cultura, apresentando como solução a divergência entre dois núcleos em nosso país, retomando sua discussão em “As idéias fora do lugar”.

O “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade, quebra com essas linhas divisórias e excludentes demarcadas pela territorialidade dos críticos da literatura brasileira, pois o seu projeto é irreverente e descentralizador a partir da deglutição cultural que requer um duplo movimento, híbrido, não petrificador, que se equaciona através da linguagem flutuante e móvel que não se aliena nem se alinha no discurso do poder logocêntrico.

Todo escritor de gênio engendra os seus antecessores num trabalho de perlaboração mimética e antropofágica. Fabrica-os. A capacidade mimética de invenção não é privilégio de nenhuma classe dominante, de nenhum discurso ou saber. Roland Barthes afirma que a literatura pode fazer ouvir a língua “fora do poder”29, demonstrando sua visão utópica. O poder logocêntrico é uma estrutura limitada, hierarquizada. A literatura não pode ser deglutida por esse discurso totalizador e nem a crítica literária, que por ser inventiva e também ficcional, tem de demonstrar a visão plural do literário.

A idéia de construção de identidade a partir do patriotismo, do exotismo, da Natureza e do índio simplifica a pluralidade complexa dos fatos, do real, num tipo ideal. Luiz Costa Lima afirma em Sociedade e discurso ficcional: “para o nosso romantismo, a observação da natureza tinha um peso capital porque (...) eram assim apanhados os elementos que nos diferenciariam: a pátria e o trópico”30.

Essa atitude etnocêntrica dominou a maior parte dos críticos brasileiros naquilo que eles chamam de “construção de uma literatura genuinamente brasileira”, apontando a figura do índio como principal formador da identidade nacional. Antonio Candido, ao falar sobre a 26 SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 29.27 Idem, p. 33.28 Idem, ibid, p. 37.29 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s.d.30 LIMA, op. cit. , p. 213.

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posição de Joaquim Norberto, aponta os elementos vistos, por este, como diferenciadores de nossa nacionalidade. Numa atitude mais complexa e menos radical, Antonio Candido vai além ao afirmar: “Este livro procura estudar a formação da literatura brasileira como síntese de tendências universalistas e particularistas”31. Para ele, a literatura no Brasil, formou-se a partir de uma tradição literária em que os escritores se serviram tanto das obras universais quanto locais, indo contra a obsessão da compreensão da literatura local como um processo de abrasileiramento.

Antonio Candido dimensiona uma postura híbrida na construção da literatura no Brasil que se engendra e é engendrada como no processo antropofágico descrito por Oswald de Andrade.

Machado de Assis, em “Instinto de Nacionalidade”, já criticara a inclusão do elemento indígena como exclusivo patrimônio na formação da literatura nacional, assim como sua total exclusão. Ele diz: “Compreendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os nossos escritores a essa só fonte de inspiração”32. O autor critica aqueles que só reconhecem a nacionalidade em obras que tratam apenas de assuntos locais, que limitam a compreensão da literatura.

A visão antropofágica de Silviano Santiago é fundamental para a desconstrução da crítica logocêntrica que tem caracterizado as idéias dos pensadores e críticos. Eles mesmos se contradizem, pois ao discorrerem sobre a literatura nacional, portam-se como europeus encasacados em sua visão unilateral e etnocêntrica. Silviano Santiago tem uma postura crítica em relação ao ponto de vista unilateral dos antecessores. Vê nossa produção literária, não como imitatio, mas como um trabalho mimético e de perlaboração, pois no espelho em que a imagem se reflete, não vemos o objeto em si mesmo, que passou pelo crivo de outro meio físico e por colorações novas, que a luminosidade do espelho deixa entrever. Essa diferença é vista a partir da antropofagia como resgate universal da coincidentia oppositorum do imaginário mítico e sua constituição discursiva. Assim, a antropofagia serve como recuperação do mito, marcando descontinuidades. Anterior à história linear, o reino do mítico vai caracterizar esse discurso híbrido, em que temos a estruturação que enforma a intertextualidade, já que o texto literário se relaciona com outros textos que o atravessam, não como via de mão única, mas como revalorização de outro espaço de ruptura que não abole a tradição literária. Esse processo se encaixa perfeitamente à paródia, como um “canto ao lado do outro”, pois esta reintegra em seu corpus outra composição literária, subvertendo-a criticamente, de forma carnavalizante. A antropofagia constrói esses elementos discursivos do mecanismo textual literário, ao recompor partes fragmentadas num desejo de totalidade orgânica. O escritor modernista Oswald de Andrade reviu esse projeto antropofágico, já que estava em ebulição em José de Alencar, de imagem do que se deveria processar como diálogo cultural entre o Brasil e Europa. A deglutição mágica do texto europeu não seria uma forma mecânica e repetitiva, via imitatio, como aclimatação ao ideário nacional, mas como forma de intersecção e apropriação de mecanismos na fonte colonizadora para, desta forma, armado de especificidades e estruturas reinterpretativas, superá-la de forma eficaz. No “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, Oswald de Andrade já criticava a colonização européia e sua imposição cultural. Nele, vemos o jogo fantasmagórico da imposição cultural menosprezado por Oswald de Andrade, que se amoldaria sobre o índio desde a época das navegações. A reação à imposição é a entrada do símbolo mítico, que percebemos em seu “Manifesto Antropófago”: “Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”33. Para que a devoração seja completa é preciso reintegrar-se miticamente, num todo maior, para que a perda do outro não

31 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Vol I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997, p. 23.32 ASSIS, Machado. Obra completa. Vol III. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962, p. 803.

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leve à parcialidade satisfatória dos acomodados: “Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu”34. O eu assimilando o Cosmos não leva à aporia de um processo imitativo, mas de uma reintegração necessária para fazer parte do ritmo atualizante do universo, em que os debates são possíveis num nível cosmopolita, sem a carga massacrante da cultura nacional frente ao inimigo europeu, que se torna objeto sagrado no ritual antropofágico: “Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem”35.

Bibliografia

ALENCAR, José de. Iracema. Edição do centenário. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1965.ANDRADE, Oswald de. Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias: Manifestos, teses de concursos e ensaios. Obras Completas. Vol.6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.ASSIS, Machado. Obra completa. Vol III. Rio de Janeiro: Aguilar, 1962.BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s.d.BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Vol I. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997.LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e iluminação nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.________________.Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.MORENO, César Fernández. (coord e intr). América Latina em sua Literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953.SANTIAGO, Silviano. “Apesar de dependente, universal”. In: Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.SCHWARZ, Roberto. “Nacional por subtração”. In: Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987.__________________. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades, 1977.SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

33 ANDRADE, Oswald de. Do Pau Brasil à Antropofagia e às Utopias: Manifestos, teses de concursos e ensaios. Obras Completas. Vol.6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 17.34 Idem, p. 15.35 Idem, ibid, p. 18.

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Os Atenuadores Discursivos em Linguagem de Venda

Ana Lúcia S. de Oliveira VillaçaProfª Drª em Lingüística - UFRJ

Resumo:A interação de compra e venda pressupõe a aceitação de determinadas linhas de conduta. No caso específico da linguagem da vendedora, ela pode apresentar um enunciado rico em elementos atenuadores para sustentar e manter determinadas posições. Este estudo tem como objeto o levantamento dos recursos de mitigação empregados na fala das vendedoras em situações de compra e venda. O objetivo é identificar, nas interações, as estratégias de mitigação referentes aos tópicos que apresentam maior complexidade ao serem abordados. São eles: preço, tamanho, falta de mercadoria e aspectos envolvidos na imposição de venda. Para isso ressaltamos o papel discursivo do vendedor e da cliente, além dos atos de fala indiretos responsáveis pelo encaminhamento da interação.

Palavras-chave: interação, discurso, polidez.

Abstract:The purchase interaction and sale presupposes the acceptance certain lines of conduct. In the specific case of the salesperson's language, she can present a rich statement in elements extenuators to sustain and to maintain certain positions. This study has as object the rising of the employed mitigation resources in the salespersons' speech in purchase situations and sale. The objective is to identify, in the interactions, the mitigation strategies regarding the topics that present larger complexity to the they be approached. They are them: price, size, merchandise lack and aspects involved in the sale imposition. For that we emphasized the salesperson's discursive paper and of the customer, besides the actions of speech indirect responsible for the direction of the interaction.

Key-word: interaction – discourse - politeness

1.0 – Introdução

Este artigo é o resultado de uma pesquisa iniciada por mim no mestrado(UFPE) e que teve sua continuidade no doutorado (UFRJ). Trata-se de um estudo que tem como base os pressupostos da sociolingüística interacional analisando as interações de compra X venda do ponto de vista dos aspectos atenuadores no discurso de ambos. Pode-se afirmar que, na maioria das vezes, a comunicação entre vendedor X cliente (venda e compra) estabelece-se com base na relação de deferência (polidez) do vendedor com o cliente, situação na qual os mecanismos lingüísticos contribuem para a elaboração da face (imagem pessoal) de ambos.

De modo geral, o papel do vendedor, durante a interação verbal com o cliente, tende a ser o de controlador da situação. Como o objetivo principal é convencer o cliente, sua conduta lingüística irá guiar a interação, fazendo com que o cliente se envolva no que podemos chamar de ‘jogo’ de compra e venda. Nesse jogo, o vendedor deverá levar em conta, sobretudo, a opinião do(s) interlocutor (es), pois isso determinará tanto a forma de como lidar com as respostas dadas pelos interlocutores quanto a impressão que os demais participantes formarão dele. Inicialmente chamaram-nos a atenção as estratégias lingüísticas utilizadas

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pelos usuários na relação compra X venda, em circunstâncias concretas e nas características da sociedade atual. Constatamos também que as relações de compra e venda no mundo feminino - vendedor e cliente - se revestem de importância para a mulher - a escolha de “o que vestir” -, onde as inseguranças podem ser observadas, juntamente com o pretenso controle da situação pela vendedora. A roupa, dentro da sociedade de consumo, é o bem mais procurado e valorizado e é a forma de construir a figura feminina de acordo com as leis da moda e do mercado: “Ter faz parecer”. Usando a roupa escolhida, a compradora ingenuamente quer parecer com o manequim que a veste. Revelam-se, no diálogo (interação), os desejos de uma (compradora) e as imposições da outra (vendedora)

Buscaremos, assim, no presente trabalho: 1 – Reconhecer as estratégias de mitigação empregadas por vendedores e clientes nos tópicos: preço, tamanho, falta de mercadoria, recusa e imposição de venda;Analisar as estratégias discursivas de preservação da face como base explanatória para a realização dos atos de polidez; 2 – Identificar a força ilocucionária que se estabelece por traz do ato de fala em situação real - a da interação em loja;

A pesquisa insere-se na área da sociolingüística interacional de base interpretativista e conta com dados de análise de interações de compra e venda coletados com gravador em lojas de roupa feminina.

2.0. Abordagem sócio-interacional do discurso

A tradição de pesquisa em Sociolingüística Interacional (SI) tem sido amplamente desenvolvida principalmente através dos estudos antropológicos e sociológicos de Gumperz(1982 a,b) e Goffman (1964 1998; 19671980;1974; 1981;1988;1996) visando dar conta dos aspectos envolvidos na interação. Stubbs (1983) adverte para o fato de que a Sociolingüística baseia-se na análise de como as pessoas conversam entre si nas mais diversas situações como, por exemplo, nas ruas, bares, lojas etc. Ela incorpora ainda a análise de como a conversação funciona, observando o contexto conversacional: como a conversa entre as pessoas é organizada ,o que a faz coerente , como as pessoas mudam de tópicos, interrompem as falas, fazem perguntas e dão respostas. De forma geral, investiga-se como o fluxo da conversação é mantido ou interrompido.

Gumperz (1982 a) entende que a Sociolingüística é vista como um campo que investiga o uso da linguagem de determinados grupos humanos, dando conta da junção entre os aspectos paralingüísticos e sociais envolvidos no processo de comunicação.

A sociolingüística interacional compreende diferentes tradições de pesquisa: lingüística, antropologia, sociologia, filosofia, psicologia social e cognitiva, abordando as relações entre linguagem , sociedade, cultura e cognição. Além dessas para o autor, a sociolingüística interacional mantém estreita relação com a Pragmática, a Análise da Conversação, a Teoria dos atos de fala e a Etnografia da Comunicação. Assim, a sociolingüística interacional focaliza as interações de relacionamento entre grupos distintos de comunidades específicas. Os aspectos de língua, fala e sociedade são analisados a partir dos usos de fala em contextos sociais específicos.

Por ser um campo vasto, a Análise do Discurso não se restringe somente à Lingüística; abrange área interdisciplinar de modo a obter subsídios para a análise, em outros campos da ciência, como a Filosofia e as Ciências Sociais. Pode-se dizer que a Análise do Discurso e a SI são áreas de interface. Schiffrin (1987:2) atribui a Harris o início dos trabalhos em Análise do Discurso, nos quais foram feitos estudos distribucionais de métodos de análise. Já Dell Hymes, outro estudioso da Análise do Discurso, centrou-se na etnologia da fala,

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observando como o discurso pode influenciar as formas de agir e ser de um povo, ou seja, a sua cultura. Nos trabalhos do sociólogo americano Goffman (1964 1998; 1967 1980; 1974; 1981; 1998; 1996), destaca-se a preocupação com o lado social das interações e observam-se as situações comunicativas do ponto de vista dos interlocutores nas interações face a face. Em 1964, o autor chama a atenção para a necessidade do estudo da situação social concebida a partir da comunicação face a face. Os estudos relativos à língua e à sociedade passam a ser vistos partindo-se do uso da fala em contextos sociais específicos. A situação social de um falante não é, portanto, algo distante e negligenciável, mas constitui uma realidade que precisa de uma investigação semelhante àquelas dedicadas a outras formas básicas de organização social (cf. Goffman 1964 1998:11-15).

O autor define situação social como um ambiente que promove possibilidades mútuas de monitoramento que surgem no instante em que dois ou mais indivíduos estejam na presença imediata de outros e se mantêm até que a penúltima pessoa saia. As regras estabelecidas pela sociedade determinam como os indivíduos devem se conduzir, organizando socialmente o comportamento dos presentes no agrupamento. Ele nos diz que a fala ocorre sempre em forma de arranjo social, encontros dos mais variados: casais em um baile, equipes cirúrgicas durante uma operação, jogos de carta; envolvendo algum tipo de entrelace. De acordo com Goffman(1964 1998:11-15), a interação face a face possui seus próprios regulamentos, seus próprios processos e sua própria estrutura, que não chegam a ser de natureza intrinsecamente lingüística, ainda que expressos através de algum meio lingüístico (cf. Goffman 1964 1998:11-15).

Stubbs (1983:2) salienta que o fascínio da Análise do Discurso advém da realização da língua. Ele atribui a impossibilidade da realização lingüística sem o conhecimento compartilhado entre seus participantes e afirma ser inseparável o estudo da língua e da situação. O autor aponta ainda alguns jogos, cerimônias formais que exigem determinados ‘rituais’ e padrões de linguagem rígidos e específicos, que diferem do uso da língua no dia-a-dia, que é mais flexível e admite mais ‘liberdade’ de combinações por parte dos falantes. Segundo Scriffin (1987:4), a língua sempre ocorre em algum tipo de ambiente que envolve situações cognitivos, culturais e sociais. A autora assume que a língua é potencialmente sujeita a diversos meios sociais, pois os reflete e os ajuda a constituí-los.

A perspectiva sócio-interacional vê a significação do discurso como resultado da operação entre o componente verbal, lingüístico propriamente dito, e o situacional, que trabalha com o comportamento do ser humano e suas atitudes frente às diversas situações sociais. Os interagentes discursivos são, portanto, atores, personagens de situações comunicativas. Dessa forma, para que se chegue à construção do significado do discurso, é necessário que se interpretem as marcas situacionais a fim de relacioná-las à dimensão lingüística. É nesse sentido que podemos entender que a interação de compra e venda é feita através de ‘jogo de palavras’ que leva o receptor a participar de um universo lúdico, antecipando a sua convivência com o prazer do objeto desejado. Vendedor e cliente ‘inter-agem’, negociam através da linguagem da insinuação. Scollon & Scollon(1995) afirma que o termo discurso é tratado de quatro maneiras distintas na literatura sociolingüística: para alguns analistas, o foco principal está nas relações lógicas das sentenças nos textos: outros se centram no processo de interpretação discursiva: um terceiro grupo volta-se para o discurso em sociedades como o discurso da medicina moderna ou de mudanças estrangeiras. Finalmente muitos analistas voltam-se para o estudo do modo como os discursos são usados para reforçar posições ideológicas na sociedade. No trabalho que ora desenvolvemos, optamos por tratar o discurso do ponto de vista do processo interpretativo.

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Bown e Levinson (1987) retomaram a teoria da face de Goffman(196780), integrando-lhe as estratégias de polidez verbal. Esses dois autores, partindo da noção de auto imagem de Goffman(196780), distinguiram dois aspectos que favorecem a imagem do ‘eu’ (self) construída socialmente: face positiva (corresponde ao desejo de ser aprovado pelo grupo) e a face negativa (diz respeito ao desejo de não imposição pela ação do outro, a reserva do território pessoal).

2 – Face e polidez

Brown e Levinson (1987) partiram do princípio de que, durante a interação, alguns atos lingüísticos (atos de linguagem) são ameaçadores à face positiva ou negativa dos interlocutores. Sendo assim, identificaram os mecanismos ou estratégias lingüísticas de atos verbais polidos que os falantes de uma língua utilizam a fim de manter mutuamente suas faces, quando um ato ameaçador, um AAF (ato de ameaça a face) é ativado (realizado) por um dos interagentes. Caberá então ao indivíduo optar por realizar ou não o AAF. Em caso afirmativo, as opções seriam as seguintes:

1 – Realizar o ato com o máximo de eficiência, sendo claro na expressão das intenções.

2 – Realizar o ato através de estratégias de reparação que atendem às necessidades da face positiva e/ou negativa.

3 – Realizar o ato indiretamente, através da violação às máximas do Princípio da Cooperação, que sinalizaram para o ouvinte uma intenção pretendida, mas não explícita claramente.

4 – Não realizar o AAF.A teoria aponta ainda que a seleção entre as estratégias relacionadas está ligada a três

variáveis: poder, distância social e teor de risco. Essas variáveis dizem respeito ao falante/ouvinte e determinaram o grau de polidez de acordo com a relação hierárquica entre os interlocutores e a intimidade entre eles. A outra variável pressupõe a atribuição de ameaça a um determinado ato numa dada situação e numa dada cultura.

Estabelecido o grau de ameaça e o risco da perda da face do falante/ouvinte, o falante terá de optar pelas estratégias mencionadas. Se o risco é baixo, o indivíduo realizará o ato diretamente e transparentemente ou, nas palavras dos autores, on recond.

Se o risco é alto, o falante deverá empregar uma estratégia mais alta que realiza o ato de modo a ser captada pelo ouvinte através de uma inferência mais complexa. Essa estratégia é denominada de off record e demonstra, através da violação das máximas, que uma implicatura deve ser tirada.

Assim, de forma polida, a pessoa pode realizar um ato de ameaça à face de maneira off, ou seja, dizendo mais ou menos o necessário (violação à máxima de quantidade), ou ainda não sendo relevante (violação à relação), não sendo verdadeiro (violação à qualidade), tornando-se vago, ambíguo, contraditório (violação ao modo).

A polidez torna-se uma estratégia necessária no ato de compra e venda, uma vez que os participantes dessa interação dispõem de uma série de recursos lingüísticos, a fim de atenuarem (abrandarem) a força do seu discurso ou frase. O uso da polidez na interação oral é uma forma de otimizar a comunicação. A pessoa se mantém polida, também, para evitar situações que a deixem embaraçada. Pode, para isso, empregar artifícios lingüísticos e construir suas respostas baseadas em estratégias de ambigüidades, a fim de preservar a face alheia, ainda que não seja possível preservar seu bem estar. Assim, como diz Goffman (1967]1980:85): “Emprega cortesias, faz ligeiras modificações nas exigências feitas aos

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outros e na apreciação dos outros, de tal forma que estes sejam capazes de definir a situação como uma situação na qual seu auto respeito não é ameaçado”. O processo de defesa semelhante ocorre quando o indivíduo perde o controle de suas expressões durante um encontro. Ele pode, ao invés de passar por cima do incidente, esconder ou encobrir sua atividade, evitando alguma dificuldade criada pelos outros participantes.

No ato de compra e venda, observam-se várias situações em que se ativa a prática da polidez. Muitas vezes, o cliente não se interessa pelo produto ou pelo preço e tende a ‘se desculpar’, lançando mão de artifícios do tipo: estou chegando agora e vou dar mais uma olhada. Assim, minimizando seu interesse, ele usa de recursos lingüísticos para salvar a imagem do vendedor e preservar a sua face da ameaça, pois não se utilizou de um ato direto de fala mas buscou minimizar a força de uma possível resposta negativa através de artifícios, habitualmente chamados de desculpa.

2.1.1 - Goffman e Scollon

Ervin Goffman (1967-1980) estudou as produções lingüísticas empregadas pelos indivíduos durante interações face a face. Em seus trabalhos sobre o comportamento lingüístico do ser humano, destaca-se a obra de (1967]1980) na qual o autor observou que o simples fato de o indivíduo entrar em contato com o outro na sociedade (mundo social) rompe um equilíbrio na interação. E isso faz com que ele coloque em ação um padrão de atos verbais, a fim de que a ameaça à auto-imagem seja preservada.

Em sua obra sobre o papel dos indivíduos na sociedade, o autor opta por analisar o aspecto individual, pois, segundo ele, a pessoa, ao entrar em contato com outros indivíduos na sociedade, adota um padrão verbal em concordância com a linha seguida. Nesse momento, o indivíduo leva em consideração as opiniões e a impressão do grupo, para que a sua imagem esteja em conformidade com o esperado. Assim, ele passa a utilizar palavras e expressões que mantenham e sustentem não só a sua imagem perante o outro como também a sua imagem pessoal.

Goffman (1967 1980:77) define face como uma imagem do self descrita em termos de atributos sociais aprovados, apesar de se tratar de uma imagem que pode ser partilhada pelos outros, em situações em que a pessoa consegue produzir uma exibição profissional ou religiosa fazendo uma boa exibição para si mesma.

Pode-se afirmar que a face de uma pessoa é delineada a partir da situação em que ela se encontra durante a interação. Ela mantém um determinado padrão de comportamento verbal que esteja em harmonia com a imagem transmitida aos outros, apoiada no julgamento que os demais elementos do grupo formarão dela.

A linha seguida e mantida tende a ser institucionalizada, pois, durante um contato específico, é esperado dos interagentes que se mantenham em uma determinada face. Com o desenrolar da situação, o indivíduo poderá optar por mudar o comportamento e sua face poderá ser alterada à medida que a interação ocorra. Assim, pode-se afirmar, de acordo com Goffman (19671980), que face é algo que não se aloja dentro do corpo, é determinado pelo fluxo de eventos que se desenrolam em um determinado encontro.

Na interação de compra e venda, poucas vezes se observa a não preocupação em seguir determinados padrões por parte do cliente, que muitas vezes não tinha intenção de retornar à loja, não se importando com a sua face.

Salvar a face seria o processo pelo qual o indivíduo tenta sustentar para os outros a impressão de não ter perdido a sua imagem pessoal, ou seja, a sua face. Na interação de compra e venda, os processos de salvar a face se referem aos recursos lingüísticos empregados pelos interagentes, a fim de manter mutuamente um padrão de comportamento

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verbal. O exemplo que se segue ilustra a estratégia de salvar a face, empregada pela vendedora em relação à cliente:

Exemplo:

Cliente: E esse custa quanto?Vendedora: Esse é R$ 315,00. Cliente: Agora é estranho.. a gente não está acostumada, né?Vendedora: É assim, a senhora coloca uma meia fumê e um sapatinho, aí já dá

outro tom. Porque também tá assim sem meia, a perna fica mais clara.Cliente: A barrigui:nha que atrapalha.Vendedora: A dobrinha só aparece quando a senhora faz este movimento, que aí

dobra. Quando a senhora tá parada, não tem nenhuma aí.. Olha, os dois, são muito bonitos. Agora opinião minha, né:, eu achei que o outro ficou melhor na senhora.

Para Goffman, na interação face a face, a aceitação mútua de linhas é uma característica básica, pois tem um efeito conservativo e importante no encontro. Uma vez que o falante apresenta, inicialmente, uma linha de conduta verbal, as outras pessoas que o cercam constróem suas respostas posteriores em torno da primeira ficando presas a estas. Caso o indivíduo resolva alterar a conduta, o resultado será confuso, já que os participantes têm de se preparar com ações que deixariam de ser apropriadas ao contexto.

Assim, seria elaboração da face as ações que o indivíduo realiza condizentes com o seu repertório lingüístico. A elaboração serve para contrabalançar incidentes, pois permite que a pessoa controle a sua dificuldade e a conseqüência desastrosa que a sua atitude pode provocar no outro. Tais práticas são comuns em sociedades e cada uma delas possui o seu repertório característico de salvação de face. .

A face é um comportamento verbal, uma linha seguida pelos participantes da interação, que determina a maneira para se lidar com as respostas dirigidas a si mesmo e a forma de como se dirigir ao outro. Esses atos formam, assim, a imagem individual, caracterizada pelo autor como sendo a imagem do self.

Quando o cliente entra em uma loja, às vezes apenas desejando saber o preço de determinado produto, é abordado por vendedores que usam de diversos ‘artifícios’, para de vender uma determinada mercadoria. Dessa forma, observamos, no discurso do vendedor, uma série de vocábulos pré-selecionados e repetitivos, ou, ainda, o recurso da indiretividade, com o objetivo de persuadir o cliente. Em alguns momentos, o interesse do comprador está apenas na curiosidade, noutras ocasiões, ao perceber que o preço está acima de suas possibilidades de compra, tende a se desculpar e sair da loja.

Scollon & Scollon(1995) defende o estudo da face baseado numa visão sociológica e sociolingüística. Nesta perspectiva, a face é negociada entre os participantes da interação definidos nos eventos comunicativos. O autor defende uma negociação mútua de face na comunicação interpessoal: os interagentes devem fazer suposições prévias sobre as faces dos participantes antes que se inicie o evento comunicativo, assumindo para si determinadas posições sobre suas faces e sobre a face que desejam passar aos outros participantes.

O estudo de Scollon & Scollon(1995) revela um paradoxo no âmbito: o envolvimento e a independência. O contraste pressupõe de um lado o envolvimento que se tem com os outros e a forma como isto é demonstrado: por outro lado, temos de manter uma certa independência de outros participantes demonstrada através de respeito e distância. Nas interações, tais aspectos são simultâneos. O envolvimento pressupõe uma demonstração de afeto através da atenção que se dá ao outro, refletindo ainda vinculação íntima com o interlocutor.

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Scollon & Scollon(1995) refere-se ao uso do primeiro nome, o que na nossa cultura não caracterizaria uma forma “deselegante”, uma vez que não se tem o hábito de chamamento polido feito através do sobrenome. O envolvimento tem sido estudado como forma de Polidez ,de solidariedade, no trabalho de Scollon.

Scollon & Scollon(1995) denominou de sistemas de polidez as negociações de faces entre os interagentes. Ele admite três sistemas de polidez que levariam em conta o poder, a distância e a imposição do ato. Os sistemas seriam: deferência, solidariedade e hierarquia.

Sistema de deferência : No nível de polidez de deferência, as pessoas poderiam ter status social equivalente, com simetria no relacionamento, porém manteriam distância e utilizariam estratégias de polidez negativa, tendendo ao respeito mútuo em relação às diferenças sociais e à posição hierárquica. Alguém com menos independência usaria estratégias de polidez negativa (independência).

Sistema de solidariedade : Caracteriza-se pelo alto nível de envolvimento, existindo uma certa solidariedade entre os falantes; pode haver proximidade entre eles que se colocam como iguais, por meio de estratégias de envolvimento. Em princípio, não existe diferença de poder ou distanciamento entre os falantes

Sistema hierárquico : Caracteriza-se pelo reconhecimento e respeito por parte dos interagentes das diferenças sociais que coloca um falante em posição superior e o outro em posição inferior. As estratégias de polidez usadas seriam distintas, cabendo ao indivíduo em posição superior a utilização de estratégias de envolvimento (polidez positiva), ou optar pelo falar com superioridade ‘de cima para baixo’. A principal característica desse sistema é o reconhecimento da diferença de satus.

2.1.2 – Representações

O papel que o indivíduo representa na sociedade é tratado por Goffman (1996) como forma de representações. As representações tendem a regular o desempenho da pessoa atribuindo-lhe valores de uma determinada sociedade. Do ponto de vista das estratégias discursivas, este evento é traduzido como manutenção de alinhamento.

O elogio desempenha um papel importante nas interações de compra e venda, pois se encaixa na situação que Goffman(1996) entende como a posição do indivíduo em um determinado cenário social. Observando este conceito, verifica-se que, ao tomar contato em uma determinada situação, a pessoa é aceita mediante informações que o grupo possui em relação a ela, inferências a partir da sua conduta que levam a suposições de que indivíduos de determinados tipos tendem a ser adaptados em cenários sociais específicos.

No nosso estudo, o interesse do vendedor recai sobre a sua situação sócio-econômica do cliente sendo possível partir-se de informações prévias ou indícios e definir-se, de uma certa forma, a situação e o que se espera do cliente dentro da interação.

Assim sendo, partindo de inferências, os elogios são feitos levando-se em conta o conhecimento prévio da situação e do cliente. A vendedora pode ter papel decisivo na escolha do cliente, expressando-se de modo natural para que a cliente atue de forma esperada, previamente desejada e articulada pela vendedora, pois o objetivo é que a compra se efetive.

2.13 – Inferências

Scollon & Scollon (1995) defende a manutenção de uma coerência discursiva na interação oral e as inferências como responsáveis por tornar o discurso falado coeso. A

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inferência também foi tratada por Gumperz (1977) como uma fonte de coerência conversacional. Acredita-se, como Scollon(1995), que questões relativas a inferências são fundamentais no processo de comunicação e de miscomunication (eventuais conflitos na comunicação)

Scollon & Scollon(1995) adverte para o fato de que a coesão no discurso profissional não é uma questão de necessidade comunicativa, mas uma obrigação de manter coerência discursiva para que as relações interpessoais sejam bem sucedidas.

A abordagem discursiva do ponto de vista da relação de compra e venda é construída em termos de alinhamento e negociação.

2.1.4 – As estratégias de mitigação na linguagem da venda

Na seleção das interações analisadas, observaram-se situações em que se ativam ‘artifícios’ a fim de atenuar a força de determinadas elocuções que colocam em risco a imagem do cliente. Alguns tópicos como preço, tamanho, falta de mercadoria, recusa e imposição da venda tendem a uma atenuação e, dessa forma, foram mitigados. Eis por que escolhemos tais dados para análise.

3.0 – Tópico: preço

a) estratégia de mitigação: hedge acompanhado de ato de fala indireto com uso de estratégia de polidez (off record) implícita : (1)

Vendedora: Boa tarde!Cliente: Boa tarde! Esse aqui tá quanto?Vendedora: Ele é de chamois esse. Ele é R$ 91,90. À vista tem desconto de

40%.Cliente: E veste bem isso?Vendedora: Prova pra ver, né?Cliente: Só tem essa cor?Vendedora: De Chamois só tenho esse. Tem ele e outro na mesma cor.Cliente: Este aqui é o quê? Crepe?Vendedora: É.Cliente: Tá, vou dar mais uma olhadinha.Vendedora: Fica à vontade.

Em (1), há o que Scollon & Scollon(1995) relaciona ao comportamento de distância e respeito, pois a interação se dá em nível de polidez e deferência, com simetria no relacionamento. Os participantes mantêm uma certa distância entre si, preservando um possível ato de ameaça. Este fato é evidenciado pelo uso do diminutivo (olhadinha) na elocução da cliente que sinaliza indiretamente uma recusa e implicitamente o pedido de desculpa por não levar a mercadoria e sair da loja.

O enquadre estabelecido é o profissional formal, em que a vendedora se exclui de uma opinião a respeito do produto que está sendo oferecido (E veste bem isso?/Prova pra ver, né?). A vendedora recorre aos processos estabelecidos nos manuais de venda. O preço não é revelado de modo direto, ele é acompanhado de um enunciado mitigado, repleto de elementos

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que tentam desviar, ainda que momentaneamente, o foco para o tipo de tecido e as facilidades do pagamento: Ele é de chamois esse. Ele é R$ 91,90. À vista tem desconto de 40%.

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3.1 – Tópico: Tamanho

a) estratégia atenuadora de mitigação: mudança de enquadre discursivo profissional/pessoal e uso de hedge:

A tarefa de venda impõe uma série de situações em que a vendedora terá de ter ‘jogo de cintura’ ao tratar com o cliente e cumprir o objetivo da venda. O exemplo que se segue marca o uso da fala pessoal e da mudança de enquadre discursivo a fim de persuadir o cliente. A tarefa da vendedora é a de não expor a face da cliente e, dessa forma, os hedges configuram-se em elementos essenciais.

Analisando as interações de compra X venda, observa-se a presença de termos off Record (implícitos), que foram empregados, a fim de atenuar e enfraquecer a força ilocucionária da sentença, preservando mutuamente as faces os interlocutores. O grau de indiretividade em termos de habilidade de operar corretamente os atos de fala é tratado por Gumperz (1982) como uma questão cultural. Em situações de compra e venda, evidenciam-se tais recursos de modo acentuada de preservação da face, para escamotear uma ameaça. O discurso é produzido para ‘se dizer algo’ de modo implícito:

(2)Vendedora: Aqui, olha que lindas ! Trouxe duas, combinam com os vestidos: Uma

preta e uma marrom. [cliente sai da cabine]Cliente: Nossa são li::ndas,[mas esse vestido preto não ficou legal.Vendedora: Coloca a sandália preta:::. [cliente calça a sandália]Cliente: Mesmo com a sandália..eu não gostei..;Ficou muito largo. [acc] [mostrando]

Vendedora: Veste o estampado de vermelho e coloque a outra sandália pra gente ver. [cliente entra na cabine] Cliente: Tá...,espera aí.Vendedora: E aí, como ficou o vestido:::?

Cliente: Ficou largo de novo, /no busto e na cintura/. [a vendedora começa a abrir a blusa]Vendedora: Por que... você não usa um sutien igual ao meu?=Cliente: Como assim?= [a vendedora mostra o sutien]Vendedora: Com.. /almofadinhas/.=Cliente: Como assim-ele tem enchimento?=Vendedora: É::, ele é ótimo , inclusive eu só uso ele.Cliente: É pode ser. [dec] [vendedora pega no vestido que a cliente esta´ experimentando] Vendedora: [ Puxa, ele da até pra usar com esse vestido, aí é só diminuir a cintura. [cliente entra na cabine tira o vestido, coloca sua roupa, e sai]Cliente: Vou ver...eu vou pensar e qualquer coisa eu volto . [acc]Vendedora: Sem problemas, tchau:.Cliente: /Tchau/, obrigada; boa noite!Vendedora: /Boa noite!/

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Na seqüência (vendedora: e aí:: gostou? Cliente: / Não/, está muito senhora), a cliente produz um ato de fala direto que poderia expor a face da vendedora, porém não foi interpretado com essa intenção. Ela aproveita para oferecer mais um produto na tentativa de manter o tópico em questão (o vestido): Você achou::?::Tudo bem, veste outro enquanto eu busco uma sandália - quanto você calça?

Na segunda tentativa de aprovação da roupa agora com a sandália, a cliente realiza outro ato de fala direto: (mesmo com a sandália, eu não gostei...ficou muito largo). A vendedora muda de tópico e pede que ela experimente outro modelo. A tentativa também não obteve sucesso e ela então muda o enquadre da interação do profissional para o pessoal, aconselhando a cliente a comprar um modelo de soutien semelhante ao dela.

3.2 – Tópico: Falta de mercadoria, aspectos envolvidos em recusa

a) estratégia de mitigação: oferecimento de outro produto, mudança de enquadre interativo:

(3)

Cliente – Você tem dessa blusa?Vendedora –A gente tem calça je:: ans. [mostrando ]Cliente – Daquela calça jeans estilo da preta você

não tem, né :?Vendedora – Não te::nho.Cliente – Traz o que você tiver tá:?Vendedora –Tá bom.

O trecho (3) mostra que a cliente ‘aceita o jogo’ e se dispõe a fazer parte dele, cooperando com a imagem da vendedora e facilitando o alinhamento da interação. Existe todo um esforço por parte da cliente em acolher as sugestões da vendedora, poupando assim a sua imagem ao resguardar a sua face de uma possível ameaça que poderia ser causada pela falta da roupa. A falta de alinhamento inicial e a tentativa de mudança de enquadre foi sendo ‘negociada’ através de um discurso permeado por jogos de palavras e atos de fala indiretos. Não foi necessário que a vendedora proferisse um ‘não’ para que a cliente entendesse que não havia a blusa procurada. A declaração que a vendedora faz (a gente tem calça jeans) traduz um oferecimento através de um ato de fala indireto.

3.3 – Tópico: Imposição de venda

a) estratégia de mitigação: mudança de enquadre interativo e de fala profissional/ fala pessoal, elogio, hedge:

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(4)Cliente: Não tem nada de verão?Vendedora: A coleção de verão não está na promoção, não.

Mais uma vez, observa-se um ato indireto, seguido de um mecanismo enfraquecedor. O não foi minimizado pela explicação de que ‘a coleção’, e não simplesmente ‘as roupas’, não estavam na promoção. ‘A coleção de verão’ sugere algo grandioso, elaborado e requintado, traduzindo um vocabulário específico utilizado no mundo da moda. O enunciado ‘a coleção de verão’ serviu também como um atenuador, a fim de enfraquecer a força da dupla negação e de manter distanciamento em relação às demais roupas: não está na promoção não.

4.0 – Conclusão Tomamos como o objeto de estudo os recursos comunicativos utilizados por

vendedores e clientes em situações de compra e venda. Investigaram-se as estratégias de mitigação presentes no discurso de vendedores durante o encontro de serviço. Os tópicos revelados na pesquisa demonstraram que os recursos lingüísticos de mitigação, empregados por vendedores em situações de compra e venda, não favoreceram as expectativas de compra, deixando de cumprir o objetivo esperado para o qual são os vendedores treinados através dos manuais e cursos.

Este estudo serve de base para pesquisas mais aprofundadas, de base sociolingüística, que permitam a utilização de diferentes referenciais teóricos e metodológicos, subsidiados pela sociologia, antropologia e pela área de marketing. As conclusões extraídas acerca das estratégias de mitigação em contextos discursivos de compra e venda podem apontar para hipóteses de trabalhos que abranjam situações interacionais variadas em ramos diferentes no setor de venda. As áreas de propaganda e marketing podem igualmente ser beneficiadas tanto do ponto de vista metodológico quanto do ponto de vista teórico. Os fundamentos em que se centram a pesquisa podem subsidiar estudos na área da ciência da comunicação.

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A Utilização de Filmes para Desenvolver a Fluência em Língua Inglesa36

Arlene Koglin*Ani Carla Marchesan**

* Mestranda em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC** Mestranda em Lingüística na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

Resumo:Este trabalho tem o objetivo de mostrar e discutir a produção de materiais didáticos autênticos de língua inglesa, que exploram aspectos sócio-culturais, com ênfase na compreensão e na produção oral dos alunos do Curso de Extensão em Línguas Estrangeiras (CELS)37 da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) dos níveis pré-intermediário e intermediário. Essa metodologia se iniciou no 1º semestre de 2005, quando foram criadas atividades que utilizam filmes e são amparadas em Ishara e Chi (2004), Plo (1990) e Donley (2004). Os resultados confirmam que o input, gerado pelo uso de materiais autênticos e voltados às necessidades dos alunos, proporciona maior participação e envolvimento nas discussões sobre as temáticas abordadas. O desafio da seleção, organização, preparação e implementação de material autêntico exige do professor reflexão sobre o processo de criação, aplicação, avaliação e revisão. Conseqüentemente, contribui não só para aprofundar pesquisas na produção de materiais didáticos, mas também para enriquecer as competências e as habilidades lingüísticas, discursivas e profissionais do professor em pré-serviço.

Palavras-chave: produção de material didático, uso de filmes, ensino de língua inglesa

AbstractThis work aims to show and to discuss the production of English authentic teaching materials which explore socio-cultural aspects emphasizing both the comprehension and oral production of pre-intermediate and intermediate students from Curso de Extensão em Línguas Estrangeiras (CELS) from Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). This methodology was adopted in the first semester of 2005. By using films, we created activities based on Ishara and Chi (2004), Plo (1990) and Donley (2004). The results confirm that the input generated through the use of authentic and students-directed materials provides greater participation and involvement in discussions about the approached themes. The challenge of selection, organization, preparation and implementation of authentic materials demands reflection on the process of creation, application, evaluation and revision from the teacher. As a result, it contributes not only to deepen pieces of research on teaching materials production but also to enrich the professional, discursive and linguistic abilities and competences of pre-service teachers.

Key-word: teaching material production, use of films, English teaching

36 Trabalho desenvolvido sob a orientação da profª. Ms. Ana Marilza Bittencourt, no Curso de Extensão em Línguas Estrangeiras da Universidade Federal de Santa Maria durante os dois últimos semestres do curso de graduação em Letras – habilitação português e inglês. 37 O laboratório do Curso de Extensão em Línguas Estrangeiras (CELS), fundado em 1992, atende em média 300 alunos carentes, professores e comunidade em geral. Oferece cursos de inglês, alemão, espanhol e francês, com ênfase nas quatro habilidades, utilizando materiais didáticos autênticos que abordam aspectos culturais, produzidos pelos tutores (professores em pré-serviço). Os alunos são provenientes, em maioria, de cursos de graduação da UFSM com faixa etária média de 22 a 26 anos. Cabe lembrar que uma pequena parcela dos alunos é formada de mestrandos e doutorandos.

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Introdução

Quando se trata do ensino da língua inglesa como língua estrangeira (L2), existem algumas ferramentas que podem ser utilizadas como input para desenvolver a fluência e aumentar a participação e a motivação dos alunos, tais como o uso de vídeo.

Convém destacar que a motivação pode ser responsável, segundo Dörnyei (2001), por impulsionar as pessoas a fazerem algo; pelo tempo em que elas se mantêm na atividade e pelo grau de empenho delas para realizar tal atividade. Não existe uma fórmula mágica para trazer a motivação à sala de aula, porém certas atitudes e estratégias do professor podem contribuir para um maior ou menor interesse do aluno, durante o processo da aprendizagem. Davis (1993) menciona que alguns alunos parecem naturalmente entusiasmados para aprender, no entanto muitos deles precisam ou esperam que seus professores lhes forneçam inspiração, desafios, e estímulos. Nessa mesma perspectiva, Ericksen (1978) afirma que a aprendizagem eficaz, em sala de aula, depende da habilidade do professor para manter o interesse inicial que levou os alunos a fazer o curso. Assim, pode-se concluir que a motivação poderá vir tanto do aluno quanto do professor, mas este é o responsável por mantê-la ou até mesmo por aumentá-la. Trabalhar com vídeo, em sala de aula, ainda não é uma prática muito difundida pelas seguintes razões: os filmes não são produzidos com o propósito de ensinar uma língua estrangeira, portanto, quase sempre têm uma duração diferenciada da do tempo da aula. Além disso, muitas vezes, eles apresentam falas do cotidiano ricas em figuras como metáforas, redundâncias, gírias, jargões, entre outras e fogem dos padrões convencionais, o que, por sua vez, pode gerar certa insegurança aos professores. Por outro lado, conforme Ishihara e Chi (2004), os professores preferem utilizar vídeo clipes em vez de filmes completos, pela crença de que a complexidade da linguagem dos filmes não é adequada para aprendizes iniciantes, ou seja, as películas não são adequadas para aprendizes iniciantes em virtude do nível mais avançado de linguagem.

Neste trabalho, privilegia-se a abordagem de aspectos sócio-culturais. De acordo com Napolitano (2004, p.11-12) “o cinema é o campo no qual a estética, o lazer, a ideologia e os valores sociais mais amplos são sintetizados numa mesma obra de arte”. Nessa perspectiva, Barker e Galasinski (2001) consideram que os estudos culturais não são um objeto a parte, mas constituem e constroem a linguagem. A partir dessas reflexões, justifica-se o trabalho com filmes para ensino de L2 pelo fato de que se aprende uma língua quando há consciência de sua cultura (KRAMSCH, 1993, apud MEINHOF, 1998).

Dessa forma, pretende-se relatar a experiência de ensino em que se utilizaram materiais didáticos produzidos a partir de filmes autênticos, com alunos dos níveis pré-intermediário e intermediário do CELS da UFSM. É importante mencionar que se considera como materiais autênticos aqueles em que ocorre o “uso natural da língua como objeto de estudo” (FERRÁN et al. 1990, p.203, tradução dos autores).

Uso de filmes em sala de aula: motivação por meio do enfoque cultural

Grande parte do sucesso do output, no processo de ensino e aprendizagem de uma língua estrangeira, é influenciada tanto pelos materiais didáticos adotados quanto pelo envolvimento do aluno. Nos últimos anos, os professores têm se utilizado de diferentes gêneros textuais para dinamizar e motivar o aprendiz de L2, pois conforme Michelon (2004) a motivação é um dos fatores determinantes para a aprendizagem de uma língua estrangeira.

Disso decorre que o uso de filmes autênticos, como ferramenta de ensino, provoca uma resposta dos alunos, já que as imagens, o movimento, a linguagem corporal ajudam na

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compreensão da L2, por meio das pistas fornecidas pelo contexto que, por sua vez, apresenta ao aluno diversidades culturais. Conforme Ishihara e Chi (2004, p.31, tradução dos autores),

Os aspectos culturais de um filme, tais como costumes e humor, ou usos culturais específicos da língua, tais como expressões idiomáticas, poderiam ser discutidas com os alunos ou eles podem exercitar seu poder de observação para aprender o uso funcional da língua de maneira indutiva.

Em razão de existirem várias leituras e interpretações do conceito de cultura, dependendo das tendências de determinada escola e de cada autor e, ainda, do propósito de cada estudo, neste artigo, adota-se dois conceitos de cultura: o primeiro proposto por Havilland (1993, apud LLOBERA, tradução dos autores), ressalta que:

A cultura é aprendida. Cultura é nossa hereditariedade social e é adquirida pela convivência em uma dada sociedade. A cultura é transmitida de diferentes formas, consciente e inconscientemente, direta ou indiretamente. A cultura, também, é aprendida através da observação. É claro que a língua é uma ferramenta muito importante para o aprendizado da cultura, pois facilita a transmissão de idéias e sentimentos.

O segundo conceito, desenvolvido por Taylor (1881, p. 1, tradução dos autores), estabelece que “cultura é um conjunto complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, costumes e outras aptidões e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade”. Esses dois conceitos antropológicos complementam-se e destacam que a cultura é aprendida e transmitida historicamente de geração a geração ou por meio da língua. Nessa perspectiva, o uso de filmes, em sala de aula, torna-se uma possibilidade de aprendizagem não só lingüística, mas também de registros históricos, sociais e culturais observáveis. O contato com os aspectos culturais permite que o aprendiz compreenda e apreenda determinadas expressões e metáforas lingüísticas de forma contextualizada.

O uso de filmes como recurso didático para adquirir fluência na L2

Acredita-se que os filmes promovem uma excelente oportunidade para os alunos adquirirem fluência em L2, já que constituem uma fonte autêntica de situações de uso da língua, diferentemente do que ocorre com Cds ou fitas de vídeo que acompanham os livros didáticos. Estes, normalmente, são adaptados, portanto, não reproduzem a entonação e a velocidade natural do discurso de um falante nativo. Além disso, muitas vezes, os materiais não autênticos não ilustram as variações dialetais, interpessoais, lexicais e culturais de diferentes regiões onde a língua inglesa é falada.

Por outro lado, o uso de materiais autênticos que utilizam filmes requer algumas precauções e adequações do professor. É preciso que ele planeje e estabeleça, previamente, os seus objetivos e a trajetória para atingi-los. Dessa forma, para que a atividade tenha sucesso, o professor deve dar tarefas, antes de o aluno assistir ao filme, a fim de familiarizá-lo com o tema abordado, para facilitar a compreensão das cenas e aguçar a percepção, a imaginação e o interesse do aprendiz.

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Seleção do tema e dos filmes A seleção do filme ou do programa deve levar em conta fatores como: faixa etária,

adequação cultural e interesses de ambos os sexos, segundo Donley (2004).Em função disso, antes da adoção de filmes como recurso e abordagem de ensino no

CELS, aplicou-se um questionário, para uma análise dos interesses e das necessidades dos alunos, que continha uma lista de nove temas (ver anexo 1) dentre os quais havia a sugestão de três a quatro filmes para os alunos assinalarem a preferência. Posteriormente, efetuou-se o levantamento do tema mais votado – Americans Abroad - com seus respectivos filmes – The Buccaneers e What a girl wants.

Cabe ressaltar que se trabalhou com ambos em sala de aula, porém, neste artigo, foca-se apenas a abordagem dada ao filme What a girl wants. Este filme narra a trajetória de uma garota, Daphne Reynolds, que mora com sua mãe, Libby, nos Estados Unidos da América e não conhece o próprio pai. No dia de seu aniversário, ela decide ir até a Inglaterra encontrá-lo, contra a vontade de sua mãe. Daphne encontra seu pai, Henry Dashwood, um político britânico que está comprometido e demonstra ambição de concorrer ao cargo de Primeiro Ministro. Para ser aceita naquele ambiente, Daphne enfrenta muitos desafios tanto culturais como lingüísticos.

Preparação do material didático

Para o uso pedagógico eficaz de um filme, deve-se dar uma atenção especial à preparação do material didático. Ele deve apresentar objetivos claros e exercícios específicos que explorem as habilidades focadas. Por outro lado, é necessário fazer uma análise pré-pedagógica detalhada, para desdobrar o filme adequadamente, isto é, abordar tópicos para discussão, focar aspectos lingüísticos e culturais e, em alguns casos, aproveitar parte da trilha sonora como ferramenta poderosa de ensino e aprendizagem. Todos os elementos que compõem o filme escolhido podem e devem ser utilizados para que se possa trabalhar as quatro habilidades.

Para uma otimização do uso do filme, sugere-se a divisão dos exercícios em três etapas: pre-viewing, viewing, pos-viewing.

Pre-viewing: refere-se às atividades preparadas com o intuito de familiarizar os alunos com o vocabulário, o enredo e o tema do filme que é abordado.

A atividade 1 ilustra a tarefa de pre-viewing, na qual é fornecido aos alunos o elenco do filme, uma breve resenha, questões específicas sobre as imagens (capa do DVD) e, ainda, exercícios que se propõem a levantar inferências e hipóteses de como será o desenrolar do filme. Nessa atividade, exploram-se tanto as habilidades de compreensão e produção oral quanto as de escrita, incluindo questões culturais a partir das imagens: a bandeira na camiseta da jovem e o uniforme da Guarda Real Britânica.

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Atividade 1_____________________________________________________________________What a Girl Wants (2003)Director: Dennie Gordon

Cast overviewAmanda Bynes .... Daphne

Reynolds Colin Firth .... Henry Dashwood Kelly Preston .... Libby

Reynolds Eileen Atkins .... Jocelyn

Dashwood Anna Chancellor .... Glynnis

Payne Jonathan Pryce .... Alistair

Payne Oliver James .... Ian Wallace Christina Cole .... Clarissa Payne Sylvia Syms .... Princess

Charlotte Soleil McGhee .... Young

Daphne Peter Reeves .... Sir John

Dashwood James Greene .... Percy Steven Osborne .... Staff

Member Mike Toller .... Libby's Band Member Tom Penn .... Libby's Band Member Plot Outline: An American teenager (Amanda Bynes) learns that her father (Colin

Firth) is a wealthy British politician running for office. Although she is eager to find him, she realizes it could cause a scandal and cost him the election.

1 – Based on the image, discuss the following questions:a) What is the movie about?b) Where does the movie take place?c) What is the movie genre (comedy, drama, action, thriller, etc.)?d) What does the characters’ dressing style reveal about them? 2 – After watching the movie, write its summary based on what you have learned

about it._______________________________________________________________

Viewing: Para assistirem ao filme, é aconselhável que os alunos recebam um roteiro, para guia de execução da tarefa, cujas informações precisam ser gerais para que haja uma compreensão do filme em seu conjunto. Segue, abaixo, o exemplo de uma atividade aplicada enquanto os alunos assistiam ao filme. Convém notar que eles podem terminar de preencher a ficha após o término do filme, no entanto, ao recebê-la, já devem ser orientados sobre o tipo de informação que precisam colher.

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Atividade 2_______________________________________________________________Watch the whole film and fill in the chart with some basic information:Title:Director:Classification:( ) romance ( ) adventure ( ) fiction ( ) thriller ( ) detective story ( ) horror ( ) ______________________Places:Time:Historical setting: Background: Main characters: Family and/or social relationship between the main characters:Main events:Outcome:

Events

The characters are working in a marriage as singer and waitress.

The protagonist arrives at his father’s home.

One of the characters is teaching the protagonist how to behave in British high society.

The two main characters come back to their home.

Outcome

____________________________________________________________

Setting

Where it happens

Who is involved?

_______________________________________________________________Como se pode observar, a atividade 2 é um exercício específico, no qual se pedem

informações como diretor, classificação do filme, personagens principais, locais onde ocorre a trama e os eventos principais.  Assim, o estudante consegue situar-se no filme e fixar detalhes que podem não ser percebidos por ele, mas por seus colegas e vice-versa. Tal atividade enfatiza a compreensão oral e a produção escrita.

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Pos-viewing: nesta parte, o professor pode aplicar atividades que analisem o filme em seus detalhes, como as diferenças sócio-culturais e lingüísticas entre americanos e ingleses. Este também é o momento para abordar atividades de compreensão e produção e para explorar aspectos gramaticais da língua alvo.

No exemplo que segue, atividade 3, pode-se observar a proposta, primeiramente, para tomar nota e, depois, para discutir os aspectos sócio-culturais e as variações lingüísticas que envolvem as duas culturas. Para a correção das atividades, é importante que o professor selecione previamente fragmentos do filme que possibilitem a comprovação das respostas. Assim, além de os alunos relembrarem detalhes do filme, eles exercitam a compreensão oral por meio das abordagens bottom-up e top-down, de uma maneira sistemática e detalhada.

O exercício 4 apresenta outro exemplo de compreensão oral, quando se trabalha com a letra de uma música da trilha sonora do filme que, neste caso, tem como tema Londres. Essa seleção deveu-se ao fato de o filme se desenrolar em New York e Londres. Optou-se, então, por uma das músicas da trilha sonora que aborda a vida em Londres. Como contraponto, selecionou-se outra – New York New York de Frank Sinatra – uma vez que essa cidade também serve de cenário no filme. Também, utilizaram-se as letras das músicas para abordar questões de interpretação que estão relacionadas às personagens do filme.

Nessa proposta, elaboraram-se questões sobre referenciação e sobre a relação entre as duas músicas com a trama do filme.

Atividade 3

Daphne Reynolds

Clarissa Payne

1 - Social class2 – Education background3 – Language Style4 – Behaviour5 – Dressing style 6 - Specific vocabulary

(British and American terms) 7 - Accent

Libby Reynolds Glinnys Payne

1 - Social class2 - Education background3 - Language Style4 – Behaviour5 – Dressing style 6 - Specific vocabulary

(British and American terms) 7 - Accent

Ian Wallace Amistead Stuart

1 - Social class2 - Education background3 - Language Style4 – Behaviour

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5 – Dressing style 6 - Specific vocabulary

(British and American terms) 7 - Accent

Atividade 4_______________________________________________________________ New York, New York

(Frank Sinatra)

( ) These little town blues, are melting away I'm gonna make a brand new start of it - in old New York If I can make it there, I'm gonna make it anywhere

( ) These vagabond shoes, are longing to stray Right through the very heart of it - New York, New York

( ) I wanna wake up in a city, that doesn't sleep And find I'm king of the hill - top of the heap

( ) It's up to you - New York, New York New York

( ) These little town blues, are melting away I'll make a brand new start of it - in old New York

( ) New York, New York I want to wake up in a city, that never sleeps

( ) And find I'm a number one top of the list, King of the hill A number one

( ) Start spreading the news, I'm leaving today I want to be a part of it - New York, New York

( ) If I can make it there, I'll make it anywhere It's up to you - New York, New York

1. Listen to the music and number it according to its correct order.

Reading comprehension

1. Find the referents of:a) It (v. 2):_________________b) It (v. 8):_________________c) It (v. 9):_________________2. In which way, can this music be related to Daphne?_______________________________________________________________

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3. Compare New York and London. Are they presented in the same way?_______________________________________________________________

London Calling

The Clash

London calling to the faraway townsNow war is_______________, and battle come down

London calling to the underworldCome out of the cupboard, you boys and girls

London calling, now don't look to ______________Phoney Beatlemania has bitten the dust

London calling, see we ain't got no swing'Cept for the ring of that __________________thing

[Chorus 1:]The ice age is coming, the sun's zooming in

________________ expected, the wheat is growing thinEngines stop running, but I ___________no fear

'Cause London is drowning, and I live by the river

London calling to the imitation zoneForget it, brother, you can go it alone

London calling to the zombies of deathQuit holding out, and draw another breath

London calling, and I don't wanna ____________But when we were talking, I saw you nodding outLondon calling, see we ain't got no high

Except for that one with the _______________eyes

[Chorus 2: (x2)]The ice age is coming, the sun's zooming in

Engines stop running, the wheat is growing thinA nuclear era, but I have no fear

'Cause London is drowning, and I live by the river

Now get this

London calling, yes, I was there, tooAn' you know what they_____________? Well, some of it was true!

London calling at the top of the dialAfter all this, won't you give me a ______________?

London calling

I never ___________ so much alike [fading] alike alike alike

Thanks to Ryan Makinen ([email protected]), Lenny ([email protected]), Patty ([email protected]), [email protected] for correcting these lyrics

SOURCE: www.plyrics.com

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Listening comprehension

1 - Listen to the music and pick up the words you hear.

Reading Comprehension

1 – Fill in the gaps with the words from the box.

Meltdown said have yellowy smile felt shout declared us truncheon

2 - What are the negative and positive things mentioned in the lyrics? Which one is predominant?

______________________________________________________________________

3 – Explain the meaning of “Phoney Beatlemania has bitten the dust”._____________________________________________________________________

_

4 – What is the relationship between the lyrics and the movie’s protagonist’s role? _____________________________________________________________________

_5 – What do the “ing” forms express? _____________________________________________________________________

_

Resultados

A partir desta experiência em sala de aula, pode-se constatar alguns resultados significativos de aprendizagem da língua alvo e também uma atuação mais participativa dos alunos, comprovados pelo aumento da participação no decorrer das aulas e pela avaliação deles sobre a metodologia aplicada. As respostas de alguns informantes estão transcritas nos seguintes fragmentos:

“The work with a movie was very positive. I knew English and American expressions.[…] This activity brings knowledge and must continue. The work with listening and music lyrics also are very interesting so they are a option to other semesters.” “When we study language through a film, it is more significant to us, because, as everything in our life happens in a context, in the film things also happen in contexts, that makes to understand the reasons of the characters’ actions.”“I liked very much the work with the movie (...) because I think that movie is also culture, growth.”“I can affirm that this different activity was productive and must continue despite the short time.”

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A partir dessas afirmações, é possível verificar que os alunos enfatizam seu interesse nas questões culturais e no aprendizado de uma língua inserida em um contexto. Segundo eles, isso ajuda na compreensão tanto da trama como da linguagem.

Com a utilização desse recurso, observam-se vantagens para o aluno e para o professor. Este, além de motivar os alunos, pode aproveitar a oportunidade de criar e adaptar o material produzido de acordo com as necessidades do aprendiz. Tal abordagem de ensino proporciona, ao professor, um aprofundamento e uma sistematização das competências e das habilidades lingüísticas. O aluno, por sua vez, estabelece um contato com a língua em uso real e com a cultura da língua alvo, apresenta maior motivação e envolvimento, aumenta o desempenho lingüístico e o senso crítico assim como o contato com expressões idiomáticas e gírias.

Cabe mencionar que também surgiram algumas dificuldades ao optar-se por uso de filmes. A primeira delas diz respeito à incompatibilidade de tempo entre a duração do filme e a da aula. A fim de contorná-la, combinou-se previamente com os alunos que, naquele dia, a aula seria iniciada mais cedo ou terminaria mais tarde, o que dependia da disponibilidade de horários deles. Quando os alunos faltavam no dia do filme, para que eles não ficassem deslocados na aula seguinte, disponibilizava-se o DVD, para que eles pudessem assistir ao filme em outro horário, ou até mesmo em casa.

Outra dificuldade que se enfrentou – talvez a mais desafiadora – foi a heterogeneidade lingüística das turmas, especialmente com relação à fluência. A fim de driblar tal diferenciação, os alunos foram distribuídos de forma que os mais proficientes pudessem interagir com os colegas menos proficientes e ajudá-los na resolução das tarefas. Essa solução funcionou razoavelmente bem, especialmente durante as discussões. Mesmo enfrentando dificuldades, o resultado final foi positivo tanto para o professor como para os alunos. Pode-se dizer que o desafio da heterogeneidade lingüística contribuiu para um maior comprometimento dos alunos com a própria aprendizagem.

Considerações finais

O uso de vídeo para o ensino de língua inglesa, como L2, é uma ferramenta rica para produzir materiais didáticos autênticos que explorem as quatro habilidades, especialmente a fluência, e também abordem os aspectos relacionados à cultura.

Filmes, programas televisivos, músicas, entre outros, podem oferecer excelentes oportunidades para desenvolver a fluência em língua inglesa e para motivar o aluno. Segundo Michelon (2001), a motivação é um fator determinante e fundamental para o sucesso na aprendizagem da língua estrangeira, pois, para que haja aprendizagem, é necessário que haja envolvimento do aluno.

É pertinente salientar que o desafio da seleção, organização, preparação e implementação do material didático autêntico, em sala de aula, exige do professor maior dedicação e alguns estudos complementares. Contudo, isso contribui para o desenvolvimento e para o aprofundamento das competências e das habilidades lingüísticas e profissionais do professor de língua estrangeira em pré-serviço.

Referências bibliográficas

BARKER, Chris & GALASINSKI, Dariusz. Cultural Studies and Discourse Analysis: A Dialogue on Language and Identity. London: SAGE, 2001. 192 p.BELLO, Pilar et al. Didáctica de las Segundas Lenguas: Estrategias y Recursos Básicos. Madrid: Santillana, 1990. 371p.

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DAVIS, Barbara G. Tools for Teaching. São Francisco: Jossey-Bass, 1993. 464 p. DONLEY, Kate M. Film for Fluency. English Teaching Forum, Washington, v. 38, n. 2, p. 24-28, abr. 2000. DÖRNYEI, Zoltan. Motivational Strategies in the Language Classroom. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 155 p.ISHIHARA, Noriko. & CHI, Julie C. Authentic Video in the Beginning ESOL Classroom: Using a Full-Lenght Feature Film for Listening and Speaking Strategy Practice. English Teaching Forum, Washington, v. 42, n. 1, p. 30-35, jan. 2004.LLOBERA, Josep R. An Invitation to Anthropology: The Structure, Evolution, and Cultural Identity of Human Societies. New York: Oxford, 2003. 288 p.MEINHOF, Ulrike H. Language Learning in the Age of Satellite Television. New York: Oxford University Press, 1998. 176 p.MICHELON, Dorildes. A Motivação da Aprendizagem da Língua Inglesa. In: ROTTAVA, Lucia; LIMA, Marília dos Santos (org.). Lingüística Aplicada Relacionando Teoria e Prática no Ensino de Línguas. Ijuí: Unijuí, 2004. p. 225-246.NAPOLITANO, Marcos. Como Usar a Televisão na Sala de Aula. São Paulo: Contexto, 1999. 137 p.___. Como Usar o Cinema em Sala de Aula. São Paulo: Contexto, 2004. 249 p.TAYLOR, Edward B. Anthropology: An Introduction to the Study of Man and Civilization. London: MacMillan, 1881. 448 p.

Anexo 1

Suggestions Americans abroad

1- City of joy – Cidade da esperança 2- Good Morning Vietnam – Bom dia Vietnã3- Local Hero – Momento Inesquecível4- Not without my daughter – Nunca sem minha filha5- All a Girl wants – Tudo o que uma garota quer6- The Buccanneers – The Buccaneers

Disability 1 – Awadenings – Tempo de despertar2 – Children of a lesser God – Filhos do silêncio3 – Forest Gump – Forrest Gump, o contador de histórias4 – Rain man – Rain Man, Encontro de irmãos5 – Shine – Shine, Brilhante

African – American 1 – Amistad – Amistad 2 – Color Purple – A cor púrpura 3 – Do the right thing – Faça a coisa certa4 – Ghosts of Mississipi – Fantasmas do passado 5 – Glory – Tempo de Glória6 – The long walk home – O longo caminho para casa?7 – Malcolm X – Malcolm X8 – Mississipi Burning – Mississipi em chamas

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Asian American 1 – Becoming American2 – Blue Collar and Buddha3 – Cambodian Donut Dreams4 – Dim Sim5 – Double Happiness (Canadá)6 – Picture Bride – A mulher prometida

Hispanic / Latino1 – Dances with wolves – Dança com lobos2 – Indian in the Cupboard – A chave mágica3 – Lakota Woman4 – PowWow Highway – Uma estrada sem limites 5 – Smoke Signals – Sinais de fumaça

Gay and lesbian 1 – Birdcage2 – Desert hearts – Corações do Deserto3 – La Cage Aux Folles – A gaiola das loucas 4 - Philadelphia - Filadélfia5 – Wedding Banquet – O banquete de casamento

Immigration / Immigrants 1 – Born in Absurdistan 2 – Green Card – Passaporte para o amor3 – Moscow on the Hudson - Moscow em Nova York

International 1 – Indochine (Vietnam) – Indochina 2 – Kadosh (Israel) – Kadosh, Laços Sagrados3 – Rent a friend (Netherlands)4 – Shall we dance (Japan) – Dança comigo5 – Schindler’s list (German) – A lista de Schlinder6 – The Gods must be crazy (Africa)7 – Out of Africa – Entre dois amores8 – Zorba the Greek – Zorba, o Grego9 – A year of living Dangerously (Indonesia) – O ano que vivemos em

perigo

Religion 1 – Crossing Delancey2 – Moonstruck – O feitiço da lua3 – A stranger among us – Uma estranha entre nós4 – River runs through it – Nada é para sempre5 – Witness – A testemunha6 – Yentl – Yentl

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FORMAÇÃO DE PROFESSORES – AS CORES DA METÁFORA

Patrícia Colavitti BragaMestre em Teoria Literatura – Unesp

Professora e Coordenadora de Extensão Universitária na Uniceres – São José do Rio Preto

Resumo: Na sociedade contemporânea, verificamos a emergência de que os cursos de graduação contribuam, factualmente, para a formação de professores que exerçam uma função social, que articulem seus saberes, planejem e concretizem o fazer pedagógico de forma realmente profissional, consciente de sua responsabilidade perante o aprendiz que lhe foi confiado, bem como perante aos outros integrantes do tecido social. Partindo dessa necessidade, propuse-mo-nos a investigar uma forma especial de olhar e mediar essa formação, e, para tanto, promovemos um diálogo entre a Didática, a Filosofia e as Artes, com o objetivo de possibilitar a constituição uma educação estética. Este trabalho traz a análise de obras de arte para o espaço da aula de formação de professores (em especial dos educadores que mediarão processos de leitura e de produção textual) e treina a habilidade de estabelecer relações, separações, análises e sínteses, de compreender o eco das entrelinhas de um texto, a organicidade da linguagem, a pluralidade de significados, a importância e o espaço que existe para a diversidade, enfim, utiliza princípios organizadores que permitem ligar os saberes e dar-lhes sentidos, exercício fundamental para o êxito do processo educativo. Os resultados dessa prática de leitura e reflexão sobre a educação e a formação do educador revelaram-se extremamente satisfatórios, o que, provavelmente, é reflexo do fato de que, às vezes, é complexo demais “olhar a realidade nos olhos”; porém, precisamos conhecê-la e lidar com ela, o que é possibilitado pela mediação promovida pela arte e seu poder de síntese, mimese e superação do real.Palavras-chave: Formação de Professor – Arte – Estética.

AbstractIn the contemporary society, we verified the emergency that the degree courses contribute, factualmente, for the teachers' formation that you/they exercise a social function, that you/they articulate yours know, drift and render doing pedagogic in way really professional, conscious of his/her responsibility before the apprentice that was him/her confident, as well as before to the other members of the social fabric. Leaving of that need, propuse-millstone-us to investigate a special form of to look and to mediate that formation, and, for so much, we promoted a dialogue among the Didacticism, the Philosophy and the Arts, with the objective of making possible the constitution an aesthetic education. This work brings the analysis of works of art for the space of the class of teachers' formation (especially of the educators that will mediate reading processes and of textual production) and he/she trains the ability to establish relationships, separations, analyses and syntheses, of understanding the echo of the implied sense of a text, the organicidade of the language, finally the plurality of meanings, the importance and the space that it exists for the diversity, it uses organizing beginnings that allow to tie them know and to give them felt, fundamental exercise for the success of the educational process. The results of that reading practice and reflection about the education and the educator's formation were revealed extremely satisfactory, which, probably, it is reflex of the fact that, sometimes, it is too complex to "look the reality in the eyes"; however, we needed to know her and to work with her, what is made possible by the mediation promoted by the art and his/her synthesis power, mimesis and superação of the Real.Word-key: Formation of Teacher - Art - Aesthetic

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Em nosso trabalho, enquanto educadora e investigadora dos processos de produção e leitura das várias formas de expressão textual, observamos que o olhar do ser humano e a forma como ele lê o mundo histórica e culturalmente, lê a si mesmo e aos outros, e expressa suas leituras e criações pode ocorrer de formas distintas e opostas entre si: na primeira, é tragado pelos encantos da superficialidade, na segunda irrompe nos limiares e nas fronteiras do espaço, do tempo, das várias manifestações da linguagem, da cultura, da arte e de suas façanhas, promovendo uma leitura integral e integrada, complexa, que concretiza a dialética entre cultura e literatura, procedimento aludido por Bakhtin em sua obra Estética da Criação Verbal:

A ciência literária deve, acima de tudo, estreitar seu vínculo com a história da cultura. A literatura é uma parte inalienável da cultura, sendo impossível compreendê-la fora do contexto global da cultura numa dada época. Não se pode separar a literatura do resto da cultura e, passando por cima da cultura, relacioná-la diretamente com os fatores sócio-econômicos, como é prática recorrente. Esses fatores influenciam a cultura e somente através desta, e junto com ela, influenciam a literatura (2000:362).

Para o malgrado daqueles que conhecem a importância e o poder da leitura, a primeira forma é a mais recorrente e estimulada pela vivência do aluno e pelas relações sociais que circundam a leitura e, não raro, pela própria instituição escolar.

Essa constatação atina para a necessidade de agirmos de maneira mais efetiva diante dessa dicotomia, que representa, por um lado, a manutenção da ordem social instituída, do poder das classes dominantes _ que assim o são, principalmente, por dominarem as formas de linguagem e os seus meios de produção _ e, por outro lado, a possibilidade de, por meio da leitura e da expressão das idéias através de múltiplas linguagens, verem surgir um indivíduo capaz de modificar a sua realidade e a realidade dos que estão a sua volta, de promover revoluções culturais e até mesmo históricas; pois transmutações efetivas na natureza do olhar, pensar e agir de um ser geram uma série de alterações subseqüentes na história e na cultura pessoal e coletiva. Nasce assim, o que Gramsci denominou intelectual orgânico.

A ação prática do educador que visa a contribuir na promoção de uma educação geradora desse intelectual orgânico apresenta nenhum objetivo original, nenhuma dificuldade ou obstáculo instransponível; porém, não deixa de ser um desafio árduo que só poderá ser vencido pela complexidade, como chama a atenção o filósofo Edgar Morin em A Cabeça bem-feita (2003). A educação responsável precisa centrar seus objetivos e os seus fazeres pedagógicos na ação de promover um movimento inverso no quadro educacional ora apresentado, a fim de possibilitar a formação do sujeito apto a lidar com a complexidade das relações mundanas e capaz de se deixar provocar e, a partir disso, promover revoluções íntimas, transformando a sua realidade individual, bem como adquirindo mobilidade para promover as outras revoluções referidas acima.

Porém, é importante acentuar que esse perfil profissional que não surge de forma natural ou instintiva, conforme o ambiente exige (tal qual ocorre com o animal, que conhecido por mudar a sua cor para se adaptar a um ambiente ou a uma situação usa, instintivamente, tal estratégia para passar despercebido e se proteger de potenciais predadores); pois não é possível tornar-se esse tipo de educador sem uma formação universitária sólida, dialética que persegue a primazia da práxis (ensino que é resultado da relação entre a teoria e a prática, em um contexto social e humanístico que é parte integrante e fundamental do processo de ensino-aprendizagem), que se concebe sob a resistência de pilares básicos: consciência, responsabilidade, conteúdo e Prudência. Percebe-se, todavia, a ocorrência do oposto há uma inversão de propósitos e tomando uma reflexão de Lichnerowicz, presente na obra A cabeça bem-feita de Edgar Morin:

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Nossa Universidade atual forma, pelo mundo afora, uma proporção demasiado grande de especialistas em disciplinas predeterminadas, e, portanto, artificialmente delimitadas, enquanto uma grande parte das atividades sociais, como o próprio desenvolvimento da ciência, exige homens capazes de um ângulo de visão muito mais amplo e, ao mesmo tempo, de um enfoque dos problemas em profundidade, além de novos progressos que transgridam as fronteiras históricas das disciplinas (2003: 13).

Por assim ser, dialogando com Edgar Morin sobre a formação do professor na sociedade contemporânea, verificamos a emergência de que os cursos de graduação contribuam factualmente para a formação de um ser que exerça uma função social, que planeja e concretiza os seus saberes e o fazer pedagógico de forma realmente profissional, consciente de sua responsabilidade perante o aprendiz que lhe foi confiado para a formação, bem como perante aos outros integrantes do tecido social. Esse compromisso significa formar-se como um educador apto a produzir conhecimento e a pactuar com seus alunos na concepção de um processo de ensino-aprendizagem em que o objetivo maior, sejam a desfragmentação do conhecimento, a concepção e a compreensão da complexidade do saberes do real e das relações econômicas, políticas, sociológicas, afetivas e artísticas que constituem a vida em sociedade. Para Morin (2003:38):

Complexus significa que foi tecido junto. Realmente, há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos ao todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre o objeto do conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Como os desafios da complexidade nos confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável é fundamental que a educação promova a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global.

Em sua obra A cabeça bem-feita (2003), Morin nos explica que é preciso vencer o desafio dos desafios “o desafio da complexidade”, para tanto, há necessidade de se articular os conhecimentos de maneira complexa, pois, somente dessa forma pode-se superar uma visão delimitada da realidade e a produção de saberes fragmentados e, desse modo, ampliá-la e substituí-la por uma visão de maior amplitude, que possibilite ao indivíduo a resolução de seus problemas na forma como esses se propõem: polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.

No atual contexto econômico, social e intelectual em que vivemos democratizar as possibilidades de ascensão dos indivíduos significa educar por meio da negação e extinção de uma inteligência que visa a se constituir por meio da informatividade fragmentada, como se cada disciplina fosse desarticulada da outra, como se a arte e a ciência não pudessem se aproximar, como se o homem fosse somente a síntese do imediato e ou de uma hiper-especialização, como se a leitura de um texto não fosse fruto de múltiplas relações entre as vivências de um ser, das interpretações que outros leitores teceram, da relação do texto em foco com outros textos verbais e não verbais. Sobre essa questão, Morin se refere a François Recanatti a compreensão dos enunciados é um processo não-modular de interpretação que mobiliza a inteligência geral e faz amplo apelo ao conhecimento do mundo (2004:39).

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A inteligência geral organiza, integra as informações por meio da estimulação da habilidade de separar, relacionar, analisar e sintetizar para resolver problemas de natureza complexa. Percebe-se, dessa forma, que há uma correlação entre a mobilização dos conhecimentos de conjunto e a ativação da inteligência, e, por isso, contrapõe-se ao tipo de inteligência que se concebe por meio de um processo bancário, em que o professor deposita algo que irá “sacar” posteriormente. Essa educação similar a uma operação bancária e trouxe à tona uma forma de inteligência intensivamente difundida pelo ensino tradicional e que, infelizmente, vemos defendida ainda na atualidade; ela separa, isola os objetos, dissocia problemas, separa as disciplinas, e atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão, pois isola os saberes em seus conjuntos, fazendo o aprendiz perder, por atrofia, a aptidão inerente à mente humana de contextualizar saberes sobre o homem, a sociedade, a ciência e a arte. Para Morin (2003:39), essa inteligência cega o indivíduo, é inconsciente e irresponsável.

Por esse motivo, a concretização da proposta de desempenhar o papel de educadores, ao invés de reprodutores de desigualdades, precisa ser desencadeada, e, dessa forma, finalmente, democratizem-se as probabilidades de desenvolvimento da inteligência geral da mente, pois quanto mais poderosa é a inteligência geral, maior é a sua faculdade de tratar problemas especiais. A compreensão dos dados particulares também necessita da ativação da inteligência geral, que opera e organiza a mobilização dos conhecimentos de conjunto em cada caso particular. Sendo assim:

A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais, de forma correlata, estimular o uso da inteligência geral. Este uso total pede o livre exercício da curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante a infância e a adolescência, que com freqüência a instrução extingue e que, ao contrário, se trata de estimular, ou caso adormecida, de despertar.Na missão de promover a inteligência geral dos indivíduos, a educação do futuro deve ao mesmo tempo utilizar os conhecimentos existentes, superar as antinomias decorrentes do progresso e identificar a falsa racionalidade. (2003:39)

Para tanto, o autor afirma que devemos criar uma cultura de “des-saber o sabido” por meio da revisitação e da reforma do pensamento. Há que se empenhar como fizera Hércules - em um dos seus trabalhos - em vencer a Hidra, um perigoso monstro de bafo mortal e várias cabeças “bem-cheias” (sendo uma delas imortal), mas delimitadas pelo instinto destruidor de vidas, histórias, trajetórias. O mito nos conta que essas cabeças se duplicavam quando degoladas, emergindo do lugar de onde foram tiradas, réplicas monstruosas na superficialidade das aparências e, por se dividirem sobremaneira, formavam um “mar de cabeças sedentas e desesperadas”, no qual os homens naufragavam. Hércules, com o auxílio de seu sobrinho, aprendeu que para vencer a Hidra de Lerna era preciso cauterizar com o fogo o local de onde a cabeça fosse cortada e o herói assim o fez. Porém, teria que enfrentar a cabeça imortal que permanecia viva mesmo depois de cortada; e, por isso, seguiu o conselho de Hermes, abriu uma cova, enterrou a cabeça, pôs uma pedra sobre ela e vigiou-a pelo resto da vida. Salis em Ócio Criador, Trabalho e Saúde – lições da antiguidade para a conquista de uma vida mais plena em nossos diais (2004) utiliza essa história para ilustrar as vicissitudes humanas; em relação à cabeça imortal afirma que ela é como os nossos vícios, mesmo quando os vencemos, eles continuam vivos e, a qualquer momento podem contra-atacar (p.134).

Relacionando esse mito às nossas reflexões sobre a formação de professores, vemos que a metáfora das cabeças que ressurgem é perfeitamente aplicável a nossa realidade, pois, apesar de toda a adversidade encontrada, no que se refere ao processo de ensino-

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aprendizagem, por muitos professores de cabeça bem-cheia (que assim o são por escolha, imposição do contexto ou por não terem sido trazidos à luz), observamos que eles, com seu hálito de hidra insistem em tentar ensinar sem se adequar à nova realidade educacional, e, dessa maneira, acabam por amortizar o desejo de aprender que toda criança leva junto de si no primeiro dia de aula e, quase sempre, em vários dias seguintes também.

Além disso, insistem em fazer renascerem suas cabeças de Hidra, que deglutem, mas nada produzem, ou então, não se mostram vigilantes em relação à cabeça imortal, aprisionada, mas que pode contra-atacar a qualquer tempo.

A única forma de vencer essas cabeças é, assim como o fizera Hércules, aprender a cauterizá-las com o fogo do nascimento de uma nova forma de existência intelectual: ser guiado por uma “cabeça bem-feita”, uma cabeça apta a organizar os conhecimentos e evitar sua acumulação estéril, fruto de uma educação que, segundo Morin, (2003: 33) acabe com a disjunção entre as culturas científica e das humanidades e que, por isso, “daria capacidade para se responder aos formidáveis desafios da globalidade e da complexidade na vida cotidiana, social, política, nacional e mundial”. E, além disso, manter-se vigilante, revisitando e reformando constantemente o pensamento. Salis explica que:

Sócrates dizia aos jovens que não existiam pessoas viciadas ou virtuosas de nascença; todos nasciam com vícios e virtudes, mas a grande diferença surgiria ao longo da vida, pois alguns iriam dedicar-se ao governo de seus vícios, enquanto outros a eles se abandonariam; aí, sim, surgiria a grande diferença entre o homem virtuoso e o corrupto. Completava ainda dizendo que “o exercício da virtude não era senão a eterna vigilância do vício”. E esta era uma das atividades fundamentais do ócio voltado à transcendência: era dedicar diariamente um tempo para examinar os vícios guardados debaixo da pedra, que cada um tinha em seu imaginário, e buscar formas de mantê-lo sob controle (2004:134-135).

Partindo dessa reflexão é que nos propusemos a investigar uma forma especial de olhar a formação do professor contemporâneo; acreditamos que um diálogo entre a Didática, a Filosofia e as Artes impulsiona-nos e auxilia-nos a vencer o desafio da complexidade e a encontrar “a sabedoria que perdemos no conhecimento” (Morin, 2003:17).

Em sua obra Compreender e ensinar no mundo contemporâneo Rios, ao refletir sobre os desafios apresentados ao educador na atualidade, atenta que estamos vivenciando um momento peculiar no ensino, na medida em que temos um mundo que demanda do docente algo mais complexo do que aquilo a que ele estava habituado. Em seu estudo, a autora afirma que se requer, então, mais do que nunca, da Filosofia da Educação o olhar largo, abrangente, na intenção de ver o processo educativo em todos os aspectos sob os quais se apresenta e dos diversos pontos de vista em que se pode enfocá-lo (2001:56).

Por meio da filosofia da educação, o educador pode transcender o espaço que lhe deram como mero transmissor de conhecimento, como se fosse apenas um canal entre o saber já constituído por outrem e o aluno, que não sabe de sua condição de aprendiz, de ser em formação, enfim, acreditar que: O ensino não é, portanto, um movimento de transmissão que termina quando a coisa que se transmite é recebida, mas o “começo do cultivo de uma mente de forma que o que foi semeado crescerá (OAKESHOTT, 1968:160).

Para tanto, o processo de ensino-aprendizagem precisa ser revisitado e reestruturado e nesse espaço de reposicionamento, de reforma do pensamento sobre a prática, sobre o currículo, sobre o aluno e sobre a própria condição de educador. Vale ressaltar que essa Filosofia da Educação:

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(...) precisa contar com a contribuição de todas as áreas do conhecimento, mais especialmente das ciências da educação, que também são provocadas a rever seus estatutos, a atualizar o diálogo com as práticas. A Didática necessita cada vez mais dialogar com a diversidade dos saberes da docência que estão a sua volta. Ela enfrenta o desafio de buscar alternativas para pensar o ensino (...) (RIOS, 2001: p.57).

A execução desse processo precisa ser delineada pela Prudência. E em sua filosófica, São Tomás de Aquino explica que ser prudente é pautar as ações por uma “recta, ractio, agibilium”, ou seja, uma reta razão de agir, a partir da constatação da verdade efetiva dos fatos. Sobre tal abordagem de se conduzir o fazer pedagógico também constata Coelho em Formação do educador: A docência é um processo complexo que supõe uma compreensão da realidade concreta da sociedade, da educação, da escola, do aluno, do ensino-aprendizagem, do saber, bem como um competente repensar e recriar do fazer na área da educação, em suas complexas relações com a sociedade (1996:38).

No entanto, não raro, convivemos com uma realidade adversa a essa idéia, pois muitos professores ainda estão impedidos de enxergar a realidade e insistem em negar essa verdade. Daí que, quase sempre, são levados a entrar no covio da Medusa buscando a verdade _ não a efetiva dos fatos, mas a que aprenderam a desejar_ e são obrigados, por sua incredulidade ou insalubre curiosidade a olhar-lhe diretamente nos olhos e, assim, tornam-se pedras acomodadas em sua imobilidade pedagógica e social. Segundo relatos de nossos alunos em campos de estágio, de professores em exercício (feitos em encontros, cursos, simpósios, congressos), os professores que ousam entrar em sala de aula, munidos somente de um instrumental pedagógico ultrapassado (informação, giz e lousa) e tentam encontrar ou despertar a verdade do que acreditam ser educação, olham nos olhos de seus alunos como se mirassem tábulas rasas e disponíveis para se depositar informação; e é nesse momento que são flagrados pela decepção, realmente sofrem o castigo das “mil serpentes da realidade” e petrificam-se, ficam sem ação racional, quase sempre gritam, antes de ficarem paralisados (no que se refere a ensinar), perdem sua condição de educadores e até mesmo a sanidade física e mental, haja vista o crescente número de pedidos de afastamento de professores (especialmente na rede estadual e municipal de ensino) por problemas físicos e psicológicos.

Em sua obra Still life with four sunflowers:

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Van Gogh mostra-nos uma visão que pode ser associada aos professores acima referidos: são como flores ceifadas, cansadas, desgastadas pelo tempo e pela luta contínua, companheiros que comungaram do mesmo posicionamento filosófico e prático-pedagógico, um dia vivo, quente, iluminado, mas que negaram as mudanças que o próprio corpo social pediu; o amadurecimento das sementes, as quais serviriam para alimentar alguns e para fazer perpetuar “a espécie dos girassóis”.

Nesse processo, suas hastes, vítimas culpáveis parecem dirigir preces ou pragas ao céu e murcham; porém, morrem resistentes, impedidos de sorver a abundante água que escorre, no que para eles, talvez pareça um precipício, um lugar que não se pode, quer ou se deve alcançar... ironicamente, um lugar que alcançariam se simplesmente voltassem as suas hastes para o outro oposto, bastaria querer encontrar soluções no avesso das suas atitudes, dos seus ransos defendidos.

Provavelmente faltou a esses girassóis a compreensão de sua condição de flores, formadas pelas centenas de pétalas, pela gravidez originária de suas sementes; suas pétalas não se abriram em busca do sol, ao contrário, ensimesmaram-se, suas hastes tornaram-se fortes para segurar o próprio peso, convertido em fardo. Tais girassóis se privaram de cumprir seu complexo destino: ser útil em todos os seus talentos, girar, agir conforme o contexto, buscar a luz em múltiplas direções, como falta aos professores cumprir sua complexa responsabilidade: ensinar. Delicada e, paradoxalmente, grotesca ironia da vida, da arte e pedagogia.

Dessa maneira, a proposta desse trabalho é o convite para que busquemos o sol “nas viagens às terras alheias”. É aprender com os feitos de Sócrates: segundo Jaeger em Paidéia (2001:516) “Xenofonte diz-nos que na companhia de seus jovens amigos Sócrates revia as obras dos antigos sábios, isto é, dos poetas e dos pensadores, para delas tirar algumas teses importantes” ou seja, olhar para os feitos dos grandes homens para contemplar seus acertos e evitar seus erros”, como sugeriu também Maquiavel em sua obra O Príncipe (2002), já que ser educador hoje, também se relaciona com o Príncipe e sua necessidade de se manter no poder.

É válido ressaltar que essa metáfora do “Príncipe Educador” não se aplica a uma visão de professor que rege os processos de ensino-aprendizagem com cetro nas mãos, mas sim de um professor que rege como um maestro consciente das possibilidades e da

38 GOGH,V.V. Four Cut Sunflowers. August-September 1887. Oil on canvas. Rijksmuseum Kröller-Müller, Otterlo, Netherlands. Disponível em www.vangoghgallery.com. Acesso em 2 de mai.2004.

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necessidade de autonomia de cada músico, do saber aliado à liberdade e à vontade promovendo uma relação íntima e criativa com o instrumento, reveladora da universalidade e da atemporalidade da obra, ou seja, um educador que fará a manutenção da condição de quem tem o poder de “educare”, que significa criar, alimentar e fazer sair, condição essa a de um príncipe mediador das conquistas de seu povo e, depois, os liberta para que possam instituir seus próprios principados.

Munidos desse discurso em que se mesclam sombras e utopias, embriões de toda mudança, caminhamos em um percurso de investigação da direção da estrada de tijolos amarelos que nos levará ao “mundo de Oz”, onde os objetivos podem ser realizados, onde encontramos a coragem, o coração, o cérebro e o lar que nos faltam mediante nossa crença e merecimento, encontramos outras flores-sol amarelas, as da série Girassóis, de Jocelino Soares - pintor Rio-pretense. Flores as quais poderíamos associar à metáfora plástica da imagem do educador que buscamos: girassóis girantes reunidos em capítulos e inflorescências, gigantes em sua ciência de girassol, resistentes e de profundas raízes, personificados pela arte, com os pés em solo real, sorvendo dele suas dores e suas delícias. Olhando nos olhos do Sol, buscando a verdade deles, olhando-a em nas várias dimensões de seus fascínios e perigos. Girassóis prudentes, retos em suas razões de agir.

Movendo-se em sua infinita dança angular, os girassóis de Jocelino fazem o que é necessário, partindo da verdade efetiva dos fatos, da luz emitida pelo sol. Eles vivem para alimentar pássaros ousados, afoitos para se alimentar e, posteriormente, semear e, alimentam até mesmo os que comem por comer ou são apenas aproveitadores. Essas flores girantes vivem para explodir-se em mil sementes e continuar o ciclo da arte de ensinar a ser “Girassol”, metáfora do homem que venceu o desafio da complexidade, que soube seguir o percurso iluminado e celestial do sol - um ser social.

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A obra de 2003, pertencente à série “Girassóis” de Jocelino convida-nos também a compreender o desafio da globalização sobre o qual Morin alude, as partes especiais em sua natureza de flor, de árvore, de tinta, de cor, de pincel, de artista, articulam-se em compõem o todo, e a obra ganha força e valor pela sua visão integral, integrada, global. Os girassóis que fazem a manutenção do dia lembram-nos o que João Cabral de Mello Neto em sua obra A Educação pela Pedra ensinou sobre a necessidade da junção entre os pares (galos) no processo pedagógico para anunciarem e fazerem nascer a manhã, a educação:

1.  Um galo sozinho não tece uma manhã:   ele precisará sempre de outros galos.  

De um que apanhe esse grito que ele   e o lance a outro; de um outro galo   que apanhe o grito de um galo antes   e o lance a outro; e de outros galos   que com muitos outros galos se cruzem   os fios de sol de seus gritos de galo,   para que a manhã, desde uma teia tênue,   se vá tecendo, entre todos os galos.  

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2.   E se encorpando em tela, entre todos,   se erguendo tenda, onde entrem todos,   se entretendendo para todos, no toldo   (a manhã) que plana livre de armação.  

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo   que, tecido, se eleva por si: luz balão.  

No entanto, não podemos nos esquecer de que se por um lado a globalização apresenta-nos a possibilidade de articular diálogos para a construção de um saber integrado, por outro lado, ela nos tenta, também, por seus excessos, à superficialidade e à expansão descontrolada do saber. Morin atenta para o fato de que:

O crescimento ininterrupto dos conhecimentos dos conhecimentos constrói uma gigantesca torre de Babel, que murmuram linguagens discordantes. A torre nos domina porque não podemos dominar nossos conhecimentos. T.S. Eliot dizia: “Onde está o conhecimento que perdemos na informação?” O conhecimento só é conhecimento enquanto organização, relacionado com as informações e inserido no contexto destas. As informações constituem parcelas dispersas de saber (2003:16).

Como discorreremos no decorrer do trabalho, nossa proposta de ensino de leitura e produção de textos é enviesada pela busca de referências na história da literatura, da arte e da vida do próprio homem, pois acreditamos ser extremamente difícil ler uma obra como se ela fosse uma parte destituída de um todo individual (autor) e social (leitor, suas vivências e outras obras), bem como não pactuamos com essa prática de produção textual a partir do vazio, que se contrapõe à prática dos artistas consagrados.

Nosso intento é levar o leitor e produtor de textos a conhecer as partes articuladas ao todo em cada tempo e espaço, para que, assim, fazendo “ciência das linguagens”, possa-se investigar seus processos de construção e de desconstrução no decorrer dos tempos, e, depois, empenhar-se em descobertas próprias.

É importante ressaltar a necessidade de promover a expansão do saber que referenda a leitura e a produção textual, porém, é imprescindível trabalhar para que ocorra uma organização intertextual, multi e transdiciplinar, mediada pela inteligência geral da mente39.

Fazer nascer a sabedoria, trazê-la à luz é um desafio aos educadores, em especial aos de Língua, Produção de textos e Literatura, pois se a globalização propõe a “biblioteca sem muros” (Chartier, 1994) ela também propõe uma multiplicidade de informações que se acumulam, que se estocam e tornam-se estéreis, pois não dialetizam, não adquirem sentido prático e político. Segundo Jaeger (2001:516) “Sócrates em IV,2,11, censura que o leitor, deixando-se levar por leituras múltiplas e enciclopédicas, esqueça a mais importante de todas as artes: a política, que aglutina todas as outras”.

Em sua obra A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas nos séculos XVII e XVIII, Chartier utiliza uma citação de Certeau para apontar um norte que se revela extremamente eficiente: o educador (leitor) deve, por meio da leitura, tornar-se “viajantes de

39 propulsora da habilidade para ler e produzir textos complexos, que nos declarem como atores sociais. Textos esses que promovam a “Maiêutica” referida por Sócrates e inspirada no trabalho de sua mãe, que era parteira.

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terras alheias” e nos apropriar-se dos saberes nela produzidos para a composição dos próprios:

Bem longe de serem escritores, fundadores de um lugar próprio, herdeiros dos lavradores de antanho - mas, sobre o solo da linguagem, cavadores de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes: eles circulam sobre as terras de outrem, caçam, furtivamente, como nômades através de campos que não escreveram, arrebatam os bens do Egito para com eles se regalar (1994: 11).

Voltando dessas viagens, trazemos sínteses das vivências que construímos e foi

justamente isso, o que nos levou a repensar a formação de educadores e de educando a partir delas. Vale lembrar, que esse trabalho propõe uma que visão e um relato de experiência que não almeja solucionar em definitivo a crescente distância entre professor e aluno, entre saber e informação; mas sim, a arregalar olhares de educadores e educandos.

Pretendemos, inicialmente, relatar os diálogos que ouvimos e dos quais participamos nessas terras e o que aprendemos deles sobre a formação de professores e, posteriormente, sobre a constituição do texto, da leitura e do leitor. Ensinar a ler e escrever o mundo nos parece ser sinônimo de aprender no mundo, do mundo e para ele.

Por isso, utilizaremos a leitura de obras de arte (literatura, pintura, cinema, escultura) para pensar a formação de formação de professores, mas que tem surtido efeito nas disciplinas de Didática e Práticas Pedagógicas que ministramos nos cursos de graduação: Licenciatura em Letras, Ciências Sociais e Normal Superior – o que talvez se explique pelo fato de que ainda é mais fácil refletir sobre a nossa condição a partir de metáforas verbais ou visuais, já que dessa forma, o afastamento necessário à racionalização é mais provável, e, ao mesmo tempo, o saber dele extraído, permanece como novo traço do pensamento rearticulado.

A leitura de imagens é uma prática utilizada com fins estéticos, mas também didáticos, desde a antiguidade. Segundo, Manguel (2001), muito antes da democratização da leitura de textos verbais, havia uma “democratização” da leitura visual. Dessa maneira, a educação popular, principalmente, promovida pela igreja, fez uso de uma “alfabetização visual” como meio propulsor para se ensinar o que estava verbalmente registrado nas escrituras sagradas: Em 1025, o símbolo de Arras declarou que “aquilo que a gente simples são podia aprender lendo as escrituras poderia ser aprendido por meio da contemplação de imagens40. E ainda:

(...) o papa Gregório, o Grande, faria eco às idéias de Nilo:”Uma coisa é adorar imagens, outra é aprender em profundidade, por meio de imagens, uma história venerável. Pois o que a escrita torna presente para o leitor, as imagens tornam presente para o analfabeto, para aqueles que só percebem visualmente, porque nas imagens os ignorantes vêem a história que têm de seguir, e aqueles que não sabem as letras descobrem que podem, de certo modo, ler. Portanto, para a gente comum, as imagens são equivalentes à leitura. 41

Assim, por saber do poder didático das imagens, a igreja as utilizou para segregar suas idéias, para doutrinar os fiéis que não tinham e não poderiam ter, em função da manutenção das relações sociais instituídas, o acesso à leitura, pois a leitura é libertadora e, portanto, 40 (Sínodo de Arras, capítulo 14, em Sacrorum nova et amplíssima Collectio, ed. J.D. Mansi (Paris e Leipzig, 1901-27), citado em Umberto Eco, IL prolbema estético di Tomaso d´ Aquino)41 (Citado em Claude D´Agens, Saint Gregoire lê Grand:culture et experience chrétienne (Paris, 1977) (p.116)

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perigosa, para as classes sociais dominantes. E isso foi feito tanto por meio das ilustrações nas paredes das igrejas, quanto por meio dos livros de imagens. E, ainda, Manguel explica o sentimento de pertença promovido pela visão sub-repetida das imagens:

Destinadas aos pobres ou aos seus pregadores, o certo é que tais imagens ficavam abertas no atril diante do rebanho, dia após dia, durante todo o ano litúrgico. Para os analfabetos, excluídos do reino da palavra escrita, ver os textos sacros representados num livro de imagens que eles conseguiam reconhecer ou “ler” devia induzir um sentimento de pertencer àquilo, de compartilhar com os sábios e poderoso a presença material de Deus. Ver essas cenas de um livro _ naquele objeto quase mágico que pertencia exclusivamente aos clérigos letrados e eruditos da época – era bem diferente de vê-las na decoração popular da igreja, como sempre ocorrera no passado. Era como se de repente as palavras sagradas, que até então pareciam ser propriedade de uns poucos, os quais podiam ou não compartilhá-las com o rebanho, tivessem sido traduzidas numa língua que qualquer um, mesmo uma mulher “pobre e velha” e sem instrução como a mãe de Villon, podia entender (2001:120).

E, então, nos apropriamos desse saber sobre o poder da imagem e da capacidade que temos de apreendermos, delas, a palavra calada e, a partir daí, promovermos um diálogo entre a nossa realidade e a realidade flagrada ou sugerida pela arte. Dessa forma, adentramos em um universo necessário para a formação e para a reforma do pensamento do educador: o da reflexão, do resgate e da constituição de outras imagens mentais que têm também o poder de ensinar.

Como já enunciamos, os resultados dessa prática de leitura e reflexão sobre a educação e a formação do educador revelaram-se extremamente satisfatórios, o que, provavelmente, é reflexo do fato de que, às vezes, é complexo demais a olhar a realidade nos olhos, porém, precisamos conhecê-la e lidar com ela. Acontece de suportarmos, superarmos e aprendermos mais com a imagem do mar de rostos de Dante Aliguiere, na “Divina Comédia”:

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do que nos sentirmos como mais um rosto nesse emaranhado de faces ou enxergamos o clamor dos olhos grandes de nossos alunos por meio dos olhos grandes das pequenas mulheres de Jocelino. Mulheres de grandes olhos, a espera que o leite santificado venha nos alimento, como fez às almas do purgatório.

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Essa prática envolve um processo de acrescentar às leituras específicas sobre a formação de educadores às reflexões delas advindas e sugerem outros caminhos em que as encontramos: o caminho das artes que revelam a história social por meio de suas retóricas singulares45. É importante ressaltar que ao fazermos essa leitura das obras, enviesadas pela educação não pretendemos explicar as imagens, como afirma Manguel em Lendo imagens:

42 Doré, G. ? DORÉ, G. (Ilustração do canto XXXI) da obra de A Divina Comédia de Dante Aliguiere. São Paulo: Gráfica e Editora Edigraf Limitada, 1958.p.140.

43 SOARES,J. Série Mulheres de Olhos Grandes. Painel da Câmara Municipal de São José do Rio Preto.44 DELL,AMATRICE, F. 1508.45 Aristóteles em sua obra “Arte Retórica” define retórica como a arte de se fazer acreditar. Nesse sentido, a obra pictórica é concebida por meio de um intenso processo de elaboração realizado a partir de cores. tons, sombras, formas, que constituem imagens, as quais sugerem múltiplos sentidos e significados que nos encantam, manipulam, convencem da verdade especial, única que projeta.

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Leituras críticas acompanham imagens desde o início dos tempos, mas nunca efetivamente copiam, substituem ou assimilam as imagens “Não explicamos imagens” comentou com sagacidade o historiador da arte Michael Baxandall “explicamos comentários a respeito de imagens.” Se o mundo revelado em uma obra de arte permanece sempre fora do âmbito da sua apreciação crítica. “A forma”, escreve Balzac, “em suas representações, é aquilo que ela é em nós: apenas um artifício para comunicar idéias, sensações, uma vasta poesia (2001:29)

Essa interação já é feita há muito tempo por estudiosos que promoveram a relação entre poesia, narrativa, música e educação. E. por ser assim, pensamos ser pertinente promovê-la também com a pintura e a escultura, pois, desde o início dos tempos, a pintura é utilizada para retratar o humano e suas ações, além disso, são importantes elementos de registro histórico e funcionam como direção de conduta para as gerações vindouras. Manguel em O espectador comum: a imagem como narrativa explica que:

Antes das figuras de antílopes e mamutes, de homens a correr e de mulheres férteis, riscamos traços ou estampamos a palma das mãos nas paredes de nossas cavernas para assinalar nossa presença, para preencher um espaço vazio, para comunicar uma memória ou um aviso, para sermos humanos pela primeira vez (2001:30).

Assim, desafiado pelas pinturas, desde o princípio dos tempos, o homem surpreende-se e deve ir ao encontro dela como se entrasse em uma conversa (Roger de Piles,1676); nesse diálogo, encontra-se e aprende. Por intermédio da obra pictórica, pensamos o ser (educando e educador), que são “manifestações artísticas da natureza humana” e produzem arte, por meio da arte (a representação do real).

Vale ressaltar que por produzir arte intermédio da arte não significa afastar-se da ciência (a explicação do real), mas sim propor-lhe um casamento, o qual talvez possa gerar os homens que precisamos: autônomos, sensíveis, curiosos, corajosos, artistas, na concepção referida por Read o objetivo da educação é a formação de artistas _ pessoas eficientes nos vários modos de expressão (2001:12).

Essa abordagem traz a análise de obras de arte para o espaço da aula para formação de professores e treina a habilidade de estabelecer relações, separações, análises e sínteses, de compreender o eco das entrelinhas de um texto, a organicidade da linguagem, a pluralidade de significados, a importância e o espaço que existe para a diversidade, enfim, utiliza princípios organizadores que permitem ligar os saberes e dar-lhes sentidos (MORIN,2003:22), já que sua prática se inicia com o aborto da acomodação e instiga, estimula e desperta a curiosidade que muito frequentemente é aniquilada pela instrução.

Assim, o objetivo dessa prática é encorajar, instigar a aptidão interrogativa e orientá-la para os problemas fundamentais de nossa própria condição e de nossa época (MORIN,2003:22). Espera-se, com tal procedimento, que o educador que concebe sua formação nesses moldes tenha mais possibilidades de ensinar para a superação da fragmentação e da superficialidade, a fim de que os seus alunos possam ler o mundo a si mesmos como um todo e não como se tudo fosse constituído por partes esparsas, que não se relacionam, complementam, interagem.

Com base nisso, este trabalho apresenta um diálogo entre arte e realidade do ensino, entre o homem e a arte que ele cria e que também o recria, o sintetiza e, às vezes, o supera, ou ensina a superar, bem como entre a Prática pedagógica, a Filosofia e a Didática, para que,

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assim possa-se fazer a Paidéia46 _ e a Maiêutica47 de professores de Linguagens e produtores de Linguagem.

Enfim, temos ciência e fé na importância do desenvolvimento humano e educacional por meio da estimulação dessas habilidades e competências, por meio de práticas em que ciência e arte interagem. Tal qual pólen de girassol essas possibilidades de aprendizagem, despertadas por essa forma de trabalho, devem ser lançadas ao vento para que proliferem e façam nascer flores girantes, em cada lugar em que o florescimento se faça possível e ou necessário.

Buscando caminhos possíveis para uma educação de melhor qualidade, não pretendemos conceber um modelo de professor, já que a idéia de modelo se dissolve na discussão sobre os vários conceitos de perfeição. Ao ousarmos refletir sobre o perfil do professor, temos que dialogar com a complexidade da experiência pedagógica e nos orientarmos no sentido de que o professor que melhor ensina é também o que melhor se adequa, o que melhor promove um dueto entre a cultura escolar e a cultura do aprendiz.

E, assim, buscaremos, nas terras alheias, consagradas por todas as artes, em especial a literatura, a sedimentação para os nossos pés de girassol.

Bibliografia

BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria E. Galvão. 3ªed. São Paulo: Martins Fontes,2000.CHARTIER, R. A ordem dos livros – leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Trad. de Mary Del priori – Brasília: Editora Universidade de Brasília,1999._____________. (dir.) Práticas de Leitura. Trad. de Cristiane Nascimento. Estação Liberdade. ____________. R. CAVALLO, G. (org.) História da Leitura no Mundo Ocidental I. Trad. Fulvia M.L. Moretto (italiano); Guaciara Marcondes Machado (francês); José Antônio de Macedo Soares (inglês). Revisão técnica Maria Thereza Fraga Rocco. São Paulo: Ática, 2002. 1e da 2ª.reimpressão. COELHO, I.M. Formação do Educador: dever do estado, tarefa da universidade. In: Formação do Educador. São Paulo: Editora Unesp, v.1.1996.JAEGER,W. Paidéia – a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes,2001.LAUAND, J. A Arte de Decidir: a Virtude da Prudentia em Tomás de Aquino. Conferência. Em diálogo com Tomás de Aquino – conferências e ensaios. São Paulo: Mandruvá. 2002.__________. Notas de aula. Curso de Filosofia Medieval. USP,2003.__________. Provérbios e Educação Moral. São Paulo, 1997.MANGUEL, A. Uma História da Leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia da Letras,1997. 2ed._____________. Lendo imagens. Trad. De Rubens Figueiredo, Rosaura Eichemberg, Claudia Strauch. São Paulo: Companhia das Letras,2001.MORIN, E. A Cabeça bem-feita – repensar a reforma, reformar o pensamento. Trad. Eloá Jacobina. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil,2003.NETO, J.C. - A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966.SALIS, V.D. Ócio criador, trabalho e saúde – lições da antiguidade para a conquista de uma vida mais plena em nossos dias. São Paulo: Editora Claridade, 2004.

46 Formação do homem integral, que é o ideal grego de perfeição.47 Maiêutica socrática já referida neste trabalho, que significa fazer nascer, trazer à luz.

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Coerência, coesão e cognição em perspectiva semiótica

Darcilia Simões48

(UERJ-ILE / PUC-SP-COS / SUESC)

Quer se trate de um jornal ou de Proust, o texto não tem significação a não ser através de seus leitores. (Michel de Certeau, 1990:247)

Resumo: Neste artigo, enfoca-se a coesão e a coerência textuais como conseqüências de operações cognitivas semioticamente representadas. Focaliza-se a coesão como fator interno ao texto, com fundamento morfossintático; e a coerência como fator externo de base semiótico-semântico-pragmática. Considerando-se a base dialogal da produção de linguagem na interação entre enunciador e leitor, tenta-se construir um trajeto de análise que integre a seleção lexical e as experiências lingüístico-pragmáticas com vistas a indicar a importância da iconicidade sintagmática na produção de pistas textuais que deflagrem cognições eficientes para a produção de sentido para o texto. Pretende-se revitalizar o ensino da gramática, tornando-o significativo para a expressão lingüística eficiente.

Palavras-chave: coesão e coerência – cognição – iconicidade textual

Abstract: In this article it is focused literal cohesion and the coherence as cognitive operations consequences semiotically represented. It is paying attention cohesion as internal factor to the text, with morphological and syntactical bedding; so coherence as external factor of semiotics semantics and pragmatics support. Taking into consideration it dialogs base of language production in the interaction between writer and reader, it is tried to construct an analysis route that integrates the lexical election and the linguistic-pragmatic experiences towards to indicate the importance of the syntactical iconicity in the production of verbal tracks that activate efficient cognitions for the felt production of the text. It is intended to revitalize the grammatical teaching becoming it significant for the linguistic expression.

Key words: cohesion and coherence - cognition – textual iconicity

Abrindo a discussão

A epígrafe extraída de Certeau foi trazida ao texto como um alerta acerca da importância do outro na relação dialogal da linguagem. Logo, preparar sujeitos para a interação lingüística demanda instrumentalizá-los quanto à importância de projetar-se no lugar do outro sempre que desejar uma comunicação eficiente.

Atuando na pesquisa e no ensino do vernáculo, muito particularmente no ensino da redação, temos nos incumbido de buscar suporte teórico que permita o aperfeiçoamento das práticas didáticas, com vistas ao desenvolvimento da competência verbal dos estudantes.

É uma característica da área a admissão de uma matriz teórica exclusiva para subsidiar cada projeto. Contudo, venho operando na contramão da história, uma vez que tenho procurado combinar teorias no sentido de ampliar o enquadre do objeto e assim facilitar o entendimento de sua descrição sob vários ângulos complementares. É claro que a combinação

48 A autora é Doutora em Letras Vernáculas (UFRJ, 1994), Professora Adjunta de Língua Portuguesa no Instituto de Letras da UERJ, Pós-doutoranda em Comunicação & Semiótica na PUCSP e Assessora da Superintendência de ensino da SUESC (RJ).

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teórica demanda afinidades, e estas têm de ser levantadas com critério, porque é indiscutível ser o ponto de vista o que define os objetos formais que, a seu turno, caracterizam teorias ou ciências.

No entanto, em função da abundante produção teórica no âmbito da lingüística e da cognição, vem-se tornando usual o surgimento de projetos de pesquisa subsidiados por teorias combinadas. Isso decorre da complexidade que envolve a descrição dos sistemas verbais e dos mecanismos cognitivos, os quais, inelutavelmente, complementam-se na realização da faculdade humana de manifestação verbal. E é nessa linha que venho atuando, uma vez que a adoção de uma base semiótica para minhas pesquisas tem requerido a chamada de teorias específicas do verbal e da cognição para cercar o objeto de modo que ele não escape à análise e à formulação teórica.

O escopo semiótico-discursivo

O processamento da linguagem verbal envolve mecanismos de produção, como a fala e a escrita, e de recepção, como a audição e a leitura. Conforme Fodor (1983), há dois dispositivos que participam do processamento da linguagem: o módulo lingüístico e o processador cognitivo geral. O módulo lingüístico tem as seguintes características: é automático e inconsciente, pois independe da vontade do indivíduo; é rápido; é específico; é geneticamente determinado; é sistemático; é limitado na capacidade. Todavia o processador cognitivo geral é tido como um dispositivo com características inversas às do módulo lingüístico: não é automático, ou seja, é pensado; é relativamente lento; é mais geral, não se relaciona a determinado tipo de estímulo; é opcional e acessível quando se deseja; é muito mais determinado pelo meio; varia de indivíduo para indivíduo; é ilimitado na capacidade. Assim, os dois módulos e combinam na produção de linguagem e requerem interpretação complexa de sua complexidade.

Considerando-se que a depreensão num texto de dados extralingüísticos está intimamente ligada à cognição que, por sua vez, será tão mais rica quanto maior a experiência de vida (e de linguagem) do intérprete, parece possível inferir que a seleção dos signos a serem atualizados no texto está proporcionalmente ligada a essa competência social, pragmática, dos interlocutores (enunciador e intérprete). Como a análise da produção sígnica é objeto da semiótica que dialoga intimamente com a pragmática, minha pesquisa tem privilegiado o enquadre semiótico do texto escrito, tomado como objeto verbo-visual. Nessa perspectiva, perseguimos a produção da iconicidade textual (Simões & Dutra, 2002) – faculdade de deflagrar processos cognitivos, ativar espaços mentais, que produzam imagens capazes de nortear a leitura e compreensão. Na presente comunicação, focalizarei a construção da coesão e da coerência como mecanismos semiótico-cognitivos resultantes de situações discursivas. Isto porque entendo o texto como materialização de atos discursivos, interativos.

Assim sendo, combino suporte semiótico peirceano com elementos da lingüística cognitiva e da matriz discursiva voltada para as questões de autoria e ideologia (Pêcheux) as quais se refletem nas escolhas manifestas na superfície textual.

Acrescentamos ainda que a produção discursiva origina-se em um processo semiótico-pragmático que instrumentaliza os sujeitos com os dados lingüísticos e socioculturais indispensáveis à interação. É no âmbito da pragmática que os signos se corporificam, uma vez que os roteiros e enquadres sócio-históricos ali se constituem.

O entendimento fica visivelmente comprometido quando se trata do enfrentamento de textos que tratem de assuntos alheios ao repertório do intérprete. Também o enunciador terá grandes dificuldades na produção de seu texto, quando o tema não lhe for suficientemente

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familiar, a ponto de produzir argumentos que sustentem sua tese. Ademais, a competência pragmática deverá ser enriquecida pelo domínio de informações lingüístico-enciclopédicas que constituiriam a visão de mundo (ou cosmovisão) dos interlocutores. Uma vez deficitárias essas capacidades e habilidades, o processo cognitivo que sustenta a produção/compreensão dos textos e a comunicação resultará prejudicado.

O conhecimento veiculado pelo texto é captado, ao adequar-se a conhecimentos armazenados na memória do leitor, no momento da atividade de compreensão, gerando a construção do sentido. Esse domínio da leitura é chamado de integração de conhecimentos. Os conhecimentos prévios, uma espécie de dicionário enciclopédico do mundo e da cultura arquivado na memória, são ativados no momento da recepção do texto, auxiliando na construção de sentidos e no estabelecimento do tema global, dentre outros aspectos.

A partir dos conhecimentos prévios e dos índices formais do texto, o leitor constrói para si uma representação mental desse texto. Essa representação mental nada mais é que uma das possíveis macroestruturas do texto, já que, na maioria das vezes, o produto da leitura - a interpretação do texto – é síntese das proposições mais importantes.

Discutindo o texto em si

Um texto é constituído de dois níveis estruturais: a macroestrutura e a microestrutura. A partir das proposições geradas na interpretação semântica - tanto aquelas originadas das informações explícitas, quanto as originadas das inferências - o leitor tenta constituir a coerência global do texto. Assim, a partir de proposições, formam-se as macroproposições de diversos níveis, construindo-se a macroestrutura textual.

A microestrutura, segundo Sautchuk (2003), decorre da estruturação lingüística do texto, mediante um sistema de instruções textualizadoras de superfície, organizadoras da construção linear do texto a partir da articulação de palavras e frases como elementos responsáveis pela coesão.

Vilela (1999) fala de microestruturas textuais e de macroestruturas textuais. Segundo o autor, estas unidades se “situam no domínio cognitivo, no domínio semântico: é uma configuração da conexão global do texto, o seu sentido textual”.   Resumidamente, podemos inferir que as macroestruturas textuais se relacionam com o texto, ao permitirem a formulação de uma idéia global, mas também com aspectos exteriores, associados ao mundo real (ao contexto de produção); enquanto as microestruturas, constituindo unidades em si mesmas, articulam-se formalmente para tornar coesa a macroestrutura.

Segundo Inês Duarte (In Mira Mateus e outras, 2003), a coerência textual, ou cone(c)tividade textual, é “…um fa(c)tor de textualidade que resulta da intera(c)ção entre os elementos cognitivos apresentados pelas ocorrências textuais e o nosso conhecimento do mundo”; ao passo que a coesão textual é constituída por “Todos os processos de sequencialização que asseguram (ou tornam recuperável) uma ligação lingüística significativa entre os elementos que ocorrem na superfície textual…49”. Como se pode deduzir, para a autora, a macroestrutura está relacionada à coerência, e a microestrutura à coesão.

Os mecanismos lingüísticos de coesão manifestam-se de modos diversos. Não é exclusividade das palavras gramaticais (preposições, conjunções e pronomes relativos) a combinação das idéias e a definição de seus valores. Também as palavras lexicais (verbos, substantivos, adjetivos, advérbios, numerais e pronomes) atuam como elementos coesivos,

49 Mantivemos a grafia lusitana.

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dispensando algumas vezes a presença de um conectivo propriamente dito. É nesse âmbito que venho observando os textos dos estudantes. Verificando-lhes a habilidade para selecionar palavras e expressões ajustadas ao projeto de dizer, de modo a garantir a coesão textual, e, ao mesmo tempo, abrir espaço para leituras coerentes. Nessa observação, busco o potencial icônico subjacente à estruturação textual como garantidor da semiose. Persigo a iconicidade diagramática (Simões & Dutra, 2004a) no plano dos sintagmas.

Como meu enfoque procura relacionar a semiose com a semântica e a pragmática, entendo a competência lingüística como sendo condição de comunicatividade verbal. Isto porque a organização microestrutural do texto seria, a princípio, um garantidor da veiculação eficiente da mensagem. Schmidt (1978) dizia pertencerem à pragmática os componentes comunicativos da competência lingüística, definindo-a como habilidade do usuário de uma língua natural para adaptar seus enunciados às situações de comunicação, buscando uma comunicação eficaz.

Observados os textos produzidos pelos estudantes de Letras (Simões, 2006), verifica-se usualmente uma seleção vocabular deficiente, uma vez que o repertório desses falantes é mínimo. A falta de leitura, por conseguinte de conhecimento verbal e enciclopédico, faz com que a expressão seja restrita a uma meia dúzia de palavras, e a estruturação sintática se reduza às orações absolutas, períodos simples justapostos; ou, quando tentam produzir períodos compostos, erram na construção do nexo e, muito freqüentemente, apresentam uma sucessão de subordinadas, deixando de apresentar a oração principal. Esse tipo de estruturação prejudica indiscutivelmente a unidade textual. Conseqüentemente, a coerência será prejudicada.

Para ilustrar eis um trecho de dissertação sobre fatos semânticos, produzida por um pós-graduando em Letras, do texto “Escrevendo Muderno” de João Ubaldo Ribeiro:

A crítica é inteligente, mas, para que seja entendida, o leitor necessita fazer diversas leituras para uma melhor compreensão do texto. Afinal, o autor reúne uma série de palavras com erros ortográficos explicitadas no texto que dificultam assim nossa compreensão. E isso ocorre com palavras como: superbom, supercordial, super com certeza, conciência ... . O autor quer, na verdade, nos chamar atenção para que fiquemos aquém com o uso da linguagem. Esta, que está sendo utilizada de uma forma precárea, representando a preocupação do povo com o uso da língua. [grifos meus]

Observe-se que os elementos grifados demonstram o desconhecimento vocabular em dois níveis: a) aquém: domínio semântico; b) precárea: domínio ortográfico. Essas impropriedades somadas à estruturação geral do parágrafo demonstram a inabilidade verbal do autor, que é realçada pelo fato de ser um pós-graduando.

Agora, um fragmento (de outro autor) de dissertação sobre fatos semânticos presentes no poema “Rios sem discurso” de João Cabral de Melo Neto:

Explorando a semântica, o autor utiliza (muda / muda) primeiro com significado de mudança e o segundo no sentido de silêncio (homonímia / ambigüidade), e as mudanças morfológicas com uma conseqüência semântica do pronome (se) (corta-se, desvia-se, parte-se, interrompe-se). O texto trabalha metaforicamente, criando uma analogia do percurso do rio, a medida em que o rio vai passada umedece e fertiliza e se define o homem um ser fluente na língua.

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Destacando estruturas mal formadas :

1 - o autor utiliza (muda / muda) primeiro(1) com significado(2) de mudança e o segundo(1) no sentido(2) de silêncio (homonímia / ambigüidade)(3)

não há paralelismo sintático: primeiro / o segundo

toma significado e sentido como sinônimos em um trabalho (de pós-graduação) de semântica

entende homonímia e ambigüidade como sinônimos

2 - e as mudanças morfológicas com uma conseqüência semântica do pronome (se) (corta-se, desvia-se, parte-se, interrompe-se).

Quais mudanças morfológicas? O que ocorre com o pronome se? Qual é a conseqüência semântica do pronome se? O que representam os verbos entre parênteses?

Para finalizar a ilustração, veja-se trecho de dissertação (de um terceiro autor) sobre fatos semânticos do texto “A baleia foi pro brejo” do personagem jornalista da Turma do Casseta e Planeta, Agamenon Mendes Pedreira.

No trecho “o solitário cetáceo tinha largado a frígida Antártica...”, podemos observar, que o vocábulo frígida é usado inicialmente mas ao final da frase ganha sentido sexual. [grifei]

Observe-se que no trecho grifado, o nexo adversativo soa estranho, uma vez que usado inicialmente não mantém qualquer relação de oposição com ganha sentido sexual. Logo, verifica-se a seleção semântico-sintática imprópria do vocábulo gramatical mas.

Os problemas apontados nos dois fragmentos parecem documentar a dificuldade de compreensão gerada pela estruturação defeituosa dos enunciados. Quer por problemas de seleção quer por falha de combinação, o que se vê é a produção de enunciados (não digo textos, porque associo texto à comunicabilidade) não-inteligíveis que atestam dificuldades de organização/expressão verbal do pensamento. Logo, os enunciados resultantes não são capazes de produzir roteiros de imagens para o leitor.

Falhas na concordância, na regência, na pontuação, na seleção vocabular, etc. resultam em enunciados de baixa iconicidade, que não ativam espaços mentais, que não evocam imagens. Assim sendo, a leitura dos mesmos se torna difícil ou mesmo impossível, levando-se em conta que a estruturações sintático-semânticas produzem efeitos icônico-diagramáticos, segundo a semiótica lingüística de extração peirceana (Nöth, 1995).

Meu intento na pesquisa que ora desenvolvo é criar um suporte semiótico para o estudo da gramática normativa no sentido de demonstrar as qualidades icônico-indiciais decorrentes do uso apropriado das formas da língua. As discussões em torno do ensino da língua que oscilam entre a validade ou não do ensino normativo, para mim são inúteis. Qualquer língua é ensinada a partir de sua gramática. Parece-me que há um equívoco de base: a discussão deveria ser relativa à significância ou insignificância das instruções gramaticais praticadas na escola.

Em minhas pesquisas e práticas didáticas, já pude concluir que o que falta é dar significado para o estudo da estruturação gramatical, demonstrando seus efeitos na prática interacional verbal. É preciso correlacionar funções-valores gramaticais com potencialidade sígnica, com conteúdo semântico-pragmático. Se o estudante é levado a discutir os efeitos provocados por uma simples inversão sintática, interpretando o que isso provoca em seu

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processo cognitivo, a gramática passa a ganhar sentido e o estudo desta pode tornar-se atraente. É justamente a validação da instrução gramatical que deveria ser objeto da preocupação de professores e pesquisadores, já que a indispensabilidade dessa aprendizagem está mais do que comprovada.

Observe-se que os processos cognitivos ativados pelas estruturas Parreira não mexeu na seleção & Parreira não organizou na seleção nunca serão os mesmos, pois os semas de mexer e de organizar são diferentes. Organizar é mexer, mas a recíproca não é verdadeira.

A máfia das sanguessugas e A compra irregular de ambulâncias pelo Governo são duas representações verbais distintas do mesmo fato. Cada uma delas enquadra o fato em matrizes cognitivas distintas. A primeira manchete – emoldurada pela função emotiva - apresenta a situação imediatamente como criminosa ao eleger o vocábulo máfia. A metáfora das sanguessugas enfatiza a incriminação do fato, pois ativa semas de sugar, tirar o sangue, usurpar, etc. como alusões a roubo. A segunda manchete, por força de sua referencialidade, abranda a expressão e aciona esquemas mentais não-passionais, mas avaliativos, críticos. Logo, a produção da coesão de cada texto se faz na relação entre os termos dos sintagmas e entre os sintagmas em si; e a coerência semântica é uma conseqüência das estruturações apropriadas. Essa adequação implica considerarem-se as características do projeto comunicativo que, a seu turno, impõe a observação em especial da relação entre os interlocutores (quanto ao grau de formalidade ou informalidade, a responsabilidade comunicativo-informativa, etc.), e da temática a ser desenvolvida. Estas atuariam como filtros lingüístico-cognitivos que orientariam as escolhas e combinações verbais com vistas a “desenhar” com palavras um itinerário de leitura provável/possível para o intérprete. Dessa forma, o texto seria construído com poder simbólico, já que seu potencial icônico viabilizaria a interpretação dos enunciados que o compõem e a produção de imagens mentais capazes de gerarem sentidos para a leitura.

Nessa linha de raciocínio, busco rastrear a organização dos signos no texto e relacioná-los com as situações de comunicação, com vistas a pôr em xeque a estruturação textual em si e o projeto comunicativo subjacente.

Para concluir

Entendendo que a língua nacional é a base da formação intelectual dos sujeitos de uma nação, venho me ocupando com projetos de pesquisa que têm por objeto maior a comunicação escrita formal. Por que isso? Por tudo o que já foi dito a respeito da necessidade de apetrecharem-se os indivíduos para a leitura que lhes fortalecerá a cidadania.

Um primeiro passo, a meu ver, seria o despertar dos sujeitos para a importância da comunicação verbal, sobretudo a escrita. Para tanto, demonstrar de forma objetiva as funções e valores das informações gramaticais na produção estratégica dos textos. O conteúdo gramatical precisa sair da condição de simples nomenclatura para o estatuto de peças de uma engrenagem fundamental para a comunicação.

Como solucionar isso? Venho tentando sensibilizar o estudante para a necessidade de progresso intelectual e pelo condicionamento deste ao domínio da língua, à competência de leitura e, posteriormente, à proficiência redacional. Para tanto, tenho buscado fazer um trabalho de complexidade crescente em que uso textos que vão aumentando de tamanho e de sofisticação estrutural, no sentido de tentar induzir os estudantes a buscarem os textos como seus aliados em sua formação profissional.

Com essa estratégia, busco promover a leitura e dela fazer gerar a produção de novos textos em que os sujeitos exercitem o dizer e o convencer, por meio dos usos ajustados das formas da língua. No processo de correção dos textos, as instruções gramaticais são

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fornecidas de forma relacionada com seu papel semiótico-pragmático (quanto ao valor sígnico e função interacional), para que os estudantes percebam a importância do domínio dessas instruções, sobretudo, relacionando-as com a ativação de processos cognitivos. Entendo as classes e categorias gramaticais como signos icônicos e indexicais que, quando bem empregados, produzem a iconicidade sintagmática (trilha sintática de leitura) necessária para a legibilidade do texto.

Minhas aulas resultam indiscutivelmente em redações que são apreciadas e que têm suas impropriedades apontadas e discutidas, para que sejam revertidas no trabalho imediato de reescritura, pois acredito na fala de Othon M. Garcia de que aprender a escrever é aprender a pensar.

Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. L’Ivention du quotidien, I (Arts de faire). Paris: Gallimard, 1990.

FODOR, Jerry A. The modularity of mind. Cambridge, MASS: MIT Press, 1983.

GARCIA, O M. Comunicação em prosa moderna. 24ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

MIRA MATEUS, Maria Helena / Brito, Ana Maria / Duarte, Inês / Faria,Isabel Hub:Gramática da Língua Portuguesa. 5a. ed. Lisboa: Caminho, 2003.

NÖTH, Winfried. Panorama da semiótica. De Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995.

SCHMIDT, S. J. Lingüística e Teoria do Texto. São Paulo: Pioneira, 1978.

SIMÕES, Darcilia. “Primeiros escritos do Projeto de texto e iconicidade: uma reflexão sobre a eficácia comunicativa.” Pesquisa de pós-doutoramento em realização na PUC-SP sob supervisão de Lucia Santaella. (PUC_SP/ POS/COS), 2006.

SIMÕES, Darcilia & Vânia Lucia R. Dutra. “A iconicidade, a leitura e o projeto do texto50”. In Linguagem & Ensino. [ISSN 1415-1928]. Volume 7. Número 2. Jul/Dez. Pelotas: UCPel, 2004a.

_____. “a iconicidade na unidade textual: uma análise51”. In: Darcilia Simões (Org.). Estudos semióticos. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2004. [p. 94-107] (Disponível em www.darcilia.simoes.com – livros)

VILELA, Mário & Koch, Ingedore Villaça.Gramática da Língua Portuguesa. 2ª ed.. Coimbra: Almedina, 1999.

50 Apresentado no Congreso Internacional Venezolano de Semiótica, Maracaibo, 2002.51 Idem.

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Pragmatismo, Semiótica e Tradução: pontos de contato

Lucyana do Amaral Brilhante52

Mestranda em Lingüística Aplica – UECE

52 Aluna do Curso de Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará – UECE, área: Tradução, Lexicologia e Processamento da Linguagem.

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Resumo:O estudo da linguagem foi muito afetado pelas idéias filosóficas que questionam a afirmação de que “o conhecimento científico deve ser justificado racionalmente” (Silva, 2005: 1). Cria força, então, o estudo da pragmática, ramo da lingüística aplicada, que se desenvolveu a partir da década de 70 do século XX. A Pragmática se volta, sobretudo, para o estudo do uso concreto da linguagem e sua importância como ferramenta sócio-cultural e de comunicação entre pessoas. O presente trabalho é o resultado de reflexões sobre a interseção entre o pragmatismo, a pragmática, a tradução e a tradução intersemiótica. Ele está estruturado da seguinte forma: inicialmente, mostraremos o lugar do pensar pragmático na filosofia da linguagem. Posteriormente, explicaremos a relação entre pragmática e semiótica. Finalmente, demonstraremos algumas possibilidades de aplicação das teorias semióticas no estudo da tradução intersemiótica.

Palavras-chave: Pragmatismo, Semiótica, Tradução Intersemiótica

Abstract: Language studies were extremely affected by philosophical ideas that questioned steatments as “the scientific knowledge should be rationally justified” (Silva, 2005: 1). As a consequence, Pragmatics studies were strengthned. Pragmatics is a branch of Applied Linguistics which started developing in the 70’s. It deals with the study of the language in use and its relevance as a social and cultural tool for communication. This papper presents some considerations about the intersection of Pragmatism, Pragmatics, Translation and Intersemiotic translation. It is divided in three different sections. The first one is related to the place of Pragmatics in Language Philosophy. In the second one, we explain the relation between Pragmatics and Semiotic. The last one deals with the possibilities of applicability of Semiotic theories in the studies of Intersemiotic translation.

Key word: Pragmatism, Semiotic, Intersemiotic Translation

1. Filosofia e pragmática

Antes de adentrarmos no conceito de pragmática e sua relação com a semiótica, convém compreendermos, se não profundamente, ao menos de maneira geral, a inserção daquela na ceara da filosofia da linguagem.

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Segundo Martins (2004), são três as mais importantes vertentes de compreensão da linguagem: o realismo, o mentalismo e o pragmatismo. Essas vertentes têm sua formação arraigada nos primórdios da história da filosofia ocidental e não são excludentes. As diferenças entre as tendências estão mais relacionadas ao destaque que se dá entre às “dimensões do real, do mental e do histórico-cultural” (2004: 440) enquanto questão mais relevante para a compreensão das questões pertinentes à linguagem. Mas, afinal, que questões sobre linguagem a filosofia sempre procurou entender? De acordo com Martins, é a questão do sentido, da significação. A filosofia se apresentou como uma alternativa à explicação do mundo por meio do pensamento mítico. Desde seu início, se dividiu entre duas formas antagônicas de perceber o ser, o mundo e, por conseguinte, a linguagem. Essas duas formas opostas eram defendidas pelos sofistas e pelos socráticos. Quando indagados pela natureza dos seres, os socráticos afirmavam que as coisas têm uma essência permanente, havendo, portanto uma verdade única e fixa. Os sofistas, por sua vez, acreditavam que as coisas não possuem essência própria, mas são aquilo que parecem ser de acordo com as circunstâncias. A verdade resultaria das opiniões do homem sobre as coisas e, dessa forma, seria “múltipla, relativa e mutável” (Martins, 2004: 447).

Essa maneira diferenciada de perceber o ser e a verdade afetou, obviamente, suas percepções sobre a linguagem. É nesse momento da história que se inicia as divisões das três vertentes acima mencionadas. Ao lado do pensamento socrático temos as vertentes realista e mentalista; já do lado dos sofistas, temos a vertente pragmática. Observemos, pois, cada uma dessas propostas separadamente. Os sofistas costumavam dizer que “o homem é a medida de todas as coisas”, ou seja, o homem não pode ter sobre as coisas “uma medida única” e isso “excluiria de forma irreversível a possibilidade de uma apreensão final e verdadeira da realidade tal como ela é em si mesma” (Martins, 2004: 450). Assim, não haveria a possibilidade de se conhecer o real e, sem que pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos dizê-lo. Como Martins menciona, “ a realidade não pode tornar-se nosso discurso, (...) a linguagem não diz o real”, “a linguagem revela apenas a própria linguagem” (2004: 451). Górgias conclui: “o discurso não manifesta o objeto exterior; pelo contrário, é o objeto exterior que se manifesta no discurso” (apud Martins, 2004: 451). Do que foi dito anteriormente, podemos concluir que os homens opinam acerca das coisas (discursam acerca de algo) e, dessa forma, consensos são formados, mas esses consensos são frágeis. Essa fragilidade também se manifesta no sentido, isto é, o sentido, incluindo-se aí os sentidos das palavras não são fixos, mas variados. Como disse Martins:

Enfatizando a volatividade dos consensos sobre a fixidez da verdade, e apontando o lugar central que, sob essa ótica, a linguagem ocupa nos assuntos humanos, os sofistas abrem caminho para pensarmos que as expressões significam não porque representam algo por si sós, não por possuírem qualquer sentido imanente, mas antes porque, jamais se dissociando dos assuntos humanos de que tomam parte, inscrevem-se circunstancialmente no fluxo dessas práticas, com efeitos possíveis muito variados, efeitos que podem talvez ser estimados mas nunca garantidos de antemão (2004: 453).

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Em contraposição a esse prisma sob o qual foi avaliada a linguagem pelos sofistas, apresentaremos a visão dos socráticos. A concepção socrática foi descrita por seus seguidores Platão e Aristóteles que, apesar de possuir uma essência comum, apresentam algumas diferenças que vão fomentar a divisão daquela concepção nas vertentes realista e mentalista da linguagem. Platão acreditava que existiriam dois mundos: o mundo sensível e o mundo das idéias. O mundo sensível seria o mundo das aparências. Esse mundo seria o mundo das coisas que são percebidas pelos sentidos e, portanto, o mundo onde “habitaria de fato tudo o que é corpóreo, imperfeito e mutável” (Martins, 2004: 454). O mundo das idéias, em oposição, seria o mundo das coisas “invisíveis, perfeitas e eternas”, “o mundo das coisas em si mesmas” (Martins, 2004: 454). Daí ser essa concepção chamada de realista. No dizer de Martins:

Sob a superfície mutável e inconstante do real assim como percebido pelos sentidos, haveria então uma outra dimensão, intemporal e universal, que serviria de morada a tais entidades autônomas, as essências, as quais seriam dotadas de um tipo especial porém real de existência (2004: 454, 455).

No ponto de vista da linguagem, para os realistas, quando a estrutura dela está em desacordo com a estrutura do real, ou seja, desse mundo perfeito das essências, o discurso é falso. Por outro lado, quando a estrutura da linguagem é fiel ao mundo do real, o discurso é verdadeiro. Isso implica que não há possibilidade de sentidos múltiplos para os enunciados. Ora, a função da linguagem seria, por assim dizer, a descrição ou representação do real, seria a informação sobre as coisas. Poderíamos definir, assim, a visão platônica da linguagem:

“(...) as palavras têm por propósito representar a realidade, não a realidade fonomênica, mas a realidade essencial das coisas. As essências que as palavras representam são entidades extralingüísticas universais, autônomas e transcendentes. Se a linguagem não tivesse por função representar essa dimensão essencial e verdadeira da realidade, seria uma atividade irracional. O exame da linguagem (...) leva então à tese de que a verdade deve prevalecer sobre o consenso” ( Martins, 2004: 461).

Os mentalistas, representados pelo pensamento de Aristóteles, também acreditam em “correlações estáveis e objetivas entre as palavras e as coisas” (Martins, 2004: 463). Entretanto, ao contrário de Platão, que não acreditava nas percepções fundadas nos sentidos; Aristóteles se dispunha a explorar as experiências, os fatos empíricos. Como enfatizou Martins (2004), para Aristóteles, “o intelecto humano (...) teria o poder de abstrair as essências universais a partir do contato com as particulares – mas a idéia seria o meio da cognição e não, como era em Platão, o seu objeto” (2004:463).

Para Platão a linguagem serviria para representar as verdades das coisas que existiam no mundo das idéias. Aristóteles também quer rechaçar o relativismo da concepção pragmática da linguagem, mas para ele, a linguagem representa, antes de tudo, o que vai no espírito, as coisas que estão “no interior do homem” ( Martins, 2004: 464). Poderíamos assim resumir a concepção de linguagem para Aristóteles:

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A linguagem simbolizaria em primeiro lugar, então aquilo que vai no espírito, o resultado do impacto do mundo sobre o homem, o modo como aquele o afeta. (...) [Ele] afirma sem rodeios que as afecções da alma são as mesmas para todos, suprimindo com isso a possibilidade de ganhar espaço qualquer compreensão segundo a qual a linguagem pudesse representar não uma ordem única e objetiva, mas antes diferentes realidades subjetivas.(...) [e] embora haja em Aristóteles um gesto claro e distinto na direção do mentalismo, pode-se dizer que também para ele, como para Platão, a linguagem e o sentido são em última instância tributários da realidade e de sua ordem intrínseca (Martins, 2004: 465).

Contudo, convém lembrar que Aristóteles confere outras funções à linguagem, que não a representação do real. Para ele, a linguagem também pode servir para a persuasão (retórica) e para a poética (beleza).

Assim, podemos concluir que, de maneira generalizada, existem três as correntes filosóficas para entender a linguagem: a corrente realista, a mentalista e a pragmática. As duas primeiras têm uma concepção essencialista da linguagem e do sentido; a última uma concepção relativista. A compreensão desse fenômeno é essencial para uma compreensão do lugar que a pragmática (disciplina) ocupa nos dias atuais.

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2. Pragmatismo, pragmática lingüística e semiótica

Como pudemos observar no tópico anterior, existem duas vertentes filosóficas que se antagonizam desde o princípio do pensamento ocidental. A compreensão essencialista que dominou a história do pensamento ocidental tem sido abalada, desde a virada do século XX, por movimentos filosóficos que questionam essas verdades perenes.

Um desses questionamentos dizia respeito a construção das representações. Muitos filósofos passaram a defender que a “representação é antes lingüística que mental” (Pinto, 2001: 49). Daí esses movimentos também atingem as concepções sobre a linguagem. É nesse terreno que se desenvolve a pragmática lingüística, que estuda “ o uso concreto da linguagem, com vistas em seus usuários e usuárias, na prática lingüística; (...) e as condições que governam essa prática” (Pinto, 2001: 47). “Ela aposta nos estudos da linguagem, levando em conta também a fala, e nunca nos estudos da língua isolada de sua produção social” (Pinto, 2001: 48). A pragmática lingüística surge, pois, na década de 70 do século passado, como um resultado de um movimento que se denominou pragmatismo. Compreendamos, então, do que se trata o movimento do pragmatismo.

A primeira vez que a palavra pragmatics foi utilizada foi em 1878 no artigo How to make our ideas clear, de autoria de Charles Sanders Peirce. Para ele, “nossas crenças nada mais são do que regras de ação, e que o importante é determinar que condutas o pensamento está apto a produzir” (apud Silva, 2005: 5). Segundo Silva (2005: 4, 5), o pragmatismo tem sua origem na filosofia americana do início do século XX com os trabalhos de William James e John Dewey, que foram inspirados por Peirce. O pragmatismo seria uma atitude filosófica que se contrapõe à tradição clássica. O “pragmatismo consider[a] o conhecimento como sendo arracional (insuscetível de ser racionalizado), [mas] reconhece a possibilidade de o sujeito cognoscente poder fazer escolhas racionais com base na maior ou menor utilidade para a hipótese em questão” (Silva, 2005: 4).

Os trabalhos de Peirce tiveram profunda influência na teoria da linguagem. Peirce criou o que foi chamado de tríade pragmática, ou seja, a relação de interdependência entre signo, objeto e interpretante. Para ele, quem quer que teorizasse sobre a linguagem deveria levar em consideração “a quem ela significa” (Pinto, 2001: 51, 52).

A concepção de linguagem de Peirce, contudo, não estava restrita à linguagem verbal, mas compreendia todo e qualquer tipo de linguagem, incluindo aí “gráficos, sinais, setas, números, luzes, (..) objetos, sons musicais, gestos, expressões” etc (Santaella, 1985: 11). Daí existirem duas ciências da linguagem: a lingüística, ciência da linguagem verbal e a semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem. Peirce foi o pai da semiótica, e a semiótica é “a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido” (Santaella, 1985: 15).

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Para Pierce, fenômeno é tudo que aparece à percepção e à mente, e fenomenologia diria respeito aos modos de apreensão dos fenômenos. A partir daí, Peirce define as categorias de apreensão dos fenômenos pela mente que foram designadas por: primeiridade, secundidade e terceiridade. A primeiridade diz respeito às primeiras impressões acerca de algo. Essa categoria é contemplação, possibilidade, originalidade, liberdade. A primeiridade precede toda síntese e diferenciação e não pode ser articuladamente pensada. A secundidade é a reação às impressões primeiras. É a comoção do eu para com o estímulo, é choque, surpresa, dúvida. A terceiridade se relaciona com a primeiridade e secundidade para promover uma “síntese intelectual” através da qual representamos as coisas. É uma elaboração cognitiva que implica em generalização, interpretação. E, para interpretarmos, para compreendermos as coisas, mister se faz produzir “um signo, ou seja, um pensamento como mediação irrecusável entre nós e os fenômenos” (Santaella, 1985: 56 - 68). Segundo Peirce, “todo pensamento é um signo” (apud Pignatari: 35), afinal, para que conheçamos algo, é necessário que este algo seja representável. Para melhor explicitarmos, utilizaremos uma das definições de signo apresentadas pelo próprio autor:

Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo, e da qual a causa mediata é o objeto, pode ser chamada o Interpretante (apud Santaella, 1985: 78).

Melhor explicando, Pierce usou a lógica triádica (relação triádica básica) para explicar o significado, que deveria ser compreendido pela relação signo (manifestação que representa algo) – objeto (aquilo que se representa) – interpretante (o que o signo pode gerar na mente de alguém) (Niemeyer: 32, 33; 39). Usou ainda tricotomias para classificar o signo (qualissigno, sinsigno e legissigno), o objeto (ícone, índice e símbolo) e o interpretante (rema, dicissigno e argumento) (Pignatari: 45 - 47).

Das tricotomias apresentadas, vamos esclarecer aquela do signo em relação a seu objeto, pois o “objeto é o modo como o signo se refere àquilo que ele representa” (Niemeyer: 36). Chama-se ícone a representação que se da por semelhança, analogia. Chama-se índice a representação que se faz por meio de marcas que o objeto causa. Assim, o signo indica o objeto, pois possui com ele uma relação concreta. O índice pode traçar a origem da causa ou simplesmente evidenciar o efeito. Denomina-se símbolo a representação que se dá por meio de um processo de convenção. A compreensão dessa tricotomia será importante para se fazer análises semióticas.

Mas, qual o sentido de toda essa digressão pela semiótica? Qual sua relação com a pragmática? A resposta para essas indagações está no fato de que a semiótica de Peirce se coaduna com o pensar pragmático que ultimamente vem questionando o racionalismo ocidental. “Ao invés de se indagar sobre a essência do conhecimento, vai-se procurar, nos contextos onde se desenvolvem as atividades humanas”.

Tal como a pragmática lingüística, a semiótica também se relaciona com a linguagem, ainda que de maneira diferenciada. A semiótica de Peirce entende que “todo pensamento é um signo” e todo signo é uma representação de algo. As linguagens, por sua vez, seriam signos, pois seriam também representações, ou seja, conteúdos apreendidos pelos sentidos, imaginação, memória e pensamento.

3. Semiótica e tradução

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De acordo com Silva (2005:10), “estudar lingüística aplicada é estudar de forma

relativamente difusa: semiótica, pragmática, análise do discurso, sociolingüística, psicologia lingüística” etc. Essa afirmação corrobora as noções da complexidade do fenômeno lingüístico, da falibilidade das teorias estritamente lingüísticas na compreensão desse fenômeno, bem como da possibilidade e necessidade de se inter-relacionar áreas de estudo para sua compreensão. A partir dessas noções, pretendemos demonstrar as possibilidades do uso da semiótica na tradução. A princípio levando em consideração os estudos teóricos de tradução e, em seguida, enumerando alguns exemplos do uso da semiótica na tradução.

Quando se fala em tradução, a primeira idéia que nos vem à mente é, de maneira geral, a tradução interlingual, em outras palavras, “a interpretação de signos verbais de uma língua para outra” (Jakobson, 1995: 65). Entretanto, o próprio Jakobson já fazia menção à tradução intersemiótica. Assim sendo, a tradução deve ser compreendida como “um fenômeno semiótico de natureza geral” (Cattrysse, 1992: 54). Segundo Diniz (2003: 13), o conceito de tradução já vem, há algum tempo, sendo compreendido de maneira mais abrangente. A concepção de tradução baseada nos estudos lingüísticos, que enfatizava os conceitos de texto-fonte e texto-meta, há muito tem sido questionada. Não há, portanto, que se falar em tradução como o “transporte” de um “sentido” de um texto para outro.

Em contraposição a essa idéia, os estudos mais recentes tendem a relativizar as noções de texto-fonte e texto-meta porque elas trazem implicitamente a idéia de uma mensagem inerente que deve ser transmitida, o que leva ao conceito de fidelidade. Atualmente, a tendência é perceber os textos envolvidos como signos um do outro. Nas palavras de Diniz:

Sua similaridade [dos textos origem e alvo] pode ser, como nos signos, algo muito fugaz, permitindo, entretanto, que se estabeleça entre os textos uma referência mútua. Essa similaridade não precisa necessariamente ser nem de tom, nem de conteúdo, nem de forma. Poderá limitar-se a inter-relações mais ou menos evidentes que justifiquem o reconhecimento dos textos como signos um do outro (Diniz, 2003: 13).

O conceito de fidelidade, implícito nas concepções tradicionais de tradução, cai por terra na pós-modernidade. A tradução passa a ser vista como transformação. A antiga máxima segundo a qual “O tradutor é um traidor”, então tomada em um sentido pejorativo, é agora vista como uma necessidade, uma condição para a execução da tarefa da tradução.

A tradução, em sua acepção mais tradicional, começou a ser modificada, notadamente, a partir dos estudos levados a cabo pelo grupo de estudos de Telavive. Um de seus seguidores, Lefevere, posiciona-se contrariamente às comparações entre texto original e tradução e entende que o que se deve em relação às traduções é descrever as estratégias utilizadas pelos tradutores no exercício de seu trabalho, ficando a cargo do leitor a tarefa de julgá-los. Ele vai de encontro ao “pensamento tradicional, segundo o qual teria que haver um parâmetro de correção para se traduzir e que se deveria tentar sistematizar o processo para que todas as traduções pudessem atingir esse padrão de fidelidade e precisão” (apud Rodrigues, 2000: 125, 126). Para ele, a fidelidade não significa igualdade, mas “uma complexa rede de decisões tomadas pelos tradutores nos níveis da ideologia, da poética e do universo do discurso” (apud Rodrigues, 2000: 129). As traduções não são, portanto, nem objetivas, nem isentas e “as traduções fiéis se inspiram freqüentemente em uma ideologia conservadora” (apud Rodrigues, 2000: 130). As traduções estão sendo vistas não como resultantes do texto original, mas como resultantes de uma série de leituras. “Essas leituras passam a ser consideradas signos icônicos uma das outras” (Diniz, 2003: 29, 30). Nesse sentido, a tradução é “uma atividade semiótica, com direito assegurado a maior liberdade e criatividade” (Diniz: 2003, 30).

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Vale ressaltar que, para Peirce, o ícone se refere ao objeto por semelhança. Logo, não há que se falar em literalidade. O texto traduzido não é, portanto, igual ao texto-fonte, mas outro texto que o representa e, “é esse tipo de relação existente entre um e outro, que é o objeto dos estudos de tradução, do ponto de vista da semiótica” (Diniz, 2003: 30).

Assim, as concepções mais atuais da tradução acolhem todos os textos que possam ser considerados a representação de outros, ainda que não sejam textos verbais. Daí, as adaptações fílmicas de livros ou peças são traduções, mais especificamente, traduções intersemióticas, uma vez que elas são uma forma de interpretação de signos verbais através de signos não verbais. Por isso, tradução e adaptação serão considerados neste trabalho termos sinônimos. É importante ressaltar que, embora a tradução fílmica lide com imagens, não significa que lide apenas com isso, ela também contempla o uso da palavra (signo verbal), além de aspectos sonoros, como entonação da voz.

Júlio Plaza, ao comentar sobre a tradução intersemiótica, afirma que “numa tradução intersemiótica, os signos empregados têm tendência de formar novos objetos imediatos, novos sentidos e novas estruturas que, pela sua própria característica diferencial, tendem a se desvincular do original” (2001: 30). Conforme já comentamos, texto literário e filme constituem sistemas semióticos diversos e cada um deles está dotado de sinais particulares. Num texto literário podemos enumerar a construção do enredo, métodos de criação dos personagens etc. No que diz respeito ao sistema cinematográfico, os teóricos também acreditam numa linguagem própria, um núcleo especificamente cinematográfico. As diferenças ocorrem na própria maneira de narrar. Desse modo, parece-nos realmente impossível a pretensão de se desejar literalidade, fidelidade ou equivalência em traduções, notadamente as intersemióticas. Assim,

a tradução se define como um processo de transformação de um texto, construído através de um determinado sistema semiótico, em um outro texto, de outro sistema semiótico. Isso implica que, ao decodificar uma informação dada em uma linguagem e codificá-la através de um outro sistema semiótico, torna-se necessário modificá-la, nem que seja ligeiramente, pois todo sistema semiótico é caracterizado por qualidades e restrições próprias, (...) (Diniz, 2003: 32, 33)

O que de fato ocorre na adaptação fílmica é a necessidade de ajustar as linguagens. Por vezes, é preciso eliminar ou resumir alguns elementos da obra literária que não são tão relevantes, para que o filme não fique muito longo, ou para destacar aspectos que o diretor considera mais importantes. Pode-se excluir ou resumir elementos como: personagens (muitas vezes apela-se até mesmo para a fusão de personagens), descrições detalhadas de ambientes e paisagens (substituídas pelas próprias imagens), diálogos (a linguagem corporal dos atores muitas vezes podem substituir falas), reflexões excessivamente abstratas e ações (Brito, 1996: 22). Após essas considerações acerca da tradução, da semiótica e da tradução intersemiótica, Esperamos ter fornecer elementos de reflexão acerca da importância dos estudos pragmáticos e semióticos, bem como demonstrado a aplicabilidade nas teorias de tradução.

4. Considerações finais

O presente trabalho teve por objetivo apresentar, inicialmente, algumas reflexões sobre o pensamento pragmático e a pragmática. Posteriormente, demonstramos as relações entre a pragmática e a tradução e a aplicabilidades destes conceitos teóricos no estudo das traduções intersemióticas. Como pudemos observar, a pragmática lingüística, disciplina que pretende analisar a linguagem em seu uso, é um estudo relativamente recente. Ela foi inspirada pela linha filosófica do pragmatismo americano, que buscava uma alternativa ao pensamento

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filosófico hegemônico até então. O pensar pragmático foi inspirado, entre outros, pelo filósofo e lógico Peirce, que desenvolveu estudos que tiveram profunda influência nas teorias da linguagem. Foi Peirce que elaborou os estudos da semiótica, ou teoria geral das representações. Para ele, toda linguagem é representação, daí a influência de sua teoria nos estudos de linguagem. Finalmente, pudemos demonstrar algumas possibilidades de aplicação das teorias de semiótica na tradução, enfocando especialmente a tradução intersemiótica.

Concluímos, com base nos estudos de filosofia da linguagem, que atualmente existe uma tendência de pensar a linguagem do ponto de vista pragmático. Este pensar pragmático ajudou a desenvolver áreas da lingüística como a pragmática e a semiótica. Estas disciplinas, por sua vez, influenciaram a maneira como se entende a tradução, que hoje não deve ser compreendida como uma transmissão do texto original, mas como transformação.

5. Bibliografia

BRITO, João Batista de. Literatura, cinema, adaptação. Graphos: revista da pos-graduação em Letras, João Pessoa, v.1, n.2, p. 9-28, 2º semestre 1996. CATTRYSSE, Patrick. Film adaptation as translation: some methodological proposals. In Target 4: 1. 53-70 (1992): John Benjamins. Amsterdam. DINIZ, Thais Flores Nogueira. Literatura e cinema: da semiótica à tradução cultural. Belo Horizonte: O lutador, 2003. JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1995. MARTINS, Helena. Três caminhos na filosofia da linguagem. In: MUSSALIN & BENTES. Introdução à lingüística – fundamentos metodológicos. São Paulo: Cortez, 2004. NIEMEYER, Lucy. Elementos semióticos aplicados ao design. Rio de Janeiro: 2AB, 2003. PIGNATARI, Décio. Semiótica & Literatura. São Paulo: Cultrix, 1987. PINTO, Joana Plaza. Pragmática. In: MUSSALIN & BENTES. Introdução à lingüística – domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001. PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2001. RODRIGUES, Cristina Carneiro. Tradução e diferença. São Paulo: Editora UNESP, 2000. SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1985. SILVA, Jorge da & SILVA, Vera Lúcia T. da. Introdução ao pragmatismo lingüístico. 2005.

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O CARÁTER MODELAR DO PERSONAGEM CNÊMON, NA COMÉDIA O MISANTROPO, DE MENANDRO

Enéias Farias Tavares53

Mestrando em Literatura Comparada – UFSM-RSCarlos Roberto Ludwig54

Docente da Universidade Federal de Santa Maria-RS

Resumo:O objetivo desse trabalho é analisar a constituição do caráter do personagem Cnêmon, protagonista do Misantropo de Menandro. Mostraremos como, através da fala de outros personagens, da ação, das feições e da fala do protagonista, o autor construiu esse personagem. Também mostraremos  de que forma a misantropia se apresenta em outras obras literárias como a de Dickens, Voltaire e Molière. Assim, o objetivo desse contraste é verificar como esse sentimento de solidão e isolamento social recorre em outras obras da Literatura universal, algo que já se apresentava de modo modelar na peça de Menandro.

Palavras-Chave: Comédia Grega, Menandro, Misantropia

Abstract:

This paper aims to analyze the character building of the Cnemon, the main character of Misanthrope, by the Greek play writer Menander. We will try to show how, through the speeches, actions and features of the other characters, the author built his protagonist. We will also consider how the misanthropy appears in other pieces of art as in Dickens’, Voltaire’s, and Molière’s texts. Thus, the objective of this contrast is to verify how this feeling of loneliness and social isolation turns to others works of the universal literature, something which was already a model in Menandro’s Misanthrope.

Key-words: Greek Comedy, Menander, Misanthropy

1. Introdução

 

Nunca ninguém o interceptava na rua para lhe dizer com uma expressão alegre: “Caro Scrooge, como está? Quando vai visitar-me?” Não havia pobres que lhe pedissem uma pequena esmola; nenhuma criança lhe perguntava as horas, nunca nenhum homem ou mulher lhe tinha perguntado como podia chegar a tal ou tal sitio. ... Mas Scrooge ligava lá! Era disso que ele gostava: conseguir esgueirar-se por entre a gente que enche os caminhos da vida, de forma a assustar para bem longe de si todo o calor humano. Era, em suma, um louco, na denominação dos que, na sua ingenuidade, são profundamente sábios.

53 Mestrando em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Santa Maria e bolsista de Pós-Graduação CAPES.54 Professor de Literatura e Inglês formado pela Universidade Federal de Santa Maria.

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(Dickens em Um Conto de Natal)

Numa contemporaneidade permeada pelo coletivo de ruídos e sons, fruto do desenvolvimento urbano tecnológico, nota-se cada vez mais uma busca inconsciente, irredutível e irrefutável pelo silêncio. Num espaço cultural múltiplo, educado por aparelhos de TV e guiado pelas ondas invisíveis que levam informações pela rede mundial de computares pessoais, o tempo de se estar acompanhado por outros iguais torna-se cada vez menor. Talvez pensemos que esse sentimento é exclusivo de nosso tempo, de nossa era, em que a comunicação pode tornar possível se chegar a qualquer lugar em questão de segundos, pelo menos no âmbito digital virtual, por enquanto. Mas o interessante desse tópico é sabermos que três séculos antes de nossa era comum, artistas e teatrólogos já abordavam esse assunto. Menandro (342 a.C – 292 a. C), autor da comédia O Misantropo aborda a questão do homem longe do homem, do homem perdido dentro de sua própria essência individualista e independente.

A análise que apresentaremos aqui tem por objetivo demonstrar como o caráter do personagem protagonista na comédia de Menandro é modelar ao retratar a necessidade do homem de isolar-se do homem. Após alguns comentários sobre a comédia antiga e nova e de uma análise mais pontual da mesma, iremos comparar o protagonista da comédia O Misantropo com a personagem Scrooge de Charles Dickens e Pococurante de Voltaire. Para sustentar essa análise, faremos referência a teóricos dos estudos literários como Antônio Candido e Harold Bloom, pretendendo levar esse ideal de homem, caracterizado por Menandro, até o século XXI, onde encontramos, conforme o crítico pós-moderno Marshall Berman, o máximo Misantropo numa surpreender nova morada: dentro de cada um de nós.

2. O enredo do Misantropo e alguns aspectos da comédia antiga e da comédia nova

Podemos apresentar o enredo do Misantropo mais ou menos da seguinte forma: Sóstrato, filho de um rico ateniense, apaixona-se pela filha de Cnêmon quando caçava próximo à casa do Misantropo. Resolve pedi-la em casamento, o que era apoiado pelo deus Pã que queria recompensá-la por sua devoção. Ela vivia com seu pai, sujeito intratável e com sentimentos misantrópicos. Para convencer o velho, Sóstrato deixa essa tarefa a Pírrias, que nem consegue tratar do assunto do casamento com Cnêmon, por ser ser duramente reprimido. O jovem apaixonado também não teve chances, muito menos o escravo Getas. A solução foi mostrar ao velho que Sóstrato era um camponês humilde e trabalhador. Para sua sorte, a velha Simica, escrava do Misantropo, deixa cair um balde num poço e Cnêmon, ao tentar recuperá-lo, cai também dentro do poço. O velho é salvo por Górgias e por Sóstrato, o que emociona o Misantropo com sua solidariedade. Por isso, deixa os bens e confia o casamento de sua filha para seu filho Górgias. Ele concedeu a filha de Cnêmon em casamento a Sóstrato. Por fim, todos celebram o ocorrido na gruta de Pã, próximo à casa do protagonista, onde acontecia um sacrifício. Até o Misantropo, vencido pelas tramas e vinganças do escravo Getas e do cozinheiro Sicon, participam do casamento.

É necessário, a fim de melhor pontuar a análise, demonstrar alguns aspectos que definem e diferenciam a comédia antiga, média e nova, da qual O Misantropo de Menandro faz parte. A comédia antiga se insere no contexto da Grécia democrática e decadente  em relação aos valores antigos da sociedade ateniense do século V, ao passo que a comédia nova, já no século IV, é nutrida pelos ideais do amor e da família, mesmo em seus aspectos dissidentes (Brandão, 1984). Conforme o autor,

 

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o tema fundamental da NÉA é o amor contrariado por um conflito de gerações, pela diferença de caracteres ou por certos obstáculos, sobretudo desigualdade social e oposição paterna, com uma reconciliação final e um ou mais casamentos. (1984: 93).

 

É possível perceber a presença dessas características no Misantropo. Por exemplo, o personagem Sósia apresenta traços de bajulador, ao contrário de Cnêmon, que é um personagem frio e maledicente. No que concerne à estrutura do texto de Menandro, seus personagens não se relacionam perpassados pelos papéis que exercem na sociedade em que vivem. Antes, suas representações, tanto em qualidades como em vicissitudes, são permeadas pela relação familiar/serviçal que a que os personagens fazem parte.

Nesse sentido, outra característica das comédias média e principalmente da nova é a preferência por personagens-tipo como escravos, fanfarrões, vendedores, camponeses, cortesãs, cozinheiros, soldados. Seus traços eram caracterizados pela linguagem do cotidiano simples, com palavras de baixo calão, e pelas ações em que estavam envolvidos. No Misantropo, a linguagem é marca da casta social em que seus usuários estão inseridos. Sua linguagem, fruto de suas escolhas lexicais e dos campos semânticos aos quais fazem referência, é identificador do ambiente social próprio de suas vivências. Desse modo, já percebemos mesmo no drama grego uma total importância à figuração lingüística em detrimento dos atos cênicos. Pela linguagem, construída, concatenada e pronunciada, reconhecemos os falantes em toda sua agudeza característica, em toda a sua proposição verbal que, macroestruturalmente, combinará com a temática do próprio enredo da peça.

Também devemos observar algumas características específicas da estrutura e do tema da comédia nova. A trama da comédia antiga era construída a partir de lendas da mitologia, enquanto que a construção da trama da comédia nova depende muito mais da imaginação e da originalidade do poeta cômico. Fazendo um rápido paralelo entre a comédia nova e a antiga, podemos compreender a primeira como uma narrativa que vê no passado aspectos temáticas afins para seu momento histórico de representação. Sendo que na segunda, percebemos uma obra satírica que relaciona o presencial como motivo de escárnio para sua ficção. Além disso, a comédia nova também dispensará a necessidade do coro, uma vez que ele perdeu sua importância na ação, salvo nas vezes em que for importante para “oferecer ao público entreactos e música” (Grimmal, 1978: 67). Essa diminuição da importância do coro se deve a uma crise econômica na Grécia, o que “trouxe a supressão da coregia, obrigação imposta aos ricos, sob forma de liturgia, isto é, de um serviço público, de equipar e remunerar o Coro” (Brandão, 1984: 92).

Desse modo, Menandro vê na comédia nova uma possibilidade ideal de representa um caráter humano de seu tempo: recluso, pessimista e desgostoso com o outro, tanto na esfera individual quanto coletiva. Como veremos, o artesanato textual de O Misantropo, expresso tanto na trama quanto nas falas dos personagens, revela a permanência e a relevância de um escritor como ele em nossa modernidade em muito também ciente de seu desencantado, de seu desejo de isolamento num ambiente que não mais o permite.

 

3. A caracterização modelar do personagem Cnêmon, em O Misantropo

 Podemos perceber em O Misantropo, de Menandro, similaridades textuais e discursivas em que a representação do humano alcança um estado de naturalidade e semelhança encontradas em outras obras literárias. É importante demonstrar a construção imagética de Cnêmon traçada pelo dramaturgo ateniense, antes de perceber quais são os exatos ecos desse espírito em outras expressões literárias. O caráter de Cnêmon não é construído e apresentado apenas pela sua ação. Além de suas falas e atitudes em cena, os comentários traçados pelas outras personagens da peça permitem visualizar toda a

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caracterização de Cnêmon. Essa forma de representar e construir o personagem principal é chamada por Brandão (1984) de arte das antecipações, ou seja, o autor da peça prevê, através da fala de outras personagens em cena, o caráter de outros atuantes, como é o caso do protagonista d’O Misantropo. Isso revela que a comédia de Menandro possui uma técnica de representação muito bem elaborada e desenvolvida quanto à caracterização do protagonista. Isso demonstra a totalidade do caráter e dos sentimentos das personagens que, conforme Antonio Candido, constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser através delas. (1987).

Com relação a essa caracterização, Menandro inicia a peça com um prólogo proferido

por Pã. O deus da fertilidade traça os primeiros retratos que vão se confirmar na peça. Com

relação ao Misantropo, Pã afirma que 

Na propriedade ali à minha direita mora Cnêmon, homem cheio de rancor para com seus semelhantes, zangado com todo o mundo e inimigo da sociedade. [...] durante toda a sua existência ele nunca iniciou conversa alguma, nunca dirigiu a palavra primeiro a ninguém, a não ser para me reverenciar (constrangido por nossa vizinhança) quando passa diante de mim, Pã; e ainda assim de má vontade, eu bem sei.Com um temperamento assim ele casou com uma viúva [...] Não se contentando com discutir com ela o dia todo, ele ainda consumia assim a maior parte da noite; viviam pessimamente. E tiveram uma filha; foi ainda pior. Como a desventura deles ultrapassava tudo que se pode imaginar, e sua vida fosse apenas sofrimento e amargura, a mulher voltou para junto do filho nascido do primeiro casamento. (MENANDRO: 04).

 

Esse discurso de Pã revela parte do caráter intratável do Misantropo. O ato de se isolar e de não dirigir a palavra à personagem algum, senão para afrontar e execrar seus semelhantes demonstra o comportamento fechado, de atitudes frias e agressivas do protagonista. A descrição de sua natureza endurecida, fechada e hostil colabora para antecipar, para o leitor ou o ouvinte, o teor das peripécias que transcorrerão nas cenas d’O Misantropo. O que se observa nesse prólogo são duas técnicas de construção da personagem Cnêmon, que denominamos a antecipação do caráter do protagonista e a caracterização desse personagem através da fala e do olhar de outros atuantes.

Percebe-se isso, no modo como as adjetivações lançadas ao protagonista são mencionadas por outros personagens. Tais imprecações nominativas reaparecem em várias cenas da comédia. Pírrias, após ter procurado Cnêmon, volta desesperado e narra como o velho lhe insultou e maltratou. É a primeira descrição a partir da ação do protagonista. Não é necessário que Cnêmon entre em cena para conhecermos seu caráter hostil e maledicente. A construção de sua imagem se dá por adjetivações que não se referem a palavras de baixo calão, como acontece na comédia de Pococurante, mas por adjetivos que expressam a idéia de cólera e loucura. Por exemplo, Pírrias afirma que “O indivíduo que mora naquela casa, e que o senhor me mandou procurar, é um filho da cólera, um possesso ou um maluco!” (MENANDRO: 08) e “Vocês não podem imaginar a peste que ele é. Ele vai nos devorar!” (09). Além das características atribuídas ao misantropo pelos personagens, o uso dos pontos de exclamação e as expressões de espanto e medo realçam o comportamento de Cnêmon, uma vez que esses sentimentos sugerem o espanto e o temor frente à dureza e hostilidade do protagonista. Por exemplo, Sóstrato se surpreende com o relato de Pírrias: “Que raiva!” (MENANDRO: 08).

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É importante ressaltar que esse caráter do protagonista já é antecipado por outro personagem da peça. Górgias acha que é impossível propor para o velho Cnêmon o casamento de Sóstrato com sua filha. Conforme afirma,

 Eu puxo a conversa sobre o casamento da moça [...]. No mesmo instante ele vai declarar guerra a todo mundo, censurando o modo de viver de todos. Mas quando ele vir você assim, sem fazer nada e com esta roupa vistosa, não vai querer nem que você fique na presença dela” (MENANDRO: 19).

 

Os figurantes da comédia já sabem a atitude de Cnêmon frente a uma situação como essa. Isso revela que a conduta do Misantropo é irremediável durante toda a peça, mesmo que no final ele aparentemente decida mudar de conduta. No entanto, mesmo essa mudança de conduta é parcial, pois o misantropo continua a viver isoladamente e sem estreitas relações sociais.

 

4. O motivo misantrópico no personagem Cnêmon

Outro fator importante, passível de análise, na obra O Misantropo, de Menandro, é a opção do protagonista de viver na solidão. Desde o início da peça as falas dos personagens revelam esse desejo de Cnêmon que vê no isolamento da sociedade uma solução para suas angústias pessoais. Conforme suas afirmações, essa escolha se deve, em parte, por ele sofrer no convívio social e, no mais, por apresentar em sua atitude essa preferência ou necessidade de existir destituído de qualquer companhia social. Em 1608, na Inglaterra Jacobino, o dramaturgo William Shakespeare, apresentará um proto Mistantropo na sua peça Timão de Atenas, na qual Timão decide viver uma vida de isolamento numa caverna ao abandonar as desilusões com os amigos interesseiros do meio urbano. O diferencial, é que em Cnêmon, desde o inicio do ato dramático, não sabemos as razoes de tal desprezo/pavor pela vida em comunidade. Mesmo quando esse fala sobre essas razoes, essas nos parecem genéricas demais. Percebemos na fala do misantropo de Menandro um pavor que antecede a própria traição. Ele justifica sua escolha ao afirmar que valores como honestidade e simplicidade inexistem no meio urbano, algo que fica implícito em sua fala. Ele declara que

queria... justificar minha escolha quanto a esta vida solitária; eu sei que não é justo, mas nenhum de vocês pode mudar minha opinião; ao contrário, vocês devem concordar comigo neste ponto. Meu único erro, na verdade, era crer eu somente eu, entre todos os homens, podia bastar-me a mim mesmo, sem ter necessidade de ninguém. [...] A minha cabeça estava tão virada de tanto ver as pessoas viverem cada uma de um jeito, agindo por interesse, que eu não podia imaginar que pudesse haver alguém no mundo capaz de agir desinteressadamente, por simpatia para com seus semelhantes. Eu parava sempre nessa barreira... (MENANDRO: 38)

 Cnêmon não acredita e não confia mais no sentimento de humanidade caridosa num contexto em que as leis do compra e vende sempre estão em primeira discussão. Nesse sentido, Menandro apresenta traços ou elementos da sociedade grega, que sugerem que os valores de outrora estavam em decadência. Assim, podemos afirmar que a obra O Misantropo transfigura valores de sua época para se fazerem intrínsecos na peça, algo que Antonio Candido menciona como comum em obras artísticas que, direta ou indiretamente, sempre farão referencia ao meio em que foram produzidas (CANDIDO, 2000).

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Por outro lado, sua solidão pode ser atribuída a um desejo pessoal de se isolar. Esse sentimento é algo assimilado pelo protagonista numa atitude de proteção da sociedade. É o que afirma o personagem Górgias, enquanto conversa com Sóstrato:

 Ele é o máximo em matéria de ruindade. [...] Ele cultiva estas terras sozinho, sem a ajuda de ninguém, nem de escravo, nem de empregado contratado aqui, nem vizinho, mas somente ele próprio. O grande prazer dele é não ver ninguém. Ele trabalha com a filha ao lado quase o tempo todo; só fala com ela; com outra pessoa ele não falaria facilmente. (MENANDRO: 18). (grifo nosso)

 Essa vontade de se isolar surge da necessidade de tentar fugir do convívio social

visando defender-se das atitudes humanas reprováveis por ele e que lhe causam aflição e desgosto. Além do mais, para tentar fugir dessa sociedade e proteger-se da hostilidade humana, Cnêmon não hesita em expressar, em suas palavras e ações, o que podemos nomear de desejo de auto-proteção. Isso fica claro na menção do escudo usado por Perseu para se proteger da mágica destruidora/transformadora da Medusa, feira por Cnêmon para ilustrar sua apatia quanto a visão do outro. Segundo o mito grego, o jovem Perseu foi mandado por um pretendente de sua mãe para capturar a cabeça da górgona Medusa, tarefa em que seria morto, pois todos que olhavam para ela eram transformados em pedra. Ao se aproximar do monstro, o herói não a fitou diretamente, usando seu escudo para saber onde ela estava. Decapitando-a, Perseu tinha uma grande arma em seu poder, usada mais tarde por Atena para destruir seus inimigos. (COMMELIN, 1983, BULFINCH, 2001 & CARR-GOMM, 1995). Conforme afirma o Misantropo, enquanto pragueja e fala sozinho pelo caminho:

 Então diante disso o famoso Perseu não era duplamente feliz, ele que com suas asas podia evitar encontros com esses seres que ciscam a terra com os pés, e além disso tinha uma coisa que servia para petrificar aqueles que azucrinam a paciência dele? Ah! Se eu também tivesse a mesma coisa hoje! Ia haver estátua de pedra por aí aos montes! Não se pode mais viver! Agora eles invadem minhas terras para falar comigo. (MENANDRO: 11)

 O que se pode perceber assim é o uso do mito como exemplificação de um desejo

intrínseco de proteção contra as maldições, ilusórias ou não, presentes na face, na voz e no comportamento o ser visinho. O que está em jogo para Cnêmon são os valores antigos, não mais cultivados pela sociedade contemporânea sua. O protagonista também afirma isso ao criticar os rituais de sacrifícios que eram realizados na gruta de Pã e das Ninfas. Segundo Cnêmon,

vejam como esses bandidos sacrificam! Eles trazem cestas, comidas, não para os deuses, mas para eles mesmos. Incenso, bolo de cevada, isso é que é piedoso! É uma oferenda que o deus recebe todinha, quando se põe no fogo. Mas eles consagram aos deuses o rabo e a bexiga (coisa que ninguém come) e engolem o resto. (MENANDRO: 24).

 Na visão de Cnêmon, a sociedade não se importa mais com os valores da tradição e de

um grupo organizado religiosamente ou politicamente, estando apenas interessada em suprir suas necessidades e interesses pessoais. Dessa forma, podemos afirmar que Menandro criticou a sociedade de sua época através de uma personagem que não hesitava frente ao descaso com a tradição social e mítica, revelando assim sua decadência. Podemos ler nas falas de Cnêmon, por um lado, um forte desejo de auto-proteção contra essa decadência e, por outro, uma séria e convicta tentativa de conscientizar as pessoas que o cercam. Suas imprecações não poupam

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ninguém, ofendem a tudo e a todos: escravos, esposa, sua filha e seu filho e principalmente estranhos e transeuntes. Pírrias é atacado por ele, quando Cnêmon é procurado para falar sobre o casamento. Também maltrata a velha criada Simica, quando ela deixa cair um balde no poço:

 

CNÊMON (saindo da casa com ar feroz)Onde está a bandida?SIMICANão foi culpa minha que ela caiu no poço, patrão...CNÊMONVamos! Entre!

SIMICAEntão diga o que o senhor vai fazer comigo.CNÊMONEu? Vou amarrar você e jogar no poço!SIMICANão faça isso! Coitada de mim! (MENANDRO: 32)

 

Através dessa cena, percebemos a prepotência e a hostilidade que causa horror e aflige não só as vítimas de seus ataques, mas também os transeuntes e os que vêem a cena. O protagonista expressa sua raiva com exclamações e ameaças. Sua personalidade é intensificada e revelada através de seus brados. A expressão de seu caráter frígido e hirsuto não se limita apenas a seus atos. Sua fisionomia também expressa seus sentimentos. É o que afirma Sóstrato, enquanto o aguarda em frente a porta de Cnêmon:

 O ar dele não parece muito cordial. Que cara amarrada! Vou me afastar da porta. É melhor. Mas agora ele vem aí, gritando sozinho enquanto anda. Ele não parece muito satisfeito. Dá até medo (por que não dizer a verdade?) (MENANDRO, 10)

 Tanto sua fisionomia quanto suas palavras expressam essa hostilidade para com o

estranho, essa impassibilidade diante da presença do outro, essa raiva direcionada contra qualquer ser humano que esteja próximo de si. As palavras de Cnêmon estão repletas de marcações lingüísticas de escárnio e desdém até mesmo quando direcionadas a si próprio. É o que podemos perceber quando o protagonista fala sozinho: “Eu sou um desgraçado! Um desgraçado! Esta minha solidão é diferente das outras!” (MENANDRO, 33). A solidão e a “inadequação” social, devido às atitudes sociais desprezíveis, causam-lhe ódio e desespero frente a um mundo decadente, em que valores tradicionais são esquecidos e substituídos por outros, motivo primeiro da reprovação do personagens aos novos costumes de seu tempo. Além disso, os termos que Cnêmon usa para maldizer a sociedade demonstram o quanto ele menospreza seus semelhantes: “esses seres que ciscam a terra com os pés” (MENANDRO: 11).

Em contrapartida, ele expressa quais seriam os valores que serviriam como padrão para a sociedade.

 

Se todos os homens fossem como eu, não haveria esses tribunais, nem essas prisões para onde eles levam seus semelhantes, não haveria a guerra; cada qual viveria contente com o pouco que tivesse. Mas está-se vendo que vocês preferem as coisas assim. Pois vivam assim mesmo! (MENANDRO, 38)

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No olhar misantrópico de Cnêmon, justiça, honestidade e simplicidade são qualidades que melhorariam a vida humana se fossem seguidas. Assim, a obra O Misantropo analisa a sociedade de sua época sob uma ótica pessimista, revelando traços do mundo ateniense que esclarecem muito do todo social grego em sua época.

 5. Conclusão: Cnêmon e o homem contemporâneo

O protagonista da peça de Menandro expressa seus sentimentos de hostilidade e censura através de seus sucessivos discursos, inseridos nos diálogos que o personagem trava com outros integrantes do drama. Assim, Menandro cria um personagem que representa de modo natural o caráter humano em sua angústia solitária. O que os personagens da peça O Misantropo representam não é nada mais que as expressões humanas que tanto homens do século XXI vivenciam como homens dos séculos IV ou XVI experimentaram. Conforme demonstra Grimmal

 

Mas nem por isso, a comédia nova, mesmo que permaneça ainda muito próxima de uma sociedade pouco igualitária, deixou de manifestar uma concepção da virtuosidade humana, que não pode ser-nos estranhas. (1978: 72).

 

Desse modo, a peça de Menandro transcende os limites de seu tempo e atinge a universalidade do humano ao expressar o cotidiano da Grécia do século IV a. C. Isso fica bem evidente ao analisarmos obras literárias do período moderno. Além do misantropo Timão, de Shakespeare, talvez o exemplo mais conhecido seja o do velho rico Scrooge visitado pelos fantasmas de sua consciência no Conto de Natal de Charles Dickens (1812 – 1870). Esse velho representa todo o sentimento misantrópico de desgosto e pavor aos seres humanos, a ponto de maltratar e desprezar mesmo seus parentes.

Em Candido, de Voltaire (1694 – 1778), o protagonista encontra em Veneza um aristocrata chamado Pococurante. O nobre apresenta uma completa e infundada repulsa por toda e qualquer obra humana, o que o faz criticar e maldizer tudo a que o homem se ateve a fazer antes dele. Como bem notamos, a literatura durante toda a história humana apresenta esse conceito errante e eremita do homem desligado de sua vida social, não por obrigação ou exílio, mas por mera opção para se proteger, como bem encontramos em O Misantropo de Menandro.

Um caso bastante atípico na literatura é o Misantropo de Molière. Nessa peça do século XVI. Alceste, homem pouco sociável, tenta uma aproximação de Célimène, mas não consegue devido aos encontros inesperados com pessoas da corte. Aos poucos, descobre que essa donzela traiu-o com Oronte. Indignado, retira-se da sociedade devido à sua cólera contra as ações e costumes da sociedade.

Tal isolamento e tal solidão expressam a amargura e o desânimo do humano ao tentar se relacionar socialmente, algo que não pertence apenas à Antigüidade grega, mas se estende até nossos dias. Isso poderia ser relacionado com uma condição Pós-Moderna, em que o homem atual está perdido em seu próprio mundo isolado, amando tudo e aproveitando pouco. Sobre isso Marshall Berman afirma:

 A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos

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num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angustia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, “tudo que é sólido desmancha no ar”. (1997: 32)

 Dessa forma, encontramos em Cnêmon um personagem de caráter modelar e

reincidente não apenas na literatura posterior ao período de sua produção, por Menandro, mas também no comportamento humano. Certas particularidades do humano como a expressão de seus ideais na arte, sua busca incessante por novas possibilidades e sua curiosidade interminável são recorrentes em toda e qualquer obra humana, no decorrer dos milênios. Em mesma medida, o que poderíamos nomear de qualidades negativas também irão definir o homem enquanto animal pensante e dominante no meio em que vivem. Em Menandro, percebemos uma possível problematização de um comportamento inerente ao homem: a misantropia independente. No entanto, mesmo o mais misantropo de todos, viu-se só, quando, caindo num poço, precisava da ajuda do outro para continuar vivo.

No decorrer desse trabalho tentamos demonstrar como o sentimento misantrópico se apresenta na obra O Misantropo de Menandro, na figura do protagonista, Cnêmon. Realçamos o trabalho interpretativo da obra ao lado da devida referência teórica, bem como de uma retomada de apenas alguns casos da literatura em que a mesma figura reaparece, porém transvestida de outras características e contextos. Confirmamos o resultado de que as características do protagonista da comédia de Menandro é modelar com relação a outros exemplos da literatura. Pensamos que ao ler Menandro, bem como Shakespeare, Voltaire, Molière ou Dickens, ou qualquer obra literária, de certa forma nos reencontramos, como Harold Bloom bem afirma, a um espírito presente no âmago de qualquer homem ou mulher. É necessário ao humano se afastar às vezes, fugir, desaparecer de uma vida onde não se vive mais sozinho. Diariamente, estamos rodeados dos nossos pares nos mais variados lugares e situações. No entanto, assim como o homem não foi feito para viver longe da sociedade, também não foi feito para viver completa e inteiramente dedicado a ela. Quando lemos os personagens literários - embora figuras distorcidas do humano -, nos lembramos da nossa necessidade intrínseca de nos afastarmos regularmente para pensarmos e repensarmos nossa existência como seres pertencentes de uma coletividade organizada. Mas o que finaliza esse trabalho são as palavras de John Donne (1572-1631), poeta inglês do século XVII, a respeito do que nunca devemos esquecer enquanto seres humanos políticos e sociais.

 

Nenhum homem é uma ilha; Nenhum deles está só. (...)Cada homem é um pedaço do continente, uma parte do todo. Se um torrão for arrastado pelo mar, a Europa é o mínimo, como se fosse um promontório,como se fosse a casa de teu amigo ou a tua própria: a morte de qualquer homem me diminui, porque estou envolvido com a humanidade ... portanto, nunca mandes perguntar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.

 

 

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6. Bibliografia:

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental: os livros e a escola do tempo. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1994.BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: tragédia e comédia. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução de David Jardim Júnior. 18ª ed. Rio de Janeiro, 2001.CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987.______. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária. 8a ed. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000.CARR-GOMM, Sarah. Símbolos na Arte. 1ª. ed. São Paulo: EDUSC, 2004.COMMELIN, Pierre. Nova Mitologia Grega e Romana. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983.DICKENS, Charles. Um Conto de Natal. Santiago: América do Sul, s. d.DONNE, John. The complete poetry of John Donne. New York: Archor Books, 1997.GRIMMAL, Pierre. O teatro antigo. Lisboa: Edições 70, 1978.MENANDRO. Misantropo. s.d.MOLIÈRE. Le Misanthrope. Paris: Larousse, 1998.VOLTAIRE. Contos. São Paulo: Abril Cultural, 2003.

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A (CONTRA) NACIONALIDADE DE DIOGO MAINARDI

José Luiz Foureaux de Souza Júnior PhD Universidade Federal de Ouro Preto-MG

RESUMO: O presente artigo procura desenvolver uma leitura do romance de Diogo Mainardi, Contra nação, considerando a possibilidade de enxergar no texto referências a um discurso de desconstrução da idéia de nação. A leitura depreende do texto uma possível discussão da dicotomia moderno X pós-moderno, dado que a paródia e a ironia permeiam o discurso ficcional, fazendo emergir do texto referências aparentemente desvinculadas de sua leitura.

Palavras-chave: leitura, ficcionalidade, Diogo Mainardi

ABSTRACT: This paper intends to develop an innovate reading of Diogo Mainardi’s novel Contra a nação (Against nation). I consider the possibility of a deconstructive reading of the discourse references in Mainardi’s text. This reading provides a dichotomy of modern X postmodern, once parody and irony enable the fictional discourse, which is seen on the text surface. Nevertheless, such references are apparently disconnected of its reading.

Key-words: reading, Diogo Mainardi

Quanto a tudo mais podemos dissimular; fazer, como filósofos, belos discursos de forma excelente; conservar a nossa serenidade em face de acidentes que nos atinjam superficialmente. Mas na última cena, a que se representa entre nós e a morte, não há como fingir, é preciso explicar-se com precisão em linguagem clara e mostrar o que há de autêntico e bom no fundo de nós mesmos: “então a necessidade arranca-nos palavras sinceras, então cai a máscara e fica o homem”. [Lucrécio]

(Michel de Montaigne, Ensaios)

Estar fora de lugar supõe a existência de um lugar. A aparente obviedade dessa afirmação esconde um sofisma insondável, verdadeiro desafio filosófico. O discurso tem tentado elaborar as partes constitutivas desse sofisma para dar-lhe feição racional e, com isso, tentar dirimir a dúvida e a ignorância que permanecem. Esta é uma direção possível para pensar o tema desse artigo. Ele fala de um Brasil “literário”, um Brasil ficcional que se assemelha muito ao real. Um Brasil da História, revisitado por um escritor de verve irônica, sarcástica quase amarga, à luz de Montaigne, que aparece em epígrafe. Fica, então, a pergunta: o que é o Brasil? Se continuar nessa linha de raciocínio, chego ao ponto central de minha interferência: o lugar de Diogo Mainardi na Literatura Brasileira ou, em outras palavras, como falar desse brasileiro fora do Brasil.

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Na onda dos estudos culturais, cabe aqui uma digressão provocativa. Trata-se de considerar que a Teoria da Literatura – instrumento que auxilia na leitura da anunciada contra-nacionalidade aqui – ocupa uma espécie de entrelugar, um intervalo – na esteira do que propõe João Alexandre Barbosa – que faz com que as suas “verdades”, de resto, como todas as outras, sejam sempre objeto de uma outra visada, uma outra leitura. Assim é que a digressão cumpre aqui o papel de instaurar esta suspensão, esse intervalo, para que eu possa provocar o leitor.

Para falar desse entrelugar que a Teoria da Literatura ocupa hoje, é necessário pensar sobre a consistência (ou não!) dos famigerados “estudos culturais”. Na verdade, a expressão já aparecia no discurso crítico de Fredric Jameson, ao final dos anos oitenta, mas por aqui tomou fôlego um pouco mais tarde, acompanhando uma discutível crise dos estudos literários. O adjetivo se justifica, uma vez que os estudos literários, em sua História, sempre se sustentaram por uma crise “essencial” – muito bem perseguida e teorizada pelos formalistas russos. Essa afirmação cumpre seu papel de justificar a constatação de que sem crise, a Teoria da Literatura não teria chegado onde chegou.

Por outro lado, utilizar o argumento de que o texto literário já não ocupa hoje o lugar que ocupava, não leva a lugar nenhum. Num momento de “globalização” – seja lá o que isso venha a significar! – em que os meios de comunicação estão a cada minuto mais sofisticado, o lugar ocupado pelo livro é matéria de uma reflexão específica que, de uma maneira ou de outra, vai seguir os desdobramentos possíveis da própria Teoria da Literatura.

É pertinente admitir, em todo caso, que haja um alargamento do espectro de influência e/ou de abrangência daquilo que genericamente vinha se chamando de estudos literários. Talvez por força da diversificação do conceito de cultura e de um exacerbado espírito pragmático, que alimenta o isolamento e a individualidade, abolindo limites e diferenças, criando uma zona ambígua de ilimitada extensão e inominada identidade, não seja mais possível pensar a Literatura como era pensada até o século XX. Até esse ponto eu posso concordar. Não é possível, a partir desse argumento, ditar a morte dos estudos literários, por força da indefinibilidade de seu objeto. Ora, essa mesma indefinibilidade é que fez com que a Teoria da Literatura chegasse onde chegou, repito. Do contrário, não haveria a possibilidade de diversificação da abordagem desse “fenômeno”, a Literatura. Talvez a institucionalização da Literatura, fazendo com que “disciplinas” sejam criadas e se consolidem no cenário universitário, seja a principal causa de uma confusão que elege os estudos culturais como um substituto adequado, eficaz e altura das necessidades do momento presente. Ledo engano! Tal equívoco tem imperado como um elemento de redução dos estudos literários a uma universalização, sempre e diuturnamente, combatida, aparentemente fora da demanda legitimadora dos estudos culturais.

A irredutibilidade é hoje um tema que nomeia o jogo que se estabelece em debates ou séries de debates que envolvem a relativa substituição de aparato tradicional de estudos literários pelos estudos culturais, na reflexão transnacional sobre a cultura. Não estou de acordo com a expressão “substituição”, mas seu uso aqui é apenas indicativo de um sintoma (quase institucionalizado) que eu não posso deixar de levar em conta. Esses debates envolvem ainda o peso das correntes intelectuais que fluem unilateralmente do discurso universitário. Digo unilateralmente porque, na verdade, a “base” teórica é de matiz norte-americano, o mesmo acontecendo com a tendência substitutiva dos estudos culturais, principalmente em sua “adaptação” equivocada em solo brasileiro. Nada disso, no entanto, se faz suficiente para a eleição dos estudos culturais como um “substituto”, uma vez que não há o que substituir!

As condições desse movimento de redução discursiva de modelos, tidos e havidos como autônomos, de pensar a cultura, mudaram no decorrer das últimas décadas – a análise dos manuais de Teoria da Literatura é um exemplo demonstrativo disso, sem a menor dúvida. O que ainda podia ser levado em conta, enquanto permanência, constância, é uma tendência

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de cruzamento entre as pulsões norte-americanas e as forças centrípetas de um desejado (ainda que equivocado) universalismo científico. Em outras palavras, não há como continuar sustentando o discurso identitário, tomado sempre de modo paradigmático, como instrumento de afirmação de uma desejada sintonia entre Histórias específicas e epistemologias gerais, e vice-versa. Assim, a contribuição francesa, espanhola, italiana e argentina, por exemplo, vão ocupar um lugar importante nos estudos literários, principalmente se tomadas as balizas aqui implícitas.

A mudança não se deve apenas ao fato de que o próprio conceito de uma “epistemologia geral” vem sendo consistentemente criticado. Deve-se também ao fato de que, ao se inverter a definição freudiana de melancolia, toda vez que se busca refletir sobre a especificidade histórica a sombra do sujeito que reflete sempre já se projeta sobre o objeto ela reflexão. O sujeito permanece, sempre e mais, indefinível a priori, ele vai sempre se constituir num espaço límbico de discurso que, a cada passo, toma uma configuração diferente. Assim, como o desaparecimento de qualquer mundo absolutamente “real” acaba por destruir a possibilidade de se pensar sobre seu aparecimento, o fracasso da certeza epistêmica é inevitável. Ou seja, a Teoria da Literatura vive de/em uma certa precariedade de experiência: o sujeito – autor, leitor, crítico, teórico – está, existe e age sempre sob a égide da dissolução de um objeto “próprio”, específico.

Num primeiro momento, houve a hegemonia da antiga Filologia. Um instrumento para a universidade moderna refletir sobre o social a partir do legado cultural da comunidade nacional. Seu estatuto foi mantido assim pelo aparato literário, que excluiu ou subordinou a atenção dada a outros elementos simbólicos, também capazes de iluminar os processos de constituição cultural. Nessa perspectiva, é necessário pensar os estudos culturais, a que de modo apressado e com poucos matizes se outorga uma suposta genealogia britânico-norte-americana, não são reconhecidos por seus críticos como uma espécie de retorno às fontes filológicas. Assim, é possível criticá-los por se originarem de uma vontade cega ou oblíqua de negar a literatura, entendida como promessa de autonomia estética e teórica.

Diz-se que os estudos culturais politizam tudo e, portanto nada, sem atentar para a preservação dos valores propriamente estéticos que serviram de base para a possibilidade auto-reprodutora do intelectual humanista desde o Romantismo. É necessário, investigar qual é o estatuto da estética na reflexão contemporânea, por um lado; e, por outro, se a estética pode hoje funcionar como uma forma paradoxal de abertura para algum dado exterior em relação à História ou ao social, em relação aos quais a Teoria da Literatura poderia perseguir seu desejo de verdade, negando, sempre e mais, uma tendência à fetichização do real – nos moldes em que as “correntes” mais tradicionais demonstraram, em seu desenvolvimento.

O que está em jogo na pseudodicotomia estudos literários/estudos culturais não é outra coisa senão a peculiaridade do exercício teórico no âmbito das Ciências Humanas. Não se pode negar que nenhum dos dois campos em disputa pode monopolizar a atenção de quem se dedica aos exercícios teóricos, principalmente no que diz respeito à literatura. No entanto, a função desses exercícios é, exatamente, discutir as bases para que essa mesma dicotomia deixe de ocupar um lugar tão destacado, cedendo espaço para questões mais complexas, diversificadas e atraentes, como a representada pelo olhar homoerótico, dado que ele vai dinamizar a leitura do “texto cultural”.

O perímetro de ação que os estudos culturais desenham não pode ser reduzido a um retorno ingênuo às raízes clássicas, isto é, românticas, da Filologia. Ao mesmo tempo, essa redução não se aplica aos estudos literários, como uma forma de desautorizá-los em sua consistência, necessitado que fica de uma substituição urgente e definitiva. Existe uma atividade político-intelectual que deve ser compreendida como uma espécie de desenvolvimento de uma relação crítica com o presente. A esta dá-se o nome genérico de política acadêmica; no campo das Ciências Humanas – e, mais especificamente, no que se

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refere à legitimidade de ações da Teoria da Literatura, em busca de novos horizontes para as suas próprias expectativas.

Disso resulta que a atividade teórica, por princípio, não pode mais ser mantida com base na insistência em modalidades de discurso cultural que passaram a fazer parte de um “arquivo” documental e que tiveram sua pertinência e produtividade crítica praticamente esgotadas. Isso não se refere apenas aos estudos literários, mas, do mesmo modo, aos estudos culturais: a referência aqui está intimamente relacionada ao aparato que pretende estudá-la, ao discurso que se faz porta-voz de uma legitimidade que não “existe”.

A tradição literária não tem feito outra coisa a não ser investigar a especificidade de uma teorização a partir de conceitos já batidos de identidade e diferença – o que ficará explicitado no levantamento de lacunas apresentadas pelos/nos manuais de Teoria da Literatura. Na verdade, essa reflexão compartilhou de teorias construtivistas de modo marginal. Estudos culturais e estudos literários são, ainda que exista quem negue, manifestações discursivas que teórica e criticamente estão sempre revisitando suas “bases”. Isso se dá sem que sua pertinência e relevância sofram qualquer tipo de desvalorização. O que se conhece por “correntes” na/da Teoria da Literatura podem até ser assim consideradas, mas os conceitos de identidade e diferença, caros a um certo momento dos estudos literários, continuam a encontrar vida nova, ainda que precária, no espaço dos estudos culturais – e não poderia ser de outra forma. Outro fato é o de que grande parte dos trabalhos dos estudos culturais consiste apenas em reproduzir e transplantar para novos textos velhas categorias: a questão permanece “comicamente” a mesma. É claro que se ganha algo quando os critérios de inclusão de possibilidades teórico-metodológicas para um campo de conhecimento qualquer se ampliam. Nesse sentido, sou levado a concordar com Alberto Moreiras, quando afirma:

É certo, e contém a verdade da tautologia, que se ganha algo ao se ampliar os critérios de inclusão e ao tornar possível, para um acadêmico literário, ler o texto cinematográfico ou o texto dos novos movimentos sociais, ao passo que antes não se permitia ler mais que o texto ensaístico, novelístico ou poético. Nos estudos culturais dá-se um retorno à fonte filológica, pois a filologia procurava explorar a especificidade cultural a partir de um amplo repertório de linhas discursivas. Também é tautologicamente verdadeiro que se perde algo quando aqueles que lêem tais textos o fazem a partir de um certo enfraquecimento de sua capacidade técnica. Sua capacidade de leitura é, em princípio, enfraquecida porque leitores treinados para uma atenção exaustiva ao literário não conseguem simplesmente transferir sua atenção para o não-literário e passar a produzir resultados de tal esforço. Mas não se deve pensar que a história da leitura é estática, e que instrumentos adequados ao tipo de leitura que é pertinente à ampliação do espaço textual não serão em breve criados. Todavia, o que é mais certo, e também mais interessante, e não tautológico, é concluir que, se aceitamos uma análise tão simples como sendo correta, então os estudos culturais, da perspectiva literária, estão hoje muito longe de terem criado um novo paradigma para a reflexão latino-americanista. (Moreiras, 2001, 15)

O autor se refere a um contexto localizado, o da América Latina. Sua argumentação se encaminha para uma defesa, cada vez mais acirrada, dos Estudos Culturais, como um substitutivo adequado para os Estudos Literários, no mesmo contexto. No entanto, ele fala das contribuições possíveis para se procurar as saídas, igualmente possíveis, da interlocução entre os dois campos concorrentes. Assim, sua visada aponta para o caráter interdisciplinar que deve imperar sobre todas as diferenças, fazendo com que os impasses que se criam, transformem-se em matéria de especulação teórica; no sentido de dinamizar, sempre e mais, os estudos voltados para a Literatura, para a Cultura.

Não sei, então, porque denegar o fato de que os Estudos Culturais são, até certo ponto, a expansão do mesmo, “mais da mesma coisa”, como diz o próprio Moreiras. Determinar uma

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prevalência entre essas duas “denominações”, muito antes de legitimar essa ou aquela opção “política”, é reafirmar um dispensável anacronismo que faz do diferente, o mesmo. Porque manter essa “disputa” entre os dois campos, se eles se interpenetram e mantêm, ainda que muita gente não aceite, relações intrínsecas de auto-reflexividade mútua? Uma outra maneira de se fazer a mesma pergunta pode ser:

(...) se o antigo aparato critico literário e o novo aparato culturalista lidam com o mesmo conceito de razão crítica, e se tal conceito está circunscrito à determinação, avaliação e defesa do que é propriamente latino-americano, ou intralatino-americano, na modernidade alternativa latino-americana específica, e, ainda, se o conceito de razão crítica utilizado por ambos os participantes da disputa não consegue ir além da afirmação de um espaço identitário de resistência, seja do ponto de vista continental, nacional ou intranacional, então de que forma está em jogo nesses debates qualquer conceito real de crítica? (Moreiras, 2001, 16)

As perguntas ficam em aberto. Sua resposta pode ser encontrada com os mais diversos encaminhamentos do raciocínio. Aqui, elas apontam para um fato que interessa, antes de mais nada: o real e consistente trabalho teórico tem que estar além das limitações políticas, ainda que estas seja reconhecidas. Em outras palavras, qualquer vinculação ideológica que leve a respostas unilaterais para qualquer uma dessas perguntas, está fadada a ser responsabilizada pela falência da crítica e da teoria, enquanto procedimentos discursivos que se querem críticos e abertos aos desafios de inerentes à sua própria prática.

A falácia do discurso de defesa dos Estudos Culturais transparece na própria argumentação e, apenas assim, tenta redimir o discurso da Literatura. Isso constitui uma insuficiência que se revela apenas se for denegada a herança/missão humanística do exercício crítico voltado para a Literatura. A questão de fundo é ética e não conjuntural. O substantivo está sendo substituído pelo circunstancial. Se os estudos literários perderam sua “função”, porque continuar afirmando sua desimportância com tanta veemência? O que se vê é uma fuga do ponto nevrálgico (humanismo), em nome de uma redução conceitual, da ordem do capitalismo, das relações que passam a ser “valorizadas”, apenas e somente, enquanto superficialidades transitórias.

Isto posto a idéia de lugar deixa de ser um vetor definitivo e inescapável, dado que sua constituição discursiva o coloca numa esfera de plausibilidade interpretativa. De mais a mais, dizer que a nacionalidade de uma literatura pode seria identificada por sua redução a uma língua nacional, mediatizada por um autor nacional, é por si só questionável. Suficientemente questionável, para não ser considerada com ponto de partida seguro. Neste sentido, não é abusado considerar a dificuldade de compreender o fenômeno da literatura da Índia, por exemplo, apenas reconhecida mundialmente (em certa medida) quando publicada em Língua Inglesa. O que é, então, a literatura da Índia? Então, todos os escritores indianos estão fora de seu país.

Dessa maneira, os critérios tradicionalmente utilizados para identificar a “nacionalidade” de uma literatura mostram-se insuficientes. Imagine-se um brasileiro, que vive na Europa, escrevendo em português, sobre o Brasil. Seria esse um exemplo de Literatura Brasileira? Como no caso da Índia, ainda que por caminhos diferentes, essa questão se impõe: estar fora de um território não pode ser um critério excludente. Em alguns casos, como acontece aqui, essa “localização” é exatamente amola mestra de um exercício de autocrítica saudável, mais que necessário. A série de indagações não pára por aí, mas a utilização que delas faço sim. Quero deter-me, especificamente, numa brevíssima apresentação desse tópico – estar fora de algum lugar –, tomando como ponto de partida o “romance” Contra o Brasil, de Diogo Mainardi. O título vem ao encontro de minhas

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primeiras colocações, pois estabelece uma expectativa no mínimo curiosa: o que está contra o Brasil? Ou ainda: quem está, ou é, contra o Brasil? No entanto, ao final da leitura, o que se percebe é que não há nada “contra” o Brasil, mas contra um certo Brasil, ou um Brasil sonhado, inventado, “achado” como diz a carta de Caminha. Há que se ressaltar que a palavra “contra”, enquanto elemento composicional, guarda, para além do significado de oposição direta, de negação, um sentido outro de “estar diante de”, o que não deixa de ser uma posição oposta, mas reveladora de uma nuance, ao mesmo tempo delicada e cavilosa, de estar “reconhecendo” alguma coisa. A língua tem dessas sutilezas...

De cara, percebe-se um intrincado trabalho de pesquisa, numa espécie de releitura de arquivos e documentos que narram a História do Brasil, principalmente a História contada pelos estrangeiros que aqui estiveram a partir do século XVI. Começando com uma obsessiva fixação em Claude Lévi-Strauss, o autor passa por antropólogos, sanitaristas, médicos, sociólogos, militares, historiadores, filósofos, músicos, poetas, comerciantes, renegados, pastores evangélicos, presidentes republicanos (ou democratas, eu não sei!) etc. Uma pequena amostra de tão variada plêiade é a seguinte lista de nomes: Michel de Montaigne, Roger Bastide, Charles Darwin, Spix e Martius, Prosper Mérimée, Marechal Rondon, Giuseppe Ungaretti, Kaspar Bele, Simão de Vasconcelos, André Thevet, Thomas Hardy, Conde de Gobineau, Jean-Paul Sartre, Theodore Roosevelt, Claude d’Abbeville, Auguste de Saint Hilaire, G.K. Chesterton, Guy de Maupassant, Albert Camus, Elisabeth Bishop e P. David Price, entre muitos outros. Uma galeria de personagens que faz companhia a alguns nomes das letras nacionais como José de Anchieta, Mário de Andrade, Castro Alves, José de Alencar e Gonçalves Dias. Estranha mistura, mais estranho ainda o resultado. Visitantes reais ou meramente referências textuais, as “citações’ do narrador compõem um intrincado tecido de vozes que nenhuma harmonia alcançam, a não ser por um ponto: o Brasil é seu objeto. Qual Macunaíma pós-moderno (se quiserem alguns), o protagonista desfaz e refaz os discursos, às vezes, desencontrados, mas sempre direcionados para o mesmo ponto: o Brasil.

Propositadamente, o autor constrói sua narrativa a partir de citações de todos aqueles que foram objeto de sua (igualmente) obsessiva busca. O protagonista, Pimenta Bueno, é um exímio manipulador de palavras alheias, fazendo confundir os analistas do discurso quando se debruçam sobre a questão da alteridade. Não há etnografia capaz de deslindar essa ficção que se quer, ao mesmo tempo, crítica e safada, no sentido mais popular do termo. Safada sim, pois ao mesmo tempo em que destrói alguns dos mitos “nacionalizantes” de nossa cultura, a narrativa de Mainardi reforça os traços dessa mesma nacionalidade, agora robustecida por sua autocrítica. Esse é o exercício do protagonista, um constante olhar sobre si mesmo, tirando o melhor de cada situação, sempre, é claro, em proveito próprio. Uma espécie de eternização da famigerada Lei de Gerson: “você tem que levar vantagem em tudo, certo!?”. O sotaque malandramente carioca, que acompanha o autor dessa máxima da ética social de um certo Brasil, pode ser ouvida da boca de personagens globalizados de programas televisivos como Big Brother Brasil e Casa dos artistas, por exemplo.

A capa da edição aqui compulsada é reveladora de todas essas caraterísticas. Ela mostra um grupo de escoteiros (o que já é sintomático!) portando a bandeira do Brasil, em meio a uma caminhada – aparentemente de conquista de território – numa clareira. Uma associação com a famosa tela de De Chirico não pode ser aqui esquecida, pois revela uma interlocução com o modus operandi do Romantismo que tanto esforçou-se na direção afirmativa das nacionalidades. As cores predominantes são as mesmas da bandeira nacional, com exceção do nome do autor que vem em tarja vermelha. Simbolicamente revolucionária, essa cor aponta para o caráter perverso da narrativa que vai se ler, sob a pena desse brasileiro que vê sua pátria de fora, no mínimo, em dois sentidos: física e culturalmente. Mainardi reescreve a História de um certo Brasil, ou melhor, conta uma história de redescoberta do Brasil. Uma história literária, porque escrita, por um lado; uma história da literatura, por

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outro, uma vez que todas as referências podem ser relacionadas sob esse paradigma. de qualquer maneira, uma história (vista) contada pelo avesso, de fora para dentro. O romance pode ser lido como uma resposta a Tristes trópicos, de Lévi-Strauss: um exercício antropofágico com a personagem oculta obsessivamente perseguida pelo protagonista.

Em se tratando de exercício antropofágico, posso remeter meu raciocínio à idéia de uma poética do descentramento, para utilizar os termos de Affonso Romano de Sant’Anna, ao analisar as linguagens do Modernismo, em ensaio intitulado “Modernismo: as poéticas do centramento e do descentramento”. Nesse trabalho, o crítico e poeta carioca desvela-se na análise do pressuposto de que existe, no fundo, um entrecruzamento de linguagens no Modernismo, o que funciona como solo comum para as diversas manifestações poéticas concernentes aos desdobramentos estéticos da Semana de 22, principalmente no que diz respeito à poesia. Ainda que não se trate do mesmo “gênero” literário, como é o caso, as idéias são interessantes para a leitura que proponho do romance de Diogo Mainardi. Em outras palavras, o mesmo “movimento” que Sant’Anna explicita nos poetas modernistas, pode ser detectado na ficção em causa:

(...) na paródia o texto histórico deslocado soa estranhamente. É exatamente o efeito de estranhamento que se consegue fazendo a palavra aparecer fora de seu lugar natural. Oswald de Andrade montou muitos de seus poemas com frases extraídas dos viajantes e descobridores. A seleção e a combinação dessas sentenças é que resultam no efeito paródico (...).Das linguagens do Modernismo a paródia tem sido a única claramente referida pela crítica até hoje. Falta agora relacioná-la não apenas com as outras linguagens, mas destacar que ela não é específica de um ou outro autor. Ela é antes um solo comum a todos. (Sant’Anna, 1975, 63-64)

Note-se que o resultado obtido por Diogo Mainardi não é mais uma novidade. Não se trata, efetivamente, de uma criação original, a considerar o que diz Affonso Romano de Sant’Anna. O estranhamento no texto do romance é o mesmo sentido e detectado pelo crítico, quando de sua análise da poesia modernista. Por outro lado, o lugar “natural” das citações no texto do romance aparece também deslocado. Exatamente como Oswald de Andrade já praticava em sua poesia. Por fim, quando se trata de “anunciar” a boa nova da nacionalidade antropofagicamente constituída, os modernistas – e, em certo sentido, pode-se arrolar o nome de Diogo Mainardi nessa lista – são unânimes em eleger a paródia como uma linguagem “comum”, o que confirma essa mesma hipótese. Por essas e por outras, a consideração de Contra a nação como uma narrativa que privilegia a paródia, seria reduzir muito a sua leitura, fazendo com que o texto fosse limitado a uma conjunção ideológica com a estética modernista: isso é apenas perceber e anotar o óbvio.

O romance trata basicamente da história de Pimenta Bueno que, depois de incendiar um prédio velho no centro de São Paulo, matando supostamente um grupo de mendigos que ali se alojara, sai numa busca desenfreada da redescoberta da trilha feita pelo Marechal Rondon, quando da implantação de uma linha telegráfica. As peripécias do protagonista se desenrolam em plena selva brasileira, o que não poderia deixar de acontecer! Os nambiquara são seu objeto de desejo, num afã de refazer o contato primitivo e rever toda a visão do Brasil, principalmente aquela marcada pela obra de Lévi-Strauss: eminência parda de todo o relato. Ao final, o protagonista volta a São Paulo e de lá parte para a Europa, quando reencontra Luísa, a índia com quem manteve relação prolongada, quando esteve na selva. Ela tem um filho e os dois voltam a se encontrar, não sem uma certa relutância de Pimenta Bueno que “prepara-se para ir embora. Antes disso, porém, abre a bolsa de Luísa e rouba os poucos

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trocados que encontra em sua carteira. depois parte assoviando o Estudo número 3, opus 10, de Chopin. (Mainardi, 1998, 214)

A referência a Chopin se deve, é claro, a Lévi-Strauss que, segundo o protagonista e o próprio narrador, teria assoviado muitas vezes trechos dessa peça romântica, para afugentar o tédio e uma certa irritação que sentia quando de sua visita ao Brasil em 1939. Percebe-se assim, antropofagicamente, a anarquização – quase carnavalesca, para lembrar Bakhtin –, do discurso do antropólogo: uma outra paródia que tem início, como já referido, na própria capa da edição compulsada. Instaura-se, então, uma certa ambigüidade, a marcar todo o desenvolvimento do relato ficcional: um posicionamento contra a pátria, como quer o título da obra, é construído pelo olhar “estrangeiro”, a favor de uma pátria mais “natural”. Essa peculiaridade estaria respaldada pela revalorização dos Nambiquara: exemplo ficcional da “geração original” do Brasil, na perspectiva do próprio Romantismo. A estrutura da narrativa, montada em diálogos, evidencia uma perspectiva praticamente cinematográfica, o que privilegia a dicção dialógica do relato do próprio Pimenta Bueno, a partir das citações que vai vociferando mata adentro, Brasil afora. Gostaria de destacar dois trechos do romance para a brevíssima consideração anunciada no início. O primeiro deles faz uma referência direta a Rudyard Kipling:

PIMENTA BUENO Rudyard Kipling jamais se recuperou dos infortúnios poéticos em terras brasileiras! É necessário dividir sua obra entre antes e depois da vinda ao Brasil!Pimenta Bueno dobra o corpo para a frente e, com a cabeça em riste, parte a toda velocidade rumo ao cupinzeiro.

PIMENTA BUENO Por mais talentosos que sejam, todos os estrangeiros que vêm ao Brasil passam por esse irreversível processo de atrofia intelectual!

Pimenta Bueno acelera cada vez mais.

PIMENTA BUENO o Brasil tem o poder de dissipar as inteligências!

É iminente o impacto com o cupinzeiro. (Mainardi, 1998, 81)

O caráter fortuito da referência ao poeta inglês serve apenas de “deixa” para uma estocada ferina no posicionamento naturalista de Sílvio Romero. Trata-se da famosa “obnubilação Brasília” que, nas palavras do crítico e historiador brasileiro, é um fenômeno que afeta todos os estrangeiros que aqui aportam, fazendo com que vejam o Brasil com olhos exaltados. A exuberância da flora, a liberalidade de costumes, o clima tropical e o exotismo causado pela distância, inauguram uma alteridade sedutora que reveste o Brasil e faz com que seja visto de maneira distorcida. Implicitamente, o que o relato ficcional de Mainardi demonstra é que posicionamentos como esses, de brasileiros e/ou estrangeiros, contribuíram, e muito, para a distorção de uma auto-imagem possível. A ficção, nesse caso, tenta resgatar o que está encoberto por esses discursos cruzados, ainda que esse exercício esteja sendo feito por alguém que está “fora” de seu próprio território. Distância cômoda e ambígua, ao mesmo tempo; eficaz e perigosa, pois coloca seu “locutor” numa posição de mesmo quilate: ao mesmo tempo em que critica, defende; simultaneamente à desconstrução discursiva, reafirma uma auto-imagem,construída pelo avesso. O segundo trecho que desejo destacar faz uma referência direta a Gonçalves Dias. É o seguinte:

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PIMENTA BUENO Gonçalves Dias descreveu esse momento em “Leito de folhas verdes”, em que uma jovem índia prepara o terreno à espera do amante: “Eu sob a copa da mangueira altiva / Nosso leito gentil cobri zelosa / Com mimoso tapiz de folhas brandas”.

LUÍSA Gonçalves Dias? Quem é Gonçalves Dias?

PIMENTA BUENO “O maior poeta do Brasil, aquele que com mais ardente lirismo cantou a majestade da terra brasileira, a nobreza,o valor e o infortúnio da raça selvagem”, segundo Olavo Bilac.

LUÍSA Eu não gosto de poesia. Prefiro cuspir na cara dos outros. (Mianardi, 1998, 115)

Nesta passagem, o protagonista está prestes a manter uma relação sexual com uma índia Nambiquara em troca de anzóis e/ou outras prendas. O detalhe é que Luísa é mulher de José Maria, outro índio, a quem Pimenta Bueno convence de que a cessão de sua esposa a um branco era prática socialmente adequada e aproximativa de sua tribo. Na sintonia de minha apresentação, a passagem ressalta a verve irônica de Pimenta Bueno, que, desta feita, volta-se para um dos epígonos do romantismo indianista da Literatura Brasileira. Como Santa Rita Durão, outro poeta citado pelo protagonista, Gonçalves Dias é, da mesma maneira ambígua que na passagem anterior, relido pelo protagonista. Ao tentar cometer um ato condenável, numa certa perspectiva moral, Pimenta Bueno respalda-se num epígono da mitologia literária brasileira, para justificar esse mesmo ato. O “leito de folhas verdes” é o espaço em que a “nova” visão da brasilidade terá que ser vista, depois que Luísa cai na lábia de Pimenta Bueno. O uso inveterado do poeta romântico evidencia o espírito antropofágico que marca a ficção de Diogo Mainardi. Deglutindo não apenas as referências estrangeiras, mas regurgitando as nacionais, o protagonista vai reacendendo a chama de uma discussão que parecia concluída depois da Semana de 22, principalmente depois do mapeamento feito pelo Regionalismo, nos anos 30. O que aqui já foi exposto leva-me a pensar numa passagem do famoso ensaio de Roberto Schwarz, “As idéias fora do lugar”, que passo a citar:

Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente, o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido impróprio. É nesta qualidade que elas são matéria e problema para a literatura. O escritor pode não saber disso, nem precisa, para usá-las. Mas só alcança uma ressonância profunda e afinada caso lhes sinta, registre e desdobre – ou evite – o descentramento e a desafinação. Se há um número indefinido de maneiras de fazê-lo, são palpáveis e definíveis as contravenções. Nestas registra-se, como ingenuidade, tagarelice, estreiteza, servilismo, grosseria, etc., a eficácia específica e local de uma alienação de braços longos – a falta de transparência social, imposta pelo nexo colonial e pela dependência que veio continuá-lo. (Schwarz, 1981, 24)

Tratando especificamente da obra de Machado de Assis, a passagem aqui citada não deixa de referendar o que venho dizendo sobre o romance de Diogo Mainardi em apreço. As “idéias fora do lugar” de que trata o ensaio, em sua particular visada sobre o século XIX literário no Brasil, são, em certa medida, as mesmas que o protagonista de Contra a nação utiliza em sua perplexa e peripatética caminhada pelo “interior” do Brasil. O adjetivo “interior”, aqui, corrobora a ambigüidade da ficção de Mainardi, uma vez que ele fala de fora do Brasil, com os olhos dos estrangeiros – suas citações – sem, no entanto, deixar de “botar o

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dedo na ferida”. É o mesmo movimento de que trata o ensaio de Schwarz, com um resultado diferenciado.

A impropriedade de que trata o ensaísta, não “cabe” na ficção de Mainardi, uma vez que a desconstrução é a marca de sua dicção ficcional: prática respaldada no ideário modernista, posterior ao período recortado pelo ensaísta. Por outro lado, a desafinação e o descentramento, que lá são características desabonadoras, aqui, tornam-se pontos de amarração do próprio discurso antropofágico do protagonista. Contra a nação é uma das “palpáveis e definíveis” contravenções de que fala o ensaísta. Nesta, a marca dialógica dos diversos pontos de vista, conjugados na atabalhoada saga de Pimenta Bueno, revela um cuidado inusitado em cercar esses mesmos pontos de vista, numa conjugação outra, mais perversa, menos comprometida com ideários estéticos e/ou sócio-políticos. A contravenção não pode ser punida, mas saldada como uma tentativa, no mínimo, interessante de resgatar um senso crítico um tanto embotado pelas rocambolescas investidas do que se convencionou chamar de “pós-modernidade”. Em terras coloniais, fica um tanto difícil se livrar da influência falaciosa de discursos aparentemente redentores.

Numa digressão final, fico pensando se a ficção de Mainardi também não abre espaço para a discussão de uma dicotomia questionável: moderno versus pós-moderno. Esta possibilidade a meu ver, necessita sempre de cuidado redobrado, sob pena de tomar como legítimas as constatações de um sujeito leitor, no afã de dar vazão a seu próprio pensamento. Explico-me. O que há por detrás das discussões filosóficas, nem sempre é apreendido por todos os leitores. Assim sendo, este tipo de digressão, muito mais que criar um problema para o leitor “desavidado”, abre para elas portas inusitadas, em que seu próprio exercício de leitura ganha status de elucubração filosófica.

O paradigma cultural da Modernidade se constituiu antes do modo de produção capitalista ter se tornado dominante e extinguir-se-á antes de este último deixar de ser dominante. O paradigma cultural da Modernidade constituiu-se entre o século XVI e finais do século XVIII coincidindo, aproximadamente, com a emergência do capitalismo enquanto modo de produção dominante nos países da Europa. Podem-se distinguir três períodos neste processo. O primeiro, cobrindo todo o século XIX, o período do capitalismo liberal. O segundo vai do fim do século XIX até o período após a Segunda Guerra Mundial, caracterizado pelo capitalismo organizado. O terceiro é o que se inicia no final da década de sessenta, quando se observa um crescimento de efeito do capitalismo financeiro, também designado de capitalismo desorganizado, sobre todas as possibilidades de criação cultural bem como da crítica que a esta produção poderia ser feita.

Por ser um projeto muito rico, a Modernidade é capaz, inclusive, de movimentos contraditórios e complexos que podem ser compreendidos a partir da interação de dois princípios gerais: o da regulação e o da emancipação. Cada um desses pilares, por sua vez, também é constituído pela articulação de três outros princípios secundários que se relacionam entre si. O pilar da regulação é constituído pelos princípios do Estado, do mercado e da comunidade. Por sua vez, o pilar da emancipação seria formado por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral-prática da ética e do direito; e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica.

A racionalidade estético-expressiva articula-se, privilegiadamente, com o princípio da comunidade, onde se condensam as idéias de identidade e comunhão, intimamente relacionados a contemplação estética. Já a racionalidade moral-prática conecta-se, preferencialmente, ao princípio do Estado, e a racionalidade cognitivo-instrumental corresponde-se ao princípio do mercado; tanto porque nele se condensam idéias de individualidade e concorrência – centrais ao desenvolvimento da técnica – como pela conversão da ciência numa força produtiva a partir do século XVIII.

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A partir da articulação desses princípios entre si, e da proposta de maximização das potencialidades inerentes a cada um deles, a Modernidade construiu um ambicioso e revolucionário projeto cultural, que buscou transformar a face da Terra pela fé na ciência e na técnica aplicadas às forças produtivas; nas relações liberais de mercado como capazes de implementar um Estado justo e próspero; na positividade do progresso e na sua constante renovação e superação. No entanto, o que se observou é que, ao invés dos princípios coexistirem harmoniosamente, sinergicamente, eles se sobrepuseram uns aos outros, levando o processo a um desequilíbrio. Por exemplo, no período do capitalismo liberal, houve um desenvolvimento sem precedentes do princípio do mercado, atrofiando o princípio da comunidade e pressionando o estado a uma re-significação de seu papel.

Assim, o princípio de comunidade, baseado na igualdade entre os sujeitos e na organização soberana da sociedade, reduziu-se a um complexo jogo de interesses particulares organizados dentro de um conceito empobrecido de sociedade civil, manipulado pelas forças de mercado. No domínio do princípio da emancipação, observou-se, por exemplo, a elitização da cultura, conjugada à idéia da existência e valorização de uma cultura nacional. Também houve a conversão da ciência numa força produtiva estreitamente vinculada e a serviço do mercado. Por fim, pode ser percebida a exacerbação do individualismo competitivo, denegando as articulações dialógicas (sempre) possíveis.

Já no âmbito da racionalidade moral e prática, consolidou-se a micro-ética liberal que contribuiu para a legitimação de um estado a serviço do mercado. Assim, os vários princípios interagindo entre si não foram capazes de cumprir com as propostas modernas que visavam, entre outros objetivos, a prosperidade social a partir do desenvolvimento da técnica, da ciência aplicada e do livre mercado. Se por um lado a ciência e a técnica avançaram, talvez, além do esperado, a contrapartida de prosperidade social e cultural não se concretizou. Avaliar se esses objetivos ainda são pertinentes e se a Modernidade ainda tem condições de cumpri-los é uma tarefa árdua que necessita ser feita, para que se possa compreender a existência, configuração e, mesmo necessidade, de um novo paradigma dito pós-moderno.

Para avaliar se há a exaustão do paradigma moderno e o surgimento de um novo paradigma, cumpre ainda observar quais são os pressupostos e fundamentos filosóficos da Modernidade e em que medida estes se encontram transformados, alterados no contexto de uma nova articulação da realidade, uma pós-Modernidade. A Modernidade, como pensa muita gente, caracteriza-se, de fato, por ser dominada pela idéia da História do pensamento como uma iluminação progressiva, que se desenvolve com base na apropriação e na re-apropriação cada vez mais plena dos fundamentos, que freqüentemente são pensados também como as origens, de modo que as revoluções teóricas e práticas da história ocidental se apresentam e se legitimam na maioria das vezes como recuperações, renascimentos, retornos. É a partir da noção de “superação” que a Modernidade legitima este desenvolvimento, esta iluminação progressiva do pensamento, que se re-apropria e re-significa o seu próprio fundamento e origem.

A Modernidade também se caracteriza por ser a época da História em oposição à visão naturalista e cíclica do curso do mundo, fato que pode ser entendido a partir do processo de secularização e de autonomização do pensamento, nos domínios da ciência e da técnica. Desta forma, a pós-Modernidade só pode ser compreendida como uma instância legítima, na medida em que oferecer respostas originais para os três fundamentos filosóficos da Modernidade: as noções de progresso, história e superação. A pura e simples consciência – ou pretensão – de representar uma novidade na história, uma figura nova e diferente na fenomenologia do espírito, colocaria de fato o pós-moderno na linha da Modernidade.

Por isso, o pós-moderno deve se caracterizar não por se tratar de uma novidade, mas sim por trazer uma dissolução na categoria do novo; e também, como uma experiência de fim da História, onde a idéia de um processo histórico unitário se dissolve. Neste processo, a

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História dos eventos, a História dos vencedores, se torna apenas uma história entre outras – incluem-se aqui a miríades de viajantes, cientistas e “curiosos” que passaram pelo Brasil ao longo de sua História, e sobre este país afirmaram suas próprias “verdades”, como jocosamente parodiado por Diogo Mainardi. Paradoxalmente, vive-se uma época em que os mecanismos de coleta e troca de informações podem até permitir a realização de uma história universal. No entanto, a realização desta História tornou-se impossível. O nivelamento da experiência no plano da simultaneidade e da contemporaneidade produziu uma des-historicização da experiência.

Este contexto tem se desenvolvido à medida que o progresso se tornou uma rotina. Quanto mais aumentam as possibilidades do sujeito de dispor tecnicamente da natureza, de alcançar novos resultados, menos novos, estes resultados se tornam, por se basearem em uma lógica esvaída. Um processo de exaustão e, onde a novidade é cada vez menos nova, menos revolucionária, permitindo apenas que as coisas prossigam do mesmo modo. Tendo sido suprimido o “para onde” do conhecimento, no processo de secularização do pensamento, a noção de progresso tornou-se vazia, tautológica, cujo único ideal final é a realização das condições para um progresso subseqüente.

Se à primeira vista a técnica se apresenta como uma ameaça à metafísica, ao humanismo, à subjetividade, numa análise mais profunda percebe-se que, em sua essência, em sua lógica neste século, ela representa o desdobramento máximo da metafísica. Ela é um dos elos do processo da afirmação do homem como ser cognoscível e soberano. Paradoxalmente, à medida que o sujeito se afirma como Ser, a partir da verdade da técnica, ele perde, paralelamente, a força da sua subjetividade, objetivizando-se como uma peça, um dado de uma lógica imanente, superior. Desta forma, depreende-se que a essência da técnica não é algo técnico e, sim, metafísico, uma etapa pertinente do projeto humanista de Modernidade. A universalização do domínio da informação, por exemplo, pode ser interpretada como uma realização pervertida do espírito absoluto.

Nesse ínterim, o valor do Ser foi reduzido a um valor de troca. É a consumação da morte de Deus, nos termos de Nietzsche, e a instauração do tempo do niilismo: a liquidação dos valores supremos não gera uma situação de valor num sentindo forte, nem tampouco cria uma experiência mais autêntica que a anterior. Se, ao mesmo tempo, o niilismo estabelece o confronto com as incertezas de abandonar o Ser como fundamento, também convida para um salto em seu abismo. Sair da rigidez do imaginário, do estabelecimento unívoco de novos valores supremos e empreender uma jornada na mobilidade do simbólico.

No entanto, chega um momento em que a vanguarda (o moderno) não pode ir mais além porque já produziu uma metalinguagem que fala de seus textos impossíveis. A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que o passado, já que não pode ser destruído porque sua destruição leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não inocente. No entanto, para que a pós-Modernidade em seu caráter niilista possa realizar-se, o sujeito deve ser repensado à luz de um modelo não-positivista, não-metafísico. Para tanto, a experiência da arte apresenta-se como um modelo possível a qual deve ser compreendida, não como uma passagem da experiência do verdadeiro ao domínio do senso comum – relativista, intimista –, mas como um campo que tem uma complexidade de sentidos que não se limita a duplicar o existente, capaz inclusive de criticá-lo, re-significá-lo. Esta transformação passa pela consideração da verdade, não como objeto de que se pode tomar posse e transmitimos, mas como horizonte e pano de fundo no qual, discretamente, o sujeito pode se mover: passa pela incerteza, pelo acaso, pela descontinuidade, pelo caos, pela complexidade. Se não há respostas mágicas para as contradições da existência, estas estão em movimento, e esse movimento pode criar respostas, também em movimento. Julgo, entretanto, que o pós-moderno não é uma tendência que possa ser delimitada cronologicamente, mas uma categoria espiritual, melhor dizendo, um modo de operar.

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Se estas idéias não podem ser direta e explicitamente articuladas à leitura do romance de Diogo Mainardi, elas têm a propriedade de expandir o horizonte de expectativas da leitura do próprio texto. Neste sentido, a personagem central de Contra a nação pode ser lida como o porta-voz de um discurso sub-liminar que a própria leitura do texto de Mainardi oferece aos olhos ávidos de um leitor que se vê, de repente, imerso num emaranhado de citações e referências. Pimenta Bueno é um sujeito que pode ser apreendido sob o enfoque das duas perspectivas: a moderna e a pós-moderna, a considerar as elucubrações desta minha digressão final.

Ao final, o que se pode dizer é que uma certa verdade, vista de fora, é revelada. Pimenta Bueno é um nacionalista ao contrário. Na contra-mão de uma certa xenofobia, o narrador afirma, pela denegação, o sentimento quase nostálgico de uma recuperação impossível: a visão paradisíaca do Brasil. O mito do indianismo e da exuberância da flora cai por “terra”, no discurso arrevesado de um idealista fracassado. Se Nietzsche tiver razão, desse fracasso fica uma lição insofismável: a impossibilidade de negar o que se vê. Como na epígrafe de Montaigne, caiu a máscara de um Brasil romantizado pelo olhar estrangeiro. Foi preciso o confronto de um brasileiro, fora de lugar, como as insuspeitadas idéias que Roberto Schwarz tanto e tão claramente explicitou, para deixar cair a máscara de um nacionalismo tacanho. Assim, num confronto dialógico, instigante e irônico, revela-se o homem, metáfora do Brasil...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Dois Olhares para Eveline:A Psicanálise e a Estética da Recepção

Junia Zaidan

Resumo:Este trabalho é uma tentativa de analisar o conto “Eveline” de James Joyce, sob duas diferentes perspectivas da crítica literária: A Psicanálise e a Estética da Recepção. Enquanto modalidade de interpretação e proponente de uma teoria sobre a linguagem, a identidade e o sujeito, a Psicanálise vê na linguagem literária a representação do indivíduo, tentando explicitar as disposições conscientes e inconscientes de sua psiquê bem como a interferência de tais disposições no ato da leitura. A Estética da Recepção, por sua vez propõe uma relação dialética entre o autor, a obra e o leitor, atribuindo a este último papel fundamental na produção do sentido.

Palavras-chave: Psicanálise, Teoria da Recepção, Eveline

Abstract

This paper is an attempt to analyse “Eveline’, by James Joyce, from the perspective of two schools of literary criticism, namely, Psychoanalysis and Reception Theory. As a mode of interpretation and a proponent of a theory of language, identity and subject, Psychoanalisis regards the literary text as a representation of the individual and, thus, tries to make explicit his/her conscious and subconscious dispositions as well as the interference of such dispositions in the reading process. Reception Theory, in turn, proposes a dialectic relationship between the writer, the text and the reader and, in so doing, it assigns the latter a crucial role in the production (making?) of meaning.

Key words: Psychoanalysis, Reception Theory, Eveline

1- A Psicanálise

A Psicanálise foi principalmente desenvolvida por Sigmund Freud no final do séc. XIX, que tratou de pacientes neuróticos inicialmente através da hipnose. Substituindo a técnica da hipnose pela da associação livre, Freud pôde estabelecer uma teoria detalhada da atividade mental humana. Através da associação livre e da análise dos símbolos contidos no material psíquico (sonhos, atos falhos, fantasias, etc.), Freud modificou o conceito de inconsciente, na época tido por outros estudiosos como um resíduo das funções conscientes, e passou a considerá-lo uma estrutura dinâmica, matriz da atividade consciente. Freud descreveu esta realidade psíquica como um aparelho dividido em id, ego e superego, em cuja dinâmica se estabelecem os conflitos e ansiedades do indivíduo.

O id, é descrito como a parte inconsciente do ego e como aquela instância que não tem organização própria. Seria a dimensão do indivíduo que armazena todos os impulsos e desejos em sua forma ‘crua’, original, antes de sofrer qualquer transformação ou repressão. A Psicanálise afirma que é do id que emerge o ego, sob a pressão da realidade exterior. O ego e o id aparecem, então, numa relação de dependência pois, enquanto sede da consciência e

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lugar das manifestações do inconsciente, o ego desempenha a função de permitir ao sujeito defender-se tanto das ameaças da realidade como das pulsões e das exigências do superego. O superego representa a consciência moral e ética, a auto-observação e a formação de ideais aos quais o sujeito aspira. Segundo Freud, o superego se formaria durante a dissolução do Complexo de Édipo, através de uma renúncia da criança à satisfação de seus desejos edipianos, da decorrente identificação com o superego de seus pais e da interiorização da interdição do incesto. Posteriormente, acrescido das exigências sociais e culturais (educação, religião, moralidade, etc.), o superego acabaria então se instaurando como juiz e dominador do mundo pulsional do id.

O Complexo de Édipo, tem importância significativa na teoria freudiana. Ele se refere ao conjunto dos elementos relativos ao desejo que a criança nutre pelo pai ou pela mãe. Afirma-se que, por estar ligado à interdição do incesto, o Complexo de Édipo é a essência das neuroses que acometem o ser humano. Desta forma, a criança experimentaria o ódio pelo genitor do mesmo sexo, rival que desejaria eliminar, e o amor pelo genitor do sexo oposto, de quem desejaria apropriar-se. A importância dada ao falo pela menina e pelo menino mostra que o complexo de Édipo não se desenvolve nem se resolve de forma simétrica. Segundo Freud, para a menina, o complexo de castração inaugura o complexo de Édipo, pois sua vontade de ter o falo se transforma num desejo pelo pai e, portanto, ela se afasta da mãe. Para o menino, o complexo de castração marca a saída do Édipo: a ameaça de castração por parte do pai o obriga a se afastar da mãe. Para J. Lacan, psiquiatra e psicanalista francês que, em 1964 fundou a Escola Freudiana de Paris, o Édipo pode ser compreendido como estrutura que permite o acesso ao simbólico. Segundo Lacan, ele se desenvolve em três tempos: 1) O filho (isto é, o pênis) é o objeto do desejo da mãe. 2) A satisfação desse desejo é impedida pela proibição legal representada pelo pai. O binômio mãe-filho se rompe. O desejo fica para sempre ligado à lei da proibição. É o tempo da castração simbólica. 3) O filho assume o nome do pai, identifica-se com ele, entrega-se ao domínio da linguagem e entra na problemática de ter o falo.

Uma outra notável contribuição de Lacan à Psicanálise foi sua teoria sobre a Fase do Espelho. De acordo com esta teoria, entre os seis e os dezoito meses, logo que a criança identifica sua própria imagem no espelho, ocorreria a estruturação narcísica do sujeito. Nesta fase, caracterizada pela incompletude do sistema nervoso, pela descordenação motora e impotência, a criança antecipa sua imagem corporal mediante uma identificação imaginária com o outro. Daí as máximas do pensamento lacaniano de que o inconsciente não só é estruturado como uma linguagem mas também constitui o discurso do outro. Estes princípios constituem pedras angulares de sua contribuição teórica, que ele situa como um retorno a Freud (Culler, 1999:123).

Tendo rapidamente discorrido sobre os principais fundamentos da Psicanálise, passamos, a seguir, a uma associação entre tais fundamentos e a teoria literária.

1.1 – A Psicanálise e a Literatura

Nos estudos literários, a Psicanálise se difundiu não apenas como modalidade de interpretação, mas também como uma teoria sobre a linguagem, a identidade e o sujeito. (Culler, op.cit: 123). Segundo esta teoria, a literatura constitui linguagem representativa do indivíduo e, como tal, engendra as lutas a respeito de identidade que ocorrem no seu interior, bem como entre o indivíduo e seu meio social.

A crítica literária sob a perspectiva psicanalítica varia de acordo o tipo de enfoque dado à obra literária. Desta forma, fala-se em Psicanálise do autor, do conteúdo, do leitor e da construção formal, sendo que, em geral, a crítica psicanalítica se volta mais para os dois primeiros. Neste trabalho, entretanto, faremos uma tentativa de enfocar o texto em questão

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sob a perspectiva da Psicanálise do conteúdo. Nela, o texto literário é visto como um reflexo do que se chama de ‘subtexto’, ou seja, o inconsciente da obra (Eagleton, 1997). Os eventos que se sucedem, bem como as experiências vividas pelos personagens, são interpretados levando em conta os princípios postulados pela Psicanálise.

Neste tipo de análise, tem-se a expectativa de se entender a maneira através da qual o texto literário se forma, por meio de especulações não apenas sobre o que é revelado mas também do que não é dito, sobre ênfase exagerada ou pontos de ambivalência ou evasão. Aquilo que é suprimido, calado no texto pode ser um caminho para incursões no inconsciente da obra e, em última análise, haveria acesso para se conhecer “não só o que o texto diz, mas também o modo como ele funciona”. (Eagleton, op. cit.:251).

A respeito deste ‘modo’ como o texto se forma e funciona, faz-se uma comparação entre o trabalho onírico descrito por Freud e a literatura. Segundo Freud, o trabalho onírico é um processo de transformação de nossos desejos reprimidos e inconscientes num produto final, que chamamos de sonho. Os sonhos seriam, desta forma, a manifestação do conteúdo do nosso inconsciente que, incoerente e incompreensível como geralmente é, passa a ser representado por uma linguagem a que temos acesso, mas que para decifrá-la, precisamos empreender algum tipo de esforço. Da mesma forma, a obra literária é vista como um tipo de trabalho onírico, um processo de produção que se utiliza de certas matérias-primas e técnicas para chegar a um produto final. As matérias-primas seriam a própria linguagem, a experiência de mundo e o contato com outros textos literários, ao passo que as técnicas utilizadas para ‘manufaturar’ tal matéria-prima seriam as formas literárias. Manufaturar, neste sentido, significa tornar o texto digerível, fácil de se consumir, apesar de ainda fazer parte, segundo a crítica psicanalítica, de um universo simbólico. Portanto, a postura para se penetrar neste universo e ser bem-sucedido na tentativa de alcançar a forma e o funcionamento da obra, deverá ser de suspeita, de questionamento dos vácuos ou exageros percebidos no texto.

A crítica que se faz à Psicanálise enquanto instrumento de análise literária é a de que, por tentar se aprofundar no inconsciente da obra ou do autor, negligencia a obra enquanto expressão artística. Os motivos que deflagraram o processo de produção do texto passam a ter prioridade no lugar da arte. Um outro argumento que vai de encontro à Psicanálise diz respeito à concepção freudiana de que o artista é um neurótico que, afastando-se do princípio da realidade55 consegue sublimar seus impulsos e desejos inconscientes de uma forma aceitável: a obra de arte que, em última análise, proporcionará prazer ao seu consumidor. Tanto um argumento quanto o outro denunciam o reducionismo simplista de que, segundo a crítica, Freud parece ter sido acometido em sua reflexão sobre a arte e o artista.

Entretanto, admite-se que a contribuição da Psicanálise à crítica literária é de notável importância não só pelo fato de representar mais uma perspectiva de interpretação, mas também porque “(...) volta-se para a exploração de questões fundamentais, tais como o que as pessoas consideram satisfatório ou não, como aliviar o homem de sua miséria e torná-lo mais feliz” (Eagleton, op. cit.:264). Há, portanto, nesta relação entre Psicanálise e Literatura um caminho para se compreender que a Literatura não se presta à transmissão de valores éticos e morais de uma forma didática. Ao invés disto, sob a perspectiva psicanalítica, temos a chance de experimentar (ou tornarmo-nos conscientes de) certos conflitos éticos e morais e suas motivações, como se nossa experiência de vida se reproduzisse no texto literário que lemos, ou como se, através do contato com o texto literário, pudéssemos acessar as instâncias da nossa própria realidade psíquica.

55 Para Freud, o que domina a sociedade humana é a necessidade de trabalhar, o que faz com que o homem tenha de abrir mão do prazer e da satisfação para entrar no que ele chama de ‘princípio de realidade’. Ao penetrar nesta dimensão, o homem abandona o’ princípio do prazer’, ou, em outras palavras, sofre repressão de seus desejos e instintos inconscientes.

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Na próxima seção, portanto, faremos uma tentativa de buscar no texto de Joyce estes conflitos, ou, em outras palavras, os ‘sintomas’ do inconsciente da obra bem como os elementos significativos para a construção da identidade de Eveline enquanto sujeito.

1.1 – “Eveline” e a psicanálise

Sob a luz da Psicanálise, o que rapidamente nos salta aos olhos ao lermos o texto é o conflito constante entre o princípio do prazer e o princípio da realidade vivido por Eveline. Ela, órfã de mãe e única mulher na família, é totalmente absorvida por uma série de ‘obrigações’ que , inferimos, sua família, bem como a sociedade irlandesa de que faz parte, esperam que cumpra.

Zelar pela casa e dar conta dos afazeres domésticos constituem suas obrigações. “(...) Correu os olhos pela sala, revendo os móveis familiares, que ela ano após ano espanava todas as semanas, perguntando-se de onde poderia vir tanta poeira..” (Joyce, 1914, p.35). Eveline também tem de trabalhar fora de casa para ajudar a sustentar a família. “ (...) Precisava, é claro, trabalhar pesado em casa e no emprego (…)Empregava na casa todo o seu ordenado – sete xelins – e Harry enviava sempre o que podia, mas era difícil arrancar alguma coisa do pai.”(p.37) Eveline, após a morte da mãe, também ficou incumbida de cuidar de seus irmãos menores. “(...) Trabalhava para manter tudo arrumado e fazer com que as duas crianças, deixadas a seu cargo, se alimentassem direito e não se atrasassem para a escol.”.(p.37) A preocupação de Eveline com o pai que está envelhecendo bem como a promessa feita à mãe de manter a família unida o quanto pudesse, revelam que a realidade a que Eveline está condicionada não se restringe aos afazeres domésticos e coisas práticas do dia-a-dia. Há algo mais profundo, um compromisso que envolve também seu lado afetivo. “Notara que o pai estava ficando velho; ela faria falta. Às vezes, ele sabia ser agradável. (…)Estranho que viesse [o realejo] tocar ali naquela noite, como para lembrar-lhe a promessa que fizera à mãe, promessa de tomar conta da casa enquanto fosse necessário.”(p.38). Outra expectativa a que Eveline se sente na obrigação de atender é a de se conformar com o padrão da sociedade irlandesa para a constituição de uma família. Eveline vê a possibilidade de ser talvez difamada caso fuja com Frank. “(...)Que diriam na loja ao saberem que fugira com um homem?”(p.36). Portanto, os afazeres domésticos, o trabalho, o cuidado como os irmãos, a preocupação com o pai, a promessa feita à mãe e o compromisso com o padrão social de família constituem a realidade de Eveline, ou seja, o que vai reger sua vida a despeito de seus desejos e impulsos, a despeito do seu prazer.

Na verdade, todas estas obrigações fazem parte do princípio da realidade de Eveline exatamente por constituírem empecilhos para que ela se enverede pela busca do que vai amenizar seu sofrimento e trazer prazer. A Psicanálise se refere a esta busca como hedonismo, ou seja, a fuga da dor e a busca da satisfação dos desejos. É como se a existência humana girasse em torno de retomar o que se perdeu, de voltar para o lugar onde não podemos ser atingidos: o corpo da mãe (Eagleton, op.cit). Impossível como é, tal retorno seria substituído por quaisquer outros elementos representativos do corpo da mãe, ou seja, elementos que nos façam sentir seguros, que nos dêem prazer e que estejam desvinculados da realidade repressora.

Para Eveline, Buenos Ayres pode ser interpretada como tal ‘lugar’.

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“ (...) Partiria à noite, de navio, para tornar-se sua esposa e com ele viver em Buenos Aires, onde um lar os aguardave. (…)She was to go away with him by the night-boat to be his wife and to live with him in Buenos Ayres where he had a home waiting for her. (…) Mas em seu novo lar, num país desconhecido e longínquo, tudo seria diferente. Estaria casada; ela, Eveline. As pessoas iriam tratá-la com respeito, não sofreria como sua mãe.” (p.36)

Frank também faz parte deste universo alternativo à sua dura realidade. É um homem amável e parece querer protegê-la, o que significa uma relação diferente da que tem com os homens de sua realidade: seus irmãos e, de certa forma seu pai, é que são protegidos por ela. Além disso, Frank também representa a possibilidade de Eveline desfrutar do prazer sexual e do amor de um homem, o que ela provavelmente desconhece . “(...)Nos primeiros dias experimentara a emoção de ter um namorado; depois, começara a amá-lo.”(p.37)

O conflito entre o princípio do prazer e o princípio da realidade toma forma no texto à medida que Eveline faz toda uma preparação para romper com a repressão que sofre em busca da libertação. Ela primeiro se compromete a fugir com Frank e até escreve cartas para o pai e o irmão para somente depois ponderar sobre o que seria o melhor. “(...) Havia concordado em partir, em deixar o seu lar. Seria sensato? Tentou pesar os pros e contras de sua decisão.”(p.36). Pode-se dizer que ao decidir partir para Buenos Ayres, Eveline estivesse agindo impulsivamente, ou seja, que sua atitude refletisse seu inconsciente, seus desejos reprimidos de busca do prazer. Entretanto, ela se vê constantemente pressionada por seu superego que, através de perguntas que ela faz a si mesma e de outras divagações de seu pensamento, tenta adiar sua libertação. “(...)Seria sensato? (…)Bem ou mal, tinha em casa abrigo e comigda. Vivia entre pessoas que sempre conhecera. Precisava, é claro (…) Que diriam na loja ao saberem que fugira com um homem?”(p.36). Eveline parece não resistir à tentação de trair-se a si mesma a fim de continuar vivendo no princípio da realidade. À medida que o tempo vai passando e a hora do embarque se aproxima, ela tenta se convencer de que a vida que levava não era afinal tão ruim. “(...) Era trabalho duro, vida dura, mas agora que ia partir, não a julgava uma vida totalmente indesejável.”(p.38). Seu superego dá conta de lançar em sua memória até mesmo as mais distantes lembranças de um pai amável e brincalhão e de uma época em que até rir ela conseguia. “(...) às vezes, ele sabia ser agradável.Havia pouco tempo, ela passara um dia na cama, doente, e ele havia preparado torradas na lareira e lido uma história de fantasmas para distraí-la.” (p.38)

Não obstante suas incursões pelo passado tentando buscar justificativas para acreditar que valia a pena abrir mão de sua libertação, Eveline é constantemente ‘bombardeada’ pelas investidas de seu inconsciente que se manifesta através de sobressaltos, ambigüidades e ênfase exagerada em certos trechos do texto. “(...)Levantou-se num súbito impulso de terror. Fugir!”(p. 39) “Queria viver. Por que haveria de ser infeliz? Tinha direito à felicidade. Frank ia envolvê-la em seus braços, protegê-la. Ele a salvaria.” (p.39), “(...) Estaria casada. Ela – Eveline.” (p.36). Neste último trecho, é como se ela no fundo desacreditasse na possibilidade de um dia ser feliz ao lado de um homem, uma vez que os homens que fazem parte da sua realidade apenas representam o trabalho, o sofrimento o destrato e a dor. Além disso, o fato de, no final, ela desistir de partir com Frank também revela essa face de sua identidade psicológica. Eveline parece ter em sua estrutura psíquica uma marca de ruptura com o sexo oposto. A Psicanálise provavelmente associaria isto a problemas ocorridos na fase edipiana. Ressalte-se que esta ruptura não seria, no caso de Eveline, o afastamento natural que acontece com a menina em relação à mãe por amor ao pai e nem o afastamento da menina em relação ao pai por causa do incesto. Por algum motivo, talvez a violência contra a mãe, talvez a frieza ou até

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mesmo a opressão a que a mulher era submetida na sociedade machista do início do séc. XX, Eveline parece ter rompido com qualquer possibilidade de prazer com o sexo oposto, mas, ao mesmo tempo, parece se ligar a ele eternamente. Sua possibilidade de libertação é representada pela figura masculina de Frank, mas, se sucumbir aos apelos de seu superego em detrimento de seu prazer, será também por causa de representantes do sexo masculino (seu pai e irmãos). Em outras palavras, se por um lado é no sexo masculino que Eveline vê refletido tudo o que é indesejável, tudo o que representa sua castração, ou seja, aquilo que ela não tem e nunca poderá ter (no seu caso, o poder, a força, a autoridade), por outro lado, é no masculino que se situa a possibilidade de plenitude interior, seja esta representada pela esperança de uma vida melhor ao lado do pai e dos irmãos, seja ao lado do amante.

Eveline é, pois, massacrada, ou seja, se deixa massacrar passivamente por seu superego."(...) O ego é uma entidade digna de pena, precária, acossada pelo mundo exterior, golpeada pelas censuras cruéis do superego, perseguida pelas exigências ambiciosas e insaciáveis do id.” (Eagleton, op. cit.:222). É também o superego que se reflete no trecho: “Turbilhonando, os mares do mundo envolviam seu coração. Frank arrastava-a para eles: ia naufragá-la..” (Joyce, 1914, p.39), em que o mar pode ser considerado uma metáfora de seu inconsciente que, revolto, profundo e desconhecido, causava-lhe excitação a princípio, mas medo no final. O mar representava a morte. Mas morte de quê? A morte do contato com a terra firme, com o previsível, com a sociedade, a família, as convenções. O medo de se afogar e de nunca mais colocar o pé em terra firma faz Eveline desistir da viagem pelo mar desconhecido. Eveline opta por continuar viva, em terra firme, no princípio da realidade. Sublima seus desejos substituindo-os por objetivos ‘superiores’ e agarra o corrimão de ferro para não correr o risco de se deixar levar.

2- A Estética da Recepção

A teoria literária moderna é periodizada por Eagleton (op. cit.) em três fases: a da atenção ao autor (romantismo e séc. XIX), ao texto (Nova Crítica) e, mais recentemente, ao leitor. O que levou a teoria literária a voltar-se para o leitor no triângulo escritor-texto-leitor foi a concepção de que, no que diz respeito à interpretação e análise de textos literários, o mais importante é a maneira como o sentido é produzido e isto implica considerações sobre o papel do leitor no processo. Esta corrente teórica é conhecida como Teoria ou Estética da Recepção.

De acordo com os teóricos da Recepção, entre os quais se destacaram Wolfgang Iser e Roland Barthes, o contato do leitor com o texto, bem como os processos mentais pelos quais ele passa ao interpretá-lo é que devem predominar quando se fazem considerações sobre sentido. Desta forma, os adeptos desta teoria visam a analisar as diversas interpretações, as múltiplas constituições de sentido que um mesmo texto pode proporcionar. A literatura é compreendida autonomamente na sua gênese produtiva e analisada do ponto de vista histórico-receptivo, o que possibilita a conciliação da função social da comunicação e da função estética.

Culler (op.cit.) fala da experiência do leitor como determinante do sentido do texto literário:

Se uma obra literária é concebida como uma sucessão de ações sobre o entendimento de um leitor, então uma interpretação da obra pode ser uma história desse encontro, com seus altos e baixos: diversas convenções ou expectativas são postas em jogo, ligações são postuladas e expectativas

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derrotadas ou confirmadas. Interpretar uma obra é contar uma história de leitura. (Culler, op.cit.:66).

O leitor, inconscientemente, envereda por um caminho em que muito esforço deverá ser empreendido para preencher as lacunas do texto, fazer inferências, enfim, construir o sentido do texto.

O texto, em si, realmente não passa de uma série de ‘dicas’ para o leitor, convites para que ele dê sentido a um trecho de linguagem (...) o leitor ‘concretiza’ a obra literária, que em si mesma não passa de uma cadeia de marcas negras organizadas numa página. (Eagleton, op.cit.:105)

Radical como soa, a Teoria da Recepção está longe de ser um consenso entre os críticos literários. Se por um lado o papel do leitor no processo interpretativo é, sem dúvida, notoriamente relevante quando fazemos considerações sobre o sentido de um texto, por outro lado, insistir que o significado será sempre relativo ao leitor nos levaria à antiga preocupação de Hirsch em relação ao historicismo da Hermenêutica que levaria a obra literária a ser alvo de uma anarquia crítica (Eagleton, op.cit.). Isto também se aplicaria ao texto literário visto sob a perspectiva da Estética da Recepção no sentido de que teria significados múltiplos que variariam de leitor para leitor.

Há também quem argumente que o sentido de uma obra não se restringe nem ao que o autor tem ou tinha em mente nem à experiência do leitor ou propriedade do texto.

O sentido é uma noção inescapável porque não é algo simples ou simplesmente determinado. É simultaneamente uma experiência de um sujeito e uma propriedade de um texto. É tanto aquilo que compreendemos como o que, no texto, tentamos compreender. (Culler, op.cit.:69)

Para Culler, privilegiar quaisquer das instâncias acima seria entrar num caminho de imprecisões em que o sentido nunca seria definitivo. Ele argumenta que podemos nos referir ao contexto como elemento principal desde que consideremos as regras de linguagem, o autor, o leitor e qualquer outro elemento relevante como partes integrantes do contexto que, segundo ele, é ilimitado.

Um outro argumento que vai de encontro à Teoria da Recepção diz respeito à alegação de seus teóricos de que o leitor tem prioridade no processo interpretativo. Quando se fala em leitor, podemos, em princípio, pensar em qualquer tipo de leitor. Contudo, o que fica claro à medida que examinamos a teoria é que ela pressupõe um leitor liberal:

A teoria da recepção de Iser baseia-se, de fato, em uma ideologia liberal humanista: na convicção de que na leitura devemos ser flexíveis e ter a mente aberta, preparados para questionar nossas crenças e deixar que sejam modificadas (...) para sofrermos uma transformação às mãos do texto, devemos em primeiro lugar ter convicções muito provisórias. O único leitor adequado já teria de ser um liberal (...)” (Eagleton, op. Cit.: 109)

Além de ter a ‘mente aberta’, o leitor de um texto literário precisa estar familiarizado com suas técnicas, seus códigos, ou seja, o leitor precisa lançar mão de uma série de ‘conhecimentos sociais’, como chama Eagleton (op.cit. 108), para interpretar um texto.

Na seção que segue, portanto, faremos a tentativa de analisar o texto “Eveline” de Joyce (1914) sob a perspectiva da Estética da Recepção. Comente-se, no entanto, que o pressuposto ‘leitor ideal’, que, ao se deparar com o texto, testa hipóteses, incorpora ao seu conhecimento tácito outras sugestões oferecidas pela obra, modificando sua visão de mundo, este leitor é sempre imprevisível. Imprevisível tanto quanto à sua identidade, quanto ao

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sentido que produzirá a partir do texto literário. No caso desta análise, por exemplo, de certa forma, é possível que se encontrem resquícios teóricos que vão desde a Fenomenologia56 e Hermenêutica57 até o Estruturalismo58, a Desconstrução59 e a Psicanálise, escolas teóricas que cujas leituras também serviram de base para a elaboração desta análise. Uma outra questão que importa ressaltar é o fato de que eu já conhecia o texto antes de iniciar esta análise e agora, principalmente depois de tê-la feito, não fica muito claro que hipóteses foram formuladas e, subseqüentemente confirmadas ou rejeitadas quando do meu primeiro contato com a obra. De qualquer forma, é importante enfatizar que esta análise é apenas uma tentativa de olhar para o texto com os olhos da teoria em questão.

2.1- “Eveline” e a Estética da Recepção

É inegável que, a partir de segunda metade do século XX, as mulheres tenham experimentado diversas formas de libertação numa sociedade historicamente dominada por homens. Tal libertação perpassa a vida doméstica, a economia, o convívio social e até mesmo a política, em quais contextos, as mulheres passaram a ter voz e espaço para a construção de sua identidade sem ter que necessariamente atrelar a tal identidade qualquer comparação com os homens.

Entretanto, inegável é também que o mundo ocidental continua entranhado de discriminação e sexismo, fato que não se limita aos homens, mas a muitas mulheres que, como Eveline, sucumbem diante do poder que elas mesmas delegam aos homens, em detrimento de sua luta por libertação e auto-afirmação.

A passividade de Eveline ao longo de todo o texto é um reflexo muito nítido desta subserviência. Ela assume tal atitude desde o início. Uma das evidências disso é o fato de Eveline não ter voz, de não proferir uma única palavra ao longo de toda a narrativa. É impressionante o quanto Eveline se dá a conhecer através dos vários sentimentos e conflitos pelos quais passa sem que ela mencione isto a qualquer pessoa. Isto representa a posição a que a mulher era relegada não só na sociedade Irlandesa do início do séc. XX, mas na sociedade ocidental de um modo geral. Na verdade, como afirmamos anteriormente, talvez a mulher não tenha sido relegada a tal posição de sujeição, mas se deixado relegar. O fato de Eveline não ter voz implica não ser ouvida e, conseqüentemente, não participar das decisões.

56 A Fenomenologia olharia para o texto como um evento histórico, através do autor. Seria a busca da essência, da certeza absoluta e invariável, alcançada através de dados reais, anteriores à história. Enfocam-se as estruturas profundas do autor reveladas na repetição de temas e padrões imagéticos.57 A Hermenêutica enfoca o texto, busca seus significados profundos através de especulações sobre a intenção do autor. Enquanto ciência de interpretação, a Hermenêutica surgiu no campo da lei e da religião. Na crítica literária, atenção é dada ao contexto do texto literário, cuja chave estaria no sentido original dado pelo autor, que se mantém (o sentido), segundo os hermeneutas, inalterado através dos tempos.58 O Estruturalismo trata o texto literário essencialmente como linguagem, promovendo, pois, uma desmistificação da literatura. Há uma busca das estruturas profundas do texto, ou seja as estruturas da psique, da linguagem e da sociedade subjacentes à experiência que tornam tais estruturas possíveis. Não se buscam novas interpretações, mas como os textos podem ter os sentidos e efeitos que têm e o leitor, neste caso, é visto como espelho da obra, isto é, reflete a obra tal como ela é.59 Quando se fala em Desconstrução, está em questão uma crítica das noções de conhecimento objetivo e de um sujeito capaz de se conhecer. Assim, as teorias e correntes de pensamento chamadas de pós-estruturalistas como a Psicanálise, o Marxismo, o movimento feminista e o historicismo têm em seus discursos a desconstrução. “(...) A desconstrução é mais simplesmente definida como uma crítica das oposições hierárquicas que estruturam o pensamento ocidental: dentro/fora; corpo/mente; literal/metafórico; fala/escrita; presença/ausência; natureza/cultura; forma/sentido.” (Culler, op.cit.:122)

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Como nas narrativas bíblicas60 e na história da literatura61, Eveline também não era contada. Seus sentimentos bem como suas necessidades eram ignorados, pois ela não contava. E não contava porque era mulher. “(...)Por ser menina, ele nunca se importara com ela quando criança, como fizera com Harry e Ernest.” (Joyce, 1914, p.36) Ela era consciente do desrespeito com que era tratada pelas pessoas. “(...)As pessoas iriam tratá-la com respeito, não sofreria como sua mãe.” (p.36)

A opressão a que Eveline é submetida (ou se submete) se reflete desde o destrato à violência física “(...) era às vezes ameaçada pela violência do pai. Sabia que era essa a causa de suas palpitações.” (p.36) e à exploração de seus serviços “(…) Trabalhava para manter tudo arrumado e fazer com que as duas crianças, deixadas a seu cargo, se alimentassem direito e não se atrasassem para a escola.” (p.37) Nada disso é novidade quando se diz respeito à mulher. O que é ultrajante é chegar à conclusão de que Eveline pode ser uma representante muito fiel da maioria das mulheres da sociedade ocidental. Ela é consciente do servilismo em que vive, sabe de suas possibilidades de se ver livre dele, mas sempre sucumbe a favor de ‘objetivos superiores’ como fazem muitas mulheres em relação à família, ao casamento, aos filhos, ou seja qual for a desculpa para não romper com os vínculos que lhe dão ‘segurança’. Segurança no sentido de não assumir riscos, de não ter que arcar com as conseqüências de seus atos e, acomodando-se e aceitando a vida que lhes é ‘destinada’, nenhuma mudança ou tentativa de começar tudo de novo será necessária.

A posição de prostração em que Eveline se encontra durante quase toda a narrativa é um outro ponto que sustenta a afirmativa de sua passividade.“Sentada à janela, contemplava o crepúsculo invadir a avenida. Recostara a cabeça na cortina (...)” (p.35). Inerte, ela assiste à noite invadir a avenida da mesma forma que assiste a sua vida passar, sem que esboce qualquer tipo de reação ou intervenha de alguma forma. Ressalte-se que a paralisia é uma característica que permeia todos os demais contos de Dubliners. São crianças, adolescentes, adultos que ficam paralisados diante de inúmeras questões morais que surgem nesta obra de Joyce, das quais muitas vezes poderiam se desvencilhar com um mínimo de esforço. Pode-se dizer que Eveline tenha tentado reagir quando disse a Frank que concordava em fugir com ele. No entanto, a própria maneira como isto é dito no texto revela sua passividade, sua paralisia: “(...) Havia concordado em partir, em deixar o seu lar.” (p.36) Ela concordou ao invés de decidir. É como se Frank tivesse decidido por ela, como sempre acontecia em sua vida em relação às pessoas. Frank, na verdade, é o elemento externo à sua vida que vai representar sua salvação. “(...) Frank a salvaria. Dar-lhe-ia vida, talvez também amor. Queria viver.” (p.39). O que se percebe nesta atitude de Eveline em relação a Frank é que ela se coloca na posição

60 Há vários registros bíblicos de contagem de multidões ou membros de uma família em que se omitia o número de mulheres. “E os que comeram foram cerca de cinco mil homens, fora mulheres e crianças.” (Mateus 14:21) (Almeida, 1996:886). Há também trechos que revelam que à mulher era negado o direito de falar: “ As mulheres estejam caladas nas igrejas.” (I Coríntios, 14:34) (Almeida, op.cit.: 1045); “ A mulher aprenda em silêncio com toda a submissão” (I Timóteo, 2:11) (Almeida, op.cit.: 1081) 61 Em um artigo sobre a mulher e a história da literatura, Spender (in Belsey & Moore, 1993) denuncia a negligência sofrida pelas primeiras romancistas da história da literatura inglesa através da afirmação de que Jane Austin teria sido a primeira romancista entre as mulheres. Spender vai além ao afirmar que o fato de a tradição literária atribuir aos romancistas do sexo masculino não só o nascimento do romance mas também as grandes obras da literatura inglesa é um reflexo do sexismo entranhado na tradição literária inglesa, contrariando os registros literários mais remotos que apontam as mulheres como maiores produtoras de romances no séc XVIII. Spender afirma que “sempre houve boas escritoras em todas as áreas e eras e [que] elas sempre desapareceram (…) houve mulheres que gozaram de grande prestígio literáio em suas vidas para, depois de mortas, simplesmente desaparecerem dos registros da posteridade (Belsey & Moore,op.cit.:27, tradução minha) Depois, mais incisivamente, Spender acrescenta: “os homens letrados não são cegos às conquistas das mulheres, mas, ao invés de lhes assegurar reconhecimento, eles tiram delas o que querem, deixando que o resto, aquilo que eles consideram sem valor algum , desapareça.” (Belsey & Moore, op.cit.:29, tradução minha)

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de alguém que está fatalmente perdido, para quem não há solução que não venha de fora. Ela se escusa de qualquer ação atribuindo a Frank a missão de ‘salvá-la’.

O conflito de Eveline, portanto, gira em torno de ir ou ficar, o que, automaticamente, nos faz pensar em ‘ir’ como a condição para sua libertação e ‘ficar’ como sua condenação eterna à subserviência. Fugir com Frank, pois, à primeira vista, representa a felicidade, a dignidade, o respeito e a segurança, ao passo que ficar em Dublin significa continuar sofrendo o destrato e a violência do pai, a pobreza, a exploração e o cansaço. Na verdade, tão forte é o conflito interior de Eveline que, ao analisarmos o texto, incorporamos esta dualidade, como se nada mais houvesse como alternativa à situação em que se encontra. É como se reproduzíssemos o pensamento de que a felicidade de Eveline estivesse condicionada a dois homens: o pai, que representaria o ‘ficar’, e Frank que a levaria para um outro continente. Terminamos por ignorar tanto a possibilidade de Frank ser um enganador, que estaria apenas interessado em se aproveitar de Eveline para depois abandoná-la, quanto a de Eveline ser feliz em Dublin, sem Frank e longe da opressão do pai. O fatalismo expresso no pensamento de que se Eveline não fosse para Buenos Aires com Frank desperdiçaria sua ‘única chance’ de felicidade é um reflexo da nossa forma falogocêntrica de pensar o feminino sempre em função do masculino. Em outras palavras, é como pensar a mulher sempre como reflexo da ausência do masculino, a começar, anatomicamente, pela ausência do falo, e, como conseqüência, concebê-la como não-homem, ao invés de conferir-lhe identidade. Na teoria lacaniana da ordem simbólica, o ‘feminino’ se situa nesta margem, ou seja, numa posição inferior ao masculino à medida que reflete o que o masculino não é, seu lado ‘negativo’:

“(...) A mulher está ao mesmo tempo ‘dentro’ e ‘fora’ da sociedade masculina; ela é, ao mesmo tempo, um membro romanticamente idealizado dela e um pária vitimado por ela. Por vezes, a mulher é aquilo que se interpõe entre o homem e o caos; outras vezes é a materialização do próprio caos. É por isso que ela perturba as categorias ordenadas desse regime, apagando seus contornos bem definidos. As mulheres são representadas na sociedade governada pelos homens, fixadas por signos. Imagem, significações; não obstante, por serem também o aspecto ‘negativo’ daquela ordem social, sempre há nelas alguma coisa que é deixada de lado: algo supérfluo, irrepresentável, que se recusa a ser figurado.” (Eagleton, op.cit, 262).

Em síntese, pois, o caminho que percorremos ao analisar Eveline pelo viés da Estética da Recepção passou por sua passividade e subserviência frente ao poder masculino que a cerca, este representado tanto pela possibilidade de libertação quanto pelo destrato, violência e exploração; pelas questões de gênero que envolvem a sociedade irlandesa do início do séc. XX; pelo conformismo e prostração dos quais Eveline é acometida; e pelo fatalismo que Eveline expressa ao sujeitar-se à opressão de seu pai, como se esta fosse sua sina. “(...)Enquanto divagava, a pesarosa visão da vida de sua mãe feria-a na própria carne: uma existência de sacrifícios banais terminada em loucura.”I (Joyce, 1914, p.39)

3- Considerações Finais

Este trabalho se propôs a fazer uma análise de ‘Eveline’ de Joyce (1914) levando em consideração duas correntes de interpretação literária, a Psicanálise e a Estética da Recepção. O desafio de tomar duas perspectivas distintas e fazer duas leituras diferentes se percebeu à medida que os argumentos teóricos se sobrepunham na análise do fragmento, ou seja, ao longo da dissertação do texto, foi comum analisar, inadvertidamente, aspectos psicanalíticos

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do texto na seção intitulada ‘Estética da Recepção’ e vice-versa e ter de fazer as devidas correções. Além disso, por várias vezes me vi olhando para o texto com uma visão estruturalista ou até mesmo fenomenológica. Isto certamente se deve à complexidade de se fazer um tipo de análise rigorosa e fechada, o que não tenho a pretensão de afirmar ter feito, bem como de, enquanto leitores, nos desvencilharmos de pré-concepções e vícios de interpretação, produtos de nossa experiência e conhecimento de mundo.

Como mencionamos anteriormente, a história da teoria literária tem sido marcada pela atenção, ora voltada para o texto, ora para o autor ou o leitor. O que tais posições têm em comum é o interesse pelo sentido, pelo significado que, segundo muitos teóricos, o texto tem ou pode vir a ter. A busca pelo sentido que o texto tem, que o autor tinha em mente, que o leitor apreendeu ou quaisquer sejam as fontes em que tal ‘significado’ poderia ser encontrado, é, na verdade, uma concepção essencialista de literatura. Essencialista porque na maioria dos enfoques dados ao texto literário pelas várias teorias interpretativas, parte-se do princípio de que uma resposta deverá ser encontrada, um significado ou mais está à espera de ser descoberto e, portanto, cabe aos teóricos da literatura (ou aos leitores) desvendá-lo.

Se partirmos do princípio de literatura como linguagem performativa, ou seja, literatura como ação (Culler, op.cit.), considerações serão necessárias a respeito do papel da literatura não como representação da realidade ou como aquela que descreve ou designa tal realidade mas, mais que isto, como, enquanto manifestação da linguagem, criadora da realidade.

Há muito tempo os teóricos afirmam que devemos atentar para o que a linguagem literária faz tanto quanto para o que ela diz e o conceito da performativa fornece uma justificativa lingüística e filosófica para essa idéia: há uma categoria de elocuções que, sobretudo, fazem algo.(...) A elocução literária também cria o estado de coisas ao qual se refere, em diversos aspectos. Primeiro e mais, simplesmente, cria personagens e suas ações (...) Segundo, as obras literárias criam idéias, conceitos, que colocam em campo. (Culler, op.cit.:97).

Esta concepção performativa do texto literário se coloca, na verdade, em sua defesa (do texto literário) enquanto manifestação tanto artística quanto lingüística; defesa da propriedade que a literatura tem de, como os outros atos de linguagem, trazer à existência as coisas que nomeia e, assim, recriar o mundo.

Tendo, pois, tal princípio em mente, a questão do sentido se torna menos relevante do que tem sido para muitos teóricos, uma vez que o caráter performativo da linguagem literária representa uma ruptura entre a intenção do escritor e o sentido que seu texto venha a ter. Destarte, o sentido mesmo, a essência deixa de ser o alvo simplesmente pelo fato de a literatura como manifestação da linguagem se concretizar como ação e, portanto, especulações no sentido de chegar à sua essência, constituem investidas reducionistas de determinar o que talvez seja indeterminável, como afirma Wittgenstein, filósofo da linguagem (Oliveira, 1985).

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4- Bibliografia

ALMEIDA, J. F (1996) Bíblia de Referência Thompson. São Paulo: Vida.BELSEY, C. & MOORE, J. (eds.) (1993) The Feminist Reader. London: MacMillan.CULLER, J. (1999) Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca.EAGLETON, T. (1996) Teoria da Literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes.JOYCE, J. (1914) Dubliners. London: Penguin Popular Classics.JOYCE, J. (1914) Dublinenses. Traudção de Hamilton Trevisan (2003). O Globo. Rio de Janeiro. OLIVEIRA, M. A. 1996) Reviravolta Lingüístico-Pragmática na Filosofia Contemporânea. São Paulo: Loyola.

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O conceito de timé na Ilíada

Maurício SilvaProfessor de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira no Centro Universitário Nove de Julho (UNINOVE) – SP – Membro da American Association of Teachers of Spanhish and Portuguese (University of Northern Colorado), da Brazilian Studies Association (University of New Mexico), da Modern Language Association (New York) – Pesquisador do Instituto de Pesquisas Lingüísticas Sedes Sapientiae para Estudos de Português (PUC-SP);

Resumo:Este artigo procura analisar a ocorrência do conceito de time (honra), na obra Ilíada, de Homero, relacionando-o com outros conceitos fundamentais para o entendimento geral do texto referido.

Palavras-chave: Homero, Ilíada, honra, literatura clássica.

Abstract:The present article analyses the concept of timé (dignity), in the Iliada, from Homer, and some relations to another concepts from this literary work

Key words: Homer, Ilíada, dignity, classicism

Muitos estudiosos da civilização grega clássica empenharam-se, ao longo dos anos, em dividir a sua história em diversos períodos, dos quais aquele que se estende do século VIII ao VII a.C. logrou receber a denominação de período homérico. Tal fato parece não só fazer referência à época em que, talvez, tenha vivido o suposto autor da mais elaborada e famosa epopéia ocidental - a Ilíada -, como também pressupõe uma profunda influência da mesma sobre a sociedade do período.

Não sem motivo, portanto, Homero e sua obra continuam sendo considerados o princípio e o fim de toda uma civilização, de uma cultura e de um modus vivendi. A bem da verdade, pouco se sabe a respeito da época que o precedeu, da influência que esta eventualmente teria exercido sobre sua obra: um largo período que se estende do século XIII ao IX a.C. continua, em muitos aspectos, sendo uma incógnita para os historiadores da antigüidade, fato que se agrava ainda mais se pensarmos que exatamente neste período se situa o acontecimento histórico que serve como argumento temático à obra em questão.

Isso não impediu que a glória de Homero fosse difundida e o seu nome cultuado ao longo de muitos e muitos séculos: obra literária no sentido mais profundo do termo, não é de causar espanto o fato de a Ilíada ser hoje um verdadeiro marco literário e histórico, com o qual se inicia toda a tradição épica ocidental, o que não impediu que, em torno da mesma obra, se tenha erguido uma fervorosa polêmica, à qual comumente dá-se o nome de "questão homérica" e que se volta para questões que vão da autoria até a eventual tradição oral que estaria subjacente à sua produção literária.

Indiferente a todos estes calorosos combates que são travados ao seu redor, a obra de Homero parece resistir ao tempo e aos ataques, afirmando-se cada vez mais como uma autêntica e inigualável chef-d'oeuvre do mundo ocidental. Uma análise mínima e superficial de sua linguagem já seria suficiente para corroborar estas afirmações: ao mesmo tempo variada e precisa, longe de qualquer efeito monótono ou trivial, a linguagem que conforma esta obra máxima da literatura mundial possui uma vigorosa capacidade de tornar reais fatos e

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personagens distantes de nós há muitos e muitos séculos; a forma métrica do hexâmetro, habilmente manipulada pelo autor, a troca dos dáctilos pelos espondeus, a multiplicidade das cesuras são apenas alguns dos procedimentos lingüístico-poéticos utilizados por Homero, o que resulta numa tocante fruição da narrativa. Acrescente-se a isso inúmeras outras características próprias da mesma obra - como a conjunção dos dialetos jônico e eólico, a abundância metafórica etc. - e tem-se como resultado toda uma peculiar musicalidade, um original colorido e uma invejável pujança imagética. No plano do conteúdo, sua grandiosidade fica por conta do emprego de temas universais até hoje instigantes: a fraqueza humana perante a morte, a robustez do guerreiro, a cólera e a vingança.

Neste sentido, poder-se-ia dizer que a Homero foi concedida a grata oportunidade de transformar axíomas universais em poesia-maior, o que dá à sua obra não apenas um caráter profundamente ecumênico, mas também um sentido substancialmente atual, atualidade esta que se evidencia continuamente nas suas próprias palavras:

as gerações dos mortais assemelham-se às folhas das árvores, que, umas, os ventos atiram no solo, sem vida; outras brotam na primavera, de novo, por toda a floresta viçosa.62

É, talvez, este caráter universal da Ilíada que faz dela a mais representativa obra da literatura ocidental - não apenas por se utilizar de uma linguagem universal, a linguagem poética, mas também por abordar temas desde sempre ligados à natureza humana. Porém, mais do que isso, por ela trazer consigo as mais peculiares características de uma civilização reconhecidamente ecumênica. Afinal, como já se disse mais de uma vez:

a obra universal não é necessariamente um escrito cujo conteúdo tenha caráter cosmopolita, mas sim - e principalmente - aquele que seja verdadeiramente representativo do espírito nacional, por poder transmitir algo de autônomo e válido a outros povos.63

Uma das questões mais relevante da Ilíada diz respeito à timé (honra), em todas as suas diversas manifestações.

Após ter-se revelado ser Crises (escrava capturada e concedida a Agamemnone como prêmio) o motivo da desgraça que Apolo fez cair sobre os gregos, dois bravos guerreiros entram em conflito: Agamemnone, atrida poderoso e Aquiles, grande chefe dos Mirmídones. Aos olhos espantados dos outros guerreiros, trocam acusações mútuas; e, finalmente, por causa da decisão de Agamemnone em tomar Breseida a Aquiles, este retira-se da luta, causando grandes males aos gregos. Não importa a Aquiles os sofrimentos que seus companheiros virão encontrar em função desta decisão; tampouco a sorte da guerra o preocupa deveras. O que importa para o bravo herói, neste momento, é um outro valor mais alto e excelso: o que está realmente em jogo é, antes, a sua própria honra. Nestor, prudente ancião, é o primeiro a reconhecer nesta atitude de Aquiles o iminente perigo; mas ele sabe que uma vez ultrajada a honra de um guerreiro, as possibilidades de uma reconciliação pacífica são muito remotas.

O agravo à honra de Aquiles vai servir, assim, como uma espécie de substrato psicológico sobre o qual se irá desenvolver toda a trama. Neste sentido, a questão da honra, na Ilíada, assume uma posição essencial no desenrolar de toda a trama, não apenas por ser a responsável pela tragédia dos gregos, que se estenderá por seus longos capítulos, mas principalmente por ser a honra um dos conceitos mais caros à civilização grega. O próprio argumento histórico da obra - a guerra entre gregos e troianos e tudo o que dela advém - tem 62 HOMERO. Ilíada. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1982, p. 74.63 ROSENTHAL, Erwin T. Temas Alemães. São Paulo, Secretaria Municipal da Cultura, 1972, p. 33.

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como fundamento a honra de todo um povo, já que o rapto de Helena pode ser considerado um verdadeiro ultraje aos gregos. A honra é, portanto, tomada como fulcro de toda a trama. E sua importância aumentará ainda mais quando, a certa altura, guerreiros dos dois lados travarem entre si lutas renhidas: a honra torna-se, então, o motor psicossocial de toda a história.

Atentemos, contudo, mais cuidadosamente para a figura de Aquiles. Por causa da ofensa sofrida, como já se viu, os gregos conheceram indescritíveis sofrimentos. Ora, mais do que uma simples ofensa, Aquiles se achou rebaixado em sua condição de guerreiro - não apenas a sua pessoa fôra desonrada, mas, junto com ela, toda a sua tradição de guerreiro valoroso, toda a sua estirpe composta por mortais e imortais figuras. O significado deste ato de desonra, dirigido a uma personagem tão célebre como Aquiles, é-nos dado com precisão por um grande estudioso francês: "ofender Aquiles equivale a colocar no mesmo plano o covarde e o valoroso, conferir-lhe, como ele diz, mesma Timé".64

Portanto, atentar contra sua honra significa não reconhecer o seu valor como guerreiro e como líder de um povo; e, mais do que isso, rejeitar a sua timé. Diante de tamanha desonra, faz-se necessária a vingança. Contudo, convém destacar o fato de que essa vingança não possui, na sua base, uma natureza ambiciosamente pessoal - como já demonstrou mais de um estudioso do assunto65 -, mas o efeito preciso de reabilitar a honra ultrajada.

Mais adiante, vemos novamente sua honra ser colocada em jogo, quando seu estimado amigo Patroclo é morto por Heitor, e suas armas - as quais, aliás, foram tomadas de empréstimo ao próprio Aquiles - apreendidas pelo inimigo. A vingança faz-se necessária mais uma vez, mas agora ela virá por meio da decisão de Aquiles em tomar parte da batalha: o que se manifesta neste instante é a hybris de Heitor, e a desonra chega ao seu limite. A entrada de Aquiles na luta marca o começo de sua vingança e a recuperação de sua honra.

A rigor, a questão da honra na Ilíada pode ser apreendida sob duas formas: haveria uma honra comunitária - aquela que fôra violada logo de início, ao se colocar em dúvida a liderança de Aquiles frente aos seus homens e ao se contestar indiretamente a sua condição de guerreiro valoroso -; e uma honra individual - violentada quando Heitor mata Patroclo e se apodera das armas de Aquiles. Estas duas "espécies" de honras constituir-se-ão nos dois pilares morais de sustentação da trama, e a partir delas todo o episódio épico-histórico será desenvolvido. Centrada na figura principal de Aquiles, esta questão disseminar-se-á por toda a obra, e poderemos vê-la ligada ora à figura de Agamemenone - o sábio Nestor faz uma apologia da honra do líder guerreiro (Canto I); ora à figura de Menelau - este suplica a Zeus que lhe conceda o privilégio de atingir Alexandre, causa de sua desonra (Canto III); ora ainda à de Heitor que, a fim de manter sua honra e reputação, decide enfrentar o temido Aquiles (Canto XXII).

Entretanto, não é apenas nas figuras individuais dos bravos guerreiros que assistimos ao desenvolvimento desta questão. Ela atinge, de outra maneira, também certos conceitos coletivos que parecem devidamente arraigados na tradição cultural da civilização grega clássica. É assim que podemos entender, por exemplo, o ultraje que representa a fuga de uma batalha ou o não sepultamento de um corpo já privado de alento (Canto XXII); e a honra que representa chamar o guerreiro pelo nome de seus pais (Canto X) ou morrer em luta quando ainda se é jovem.

A relação entre honra e morte, aliás, é uma das questões mais fecundas dentro da Ilíada. Cumpre-nos perguntar, neste sentido, qual seria a ligação entre a morte física do guerreiro e a sua honra. E a resposta pode ser parcialmente respondida por meio de uma distinção: há, no âmbito da tradição grega antiga, uma espécie de morte comum, que não

64 VERNANT, Jean-Pierre. "A Bela Morte e o Cadáver Ultrajado". Discurso, Universidade de São Paulo, São Paulo, No. 12, 1979: 25-32.65 JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

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possui nenhuma conotação encomiástica especial, podendo, inclusive, ser percebida como ultrajante (por exemplo, a morte de um guerreiro em fuga); e, ao contrário, uma morte honrada, gloriosa, digna de louvores - a eukleès thanatós. É através desta morte, portanto, que o guerreiro poderia adquirir toda a honra que não lhe fôra permitido conquistar em vida. Ao contrário do que se poderia supor, esta morte não é só valorizada, como também desejada pelos guerreiros, que, por meio dela, atingirão a fama e o respeito: pela morte, a vida do guerreiro adquire plenitude e, conseqüentemente, a eternidade, já que o mesmo será lembrado e celebrado para sempre. E o que significaria para um guerreiro sua celebração como herói? Ora, vemos por toda a Ilíada como os oradores fazem referências honrosas aos guerreiros que bravamente defenderam o seu povo, morrendo em luta e conquistando a glória eterna! Na verdade, estes verdadeiros heróis, cuja fama ultrapassa em muito os limites da sua região de origem, não estão mortos para as gerações que os sucedem - ao contrário, continuam vivos por muitas e muitas gerações vindouras. A morte heróica, na Iliada, representa a imortalidade do guerreiro.

Assim, a vida, frente a uma eternidade de honra e heroísmo, pouco representa. Tais atitudes podem ser percebidas tanto na preferência de Aquiles em arriscar-se a morrer lutando e honrado a ser tomado para sempre como covarde, quanto na decisão de Ajaz em enfrentar o bravo Heitor, mesmo que isto lhe custe a própria vida. Assim, o culto à morte heróica, que uma vida breve pode representar, espelha-se na ânsia de uma honra imortal. Mais do que isso, alcançar a honra - seja pela morte heróica, seja pelos valores manifestados em vida - é o caminho mais rápido e perfeito de se atingir um outro conceito caro aos gregos: a areté (virtude). Dessa maneira, timé e areté caminham juntos na formação plena do homem grego, tornando-se os verdadeiros fundamentos de sua existência.

A posição, enfim, que conceitos como os da honra e da virtude adquirem na Ilíada é, sem dúvida, relevante e necessária para a compreensão do desenvolvimento de sua trama épica. Essa compreensão, aliás, ultrapassa o entendimento reducionista destes conceitos, para se voltar para a civilização grega como um todo (o homem, a cultura, a mitologia), por meio da qual podemos entender nosso próprio mundo, nossa própria realidade. Os deuses gregos, neste sentido, e tudo o que eles representam, fazem parte também de nosso panteão existencial, e a eles devemos muito do que hoje somos enquanto civilização e cultura, pois, como disse o filósofo Karl Jaspers: "não podemos transformar-nos em gregos. Mas ficaremos empobrecidos se ignorarmos os deuses gregos e não os tivermos na conta de marcos significativos".66

O mesmo pode-se dizer não apenas dos seus deuses, mas de toda a civilização que floresceu na antiga Grécia, que, até hoje, permanece viva como a honra dos guerreiros mortos na batalha.

Bibliografia

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66 JASPERS, Karl. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo, Cultrix, 1981, p. 55.

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Flexibilidade, Empregabilidade, Eficiência e Produtividade: elementos para análise das reformas educacionais brasileiras a partir dos anos 90

Patrícia Spósito Mechi

Resumo: O objetivo deste artigo é apontar elementos para análise das reformas educacionais ocorridas no país a partir dos anos 90, década em que se tornam mais evidentes as articulações existentes entre o redimensionamento dos currículos, das políticas públicas para educação e as transformações no mundo do trabalho, geradas pelo processo de reestruturação produtiva da sociedade capitalista. Para tanto foi imprescindível explicitar os pressupostos históricos da crise estrutural do capitalismo assinalados pelos “neoliberais”, bem como as saídas que apontam. Pretende-se que as categorias de análise delineadas no trabalho – flexibilidade, empregabilidade, eficiência e produtividade – apresentem-se como possibilidades para a compreensão das reformas educacionais em consonância com o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo.

Palavras-chave: reformas educacionais – reestruturação produtiva – educação e trabalho

Abstract: The objective of this article is to aim elements for analysis of the educational reforms happened at the country starting from the nineties, decade in that they become more evident the existent articulations among the dimension of the curriculum, of the public politics for education and the transformations in the world of the work, generated by the process of productive restructuring of the capitalist society. For so much it was indispensable in way to show the historical presuppositions of the structural crisis of the capitalism marked by the “neoliberals”, as well as the exits that point. It is intended that the analysis categories delineated in the work–flexibility, capacity to find work, efficiency and productivity–they come as possibilities for the understanding of the educational reforms in consonance with the current apprenticeship of development of the capitalism.

Key-words: educational reforms–productive restructuring–education and work

As transformações ocorridas a partir do desmoronamento do mundo socialista e da falência do Welfare State demarcam o início de uma nova fase do imperialismo, exercido, por um governo global, sediado em Washington e Wall Street, subordinando tanto as outrora potências mundiais européias quanto a periferia do capitalismo (Petras & Veltmeyer, 2000:15), Resposta do capitalismo a um contexto de crise estrutural iniciada ainda na década de 70 do século XX, o processo de reestruturação capitalista se caracteriza por uma nova conformação na esfera da produção e à uma nova modalidade de acumulação de capital cuja característica específica é a predominância do capital financeiro (Chesnais, 1997).

A sustentação ideológica da nova fase do capitalismo (a ideologia “neoliberal”) tem sido marcada por um discurso que alardeia desde o equívoco apocalíptico do “fim da História” até teses mais refinadas e pragmáticas que pregam a inevitabilidade do capitalismo e a conseqüente necessidade de desregulamentação das esferas de produção e consumo, dado o patamar de atingido pelo desenvolvimento do sistema. A partir dessa lógica o papel do estado é redimensionado; a prevalência da economia sobre a política modifica radicalmente as diretrizes para a ação governamental no que se refere à implementação de políticas sociais.

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As reformas educacionais empreendidas no Brasil durante toda a década de 90 caracterizam-se como parte de um processo amplo de reformas das instituições sociais frente às novas exigências do capitalismo e se configuram como a materialização da retórica neoliberal sobre o redimensionamento do papel do estado. Nesse sentido, as reformas educacionais podem ser caracterizadas a partir de seu ajustamento ao mundo do trabalho, da exigência de novas práticas e saberes escolares e da incorporação de um novo ideário no campo educacional.

Diagnóstico neoliberal sobre a crise dos sistemas educacionais

Num quadro de secundarização das políticas sociais e de enxugamento do estado, a educação brasileira vem passando por uma série de intensas transformações. Conforme esclarece Gentilli, na perspectiva neoliberal, os sistemas educacionais sofrem uma profunda crise de eficiência, eficácia e produtividade, e não uma crise de quantidade, universalização e extensão (Gentilli, 1996).

Nesse quadro em que as políticas sociais são desconsideradas, a crise do sistema educacional é apontada não como fruto da ausência de recursos ou de mecanismos de democratização escolar, mas sim resultado de uma gerência ineficaz. Os resultados perversos do sistema escolar, como a evasão, a repetência, ou o analfabetismo funcional são vistos como distorções geradas pela lentidão, pelo excesso de burocracia, pelo engessamento do estado e pela incompetência dos que nele trabalham.

De fato, a análise da crise, tem sido marcada pelas seguintes características: diagnóstico, culpabilização e medidas cabíveis para reversão do quadro.

Em relação à política econômica neoliberal, Moraes (Moraes, 2001) afirma que o diagnóstico neoliberal identifica uma crise de supervalorização do Estado e do planejamento, num estado concebido como o grande promotor dos direitos sociais. Essa conformação do Estado seria responsável pelo aumento dos tributos, pela crise fiscal, pelo endividamento do Estado e pelo aumento da inflação.

Na Europa e Estados Unidos os culpados pela crise do Estado são identificados como o Estado de bem-estar social pela sua interferência na auto-regulação do mercado; a doutrina keynesiana pela defesa de uma intensa intervenção estatal no sistema produtivo e os sindicatos, pelo discurso democratizante que promove a imposição das vontades da maioria, pela defesa dos direitos sociais e pela tendência ao igualitarismo.

Na América Latina, são culpabilizados o populismo e as teorias desenvolvimentistas, o Estado protecionista e industrializante, a extensa legislação trabalhista e os sindicatos. O mote da culpabilização novamente se estrutura a partir da condenação do estatismo, das garantias sociais e do igualitarismo, que engessariam a competitividade entre os indivíduos e distorceriam os mecanismos naturais do mercado.

Um quadro de crise gerado por um estado interventor e por uma sociedade civil “acomodada” nas proteções dos direitos de cidadania só poderia ser revertido por um conjunto articulado de mudanças estruturais. Segundo Boito (Boito, 1999), este conjunto de mudanças compõe-se de três pilares:

a) desregulamentação do mercado de trabalho, suprimindo direitos sociais, principalmente com diminuição dos salários, decorrente do aumento do desemprego, da terceirização, da informatização, do aumento da exploração da força de trabalho e do conjunto de medidas precarizadoras das relações de trabalho;

b) privatização, com a transferência de serviços públicos para a iniciativa privada e a venda de estatais

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c) abertura comercial e desregulamentação financeira, através de um conjunto de medidas facilitadoras da entrada de capitais e mercadorias das quais se sobressai a política de juros altos.

Para os neoliberais os sistemas educacionais apresentam uma crise de eficiência e produtividade, produzida pela expansão desordenada do sistema. Um conjunto de políticas cuja prioridade era a extensão do atendimento, geraram um ensino de péssima qualidade.

Os mecanismos de exclusão, tais como a evasão, a repetência, etc, seriam desdobramentos lógicos dessa política caracterizada pelo acesso quantitativo aos bens educacionais. A culpa da crise, novamente, recai sobre os defensores de um estado interventor, sobre os sindicatos e sobre os indivíduos acomodados.

A saída da crise traçada pelos neoliberais conforma-se sobre três objetivos que coadunam com o conjunto de mudanças estruturais visando debelar a crise do estado, apontados anteriormente, são eles:

a) transformar a educação em um setor econômico fornecedor de mão-de-obra em harmonia com as necessidades do mercado. A educação passa a significar instrução para o trabalho;

b) transformar a instituição escolar em um centro de difusão dos pressupostos do mercado;

c) ampliar no sistema educacional, a aceitação e utilização dos produtos da “indústria do conhecimento”, tais como livros didáticos e materiais pedagógicos variados.

Para consecução dessas metas é necessária uma profunda reforma dos sistemas educacionais, em que o financiamento, a organização e o funcionamento dos sistemas adquirem centralidade. Isto significa realizar uma mudança basilar na concepção de sistema, desde a ação na esfera federal até os indivíduos que o integram, tanto os profissionais da educação quanto os usuários da educação pública.

Categorias de análise para as reformas educacionais: flexibilidade, empregabilidade, eficiência e produtividade

A partir do quadro exposto anteriormente, apresentaremos algumas categorias capazes de orientar a análise no sentido de explicitar as articulações entre as reformas educacionais e as modificações do sistema produtivo, a saber: flexibilidade, empregabilidade, eficiência e produtividade.

A escolha dos vetores analíticos apresentados não é arbitrária. Alguns autores67 vem apontado a adoção, no discurso educacional, de uma terminologia derivada do discurso gerencial, em detrimento de um discurso de cunho político, em que termos como universalização e democratização orientavam o debate sobre o papel do estado como patrocinador dos direitos sociais.

Num contexto de redefinição do papel do estado, em que o mesmo vai se eximindo da responsabilidade de garantir tais direitos e que a racionalidade própria do discurso administrativo da empresa privada contemporânea passa a nortear suas ações, fica patente a necessidade de considerar as reformas institucionais sob o prisma do discurso gerencial.

Conforme apontam Gentilli & Silva, o combate à ofensiva neoliberal não pode ser vista somente como a luta em torno de recursos materiais, mas também como um embate entre visões diferenciadas de sociedade, que se definem por categorias, noções e formas de nomear a sociedade e o mundo (Gentilli & Silva, 1997).

67 A esse respeito ver GENTILLI, Pablo, Neoliberalismo e educação: manual do usuário, op. cit.

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Flexibilidade

A flexibilidade tem sido a marca das reformas educacionais, em todos os níveis. As novas diretrizes para a ação estatal, que se dão nos marcos de seu enxugamento, são concebidas a partir da avaliação da morosidade e do burocratismo do estado, que impede a consecução de suas ações.

Para combater esse estado moroso e burocrático são efetivadas medidas que procurem torna-lo ágil, respondendo rapidamente às demandas. Nesse sentido a flexibilidade tem sido apontada como a grande saída.

As soluções ágeis nem sempre encontram um respaldo democrático. Flexibilizar a administração pública significa, por exemplo, que as decisões de algumas esferas do poder não necessitam do crivo ou da aprovação social – procedimento considerado moroso e burocrático.

No caso da educação, num estado que deixa de ser concebido como seu grande patrocinador, a verticalização das políticas é substituída pela flexibilização propiciada pelo compartilhamento das ações de gestão.

O ensino noturno tem sido apontado pelos críticos do modelo neoliberal para educação como o grande atingido pelas políticas flexibilizadoras adotadas pelo estado, onde é grande o número de matriculados acima da “idade própria”. Para a regularização do fluxo são propostas “formas alternativas de atendimento”, tais como encurtamento dos prazos dos cursos, a utilização do ensino à distância, a utilização de “telessalas”, que adquirem status de soluções inovadoras. (Bueno, 2000).

A flexibilidade tem sido apontada como a saída para a crise do sistema educacional, ao possibilitar o estabelecimento de parcerias entre a iniciativa estatal e privada, permitindo a delegação de responsabilidades anteriormente exclusivas do estado às instituições da sociedade civil.

A organização do estado e sua ingerência na esfera dos direitos sociais tem sido apontada, conforme já foi dito, como perniciosa, já que o estado é lento, burocrático e pouco competitivo. A ineficiência administrativa do Estado, na lógica neoliberal, deve ser minimizada pela redução de sua atuação, abrindo a possibilidade para inserção da iniciativa privada, seja de forma total, seja em colaboração com o próprio Estado.

No Brasil, a difusão de propostas com esse caráter fica evidenciada nos diversos projetos educacionais que alardeiam a parceria com a iniciativa privada, como a solução da crise vivenciada pelas instituições escolares. É o caso de inúmeros programas de caráter assistencialista e que promovem o envolvimento da iniciativa privada na vida escolar tais como, Amigos da Escola, Parceiros do Futuro, Escola da Família, entre outros.

Empregabilidade

A relação que se estabelece entre o mundo do trabalho e a escolarização é uma relação de subordinação das instituições escolares às demandas apresentadas pelo sistema produtivo. Nesse sentido a empregabilidade tem sido discutida como uma competência, a ser desenvolvida pelo trabalhador, que vai encontrar nos sistemas educativos as ferramentas para seu desenvolvimento pessoal.

A empregabilidade se define como a capacidade do trabalhador em se inserir no mercado de trabalho. Segundo Pablo Gentilli: “(...) o sistema educacional deve promover o que os neoliberais chamam de empregabilidade. Isto é, a capacidade flexível de adaptação individual às demandas do mercado de trabalho” (Gentilli, 1996, p. 26)

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Contudo, o oferecimento de mecanismos para qualificação de mão de obra e para desenvolvimento pessoal do trabalhador não significam permanência no mercado de trabalho. O neoliberalismo privatiza, inclusive, o êxito e o fracasso pessoal.

A questão da empregabilidade é esclarecedora nesse aspecto pois “Ambos [o êxito e o fracasso] passam a ser considerados variáveis dependentes de um conjunto de opções individuais, através das quais as pessoas jogam dia-a-dia o seu destino”(Gentilli, 1996).

De acordo com Azevedo, a questão da empregabilidade pode ser analisada também sob o prisma do resgate da Teoria do Capital Humano. Segundo o estudioso, a Teoria do Capital Humano foi uma espécie de ideologia “embaixadora”, como se preparasse o terreno para as mudanças no campo das relações de trabalho (Azevedo, 2000).

Sua análise permite afirmar que a aplicação da Teoria do Capital Humano não se esgotou com o regime militar no Brasil nem com a falência do “Estado de Bem-Estar Social” na Europa e Estados Unidos a intensificação dos movimentos de globalização do capital e a implementação de um novo padrão de acumulação capitalista, não prescindem de uma ideologia justificadora do individualismo na educação, em que a responsabilidade do trabalhador em sua formação/qualificação pode significar o bônus de estar ativamente no mercado de trabalho, ao passo que sua negligência pode significar o ônus do desemprego (Azevedo, 2000).

Eficiência

A eficiência tem aparecido constantemente nas falas governamentais, geralmente associadas à questão da flexibilidade. Em nome dela, fizeram-se reformas em que a questão da flexibilidade adquire centralidade. Eficiência tem sido sinônimo de redimensionamento da gestão da administração pública, conforme Michael Apple:

“A competição feroz entre as instituições públicas são constantemente comparadas com outras privadas, supostamente mais eficientes. Por isso, mesmo que as escolas e outras instituições públicas ainda disponham de fundos suficientes fornecidos pelo Estado, seus procedimentos internos espelham, cada vez mais, aqueles do setor privado(...)” (Apple, 2003, p. 75)

A definição de eficiência é dada pelo significado que ela assume no discurso gerencial. O Estado mais eficiente não é aquele que promove um atendimento quantitativo e sim aquele que promove um atendimento qualitativo68.

Assim, numa era de escassez de recursos, a privatização aparece como uma saída eficiente para a crise educacional na perspectiva neoliberal. A equação que considera o número de usuários em potencial do sistema público de educação e os recursos disponíveis para esse sistema inviabilizam, num estado que se exime das garantias sociais, a universalização do acesso. Nesse sentido são tomadas medidas focalizadas, em políticas que priorizam os grupos mais vulneráveis.

A privatização do setor educacional não segue as mesmas diretrizes adotadas para privatizações de empresas, por exemplo. O sistema público de ensino se mantém mas ele é gradativamente ocupado pela iniciativa privada.

O estado delega funções que seriam suas às empresas privadas, tais como terceirização de serviços de segurança, merenda e manutenção. Os custos são infinitamente menores, pois a terceirização tem como características a dificuldade de organização sindical dos

68 A esse respeito ver: SILVA, T. T. & GENTILLI, P. (orgs) Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação, op. cit.

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trabalhadores, a curta permanência nos postos de trabalho, a precarização e a superexploração da mão de obra.

Há também um grande incentivo à extensão das redes particulares de ensino. No ensino básico, o sucateamento das instituições retira grandes contingentes da classe média da escola pública que optam pelas escolas particulares. No ensino superior, apesar do mesmo sucateamento, o grande problema é que o sistema público de ensino não dá conta de atender a demanda, redirecionada para a iniciativa privada.

Nesse aspecto é interessante observar que além as redes privadas, que sempre atenderam um grande contingente da classe média passaram mais recentemente, a abrigar também estudantes pobres. Mecanismos como o Fundo de Investimento na Educação Superior – FIES que cobrem os gastos de estudantes pobres nas instituições privadas, em detrimento da expansão das vagas nos estabelecimentos públicos e gratuitos, é uma das estratégias privatizantes na educação.

Produtividade

Finalmente, a produtividade, seguindo a lógica empresarial das categorias anteriores, tem sido associada à possibilidade de uma educação de qualitativamente superior, já que as instituições escolares devem se organizar como empresas produtoras de serviços educacionais, marcadas por procedimentos que viabilizem o aumento de sua capacidade competitiva, como o dinamismo e a flexibilidade.

Os padrões de qualidade são definidos pelo mercado e não pela função social que a educação oferecida cumpre. Segundo Gentilli, num texto que tece uma análise ácida das políticas neoliberais, traçando um paralelo entre a organização escolar e a organização da rede de fast-foods do Mc Donalds,

“(...) se o sistema escolar tem que se configurar como mercado educacional, as escolas devem definir estratégias competitivas para atuar em tais mercados, conquistando nichos que respondam de forma específica à diversidade existente nas demandas de consumo por educação. Mcdonaldizar a escola supõe pensá-la como uma instituição flexível que deve reagir aos estímulos (os sinais) emitidos por um mercado educacional altamente competitivo” (Gentilli, 1996, p.10).

Nessa lógica, as funções escolares passam a ser determinadas pelas demandas impostas por seus “consumidores” e assumem características de mercadoria. A escola, assim deve atuar como uma empresa privada, garantindo a seus clientes a melhor relação custo-benefício.

O “consumidor” de serviços educacionais responde às determinações impostas pela lógica social, particularmente respondendo as demandas do mercado de trabalho É o indivíduo que busca o serviço, mas respondendo a uma demanda imposta pelos setores produtivos.

***As categorias de análise apresentadas, conforme pode se observar nos apontamentos

anteriores são categorias profundamente inter-relacionadas e complementares. Sua análise mais aprofundada, no interior do discurso gerencial assumido pelo Estado em resposta ao reordenamento do sistema produtivo, constitui-se como tarefa primordial no exame das reformas educacionais em curso, num contexto em que a lógica empresarial penetra as instituições estatais e a ideologia neoliberal se apresenta como a única viável na reordenação da sociedade contemporânea.

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Uma reflexão sobre a(s) visão (ões) de língua e cultura no PCN de língua estrangeira do ensino fundamental

Selma Silva Bezerra

Resumo:O presente trabalho tem o objetivo de fazer uma leitura crítica da(as) visão(ões) de língua, de cultura e de ensino de língua dos Parâmetros Curriculares de Língua Estrangeira 3º e 4º ciclos de Ensino Fundamental à luz de teorias contemporâneas que advogam a construção de um entre-espaço cultural na sala de aula de Língua Estrangeira (Kramsch, 1993; Tavares, 2006).

Palavras-chave: língua, cultura e PCN de língua estrangeira.

Abstract: The present work has the aim of doing a critical reading of the language, culture and language teaching views inserted in the foreign language’s National Curriculum Parameters 3º e 4º circles for Brazilian Elementary schools. This study focuses its concern on Applied Linguistics contemporary theories which advocate the building of a cultural enter-space in the foreign language classroom (Kramsch, 1993; Tavares, 2006).

Key-words: language, culture and foreign language’s PCN.

Introdução

Este artigo foi desenvolvido no âmbito dos estudos referentes à Lingüística Aplicada, mais especificamente, em reflexões que dizem respeito à relação entre língua e cultura no processo de ensino e aprendizagem de Língua Estrangeira (doravante LE).

Nosso objetivo é fazer uma leitura crítica dos Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN) de LE 3º e 4º ciclos de Ensino Fundamental já que esse é o documento vigente que norteia os professores e a educação nacional. À luz de princípios pós-modernos que advogam a construção de um entre-espaço cultural no ensino de LE. E ainda nos basearemos nas concepções de língua de Bakhtin (1995) e de cultura de Thompson (1996). Para tanto, vamos a priori definir o que são os PCNs, depois refletir um pouco sobre o processo de ensinar e aprender uma LE, definir nossa concepção de cultura e relacioná-la com o ensino de LE para, então, nos debruçarmos sobre o discurso dos PCNs.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais são documentos criados para servir de referência para o ensino nacional, eles foram propostos pela Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação e do Desporto. Objetivam reorganizar o sistema educacional através de debates, discussões, pesquisas entre professores, diretores, enfim de todos da comunidade escolar, e estão em consonância com a Lei Federal nº9.394 de 20/12/96, Lei Darcy Ribeiro que determina que fica a cabo da União juntamente com Estados, Municípios e Distrito Federal formar referências que guiarão os currículos formando os chamados ‘pontos comuns’ que caracterizarão a educação brasileira.

O termo parâmetro dá a entender que, ao passo que se constroem referências nacionais como os já citados ‘pontos comuns’ no contexto educacional, também se respeitam as variedades regionais existentes no país. Currículo, por sua vez, pode obter diferentes significados como matérias de um curso, conteúdos determinada disciplina e também pode

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designar “princípios e metas do projeto educativo” (PCN, introdução, p.49), sendo esse último conceito adotado nos PCNs, acrescido da flexibilidade, característica que permite discussões para a re-elaboração do ensino em geral e que se adaptem às realidades de cada contexto escolar já que é o professor que entende as necessidades de sua prática educacional.

O PCN de LE, por sua vez, é um documento de 120 páginas, que contém os objetivos sobre o papel da língua estrangeira na aprendizagem geral do aluno, como também, os pressupostos, ou seja, abordagens, concepções que são necessários para o ensino de LE. Tem o intuito de restaurar o papel do ensino da LE no país assegurando que o ensino desta deve se dar na escola. Esse documento foi elaborado por vários estudiosos, entre eles, os lingüistas aplicados Luiz Paulo da Moita Lopez e Maria Antonieta Alba Celani. Todavia, antes de nos concentrarmos nas questões relacionadas ao ensino de LE no PCN precisamos ter em mente os paradigmas atuais e passados que envolvem e que envolveram o processo de ensinar e aprender línguas.

Processo de ensinar e aprender uma LE

Para melhor compreendermos o processo de ensinar e aprender uma LE temos que reconhecer a existência de diversas abordagens de ensino de LE, bem como, compreender concepções subjacentes que delineiam a prática pedagógica dessas abordagens. No entanto, descrever todas as abordagens e métodos não é o objetivo deste trabalho, assim, abordaremos algumas das características de três principais abordagens que são a Tradicional, a Estrutural e a Comunicativa, as quais Nicholls (2001) e Silveira (1999) apresentam em seus trabalhos.

A abordagem Tradicional teve origem no século Va.c. influenciada pelos primeiros estudos acerca da língua e da teoria literária. Tem como principal característica a instrução na língua materna e pouca oportunidade de o aluno usar a língua para fins comunicativos. O ensino dá-se a partir de textos literários, sobretudo no desenvolvimento da leitura e tradução desses textos. A gramática é ensinada por meios dedutivos de forma que seja favorecido o conteúdo lingüístico em detrimento do semântico. Os exercícios geralmente fornecem a aplicação de regras gramaticais, a formação de sentenças, a tradução e versões, de forma que não há preocupação com a pronúncia. Assim surgiram os métodos de Gramática e Tradução e o da Leitura. Desse modo o aluno aprende a falar sobre a língua e não a falar a língua, já que não havia preocupação com o uso da língua, apenas com a forma.

A abordagem Estrutural dá prioridade às habilidades orais, logo, o ensino é voltado para a aprendizagem dessa modalidade da língua. As quatro habilidades são desenvolvidas em seqüência, aprende-se a ouvir, falar, ler e escrever. Os elementos lingüísticos que fazem parte do ensino são escolhidos por análise contrastiva. Nessa abordagem a aprendizagem é comparada com a formação de hábitos que são adquiridos através da formação de exercícios como os pattern drills. Tal prática de ensino favorece acertos por meios de pequenos passos de forma que se evitem os possíveis erros. A gramática, por sua vez, é ensinada através de estruturas seqüenciadas e o vocabulário é usado para reforçar as estruturas gramaticais, mas procura-se sempre contextualizá-lo. No que diz respeito as explicações dos conteúdos elas são feitas por diversas formas, exceto pela tradução. Propicia-se dessa forma o domínio das estruturas lingüísticas. É interessante ressaltar que é nessa abordagem que os recursos audiovisuais são introduzidos como também aspectos culturais que são usados tanto para mostrar situações do dia-a-dia quanto para alertar uma suposta dominação. A partir dessa abordagem surgiram os métodos Audiolingual, Estrutural-Situacional e o Estruturo-Global-Audiovisual.

Hymes (1972), em oposição a noção de competência gramatical de Chomsky, propõe a noção de competência comunicativa, que seria “o conhecimento (prático e não necessariamente explicitado) das regras psicológicas, culturais e sociais que comandam a

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utilização da fala num quadro social” (Hymes, 1972 apud Silveira, 1999, p. 73). Surge, então, a partir dessa noção de competência comunicativa a Abordagem Comunicativa “ que tem como objetivo tornar o aluno comunicativamente competente” (Nicholls, 2001, p. 42). Concentrada na teoria dos atos de fala, nas noções semântico-gramaticais, nas funções comunicativas e nas diferentes formas de expressão, a abordagem é apresentada por (Larsen-Freeman, 1986, p.123) como

quando nós nos comunicamos, nós usamos a língua efetuando algumas funções, tais como, argumentar, persuadir, ou prometer. Além disso, nos realizamos essas funções dentro de um contexto social. O falante irá escolher um jeito particular de fazer sua argumentação, não apenas baseado na sua emoção ou no seu nível de emoção, mas também em a quem ele está se dirigindo e qual é a relação dele com essa pessoa.

No ensino, a Abordagem comunicativa apresenta várias formas lingüísticas para uma única função de forma que a língua mostre-se autêntica e significativa para refletir uma realidade para o aluno. A contextualização é uma constante assim como o uso de jogos de dramatizações, de tarefas com a solução de problemas que permitam o aluno usar a língua comunicativamente. A nova informação é acrescentada a que o aluno já conhece, fato que proporciona o aumento de conhecimento. Dentre os diferenciais da Abordagem Comunicativa podemos citar que há pouca preocupação com a pronúncia, já que o importante é a comunicação, a língua materna pode ser utilizada como um recurso para explicar as atividades, por exemplo. Outro fator é que as quatro habilidades são apresentadas e desenvolvidas ao mesmo tempo. O erro, por sua vez, é visto como resultado do desenvolvimento das habilidades comunicativas. O aprendiz é tido como responsável por sua aprendizagem e o professor é visto como facilitador do processo. As atividades em sala de aula são feitas em grupos, pares ou trios e são centradas mais nas funções comunicativas do que nas formas lingüísticas. Avalia-se, portanto, a competência comunicativa e lingüística do aluno. Em um processo no qual as noções culturais e de comportamento verbais são relevantes. Na Abordagem Comunicativa leva-se em conta a diferença entre aprendizagem e aquisição. “Aprendizagem é entendida como um processo consciente e artificial, ao passo que a aquisição é compreendida como um processo inconsciente e natural, por conseqüência mais duradouro” (Silveira, 1999, p.78).

Guiada por princípios comunicativos, citados acima, surge uma abordagem que defende um olhar construtor em relação à cultura no contexto de sala de aula de línguas, construtor no sentido de que os alunos possam aprender uma língua e, também, reconhecer o contexto cultural onde ela foi produzida, para que, dessa forma, possam crescer linguisticamente e enquanto cidadãos.

Conceituação de cultura

Falar do conceito de cultura pode à princípio parecer um tema claro e definido, porém ele tem sido modificado com o passar dos tempos. Entretanto, não é nosso intuito aqui fazer uma descrição destes vários conceitos, mas sim, fazer uma reflexão sobre alguns, já que antes de apresentar o nosso, faz-se necessário mostrar a evolução pela qual ele tem passado.

Um conceito clássico de cultura que surgiu nos primórdios da era moderna tinha cultura como o cultivo de grãos ou o cuidado com animais, esse conceito passou do cultivo da terra para o cultivo da mente, assim, cultura seria o crescimento intelectual do homem, uma forma elitizante de conceber a cultura. Outra acepção vinda da Antropologia diz que, “a cultura de um grupo ou sociedade é o conjunto de crenças, costumes, idéias e valores, bem como os artefatos, objetos e instrumentos materiais que são adquiridos pelos indivíduos

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enquanto membros de um grupo ou sociedade” (Thompson, 1996, p.173). Como esse conceito não reflete a total abrangência da cultura Thompson diz que ele “se torna na melhor das hipóteses, vago, e, na pior, redundante” (idem, p.174). Essa concepção pode ser encontrada na obra de Tylor que estuda a cultura dentro de uma linha etnográfica na qual pretende descrever, comparar, analisar os costumes, as crenças, as artes e a língua de uma determinada sociedade. Mas cultura não é só isso, Vannucchi (1999), que do seu ponto de vista acredita na cultura como algo genérico e não apenas teórico, a entende como ação, comunicação entre pessoas de seu modo. Para ele, o ser humano é agente de cultura, mesmo que não tenha consciência do seu papel. Assim sendo, ele afirma, “se somos seres do mundo, nossa existência e nossas circunstancias são sempre culturais” (Vannucchi, 1999, p.9). Essa é uma ampla visão de cultura que não a restringe apenas as práticas sociais ou as manifestações artísticas de um povo. Porém, não é que as práticas sociais ou as manifestações artísticas não sejam cultura, elas apenas fazem parte dela, pois se nos subjugarmos a cultura a tão pouco ela não faria parte da vida de todos, e se fosse assim, nem todos teriam acesso à ela.

Tavares (2006) parece compartilhar dessa concepção quando diz

é por intermédio da cultura que podemos nos conhecer, conhecer ao outro e interpretar o mundo no qual vivemos. Podemos dizer que a cultura é onipresente nas ações humanas. Ela se reflete na linguagem, nos símbolos, no pensamento das pessoas, regionalizado-as, marcando suas identidades e como todo processo interativo, alterando suas marcas (p.17).

Essa concepção de cultura torna-se muito importante, pois vê o sujeito como participante ativo da cultura, capaz de transformar marcas culturais, assemelhando-se a Vannucchi (1999) quando mesmo diz que o ser humano é agente de cultura. Ainda podemos relacionar esses dois últimos conceitos com o de Thompson que elege as “formas simbólicas” como meio de intitular este conceito. Para ele, essas unidades significativas são “objetos, ações, expressões significativas de vários tipos - em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados dentro dos quais, e por meio dos quais, estas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas” (Thompson, 1996, P.181).

Do nosso ponto de vista, esses três últimos conceitos entram em acordo quando dizem que cultura é ação, comunicação entre pessoas -interação-, gestos que são interpretados, transmitidos, recebidos e alterados, Geertz diz que “você não pode piscar (ou caricaturar a piscadela) sem saber o que é considerado uma piscadela” (Geertz, 1989, p. 22). Já Thompson se distância de Tavares e Vannucchi quando não vê o sujeito de forma construtiva, como sendo ele capaz de criar cultura a sua maneira e até alterar essas construções, dessa forma, não apenas produzir no que já está pronto. Essas acepções estão dialogando com pensamentos muito próximos e ao mesmo tempo se afastando daquelas concepções de que cultura é o conhecimento adquirido por livros ou que é o costume de um povo, que por muito tempo permearam.

Assim, por meio desses estudiosos, vemos que a cultura é um fenômeno global e intransponível do ser humano. Ela faz parte de todos os níveis do comportamento pois está presente até no pensamento e na língua, já que, por exemplo, a maneira de preservar ou não a face vai depender da cultura de cada grupo. Por isso, no nosso entender, cultura é sempre plural, as culturas, e nunca singular, a cultura, já que ela é intrinsecamente miscigenada e variada, ajudando, também, a construir a linguagem de cada comunidade de fala. Mas como relacionar a cultura com o contexto de sala de aula de línguas estrangeiras? Alguns estudiosos têm trabalhado com o estudo dessa questão. Por isso vamos nos deter a ela.

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Ensino de LE e cultura

O ensino de LE, como já foi dito, vem passando por diversas mudanças ao longo do tempo. Atualmente, o que se percebe é que não há um método específico, nem tampouco uma mistura de métodos. Espera-se que o professor construa

uma filosofia de trabalho, um conjunto de pressupostos explicitados, princípios estabilizados ou mesmo crenças intuitivas quanto a natureza da linguagem humana, de uma língua estrangeira em particular, de aprender e línguas, da sala de aula de línguas e de papéis de aluno e de professor de uma outra língua (Almeida Filho,1993, p.13)

Kramsch (1993) diz que:

Aprender uma língua é exercitar tanto uma voz social como pessoal, é tanto um processo de socialização dentro de uma comunidade de fala quanto a aquisição de um letramento como um meio de expressar significados pessoais que podem colocar em questão os significados da comunidade de fala (Kramsch, apud Brito,1999, P.53).

O presente trabalho defende uma visão de aprendizagem de LE como uma prática social que, como tantas outras, está marcada por seus limites, símbolos e comportamentos, que, por sua vez, compreendem a cultura. Algumas reflexões que dizem respeito ao processo de ensino e aprendizagem de LE têm chamado a atenção para ação do elemento cultural nesse processo, aqui defendemos uma abordagem intercultural crítica que “tem como objetivo maior o alcance da criticidade pelos aprendizes de LE” (Brito, 1999, p.50). Kramsch (1993) “constrói a esfera da interculturalidade crítica no ensino de L2(segunda língua)/LE sobre a imagem de um terceiro lugar” (Brito, 1999, p.52), terceiro lugar esse que aqui está sendo referido como entre-espaço cultural. Tavares (2006) compara essa nova abordagem de ensino com o movimento Antropofágico de Oswald de Andrade, ele pois proporciona o convívio e a discussão sobre elementos de outras culturas com a finalidade de se construir um conhecimento novo “um crescimento cultural e de cidadania” (p.24), que foi digerido pelo processo natural de se constituir a partir da relação com o outro. Buscar um espaço no ensino de LE que não focalize apenas o lingüístico, mas que também juntamente com ele seja abordado questões relativas a comportamentos, atitudes podem, a princípio, parecer estranho, porém essa é uma tarefa que precisa ser refletida e aprofundada a partir do dia-a-dia de sala de aula. A competência cultural, como bem afirma Kramsch (1993, p.240), “é baseada em paradoxo e conflito e freqüentemente, em modos irredutíveis de ver o mundo”.

Assim, abordar na sala de aula pensamentos, ações que não são as suas podem, à primeira vista, causar um estranhamento e ser um tanto dificultoso. Um dos primeiros passos seria compreender que falar uma língua estrangeira é estar exercendo um papel social que ultrapassa os modos de comportamentos de sua cultura, é um estar socialmente marcado por regras de conversação de uma outra forma de compreensão do mundo. Além da necessidade de uma abordagem comunicativa é importante discussões nas quais os participantes possam se colocar no lugar de falantes nativos, mas o ideal seria não ficar apenas nisso e ir além de uma simples simulação, entendendo o modo de vida do outro, para compreender melhor a sua própria maneira de compreender o mundo. Outro fator importante é que nessa troca de culturas o sujeito aprendiz de LE possa desenvolver uma nova visão de mundo, que, agora, não seria mais guiada por sua cultura nativa, mas miscigenada por outra, desenvolvendo, assim, conceitos individuais que sejam capazes de quebrar as barreiras existentes entre as culturas (nativa e alvo). E que, ao mesmo tempo, possa também respeitá-las.

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Também compartilhamos de uma concepção de língua como uma atividade social cuja importância está no seu processo verbal, no diálogo, na interação (Bakhtin, 1995), que está intrinsecamente relacionada à cultura, já que em todas as atividades sociais a cultura está presente. O presente trabalho emerge da necessidade de se conhecer o que a lei vigente determina para o ensino/aprendizagem de LE e também o fato de os PCNs de LE nortearem os professores de escolas públicas e privadas de nosso país.

PCN e ensino de LE: pontos centrais

Primeiramente, é importante ressaltar que o PCN de LE do Ensino Fundamental deixa claro o caráter não dogmático de sua proposta, já que tem o interesse de ser uma ‘referência’ na qual possibilite a adaptação às diversas realidades brasileiras. Os pontos centrais do documento são:

a cidadania, a consciência crítica em relação à linguagem e os aspectos sóciopolíticos da aprendizagem de Língua Estrangeira. Eles se articulam com os temas transversais, notadamente, pela possibilidade de se usar a aprendizagem de línguas como espaço para se compreender, na escola as várias maneiras de se viver a experiência humana. (PCN de língua estrangeira, p.24, grifo nosso)

Para operacionalizar esses dois aspectos, há dois ‘pilares’ fundamentais para o alcance de tais objetivos que são as bases teóricas do processo de ensino de LE no PCN:

“uma determinada visão de linguagem, isto é, sua natureza sociointeracional;

o processo de aprendizagem entendido como sociointeracional”. (idem, p.25)

Assim a aprendizagem não seria apenas um conhecimento lingüístico novo, mas

também uma forma de se compreender e compreender ao outro, através de uma aprendizagem conjunta, compartilhada e construída na interação.

Diante disso o professor escolhe os objetivos importantes para cada região, levando em conta as dificuldades não só da educação nacional, mas também, aspectos emocionais do aluno, entre outros. É aconselhado que na formação dos objetivos leve-se em conta os seguintes aspectos:

o mundo multilíngüe e multicultural em que vive; a compreensão global (escrita e oral); o empenho na negociação do significado e não na

correção. (idem, p.66)

Dessa forma, espera-se que no decorrer dos quatros anos do ensino fundamental o aluno de LE esteja hábil para:

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Identificar no universo que o cerca as línguas estrangeiras que cooperam nos sistemas de comunicação, percebendo-se como parte integrante de um mundo plurilíngüe e compreendendo o papel hegemônico que algumas línguas desempenham em determinado momento histórico;Vivenciar uma experiência de comunicação humana, pelo uso de uma língua estrangeira, no que se refere a novas maneiras de se expressar e de ver o mundo, refletindo sobre os costumes ou maneiras de agir e interagir e as visões de seu próprio mundo, plural e de seu próprio papel como cidadão de seu país e do mundo;Reconhecer que o aprendizado de uma ou mais línguas lhe possibilita o acesso a bens culturais da humanidade construídos em outras partes do mundo;Construir consciência lingüística e consciência crítica dos usos que se fazem da língua estrangeira que está aprendendo;Ler e valorizar a leitura como fonte de informação e prazer, utilizando-a como meio de acesso ao mundo do trabalho e dos estudos avançados;Utilizar outras habilidades comunicativas de modo a poder atuar em situações diversas. (idem, p. 66-76).

Esses objetivos mostram, a princípio, a maneira como a cultura se apresenta no processo de ensinar e aprender LE, já que é importante refletir costumes, maneiras de agir, visões de mundo e, ainda, perceber como esse processo dá a possibilidade de contato com elementos culturais de diversas partes do mundo.

Concepção de língua e cultura no PCN de LE do ensino fundamental

Um dos aspectos relevantes no processo de ensino e aprendizagem de línguas é o conceito de linguagem seja do professor ou o do apresentado no material didático que às vezes está subjacente às praticas diárias de sala de aula, podendo ocasionar resultados não satisfatórios, pois como salienta Medeiros (2006)

se o conceito de língua pode ser entendido como um sistema de signos, de regras, um objeto pronto, acabado, um código de que se serve uma comunidade lingüística para expressar suas idéias, o ensino volta-se para a compreensão do funcionamento da língua, desvinculado do contexto sócio-econômico e cultural no qual estão inseridos o sujeitos falantes (p.61).

A idéia contida no PCN cumpriu com o que lhe é esperada, pois prioriza a natureza sociointeracional da linguagem já que é na interação que o sujeito se constrói como ser discursivo e cria seus próprios significados, facilmente percebido no seguinte trecho:

O uso da linguagem (tanto verbal quanto visual) é essencialmente determinado pela sua natureza sociointeracional, pois quem a usa considera aquele a quem se dirige ou quem produziu um enunciado. Todo significado é dialógico, isto é, construído pelos participantes do discurso. (PCN, Língua Estrangeira, p.27)

Outra questão no documento tão importante quanto o engajamento discursivo do aluno, do professo e do(s) autor(es) do material didático é a consciência da relação de poder existente no discurso cuja necessidade é advogada em Fairclough (1989). Pois para o autor tal

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consciência “é o primeiro passo em direção a emancipação” (Fairclough, 1989, p.1) expressa da seguinte maneira “o exercício de poder no discurso e o de resistência a ele são típicos dos encontros interacionais que se vivi no dia-a-dia. Quem usa a linguagem com alguém, o faz de algum lugar determinado social e historicamente” (PCN, Língua Estrangeira, p. 27, grifo nosso). Cabe ainda pontuar o fato de a sociointeracionalidade da linguagem estar relacionada à “instituição, a cultura e a história” bem definida nos fragmentos:

O enfoque sociointeracional da linguagem indica que, ao se engajarem no discurso, as pessoas consideram aqueles a quem se dirigem ou quem se dirigiu a elas na construção social do significado. É determinante nesse processo o posicionamento das pessoas na instituição, na cultura e na história. (...)No que se refere a visão sociointeracional da aprendizagem, pode-se dizer que é compreendida como uma forma de se estar no mundo como alguém, e é, igualmente, situada na instituição, na cultura e na história. (idem, p. 15, os grifos são nossos )

Assim, podemos inferir que o conceito de cultura está também relacionado à linguagem, por isso, dá-se a entender que o PCN compreende que a cultura não esta restrita às artes ou às práticas que corriqueiramente são denominadas culturais. Outros fragmentos que comprovam a marca cultural no uso da linguagem são, “todo encontro interacional é crucialmente marcado pelo mundo social que o envolve: pela instituição, pela cultura e pela história” (idem, p.27, grifo nosso) e ainda em “quando alguém usa a linguagem, o faz de algum lugar localizado na historia, na cultura, e na instituição definido nas múltiplas marcas de sua identidade social e à luz de seus projetos políticos, valores e crenças” (idem, p.35, grifo nosso). Já uma explicação de cultura melhor definida é relatada nos PCNs de Temas Transversais, mais especificamente, o tema Pluralidade Cultural que ao apresentar as contribuições para o estudo da pluralidade no âmbito escolar expõe a contribuição dos conhecimentos Antropológicos para o tema,

A cultura é o conjunto de códigos símbolos reconhecidos pelo grupo a partir dos quais se produz conhecimento: neles o indivíduo é formado desde o momento de sua concepção nesses códigos e, durante a infância, aprende os valores do grupo. Por intermédio dele é mais tarde introduzido nas obrigações adultas, da maneira como cada grupo social as concebe. A cultura, como código simbólico, apresenta-se como dinâmica e viva. Todas as culturas estão em constante processo de reelaboração, introduzindo novos símbolos, atualizando valores, adaptando seu acervo tradicional às novas condições historicamente construídas pela sociedade. A cultura pode assumir sentido de sobrevivência, estímulo e resistência. Quando valorizada reconhecida como parte indispensável das identidades individuais e sociais, apresenta-se como componente do pluralismo próprio da vida democrática. Por isso, fortalecer a cultura de cada grupo social, cultural e étnico que compõe a sociedade brasileira, promover seu reconhecimento, valorização e conhecimento mútuo, é fortalecer a igualdade, a justiça, a liberdade, o diálogo e, portanto, a democracia. (PCN, Temas Transversais, p.132, grifo nosso)

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O conceito de cultura supracitado parece estar em consonância com o que Thompson (1996) e Geertz (1989) determinam, já que entendem a cultura como uma ação simbólica, que está em constante movimento, viva para criar novos símbolos.

Construção de um entre-espaço cultural e a proposta do PCN

A proposta dos PCNs parecer estar em consonância com o entre-espaço cultural do qual advogamos nesse trabalho, já que leva em conta aspectos culturais no ensino, podemos perceber isso nesse documento e a título de ilustração no seguinte fragmento:

A aprendizagem de Língua Estrangeira contribui para o processo educacional como um todo, indo muito além da aquisição de um conjunto de habilidades lingüísticas. Leva a uma nova percepção da natureza da linguagem, aumenta a compreensão de como a linguagem funciona e desenvolve maior consciência do funcionamento da própria língua materna. Ao mesmo tempo, ao promover uma apreciação dos costumes e valores de outras culturas, contribui para desenvolver a percepção da própria cultura por meio da compreensão da (s) cultura (s) estrangeira (s). O desenvolvimento da habilidade de entender/dizer o que outras pessoas, em outros países, diriam em determinadas situações, portanto, à compreensão tanto das culturas estrangeiras quanto da materna. Essa compreensão intercultural promove, ainda, a aceitação das diferenças nas maneiras de expressão e de comportamento (PCN, língua estrangeira, p. 37)

Percebe-se, então, no trecho supracitado, qual o interesse com o estudo de uma LE, levando em conta não apenas habilidades lingüísticas, mas “contribuir para o processo educacional como um todo”, através de uma visão de língua que permite aumentar o conhecimento da materna. Já o aspecto cultural é importante também para o documento por possibilitar o contato com outras culturas, alargando, dessa forma o conhecimento da sua própria. No espaço reservado ao tema transversal Pluralidade Cultural diz o seguinte, “O tema transversal Pluralidade Cultural merece um tratamento especial devido ao fato do o ensino da Língua Estrangeira se prestar, sobremodo, ao enfoque dessa questão” (idem, p.48).

Aliado a essa nova visão de ensino o PCN também advoga “o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a linguagem com parte dessa visão de língua como libertação” (idem, p. 39) e ainda em “as pessoas podem fazer uso dessa língua estrangeira para seu benefício, apropriando-se dela de modo crítico” (idem, p. 49). O ‘terceiro lugar’ proposto por Kramsch (1993;1997) se dá através de uma pedagogia crítica em relação à LE (Kramsch, 1997, p.6) outros teóricos também ressaltam essa necessidade em relação a linguagem (Fairclough, 1989;Tavares, 2006).

Conclusões

O conceito de língua do PCN, que dá prioridade à natureza sociointeracional da linguagem, está relacionada à cultura, pois observa que ao se usar a língua, além de questões lingüísticas, deve-se levar em conta, o contexto cultural de onde se fala. De acordo com o que já foi discutido, a proposta governamental parece com o que preconizamos, já que, além de abordar a questão cultural de uma forma construtora, ou seja, vendo o ensino de língua e cultura como maneira de se compreender a vida do outro e a sua própria, também enfatiza a criatividade quanto ao uso da linguagem para uma emancipação.

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Diante das reflexões apresentadas vemos que a proposta do PCN de LE prioriza a inserção da cultura na sala de aula de LE, embora saibamos que a realidade do ensino em nosso país não é o reflexo de tal proposta. O que acontece, na maioria dos casos, é o professor com uma concepção distorcida de cultura ou com uma prática de ensino em que a gramática é o ponto central. Santos (2006, p.86) ao refletir sobre uma visão ativa e produtiva de língua e cultura da qual compartilhamos diz que essa visão “não corresponde ao que efetivamente acontece na realidade de ensino de línguas, nos diferentes níveis de ensino”. Ainda de acordo com essa autora a visão de cultura prevalente no ensino de línguas é aquela denominada clássica por Thompson (1996). Fatos como esses talvez possam ser explicados pelo fato de que quando os PCNs foram entregues ao professores, muitos não os entenderam e nem sequer os leram e ainda sem levar em conta a crise educacional pela qual o país vem passando, dificultando ainda mais o trabalho dos professores.

A partir das dificuldades encontradas por parte dos professores foram criados os PCNs em Ação que objetivam ajudar os educadores a colocar em prática o que os PCNs determinam. Cabe ainda ressaltar a análise do discurso dos PCNs feita por Cavalcante (2002) que mostrou como o discurso do documento reproduz as práticas neoliberais e ainda salientou que as reformas educacionais são criadas para fazer de conta que há um proposta governamental.

Referências bibliográficas

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São Bernardo – uma leitura reflexiva

Vania Rodrigues dos Santos Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo/SP

Resumo: Procurar-se-á realizar um trabalho crítico e reflexivo sobre a posição da leitora feminina no Brasil e da importância da educação e literatura na sociedade, no livro São Bernardo, de Graciliano Ramos. Madalena, uma das personagens centrais da obra, será focalizada como leitora de uma época de transformações ideológicas no Brasil e no mundo (visão capitalista versus visão comunista) e como tais fatores influenciaram na construção desse novo modelo de leitora brasileira, nova burguesa no Nordeste brasileiro. Por ser ela, detentora de conhecimentos específicos e professora, Graciliano revela-nos a visão que tal microsociedade possui em relação à educação, o pragmatismo real e à literatura. Assim, nosso estudo tentará demonstrar que São Bernardo não é tão somente um romance psicossocial sobre o homem agreste, mas também expressão de novos paradigmas de leitura e leitores no Brasil.

Palavras-chave: Graciliano Ramos; novos paradigmas de leitura; importância da literatura.

Abstract: In this study, we will analyze the position of the feminine reader in Brazil and the importance of the education and literature, in the book São Bernardo, of Graciliano Ramos. Madalena, one of the most important characters of the book, is a reader that belongs to an era of ideological transformation in her country and in the world (capitalism view versus communism view) and this fact help to form a new standard of reader in the Northeast of Brazil. She is a teacher and has specific knowledge about the world, and based on this, Graciliano show us how people see education, literature and pragmatism in that community. In this way, we try to show the book is not just a novel about the psychological and social position of these people. It is also an expression of a new paradigm of reading and readers.

Key-words: Graciliano Ramos; new paradigm of reading; the importance of the literature.

O presente trabalho visa estudar o romance São Bernardo como sendo uma representação reflexiva da posição da leitora feminina no Brasil e da importância da educação e literatura na sociedade.

Para tal desenvolvimento analítico, utilizaremos como aparatos teóricos centrais o livro de introdução literária de Jonathan Culler e análise da constituição do leitor no Brasil, no livro das autoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman.

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O romance São Bernardo apresenta-nos como narrador-personagem Paulo Honório. O homem que escreve um livro sobre a trajetória que o levou ao título de burguês emergente no sertão nordestino até a sua decadência. Intitulando-se como um ser agreste que não teve instrução e que não tinha hábitos de escrever com as técnicas da “língua de Camões”, ele narra sua história, de modo bastante excepcional para um sertanejo não acostumado às técnicas literárias, através do recurso narrativo denominado fluxo de consciência; para, como Bentinho de Dom Casmurro, “unir as duas pontas da vida”. Observe o seguinte fragmento, em que notamos a presença do fluxo de consciência e o conhecimento da existência de uma estrutura textual para um livro:

Hoje isso forma para mim um todo confuso, e se eu tentasse uma descrição, arriscava-me a misturar os coqueiros da lagoa, que apareceram ás três e quinze, com as mangueiras e os cajueiros que vieram depois. Essa descrição, porém, só seria aqui embutida por motivos de ordem técnica.E não tenho o intuito de escrever em conformidade com as regras. Tanto que vou cometer um erro. Presumo que é um erro. Vou dividir um capítulo em dois. Realmente o que se segue podia encaixar-se no que procurei expor antes desta digressão. Mas não tem dúvida, faço um capítulo especial por causa da Madalena. (RAMOS, 1999, p. 78)

Possuidor de uma visão capitalista, em que o ter vale mais do que o ser, ele narra as suas posses que parecem ter maior importância em sua vida: a fazenda São Bernardo e a professora Madalena. Focalizaremos aqui o objeto de sua ânsia que posteriormente pode ser considerado o motivo de seu declínio: Madalena. Devemos ressaltar, porém, que a figura de Madalena está atrelada à personagem Paulo Honório e para tal exame de “mulher leitora e brasileira” é preciso relacioná-la ao universo de seu marido; visto que na sociedade da época a mulher - mesmo tendo meios para conhecer a cultura - ainda deve fazer parte da estrutura patriarcal e latifundiária no Brasil, à sombra do homem.

Madalena não é uma personagem feminina comum. Assim como não o era Capitu de Machado de Assis (Dom Casmurro). São mulheres ímpares expressas na linguagem literária que nos foram reveladas por narradores masculinos. E por que elas seriam ímpares? São mulheres distintas por estarem distantes do protótipo tradicional de mulher: elas são leitoras críticas; e, portanto, detém conhecimento diferenciado de uma maioria marginalizada no Brasil. Segundo Lajolo e Zilberman:

... o universo de leitura da mulher brasileira [durante o século XVII] é dos mais restritos, no que aliás, se afina bastante à sociedade em que vive. Iletrada na maioria dos casos, a mulher brasileira faz parte de um mundo para o qual o livro, a leitura e a alta cultura não parecem ter maior significado. (LAJOLO & ZILBERMAN, 1998, pp. 245, 246)

Tais leitoras, por terem sido descritas pela visão unívoca dos narradores personagens masculinos, revela-nos uma parcialidade de seus perfis apresentados na obra: quem pode afirmar que Madalena era somente uma pessoa humanitária que se preocupava com os pobres? Não é de se estranhar que uma pessoa, com este perfil, tenha aceitado a proposta de casamento, depois de Paulo Honório mostrar-lhes as vantagens em tão pouco tempo? Observe a série de fatos até a aceitação do pedido:

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- O seu oferecimento é vantajoso [grifo nosso] para mim, seu Paulo Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que sou pobre como Job, entende?

- Não fale assim, menina. E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? Quer que lhe diga? Se chegarmos a acordo, quem faz um negócio [grifos nossos] supimpa sou eu. (RAMOS, 1999, p. 89)

-... Naturalmente a senhora já refletiu.

Madalena soltou o bordado.

- Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo, acordar cedo, cuidar de um jardim. Há lá um jardim, não? Mas por que não espera mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor.

- Ora essa! Se a senhora dissesse que sentia isso, eu não acreditava. E não gosto de gente que se apaixona e toma resoluções às cegas. Especialmente uma resolução como esta. Vamos marcar o dia..

(...)

Madalena sorriu, irresoluta.

- Está bem. ( RAMOS, 1999, p. 93).

E observe, ainda, como ela é descrita por seu marido, talvez até pela culpabilidade que carrega durante a narrativa do romance:

“Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que meu deu uma alma agreste.” (RAMOS, 1999, p. 100)

Em um mundo capitalista, em que o trabalhador assalariado ganha pouco (as professoras de “primeira entrância” ganhavam apenas cento e oitenta mil-réis, moeda corrente da época), a oferta de uma proposta de garantia financeira é tentadora. E, assim a imagem de Madalena não seria tão assim “santificada” e correta, como na visão do herói Paulo Honório: ela pode ser vista como um ser humano falho como ele próprio, que age de acordo com o seu meio – agira, então, de acordo com a lei da sobrevivência no mundo capital. Mas, tal suposição não desconstruiria a imagem feminina diferenciada de nosso romance, assim como se afirmássemos se Capitu seria culpada ou inocente no relato de Bentinho quanto ao possível adultério, não deixaríamos de considerá-la personagem particularizada.

Madalena marca a narrativa textual até mesmo na construção enunciativa: a partir de seu aparecimento o ritmo da narração se mostra mais atenuado, com dêiticos que denotam uma mudança na objetividade do então empresário lógico (veja, por exemplo, o uso de diminutivos – “dentinhos brancos”; “miudinha”; “fraquinha”; “mocinha”; etc). Tal constatação é feita por João Luiz Lafetá, em seu O mundo à revelia:

Depois da posse de S. Bernardo vem a posse de Madalena. Ultrapassada a unidade que se formara em torno da relação entre Paulo Honório e a propriedade, um outro núcleo começa a se esboçar. O capítulo nono entretece alguns motivos novos – e o leitor percebe que o romance vai ganhar rumo diferente. O estilo se distende um pouco, a tensão arrefece. A preferência do narrador volta-se agora para a técnica da cena, e surgem os detalhes, os diálogos miúdos sobre assuntos do dia-a-dia. O tom compacto se

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esgarça de leve e a narrativa salta de um tema para outro. (LAFETÁ, 2004, p. 82)

Madalena, então, é um objeto a ser possuído pelo capitalista que não tem muita experiência nas relações humanas, que possui um mundo reduzido e reducionista perante os seus olhos. Pelo o que se pode constatar, anteriormente, o narrador se relacionava com mulheres sem envolvimentos maiores:

.... Numa sentinela, que acabou em furdunço, abrequei a Germana, cabritinha sarará danadametne assanhada, e arrochei-lhe um beliscão retorcido na popa da bunda. Ela ficou-se mijando de gosto. Depois botou os quartos de banda e enxeriu-se com o João Fagundes, um que mudou o nome para furtar cavalos. O resultado foi eu rumar uns cocorotes na Germana e esfaquear João Fagundes. Então o delegado de polícia me prendeu... (RAMOS, 1999, pp. 11, 12)

Além disso, Paulo Honório é alguém que não tem um referencial familiar tradicional (sua juventude é incerta - o “pai” cego que desaparece e a “mãe” doceira são os referenciais adotados em sua infância; e, a familiarização com o mundo do crime) , e que pela aparição de Madalena na fase adulta o lançará para um mundo duplamente estranho a que ele não tinha acesso: o mundo dos sentimentos e o mundo da escrita.

Daí Madalena ser fonte motivadora de conflitos: Paulo Honório tentará transferir seus conhecimentos e experiências capitalistas para seu relacionamento com a mulher. Porém, estes não lhe serviriam de meios para ser o dono pleno de Madalena: o choque é inevitável. A mulher se demonstra como pessoa altruísta e para sua maior indignação se mostra um ser passivo, que não reage frente às suas insinuações. Como afirma Chico Lopes (escritor e crítico de cinema do Instituto Moreira Salles de Poços de Caldas, Minas Gerais), em seu artigo Um pio de coruja, Madalena é colocada na condição de “sombra” que

...No entanto, não é sombra qualquer – diluída, esmagada em vida, sem força para ir contra a vontade do proprietário da fazenda São Bernardo – o marido egocêntrico e inalterável na linguagem da prepotência – ela terá a força de um fantasma, de uma negação que se afirma quanto mais veemente o desejo de entender (e, portanto, dominar) de seu senhor que se desenha.(Lopes, 2006)

O herói do romance, dessa forma, sofre as contradições da junção rural e urbana: é o emergente burguês que, segundo Benjamin Abdala Junior (professor da Universidade de São Paulo), em seu artigo 50 anos sem Graciliano Ramos, adota o capitalismo mas ainda possui as raízes da ideologia senhorial que entra em confronto com os valores da nova burguesa Madalena: culta, intelectual e partidária aos ideais do socialismo, que tenta colocar em práticas mínimas sua visão de burguesa urbana influenciada por novas visões políticas da época. Observe como há diferença entre o “mundo” de Paulo Honório e o de Madalena:

Eu narrava o sertão. Madalena contava fatos da escola normal. A escola normal! Na opinião do Silveira, as normalistas pintam o bode, e o Silveira conhece instrução pública nas pontas dos dedos, até compõe regulamentos. As moças aprendem muito na escola normal.

Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis.

(...)

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Madalena, propriamente, não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros.

E eu me retraía, murchava. (RAMOS, 1999,p. 135)

Em outras palavras, Madalena é um desvio do paradigma de mulher: fora normalista, não lia textos religiosos, lia telegramas estrangeiros que talvez nem mesmo Paulo Honório sabia o conteúdo. E o marido “murchava”, pois, poderíamos afirmar que ele não tinha tais predicados, o seu conhecimento se resumiria a uma palavra: o sertão. Note que o conhecimento, aqui é criminalizado: “as normalistas pintam o bode” e “as moças aprendem muito [grifos meus] na escola normal”: mocinhas não devem saber muito, mocinhas não devem ler muito; pois mocinhas sabidas são “horríveis”, podem ter opinião própria e podem fazer críticas. Para que uma mulher deve saber isso? Mulheres são feitas para constituir famílias e lerem livros sobre condutas e normas (como os livros “de religião”). Graciliano demonstra-nos uma ideologia que se sustentou por muito tempo em nosso país: a educação das mulheres era um risco, pois os livros a influenciariam para condutas reprováveis aos olhos da sociedade. Daí, a posterior desconfiança do sertanejo em relação às maneiras da professora. É o que afirmam também as teóricas Lajolo e Zilberman sobre a personagem Madalena:

Professora, Madalena também desperta as mesmas suspeitas que, desde A normalista, pairam sobre a mulher que se profissionaliza no mundo da leitura e da escrita. Como se delineava em obras do século XIX, também em Graciliano Ramos o magistério é saída única para a mulher pobre, registrando-se na sofrida voz de Madalena os esforços para conseguir o diploma numa estrutura social em que à ineficiência do aparelho educacional soma-se sua corrupção. (LAJOLO & ZILBERMAN, 1998, p. 291)

O resultado deste “choque ideológico” é o suicídio de Madalena, que se imola e aceita a sua autodestruição: a sua máxima demonstração de força que levará o marido à dúvida, à decadência e peso na consciência por não compreender o seu mundo. Além desta conseqüência temos, também como resultado, a escrita do romance por um narrador que parece narrar suas memórias como um modo de vencer a culpa e seus conflitos através do trabalho artesanal. Um escritor que manuseia bem o processo de desconstrução e reconstrução; ou, nas palavras do professor Benjamin da “cegueira e autoconhecimento” respectivamente.

Madalena é a personagem culta, instruída, acostumada ao ambiente urbano que denota a atualidade, a aquisição e circulação de novos conceitos do mundo do conhecimento. Paulo Honório é a força bruta, rural, da terra, que pelo conhecimento empírico constrói seus conceitos e visão de mundo. Seus mundos são contrários: o de Madalena é socialista e o de Paulo Honório é capitalista; o dela é altruísta, o dele visa o lucro, não importando o meio para isso e a exploração do outro. Ela preza a cultura e ele a objetividade concreta:

Azevedo Gondim, aferrando-se a uma idéia, gira em redor dela, como peru:

- A instrução é indispensável, a instrução é uma chave, a senhora não concorda, d. Madalena?- Quem se habitua aos livros...- É não habituar-se, interrompi. E não confundam instrução com leitura de papel impresso.- Dá no mesmo, disse Gondim.

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- Qual nada!- E como é que se consegue instrução se não for nos livros?- Por aí, vendo, ouvindo, correndo mundo. O Nogueira veio da escola sabido como o diabo, mas não sabe inquirir uma testemunha. Hoje esqueceu o latim e é um bom advogado.- Entretanto o senhor acha o hospital necessário. E por que não deita fora os seus tratados de agricultura?- É diferente. Em todo o caso suponho que os médicos estudam menos nos livros que abrindo barrigas, cortando vivos e defuntos em experiências. Eu, nas horas vagas, leio apenas observações de homens práticos. E não dou valor demasiado a elas, confio mais em mim que nos outros. Os meus autores não vieram olhar de perto os homens e as terras de S. Bernardo.Madalena balançava a cabeça:

- Perfeitamente. O que há é que não estamos acostumados a pensar assim. Assisti um dia destes a uma fita no cinema, e creio que aprendi mais que se visse aquilo escrito. Sem contar que se gasta menos tempo.(...)

- Cá para mim os livros são úteis. Se o senhor julga que são inúteis, deve ter lá as suas razões. - Você vê que me refiro às histórias fiadas do Grêmio.- O pior é que o que é desnecessário ao senhor talvez seja necessário a muitos, disse Madalena.- Sem dúvida, a beleza, triunfou Azevedo Gondim. É o que se quer. Harmonia, beleza, entende?

- Ora sebo! (RAMOS, 1999, pp. 91, 92)

Podemos notar nesta parte do livro uma discussão sobre a importância da instrução e do livro entre Paulo Honório, Madalena e amigos de seu meio. Nota-se que o herói dá maior importância à vivência, ao conhecimento empírico (“Por aí, vendo, ouvindo, correndo o mundo.”) e àqueles que sejam pragmáticos (“Eu, nas horas vagas, leio apenas observações de homens práticos [grifo nosso].”). A heroína de nosso romance parece valorizar e respeitar as duas formas de conhecimento (“Quem se habitua aos livros...”), incorpora o novo (“Assisti um dia destes a uma fita no cinema [grifo meu], e creio que aprendi mais que se visse aquilo escrito. Sem contar que se gasta menos tempo”) e parece, novamente, perceber as diferentes visões entre as pessoas (“O pior é que o que é desnecessário ao senhor talvez seja necessário a muitos”).

Madalena é um novo modelo de leitora brasileira: a nova burguesa que tem acesso à cultura e a novos meios de acessá-la. É aquela que lê, tem sua opinião própria e consegue enxergar outras perspectivas de enxergar o mundo. Não é mais a leitora que se dizia “ingênua leitora de romances água com açúcar”. É mulher de opinião, tanto que já até escrevera artigo em revista da época. Tanto é uma figura diferenciada no meio feminino que Paulo Honório em suas primeiras investidas para conquistá-la tomava cuidado ao falar: “.... mas uma senhora que vem da escola normal é diferente.” (mesmo considerando, deve-se ressaltar aqui, a profissão de professora como “tolice” e a escola uma “bestidade”). Ela é uma burguesa classe média impregnada de conceitos e sentimentos, mas que se vê impotente frente ao meio em que vive, sem ação, e que opta pela autodestruição.

Graciliano Ramos revela não só a construção de um novo tipo social de leitora no Brasil: nos demonstra, também, o trato da literatura das pessoas daquela sociedade. Observe os dois trechos a seguir:

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“... Um romance que faz gosto, d. Glória.

- Eu não gosto de literatura, disse o dr. Magalhães. Folheei algumas obras antigamente. Hoje não. Desconheço tudo isso. Sou apenas juiz, pchiu! Juiz.”(RAMOS, 1999, p. 65)

Casimiro Lopes é coxo e tem um vocabulário mesquinho. Julga o mestre-escola uma criatura superior, porque usa livros, mas para manifestar esta opinião arregala os olhos e dá um pequeno assobio. Gagueja. No sertão passava horas calado, e quando estava satisfeito, aboiava. Quanto a palavras, meia dúzias delas. Ultimamente, ouvindo pessoas da cidade, tinha decorado alguns termos, que empregava fora de propósito e deturpados. Naquele dia, por mais que forcejasse, só conseguia dizer que as onças são bichos brabos e arteiros.(pp.54, 55)

Observe que o primeiro fragmento nos mostra como uma figura detentora de poder na cidade, um juiz, considera a literatura: só lhe serve para “rechear” a sua imagem; pois, na verdade, não lhe é útil para nada. Sabe da importância da leitura, como jogo de poder, de superioridade; mas, que na realidade é vazia de conteúdo : só a imagem lhe basta. Já no segundo, temos a valorização dos livros por alguém que não tem acesso a eles e sabe de sua importância; é como Fabiano de Vidas Secas, que tenta usar as palavras da cidade “fora de propósito”, como no episódio em que é desafiado para jogar com o Soldado Amarelo:

“Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de Seu Tomás da bolandeira:

- Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.” (RAMOS, 1999, p. 27)

Temos, então, as seguintes reflexões advindas dos trechos citados: o que é literatura e qual a sua importância? Tais indagações nos remetem ao teórico Jonathan Culler que nos permite possibilidades conceituais sobre a literatura, como:

Podemos pensar as obras literárias como linguagem com propriedades ou traços específicos e podemos pensar a literatura como o produto de convenções e um certo tipo de atenção. Nenhuma das duas perspectivas incorpora com sucesso a outra e devemos nos movimentar para lá e para cá entre uma e outra. (Culler,1999, p. 35)

Entre outras conceituações, que refletem a busca incessante do que poderia ser o ato literário: uma convenção que deve ser praticada por leitores privilegiados e que mantenham seus status (como o juiz de São Bernardo) e excluam “pessoas comuns” como Casimiro e Fabiano?... O que seria ela afinal? Graciliano mostra-nos a existência da indagação e cabe ao leitor, que captá-la, refletir sobre o tema.

Diante desta análise, podemos afirmar que o romance é expressão não somente psicossocial do homem agreste, mas também expressão de novas perspectivas da noção de leitura e leitores na sociedade brasileira.

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O deslocamento espacial em “Aqui e em outros lugares” de Oswaldo França Júnior

Maria José Ladeira Garcia

Resumo:

O deslocamento do jogo espacial por meio da pluralidade das perspectivas. A presença de uma capacidade plástica cinematográfica na execução de cenários. As cidadezinhas, a metrópole, a mata e as montanhas impressionam por sua vitalidade, sendo a narrativa uma viagem que dissolve o caminho geográfico demarcado, transcendendo-o e alcançando a dimensão temporal pela fusão do binômio tempo-espaço.

Palavras-chave: Deslocamento; Espaço; Pluralidade; Plasticidade; Cinema

Resumen:La dislocación del juego espacial por medio del pluralismo de perspectivas. La presencia de una capacidad plastica cinematográfica en la ejecución de los scenários. Las ciudades y la metrópoli, el bosque y las montañas impresionan por su vitalidad, siendo la narrativa un viaje que disuelve el camino geográfico demarcado, trascendiendolo y alcanzando la dimensión temporal por la fusión del binómio tiempo-espacio.

L’ écriture fait du savoir une fête. Roland Barthes

Questiona-se, na modernidade, como entender o espaço numa narrativa e saber até mesmo onde acaba a personagem e inicia o seu espaço, pois “personagem é espaço”. Apesar de as lembranças dos personagens e seus planos de futuro flutuarem em algo, simetricamente ao tempo psicológico, designado como espaço psicológico, não podem, em nenhum sentido habitual, atribuir-lhes localização espacial.

O espaço em Aqui e em outros lugares é relevante, porque a narrativa não seria a mesma em outro lugar, e seus personagens não seriam portadores dos mesmos caracteres, pois se processam num modo de interação com o espaço geográfico de Minas como em:

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Criava porcos e plantava limão e pimenta para vender. - Tem um pouco de banana, mandioca e chuchu – disse – Mas isso eu não vendo. É para os porcos. E quarenta e oito pés de mexerica que davam muito todos os anos e que existiam lá desde a época em que adquiriu a fazenda. Mas pelo preço que elas alcançavam não valia a pena vender. Não pagavam nem o transporte. - Então, eu não vendo. Dou para os porcos, também. Ele possuía essa fazenda há anos 2 ,

onde se percebem traços paradoxais do mineiro, como o homem que tem problema com a cerca (A.L. , p. 76) : pacato, rotineiro, pacífico, retrógrado e, simultaneamente, de ação, criativo, esperto em seus empreendimentos, demonstrando capacidade administrativa. Apesar de França Júnior apresentar notações fragmentárias e rápidas sobre os lugares, possui uma capacidade plástica cinematográfica na execução do espaço cujas mudanças de lugares marcam a seqüência da narrativa como em:

Ele andou os seis quilômetros identificando alguns pontos já seus conhecidos.Uma pequena represa, um pinheiro no alto de um morro. As paradas de ônibus. Um oratório de pedra ao lado de uma casa. Foi avistando e reconhecendo esses pontos, e sentindo uma pressão como se alguma coisa o comprimisse no peito. O prédio da escola apareceu e ele reparou que havia sido ampliado. Estava maior. E quinhentos metros à frente achava-se a placa da construtora e a seta apontando as casas do conjunto residencial (idem, ibidem, p. 33 ).

Gérard Genette 3 menciona que, no plano da ideologia geral, há um fato certo: o descrédito do espaço expresso na filosofia bergsoniana cedeu lugar a uma valorização inversa ao dizer que hoje o homem prefere o espaço ao tempo. No próprio romance de Proust já se começava a descobrir a sua importância.

A literatura contemporânea evolui no sentido da forma espacial que corresponderia a uma ótica extratemporal, resultante de uma ausência de harmonia entre o criador e o mundo. Tudo na ficção sugere a existência do espaço, exceto a “intromissão do narrador impessoal mediante o discurso abstrato” ( L. E., p 69) , como em: “ E algo lhe dizia que ali, ele, a mulher e os filhos estariam sempre mais expostos” ( A . L., p. 25).

Para melhor entender o espaço na ficção, torna-se importante desfigurá-lo e isolá-lo dentro de limites arbitrários. Eis um exemplo de espaço com personagens e situação:

E quando ela parou junto a uma barraca de tomates, ele criou coragem e aproximou-se. A moça sorriu e eles conversaram. Ela perguntou: - Você trabalha na feira? - Não – ele respondeu. – Trabalho numa construção, ali em cima. - Ah – ela disse. – É que vejo você todo domingo por aqui. - Eu venho passear – ele explicou ( idem, ibidem, p. 8 ).

______________

3 Cf. BARTHES, Roland (1977) p. 68.

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O delineamento do espaço “barraca de tomates” revela de maneira indireta a personalidade e o nível social das personagens, podendo-se afirmar que, ao mesmo tempo, em que personagens e espaço se opõem, completam-se, havendo, portanto, um limite vacilante entre personagem e espaço que pode, ainda, atuar como fonte mnemônica, ligando o presente ao passado, como em:

E entrou no carro e voltou à estrada. E foi novamente identificando, reconhecendo os pontos, os trechos. Lembrando-se de quando passava ali com a namorada. Ele dirigindo devagar e ela sempre com o braço no seu ombro. Os dois bem juntos, encostados um no outro ( idem, ibidem, p.36),

onde se percebe que, através do espaço, “o dono do muro” rememoriza o seu passado.Algumas deslocações espaciais se dão também pelo pensamento, fazendo aparecer

outros lugares imaginários encaixados nos anteriores. Essas cenas vão surgindo como um devaneio, como em: “O rapaz pensava nas chuvas caindo e enchendo o rio. Enchendo o rio que ele sempre seguia pela margem quando precisava ir do outro lado” (idem, ibidem, p. 120).

A força telúrica de Minas vem de suas montanhas bem como os ecos dilemáticos que marcam o caráter dualista da alma mineira, conforme se constata pelas lembranças do rapaz, longe da fazenda, espaço rústico, mas mágico, capaz de preencher a sua solidão na cidade grande:

Não tinha amigos na cidade e as cartas de seu pai lhe faziam sentir a fazenda bem próxima. E ele pensava nos animais, nas plantações. Naqueles homens arrastando o dínamo para junto do engenho. No esforço que faziam. O dínamo sobre a plataforma de madeira e eles o transportando. Aqueles homens magros, com as calças arregaçadas, os pés afundando no barro e gritando:

- Vamos !- Vamos! (idem, ibidem, p. 118) .

A descrição serve para criar um ritmo na narrativa, pois desviando o olhar para o meio ambiente, surge um descanso após uma passagem de ação ( o serviço do delegado na Delegacia): “ As luzes da rua clareavam toda a frente e ele passou pelo portão e viu que o vento havia carregado folhas de árvores e uma página de jornal para dentro da varanda “ (idem, ibidem, p. 60). Toda narrativa apresenta intimamente misturadas representações de ações e de acontecimentos que constituem a narração propriamente dita e representações de objetos e personagens que são o que se denomina descrição 4 .

É possível conceber textos puramente descritivos, visando à representação de objetos “em sua única existência espacial, fora de qualquer acontecimento e mesmo de qualquer dimensão temporal” (F. N. p. 263). A descrição é mais indispensável do que a narração, porque é mais fácil descrever sem narrar do que narrar sem descrever, talvez porque os objetos podem existir sem movimento, mas não o movimento sem objeto. É um “simples auxiliar da narrativa” (idem, ibidem, p. 264), mesmo que ocupe um lugar materialmente maior na história. Essa situação já indica a interligação que há entre as duas funções nos textos literários: a descrição pode ser concebida independentemente da narração, mas não se encontra nunca em estado livre; a narração não pode existir sem descrição, mas esta dependência não a impede de representar o primeiro papel. A descrição é como “uma escrava sempre necessária, mas sempre submissa, jamais emancipada” ( idem, ibidem, p. 263).

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A descrição permite ver o romancista utilizar “a panorâmica, o traveling, a profundeza de campo, os jogos de luz, a distância em relação ao objeto e a mudança de plano para situar a personagem, para integrar no seu meio” 5. Aos poucos, a descrição provoca reações no interior da narrativa, pois a necessidade de descrever leva a introduzir tal personagem, colocando-a em certa situação e condicionando o funcionamento da narrativa no seu conjunto. A descrição do espaço encontra-se subordinada à análise psicológica, à reflexão moral. Através das imagens na descrição se faz a transmutação do cotidiano.

Segundo Bourneuf e Ouellet 6 , a descrição pode atuar como desvio depois de uma passagem muito ativa e agitada, oferecendo a promessa de um repouso, como em: “ E ele ficou sentado no canto, ouvindo o motor da bomba lá fora, ligando e desligando” (A. L., p. 43) ; suspense quando a presença de uma descrição num momento crítico aguça a curiosidade factual como em: “Ao vê-la desfalecida nas mãos do médico. A cabecinha pendente, suja de sangue. E depois ele e a mulher do lado de fora da sala de operação, esperando [ ... ]. Um medo muito grande de perdê-la” ( idem, ibidem, p. 23); abertura quando antecipa o andamento de uma ligação amorosa como em:

Mas a filha não mudava o procedimento. E ela começou a olhar apreensiva os cabelos e a roupa da filha. A reparar nos seus cabelos despenteados e na sua roupa amarrotada quando vinha da rua com o rapaz. E insistiu para que namorassem na sala. Para que ficassem dentro de casa. Para que não ficassem pelas sombras, abraçados (idem, ibidem, p. 11) ;

alargamento ao verticalizar a informação, para complementar dados anteriores, como em:

“ E agora, anos mais tarde, ali na estrada, ao lembrar-se dos dois bem juntos dentro do carro, sentiu a pressão sobre o peito. E ele falou: - Puxa, como eu gostava daquela moça “ (idem, ibidem, p. 40 ).

Para Nelly Novaes Coelho 7 , o ambiente natural eqüivale à paisagem, natureza livre e o social, à natureza modificada pelo homem. O ambiente serve para tornar mais verossímil a narrativa, provocar, acelerar, reatar ou alterar a ação das personagens, ajudar a caracterizá-la e a criar uma “atmosfera” própria ao aparecimento do conflito. Ela é de caráter abstrato, envolvendo ou penetrando as personagens. O espaço social não se confunde com a atmosfera que associada ao espaço denota inclusive o ar que se respira. A ambientação é o conjunto de processos destinados a provocar na narrativa a noção de um determinado ambiente.

Para Osman Lins, (L. E., p. 79) há três tipos de ambientação. A franca é a que se distingue pela introdução pura e simples do narrador”(idem, ibidem, p. 79).

Possui discurso avaliatório e é composta por um narrador independente que, ao não não participar da ação, pauta-se pelo descritivismo como em: “ A estrada ia contornando os morros entre muitas árvores. Não era mais de terra. Tinha sido asfaltada e um número bemmaior de casas podia ser visto nas encostas [ ...]. A mesma estrada agradável de se passar” (A. L., p. 32). É medida pela presença de uma ou mais personagens:

Havia um grande portão na entrada do conjunto. Estava aberto e o homem passou por ele e seguiu até os canteiros reparando como as flores estavam bonitas. As casas do conjunto tinham áreas grandes e formavam duas filas [....]. Em todas elas havia pessoas trabalhando. O homem parou o carro, desceu e perguntou pelo pedreiro. Mandaram-no para uma casa da fileira de cima ( idem, ibidem, p. 33).

A interferência da personagem no ambiente descrito é ilusória porque o observador declarado continua a ser o narrador.

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A descrição longa e detalhada aparece como uma pausa e uma recreação na narrativa. Tem papel puramente estético como o da escultura em um edifício clássico. A segunda função da descrição começou a se impor com Balzac; é de ordem simultaneamente explicativa e simbólica, revelando e justificando a psicologia das personagens, por ser, ao mesmo tempo, “signo, causa e efeito” (F. N., p. 265). Com a evolução da narrativa, substitui-se a descrição ornamental pela descrição significativa, reforçando, assim, a dominação do narrativo, mas o que a descrição perdeu em autonomia, ganhou em importância dramática. O descritivismo pode, assim, impor ao narrativo certo dinamismo a um motivo estático: “E as luzes ao longe, a música, o som das pessoas cantando deram a ele uma estranha vontade” (A . L. , p. 121). A reflexa é aquela em que os fatos são observados através da personagem, sem a colaboração intrusa e sistemática do narrador que “acompanha a perspectiva da personagem, numa espécie de visão com-partilhada” (E. R., p. 22). É característica das narrativas na terceira pessoa, visando a manter em foco a personagem para evitar uma temática vazia; não implica uma ação. A personagem “tende a assumir uma atitude passiva” (idem, ibidem, p. 83) e a sua reação é sempre interior como em: “Mas não conseguiu. Ele continuou esquivando-se. E começou a faltar. A não aparecer todos os dias. E quando ele faltava, a filha permanecia na janela olhando a rua. E a mãe fazia perguntas sobre o rapaz” (A . L.,p. 11, grifo nosso). O pretérito imperfeito assinala a hegemonia da ambientação reflexa, e o objetivo do romancista é evitar as pausas descritivas que comprometem o ritmo narrativo.

Tanto a ambientação franca como a reflexa são “reconhecíveis pelo seu caráter compacto ou contínuo, formando verdadeiros blocos” (L. E., p. 83) e ocupando vários parágrafos. Exigem a atenção do narrador que suspende o relato da continuidade da ação para se deter nos dados da moldura, do contexto presente onde ela se dá. Essa interrupção pode ser feita “de maneira mais enfática ou não, mais abrupta ou não” (E. R., p. 24). Se a interrupção ocorrer de forma prolongada há o risco de se criar um vazio narrativo, porque a prioridade da ação deixou de existir, desaparecendo, então, o elemento dinâmico que a caracterizava. Instala-se, portanto, a inércia momentânea da descrição que se ocupa com objetos e não com sujeitos ativos. Se a descrição interrompe a plenitude da ação, deve-se examiná-la com cuidado para conhecer seu grau de articulação com o precedente e o conseqüente, ajuizando-se, assim, a sua funcionalidade (idem, ibidem, p. 24).

A ambientação franca depende do narrador; a reflexa, de um personagem tendencialmente passivo e a dissimulada ou oblíqua, a mais difícil de se perceber, faz com que se crie uma harmonia satisfatória “entre espaço e a ação” (L. E., p. 83), num processo de colaboração recíproca, exigindo atenção redobrada, devido à interpenetração de seres e coisas; exige personagem ativa, intensificando o enlace entre o espaço e a ação como em:

O rapaz referia-se a uma onda. Uma onda muito grande, alta. Uma onda que se aproximava tomando toda a extensão da praia. Ele e a mulher olharam em volta e viram somente o filho. A menina estava dentro da água, lavando a boneca. Não estava longe e ele correu. Mas a onda alcançou-a primeiro. E ele viu a onda erguê-la. Viu sua cabeça no alto, na crista, e seu rostinho assustado entre as espumas. E ficou vendo através da água seus braços e suas pernas debatendo-se. E a onda passou por ele e depois do turbilhão não conseguiu encontrar a filha. E ouviu o grito da mulher indicando onde aparecia a cabecinha loura. Mas a água tornou a envolvê-la e ele novamente a perdeu de vista. E depois a viu e conseguiu alcançá-la (A . L., p. 24).

Os verbos olharam, viram, viu, viu, vendo, viu, comuns na ambientação reflexa, estão impregnados de energia e ligados a objetos em movimento, dando, assim, uma harmonia ao contexto.

A descrição, além de ter a função de exaltar ou condenar um espaço ou ajudar na elaboração externa / interna da personagem, auxilia também na criação de um ritmo narrativo,

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precipitando-o ou retendo-o .No romance contemporâneo e, sobretudo, na obra de Alain Robbe-Grillet,percebe-se um esforço para realizar uma narrativa por meio quase exclusivo de descrições modificadas, confirmando a sua notável e irredutível finalidade narrativa.

É importante ressaltar que todas as diferenças que separam descrição e narração são “diferenças de conteúdo, que não têm propriamente existência semiológica: a narração liga-se a ações ou acontecimentos considerados como processos puros” (F. N., p. 265) e por isso valoriza o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição se interessa pelos objetos e seres considerados em sua simultaneidade, encarando os processos como espetáculos. Parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço. Esses dois tipos de discurso parece exprimirem duas atitudes antitéticas diante do mundo e da existência, uma mais ativa, outra mais contemplativa. Quanto aos modos de representação, narrar um acontecimento e descrever um objeto são duas atividades semelhantes, que põem em jogo os mesmos recursos da linguagem. A diferença mais significativa seria que “a narração restitui, na sucessão temporal do seu discurso, a sucessão igualmente temporal dos acontecimentos” (idem, ibidem,p.266), enquanto que a descrição modula, no sucessivo, a representação de objetos simultâneos e justapostos no espaço.

Conclui-se, portanto, que o espaço desempenha um papel importante: cristaliza sonhos como voar com Ícaro, felicidade que só pode florescer longe da civilização em busca de um Éden escondido onde o homem poderá reencontrar, na natureza, a felicidade perdida.

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A PUBLICIDADE NA INTIMIDADE

Milton Chamarelli Filho Prof. Adjunto da Universidade Federal do Acre

Resumo: O presente artigo discute algumas estratégias que a publicidade utiliza para persuadir um público cada vez mais diferenciado. Observamos, então, formas, icônicas e verbais, que permitem a identificação do consumidor com o produto anunciado, a partir da construção de uma intimidade que passa pela imagem do produto e pela linguagem que a publicidade utiliza. Palavras-chave: publicidade – discurso – mídia – persuasão

Abstract: The present article argues some strategies that the advertising uses to persuade a public more and more differentiated. We observe, then, verbal and icônics forms, that allow the identification of the consumer with the announced product, from the construction of a intimacy that passes for the image of the product and for the language that the advertising uses.Key-words: advertising – discourse – media – persuasion

Considerações Iniciais

Ao situar-se no âmbito das linguagens que povoam o nosso universo midiático, a publicidade69 utiliza cada vez mais estratégias, no intuito de obter uma identificação do público para com os produtos anunciados, estabelecendo, a partir daí, uma relação, que se deve tornar familiar e, muitas vezes, quase íntima, aos olhos do consumidor.

Se a finalidade da publicidade é a de conduzir o possível comprador ao consumo do produto, quais serão, então, as formas pelas quais ela se fará chegar a um interlocutor (leitor, telespectador, etc.), ou, ainda, torná-lo sensível a sua mensagem, já que cada vez mais há um público diferenciado, a quem ela visa conquistar?

Na emaranhada rede de relações entre publicidade e público, o fator econômico, por exemplo, não é o único determinante para responder sobre o comportamento de compra do consumidor70, Em verdade, as variáveis que interferem na compra do produto são muitas: das psicológicas às sociais71. O que torna, então, a mensagem publicitária eficaz? Ou, como sua mensagem é construída, a fim de que ela possa, antes de qualquer coisa, chamar a atenção para si própria?

Embora a publicidade institucionalizada seja conhecida desde o século XIX, foi no início do século XX, com a quebra da bolsa de Nova York, que o mercado se viu entre a superprodução de produtos e a falência, daí a importância de se “oferecer” produtos e a de

69 Optamos pelo uso termo publicidade, que nos parece ser o mais usual, e o que implica menos conotações ideológicas. Ao lado deste, encontram-se outros, tais como: reclame, propaganda, anúncio, comercial etc. Cada um com uma interpretação específica. 70 ROCHA, 1988, p. 3.71 Ibidem, p. 10.

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criar-se demandas. Frente à criação de demandas, nasce a linguagem publicitária, pretendendo diminuir a distância entre o produto anunciado e o público.

Mas como a publicidade, a princípio, tornou a sua mensagem notada para um público? Mais do que isso, deveríamos indagar: como a publicidade torna a mensagem “digna de credibilidade”, credibilidade que pode certificar os seus próprios produtos? Falar-nos na intimidade, sobre aquilo que nos interessa, ou da forma que nos interessa que, de antemão, desperta a nossa atenção, ao nos tornar sensíveis a sua mensagem, é, um dos seus principais ardis.

Insuspeitas, mas não menos notórias, são as relações que se podem traçar entre a publicidade e a chamada pop art, dos anos 60. Se esta provocou o deslocamento do olhar (a assimilação da pop art ao aspecto da reprodutibilidade já havia sido anunciada pela fotografia), conduzindo-nos de volta à cotidianidade dos objetos que nos cercam, em toda a sua objetualidade, comunicando-nos a perda da aura dos objetos artísticos72, provocou, com essa mudança de foco, o modo de se fazer notar da arte, quando subverte a capacidade daquilo que entendemos como o fazer artístico. Como coloca Lucrecia de D’Aléssio Ferrara:

Uma produção pop é um verdadeiro inventário da cultura de massa: produção em série, consumo, efemeridade. Objetos materiais ocupam a tela envolvendo o receptor e executando dupla função: a primeira é atraí-lo pelo reconhecimento, na tela, dos mitos que povoam o seu cotidiano; a segunda é trazê-lo para o universo da obra esvaziando, com isso, o significado daqueles objetos e materiais rotineiros que, por estarem fora do seu universo habitual, perdem a familiaridade que os envolvem. Logo, na arte pop, os objetos e materiais de consumo exercem a dupla função de atrair e provocar o estranhamento do receptor.73

Da mesma forma ocorreu com a publicidade, na medida em que ela:

nos seus melhores exemplos, parece baseada no pressuposto informacional de que um anúncio mais atrairá a atenção do espectador quanto mais violar as normas comunicacionais adquiridas (e subverter, destarte, um sistema de expectativas retóricas).74

Estendendo o que diz Ferrara sobre pop art à linguagem da publicidade, podemos dizer que, em um primeiro momento, esta linguagem e também a da pop art, atrai o receptor pela identificação com algo, a princípio familiar, através de linguagens que lhes dão suporte.

Enquanto a pop art “esvazia o significado” dos objetos, ao dar-lhes novos significados, em função do deslocamento do olhar que eles provocam no novo contexto em que são colocados, a publicidade “substitui” o sentido dos objetos anunciados, na medida que eles deixam de ter um valor utilitário, quando lhes são acrescentados valores outros (status, poder, masculinidade, feminilidade etc.) que “devem ser conquistados” com a aquisição de bens consumíveis.

Esvaziado o objeto de seu caráter utilitário, perde-se o nexo que o justifica para a demanda de mercado, perdendo, com isso, sua finalidade prática. Se a demanda não existe — 72 BENJAMIN, 1982. 73 FERRARA, 1986, p. 106. Grifo nosso. 74 ECO, 1991, p. 157.

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porque a publicidade não sabe exatamente das reais necessidades dos consumidores —, ela cria essa demanda em função dos valores que a todos pode atingir: valores “familiares”, pelo desejo (de uma classe) que pretende suscitar e pela forma pela qual a mensagem publicitária é veiculada (recursos de linguagens comuns para o público: imagens, sons (músicas) e expressões lingüísticas conhecidas).

A Linguagem na Publicidade

A intencionalidade guia a construção do texto publicitário. Considerando-se a “imagem” que se faz do receptor, a intencionalidade é sempre a condição para que a própria linguagem, em que é veiculada a mensagem publicitária, seja entendida e assimilada. Por isso, a linguagem que a ele se destina é burilada e medida, a fim de que ela seja não apenas o vínculo que o liga ao produto ou serviço, mas também que seja, em um primeiro momento, “consumida”, para que possa servir, antes, como um vínculo entre ambos75.

Como exemplo, poderíamos citar a publicidade da Porto Seguros, que diz: Você não pára de pensar na sua casa própria? Nós também não. Lida-se aqui com o fato de a publicidade “saber” que a aspiração da maioria dos brasileiros é a compra da casa própria, por isso, o consumidor aqui visado, é aquele que almeja comprar um imóvel ou pretendente adquirir meios para comprá-lo.

Considere-se ainda, nesta mesma publicidade, o fato de que há uma expressão muito utilizada na fala coloquial, qual seja, “não pára de pensar”, que pode evocar uma certa familiaridade lingüística ao leitor, a fim de que o mesmo também possa, em um primeiro momento, familiarizar-se, logo, identificar-se com a linguagem que a ele se destina.

Como forma de chamar a atenção desse leitor, a utilização da expressão “não parar de pensar”, presente na questão que se coloca diretamente para “ele”, consumidor em potencial de produtos e de mensagens, o conduz à busca de uma satisfação que poderá ser alcançada, a princípio, no campo da linguagem.

A pergunta feita a ele, consumidor, constitui-se, então, como meta a ser atingida em curto prazo, já que o caráter efêmero da própria publicidade demanda uma assimilação rápida da mensagem e de seu conteúdo. É a essa demanda que a própria Porto Seguros pretende atender, através da oração: Nós também não [paramos de pensar na (sua) casa própria]76. Por que então a Porto Seguros “não pára de pensar na (nossa) casa própria”, já que somos nós, presumivelmente, os interessados para tal fim, poder-se-ia perguntar? Porque é ela quem poderá cessar esse “desejo” que nos incomoda “continuamente”, ou seja, adquirir a casa própria.

A estratégia desenvolve-se aqui no sentido de o leitor aceitar a inferência que pode ser produzida, a partir do seguinte pressuposto: “você não pára de pensar na casa própria”, e encadear sobre esse pressuposto77 o argumento de que o ato que ele, consumidor, possivelmente realiza, é objetivado também por quem, na condição de lhe fornecer meios para a aquisição da casa própria, é também sensível a um mesmo tipo de inquietação: Nós também não [paramos de pensar na (sua) casa própria]. Fato que, a princípio, identifica consumidor à empresa Porto Seguros. Identificação que os coloca, supostamente, na mesma condição, já que são passíveis de terem a mesma preocupação: “não parar de pensar na casa própria”.Outro exemplo muito interessante diz respeito à função do texto na publicidade da mineradora

75 CHAMARELLI FILHO, 1998. 76 Acompanhando a construção da primeira oração da publicidade, admite-se que o trecho entre colchetes possa estar subentendido, por paralelismo sintático. 77 Segundo Ducrot (1977), uma vez admitido o pressuposto, pode-se encadear sobre ele. Ou seja, dar prosseguimento ao discurso, a partir do que foi admitido como válido, entre os interlocutores.

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Samarco78, cuja produção é assinada pela agência Lápis Raro, de Belo Horizonte. Apesar de ser quase todo o texto referencial, esta publicidade utiliza recursos de estilos, como se verá a seguir, que extrapolam o escopo do quadro comumente admitido para a classificação dos textos escritos79, porque lida com a capacidade de percepção e de ordenamento cognitivo, dos leitores. A idéia de “transformação”, sugerida pela publicidade, pode ser observada pela convergência das mensagens icônicas e visuais: tanto pela disposição das palavras (cf. esquematização abaixo) como pelo arranjo linear das pelotas de minério de ferro (cf. imagem infra)80. Assim:

SONHO IDÉIA IDÉIA INOVAÇÃO

SAMARCO (INOVAÇÃO) REALIDADE

A intencionalidade, como se pode observar, é dar uma idéia de transformação e o que esta implica, em função do quê. Transformação esta que não apenas modifica palavras, mas “conceitos”, fazendo com que ao signo SAMARCO some um novo conceito. Pode ser depreendida a seguinte “linha de raciocínio”:

REALIDADE > SAMARCO > INOVAÇÃO > IDÉIA > SONHO

que, por sua vez, “em ordem” seria:

SONHO IDÉIA INOVAÇÃO SAMARCO REALIDADE

que elemento faz a ponte entre sonho e realidade?

SONHO IDÉIA INOVAÇÃO SAMARCO REALIDADE

SAMARCO

78 O texto desta publicidade foi observado, primeiramente, na revista em que foi publicado. A imagem, a seguir, foi copiada do site da SAMARCO MINERADORA. Alertamos os leitores que a imagem é a mesma. 79 O quadro das funções da linguagem, segundo Jakobson. 80 Essa idéia de “transformação” é redundante no entrelaçamento das mensagens icônico-visuais, repetindo-se no conteúdo do texto. Observe-se a utilização de alguns verbos do texto (fazer, gerar, criar), dando a noção de uma produção que transforma. A idéia de “transformação” é reforçada pelas pelotas, colocadas da esquerda para a direita, mas também pela mensagem: “A Samarco é uma empresa brasileira fornecedora do minério de ferro que ajuda a mover o mundo”.

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A “transformação” sugerida converge para a imagem das pelotas de minério (colocado nas mãos, em forma de concha), no texto, no canto direito da página, e nas circunferências cuja leitura em direção à seta () é “para direita”.

Pode-se assim entender a publicidade: o minério sofre uma transformação. Samarco é quem faz essa tranformação (“mover o mundo”). A seta indica o processo de transformação, além das várias graduações das circunferências. A Samarco é quem faz virar realidade o sonho de mover o mundo.

Figura 1

Publicidade da Mineradora Samarco (Agência Lápis Raro)

Para efeitos de análise dos textos

publicitários, devemos levar em consideração não apenas a relação direta entre um anunciador e um receptor de publicidades, em uma relação unidirecional pela linguagem. O esquema, que reduz o ato de linguagem à presença de um emissor e de um receptor, herdado da teoria da informação (ademais, como a própria designação dos termos pelos quais se coloca a polaridade do evento comunicativo), torna-se inoperante, porque o ato de fala, o que o envolve e os “efeitos de sentido” que dele decorrem, supõe uma complexidade muito maior do que a prevista pela esquematização de Jakobson81.

Segundo Charaudeau, há não apenas dois elementos, mas quatro “protagonistas”, envolvidos no ato de comunicação (Jec, Jee, Tud e Tui), instâncias, portanto, que são 81 Não é tarefa deste trabalho fazer o levantamento das conjecturas em torno das críticas ao esquema então mencionado.

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constituídas no ato de linguagem. Uma vez instaurados, os protagonistas do ato de linguagem se submetem às condições que envolvem este tipo de ato. Para cada tipo de ato comunicativo, há restrições daquilo que deve ser dito, como deve ser dito, e quem estará em condições de dizê-lo ou recebê-lo, por isso, fazem parte de um “contrato de fala”82. Contrato que se estabelece em função das seguintes condições:

eles se atribuem um certo estatuto psicossocial, sendo que cada um desses estatutos é imaginado por cada um dos protagonistas;eles estabelecem entre si um contrato de troca que é da ordem do Fazer, e não do Dizer, e que depende do status psicossocial (relação de poder/submissão);eles são dependentes do canal físico de transmissão (oral, gráfico, direto/ difundido) 83.

Ou seja, a publicidade, em função da sua argumentação, almeja levar aquele que a recebe a um fazer, a um comprar. A relação contratual vai além daquela de um cumprimento, conforme o nome “contrato” poderia assim sugerir; é uma relação daquilo que pode ser admissível sem consentimento, em uma relação de uma suposta simples troca. As trocas linguageiras, que se dão no cotidiano, assumem esse caráter natural, e é dessa naturalidade que a publicidade pretende se apropriar, colocando-se como mediadora, na relação produto-público, por intermédio da linguagem, dos atos de linguagem.

Consideremos as seguintes instâncias que se constituem no ato de linguagem e que o fundamentam, segundo Charaudeau:

Figura 2

Instâncias constitutivas do ato de linguagem, segundo Charaudeau

82 Embora em uma instância mais restrita, devemos estender os contratos de fala, “contrat de parole”, segundo a terminologia de Charaudeau (1992), a mesma função que Ducrot destina à língua, ao entender esta como um quadro que regula as práticas sociais entre os indivíduos (cf. DUCROT, 1977).83 CHARAUDEAU, 1982. Tradução feita por nós.

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Jec TuiIl

Jee Tud Ilx

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Em que:

“Jec: o indivíduo real, o sujeito comunicante cria um

Jee: sujeito enunciador, que é um “sujeito da palavra”. É ele que é responsável pelos efeitos que o uso da linguagem pode ter sobre o sujeito interpretante (leitor ou ouvinte). O Jee cria/fala/escreve para um

Tud: sujeito interpretante (destinatário) ideal. O objetivo de Jec/Jee é fazer com que as interpretações deste destinatário ideal coincidam com as do destinatário real, o

Tui: sujeito interpretante real, exterior ao texto, ao circuito interno da palavra.

Finalmente,

Ilx: representa o “mundo” falado/contado no circuito interno, um mundo que tem a pretensão de ser um testemunho do

Il: mundo real.”84

Em linhas gerais, pode-se exemplificar, a partir do esquema acima que Jec (a agência de publicidade/quem cria ou produz o texto publicitário) cria uma imagem de um enunciador de publicidade (o enunciador). Essa imagem deve equivaler à imagem que o público (Tui) faz ou almeja fazer desse enunciador (Tud). No momento em que as imagens de Tud e Tui convergem, há uma identificação entre aquilo que a agência sugere, como imagem de um enunciador, e aquilo que o público imagina, como a sua imagem projeta nesse enunciador.

Por exemplo, no anúncio dos xampus da marca Seda: “Fivelas escorregam em cabelos lisos. Homens grudam”, a imagem que Jec (Agência) propõe é a de um enunciador (Jee) que possui cabelos lisos e que sugere que a imagem projetada de Tud em Tui seja aquela de uma mulher que deseja ter cabelos lisos ou mais lisos, gerando assim um anseio de identificação da consumidora (Tui), em função do “valor” que é agregado ao possível benefício do produto: “a conquista dos homens”. O efeito desejado pela publicidade é obtido pela antítese: fivelas → escorregam vs. homens → grudam; note-se que, a partir dessa oposição, o verbo “grudar”, que em geral tem conotação negativa, passa a ter, nesse contexto, conotação positiva.

Essa identificação é necessária para o êxito da publicidade. Nesse momento, convergem as imagens de Tud e Tui; a consumidora (Tui), identificada em seus anseios possíveis, passa desejar em função de

— um certo produto (P), [que] graças às suas qualidades positivas (q+), proporciona um resultado benéfico (R+);

— Você tem uma falta que você não pode não querer preencher;— ora, se o que este produto proporciona (R+), representa precisamente o

preenchimento de sua falta, é porque ela deve tornar-se objeto de sua busca;

— ora, é graças a (P) que se pode obter (R+); ou seja, (P) representa o auxiliador — facilita a procura — de sua busca.85

Na publicidade de Seda:

P = xampu Seda

84 Ida Lúcia Machado, tomando por base a teoria semiolingüística, de Patrick Charaudeau. 85 CHARAUDEAU, 1982, 1983. Tradução feita por nós. Grifo nosso.

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q+ = beneficiamento dos cabelos

R+ = deixar os cabelos lisos

É por intermédio do xampu Seda, que, com suas qualidades, a leitora conseguirá deixar os cabelos lisos, sendo, assim, a busca satisfeita.

Imagem e Recepção das Publicidades

Como vimos acima, dentro de uma “criação de identidade” entre público e produto, a publicidade lança perguntas e a elas responde. Muitas vezes, a pergunta é respondida pela imagem do produto. Este é apenas um dos muitos recursos que a publicidade utiliza na criação de seus textos. Observemos um exemplo.

Na publicidade original86 da Loção Solar Protetora Nívea (cf. infra), o texto colocado, ao lado da modelo fotografada, é: “Sabe qual é a moda na praia neste verão?” Para obter a resposta a essa indagação, deve-se passar, primeiro, pela visualização da imagem de uma mulher, até chegarmos ao produto, utilizando o procedimento tradicional de leitura em Z.

Naturalmente que este tipo de leitura é prevista pelo publicitário, na medida em que lida com a forma de varredura que fazemos de um texto, na cultura ocidental.

Figura 3Publicidade de Loção Solar Protetora Nívea.

O conhecimento de mundo do leitor/espectador é levando em consideração, quando a publicidade “cita” imagens de seu universo cultural87. Esta citação, que não deixa de ser uma “apropriação”, pode ser feita de diferentes maneiras e com diferentes intenções. Por exemplo, a publicidade Glamour, de O Boticário, “cita” uma cena do filme Beleza Americana, ao colocar no texto uma mulher rodeada de frascos de perfumes como se fossem pétalas de rosa.

Muitas vezes, as imagens tomadas emprestadas da cultura ocidental e utilizadas em publicidades, ganham uma outra leitura, podendo servir, ao mesmo tempo, como “argumentos de autoridade”, na medida em que deslocam uma figura clássica para uma peça publicitária, como também podem servir a paródias, como, por exemplo, no caso da figura de Monalisa, de Leonardo D’a Vinci, que já apareceu em revistas, transfigurada como uma outra mulher,

86 No site da marca Nívea, de onde a publicidade a seguir foi retirada, não consta a imagem do produto, originalmente localizado no canto inferior direito, ao lado das nádegas da modelo. O texto também é diferente do apresentado na publicidade da revista.87 Não serão mostradas figuras que exemplifiquem os próximos exemplos, tratados nesta parte do trabalho.

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usando óculos da marca Ray-ban, usando aparelho odontológico e até como a personagem Mônica, criada por Maurício de Sousa.

A utilização dos recursos acima mencionados diz respeito a um reporte aos imaginários sócio-culturais dos leitores/espectadores, a fim de que a peça publicitária possa servir, como elemento de identificação para com esses espectadores, e que possa, por conseqüência, ser avaliada, a partir de uma legitimidade, ou de uma transgressão permitida a essa legitimidade.

A última tendência nas publicidades de revistas é a interatividade ou a simulação de “brindes”, acoplados nas próprias páginas das revistas. A proposta atual destas publicidades é fazer com que o leitor interaja com elas, conferindo-lhe um caráter mais privativo, ao fazer dele alvo da mensagem que lhe é destinada, e também mais “curioso”, na medida em que algo está não somente escondido, mas oculto em um objeto que pode ser visto por todos, no interior de uma revista.

Ao interagir com este tipo de publicidade, o leitor torna-se seu co-autor, criador, essa “criação” se dá pelo desvelamento do produto “escondido”, que se dá a conhecer, no momento em que o leitor viola o lacre do “brinde” que lhe é fornecido pela revista. A função das ações naturais é aqui deslocada, ou seja, não se interage para criar, mas para se deixar persuadir.

Comportamento e Marca

Para o produto ser desejado, ele tem que “suscitar desejos” ou despertar desejos latentes, mesmo que eles não venham a ser satisfeitos da forma de como a publicidade os idealiza. Mais explicitamente coloca a publicidade do Honda Civic: “Muito mais que um meio de transporte. É um meio de ficar feliz” (grifo nosso). Neste caso, o automóvel é não apenas o veículo ou meio de transporte — como sua característica mais peculiar é a menos enfatizada pela publicidade — é o meio para se alcançar a felicidade.

Apesar dessas observações, arriscaríamos dizer que a publicidade não pretende “vender verdades”, ou antes, objetos, mas formas de comportamento, de desejar. É na esfera do desejo que nasce “o sonho de consumo”. O meu sonho de consumo é... algo “proibido” como meta de algo que em curto prazo não pode ser realizável, algo para o qual, entre mim e ele, se interpõem desejos, desejos que se encontram com outros desejos e gostos de uma mesma classe, a quem são destinados determinados tipos de arquétipos. Como nos diz U. Eco:

Existe, é fato, um tipo de excelente comunicação publicitária que se baseia na proposta de arquétipos do gosto que preenche exatamente as mais previsíveis expectativas, oferecendo, por exemplo, um produto feminino através da imagem de uma mulher pela sensibilidade corrente. 88

O arquétipo, neste caso, é a forma que julgamos ideal para que possamos nos assumir como membros de uma determinada classe e com ela identificado.

Na instância das formas de comportamento suscitadas pela publicidade, encontramos exemplos claros nos textos da Benneton e da DuLoren. Exemplo: Você sabe do que uma DuLoren é capaz? Nas publicidades desta marca, o desafio lançado às consumidoras, ao mostrar cenas audaciosas, é assumido pela própria marca. Não é o produto da DuLoren que deve ser responsável por qualquer tipo de comportamento extraordinário, efetivo ou não, a ser despertado pelo produto; é a própria publicidade que é capaz de se propor audaciosa o mais do que suficiente para subverter a capacidade “média” da imaginação (também presumida

88 ECO, 1991, p. 157.

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pela publicidade) das consumidoras, para lançá-las ao desafio de usar a marca e tornarem-se “aptas” a experimentarem desejos de algo que está, presumivelmente, en-coberto.

A “roupa debaixo”, o sous-vêtement, que desperta desejo, é a “segunda pele”. A função de embelezar o que já é por si só belo é encontrada aqui também, tal como encontramos na publicidade dos cremes de beleza, xampus, etc. Todos vêm para revigorar, transformar, em suma, atuar em profundidade89 como coloca Barthes para a atuação dos detergentes, que agem, por esse aspecto, não de forma diferente de xampus, cremes, loções de beleza90.

Este tipo de comportamento só se efetiva porque a publicidade já se sabe conhecedora do seu poder: a sua credibilidade. Como diz Veron, ao interpretar Michel de Certeau: “As mídias, às quais eu sou fiel, são aquelas nas quais eu deposito a minha crença”91.

Considerações Finais: a Credibilidade pela Linguagem

Ao passo que aumenta o poder de persuasão da mídia em geral, por intermédio dos recursos gráficos, aumentam, por outro lado, as possibilidades de escolha de quem “recebe” a mensagem. Dentre as milhares de mensagens veiculadas por revista, televisão, cartaz, outdoors, internet etc. como atingir um consumidor? Sem dúvida, mais do que nunca, o consumidor é o alvo, e como tal, precisa ser diferenciado do grande público que não tem acesso à maioria dos bens de consumo, expostos pela publicidade.

É por meio da identificação (verbal-vocal-icônica,) e, portanto, da intimidade proposta ao consumidor, que a publicidade entra no aconchego dos nossos lares. Ela se permite entrar, não porque seja arrogante, mas porque, ao simular uma interlocução com o leitor/telespectador/consumidor, por meio de músicas, textos e imagens, traz consigo o passaporte da intersubjetividade.

Ao simular uma espécie de diálogo, a publicidade coloca-nos na condição de interlocutores da mensagem que a nós se destina. A naturalização da qual esta mensagem se reveste é, neste momento, o passaporte para que possamos estar, a princípio, suscetíveis de recebê-la. Porque o princípio que guia o seu direcionamento é o da simulação da troca linguageira, a partir das condições que pretendem fazer dessa troca um ato “natural”, fazendo-nos supor sempre a presença de um “outro” a quem nos dirigimos ou que se dirige a nós.

Fundamentada na constituição do princípio dialógico da linguagem, a simulação publicitária reconhece o seu princípio de constituição, qual seja, estar na condição de locutorário de um ato de linguagem é, implicitamente e imediatamente, identificar alguém na posição de alocutorário92. O princípio, reconhecido então como natural, constitui-nos como sujeitos, de fato, da mensagem publicitária, na medida em que nos colocamos na condição de alocutários da mensagem que a nós é destinada, por um locutário.

Ao dirigir-se a nós, ainda que supostamente não nos conheça (o público), a publicidade simula uma relação que é natural, em nosso cotidiano, situação pela qual a reversibilidade da qual fala Benveniste, entre os pronomes “eu” e “tu” (ao tratar da subjetividade na linguagem), assume um caráter espontâneo, colocando-nos sempre na condição de saber que podemos dizer, que podemos retrucar, enfim, que podemos dialogar. Mas a resposta, neste caso, ultrapassará o âmbito da troca, pois ela só poderá se efetivar como um comportamento que foi suscitado pela linguagem — e também por que não dizer também

89 BARTHES. Mitologias. pp. 58-60. 90 A propósito: ocorpo é objeto de culto e exposição, pela publicidade, por isso, ele tem de ser tratado como tal, como algo visível. Meio e fim dos produtos a que ele se endereça: o corpo torna-se sempre um objeto a ser transformado. À imagem do corpo, agrega-se o valor do benefício do produto, que só pode ser obtido com a aquisição do produto anunciado. 91 VERON, 1991, p. 168. 92 Conforme pode ser observado em Benveniste (1988, p. 286).

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pela imagem — e para o qual “se deve” responder. Parece-nos que o trecho a seguir, de Bakhtin, será suficientemente claro para explicar o que dissemos acima:

A relação com o enunciado do outro não pode ser separada nem da relação com a coisa (que é objeto de uma discussão, de uma concordância, de um encontro) nem da relação com o próprio locutor.93

Ainda que a linguagem e a imagem existam aqui como efeito do ato que as colocam no espaço de simulação de uma troca dialógica, é por seu intermédio que respondemos (como assimilação da própria linguagem/imagem ou como compra de um produto) a quem nos fala, na intimidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. “Os gêneros do discurso”. In: Estética da criação verbal. São Paulo: M. Fontes, 1992._____. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2002. BARTHES, R. “A retórica da imagem”. In: O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 1984._____. Mitologias. São Paulo: Bertrand Brasil, 1993.BENJAMIN, W. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: LIMA, L. C. (Org.) Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.BENVENISTE. E. “O aparelho formal da enunciação”. In: Problemas de lingüística geral II. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989. CHABROL, C. Le lecteur: fantôme ou realité? Étude des processus de réception. In: CHARAUDEAU, P. La presse produit production. Paris: Didier Éruditions,1988. p. 161-184.CHABROL C., CHARAUDEAU, P. Lecteurs cible et destinataires visés. A propos de l’argumentation publicitaire. In: VS nº 52/53, Bologne: Bompiaini, 1989. p. 151-161.CHAMARELLI FILHO, M. A constituição de publicidades em publicidades televisivas: uma abordagem semiolingüística. 111 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística)- Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998. CHARAUDEAU, P. Éléments de sémiolinguistique d’une théorie du langage à une analyse du discours. In: Connexions nº 38, Paris: ARIP-EPI, 1982. p. 7-30.DUCROT, O. Princípios de semântica lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977. ECO, U. A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva, 1991. FERRARA, L. D’A. A estratégia dos signos. São Paulo: Perspectiva 1986. JAKOBSON R. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1988.MACHADO, I. L. “A ironia como fenômeno lingüístico-argumentativo”. In: Revista de Estudos Lingüísticos. Belo Horizonte, ano 4, v. 2, p. 143-155, jul./dez. 1995.ROCHA, L. M. de Carvalho. Uma proposta de mensuração do envolvimento do consumidor. 97 p. Dissertação (Mestrado em Administração) - PUC/ Rio de Janeiro, 1988.VERON, E. “Les médias em réception: les enjeux de la complexité”. In: Medias Pouvoir, Bayard Press, n 21, fevrier, mars, 1991.

Cavalos, estrangeiros, andarilhos vagam sem rumo e sem chão.

Ciomara Breder KrempserMestranda em Letras – Literatura Brasileira – (CES/JF)

Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, bolsista CAPES.

93 BAKHTIN, 1992, p. 351.

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RESUMO: Este trabalho tem por objetivo uma leitura do romance eles eram muitos cavalos de Luiz Ruffato94, abordando a fragmentação; a linguagem; as influências e, os temas da violência, da cidade e do flâneur.

PALAVRAS-CHAVE: Cidade; Violência; Flâneur.

ABSTRACT: This study has as its aim the reading of Luiz Ruffato’s novel eles eram muitos cavalos, approaching the fragmentation; the language; the influence and the themes of: violence, city and “flâneur”.

KEYWORDS: City; Violence; Flâneur.

All the lonely people, Where do they all come from?

All the lonely people,Where do they all belong?

94 Luiz Ruffato, jornalista e escritor mineiro de Cataguazes, graduado em Comunicação e jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora, reside há mais de dez anos na cidade de São Paulo. Ruffato já tem publicado alguns livros de contos, poemas e romances, entre eles destacamos eles eram muitos cavalos, com a intenção de fazermos uma análise do livro, que rendeu ao autor o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de arte) de melhor romance do ano de 2001. é valido ressaltar que foi adotada esta grafia para o título da obra em estudo, por se tratar da mesma utilizada pelo autor.

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(Lennon & McCartney)

eles eram muitos cavalos é um romance fortemente marcado pela fragmentação, a qual se encontra presente na estrutura da narrativa, na construção da linguagem e das personagens. O autor constrói um grande mosaico da sociedade, no qual traduz os hábitos, os anseios, as esperanças e as angústias das pessoas, diante da dura realidade, que é a vida em uma grande metrópole marcada pela violência. Essa metrópole é representada pela cidade de São Paulo que, de simples palco para os acontecimentos múltiplos, passa a personagem principal do romance. São Paulo é a base sólida, concreta, real e presente no enredo, de forma constante e intensa. Essa cidade é fruto da construção imaginária, tal como toda a ficção, conforme afirma Calvino em As cidades invisíveis: “as cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa” (1990, p. 44), ou ainda conforme afirma Renato C. Gomes, em Todas as cidades, a cidade:

[...] a cidade como ambiente construído, como necessidade histórica, é resultado da imaginação e do trabalho coletivo do homem que desafia a natureza. Além de continente das experiências humanas, com as quais está em permanente tensão, a cidade é também um registro, uma escrita, materialização de sua própria história (1994, p. 23).

A cidade de São Paulo, juntamente com o narrador, é responsável pela unidade do romance, fazendo com que os episódios estejam ligados, ainda que de modo aparentemente invisível. O narrador conduz o leitor em seu “passeio” pelas ruas de São Paulo e através do seu olhar liga os fragmentos de histórias e vidas, fornecendo-nos um elo entre eles, uma unidade.

São apresentados flashes do cotidiano na capital paulista, salientando a violência, a miséria, os preconceitos, em uma montagem cinematográfica, cheia de cortes rápidos, com um ritmo alucinante, que retrata bem a agitação da vida pós-moderna. A violência é de fundamental importância para a configuração do romance, pois é ela a mola que impulsiona a força motriz do romance; segundo afirma o próprio autor, é o mote do livro.

Ruffato lança seu olhar sobre a cidade e transcreve para a folha de papel tudo o que vê e percebe com seu olhar jornalístico, como se fosse uma câmera, filmando variados acontecimentos, em lugares diferentes. Ele aparentemente não tece comentários, apenas apresenta os fatos, mas a forma como os apresenta deixa transparecer, ainda que implícita, sua intenção de denúncia e de protesto contra a realidade cruel das desigualdades sociais, que ocorrem não apenas em São Paulo, ou no Brasil, mas em qualquer parte do mundo moderno. São Paulo é uma espécie de maquete que representa o mundo pós-moderno com todos os seus progressos, tecnologias e todas as suas angústias e desilusões. “A cidade textual moderna aí encontrada reenvia ao embate entre a referência a uma cidade que se destina a cumprir seus objetivos e outra carente de fim [...]” (GOMES, 1994, p. 24).

É válido ressaltar que, para efeito de melhor estruturação do texto, utilizamos a nomenclatura pós-moderno para marcarmos nosso período atual, contemporâneo. Porém, ainda não se pode definir sumariamente que estamos vivendo o pós-modernismo, pois o fio divisor entre modernidade e pós-modernidade é muito tênue. O que temos na verdade é uma concomitância de aspectos modernos e pós-modernos.

I) O mote do livro

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ISSN 1809-3264

O autor se inspirou no poema “Romance LXXXIV ou dos Cavalos da Inconfidência” que se encontra no livro Romanceiro de Inconfidência de Cecília Meireles para dar título ao seu romance, dedicando-o a ela. Ruffato utiliza o primeiro verso da penúltima estrofe deste poema como título do romance e mais três outros como epígrafe de seu livro. Para melhor ilustramos, transcrevemos a estrofe citada:

Eles eram muitos cavalos.E morreram por esses montes, esses campos, esses abismos,tendo servido a tantos homens.Eles eram muitos cavalos, Mas ninguém mais sabe os seus nomessua pelagem, sua origem...E iam tão alto, e iam tão longe!E por eles se suspirava, consultando o imenso horizonte!− Morreram seus flancos robustos, que pareciam de ouro e bronze (grifos nossos) (MEIRELES, 1987, p. 18).

O termo “cavalos” nos remete à expressão coloquial “fulano é um cavalo”, muito utilizada para nomear pessoas rudes, estúpidas e grosseiras. Também podemos ler o termo de outra maneira, comparando pessoas que ocupam uma posição inferior na sociedade, desfavorecidas, ao animal “cavalo” que, por carregar as pessoas em seu lombo, assume posição de inferioridade em relação ao ser humano. Ainda podemos ler “cavalos” como pessoas anônimas, estrangeiras, das quais não se tem nenhum referencial, isso fica implícito nos versos grifados do poema de Cecília Meireles. Muito embora tenhamos que ressaltar o recorte, o deslocamento de idéias que Ruffato fez com os versos de Cecília. A autora em seus versos fala do animal “cavalo” e Luiz Ruffato transfere esta idéia para falar dos homens pós-modernos, visto que atualmente o homem passa por um processo de total desumanização, em que sobrevive em condições tão precárias de vida que acaba podendo ser comparado a um animal.

Fazendo essas leituras do título e da epígrafe do livro, teremos um indício de que o autor já bem no começo de sua obra nos avisa que irá falar dos desfavorecidos, dos excluídos socialmente, das minorias. Portanto, podemos notar que de acordo com o artigo da professora Sônia Van Dijck disponível na página online da USP (2003), Ruffato transforma o cotidiano dessas pessoas em um “microcosmo das angústias e das esperanças” de toda uma sociedade contemporânea, dando voz à gente pobre e sofrida sem vocação para herói, coisa que parece ser encarada como missão por ele. O autor engajado ao dar voz aos excluídos socialmente acaba criando anti-heróis na narrativa. Através desse índice que o autor nos oferece na epígrafe, notamos o aspecto de engajamento do romance.

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II) A narrativa, sua linguagem e suas especificidades

O romance eles eram muitos cavalos é um conjunto de narrativas fragmentadas, entrecortadas, que compõem as vidas comuns e incomuns típicas da capital paulistana, mas que pode perfeitamente se encaixar na realidade de qualquer outra metrópole pós-moderna, como Gilvan Ribeiro (2002) afirma: “O autor consegue, com intenso virtuosismo técnico, captar, ao mesmo tempo, muitos e diversos aspectos dos dramas cotidianos de uma cidade, São Paulo, por acaso, mas poderia ser qualquer outra.”.

Segundo o próprio autor nos afirma em entrevista concedida ao site “bonde”, publicado no Jornal do Estado Online:

[...] Eles eram muitos cavalos é uma tentativa de compreender essa cidade que me recebeu sem perguntar meu sobrenome (o que em Minas é impossível). É uma contribuição a um questionamento mais amplo, sobre cidadania, sociedade, política, e, por que não? , até mesmo literatura... Acredito realmente que Eles eram muitos cavalos seja um romance de um mote só: a violência [...] (RUFFATO, 2001, p. 1).

Mediante as afirmações de Ruffato e com base na análise da narrativa, podemos perceber nitidamente o caráter engajado da obra, o diagnóstico social, no qual o autor denuncia os erros do mundo real através da ficção. Esse diagnóstico social nos remete à técnica utilizada pelos autores realistas e naturalistas do século XIX e ainda aos neo-realistas portugueses, tais como José Cardoso Pires. Percebemos ainda que o autor não tem a intenção de formular soluções para esses erros e problemas, sua intenção é específica de denúncia, de relatar, ainda que de modo implícito, sua indignação perante os fatos. A postura do autor, como afirma acima, é a de provocar uma reflexão nos leitores. Portanto, encontramos uma perspectiva social no romance, que segundo Fábio Lucas afirma: “A perspectiva social será apanhada toda vez que a personagem ou o grupo de personagens tiver seu destino ligado ao da sociedade global de que faz parte, sob o impulso das forças fundamentais que conferem historicidade às tensões entre indivíduos ou grupos” (1985, p. 5).

Esse caráter social da obra, esse diagnóstico social transposto para a ficção, nos leva a crer que este livro poderá vir a ser um documento da sociedade pós-moderna, futuramente, pois narra com tamanha mestria os fatos corriqueiros, as angústias e anseios do indivíduo contemporâneo, que poderá adquirir um caráter documental, histórico. Esse aspecto nos remete ao conceito de verossimilhança interna, presente na Poética de Aristóteles, o qual nos leva à classificação desta narrativa como sendo uma ficção verossímil,

Não é ofício do poeta narrar o que realmente acontece; é, sim, representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, verossímil e necessário. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreveram em verso ou prosa [...], − diferem sim em que diz um as coisas que sucederam, e o outro as coisas que poderiam suceder (ARISTÓTELES apud BRAIT, 1999, p. 30).

O romance se liga à tradição realista, no aspecto de descrição sistemática da realidade vivida, em uma tentativa de fotografar esta realidade, buscando a riqueza de detalhes muitas vezes não enxergados. Nesse aspecto é que encontramos um elo com o realismo, porém eles eram muitos cavalos consegue lançar mão dessa tradição e ao mesmo tempo expandi-la, pois aqui, o que temos na verdade não é um retrato da sociedade e, sim, uma filmagem da realidade da cidade de São Paulo.

A linguagem de Ruffato na narrativa possui um aspecto bastante ousado, a começar pelo título que o autor coloca em letras minúsculas, possivelmente, influenciado pelo avanço

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da linguagem da Internet em que se utiliza com muita freqüência deste recurso para designar seus endereços eletrônicos. Passando pela pontuação, uma ruptura gramatical que muitas vezes infringe as normas e até mesmo as ignora, como notamos em frases sem ponto final, parágrafos enormes somente com vírgulas etc. Esse aspecto de ruptura gramatical nos remete ao estilo muito pessoal do escritor português José Saramago. Também observamos um uso coloquial da linguagem, em que o autor transcreve na íntegra a fala de suas personagens, utilizando para isso estrangeirismos, expressões de baixo calão, gírias etc. Conseguindo com isso, tornar a narrativa mais próxima da realidade, mais verossímil. Sabemos que essa ousadia não é especificidade da linguagem de Ruffato, ela é fruto da tradição moderna, dos movimentos vanguardistas. Para melhor ilustramos esses aspectos, citamos um fragmento do capítulo quatro de eles eram muitos cavalos:

...mais neguim pra se foderela deve estar chegando, umas dessas estrelas que sobrevoam aestrada, a mulher, o patrãocompromisso inadiável em Brasília expliquei prasim, claro, ele o trata comofilho que gostaria de ter tidosim, claro, o filho um babaca o cocainômano passeia sua arro-gância pelas salas da corretora, sim, claro, o filho um babaca o cocainômano desfila seus este-róides por mesas de boates e barzinhos − que já quebrou −, por rostos de leões-de-chácara e de garotas de programas − que já quebrou − , por máquinas de escrever de delegacias − que tam-bém jásim mas é meu filhoe suborna a polícia,

o delegado,o dono da boate,as garotas de programa,os leões-de-chácara,

sim mas é meu filho (RUFFATO, 2001, p.12).

Outra característica presente no romance é a preocupação com a forma, fazendo com que o autor explore o espaço em branco da folha de papel, buscando com maior intensidade a estrutura do texto, do que seu conteúdo propriamente dito. Essa é uma influência da Poesia Concreta e das artes vanguardistas em geral, porém essa não é a única influência absorvida por Ruffato, ele também assimila tendências de outros estilos artísticos, como afirma na entrevista concedida ao site “bonde”:

Eu sou um formalista. Cada palavra, cada parágrafo, cada página que escrevo é resultado de uma intensa pesquisa. Não me considero nem um escritor, mas sim um re-escritor. Cada tema que se me oferece exige uma forma específica para tornar-se prosa. E, nesse sentido, o concretismo, sem dúvida, é uma referência. Como o são todas as experiências literárias anteriores e posteriores. Não descarto nada para o meu trabalho. Sou um antropófago oswaldiano (RUFFATO, 2001, p. 2).

No último capítulo do livro podemos traçar uma analogia com a Poesia Concreta, fruto da influência descrita acima. Esse capítulo primeiramente, apresenta a transcrição de um cardápio muito refinado, típico de um restaurante muito luxuoso. Em seguida, apresenta uma folha com um enorme retângulo negro, nos remetendo ao vazio, ao buraco negro. Para finalizar, o autor transcreve um diálogo entre um casal pobre, que se apresenta amedrontado diante de uma situação de violência na porta de sua casa. Isso faz com que tracemos um

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paralelo entre o luxo e o lixo, entre a riqueza e a pobreza, cuja distância entre eles é destacada através de um abismo negro. Esse dualismo é característica marcante das desigualdades sociais do mundo pós-moderno, como notamos no poema concreto de Augusto de Campos transcrito abaixo:

Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo LuxoLuxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo LuxoLuxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo LuxoLuxo Luxo Luxoxo Luxo LuxoLuxo Luxo Luxo Luxo LuxoLuxo Luxo Luxoxo Luxo LuxoLuxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo LuxoLuxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo Luxo

(1981, p. 37)

Em eles eram muitos cavalos Ruffato faz uma colagem de variadas narrativas e personagens fragmentadas, formando um mosaico. Processo similar ocorre nas artes plásticas, em que o artista “aproveita fragmentos de contextos diferentes para a obtenção de um resultado final íntegro e harmonioso, sem que se perca a noção, por um momento sequer, que estamos diante de estilhaços” segundo Ribeiro (2002). Essa colagem fica evidente na estruturação dos capítulos, que embora sejam independentes, possuem uma unidade, a qual torna o livro um contínuo harmonioso. Ainda é válido ressaltar que essa sobreposição de narrativas nos remete ao Marco zero de Oswald de Andrade, à As cidades invisíveis de Ítalo Calvino, à Marafa e ao Espelho partido de Marques Rebelo, explicitando-nos um processo de pilhagem:

Este processo de coleta e reciclagem é comum na produção artística contemporânea [...], a arte de nosso tempo tem-se assumido como pilhagem, sem que haja algo pejorativo nisso. Pilhagem do lixo e do luxo, da saciedade enfastiada e da necessidade absoluta, de vitórias ocasionais e derrotas permanentes, de ócio e escravidão.É esta pilhagem que o livro de Ruffato realiza à perfeição [...] (RIBEIRO, 2002).

III) A fragmentação no romance

No início da modernidade observamos uma substituição da ordem aristocrática pela nova ordem democrática, industrial, materialista e urbana. Passamos para um regime econômico capitalista selvagem, no qual o capital acumula-se nas mãos de uma pequena minoria, gerando uma imensa desigualdade social e uma enorme inversão de valores, pois o incentivo ao materialismo consumista faz com que o homem somente tenha valor mediante seu patrimônio e seu poder aquisitivo. Essa mutação deixou não só os poetas, mas toda a sociedade em desequilíbrio, pois como afirma Walter Benjamin em “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, houve a destruição da aura da obra de arte mediante á percepção humana, devido aos movimentos de massificação e materialização.

Com a Revolução Industrial a produção passou a ser em série, tornando o indivíduo uma peça dessa grande engrenagem, isto é, o homem passa a ser um objeto, que perde a sua individualidade, tornando-se um ser fragmentado. O poeta começa a ter que aprender a conviver com esta sociedade e ao fazer isso muitas vezes sente-se um estranho, um estrangeiro; afinal perde seus referenciais preestabelecidos, suas origens.

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O conto de Edgar Allan Poe “O homem da multidão”, escrito em 1840, sob a teoria de Engels após a Revolução Industrial, responsável pela atomização da sociedade moderna; “tematiza o problema da legibilidade da cidade moderna, através da complexa vida urbana em sua constante mobilidade, cenarizada nos labirintos das ruas e da multidão” (GOMES, 1994, p.71).

Ruffato, também sentindo esse mal-estar social, expressa essa sensação de deslocamento, desenraizamento das personagens, criando seres desarraigados, fragmentados, perdidos no tempo e no espaço. Afinal, Ruffato demonstra ter consciência de que “a cidade moderna é um mundo inenarravelmente concentrado, impossível de ser reconstruído, ou representado, senão por fragmentos, colagens e refração” (GOMES, 1994, p. 142). Essa total fragmentação nos conduz ao conceito de andarilho, de flâneur, como vê Gomes: “é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem, [...] é a distinção de perambular com inteligência.” (1994, p. 111). A figura do flâneur foi empregada por Charles Baudelaire em sua obra, em que personagens sem paradeiro, sem origem sentem-se verdadeiras estrangeiras onde quer que estejam. Em eles eram muitos cavalos encontramos:

Seu Aprígio é que talvez pudesse alembrar dia e mês que o índio surgiu aqui primeira vez, mas morreu ontem [...] De tal maneira que o que toda gente sabe é que um final de tarde o bugre apareceu no boteco, encostou a pança careca no balcão de fórmica vermelha ensebado, pediu um cachaça na língua enrolada lá dele [...] (RUFFATO, 2001, p. 31).

Notamos claramente nesse trecho do romance a sensação de desenraizamento, de fragmentação e de inadequação na personagem do índio citado. Ainda é válido ressaltar que esses personagens estrangeiros, essa inadequação do ser humano em relação ao seu habitat fica também muito evidente no V poema de As máscaras singulares, do próprio Luiz Ruffato,

Onde quer que estejas, em teu paísou em outro, és estrangeiro: ninguém tua língua compreende. Só, o desertode estranhas veredas percorres.Conservas, no entanto, dos primeiros anoso albor, quando tua cidade, madrasta e mãe,teus sonhos na noite fresca velava.A grande mão que afagou-te esmaga o peito agora.Ah! Somos apenas o que somos. Apenas (2002, p. 43).

Esse sentimento de angústia e de inadequação ao meio em que vive, de sensação de ser um verdadeiro estrangeiro em seu próprio habitat, nos remete ao período maneirista, que, “em essência é um movimento espiritual exclusivo do ponto de vista intelectual e social” (HAUSER, 1976, p. 373), marcado pelos sentimentos de não conciliação, pela dúvida perene e por uma visão de que o mundo não tem solução. O artista maneirista segundo Hauser:

Sentindo-se alienados neste mundo, os homens não se resignam a permanecer assim; queriam exercer um efeito alienante e assustador sobre os outros. Por isso, o artista não só escolhe temas estranhos e sobressaltantes, mas também tenta reproduzir as coisas mais comuns de um mundo alarmante. O propósito não é apenas surpreender e inquietar, mas também afirmar que é impossível alguém sentir-se em casa entre as coisas deste mundo ou fazer as pazes com elas (HAUSER, 1976, p. 90).

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Fazendo uma outra leitura do termo estrangeiro, veremos que também encontramos no romance eles eram muitos cavalos personagens estrangeiras no sentido de migrantes que chegam a São Paulo. Essas personagens nos fazem lembrar a trajetória vivida pelo próprio autor do romance, que também é um migrante, um estrangeiro, na cidade de São Paulo, notem: “OSVALDÃO − Voltou definitivamente para Belo Horizonte, levando a mulher e dois filhos. Não agüentou a barra de São Paulo, vendeu tudo [...]” (RUFFATO, 2001, p. 136).

Observamos que as personagens do livro não podem ser classificadas segundo a classificação tradicional da literatura, pois são apenas fragmentos e estilhaços delas mesmas. Essas personagens são como um flâneur, que não possuem nenhuma trajetória, nenhuma evolução, nem sequer apresentam características físicas e psicológicas desenvolvidas, provocando no leitor a sensação de superficialidade, levando-o a uma enorme curiosidade, uma vez que não se sabe com clareza as origens e os destinos delas.

O romance apresenta uma fragmentação presente nos capítulos, a priori independentes, ou partes soltas, ou ainda, flashes de vidas, que nos revelam o processo de dilaceração, ruptura e fragmentação, pelo qual nós, pertencentes à sociedade pós-moderna, estamos passando. Cada uma dessas partes ou episódios gira em torno de uma personagem comum, que vive em uma cidade cosmopolita, sujeita a toda e qualquer transformação social, que se sente meio perdida, cheia de problemas pessoais causados pelo stress da vida urbana e, as quais, muitas vezes, não encontra um meio legalizado para resolvê-los. Assim, temos a representação de uma sociedade que um dia foi um todo, que se partiu e agora passa por um momento de re-partição.

A leitura desses episódios não segue, necessariamente, uma ordem seqüencial. Podemos lê-los de forma aleatória sem o comprometimento da compreensão. No entanto, Ruffato utiliza uma seqüência numérica, que ajuda a dar unidade ao romance. Porém, é importante destacar que esta fragmentação da obra, no que se refere ao discurso, às personagens e ao narrador, está presa a um todo que é a própria obra.

A forma como o autor intercala capítulos narrativos com simpatias, fragmentos de jornal, orações, listas de livros, descrição minuciosa de ambientes e outros ajuda a re-partir ainda mais a obra, acentuando o aspecto de descontinuidade do livro. É válido ressaltar que a fragmentação é a mola que impulsiona a narrativa. Para melhor exemplificar essa descontinuidade, citamos:

leia o salmo 38durante três dias seguidos

três vezes ao dia faça dois pedidos difíceis

e um impossívelanuncie no terceiro diaobserve o que acontecerá no quarto dia (RUFFATO, 2001: p. 73).

IV) O narrador

Observamos que no romance eles eram muitos cavalos o narrador-repórter é uma câmera cinematográfica que se movimenta durante toda narrativa, captando os flashes do cotidiano na cidade de São Paulo, esse narrador, tal como as personagens, é também um flâneur. Ao lermos o romance, temos a nítida sensação de estarmos andando sem destino pelas ruas de São Paulo, notem a presença desta câmera no fragmento:

o farol abre e fechecarros e carros

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mendigos vendedores meninos meninascarros e carrosassaltantes ladrões prostitutas traficantescarros e carrosmais um terça-feirafim de semana longeas luzes dos postes dos carros dos painéis eletrônicosdos ônibus... (RUFFATO, 2001, p. 96).

Somos guiados pelo narrador, sobre o qual se reflete a visão do autor, escritor-andarilho com seu olhar perspicaz de um experiente jornalista, que capta com muita habilidade fragmentos das vidas das pessoas que habitam essa metrópole. Ruffato, na entrevista concedida ao site “bonde”, afirma: “minha visão de mundo não é de jornalista, mas de cidadão”, no entanto, percebemos que embora ele não queira misturar texto jornalístico com romance, acaba transparecendo um olhar mais objetivo sobre os fatos, típico de um bom jornalista.

Outro aspecto presente nessa obra é a alternância do foco narrativo, sobrepondo vozes múltiplas que abrangem a narração em primeira pessoa, em terceira pessoa, diálogos, linguagem culta, popular e moderna. Para melhor ilustrarmos essa sobreposição de vozes, citamos alguns fragmentos: “Nós poderíamos ter sido grandes amigos. / Eu o convidaria para um jantar sábado à noite, aqui em nosso apartamento...” (RUFFATO, 2001, p. 43). E “O velho mora de-favor no apartamento 205 junto com a mais-velha, desquitada, a neta adolescente, o caçula, agregado, rondando pelos trinta anos, pouco mais ou menos” (RUFFATO, 2001, p. 68).

Ruffato, ao alternar essas vozes, demonstra conhecimento das diversas formas de narrativa de nosso tempo e, procura ainda passar para o leitor diferentes visões de mundo, não se prendendo a uma verdade única e absoluta narrada por apenas um personagem, dando voz a outros personagens, conseqüentemente apresentando outras visões. É importante evidenciar que apesar de existirem diversas vozes, a unidade do romance é garantida pela presença do narrador. Gilvan Ribeiro ainda comenta:

O intenso dialogismo interdiscursivo entre os diversos microtextos da grande narrativa que os articula é construído com uma enorme habilidade, revelada no fato de se estabelecer, desta forma, um fio de continuidade que permite que a leitura flua, sem que o leitor se perca no labirinto em que se move (RIBEIRO, 2002).

V) O espaço e o tempo no romance

A cidade de São Paulo é a grande personagem dessa história. Ela é o grande palco onde todo conflito social e pessoal se desenrola, representando o mundo com todos os problemas e dificuldades, com os quais nos deparamos. Sendo assim, há uma transferência do espaço local, restrito e delimitado, que passa a significar o universal, ou seja, o autor sem se afastar de sua realidade, que é a cidade de São Paulo, consegue revelar um problema que pode ser visto em qualquer grande centro mundial. Pois a cidade torna-se co-autora do texto, “nesse trabalho, cruzam-se assim, o coletivo e o individual, até não sabermos se a imagem é da cidade ou do eu à procura de um espaço/tempo perdido” (GOMES, 1994, p.66).

Em alguns poucos capítulos, temos uma sinalização de que os fatos ocorrem na capital paulista, “São Paulo, 9 de maio de 2000. / Terça-feira” (RUFFATO, 2001, p. 11). E “São Paulo, 8 de março de 1978 / Pastor Neemias Santoro da Silva / Ministro Oficiante” (RUFFATO, 2001, p. 115).

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No primeiro exemplo, temos o capítulo inicial do livro, intitulado “Cabeçalho”, no segundo, transcrevemos um fragmento do capítulo “54. Diploma”. Os dois fragmentos citados acima, servem para exemplificar juntamente, o espaço e o tempo. Notamos que nas poucas vezes que esses aparecem no romance, são para situar os fatos narrados.

Nessa sociedade em que tudo muda tão rapidamente e, na qual não se pode parar para refletir sobre a vida, o que importa é reportar o fato no momento em que ele ocorre em sua forma original, procurando ser o mais preciso e imparcial possível. Então, a unidade ou seqüência temporal se perde, cedendo lugar ao acontecimento vivo, inacabado, que está por se concluir. Com isso, o texto se fragmenta em segmentos ou seqüências temporais curtas, verdadeiros flashes que revelam as taras e obsessões das personagens.

Considerações finais:

Mediante as considerações tecidas podemos perceber que Luiz Ruffato em seu romance eles eram muitos cavalos, consegue retratar e diagnosticar de maneira muito verossímil a realidade pós-moderna, com suas angústias e crises de identidade, que marcam a vida do ser humano desde a Idade Média, perdurando até os dias atuais. A chamada crise da Renascença, na qual o homem encontrava-se angustiado por não saber se era possível conciliar o espiritual com o físico, a salvação com a felicidade terrena. É, como vimos, uma espécie de retorno ao período maneirista. Esse período, que parece estar sendo retomado em nossos dias, ressurge devido ao fato de não encontramos respostas a nossas questões; outro motivo para essa recorrência do maneirismo, seria, segundo Hauser:

O maneirismo, entretanto, embora não conhecesse recorrência ou continuação direta após o término no século XVII, sobreviveu como uma subcorrente na história da arte ocidental, às vezes mais visível, às vezes menos. Tendências maneiristas manifestam-se repetidamente desde o barroco e o rococó e, em particular, desde o fim do classicismo internacional, estando mais patentes em épocas de revolução estilística associada a crises espirituais agudas como a da transição do Classicismo para o Romantismo ou do Naturalismo para o pós-Impressionismo (HAUSER, 1976, p. 432).

Esse retorno a essa estética do passado se dá também em função do sistema capitalista selvagem vigente e das conseqüências acarretadas por ele, tais como a globalização e a efemeridade do tempo, que provocam no homem uma perda de referencial individual, fazendo com que perca também sua identidade.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica. In: ______. Magia e técnica, arte e política – Obras escolhidas – v.1. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1985. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1999.CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.CAMPOS, Augusto. Lixo. In: Poesia concreta: Literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1981.GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

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RESENHA

PESSOA, Simone. Dissertação não é bicho-papão: desmistificando monografias, teses e escritos acadêmicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, 157p.

Ângela de Alencar Carvalho95

Mestranda em Lingüística Aplicada da UECE

“Estamos aqui, nesta terra de meu Deus, para criar, fazer coisas interessantes, produzir idéias que possam ser úteis a alguém (além da gente), enfim, deixar o nosso legado para a humanidade.” (p.17) É assim que a escritora e executiva cearense Simone Pessoa chama atenção do leitor e destrinça, numa linguagem acessível, bem-humorada e envolvente, situações e comportamentos que circunscrevem e influenciam o dia-a-dia de quem se encontra às voltas com a elaboração de trabalhos acadêmicos de pós-graduação, em especial a dissertação de mestrado.

Segundo Pessoa, assistir às angustias e experiências traumáticas de colegas de pós-graduação ao lidarem com suas pesquisas, motivou-a a escrever este livro. Seu objetivo é mostrar ao estudante que escrever uma dissertação, embora seja uma tarefa absorvente e árdua, pode ser uma atividade instigante e enriquecedora na medida em que promove autoconhecimento e senso de disciplina. A autora assevera que a realização da pesquisa “Ao invés de aprisionar e fazer sofrer, é uma fonte de libertação e crescimento.” (p.12) Este é o mote que perpassa todo o livro.

Embora trate de um assunto técnico, posto que os textos acadêmicos seguem normas pré-estabelecidas pelas instituições e pelas características próprias de cada gênero, a autora apresenta uma leitura prazerosa em páginas repletas de informações pertinentes à realização da pesquisa. Estas estão organizadas em 21 capítulos, ao longo dos quais percebem-se dois enfoques distintos, mas complementares: o emocional e o técnico. Desta forma, Dissertação não é bicho-papão pretende ser menos um livro essencialmente técnico sobre metodologia de pesquisa e mais um livro de sugestões de como escrever um trabalho científico sem traumas ou desgastes emocionais.

Os 4 primeiros capítulos tratam dos momentos que antecedem o início da escritura do texto. A autora inicia discutindo a decisão pessoal e, por vezes, familiar de cursar uma pós-graduação. Nesse sentido, Pessoa enfatiza a importância do apoio familiar nas tarefas domésticas, nos compromissos sociais e na manutenção de uma atmosfera tranqüila, propícia às leituras e à composição do texto. Além disso, o aluno é advertido sobre a prioridade da dissertação neste período para não ser surpreendido pelos prazos que terá de cumprir, devendo, pois, ter “cuidado para não relaxar demais e dormir no ponto. Apesar da fartura de tempo, a ordem continua sendo: disciplina e muita dedicação.” (p.32)

Nos capítulos 5 e 6, Pessoa trata, respectivamente, dos pontos basilares: o tema e o problema. Para simplificar, a autora estabelece uma analogia entre o ato de fotografar e o ato de problematizar: “podemos supor que o tema corresponderia à paisagem escolhida para a foto, que o zoom da máquina fotográfica enquadrou, já o problema ou a pergunta de partida equivalerá exatamente ao ponto onde foi centralizado o foco.” (p.46) Percebe-se nesse trecho, a desmistificação proposta no título da obra.

95 Ângela Carvalho, professora de Língua Inglesa no IBEU-CE. Especialista em Metodologia de Ensino de Línguas Estrangeiras pela Universidade Estadual do Ceará e mestranda em Lingüística Aplicada pela mesma instituição com o apoio da FUNCAP. [email protected]

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Uma questão vital ao bom desempenho do aluno encontra-se no capítulo 7: o relacionamento orientando-orientador. Conforme a autora, esta é a “segunda eleição fundamental para o sucesso da trajetória dissertativa.” (p.53) Esta relação deve ser “harmônica”, permeada de “sentimento de cumplicidade e bem-estar” e ter como objetivo primordial a realização da pesquisa. É sabido que qualquer desentendimento poderá resultar, em último caso, no abandono do curso pelo aluno.

Os capítulos 8, 9, 10 e 11 tratam de aspectos técnicos. Neles, o leitor aprende sobre o “índice-tentativa”, a seleção bibliográfica, a escolha dos textos que irão compor a dissertação. O “índice-tentativa” constitui um esboço do sumário. Ao tematizar e problematizar sua pesquisa, o aluno poderá montar um sumário preliminar a partir do qual definirá suas leituras e o perfil do trabalho. Vale ressaltar, ainda, a lista de 32 sítios de pesquisa na Internet e a lista de 48 expressões de ligação que auxiliam o aluno a evitar repetições no corpo do texto.

Outro ponto positivo do livro é a discussão referente ao exame de qualificação, nos capítulos 14, 15 e 16. Este exame é notadamente a fase mais importante do curso na medida em que aponta caminhos e soluções para os problemas existentes na pesquisa. A autora sugere que o aluno produza “um jogo de slides (...) que sintetize o essencial do trabalho”, onde “as idéias-chave” estejam “agrupadas numa mesma seqüência” e “distribuídas em tópicos”. Estes conselhos são reafirmados nos capítulos 18 e 19, quando a autora sugere caminhos para a preparação da defesa, dentre outros assuntos.

O universo de conselhos elencados por Pessoa não parte exclusivamente de sua experiência como pós-graduanda de cursos de especialização e mestrado. A autora dedica todo capítulo 21 aos comentários da sua banca de mestrado96. Estes enriquecem sobremaneira a obra por representarem a vivência de quem avalia e orienta monografias, dissertações e teses. Todas opinam acerca da “motivação”, do tempo, da “escolha do tema”, da relação orientador-orientando, da “estrutura da dissertação”, da bibliografia, da “escrita do texto”, do relacionamento com a banca, dentre outros aspectos, por meio de um discurso direto em uma formatação bastante didática.

É nesse capítulo que o leitor aprende sobre o “mestre-interno”. Segundo a examinadora Vieira97, “Ser mestre é algo muito além, que exige muito mais, e que também traz muitíssimo mais resultados gratificantes”, como “descobrir que há um potencial pessoal bruto a ser desvelado, minerado, educado e lapidado, para daí poder ser posto à disposição de si e do mundo.” (p. 140) Com efeito, a descoberta do “mestre- interno” supera a gana pelo sucesso e no final do processo, o que restará é o fruto de uma busca sincera pela qualidade na aquisição de um conhecimento sólido que beneficiará o aluno e aqueles com os quais dividirá esse conhecimento. Assim, a qualificação para o trabalho após a defesa da pesquisa passa a ser uma ferramenta e não o fim.

Dissertação não é bicho-papão traz, ainda, três elementos que conferem irreverência e criatividade ao conjunto da obra. As citações promovem reflexão e levantam o ânimo do leitor. As ilustrações descrevem o mote de cada capítulo de forma bem-humorada e inteligente. Por fim, as crônicas e poemas da autora ao final dos capítulos são momentos nos quais ela narra episódios de sua vivência acadêmica, aproximando-se do leitor.

Ante o exposto, considero o livro relevante para o que se propõe, embora a autora peque por não incluir na obra as suas referências bibliográficas. Recomendo o livro a todos os alunos de graduação e pós-graduação, pelo amparo técnico e pelo teor humanístico que caracteriza a obra, cuja presença deveria ser obrigatória nas disciplinas de metodologia de pesquisa.

96 Eliane Vieira é doutora em Engenharia Mecânica pela Unicamp e pós-doutora em criatividade e processos de autodesenvolvimento pelo Saybrook Institute na Califórnia. Vera Ponte é doutora em Contabilidade e Controladoria pela USP e Ana Augusta de Freitas é mestra e doutora em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Santa Catarina (Cf. informações na quarta capa do livro).97 Dra. Eliane Vieira (Cf. nota anterior).

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RESENHA

CARDOSO, Lúcio. Maleita. Edições Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1953, 252 páginas.

Rosiane Vieira de Rezende

A narrativa inicia-se em agosto de 1893, com a viagem de uma tropa destinada à Pirapora, uma pequena região de Minas Gerais, situada às margens do Rio São Francisco. É interessante observar a data na qual se inicia a trama porque ela possui uma estreita relação com o período pós-abolição. Muitos dos personagens são frutos do período escravocrata e ainda trazem no corpo e no espírito marcas indeléveis deste momento. O protagonista Joaquim é o homem que coordena o grupo, um sujeito contratado por uma empresa da cidade de Curvelo chamada de Companhia Cedro e Cachoeira de Fiação e Tecidos. Tal empresa o contrata para organizar e incentivar o comércio na pequena região. Logo na primeira página do romance a maleita já marca sua presença fazendo de um dos tropeiros sua vítima. É de maneira incisiva que a doença irá permear toda a narrativa, agindo em segundo plano, mas arrebatando os personagens do primeiro, seja com seus sintomas graves e insolúveis, seja diretamente com a morte.

A região a ser desbravada pelo aventureiro e sua tropa mostra-se tão promissora quanto às Índias aos exploradores portugueses, estrangeiros chegando em terras novas. Espalham-se rapidamente notícias promissoras do povoado e ele se torna alvo de expansão e exploração, ambas coordenadas ou indiretamente ligadas às ações do personagem principal, Joaquim.

O líder dos tropeiros mantém-se otimista em relação ao lugarejo, mesmo ao deparar-se com o local inóspito e selvagem, o qual lhe daria imenso trabalho para engrenar nas malhas do progresso. É importante lembrar que a perseverança e o ânimo são os traços mais marcados de sua personalidade durante o decorrer da narrativa.

Apesar de muitos obstáculos o aventureiro inicia sua empresa com sucesso e logo são evidentes as marcas de sua intervenção no povoado. Dentre as maiores dificuldades enfrentadas por ele estão os constantes desentendimentos entre ele e os habitantes nativos da região. Todos os nativos manifestam-se contrários às intervenções de Joaquim no lugarejo, mas dentre eles destacam-se como mais resistentes João Randulfo e Manuel Capitão. Tais problemas explicam a contratação de imigrantes para a mão-de-obra necessária à execução dos planos do líder dos tropeiros. Os nativos mostram-se hostis aos novos moradores e manifestam seu descontentamento em relação às intervenções do feitor98 na região. Apresentam-se, pois, resistentes às novas leis e aos novos costumes apregoados por Joaquim.

A resistência dos nativos se faz quase que exclusivamente pela defesa e exibição de sua cultura, a qual é altamente ofensiva ao homem “civilizado”. Os habitantes da região não se sujeitam, portanto, às imposições de Joaquim e exibem a ele sua pele desnuda, seus hábitos selvagens, suas leis “bárbaras”, seu despudor excessivo, suas crenças e tradições diferenciadas, conforme se depreende das palavras do narrador Joaquim. Uma série de batalhas são travadas entre eles e o feitor, das quais muitas vitórias são ganhas pelo aventureiro. Entretanto, os moradores de Pirapora saem vitoriosos porque acabam expulsando, sob pena de morte, àquele que tão habilmente invadira seu espaço.

É relevante enfatizar que apesar das benfeitorias que o protagonista faz na região, ele é considerado pelos nativos como um intruso, um invasor que trouxe consigo, através da

98 Era assim que se referiam ao líder da tropa que invadira seu território. O próprio Joaquim reconhece tal alcunha: “o feitor era eu. Chamava-me assim por desprezo, criticando a minha intervenção nos assuntos do lugar”. (CARDOSO, p. 129, 1953)

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crescente imigração, a peste e a miséria. É ainda importante observar que o feitor é o narrador da história e isto lhe proporciona um campo de visão amplo, mas extremamente pessoal. Destarte, suas atitudes, sejam elas boas ou más, são por ele sempre justificadas e tratadas de forma complacente. Tem-se, portanto, ao longo da narrativa a participação de um homem que executa com precisão seus planos de progresso, sob pena de submeter os nativos aos seus costumes, às suas ordens e leis, ainda que para isto tenha que subverter os códigos da civilização e utilizar as leis “selvagens” do sertão. Há várias referências a estas leis no interior do texto e, por isso, a demarcação da selvageria se faz presente na própria maneira de o narrador-personagem expor a narrativa.

Em termos gerais, é este o desenvolvimento da trama: ela inicia-se com a viagem da tropa, seguida de sua chegada à Pirapora. Logo que o feitor e seus homens se estabelecem no local, dá-se inicio ao projeto de melhoria do lugarejo. Entretanto, após anos de trabalho, quando Joaquim imaginava estar reconhecida e valorizada sua participação no povoado, é ameaçado de morte por um líder dos nativos, tendo, por isso, que fugir da região. Ele decide por bem fugir para não ser morto naquele lugar que já considerava como parte de si mesmo.

É interessante retomar a cena final da narrativa na qual está estampada sobre um cavalo a figura do feitor, sozinho, abandonado por seus companheiros, e levando consigo o gosto amargo da maleita nos lábios: “E na manhã que avançava, fui trotando lentamente, com o gosto amargo de maleita que o rio me deixara na boca”. (CARDOSO, 1953, p.252). Este é o momento crucial do romance porque se mostra decisivo na “inversão do processo colonial” que o autor parece tecer ao longo da narrativa. Destarte, pode-se ler Maleita como uma escrita que tece este processo de inversão e concomitantemente destece o tradicional processo de colonização, no qual o explorador se estabelece no local, usufrui de seus benefícios, assumindo o controle do lugar e partindo, quando realmente parte, no momento que melhor lhe aprouver. A trajetória de Joaquim contrapõe-se a este padrão e isto evidencia, pelo próprio fracasso do colonizador/feitor/estrangeiro, o caráter questionador do romance.

Ao longo da narrativa pode-se perceber que o escritor não reescreve as origens da nação tentando afirmá-las, mas as questiona, mostrando-se favorável aos nativos bravios e donos de si mesmos, e às batalhas que acirram a disputa pela terra. Este questionamento se dá no interior da trama, perpassando a narrativa como tema, como direcionamento, através da apresentação dos personagens, que muitas vezes extrapola o olhar do narrador-personagem para concentrar-se em uma linha confusa na qual se posiciona o autor do texto.

É surpreendente notar estes traços ao longo da leitura, especialmente porque o feitor é, enquanto narrador, um personagem que parece digladiar-se com o autor para o reconhecimento de si mesmo. Desta forma, ele se defende e trabalha no desenvolvimento do seu discurso tentando cobrir suas ações mais perversas, delegando a elas um significado nobre. Apesar desta estratégia é possível interrogar tais ações e delas suspeitar: não é a valorização do povoado que Joaquim deseja, mas a sua realização particular, alimentada pelos grandes desafios surgidos ao longo de sua empresa. No entanto, o que vigora verdadeiramente é a vitória do povo nativo de Pirapora, ainda que ela só tenha ocorrido de fato no final da trama.

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Machado de Assis e a nação em cena:no seu tempo, no nosso tempo

Profa. Dra Jussara Bittencourt de SáUNISUL- SC

Resumo: A proposta deste artigo é apresentar uma análise das concepções de nação e de nacionalidade em peças do teatro brasileiro no século XIX, em especial Quase Ministro, de Machado de Assis. Procura-se, em suma, evidenciar que o teatro machadiano cumpriu papel essencial para a representação/ constituição da Nação, colocando em cena diferentes concepções sobre a própria nacionalidade, através das palavras, ambientações e representações dos tipos sociais que compunham a sociedade brasileira da época e que podem estar sendo reinscritas no atual contexto.

Palavras-chave: Machado de Assis, teatro, nação.

Abstract:The proposal of this article is to analyze the conceptions of nation and nationality in Brazilian plays of the 19th century, especially the one called Quase Ministro (Almost Minister) by Machado de Assis. In short, evidence is sought to demonstrate that Machado's theater has fulfilled an essential role in the representation/constitution of the Nation, placing on the stage different conceptions of nationality, through the creation of favorable surroundings, speeches, and representations of the social types that formed the Brazilian society of that time.

Keywords: Machado de Assis, theater, nation.

Machado de Assis e a nação em cena:no seu tempo, no nosso tempo

A proposta desta leitura é pontuar algumas reflexões acerca da importância da palavra na construção das concepções de nação que adentram a cena do teatro no Brasil no século XIX. Para tanto, procuro focalizar as falas das personagens ditas “nacionais”, e também as consideradas “estrangeiras”, na tentativa de evidenciar como autores teatrais, em especial, Machado de Assis, na peça Quase Ministro de 1863, através das personagens colocadas em cena, buscam representar a brasilidade através do mapeamento das diferentes classes sociais locais em sua interação com diferentes nacionalidades estrangeiras.

Ao direcionar este estudo para a literatura teatral brasileira, que possui oficialmente sua história inaugurada com as primeiras manifestações cênicas elaboradas pelos jesuítas, destaco, ainda, que, a partir do século XIX, com a afirmação gradativa do sentimento de nacionalidade, o teatro se consolida como forma de representação da identidade brasileira e estabelece com determinados segmentos sociais uma espécie de diálogo “civilizador”. O que significa que os escritores da época apresentavam/possuíam, como característica, a promoção de um ideário do que se desejava fosse o brasileiro, que registrasse e apresentasse os caminhos para a edificação do perfil do brasileiro.

A palavra no teatro, dizendo de outro modo, e no sentido do que Antonio Candido afirma sobre a literatura brasileira em geral, mostrou-se absolutamente “empenhada”, imaginando os autores, ao colocarem o Brasil em cena, muitas vezes em confronto com o “Outro”, ou nele se retratando, estarem contribuindo efetivamente para a construção desse

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mesmo Brasil.99 Creio que o pensamento de Ítalo Calvino também contribui para orientar a reflexão que aqui se propõe. Calvino afirma que “não se pode observar uma onda sem levar em conta os aspectos complexos que ocorrem para formá-la e aqueles também complexos a que dá ensejo”.100 Neste sentido, o autor enfatiza a importância de se procurar compreender não só os elementos formadores, mas também os seus desdobramentos, tendo em vista as complexidades e peculiaridades inerentes ao processo de criação.

É por essa linha que de reflexões que percorro a idéia de nação representada pelas palavras das personagens na peça estudada, e como podem corresponder ao que pensa o autor ao representar conteúdo social, já que, conforme Bakhtin, a enunciação é o produto da interação de indivíduos socialmente organizados, pois sua natureza é social. Nesse caso, interessa pensar também se as palavras (nos diálogos das peças teatrais) podem ser associadas à concepção de Bakhtin, de que a enunciação não existe fora de um contexto sócio-ideológico,101 e, por isso, neste caso em particular, pergunta-se se o autor teatral anunciaria um “horizonte social” bem definido, pensado e dirigido a um auditório social também definido, de onde, pelo diálogo, se construiria um imaginário de uma determinada nação.

Conforme Bakhtin, toda enunciação completa é constituída de significação e de sentido. Esses dois elementos integram-se em um todo e sua compreensão só é possível na interação.102 Por isso procura-se, nesta leitura, observar como Machado de Assis engendra os diálogos, se há de fato um caráter dialógico nessas encenações, e, a partir daí, analisar como representam a sociedade através do texto, pois as falas de um personagem podem revelar diferentes dimensões do discurso hegemônico.

Neste sentido, cabe destacar o contexto histórico do século XIX, marcado pela Independência (1822), Abolição da Escravidão (1888) e pela Proclamação da República (1889). Tais acontecimentos tornam-se emblemáticos para se refletir sobre a enunciação da nacionalidade que se delineia na peça teatral, Quase Ministro.

Em Instinto de nacionalidade, Machado de Assis, referindo-se ao teatro brasileiro, justifica o pouco espaço que ele ocupa em seu texto, pois acredita não haver, naquela época, teatro brasileiro. Segundo Machado de Assis, quase não se escrevia e/ou representavam peças brasileiras. Em decorrência, na sua perspectiva, a discussão sobre o teatro brasileiro poderia “reduzir-se a uma linha de reticências”.103 Entretanto, acredito que Machado de Assis sinaliza, com essa referência, para a complexidade de interpretações e a continuidade que pode advir das reticências, tomando-se-as como um elemento passível de desdobramentos a posteriori. Em outras palavras, algo que não está acabado, mas em construção. Embora reconhecendo que o pouco relevo dado por Machado ao teatro em seu conhecido ensaio crítico possa ter contribuído para a relativa escassez de estudos sobre o teatro do século XIX na crítica local, foi tentando desvendar essa linha de reticências que elaborei a leitura das peças teatrais selecionadas.

Em seu texto “Idéias sobre o teatro”, publicado na revista O Espelho, de 25 de setembro de 1859, Machado de Assis comenta que “A arte dramática não é ainda entre nós um culto; as vocações definem-se e educam-se como resultado acidental. As perspectivas do belo não são ainda o ímã da cena”.104 O autor declara que a arte teatral não recebia o valor que

99 CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Vol. I (1750-1836). Belo Horizonte: Itatiaia, 1987, p. 27.100 CALVINO, Ítalo. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 8.101 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999, p 36.102 Ibid., p 36-37.103 No entanto, mesmo tendo dado pouco espaço à crítica teatral, Machado exclui desse contexto, dentre outros, dramas de Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar, e as comédias de Martins Pena, que ele considerava com “talento sincero e original”. ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade e outros ensaios. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999, p. 31-32.104 ASSIS, Machado. Idéias sobre Teatro. In: Obras completas de Machado de Assis, op. cit., p. 204.

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merecia, uma vez que não lhe eram concedidos incentivos, e isso era evidenciado pelas limitações da produção teatral.

Machado de Assis ainda deixa clara a preocupação sobre a limitação e a redução da arte teatral ao “foro de uma Secretaria de Estado”, ou seja, às limitações do Conservatório Dramático,105 que para ele atuava como o corpo de polícia, “censura e pena”.106

De acordo com João Roberto Faria, Machado condena as peças românticas que se afastam da realidade e defende um teatro “com alcance moralizador, voltado para a reprodução da vida social em cena”.107

Neste sentido, a produção teatral de Machado de Assis marca por mostrar, além de outros, um mapa da estrutura simbólica da política brasileira. A peça Quase Ministro, publicada em 1863, é uma comédia realista, em ato único, foi escrita especialmente para ser representada em um sarau literário e artístico em 22 de novembro de 1862, na casa de alguns amigos de Machado de Assis, que residiam na rua da Quitanda.108 A ação se passa no Rio de Janeiro e é ambientada na casa da personagem Luciano Martins.

As personagens que compõem a peça são: Luciano Martins, Deputado; Dr. Silveira; José Pacheco; Carlos Bastos; Mateus; Luiz Pereira; Muller; Agapito.  O enredo é inaugurado com as palavras de Silveira a Martins, comentando sua atração por cavalos. Martins avisa ao amigo que está para ser indicado como Ministro.

Assim, em um ambiente burguês, na casa de Martins, dentro de uma trama linear, Machado sustenta a ação pela palavra. Os diálogos vão apresentando as personagens Luciano Martins, deputado; Dr. Silveira, primo de Martins; José Pacheco, um escritor de artigos; Carlos Bastos, poeta; Mateus, um inventor; Luiz Pereira, alguém cujos filhos têm Ministros como padrinhos; Müller, estrangeiro; Agapito, empresário das artes, amigo de Müller.

Ainda que a peça possua como fulcro Martins, que está cotado para se tornar ministro, o foco maior é dirigido aos interesseiros – um cronista político, um inventor, um poeta, e um empresário de teatro, estrangeiro – que o assediam, com a intenção de conseguir cargos e favores.

Na seqüência, outras personagens vão sendo acrescidas à trama. Elas comungam do mesmo objetivo de José Pacheco: obter algum proveito através da bajulação. Um exemplo é Mateus, que se diz inventor, e oferece uma peça de artilharia ao quase ministro.

Na cena VII, Mateus apresenta seu invento:

– A minha idéia é simples como água. Inventei uma peça de artilharia... É um invento que põe na mão do país que o possuir a soberania do mundo. Eu pretendo denominá-la: O raio de Júpiter, para honrar com um nome majestoso a majestade do meu invento. Devo acrescentar que alguns ingleses, alemães e americanos, que, não sei como, souberam deste invento, já me propuseram ou a venda dele, ou uma carta de naturalização nos respectivos países: mas eu amo a minha pátria e os meus ministros.109

105 Sobre o Conservatório Dramático, Machado afirma que ser uma forma de censura, um aparelho político de intervenção na arte dramática. Tal categoria política existiu, e isto revela que para Machado a criação de um campo estético - como produção de subjetivação nacional - precisava da atuação das forças intelectuais moleculares em aliança com a força intelectual dos aparelhos políticos estatais. O Conservatório não poderia existir como uma máquina patrimonialista ou como uma máquina moral de repressão da narrativa dramática; ela teria que funcionar como uma força de agenciamento qualitativo do trabalho estético. No entanto, entre 1862 e 1864, o Conservatório Dramático, o órgão censor, vai receber a colaboração de Machado. 106 ASSIS, Machado. O Conservatório Dramático. In: Obras completas de Machado de Assis, op. cit.,p. 204.107 FARIA, João Roberto, op. cit., p. 101.108 ASSIS, Machado de. Quase Ministro In: MARINHO, Teresinha et alii. (Org) Clássicos do teatro brasileiro: Machado de Assis. Vol: 6. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982, p. 130.109

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Através da fala desta personagem, ao anunciar possuir o domínio da técnica para construir uma máquina mirabolante, o raio de Júpiter110, Machado evidencia o espírito cientificista que transitava na sociedade da época, ou seja, o mito da técnica que se reitera a partir da possibilidade do novo, do poder. O domínio da técnica e/ou a produção de tal máquina aparece como fetiche (o que é feito, não natural, que exerce fascínio); a anunciada perfeição do raio de Júpiter se vincula ao desejo e à deificação da máquina. Machado, de forma irônica, já a partir do nome, coloca o raio de Júpiter como um instrumento que ao mesmo tempo em que pode assombrar, também pode promover o poder de quem o detém: o poder dos deuses nas mãos dos homens.

A propósito, Frederic Jameson afirma que o fetiche contemplaria um ato simbólico cujo horizonte é o destino da comunidade, trazendo sempre as marcas de sua função de compromisso pela qual oferece uma resolução imaginária para contradições reais recalcadas. O fetiche da máquina tende a incorporar, mais do que nunca, a dimensão estranhada de sociabilidade. A máquina aparece como o ente da dominação, o estranho familiar. Ela possuiria, em si, a promessa da mediação plena da sociabilidade humana.111

Um outro aspecto significativo é apresentado por Helena Tornquist ao considerar que, “A alusão à força a ao poder, contida na designação Raio de Júpiter, provoca efeito contrário, acentuando a desmedida da proposta: a ênfase tem como efeito imediato a diminuição.”112 Daí a ironia desta “nova ciência” que diminui a própria nação e que pode conceder poderes aos mortais.

O que importa, segundo a personagem Mateus, é sua legitimação pelas grandes nações, através da suposta compra ou de naturalização de seu invento. As nações estrangeiras, especialmente as imperialistas – a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos – são utilizadas como referência para dar credibilidade a sua invenção.

Na cena XI, a personagem Agapito solicita do “quase ministro” uma subvenção para contratar o teatro lírico italiano, pois, segundo ele, a música seria uma das artes que caracterizariam o refinamento de um povo, e a italiana seria a mais refinada, como se pode observar no diálogo entre a referida personagem e o estrangeiro, Sr. Müller, intermediado por Silveira:

AGAPITO – Apresento-te o Sr. Müller, cidadão hanoveriano.SILVEIRA (a Müller) – Queira sentar-se.AGAPITO – O Sr. Müller chegou há quatro meses da Europa e deseja contratar o teatro lírico.SILVEIRA – Ah!MÜLLER – Tenho debalde perseguido os ministros, nenhum me tem atendido. Entretanto, o que eu proponho é um verdadeiro negócio da China.AGAPITO (a Müller) – Olhe que não é ao ministro que está falando, é ao primo dele.

? ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit. 145.110 Machado recorre à mitologia em vários momentos da peça como também nas expressões na cena IV, na qual Silveira comenta: “(baixo) - Não é possível, este conhece o Pégaso. Com licença”.Ibid., p. 138.111 JAMESON, Frederic. Pós-Modernidade: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996, p, 64.

112 TORNQUIST, Helena, op. cit. p. 224.

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MÜLLER – Não faz mal. Veja se não é negócio da China. Proponho fazer cantar os melhores artistas da época. Os senhores vão ouvir coisas nunca ouvidas. Verão o que é um teatro lírico.113

A personagem Mateus entra em cena como uma espécie de contraponto:

– Não é má; e os talentos do país? Os que tiveram à custa do seu trabalho produzido inventos altamente maravilhosos? O que tiver posto na mão da pátria a soberania do mundo?114

Agapito, defendendo o propósito de refinar a arte brasileira, interpola:

– (...) Se um país é feliz, é bom que ouça cantar, porque a música confirma comoção da felicidade. Se o país é infeliz, é também bom que ouça cantar, porque a música adoça as dores. Se é dócil, é bom que ouça música, para nunca se lembrar de ser rebelde. Se um país é rebelde, é bom que ouça música, porque a música adormece os furores, e produz a brandura. Em todos os casos, a música é útil. Deve ser até um meio de governo.115

Muitos elementos significativos emergem destas palavras. Primeiramente, o interesse do brasileiro Agapito em promover o empresário alemão e a arte estrangeira. Na seqüência, há um confronto de idéias, que gera uma discussão sobre o elenco de valores da sociedade da época. Também se observa que, especialmente nessa última fala, a música aparece como fantasmagoria de acordo com a definição de Walter Benjamin para o produto cultural que “hesita ainda um pouco antes de se tornar mercadoria pura e simples”. 116 Agapito, ao mesmo tempo em que concede à música um poder mágico, anestésico, que transita à sombra e é capaz de modificar ou instaurar diferentes situações, lhe confere o aspecto utilitarista de mercadoria, ou seja, a utilização política para essa arte. Para a personagem, portanto, o poder e a utilidade estão contidos na música italiana, na arte estrangeira que precisa ser utilizada como meio civilizador.

Em Quase Ministro, além da personagem Müller, as nações estrangeiras são trazidas à cena em vários momentos. Machado ironiza a parcela da sociedade brasileira que exalta o estrangeiro. Tal fato não ocorre apenas nas falas que glorificam a cultura do estrangeiro, a sua arte, mas também pela credibilidade e superioridade atribuídas às nações imperialistas, tidas como modelares pelos personagens brasileiros e pelo estrangeiro.

Na cena II, por exemplo, Machado anuncia como a cultura brasileira vai concedendo lugar aos políticos. Ao chegar à casa de Martins, José Pacheco117, cronista político que diz assinar seus artigos com o pseudônimo de Armand Carrel, procura mostrar os princípios de sua profissão, comentando com o anfitrião:113 ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit., p. 144114 Ibid., p. 148.115 Ibid., p. 148.116 Segundo Walter Benjamim, “Cada inovação técnica que rivaliza com uma arte antiga assume algum tempo a forma da fantasmagoria”. BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas III . São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 62-63.117 Remeto ao estudo realizado por Helena Tornquist, que afirma que o elogio aos próprios discursos e a utilização do pseudônimo Armand Carrel podem ser vistos como uma ironia do escritor “ao afrancesamento da sociedade brasileira de sua época”, e também por ser Armand Carrel um importante e sério jornalista, mas este nome, no texto, é usado para “nomear um indivíduo de características opostas”. TORNQUIST, Helena, op. cit., p.225.

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– Vossa excelência dá-me licença?... Em política ser lógico é ser profeta. Apliquem-se certos princípios a certos fatos, a conseqüência é sempre a mesma. Mas é mister que haja os fatos e os princípios... É o que lhe digo. Depois dos meus artigos, principalmente o V, não é lícito a ninguém recusar uma pasta, só se absolutamente não quiser servir o país. Mas, nos meus artigos está tudo, é uma espécie de compêndio. Demais porque a situação é nossa; nossa, repito, porque sou do partido de vossa excelência. (...) O que eu pergunto é se pretende governar com energia ou com moderação. Tudo depende do modo. A situação exige um, mas o outro também pode servir...Sim, a energia é isso, a moderação, entretanto... (mudando de tom)... O que nunca me aconteceu foi atacar ninguém; não vejo as pessoas, vejo as idéias. Sou capaz de impugnar hoje um ato de um ministro e ir amanhã almoçar com ele.118

Seu discurso constitui, idealmente, um território de interlocução, onde se confrontam diferentes fontes de informação. Explicitamente, Machado coloca em evidência os textos publicados em jornais. Ao inserir José Pacheco, o cronista de textos prontos com discursos moldáveis, Machado ironiza, também, a consistência do discurso de órgãos da grande imprensa, enquanto interlocutores nas relações da nação. Na fala aparece, não só o interesse, mas também a vontade de negociação. Neste sentido, na perspectiva de Machado, tudo, na esfera política, pode ser adequado, manipulado.

No decorrer da referida cena, Silveira alerta seu primo Martins para os problemas que terá com bajuladores, mesmo sendo ainda um “quase ministro”. Martins comenta que “– tal preço não valeria o trono”.119 A fala de Martins revela, portanto, que a personagem demarca um limite para a aceitação do cargo. Ele demonstra não estar corrompido pela aura do poder que o cargo ostenta. Há, nas palavras desta personagem, a anunciação de ideais que norteariam sua tolerância à aceitação do cargo. Presencia-se, neste fato, a sugestão de Machado que nem tudo, ou melhor, nem todos são corrompíveis, pois ainda restam alguns com bons princípios na sociedade.

Em Quase Ministro, a nação e a nacionalidade se aproximam de um conceito de nação como constitutivo sociológico-político, na medida em que as personagens representam somente segmentos da elite social. Percebe-se, também, que após décadas da Independência, o enredo coloca, em cena, os brasileiros no comando político. No entanto, eles se mostram dissimulados no trato das questões que envolvem o poder no/e do Estado: são indivíduos que agem em busca de seus próprios interesses, não importando quão absurdo possa ser o viés proposto para obtê-los, buscando somente obter proveito do Estado, embora o discurso seja o do interesse público e o do bem comum. Excetuando Martins, o Estado é visto pelos demais, em Quase Ministro, como algo de onde se pode tirar proveito. Tal fato, que emerge do enredo, traz à tona a dissimulação da elite que comanda a nação brasileira. Portanto, Machado, nesta peça, denuncia as fraturas no alicerce da nação em processo de construção da sua identidade.

Neste aspecto, verifica-se que há um confronto entre alguns que valorizam o brasileiro, outros, o estrangeiro. Excetuando as personagens Martins e Silveira, as outras são mostradas como personas de índole duvidosa. Conforme afirma Schwarz, Machado procura ressaltar, em Quase Ministro, personagens que pretendem obter favores, colocando em cena a ação de diferentes tipos de parasitas na sociedade.120

118 ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit., p. 138.119 Ibid., p. 140.120 SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 16.

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Na penúltima cena, quando estão todos reunidos, Martins anuncia que não será mais ministro. Os especuladores vão embora, restando apenas Martins e Silveira. Na cena final, Martins e Silveira, sozinhos, comentam: 

MARTINS – Que me dizes a isto?SILVEIRA – Que hei de dizer! Estavas a surgir... dobraram o joelho: repararam que era uma aurora boreal, voltaram as costas e lá se vão em busca do sol... São especuladores!MARTINS – Deus te livre destes e de outros...SILVEIRA – Ah! livra... livra. Afora os incidentes como o de Botafogo... ainda não me arrependi das minhas loucuras, como tu lhes chamas. Um alazão não leva ao poder, mas também não leva à desilusão.121

Martins parece conformado com o desenrolar dos fatos. A desilusão com as atitudes de seus convivas mostrou-lhe o cerco de interesseiros que envolvem os políticos. Silveira, por sua vez, reafirma sua descrença na política, preferindo o convívio com os cavalos. Ao apresentar tal associação, Machado, através dessas imagens, não só denuncia os problemas nas relações políticas do seu tempo, mas os valores vigentes na sociedade do nosso tempo , o que tornam as palavras na obra de Machado de Assis cada vez mais atuais...

Referências BibliográficasASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade e outros ensaios. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999.(______________). Idéias sobre Teatro. In: Obras completas de Machado de Assis: Críticas literárias/ Críticas Teatrais. São Paulo: Formar, 1989.(______________). O Conservatório Dramático. In: Obras completas de Machado de Assis: Críticas literárias/ Críticas Teatrais. São Paulo: Formar, 1989.(______________) Quase Ministro In: MARINHO, Teresinha et alii. (Org) Clássicos do teatro brasileiro: Machado de Assis. Vol: 6. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1982. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. CALVINO, Ítalo. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Vol. I (1750-1836). Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. FARIA, João Roberto. Idéias teatrais: o século XIX no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2001.JAMESON, Frederic. Pós-Modernidade: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 1997.

121 ASSIS, Machado de. Quase Ministro, op. cit., p. 150.

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