vianna, f. j. de oliveira - instituições políticas brasileiras

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  • Fragmento do quadro Juramento da Constituio pela Princesa Isabel perante o Senado,destacando-se o plenrio (leo sobre tela Victor Meireles de Lima Museu Imperial)

    03842FR.P65 08/02/2001, 14:351

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    INSTITUIESPOLTICAS

    BRASILEIRAS

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    Coleo Biblioteca Bsica Brasileira

    INSTITUIESPOLTICAS

    BRASILEIRAS

    Oliveira Viana

  • BIBLIOTECA BSICA BRASILEIRAO Conselho Editorial do Senado Federal, criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997,buscar editar, sempre, obras de valor histrico e cultural e de importncia relevante para acompreenso da histria poltica, econmica e social do Brasil e reflexo sobre os destinos do pas.

    COLEO BIBLIOTECA BSICA BRASILEIRAA Querela do Estatismo, de Antonio PaimMinha Formao, de Joaquim NabucoA Poltica Exterior do Imprio (3 vols.), de J. Pandi CalgerasO Brasil Social, de Slvio RomeroOs Sertes, de Euclides da CunhaCaptulos de Histria Colonial, de Capistrano de AbreuInstituies Polticas Brasileiras, de Oliveira VianaA Cultura Brasileira, de Fernando AzevedoA Organizao Nacional, de Alberto TorresDeodoro: Subsdios para a Histria, de Ernesto SenaRodrigues Alves, de Afonso Arinos de Melo Franco (2 volumes)Presidencialismo ou Parlamentarismo?, de Afonso Arinos de Melo FrancoRui Barbosa, um Estadista da Repblica, de Joo MangabeiraEleio e Representao, de Gilberto Amado

    Projeto grfico: Achilles Milan Neto

    Senado Federal, 1999Congresso NacionalPraa dos Trs Poderes s/nCEP 70168-970Braslia -- DF

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    Vianna, Oliveira, 1885-1951. Instituies polticas brasileiras / Oliveira Viana. -- Braslia : Conselho

    Editorial do Senado Federal, 1999. 591 p. -- (Coleo biblioteca bsica brasileira)

    1. Histria poltica, Brasil. 2. Direito pblico, Brasil. 3. Sociologia jurdica. 4. Teoria do estado. 5. Instituio poltica, Brasil. 6. Democracia, Brasil. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 323.4

  • PRIMEIRO VOLUME

    FUNDAMENTOS SOCIAISDO ESTADO

    (Direito Pblico e Cultural)

    Il faut chercher, non pas les opinions dautrui ou ses propresconjectures, mais ce que lon peut voir clairement avec vidence, oudduire avec certitude; car la science nes sacquiert autrement.

    DESCARTES

  • Francisco Jos de OLIVEIRA VIANA(20-6-1883 -- 28-3-1951)

    (Bico-de-pena de G. Bloow)

    Obras do Autor

    Populaes meridionais do Brasil Pequenos estudos de psicologia social Evoluo do povo brasileiro O idealismo poltico no Imprio e na Repblica O idealismo da Constituio O ocaso do Imprio Problemas de poltica objetiva Raa e assimilao Novas diretrizes da poltica social Problemas de direito corporativo Problemas de direito sindical Formation thnique du Brsil colonial Instituies polticas brasileiras I -- Fundamentos sociais do Estado II -- Metodologia do direito pblico

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    SUMRIO

    PRIMEIRO VOLUME

    FUNDAMENTOS SOCIAIS DO ESTADOIntroduo

    Oliveira Viana e o pensamento autoritrio no Brasil -- por Antonio Paim

    pg. 11Prefcio da 2 Edio

    pg. 39Prefciopg. 43

    PRIMEIRA PARTE -- Cultura e Direito

    Captulo I -- Direito, cultura e comportamento socialpg. 55

    Captulo II -- Cultura e panculturalismopg. 63

    Captulo III -- Estabilidade dos complexos culturaispg. 93

    SEGUNDA PARTE -- Morfologia do Estado

    Captulo IV -- Evoluo das estruturas do Estado no mundoeuropeupg. 109

    Captulo V -- O significado sociolgico do antiurbanismocolonial (Gnese do esprito insolidarista)

    pg. 127Captulo VI -- O povo-massa e a sua posio nas pequenas

    democracias do perodo colonial (Gnese do apoliticismo da plebe)pg. 145

  • TERCEIRA PARTE -- Culturologia do Estado

    Captulo VII -- Os pressupostos culturolgicos dos regimesdemocrticos europeus

    pg. 171Captulo VIII -- Instituies do direito pblico costumeiro

    brasileiropg. 185

    Captulo IX -- O "complexo do feudo" e os cls feudaispg. 199

    Captulo X -- O "complexo da famlia senhorial" e os clsparentaispg. 221

    Captulo XI -- Os "cls eleitorais" e sua emergncia no IV sculo(Gnese dos partidos polticos)

    pg. 255Captulo XII -- O povo-massa nos comcios eleitorais no IV sculo

    (Formao do eleitorado rural)pg. 271

    QUARTA PARTE -- Psicologia poltica

    Captulo XIII -- O contedo tico da vida poltica brasileirapg. 291

    Captulo XIV -- O carisma imperial e a seleo dos "Homens de 1000"(Gnese da aristocracia nacional)

    pg. 325

    SEGUNDO VOLUME

    METODOLOGIA DO DIREITO PBLICO

    PRIMEIRA PARTE -- Metodologia do direito pblico

    Captulo I -- O idealismo utpico das elites e oseu "marginalismo" poltico

    pg. 353Captulo II -- Rui e a metodologia clssica ou dialtica

    (O "marginalismo" no Direito) pg. 369

  • Captulo III -- Alberto Torres e a metodologia objetiva ou realista (O nacionalismo poltico)

    pg. 397Captulo IV -- Populaes e a metodologia sociolgica

    (O "regionalismo" no Direito)pg. 409

    SEGUNDA PARTE -- Tecnologia das reformas

    Captulo V -- Estrutura do Estado e estrutura da sociedade pg. 435

    Captulo VI -- O problema das reformas e a tcnica liberal pg. 441

    Captulo VII -- O problema das reformas e a tcnica autoritriapg. 447

    TERCEIRA PARTE -- Organizao da democracia no Brasil

    Captulo VIII -- O problema das reformas polticas e os esteretipos das elites pg. 463

    Captulo IX -- Organizao da democracia e o problemadas liberdades polticas

    pg. 473Captulo X -- Organizao da democracia e o problema do sufrgio

    pg. 481Captulo XI -- A organizao da democracia e o problema das

    liberdades civispg. 491

    Captulo XII -- O Poder Judicirio e seu papel na organizaoda democracia no Brasil

    pg. 501NOTASpg. 507

    NDICE ONOMSTICOpg. 573

    BIBLIOGRAFIA DE OLIVEIRA VIANApg. 589

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Siglas

    "AJS" -- The American Journal of Sociology, Chicago, Estados Unidos

    "JSPh" -- The Journal of Social Philosophy, Nova Iorque, EstadosUnidos

    "RIH" -- Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio deJaneiro

    "RAMSP" -- Revista do Arquivo Municipal da Cidade de So Paulo, SoPaulo

    "RSPHAN"-- Revista do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional,Rio de Janeiro

    Cfr. -- Esta sigla remete o leitor a fontes bibliogrficas, s vezes,em discordncia ou em oposio com o pensamento dotexto; mas, cuja consulta til ou para completar osentido do texto, ou para ampliar o campo de informaodo leitor, fornecendo-lhe uma compreenso mais amplado tema ou ponto em exame.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Introduo

    OLIVEIRA VIANA E O PENSAMENTOAUTORITRIO NO BRASIL

    Antonio Paim

    O elemento mais caracterstico de nosso perodo republicano --que, dentro em breve, completar seu primeiro sculo -- , sem dvida,ascenso do autoritarismo poltico. Durante largo perodo, trata-seapenas de prtica autoritria. Nessa fase, elimina-se a representao,mediante o expediente de promover o reconhecimento dos mandatosparlamentares, a partir do Governo Campo Sales, mas se mantendointocada a Constituio. Sucedem-se os desrespeitos s liberdades con-sagradas pela Carta Magna, seguidos sempre da preocupao de sal-var as aparncias desde que o Parlamento era instado a votar osestados de stio. Talvez a histria poltica brasileira na RepblicaVelha que tenha inspirado a tese segundo a qual, no Brasil, aprtica nada tem a ver com a teoria. De fato, ao longo das quatroprimeiras dcadas republicanas, tivemos um arcabouo constitucionalflagrantemente contrariado pela atuao dos governantes.

    A primeira expresso de autoritarismo doutrinrio coerente-mente elaborado seria o castilhismo(1). Inspirando-se em Comte,Jlio de Castilhos (1860/1903) dotou o Rio Grande do Sul de in-stituies aberta e francamente autoritrias. A prtica de trs decnios,sob a batuta de Borges de Medeiros (1864/1961), permitiu aprimor-las eformar uma elite altamente qualificada, votando o mais solene desprezo pelo

  • liberalismo, certa de que a poca dos governos representativos haviapassado. Essa elite que chegaria ao poder com a Revoluo de 30. Aascendncia de Getlio Vargas (1883/1954) durante os anos 30 e aimplantao do Estado Novo correspondem vitria e consagraodo castilhismo.

    Outras doutrinas autoritrias tiveram curso no pas no mesmoperodo. Em especial aquelas que resultaram do tradicionalismopopularizado por Jackson de Figueiredo (1891/1928) e que desem-bocaria no integralismo e na pregao de homens como FranciscoCampos (1887/1968) ou Azevedo Amaral (1881/1942); ou quederam curso ao cientificismo na verso positivo-marxista e queacabaria, em nossos dias, batendo todos os recordes de sincretismo eincoerncia ao empolgar segmentos importantes da Igreja Catlica.Tais doutrinas obscurantistas, por mais rudo e sucesso que provo-quem em determinados momentos histricos, so o lado menos impor-tante da tradio cultural luso-brasileira.

    Dentre as personalidades que soube atrair para sua rbita, Vargascontou com a colaborao de Oliveira Viana (1883/1951), que repre-senta fenmeno mais complexo e que ele mesmo procuraria identificarcomo uma linha de continuidade de determinada tradio. Trata-se dalinha modernizadora, atravs do fortalecimento do Poder Central, queencontraria expresso acabada no Segundo Reinado. Tem algo a ver como autoritarismo, mas a este no se reduz.

    Tal , em linhas gerais, a temtica que desejaramos desenvolver.O castilhismo acha-se suficientemente caracterizado em edies

    aparecidas recentemente, a saber: Constituio Poltica do RioGrande do Sul. Comentrio (1911), de Joaquim Lus Osrio(1881/1949) e O Rio Grande do Sul e suas instituies gover-namentais (1925), de Raimundo de Monte Arrais (1888/1965). Asoutras formas de autoritarismo efmero e que no chegaram a institucionali-zar-se no pas esto estudadas de modo amplo em textos como A Igreja na

    12 Oliveira Viana

  • Repblica, antologia organizada por Ana Maria Moog Rodrigues; OEstado autoritrio e a realidade nacional (1938), de AzevedoAmaral, e coletnea de textos de Francisco Campos. De sorte que,nesta oportunidade, cabe to-somente apontar os antecedentes tericos deOliveira Viana e o papel que suas idias chegaram a desempenhar emnossa contempornea histria poltica. Antes de efetiv-lo, faremos umabreve apresentao da vida e obra do pensador.

    1. Vida e obra de Oliveira Viana

    FRANCISCO JOS OLIVEIRA VIANA nasceu em1883 na cidade de Saquarema, no interior do Estado do Rio deJaneiro, viveu e educou-se na capital fluminense, concluindo o cursode Direito em 1905. Dedicou-se ao jornalismo e ao magistrio, in-gressando no Corpo Docente da Faculdade de Direito de Niteri em1916. Seu primeiro livro -- Populaes Meridionais do Brasil --aparece em 1920, quando completa 37 anos. Nesse mesmo ano pub-lica O Idealismo da Constituio. Ao longo da dcada de vinteviria a adquirir grande nomeada. Depois da Revoluo de 30 torna-se Consultor da Justia do Trabalho, tendo desempenhado papelmuito importante na ordenao do direito do trabalho brasileiro e naconcepo dos institutos a que deu surgimento. Em 1940 passou a in-tegrar o Tribunal de Contas da Unio. As novas funes de certaforma levam-no a interromper o sentido principal de sua obra, que entretanto retomado aps a queda do Estado Novo. Faleceu aos 68anos de idade, em 1951. Pertenceu Academia Brasileira de Letras.

    Em Populaes Meridionais do Brasil, Oliveira Viana distin-gue trs tipos caractersticos na formao de nosso pas, contrariando atradio de considerar ao povo brasileiro como massa homognea. De suapresena acha que resultam trs sociedades diferentes: a dos sertes, a dasmatas e a dos pampas, com estes tipos especficos: o sertanejo, o matuto eo gacho. Os principais centros de formao do matuto so as regies

    Instituies Polticas Brasileiras 13

  • montanhosas do Estado do Rio, o grande macio continental de Minas e osplats agrcolas de So Paulo. Exerce influncia poderosa no cursohistrico seguido pelo pas. O objetivo de Oliveira Viana chamar aateno para a realidade circundante autntica e denunciar o vezo decopiar instituies europias, que a seu ver comea com a Independncia.

    A esse propsito escreve: "O sentimento das nossas realidades, toslido e seguro nos velhos capites-generais, desapareceu com efeito, das nossasclasses dirigentes: h um sculo vivemos politicamente em pleno sonho. Osmtodos objetivos e prticos de administrao e legislao desses estadistascoloniais foram inteiramente abandonados pelos que tm dirigido o pasdepois da sua independncia. O grande movimento democrtico darevoluo francesa; as agitaes parlamentares inglesas; o esprito lib-eral das instituies que regem a Repblica Americana, tudo isto ex-erceu e exerce sobre os nossos dirigentes, polticos, estadistas, legis-ladores, publicistas, uma fascinao magntica, que lhes daltonizacompletamente a viso nacional dos nossos problemas. Sob esse fascnioinelutvel, perdem a noo objetiva do Brasil real e criam para uso delesum Brasil artificial, e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro,made in Europe -- sorte do cosmorama extravagante, sobre cujo fundode florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e repassamcenas e figuras tipicamente europias."

    A linha a seguir est desde logo esboada neste primeiro livro: tor-nar o Estado um grande centro aglutinador de transformao social, aptoa "fundir moralmente o povo na conscincia perfeita e clara da sua uni-dade nacional e no sentimento poltico de um alto destino histrico". Eprossegue: "Esse alto sentimento e essa clara e perfeita conscincia ssero realizados pela ao lenta e contnua do Estado -- um Estado so-berano, incontrastvel, centralizado, unitrio, capaz de impor-se a todo opas pelo prestgio fascinante de uma grande misso nacional."(2)

    A meditao que inicia com Populaes Meridionais do Brasil ecom a denncia do que ento denominou de "idealismo da Constituio", em1920, continuada em Evoluo do Povo Brasileiro (1923), coroa-se,

    14 Oliveira Viana

  • nessa primeira fase, com o livro Problemas de Poltica Objetiva, apare-cido pouco antes da Revoluo de 30. Neste, comenta e avalia as propostas de Al-berto Torres e enxerga no pas um novo clima, favorvel centralizao. "Hvinte anos passados", escreve, "as idias polticas, nos centros intelectuais e par-tidrios, no s locais como federais, diferiam muito das idias atuais: traam aconcepo centrfuga do regime federativo." Enxerga a emergncia de "sensveltendncia centrpeda, um rpido movimento das foras polticas locais na direodo poder central ".

    A mensagem de Oliveira Viana clara e precisa: "H evidente-mente em tudo isto um grande equvoco, uma grande iluso, que perturbaa viso exata das realidades nacionais a todos esses descentristas eautonomistas, que so, afinal, aqui, todos os espritos que se jactam deliberais e adiantados. Porque preciso recordar, com Seeley, que a Liber-dade e a Democracia no so os nicos bens do mundo; que h muitasoutras causas dignas de serem defendidas em poltica, alm da Liberdade-- como sejam a Civilizao e a Nacionalidade; e que muitas vezes acon-tece que um governo no liberal nem democrtico pode ser, no obstante,muito mais favorvel ao progresso de um povo na direo daqueles doisobjetivos. Um regime de descentralizao sistemtica, de fuga disciplinado centro, de localismo ou provincialismo preponderante, em vez de ser umagente de fora e progresso, pode muito bem ser um fator de fraqueza eaniquilamento e, em vez de assegurar a liberdade e a democracia, pode real-mente resultar na morte da liberdade e da democracia."(3)

    Com a Revoluo de 30, Oliveira Viana passa a ocupar-se de umsegmento novo daquele Estado centralizado e modernizador com que son-hava: o direito do trabalho. Dessa fase ficaram-nos trs livros: Proble-mas de Direito Corporativo (1938); Problemas de Direito Sin-dical (1943) e a coletnea de estudos dispersos agrupados sob a denomi-nao de Direito do Trabalho e Democracia Social, editada em1951.

    Retoma a meditao anterior com Instituies Polticas Brasileiras(1949). Dessa fase deixou vrios inditos, alguns dos quais seriam editados pos-

    Instituies Polticas Brasileiras 15

  • tumamente como Problemas de organizao e problemas de direo(publicado em 1952) e Introduo histria social da economia pr-capitalista no Brasil (publicado em 1958).

    2. Antecedentes doutrinrios

    Duas so as fontes doutrinrias de Oliveira Viana: o culturalismosociolgico de Slvio Romero (1851/1914) e a crtica tradio liberalbrasileira realizada por Alberto Torres (1865/1917).

    O culturalismo sociolgico de Slvio Romero corresponde auma inflexo no culturalismo filosfico de Tobias Barreto(1839/1889). Este, para combater a hiptese comtiana da fsica social,indicou que o homem dirige-se por causas finais e no pode ser esgotado noplano das causas eficientes (cincia). Graas a essa capacidade de formular-seobjetivos e de traar os caminhos para alcan-los, o homem erigiu a cultura.Tobias Barreto tem em mira a idia de arqutipo ou prottipo apontada porKant, ao dizer que, sem o ideal da sociedade racional, no haveria como lutarpelo aperfeioamento das instituies sociais; ou que "ns no temos,para julgar nossas aes, outra regra seno a conduta deste homem divino(isto , o sbio estico) que conduzimos em ns e ao qual nos compara-mos para nos julgar e tambm para nos corrigir, mas sem poderjamais alcanar a perfeio"(4). Por isto mesmo, concluiria Tobias Bar-reto, no seio da cultura o direito o fio vermelho e a moral o fio de ouro,explicitando que, nessa obra, os homens no se inspiram na natureza, aseu ver fonte ltima de toda imoralidade.

    A investigao era, pois, de cunho filosfico. Conduziu, mais tarde, pergunta pela objetividade no mbito das cincias humanas, isto , pelapossibilidade de alcan-la; suas peculiaridades em relao s cinciasnaturais, etc. Mais explicitamente: levou a uma investigao de ndoleepistemolgica para, em seguida, ressuscitar a inquirio metafsica, emespecial a pergunta pelo ser do homem.

    16 Oliveira Viana

  • Slvio Romero iria eliminar a anttese entre cultura e natureza parareduzir a primeira ltima e dar investigao carter meramente cien-tfico. No Ensaio de Filosofia do Direito (1895) escreveria:

    "O Direito como a Arte, como a Educao. Ora, cada umadestas , no h neg-lo, produto da cultura, e forma-se segundo a ndoledos povos; porm, a cultura filha da natureza do homem, estimuladapela natureza exterior. Se no fora assim, a cultura mesma seria im-possvel, irrealizvel, incompreensvel. to incongruente fantasiar umdireito eterno, anterior e superior aos povos, como o de imaginar uma cul-tura area, que no repousasse na ndole mesma natural do homem e ema natural capacidade que ele tem de se desenvolver."

    Logo adiante aponta nestes termos o caminho que deve trilhar a investi-gao: "Banidos os velhos mtodos ontolgicos, que faziam a Cincia de cimapara baixo, partindo de algum suposto princpio geral, a que os fatos se de-veriam por fora acomodar, banidos os velhos processos, aquelas cinciastiveram, ao contrrio, de se firmar nos fatos e partir com eles em busca dasleis que regem o desenvolvimento do indivduo e da sociedade."

    O experimentalismo, exclama, deve-se interpor e acabar com as di-vagaes a priori(5).

    Slvio Romero preferiu, pois, o que a posteridade iria denominar deculturalismo sociolgico. Na verdade, nunca chegou a traar um pro-grama definitivo da maneira pela qual deveria efetivar-se essa investi-gao sociolgica da cultura. Alm do mais, como oportunamente desta-caria Miguel Reale, Slvio Romero estava pouco preocupado com a teoriageral. Seu empenho consistia em buscar os instrumentos capazes de com-preender o Brasil e sua histria(6).

    O culturalismo sociolgico de Silvio Romero assume trs feies maisou menos diferenciadas. Em fins dos anos oitenta, na poca da publicaoda Histria da Literatura Brasileira (1888), simples partidrio deSpencer. Por volta dos comeos do sculo, sem renegar o evolucionismo

    Instituies Polticas Brasileiras 17

  • spenceriano, incorpora a idia de luta de classes. Finalmente, na fase fi-nal, adere Escola de Le Play.

    A incorporao de elementos doutrinrios ao culturalismo sociolgicode Slvio Romero se faz aps comprovada a sua eficcia na explicaodas particulares circunstncias brasileiras. A necessidade de aprofund-la que o move a buscar novos princpios.

    Slvio Romero considera que, para compreender a evoluo da so-ciedade brasileira e determinar, pressentir ou averiguar os caminhosde seu desenvolvimento futuro, necessrio se faz recusar as explicaessimplistas ou meramente descritivas, submeter crtica daquelas teo-rias que isolam um ou outro fator e a partir exclusivamente destespretendem apresentar uma viso global, e, finalmente, examinar emprofundidade o conjunto de elementos constitucionais e integrantes docontexto social. Antes de avanar na enumerao destes, convmacompanh-lo na crtica s teorias em voga a respeito do Brasil.

    A primeira explicao simplista, logo combatida por Slvio Romero, aquela que atribui os feitos histricos a um ou outro heri ou ainda aoconjunto das elites. Tomo como exemplo, para ilustrar suas idias, ofenmeno da Abolio, que se comemorava no prprio ms em que aHistria da Literatura Brasileira era ultimada para a entrega aopblico, que vinha merecendo essa interpretao.

    Entre as teorias puramente descritivas, coloca a doutrina etnogrficade Martius(7), que indica os elementos constituintes do povo brasileiro, asraas que contriburam para a sua formao, mas no aponta "comoestes elementos atuaram uns sobre os outros e produziram o resultadopresente", "falta-lhe o nexo causal e isto seria o principal a esclarecer".Outra doutrina por ele considerada errnea a do escritor portugusTefilo Braga, que pretende atribuir a mesma origem, asitica, para aspopulaes da Europa Meridional e da Amrica, com o que explicaria ofenmeno do lirismo literrio. Slvio Romero considera anticientfica essahiptese das migraes asiticas e objeta: "Concedendo porm tudo, admitindo a

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  • identidade das origens do lirismo portugus e tupinamb, como quer oescritor portugus, que da se poder inferir para a filosofia da histriabrasileira? Nada. A tese do autor aoriano puramente literria e novisa uma explicao cientfica de nosso desenvolvimento social".

    Oliveira Martins, em seu livro O Brasil e as Colnias Por-tuguesas, "enxerga todo o interesse dramtico e filosfico da histria na-cional da luta entre os jesutas e os ndios, de um lado, e os colonos por-tugueses e os negros, de outro". Para o crtico sergipano tais fenmenosno passam de fatos isolados, de pouca durao, e no podem "trazer emseu bojo, como um segredo de fada, toda a latitude da futura evoluo doBrasil. um simples incidente de jornada, alado categoria deprincpio geral e dirigente; uma destas snteses fteis com que algunsnovelistas da histria gostam de nos presentear de vez em quando".

    Quanto teoria da ptria brasileira, dos positivistas, entenderque nela "o verdadeiro no novo, e o novo no verdadeiro". A essetempo Slvio Romero considerava que a corrente dissidente, chefiada porLittr, fora estril, ilgica e anrquica. Expe a a tese repetida no livroDoutrina contra Doutrina, escrito alguns anos depois, segundo aqual positivismo autntico o de feio religiosa, representado no Brasilpor Teixeira Mendes e Anbal Falco. Para estes o Brasil pertencia aogrupo das ptrias ocidentais e, ao sair das guerras holandesas, reunia emsi as condies de uma ptria (solo contnuo, governo independente etradies comuns). Nessa luta, a vitria do elemento ibrico, representanteda civilizao latina, fez com que o Brasil escapasse da ao dissolventeda Reforma, estando portanto em melhores condies que os EstadosUnidos para aceitar a "doutrina regeneradora", isto , a religio da hu-manidade. Tal resultado correspondeu a uma necessidade, desde que sedeveriam reproduzir no Brasil as duas tendncias opostas existentes naEuropa. Para Slvio Romero essa teoria demasiado simtrica para noser em grande parte "pura fantasia". E exclama: "Era necessrio paraas ptrias ocidentais que o portugus vencesse no Brasil o holands pro-testante e que o ingls derrotasse nos Estados Unidos o

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  • francs catlico!... muito cmodo. E afinal, por que se no h dedar o mesmo na Oceania em geral e notadamente na Austrlia, onde oelemento germnico quase no encontra o seu competidor? So terras no-vas, habitadas por selvagens a desaparecerem a olhos vistos, que estosendo colonizados por europeus, representantes da civilizao ocidental.Por que no se h de repetir a o dualismo salutar?"

    Na Histria da Literatura Brasileira, Slvio Romero dedica-seainda crtica dos pontos de vista do socilogo ingls Buckle, em cujaobra h pontos de vista sobre a evoluo do povo brasileiro.

    Henry Thomas Buckle (1823/1862) foi um historiador britnicoprofundamente influenciado por Comte, Stuart Mill, Quetelet e outros.Publicou, em 1857, trs volumes de uma introduo ao estudo da civili-zao na Inglaterra. Inicialmente, rejeita a explicao dos fenmenoshistricos dada pelos metafsicos, notadamente a doutrina do livre-ar-btrio, como tambm a teoria da predestinao dos telogos. PretendeBuckle que as aes humanas podem ser explicadas atravs dos mtodosempregados nas cincias naturais desde que so determinadas somente porseus antecedentes e produzem os mesmos resultados sob as mesmas circun-stncias, podendo ser perturbados pela ao do meio. Segundo ele, as leisque dirigem a histria so fsicas (clima, alimentao e aspecto geral danatureza) e mentais (intelectuais e morais, das quais as primeiras se-riam mais importantes). Divide a civilizao em dois grandes ramos: ada Europa (predomnio do esforo do homem sobre a natureza) e o restodo mundo (predomnio da natureza ou das leis naturais). Slvio Romero,tendo em alta conta a crtica que realizou das teorias denominadas demetafsicas e teolgicas e algumas de suas observaes sobre a influnciados elementos naturais, considera artificial a diviso indicada e apontaoutros defeitos na doutrina.

    Buckle considera que o Brasil no teve civilizao primitiva porqueas condies de vida no eram fceis, como as vigentes nas pennsulas e smargens dos grandes rios onde surgiram as civilizaes antigas, da o seuinveterado barbarismo. Slvio Romero considera que falsa a descrio

    20 Oliveira Viana

  • que faz do clima brasileiro. Na sua opinio, o "autor, que nunca visitouo Brasil, foi vtima do maravilhoso no inventrio dos obstculos que anatureza nos ope". Diz mais: "Buckle verdadeiro na pintura que fazde nosso atraso, no na determinao dos seus fatores."

    Resumindo as observaes quanto s teorias enunciadas, SlvioRomero dir que a teoria de Buckle em demasia cosmogrfica, a deMartius demasiado etnolgica e a dos discpulos de Comte um ex-tremo social. Compreendendo e proclamando que "a filosofia dahistria de um povo qualquer o mais temeroso problema que possaocupar a inteligncia humana", prefere adotar certos aspectos da doutrinade Spencer, "a que mais se aproxima do alvo, por mais lacunosa queainda seja".

    luz da crtica s doutrinas comentadas, Slvio Romero avana ahiptese de que o estudo deve considerar o conjunto de elementos assimclassificados: primrios (ou naturais); secundrios (ou tnicos) e tercirios(ou morais). No primeiro plano as questes mais importantes dizem re-speito ao clima e ao meio geogrfico. Aponta-os: "o excessivo calor,ajudado pelas secas na maior parte do pas; as chuvas torrenciais no valedo Amazonas, alm do intentssimo calor, a falta de grandes vias fluviaisentre o So Francisco e o Paraba; as febres de mau carter reinantes nacosta". A isto acrescenta: "O mais notvel dos secundrios a incapacidaderelativa das trs raas que constituram a populao do pas. Os ltimos -- osfatores histricos chamados poltica, legislao, usos, costumes, que so efeitosque depois atuam tambm como causas." Em sntese, as diversas doutrinasacerca do Brasil chamaram a ateno para os aspectos isolados, que cabia in-tegrar num todo nico. O destino do povo brasileiro, a exemplo do que sedava em relao espcie humana, estaria traado numa explicao decarter biossociolgica, como queria Spencer.

    Por volta dos comeos do sculo, Slvio Romero mantm o mesmoesquema geral, mas incorpora um dado novo: a luta de classes.

    Assim, no ensaio "O direito brasileiro no sculo XVI" (1899)(8)

    afirmaria que "todo o processo de formao da individualidade nacional

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  • no pode deixar de ser um processo de diferenciao cada vez mais cres-cente entre o Brasil e a antiga me-ptria". "A diferenciao brasileira",prossegue, "no intuito de formar um tipo novo, reforada por fatoresmesolgicos e etnogrficos, diversos dos da pennsula hispnica." A expli-cao preserva, como se v, o carter biossociolgico. Contudo, entre os fa-tores tercirios destaca o seguinte: "Desde o princpio as gentes brasileirasse acharam divididas em: sesmeiros, proprietrios, senhores de engenho,fazendeiros, nas zonas rurais, mercantes nas cidades e vilas, de um lado,e, de outro, os agregados, os moradores, os trabalhadores braais; os escra-vos negros, mulatos, ndios e cafuzos, todos estes dependentes dos grandesproprietrios e negociantes ricaos. Bem cedo tivemos as lutas de classes,especialmente em Pernambuco, Maranho, So Paulo e Minas."(9) Essareferncia no chega a alterar substancialmente os procedimentos recomen-dados.

    Nos ltimos anos de vida, Slvio Romero incorpora as teses da Escolada Cincia Social (Le Play, H. de Tourville, Edmond Demolins, P.Rousiers, A. De Preville, P. Bureau e outros). "Os processos da Escola deLe Play -- escreve no Brasil Social (1908) -- fizeram-me penetrar a fundo natrama interna das formaes sociais e completar as observaes anteriores deensino spenceriano." Faz algumas objees Escola -- afirmando, entreoutras coisas, "tambm no lhe aceito de todo a classificao dos fenmenossociais, que me parece mais uma nomenclatura de problemas e questes" masconclui: "Como quer que seja, os mritos da Escola, a despeito desta e deoutras divergncias, se me antolham preciosssimos para quem quer conhecer afundo um pas qualquer e a gente que o habita."

    No livro em apreo, que deixou inacabado, Slvio Romero resume ecomenta os pontos de vista da Escola de Le Play. Essa escola destaca 25grupos de fatos e problemas sociais. Vale dizer: situa-se na linha antespreconizada por Slvio Romero que era a de pretender descries exausti-vas, completas e abrangentes. Como antes, atribui particular importncia atividade produtiva, escrevendo: "Sob o ponto de vista especfico do tra-balho, que vem a ser a grande mola que move e afeioa as sociedades hu-

    22 Oliveira Viana

  • manas, cumpre no perder de vista que vrias tm sido as fases passadaspela espcie... Cada um destes gneros de trabalho, cada uma destas oficinasde produo, cada uma destas maneiras de agenciar os meios de existncias,trazia e traz conseqncias indelveis, dificlimas de apagar, porque elas con-stituem o substratum ntimo das sociedades."

    A aplicao das teses de Le Play ao Brasil requeria o cumpri-mento deste programa: "Seria preciso estudar acuradamente, sobmltiplos aspectos, cada um dos povos que entraram na formao doBrasil atual; dividir o pas em zonas; em cada zona analisar uma auma todas as classes da populao e um a um todos os ramos daindstria, todos os elementos da educao, as tendncias especiais, oscostumes, o modo de viver das famlias de diversas categorias, as con-dies de vizinhana, de patronagem, de grupos, de partidos; apreciarespecialmente o viver das povoaes, vilas e cidades, as condies do oper-ariado em cada uma delas, os recursos dos patres, e cem outros proble-mas, dos quais, nesta parte da Amrica, retrica politicamente dospartidos nunca ocorreu cogitar."

    Em que pese a tamanha amplitude, no vacila em afirmar que aquesto etnogrfica " a base fundamental de toda a histria, de toda apoltica, de toda a estrutura social, de toda a vida esttica e moral dasnaes". E a etnografia ensina que a famlia a "questo das questes"."Esta a base de tudo na sociedade humana; porque, alm da funonatural de garantir a continuidade das geraes sucessivas, forma ogrupo prprio para a prtica do modo de existncia, o ncleo legtimoda maneira normal de empregar os recursos criados pelos meios deviver."

    Seriam estas as quatro modalidades tpicas de famlias: patriarcal;quase patriarcal; tronco e instvel. Estas famlias, por sua vez, do lugara dois tipos de sociedade: 1) de formao comunitria e, 2) de formaoparticularista.

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  • O culturalismo sociolgico de Slvio Romero foi desenvolvido noplano doutrinrio por outros integrantes da Escola do Recife. Contudo, o in-ventrio da organizao social brasileira, cuja oportunidade tanto enfatizou,seria obra de Oliveira Viana. Com a grande vantagem de que soube corre-lacion-lo s instituies polticas nacionais, atento ineficcia e ao utopismode boa parte da nossa tradio liberal graas familiaridade que veio aadquirir com as idias de Alberto Torres (1865/1917). O prprio OliveiraViana reconheceria sua dvida para com Slvio Romero ao abordar o que de-nominou de metodologia do direito pblico, em Instituies PolticasBrasileiras. Teria, ento, oportunidade de afirmar: "Esta compreensoobjetiva e cientfica das nossas coisas e dos nossos prprios problemas eu aadquiri cedo... No foi Torres, como geralmente se pensa, quem me deu aprimeira orientao neste sentido; foi Slvio Romero."

    Alberto Torres era um jovem de vinte e poucos anos quando da Pro-clamao da Repblica, mas assume desde logo uma posio de lideranano Estado do Rio de Janeiro, onde, em seguida ao golpe de Floriano, se-ria convocada uma segunda Assemblia Constituinte (eleita a 31 de ja-neiro de 1892) e anulada a Carta promulgada no ano anterior. AlbertoTorres tem uma atuao destacada na elaborao da nova Carta, comodeputado estadual e membro da Constituinte. Em 1894 eleito para aCmara Federal.

    Exerceu o mandato de presidente do Estado do Rio de Janeiro nosexerccios de 1898 a 1900. Em abril de 1901 era indicado por CamposSales para integrar o Supremo Tribunal Federal.

    Nos ltimos anos de vida, Alberto Torres meditou sobre algumasquestes da organizao poltica da sociedade, em geral, acabando porvoltar-se preferentemente para a realidade brasileira. Publicou sucessi-vamente: Vers la Paix (1909); Le Problme Mondiale (1913); AOrganizao Nacional e O Problema Nacional Brasileiro(1914); e As Fontes da Vida no Brasil (1915). Parte dos textosdedicados ao Brasil consistiriam de reelaborao de artigos publicados naimprensa entre 1910 e 1912.

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  • Embora partidrio do sistema representativo, como os integrantesda faco liberal, Alberto Torres entendia que o principal deveria consis-tir no fortalecimento do Executivo. A liderana liberal estava mais pre-ocupada com a independncia dos poderes, especialmente com a intangi-bilidade da Magistratura, na esperana talvez de que esta acabasse porexercer uma espcie de magistrio moral, impedindo que a luta polticadescambasse para o arbtrio e a ilegalidade. Alberto Torres, em contra-partida, escreveria em A Organizao Nacional:

    "O esprito liberal enganou-se reduzindo a ao dos governos; aautoridade, isto , o imprio, a majestade, o arbtrio devem ser combati-dos; mas o governo, forte em seu papel de apoiar e desenvolver o indivduoe de coordenar a sociedade, num regime de inteira e ilimitada publicidadee de ampla e inequvoca discusso, deve ser revigorado com outrasatribuies. A poltica precisa reconquistar sua fora e seu prestgiofazendo reconhecer-se como rgo central de todas as funes sociais, desti-nando a coorden-las e harmoniz-las e reg-las, estendendo a sua aosobre todas as esferas de atividade, como instrumento de proteo, deapoio, de equilbrio e de cultura." (10)

    Num pas novo como o Brasil, o Estado no pode dar-se ao luxo doabsentesmo. Deve ser atuante e intervencionista. No livro em apreo, anatureza desse intervencionismo, para promover o progresso e a civilizao, indicado de modo preciso, sob a gide desta premissa: "Acima de tudo isso,cumpre, porm, ter em vista que, se as instituies polticas precisarem ser sempresubordinadas s condies peculiares terra, ao povo e sociedade, a naturezaespecial desses elementos, no Brasil, ainda maior cuidado e ateno impe ao es-tudo de seus caracteres. Nosso pas, por sua situao geogrfica, pela natureza desua terra, por seu clima e populao, por todo o conjunto de seus caracteres fsicos esociais, tem uma situao singular em todo o globo. No h outro pas soberanoque lhe seja comparvel."

    Com esse esprito iria Alberto Torres contemplar a reforma institucionaldo pas. Governo forte e atuante, na sua plataforma pressupe o aprimora-mento da representao. Neste aspecto, procuraria combinar a experincia

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  • de outros pases com as peculiaridades nacionais. A Cmara dos Deputadosseria eleita por sufrgio direto, mas a metade de seus membros receberia omandato dos distritos eleitorais; um quarto dos estados e o restanteatravs de eleio nacional. Queria combinar o sistema proporcional, dapreferncia da maioria, com a eleio majoritria.

    No caso do Senado, imagina completar a representao obtida medi-ante o sufrgio pela indicao de mandatrios das organizaes religiosas,instituies cientficas, profissionais liberais, industriais, agricultores, op-errios urbanos e rurais, banqueiros e funcionalismo. Com esta advertn-cia: "A representao das classes e das provncias no significa que estessenadores se devam considerar advogados exclusivos dos grupos de elei-tores e das provncias que representares, seno seus rgos no conjunto ena continuidade da vida nacional."

    Pretende finalmente que o mandato do Presidente seja o dobro dovigente, passando a oito anos, procedendo-se sua escolha por processo indi-reto, atravs de colgio eleitoral integrado no apenas por parlamentares, masigualmente de mandatrios dos vrios segmentos da sociedade.

    Alm do aprimoramento da representao, pela diversidade de for-mas indicadas, o governo forte de Alberto Torres requer a garantia am-pla das liberdades individuais.

    No seu momento histrico, as idias de Alberto Torres no susci-taram maior interesse. Nos anos trinta, entretanto, passaram a ser es-tudadas com grande entusiasmo. desse perodo os livros de CndidoMota Filho (Alberto Torres e o tema de nossa gerao, 1931) eAlcides Gentil (As idias de Alberto Torres, 2 ed., 1938)(11). Jus-tamente Oliveira Viana destacaria este trao original: "Ao planejar umareforma constitucional para o Brasil, Torres fez esta coisa indita e sim-plssima: abriu calmamente este grande livro de direito pblico, que eramos vinte e tantos anos de regime federativo nesta terra -- e ps-se a l-locom a mesma ateno e seriedade com que, para o mesmo fim, Rui Bar-

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  • bosa iria ler a Repblica, de Bruce, e Teixeira Mendes a Poltica po-sitiva, de Comte."(12)

    3. O conceito de autoritarismo instrumental

    Partindo da lio de Slvio Romero, que elaborou o roteiro para le-vantar-se o quadro de nossa organizao social, e tendo presente, graass advertncias de Alberto Torres, que nossa tradio liberal minimizouo papel do Estado devido sobretudo ao desconhecimento das condiesreais do pas, Oliveira Viana formulou uma proposta inteiramente origi-nal e que de certa forma correspondia a uma grande sntese da tradiopoltica nacional, considerados os cinco sculos de sua existncia e no ap-enas o ltimo deles, a partir da Independncia, como veio a tornar-sepraxe. A modernizao do pas deve abranger o plano das instituiespolticas, como pretenderam nossos liberais desde a Independncia. Masessa modernizao institucional, para deixar de ser um simples voto,exige transformao da sociedade que s o Estado pode realizar. Assim,concebeu uma frmula unitria abrangendo tanto o projeto liberal-de-mocrtico de Rui Barbosa, dando precedncia ao primeiro. Para esseconjunto doutrinrio, Wanderley Guilherme dos Santos encontraria afeliz denominao de autoritarismo instrumental. Vale dizer: o auto-ritarismo um instrumento transitrio a que cumpre recorrer a fim de in-stituir no pas uma sociedade diferenciada, capaz de dar suporte a insti-tuies liberais autnticas. Dessa forma reconhece-se a verdade do castil-hismo sem cair na armadilha da sociedade racional, que acaba por serseu fundamento ltimo. E, ao mesmo tempo, apresenta de um ngulonovo, como veremos, o significado da mensagem de Rui Barbosa. Agrande limitao da proposta de Oliveira Viana residiria na identifi-cao da experincia brasileira do sistema representativo com a verdadeiranatureza desse sistema. Contudo, antes de empreender esse tipo de avaliao,compete examinar, mais detidamente, como Wanderley Guilherme desen-volve a idia de autoritarismo instrumental.

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  • Eis como o caracteriza no brilhante ensaio "A Praxis Liberal noBrasil: propostas para reflexo e pesquisa" (1974)(13). "Em 1920,Oliveira Viana expressou pela primeira vez, to clara e completamentequanto possvel, o dilema do liberalismo no Brasil. No existe umsistema poltico liberal, dir ele, sem uma sociedade liberal. O Brasil,continua, no possui uma sociedade liberal mas, ao contrrio, parental,clnica e autoritria. Em conseqncia, um sistema poltico liberal noapresentar desempenho apropriado, produzindo resultados sempre opos-tos aos pretendidos pela doutrina. Alm do mais, no h caminho natu-ral pelo qual a sociedade brasileira possa progredir do estgio em que seencontra at tornar-se liberal. Assim, concluiria Oliveira Viana, o Brasilprecisa de um sistema poltico autoritrio cujo programa econmico e polticoseja capaz de demolir as condies que impedem o sistema social de setransformar em liberal. Em outras palavras, seria necessrio um sistemapoltico autoritrio para que se pudesse construir uma sociedade liberal.Este diagnstico das dificuldades do liberalismo no Brasil, apresentado porOliveira Viana, fornece um ponto de referncia para a reconsiderao de duas dasmais importantes tradies do pensamento poltico brasileiro: a tradio doliberalismo doutrinrio e a do autoritarismo instrumental."

    Wanderley Guilherme aponta estas particularidades distintivas dessaespcie de autoritarismo: "Em primeiro lugar, os autoritrios instrumentais,na designao aqui adotada, crem que as sociedades no apresentam umaforma natural de desenvolvimento, seguindo antes os caminhos definidos e ori-entados pelos tomadores de deciso. E desta presuno deriva-se facilmente ainevitvel intromisso do Estado nos assuntos da sociedade a fim de assegu-rar que as metas decididas pelos representantes desta sociedade sejam al-canadas. Nesta medida, legtimo e adequado que o Estado regule e admin-istre amplamente a vida social -- ponto que, desde logo, os distingue dos liberais.Em segundo lugar, afirmam que o exerccio autoritrio do poder amaneira mais rpida de se conseguir edificar uma sociedade liberal,aps o que o carter autoritrio do Estado pode ser questionado eabolido. A percepo do autoritarismo, como um formato poltico

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  • transitrio, estabelece a linha divisria entre o autoritarismoinstrumental e as outras propostas polticas no-democrticas."

    Wanderley Guilherme indica que possvel localizar sinais de auto-ritarismo instrumental desde a Independncia. Neste sentido sugere que:"A idia de que cabia ao Estado fixar as metas pelas quais a sociedade de-veria lutar, porque a prpria sociedade no seria capaz de fix-las tendo emvista a maximizao do progresso nacional, a base tanto do credo quantoda ao poltica da elite do Brasil do sculo XIX, at mesmo para osprprios liberais. Ademais, temia-se que interesses paroquiais prevalecessemsobre os objetivos a longo prazo, os quais deveriam ser os nicos a orientar asdecises polticas, se que se pretendia transformar o pas em uma grandenao algum dia. Anlise cuidadosa das sesses do Conselho de Estado, aprincipal forma de deciso no sistema imperial, revelaria tanto as metasperseguidas pelas elites dominantes quanto as diretrizes operacionais quefixaram para alcan-las. O output real, por outro lado, poderia fornecersegura avaliao quanto ao grau em que a ao seguiu as idias, o quantotinham sido capazes de seguir na direo pretendida, quais foram os des-vios, e por que tiveram que adotar estes desvios."

    A seu ver, contudo, Oliveira Viana que daria formulaoacabada a essa espcie de doutrina. Transcreve-se a seguir a caracteri-zao que empreende deste pensamento: " na obra de Oliveira Viana,contudo, que o carter instrumental da poltica autoritria, da maneiraem que ele a concebeu, aparece mais claramente. A colonizaobrasileira, argumenta, ocorreu sob condies peculiares. O territrio eravasto demais, em relao a qualquer imaginvel populao da Europa dosculo XVI, e sobretudo em relao populao portuguesa da poca.ndios extremamente baixos de densidade populacional impuseram umaforma de ocupao territorial onde as nicas limitaes para o domnioindividual eram as regulamentaes coloniais. A rpida expanso de gran-des latifndios, nos primeiros dois sculos da colonizao, estabeleceu o padroque seria seguido desde ento -- grandes quantidades de terra familiarmenteapropriadas, isoladas umas das outras e da vida urbana, que s existia nos

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  • limites de dois ou trs plos ao longo da orla litornea. Os primitivos pro-prietrios de terras deviam contar consigo prprios e depender o mnimopossvel do mundo "externo" -- isto , o mundo para alm das fronteiras desuas propriedades. O desenvolvimento do complexo rural transformou os la-tifndios em pequenos universos econmicos, capazes de produzir quase tudoque precisavam e sem o menor estmulo, estvel e previsvel, especializao ediviso do trabalho. As oscilaes do mercado exterior os fizeram ainda maisdesconfiados quanto aos benefcios da especializao, e os levaram a tentar amaior autonomia possvel em relao ao mercado. Este padro se reproduziuem todo o pas e a sociedade colonial brasileira se constituiu como uma mul-tido de estabelecimentos econmicos ganglionrios isolados, quase auto-sufi-cientes -- "cl parental" --, sem comunicaes entre si, sem interesses comuns esem ligaes atravs do mercado.

    A vida urbana no poderia desenvolver-se em tal contexto. Esta foia primeira conseqncia negativa do modelo de ocupao econmica e ter-ritorial. As fazendas eram praticamente autrquicas e constituam onico mercado de trabalho da rea rural. Esta uma segunda conseqn-cia. A populao rural no-escrava no tinha alternativa ao trabalhooferecido nos latifndios. Os trabalhadores rurais "livres" dependiam to-talmente do proprietrio de terras, que se tornava seu senhor em qualquerquesto social, econmica e poltica. Quando o Brasil se separou de Por-tugal, portanto, a sociedade nacional apresentava baixssima inte-grao atravs do mercado. A unidade econmica e social bsica era ocl parental, baseada na propriedade e capaz de obter a submisso detoda a mo-de-obra "livre" que vivesse no interior ou na periferia dosdomnios. A experincia com a descentralizao liberal, realizada nasprimeiras dcadas ps-Independncia, resultou na captura das posies deautoridade pelos membros do cl, agora transformado em cl eleitoral.Todos os "cidados" agora habilitados para escolher o prefeito, a autori-dade judiciria local e o chefe de polcia pertenciam fora de trabalhono-escrava, em tudo e por tudo dependente dos proprietrios da terra. Os la-tifndios detinham o monoplio do mercado de trabalho e, conseqentemente,

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  • controlavam as vidas dos que deles dependiam. A oligarquizao dasestruturas polticas foi, portanto, produzida e legitimada pelos mtodosliberais impostos pelo governo central.

    Quando os conservadores reagiram e deram incio centralizaoimperial, os perdedores teriam sido os proprietrios de terra e no os "ci-dados". O sistema republicano, continua Oliveira Viana, no alterou opadro bsico das relaes sociais e econmicas. A sociedade brasileiraainda era basicamente oligrquica, familstica e autoritria. A inter-veno do Estado no representava, portanto, uma ameaa para os"cidados", mas sim sua nica esperana, se que havia alguma, deproteo contra os oligarcas. Qualquer medida de descentralizao, en-quanto a sociedade continuasse a ser o que era, deixaria o poder cair nasmos dos oligarcas, e a autoridade seria exercida mais para proteger os inter-esses privados dos oligarcas, do que para promover o bem pblico. Em con-seqncia, o liberalismo poltico conduziria, na realidade, oligarquizaodo sistema e utilizao dos recursos pblicos para propsitos privados.

    "O liberalismo poltico seria impossvel na ausncia de uma so-ciedade liberal e a edificao de uma sociedade liberal requer um Estadosuficientemente forte para romper os elos da sociedade familstica. O auto-ritarismo seria assim instrumental para criar as condies sociais que tor-nariam o liberalismo poltico vivel. Esta anlise foi aceita, e seguida,por nmero relativamente grande de polticos e analistas que, depois daRevoluo de 1930, lutaram pelo estabelecimento de um governo fortecomo forma de destruir as bases da antiga sociedade no liberal."(14)

    Wanderley Guilherme aponta estas lacunas em seu pensamento:"Oliveira Viana deixou, entretanto, muitas perguntas sem resposta. Por ex-emplo: que agenda de reformas polticas, sociais e econmicas um Estado fortedeveria cumprir para fazer da sociedade brasileira uma sociedade liberal?Aparentemente, Oliveira Viana s mencionou uma vez a reforma agrria e,por volta de 1952, quando foi publicada a segunda edio de seu livro, In-stituies Polticas Brasileiras, ainda se referia ao Brasil como basi-camente rural, sem apreender integralmente o significado das transformaes

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  • industriais e urbanas ocorridas desde a poca em que visualizou asorigens dos males sociais brasileiros. E apesar de haver colaborado naelaborao do cdigo trabalhista e na montagem de estrutura judicial,destinada a administrar os conflitos industriais, parece-me que nuncacompreendeu totalmente onde deveria procurar os atores polticos capazesde transformar a sociedade brasileira em uma comunidade liberal. Seupensamento estava sempre voltado para uma elite poltica especial, vindano se sabe de onde, e que transformaria a cultura poltica brasileira detal forma que a sociedade se tornaria liberal mediante macia conversocultural."(15)

    possvel verificar que as preocupaes de Oliveira Viana seriamretomadas ainda na dcada de cinqenta, formulando-se como principaltema da agenda a implantao da sociedade industrial. A elite seria decarter eminentemente tcnico, cabendo-lhe ocupar segmentos importantesdo aparelho estatal, tal seria a opo que se formula e sedimenta a partirda Comisso Mista Brasil-Estados Unidos. Ainda assim, restariam mui-tas perguntas, entre estas as seguintes: Em que ponto precisamente aRevoluo de 1964 retomaria esse fio condutor? Alm do empenho deatuao prtica, ocorreria paralelamente elaborao terica?

    Ubiratan Macedo responde afirmativamente segunda pergunta e in-dica de modo expresso: "A atual doutrina da Escola Superior de Guerra repre-senta a evoluo do nacionalismo de Alberto Torres e do pensamento de OliveiraViana."(16)

    4. As idias de Oliveira Viana e a nossa contempornea histria poltica

    Com a queda do Estado Novo, em 1945, a elite liberal comportou-se como se a nica ameaa ao sistema democrtico-constitucional proviessede Getlio Vargas e seus herdeiros polticos. Ignorou-se solenemente aprtica autoritria da Repblica Velha e a incapacidade do sistema repre-sentativo, como o concebemos, em lograr a estabilidade poltica, conforme se verifi-cara nos anos trinta. De sorte que voltamos a repetir aquela experincia

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  • malograda: sistema eleitoral proporcional; partidos polticos formados emtorno de personalidades, desprovidos de programas ou doutrinas; e prtica dasalianas de legenda, que permitia a formao de algumas grandes bancadas,no Parlamento, ao arrepio dos resultados proclamados nas urnas. Surgia denovo a evidncia de que o sistema democrtico era uma flor extica, inadap-tvel ao nosso clima. Essa velha tese, contudo, aparece em feio renovada,muito provavelmente devido s idias de Oliveira Viana ou, mais ampla-mente, do que Wanderley Guilherme chamou de autoritarismo instrumental.Agora no mais se exalta o autoritarismo contrapondo-o ao sistema repre-sentativo. Trata-se do instrumento adequado s reformas econmico-so-ciais, que daro suporte ao pretendido sistema liberal. Foi o que se viuem relao Revoluo de 64.

    A Revoluo de 1964 se fez, segundo a parcela mais representativade sua liderana, para impedir que o Presidente da Repblica em exer-ccio, Joo Goulart, fechasse o Congresso, postergasse as eleies e procla-masse o que ento se denominava de "repblica sindicalista", espcie desocialismo caboclo que misturava fraseologia esquerdista e corrupo. Aderrubada de Goulart facultaria a retomada do processo de exorcizar ofantasma de Getlio Vargas da poltica brasileira, mediante a consoli-dao da democracia. As eleies de 1965 consagrariam a liderana e avitria do ento Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, queacrescera pregao udenista tradicional (fidelidade aos princpios lib-erais, mas resumindo-os a frmulas jurdicas, desatenta problemticada representao) uma atuao governamental dinmica. A vitria elei-toral de Lacerda permitiria afinal que a UDN chegasse ao poder compossibilidades efetivas de dar cumprimento ao seu programa. No ciclo an-terior, a presena daquela agremiao no poder, alm de efmera, se fizeraatravs de lideranas no plenamente identificadas com seu iderio (Gov-erno Caf Filho, da morte de Getlio Vargas em agosto de 1954 anovembro de 1955; e eleio de Jnio Quadros, que governou alguns me-ses de 1961, renunciando e provocando a crise que acabaria levando derrubada de Goulart em maro de 1964).

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  • Consumado o afastamento de Goulart, entretanto, a Revoluo de1964 encontra dinmica prpria. Aos poucos assume como tarefa pri-mordial a modernizao econmica do pas, adiando para perodo cadavez mais dilatado a prtica democrtica. O primeiro perodo presidencialexercido em seu nome (Castelo Branco) acabou durando trs anos, isto ,no se resumindo ao trmino do mandato de Jnio Quadros, transitoria-mente transferido a Goulart. As eleies de 1965 foram mantidas. Masapenas para governos estaduais. derrota governamental em importan-tes unidades da Federao seguiu-se a dissoluo dos partidos polticos.Promulgou-se nova Constituio em 1967, virtualmente revogada peloAI-5 (Ato Institucional nmero cinco), decretado em dezembro de 1968. Aimprensa e os meios de comunicao foram submetidos ao controle oficial.Consagra-se o princpio da eleio indireta dos mandatrios dos Executivosfederal e estaduais. E assim emergiu plenamente nova forma de autorita-rismo, insuspeitado quando da ecloso do movimento.

    O novo surto autoritrio no era certamente da mesma ndole docastilhismo. Este, segundo se indicou, formulou-se na fase inicial daRepblica, implantou-se firmemente no Rio Grande do Sul e acabariatransplantado ao plano nacional por Getlio Vargas. Vargas acresceriaao castilhismo a dimenso modernizadora. De certa forma, a Revoluode 1964 incorpora essa dimenso modernizadora mas est longe de pre-tender, como o castilhismo getulista, constituir-se em alternativa para osistema representativo. A Revoluo de 1964 manteria o Parlamento,tolerando o crescimento da oposio. Ainda mais: assumindo o poder em1974, o seu quarto mandatrio, General Ernesto Geisel, que ocuparapostos importantes no primeiro governo (Castelo Branco), proclama que oprojeto revolucionrio no consiste apenas na modernizao econmica emcurso, devendo completar-se pela consolidao da democracia. Ao fim deseu governo (1978) revoga-se o AI-5. O novo presidente (JooFigueiredo) realiza a anistia e d incio reforma partidria de 1980.A liberdade de imprensa restaurada em sua plenitude.

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  • Embora o ciclo de reecontro do movimento de 1964 com a bandeirada plena instaurao democrtica -- e que, naquela poca, ainda se enten-dia como a eliminao do getulismo e a vitria do udenismo -- no setenha concludo, parece evidente que o autoritarismo do perodo1964/1978 no se identifica com as formas tradicionais do autorita-rismo brasileiro, as mais importantes das quais so o conservadorismo(ou tradicionalismo) catlico e o castilhismo. Ambos correspondem a umarecusa do sistema representativo, alm de que no acalentavam nenhumprojeto de modernizao econmica. Na matria, a proposta mais expres-siva correspondia ao corporativismo, que no deixava de ser uma recusada sociedade industrial.

    O projeto de modernizao econmica gestou-se no seio do EstadoNovo, foi retomado no segundo governo Vargas (sobretudo atravs daComisso Mista Brasil-Estados Unidos, de que resultaria a criao doBNDE -- Branco Nacional de Desenvolvimento Econmico) e apropriadopelo governo Kubitschek (1956/1960), contando com a mais ferrenhaoposio da UDN. Durante o perodo Jnio Quadros -- Joo Goulart(1961/maro de 1964), seria inteiramente abandonado, o que retira a pos-sibilidade de considerar-se que a Revoluo de 1964 a ele teria aderido poruma questo de inrcia, j que no o encontrara em pleno curso. Tampoucose pode sugerir que a nova liderana militar chegando ao poder tivesse"descoberto" as verdades do getulismo -- e que, poca, eram muito mais dochamado "pessedismo" que do brao trabalhista do mesmo getulismo, agorasob a liderana de Goulart -- e as limitaes do udenismo, que era afinal suaverdadeira base de sustentao poltica.

    Os rumos seguidos pela Revoluo de 1964 so reveladores da pre-sena de foras sociais poderosas, visceralmente empenhadas na criao dasociedade industrial. O sucesso alcanado por esse projeto serve tambmpara evidenci-lo. Nesta oportunidade no desejaramos encaminharnossa investigao no sentido da identificao de tais foras sociais -- oque, de certa forma, vem sendo efetivado pelos estudiosos do Estado Pat-rimonial (17) --, mas de sugerir que essa nova verso do autoritarismo

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  • tem antecedentes doutrinrios no pensamento poltico brasileiro, repre-sentados, sobretudo, pela obra de Oliveira Viana.

    Oliveira Viana nunca formulou plataforma de industrializao dopas como instrumento adequado formao do mercado nacional nico ede classes sociais diferenciadas, meio hbil, portanto, para a consecuodo seu projeto de liquidao da sociedade clnica tradicional. Essa plata-forma seria elaborada pela elite tcnica, aglutinada em torno do BancoNacional de Desenvolvimento Econmico nos anos cinqenta, que o gov-erno Jnio-Goulart no conseguiu extinguir, sendo ressuscitada pelo min-istro Roberto Campos, no primeiro governo da Revoluo de 64. Con-tudo, a obra doutrinria de Oliveira Viana, retomada pela Escola Supe-rior de Guerra, dava foros tericos convico sugerida pela prtica dosistema representativo aps 1945: no possvel realizar qualquer re-forma no pas se depender do Parlamento. Este guardara ciosamente emsuas gavetas, naquele perodo, muitas leis consideradas essenciais. As-sim, a minimizao do papel do Congresso tornava-se requisito essencialpara o desencadeamento do processo modernizador.

    As doutrinas de Oliveira Viana tinham a vantagem adicional deque no se resumiam a considerar o autoritarismo como forma ideal per-manente, mas apenas expediente transitrio. A experincia do EstadoNovo comprovara que a manuteno por prazos indefinidos do governoautoritrio tampouco assegura a estabilidade poltica.

    As doutrinas de Oliveira Viana tinham entretanto um defeito capi-tal: a subestimao dos institutos do sistema representativo, que no seuhorizonte intelectual pareciam resumir-se fracasada experinciabrasileira. Por isto, do conjunto da pregao de Rui Barbosa retiraria ap-enas o reconhecimento do papel do Poder Judicirio na implantao e con-solidao das liberdades civis (Instituies polticas brasileiras, Me-todologia do direito pblico. Cap. XII). Eximiu-se da tarefa de criticar oliberalismo brasileiro do perodo republicano luz da prpria doutrinaliberal em sua evoluo.

    36 Oliveira Viana

  • O que se perdeu na prtica liberal brasileira foi a doutrina darepresentao de interesses. Se os interesses so diferenciados, no setrata de averiguar tecnocraticamente, de forma centralizada, que interes-ses (mais explicitamente: de que segmentos sociais) vamos erigir em in-teresse nacional. Isto s possvel mediante a livre disputa entrefaces. Aos partidos polticos compete circunscrever a massa de interessesa reduzido nmero de vetores e, em nome destes, disputar a preferncia doeleitorado. No Brasil republicano, tudo se resume a Governo e Oposio.A pretexto dessa dicotomia acredita-se mesmo, em nossos dias, justificar-se uma aliana entre liberais e socialistas, sem que qualquer desses gruposesteja obrigado a formular as respectivas plataformas, formando-se ocaldo de cultura da indeterminao em que viceja o autoritarismo.

    A misso da intelectualidade no certamente sobrepor-se classepoltica e alimentar iluses quanto s virtualidades do iluminismo. Oprocesso histrico tem seu curso qualquer que seja o vigor da intelectuali-dade respectiva. A circunstncia no nos desobriga do esforo de recuperaras tradies culturais do pas, buscando tornar inteligveis as linhassegundo as quais se desenvolve o curso real. E, neste, a linhagem repre-sentada por Oliveira Viana voltou certamente a ocupar lugar de primeiroplano. Cumpre, assim, reconhecer que se trata de tradio das mais fortese arraigadas, remontando ao Marqus de Pombal. Corresponde, por-tanto, a uma das formas essenciais de nossa maneira de ser. Parecendoinsupervel, nosso voto seria no sentido de que o af modernizador secompletasse pela incorporao plena do iderio do sistema representativo,desde que corresponde maior realizao da humanidade no plano daconvivncia social.

    Rio de Janeiro, janeiro de 1982

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  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Prefcio da 2 Edio

    E ste livro entra, agora, em sua segunda edio. Esgotou-secedo e rapidamente: em pouco mais de dois meses. Para mim, sou foradoa confessar que teve um xito maior do que eu esperava. Livro em doisvolumes e de custo relativamente alto, tendo obtido uma sada to rpida, fato deveras significativo.

    Tanto mais quando eu havia bulido em duas casas de maribondo,com duas classes ou grupos extremamente suscetveis: o dos polticos, cujapsicologia tracei, dizem com pessimismo (o que, nem sempre, significa in-exatido); e o dos comunistas tericos, "marginalistas dos mais temerosos,porque, em grande parte, sinceros e obstinados no seu extremismo intoler-ante". Cada um deles, e todos, esto convencidos que so "homens deidias adiantadas" e so "espritos modernos e progressistas". Ningumos tira disto: zangam-se com facilidade e o seu tom , de regra, explosivoou contundente.

    Quanto aos polticos, estes silenciaram. Foram lgicos: adotaram amelhor ttica. O que mostra que so mais sagazes do que parecem, oupresumimos. Muitos deles, porm, quebraram o silncio convencionado e

  • vieram a mim, publicamente -- e com elevao -- dar o seu aplauso francoe integral.

    Quanto crtica, em geral, a acolhida do livro variou da merareferncia discreta e polida recepo franca, irrestrita, calorosa, com umaou outra nota discordante, aqui e ali (rarissimamente), revelando a intol-erncia j prevista. O mtodo, o zelo calculado das expresses, o lucidusordo, com que eu havia escrito o livro, impediu, principalmente, que lhedeturpassem o sentido das concluses. Eu havia negado francamente al-guns "mitos", secularmente radicados no ntimo da credulidade fcil dasnossas elites e do nosso impenitente idealismo utpico. Desfizera, comseveridade, luz da verdadeira histria, muitos erros ainda dominantes: emostrava que a histria destes "mitos" resume, afinal, a histria das nos-sas mistificaes polticas e doutrinrias. porque, no fim de tudo, anossa histria poltica pode bem ser definida como -- a histria dasevolues de um povo em torno de uma fico.

    Em suma, de modo geral, a acolhida do livro foi cordial, simptica, ex-pressiva, digna para com o autor e para com a obra criticada. Os crticos man-tiveram sempre um tom elevado de compreenso. Consagrados crticos publi-caram, mesmo, verdadeiros ensaios ou numerosos artigos, revelando grandeerudio e conhecimento profundo da obra do autor. Tais os ensaios crticos dePlnio Barreto e Wilson Martins, no Estado de So Paulo; ReginaldoNunes, no Jornal do Comrcio, do Rio, e Temstocles Linhares, que muitome surpreendeu, pela amplitude da viso crtica e pela cultura geral revelada.

    Esta nova edio sai quase sem alterao ao texto da primeira.Salvo quanto a alguns lapsos, que foram corrigidos, e bibliografia maisrecente, que foi acrescida. Devo declarar, de passagem, que, neste ponto,no me dou -- nem nunca me dei -- ao esporte fcil de fazer bibliografiasgerais dos livros citados e citveis. Os livros citados nestes volumes e nosdemais do autor sempre foram livros lidos e possudos -- e no colhidos decatlogos ou referncias sugeridas. Da as lacunas havidas e a razo demuitas falhas ocorridas na primeira edio, que agora foram corrigidas,tanto quanto possvel.

    40 Oliveira Viana

  • Agradeo a Afonso Taunay, o insigne autor da Histria dasBandeiras, meu nobre e ilustre confrade da Academia Brasileira de Le-tras e grande e generoso mestre, suas amveis corrigendas e observaes,que me fez em carta, logo atendidas, e tambm as que me fez AlbertoLamego, o mestre e historiador fluminense, autor da Terra Goitac,tantas vezes citada neste volume. Agradeo, tambm, ao corpo de revi-sores da Livraria Jos Olmpio Editora e ao meu dedicado secretrioHlio Benevides Palmier o muito que fizeram para melhorar a reviso eapresentao deste livro.

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  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Prefcio

    SUMRIO: -- I. Direito-lei e direito-costume. Conceito estritamente legal do direitoentre os juristas. II. Setores costumeiros do nosso direito. O nosso direito esportivo:suas regras e instituies. III. O direito costumeiro das nossas classes trabalhadoras eo seu reconhecimento oficial pelo Estado: origens costumeiras da nossa legislao so-cial. Setores do nosso direito trabalhista ainda no institucionalizados. IV. O setordo nosso direito pblico costumeiro: sua significao e importncia. Os problemas queencerra e a metodologia do seu estudo. V. O direito poltico costumeiro e a culturolo-gia do Estado. O objetivo deste livro.

    Os nossos juristas s reconhecemos direito quando na suatransubstanciao na lei, isto , na norma promulgada pelo Estado: o dire-ito a lei. Como Demolombe, o direito , para eles, o cdigo e, comoSaleilles, ao jurista no permitido ir alm do Cdigo, seno atravs doCdigo. Equivale dizer que se recusam a admitir a substncia de verdadeque h no mote recente de Del Vecchio: -- "O que est no Cdigo o dire-ito; mas, nem todo direito est no Cdigo."

    J disse alhures, em outro livro, estudando o problema das fontes do di-reito em face do pensamento jurdico moderno, como a cincia mostra o errodesta concepo e como ela insubsistente quando a confrontamos com asrevelaes trazidas pelas outras cincias da sociedade cincia do direito(1).

    Estas novas cincias sociais do, hoje, com efeito, um grande efundamental papel, na determinao das normas jurdicas, atividadeelaborada da prpria sociedade, espontaneamente desenvolvida fora eindependente da atividade tcnica dos corpos legislativos oficiais. O direito

  • que surge desta atividade espontnea da sociedade o direito-costume, odireito do povo-massa que as elites, em regra, desconhecem, ou mesmodesdenham conhecer, embora, s vezes, sejam obrigadas a reconhec-loe legaliz-lo -- a "anex-lo", como diria Gurvitch(2)

    Nos pases anglo-saxnicos, em que a tcnica legislativa consisteprincipalmente em buscar esse direito elaborado pela massa (commonlaw) para cristaliz-lo em leis (acts, statutes), esta "anexao" umprocesso normal na formao do direito legal. Nos pases, porm, comoo nosso, no regidos pelo direito costumeiro, no se d o mesmo -- o di-reito elaborado pelas elites, consubstanciado na lei e nos Cdigos, diferesensivelmente do direito elaborado pela sociedade, na sua atividadecriadora de normas e regras de conduta. Esta discordncia chegamesmo, s vezes, a incompatibilidades radicais, que acabam revogandoou anulando a lei, isto , a norma oficialmente promulgada.

    Em nosso povo, como veremos no correr deste livro, estas dis-cordncias entre o direito criado pela massa (costume) e o direito criadopelas elites (lei) so freqentes e quase normais -- principalmente nocampo do Direito constitucional(3) Outras vezes, deparamos todo umsistema vivo e atuante de normas obrigatrias, regendo largos setores dasociedade, classes ou categorias numerosas; mas, inteiramente descon-hecido pelo direito oficial, elaborado pelas elites polticas e univer-sitrias, que compem os corpos legislativos do Estado.

    II

    H, por exemplo, um largo setor do nosso direito privado que intei-ramente costumeiro, de pura criao popular, mas que obedecido como sefosse um direito codificado e sancionado pelo Estado. Quero me referir aodireito que chamo esportivo e que s agora comea a ser "anexado" peloEstado e reconhecido por lei(4). Este direito, cuja Charta (para empregaruma expresso de Malinowski) se estende pelo Brasil inteiro, de autnticarealizao popular e aplicado com um rigor que muito direito escrito nopossui. Organizou instituies suas, peculiares, que velam pela regularidade eexao dos seus preceitos. Tem uma organizao tambm prpria -- declubes, sindicatos, federaes, confederaes, cada qual com adminis-

    44 Oliveira Viana

  • trao regular, de tipo eletivo e democrtico; e um Cdigo Penal seu,com a sua justia vigilante e os seus recursos, agravos e apelaes, obe-decidos uns e outros, na sua atividade legislativa ou repressiva, como setivessem ao seu lado o poder do Estado. Direito vivo, pois.

    Dominados pela preocupao do direito escrito e no vendo nadamais alm da lei, os nossos juristas esquecem este vasto submundo do dire-ito costumeiro do nosso povo, de cuja capacidade criadora o direito espor-tivo um dos mais belos exemplos. Criadora e organizadora -- porque osistema de instituies sociais que servem aos esportes, sadas do seio do povo-- da massa urbana, como uma emanao sua -- traz impressa a sua marca in-delvel e oferece um aspecto de esplndida sistematizao institucional.

    III

    Outro setor costumeiro, cujo descobrimento foi para mim umaverdadeira surpresa, o do nosso direito social operrio. Dei com esta camada,ou esta subestrutura jurdica popular, quando -- como consultor jurdico doMinistrio do Trabalho, no ministeriado do Sr. Salgado Filho, em cujagesto foram lanados os primeiros fundamentos legais do novo direito so-cial, que tanto nos honra hoje -- tive que presidir, pela natureza das funesque ali exercia, algumas das inmeras comisses constitudas por aqueleministro para a regulamentao dos horrios de trabalho das nossas diversasatividades profissionais; -- e o que deparamos, os meus companheiros e eu,foi todo um complexo de normas e regras, militante, vivaz, estuante de vida esangue, objetivando em usos, tradies, praxes, costumes, mesmo instituies adminis-trativas oficiosas. Era todo um vasto sistema, que regulava as atividades dasobscuras massas do trabalho, a vida produtiva de milhes de brasileiros, mascuja existncia os nossos legisladores no haviam sequer pressuposto. Sistemaorgnico de normas fluidas, ainda no cristalizadas ou ossificadas em cdigos;mas, todas provindas da capacidade criadora e da espontaneidade organizadorado nosso prprio povo-massa, na sua mais autntica expresso.

    Nada quero dizer do que deparamos sob este aspecto, no setor dasatividades do comrcio urbano, principalmente do pequeno comrcio, nem nolargo setor das atividades industriais, relativamente recente, alis. Digo apenasque as "revelaes" mais originais e impressionantes deste direito latente no nos

    Instituies Polticas Brasileiras 45

  • vieram destes setores e, sim, do que descobrimos no setor, velho dequatro sculos, do trabalho martimo e da estiva.

    Estas duas atividades fomam duas classes trabalhadoras con-siderveis do Brasil. Embora no sejam as mais numerosas, so cer-tamente, dentre as classes trabalhadoras do Brasil, aquelas cuja estruturajurdica consuetudinria mais rica de normas, praxes, tradies e cos-tumes peculiares, as que possuem a maior trama de princpios reguladores,todos de pura criao sua trazendo a marca ecolgica, por assim dizer, daterra e da massa que as compem. No s pela florescncia de usos e nor-mas peculiares que elas se fazem notveis; mas, tambm, pelas instituies so-ciais que criaram para servir exao destas normas e tradies: asso-ciaes de beneficncia, sindicatos, "Resistncias" poderosas e, at hbem pouco, onipotentes -- diante das quais a prpria polcia do Rio edos portos diversos do pas recuavam ou contemporizavam, tomadas dereceio.

    Pois bem. Na elaborao dos diversos regulamentos de durao detrabalho -- que ns, os chamados "tcnicos do Ministrio" redigimos eque acabaram incorporando-se Consolidao das Leis do Trabalho, oravigente -- foram estes costumes do povo-massa que passaram para lei. Onosso labor foi antes o de dar tcnica legislativa e sistematizao a esse dire-ito costumeiro encontrado, a esse complexo de normas e costumes, que noshavia sido "revelado" e que regulava -- pelo nico prestgio da tradio e docostume -- a atividade dos nossos trabalhadores e as suas relaes com o pa-tronato. O mrito dos tcnicos do Ministrio, que presidiram as comisseselaboradoras dos anteprojetos, foi antes de sistematizao de um direito j ex-istente do que propriamente da criao de um direito novo.

    O Ministro Salgado Filho, compreendendo com inteligncia a si-tuao, havia constitudo comisses compostas s de representantes dasduas classes interessadas -- empregados e empregadores; mas, as fizerapresididas por um representante do Ministrio do Trabalho -- um "tc-nico", como ento se dizia, cuja funo era principalmente dar forma le-gal e sistematizada ganga bruta, mas viva e radioativa, que nos vinha smos, elaborada grosseiramente pelos leigos representantes das classesinteressadas, a quem havamos confiado, intencionalmente, a preparaodas primeiras bases da futura legislao (anteprojetos).

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  • O nosso direito do trabalho, nos Regulamentos numerosos queforam promulgados, era, assim, o nosso direito costumeiro, elaboradopela atividade normativa das prprias massas trabalhadoras(5).

    Por isto mesmo, no h maior injustia do que a afirmao, que costume fazer-se, de que esta legislao uma legislao plagiada, oucopiada, ou imitada das legislaes estrangeiras. Contesto esta afirmaotendenciosa e disto dou o meu testemunho pessoal, com a autoridade dequem viu de perto e co-participou da elaborao da copiosa legislaosocial daquela poca, agora codificada na Consolidao das Leis do Trabalho.Nem mesmo a legislao sindical, cujo impulso veio de fora, deixou de obe-decer a esta metodologia objetiva -- de sondagem direta s subcamadas denossa vida social e jurdica, antes da sua transubstanciao na lei(6). E istosomente no que concerne ao comrcio e s outras profisses urbanas.

    No quero falar do direito costumeiro que regula as relaes dotrabalho das populaes pescadoras, que povoam os nossos litorais -- lacus-tres, fluviais e martimos. Estas populaes devem ter elaboradoforosamente um direito costumeiro seu -- semelhana do elaboradopelos porturios e martimos. No direi que o tenham feito os nossosgrupos piraquaras (fluviais e lacustres), que praticam a pesca mida, depequeno raio, de pura subsistncia (exceto talvez os grupos dissemi-nados nas margens do Amazonas, que pescam e comerciam o peixe-boi,a tartaruga e o pirarucu); mas, o tero por certo os grupos do litoralmartimo, que praticam a pesca em alto-mar -- como os jangadeiros nor-destinos e os baleeiros baianos(7). Estes pequenos ncleos de caiarasdeve ter organizado um sistema de praxes, usos, costumes, regulando assuas relaes recprocas e com o patronato ou os compradores. possvel que neste sistema descubramos muitos traos talvez deixadospelos antigos "poveiros" -- pescadores portugueses de alto-mar, ruivos eossudos, que se distribuam por toda a costa brasileira, com as suas cha-lanas tpicas, vivendo como que acampados nas nossas praias e desta-cando-se da nossa gente pelas suas maneiras e tipo fsico inconfundveis-- como tive ocasio de observar na marinha da minha terra.

    Estes "poveiros" desapareceram com a lei de nacionalizao dospescadores; nacionalizados, ficaram afundidos nas nossas "colnias" depesca. Deviam ter trazido, porm, para a nossa terra o seu florido eoriginalssimo direito costumeiro -- com os seus usos, tradies, regras

    Instituies Polticas Brasileiras 47

  • e instituies, que lhes regulam a atividade nos litorais lusitanos e de queSantos Graa nos deu uma to viva e saborosa descrio, ainda h bempouco(8).

    IV

    Devo observar que, antes de me lanar nos estudos do direito trabal-hista, de 1932 at 1940 (o que me levou, por imposies das minhasprprias funes consultivas, ao setor das nossas tradies e costumes espor-tivos), eu j havia deparado, desde 1920, com uma outra camada donosso direito costumeiro, tambm inexplorada e cuja sondagem fui, noBrasil, o primeiro a realizar: a camada do nosso direito pblico, consti-tucional e administrativo, elaborado -- como o direito social dos martimos eporturios e o direito esportivo do remo e do atletismo -- tambm pelaatividade e espontaneidade criadora do nosso povo-massa. Do nossopovo-massa, j agora no mais dos centros urbanos da costa e do planalto;mas, do povo-massa das regies rurais do pas, habitante da sua amplssimahinterlndia, fora da rea metropolitana das capitais estaduais e dacapital fluminense.

    Esta ltima -- centro da Nao e sede da grande elite nacional -- , sobeste aspecto, foco ativssimo de uma irradiao cultural, de grande poder di-fusivo, sem dvida; mas, esta cultura da elite muita distinta, neste ponto, dacultura real e viva do nosso povo-massa do interior (sertes, matas, planaltos,pampas do sul). Populaes Meridionais (1 e 2 volumes); Pequenos estudos;Problemas de poltica objetiva; O idealismo da Constituio e O Ocaso do Imprio reve-laram e exprimiram os meus esforos despendidos, nestas sondagensparciais, neste setor -- e, com a sntese dos resultados obtidos, deram arevelao de um conflito patente entre esta cultura das elites metropolitanase a cultura poltica da nossa enorme massa rural, que quase toda a Nao.

    Este livro de agora e o que lhe seguir imediatamente (Metodologia dodireito pblico) completam e rematam os resultados finais destas minhas pes-quisas e destas escavaes nas camadas profundas da histria, e tambm daproto-histria, das nossas instituies de direito pblico. E com eles esperoencerrar os meus estudos sobre a sociologia das instituies polticas dopovo brasileiro, que iniciei com Populaes. Passarei daqui por diante a con-

    48 Oliveira Viana

  • sagrar-me ao estudo da nossa formao econmica e da nossa formaoracial.

    Nestes dois volumes, que versam sobre a sociologia e metodologiado direito constitucional no Brasil, procuro, com efeito, debater e es-clarecer, de maneira objetiva, trs temas da nossa publicista, que con-sidero principais. Estes trs temas so:

    1) Na vida poltica do nosso povo, h um direito pblico elaborado pelas elitese que se acha concretizado na Constituio.

    2) Este direito pblico, elaborado pelas elites, est em divergncia com o direitopblico elaborado pelo povo-massa e, no conflito aberto por esta divergncia, o direitodo povo-massa que tem prevalecido, praticamente.

    3) Toda a dramaticidade da nossa histria poltica est no esforo improfcuo daselites para obrigar o povo-massa a praticar este direito por elas elaborado, mas que o povo-massa desconhece e a que se recusa obedecer.

    O meu objetivo ser pois, neste e no volume imediato, estudar onosso direito pblico e constitucional exclusivamente luz dos mod-ernos critrios da cincia jurdica e da cincia poltica: isto , comoum fato de comportamento humano. Dentro desse critrio, os problemas dereformas de regime convertem-se em problemas de mudana de comportamentocoletivo, imposto ao povo-massa; portanto em problemas de cultura e de culturologiaaplicada.

    V

    Emprego esta palavra "cultura" no seu sentido etnogrfico; mas,com certa relutncia. Primeiro, pela confuso que em nossa lngua trazesta palavra com cultura intelectual; segundo, porque representa umatraduo imperfeita da expresso original alem: kultur.

    Em alemo kultur significa, realmente, o conceito etnogrficoque hoje damos expresso "cultura" e no se confundiria nuncacom a cultura intelectual, que tem outras palavras naquela lnguapara exprimi-la. Por sua vez, o termo culture, da lngua inglesa --com que os antropologistas modernos traduzem a kultur alem --exprime, sem dvida, conceito mais prximo da expresso origi-nal dos alemes. No ocorre o mesmo, porm, na lngua por-tuguesa, em que a palavra cultura nunca teve sentido da kultur alem

    Instituies Polticas Brasileiras 49

  • nem exatamente o da culture inglesa -- e sempre significou, estritamente, acultura intelectual. O ideal seria encontrarmos uma outra palavra paraexprimir este complexo conceito cientfico; talvez, buscada nas inesgotveismatrizes gregas.

    Quando comecei o estudo das populaes brasileiras, a palavra"cultura" no estava ainda na voga, que s agora possui, atravs dasociologia americana e dos seus expositores. Certo, ela j era correnteentre os pensadores e etnlogos alemes, desde 1911, com os trabalhosde Graebner e Schmidt; mas, s se generalizou, conforme observa Imbel-loni, com a obra de Spengler, em 1918, ou mais exatamente, em 1922, de-pois da traduo de Atkinson para a lngua inglesa(9).

    O fenmeno sociolgico, hoje compendiado e expresso na palavracultura, era j conhecido do mundo latino, atravs da escola de sociologiafrancesa, chefiada por Emlio Durkheim. Era, porm, indicado por ou-tros nomes, rotulado com outras insgnias, conforme as escolas ou osmestres seguidos: ora "meio social"; ora "antecedentes histricos"; ora"condies etnogrficas"; ora "representaes coletivas", etc. Descrev-lo para o Brasil, nos seus aspectos jurdico-polticos, foi justamente oobjetivo de Populaes meridionais.

    Para indicarem o mesmo fenmeno da escola durkheimiana, osalemes -- desde Ratzel, desde Schmidt, desde Bastian, mesmo desdeLazarus e Steinthal -- j usavam a palavra "cultura"; mas, s os ameri-canos a difundiram pelo mundo com o labor prodigioso das suas uni-versidades e dos seus ativssimos centros de pesquisas sociais. Os par-tidrios da escola de Le Play o chamam de "meio social" ou "formaosocial"(10)e os franceses, em geral, do ao seu estudo o nome de "et-nografia", a que um outro socilogo, Gaston Duprat, props o de"etologia" ou "cincia dos costumes". Hoje, a palavra cultura substitui to-das estas expresses e encerra um conceito global, sinttico, que nospermite exprimir toda a complexidade do fenmeno, sem os circun-lquios, alguns inexpressivos, das escolas anteriores.

    Nunca empreguei esta expresso seno agora. que, dominado,literariamente, pela preocupao do lucidus ordo cartesiano, sempre fugi,por sistema, nos meus escritos, s expresses demasiadamente tcnicas,s acessveis a mestres, a profissionais ou a iniciados, ou ainda no in-corporadas quela "lngua franca" da cincia, de que nos fala Linton.

    50 Oliveira Viana

  • Posso agora, porm, faz-lo sem este receio, pois que j temos em ln-gua portuguesa obras que me permitem usar esta expresso com acerteza de que ela poder ser entendida pelos leigos no seu cientficoconceito. Refiro-me ao tratado do professor Ralph Linton -- Introduo antropologia social e ao livro recente do professor Donald Pierson sobreTeoria e pesquisa em sociologia (11). No deixarei tambm de referir-me,como utilssimo instrumento auxiliar para a compreenso da tecnologiaculturolgica, ao Dicionrio de Etnologia dos professores Baldus e Willems,bem como aos estudos e anlises da revista paulista Sociologia(12).

    Estas obras permitem ao leitor brasileiro compreender o inteirosignificado da palavra cultura, bem como o de culturologia -- expresso fe-liz que, para denominar a "antropologia social" dos americanos, propso professor Imbelloni, de Buenos Aires. Isto no impede que recon-heamos, apesar de tudo, que a palavra cultura, no sentido sociolgicoque hoje se lhe d, oferece sempre o perigo, em nossa lngua, da con-fuso com a cultura intelectual -- e este foi o grande embarao que en-controu Fernando de Azevedo na elaborao do seu belo livro(13).

    Devo confessar que, quanto culturologia do Estado, parece-mematria que os etnlogos tm descurado. Constitui mesmo tpico ligeira-mente explorado e pouco observado pelos investigadores. Pelo menos,no encontrei sobre ele quase nada nos tratados de etnologia que conheo.

    Dir-se- que assunto de pouco interesse para eles, ao que parece.Vivem todos preocupados com tipos de famlia, organizaes parentaise tribais, sistemas de cls matrilineares e patrilineares, e tcnicas fabris, ecostumes, e folclores, e ritos religiosos e mgicos. Da culturologia do Estados encontrei algo em Radin -- Social anthropology, em Carleton Coon e Chap-ple -- Principles of anthropology e na obra clssica de Goldenweiser; tudoporm, ainda assim, ligeiramente tratado(14). Fora da, quase nada: nemem Montandon, nem em Wissler, nem em Benedict, nem em Lowie.

    Nos tratados destes mestres, embora de carter geral, estas insti-tuies sociais, to importantes, no so, porm, estudadas com a lar-gueza que merecem. Tento agora estud-las no Brasil, luz destescritrios, e reconfirmando idias anteriores, desenvolvidas desde 1920 --desde Populaes. E da este livro.

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  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Primeira Parte

    Cultura e Direito

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Captulo IDireito, Cultura e Comportamento Social

    SUMRIO: -- I. Metodologia das cincias jurdicas e sociais. Classificao de Jacob-senn e sua aplicao no Brasil. O mtodo objetivo e os nossos juristas. II. O mtodosociolgico: seus caractersticos; a sua importncia atual na investigao do fenmenojurdico. As novas escolas francesa e americana de exegese e jurisprudncia: osresultados; tendncia objetividade cientfica. III. O direito como fenmeno de cul-tura e o direito como problema de tecnologia legal. Tendncia atual interpenetraodas cincias do direito e das cincias sociais. IV-V. O direito como um problemade comportamento: conceito de Huntington Cairns. Distino entre o direito-cos-tume e o direito-lei. Posio do problema em face da Culturologia.

    Hence to have had to develop a philosophical jurisprudence and a sociological jurisprudence. Wecall on philosophy, ethics, politics and sociology to help, but to help in what are regarded as problems ofjurisprudence. We study law in all of its senses as much specialized phase of what, in a larger view, is ascience of society.

    ROSCOE POUND

    Oito so os mtodos enumerados por Jacobsenn comoutilizveis nos estudos da Cincia Poltica, do Direito Pblico e das insti-tuies do Estado -- o mtodo histrico, o mtodo comparativo, o mtodofilosfico, o mtodo experimental, o mtodo biolgico, o mtodo sociolgico, omtodo psicolgico e o mtodo jurstico ou legstico.

    I

  • Dentre estes oito mtodos os nossos publicistas, realmente, notm, desde 1822, empregado seno um deles, este ltimo: o mtodo legstico.Este mtodo -- esclarece Jacobsenn -- v a sociedade poltica apenascomo uma coleo de direitos e obrigaes expressos em lei e tende ano levar em conta as foras sociais e extralegais, sem as quais, entre-tanto, no seria possvel nenhuma explicao que corresponda aos fatosda vida do Estado: "without which and explanation corresponding tofacts of the State life is not possible"(1).

    Os outros mtodos no tm tido, entre os nossos juristas e publi-cistas, nenhuma utilizao, nenhuma interferncia na compreenso dosnossos problemas de construo do Estado e de exegese constitucional.Quando muito, um ou outro escritor ala-se a um plano de consideraesgerais, expendendo os vagos lineamentos de uma filosofia do Estado edas suas funes -- e julga com isto que est aplicando o mtodo filosfico.

    O mtodo comparativo, por sua vez, tem sido aplicado de uma maneiramuito limitada, porque exclusivamente como um mero confronto detextos de direito formal, artigos de Constituies e leis orgnicas -- e istode modo puramente gramatical e hermenutico. O mtodo c