viajante paul marcoy
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Revisitando Paul Marcoy em sua passagem pelo Amazonas:
viajantes naturalistas e a vulgarização científica no século XIX
James Roberto Silva
1
ANPUH-SP Franca-SP 2010
ST Ciência e Tecnologia: História, Educação e Institucionalização
As inquietações que motivaram este trabalho o inscrevem em dois campos de
preocupações. O primeiro é o das representações visuais produzidas no interior das
atividades científicas e o segundo daqueles que se ocupam da divulgação científica ou,
melhor dizendo, da vulgarização da ciência. Um célebre viajante francês, tendo
atravessado a Amazônia peruana e brasileira, entre os anos de 1846 e 1847, deixou seus
relatos inscritos num ainda mais célebre veículo de difusão de viagens, realizadas,
mundo afora, por homens destemidos, alguns naturalistas, outros apenas narradores
hábeis, mas, sempre, ambas as espécies de viajantes carregando consigo um interesse
etnográfico agudo pelas populações com que cruzavam, pelo modo como se
relacionavam com o meio envolvente e pela paisagem, natural ou modificada, selvagem
ou urbana.
Nas suas viagens pela grande floresta amazônica, os naturalistas se viam
tomados pelo desejo e pelo dever de captar o maior número de eventos, características e
informações sobre os lugares por que passavam. É compreensível que sua tarefa fosse
esta, sobretudo se considerarmos que o contexto oitocentista favorecia os procedimentos
científicos apoiados no colecionismo, na atenção especialmente voltada para a diferença
e para a exceção, na taxonomia do mundo natural, na inventariação dos tipos humanos.
Tudo isto se combinava bem numa época marcada pelo neo-colonialismo, que
estabelecia os novos domínios das nações européias sobre o mundo.
Naturalistas europeus, dedicados a todas as especialidades científicas de então,
atravessaram o mundo, percorrendo cada palmo dos continentes africano e asiático, a
Oceania e, evidentemente, as Américas. Nem a própria Europa escapava da curiosidade
etnográfica dos cientistas, cujas expedições à Romênia ou mesmo a Portugal rendiam
1
Professor do Departamento de História da UFAM e pesquisador do POLIS. A realização deste trabalho
contou com os recursos da FAPEAM. 2
matérias de puro estranhamento antropológico diante da cultura alheia (cf. E. Charton,
Prefácio do Le tour du Monde, vol. 1, 1860).
O célebre viajante francês de que falei há pouco foi Laurent Saint-Cricq, mais
conhecido pelo pseudônimo de Paul Marcoy, nascido, em 1815, em Bordeaux, onde
também morreu, em 1888, antes de completar 73 anos. Ele foi um dos mais de cem
viajantes que tiveram o relato de suas explorações registrado no famoso magazine
francês Le tour du monde.
Sua inclinação pelas belas artes e seu interesse pelo jornalismo e pela
antropologia não foram o bastante, na consideração de seus críticos, para que ele tivesse
reconhecimento como homem de ciência. É verdade que seus relatos foram ignorados
por alguns compiladores de cientistas que passaram pela Amazônia, que insistiram em
não considerar como científicas as observações feitas pelo viajante francês. Posso citar
dois casos desse tipo. Um é o balanço feito por João Pacheco de Oliveira, em 1987,
sobre os naturalistas que estiveram em território amazônico, intitulado “Elementos para
uma sociologia dos viajantes”. Outro caso é o da obra de Antonio Raimondi, que, em
sua Historia de la Geografía del Perú, de 1879, nega a Paul Marcoy o status de
cientista e ainda o acusa de “falsa literatura” (Chaumeil 1994: 274).
É bem possível que Paul Marcoy trouxesse consigo algo do que, para os
franceses, desde o século XVII, caracterizava o voyageur. Da definição do senso
comum, de voyageur-menteur, passou a significar, como irá constar no Dictionnaire
françois contenant les mots et les choses, de Richelet (1680), aquele que viajava por
pura curiosidade com a finalidade de travar relação com outras pessoas, o que dá a
entender que essa atividade permitia certa licença poética. No século seguinte, a
Enciclipédia de Diderot lhe dará um sentido mais preciso e menos degradante. A
viagem serve ao viajante para que este “melhor conheça e examine os modos e os
costumes, o espírito das outras nações, o gosto dominante, suas artes, suas ciências, suas
manufaturas e seu comércio” (cf. Ferrière 2009).
No entanto, Paul Marcoy não mereceu o descrédito de todos, como aconteceu na
Société de Géographie (cf. Gallois 1892:80). Em outros circuitos acadêmicos, os seus
relatos eram mesmo citados como uma referência ao se tratar de conhecimentos sobre a
América andina. É o que se presenciou, por exemplo, na sessão de 21 de outubro de
1875 da Sociedade de Antropologia de Paris, em que Marcoy foi lembrado por suas
observações a respeito do peculiar formato do crânio dos índios Aymara (Dally
1875:504).3
De todo modo, não foram as sociedades científicas que fizeram de Paul Marcoy
um viajante tão notório. A despeito até de acusações de ser plagiador e falseador de
informações (Gallois 1892:80), seus relatos e suas impressões foram significativamente
retomados na literatura francófona, cujo exemplo mais explícito foi o romance ficcional
de Júlio Verne, A jangada (1881), que o cita direta e copiosamente. A marca deixada na
literatura por essas narrativas dos cientistas foi tão expressiva que há quem considere o
relato de viagem científica do século XIX como o “arquétipo poético de todos os outros
gêneros de viagem”. Assim pensa, por exemplo, a professora de literatura comparada
Anne-Gaëlle Weber, da Universidade de Lille-Artois, para quem o vazamento do estilo
exigiu por parte dos acadêmicos um esforço em criar regras próprias para a escrita
científica.
Júlio Verne nunca esteve no Brasil, muito menos na Amazônia, como Michel
Riaudel (1992) fez questão de enfatizar em um artigo sobre o ficcionista francês e as
fontes de sua inspiração. No entanto, Júlio Verne leu avidamente o Le tour du monde,
revista na qual Paul Marcoy teve publicadas as narrativas de sua longa viagem do
oceano Pacífico ao oceano Atlântico, que durou de 1846 a 1847.
Em Le tour du monde, o leitor tinha alcance às mais diversas aventuras vividas
por geógrafos e geólogos, etnógrafos, engenheiros, topógrafos, naturalistas, médicos em
suas expedições por várias regiões do mundo, em busca, quase sempre, do exótico,
difundindo, dessa forma, por meio de um discurso que se apresentava como científico,
uma visão de mundo construída por experiências passageiras, como eram as viagens. E
as viagens, por definição, deviam ser rápidas, como constava no Dictionnaire des idées
reçues, que Flaubert compilou a partir das opiniões do senso comum de sua época.
Para esse período, marcado pelas exposições universais e pela confiança
desmesurada na ciência e na técnica, período este que ficou também conhecido como “a
era de ouro da vulgarização científica”, o Le tour du monde foi emblemático desse tipo
de publicação. Tais edições se notabilizaram em vulgarizar, especialmente para a
Europa e sob o signo da observação científica, vistas em gravura de paisagens, cidades,
animais e tipos humanos, do próprio continente e de outras partes do mundo,
representando uma espécie de bilhete de viagem para todos aqueles que ainda não
tinham, no turismo, o modo de explorar o mundo com seus próprios sentidos. Em suas
páginas, como disse Annie Lagarde, estudiosa da difusão da informação científica, a
“ciência e a técnica passaram do estatuto de ‘conhecimentos úteis’ ao de ‘boa literatura’,
recomendada à juventude e ao povo” em geral (2009). De resto, edições como o Le tour 4
du monde, que teve congêneres como o La Nature de Tissandier (1873), sucedem a
experiências precedentes de difusão de conhecimentos promovidas tanto por uma
tradição enciclopédista, caso do Magasin pittoresque (1833), concebido por Édouard
Charton, como por figuras proeminentes, como o então deputado François Arago,
grande responsável também pela divulgação de inventos e inovações técnicas, como fez
com a fotografia.
A febre de viagens fez com que a segunda metade do século XIX fosse um
momento muito afortunado para as casas editoriais que partiram para a exploração das
narrativas de viajantes. A editora Hachette foi uma delas, com sede em Paris, mas com
representantes em Leipzig e em Londres. Além de Le tour du monde, publicou também,
a partir de 1864, a Bibliothèque des merveilles, inspirada no sucesso de sua precedente.
Fora da França, o movimento também foi expressivo, como conta o crítico literário
canadense, Pierre Rajotte (1998), segundo o qual algo como 160 relatos haviam sido
publicados, somente no Quebec, entre 1850 e 1900.
A primeira edição do Le tour du monde é desse período. O fascículo inaugural
veio a público em 1860, e, nos 30 ou 40 anos seguintes, prosseguiu participando da
formação do imaginário de pelo menos duas gerações de pessoas, na Europa e alhures.
Seu primeiro volume contou com relatos de viajantes que percorreram a África do Sul, a
Albânia, Montenegro, a Argentina, a Herzegovina e o litoral do Mar Cáspio no
Cáucaso. As últimas aventuras de cientistas estampadas em suas páginas, em 1909,
deixaram relatos sobre China, Nápoles, Grécia, México e Nova Caledônia.
Os primeiros relatos de viajantes que estiveram no Brasil, apareceram já no
segundo ano, em 1861, no fascículo de número 4. Eram as histórias contadas por
Auguste Biard, em suas passagens por Rio de Janeiro, Minas Gerais e Amazonas em
1858-1859, com textos e desenhos inéditos.
A longa travessia de Paul Marcoy, iniciada no Peru, veio a público, pelo Le tour
du monde, pela primeira vez, em 1862, com o título “Voyage de l'océan Atlantique à
l'océan Pacifique à travers l'Amérique du sud, 1848-1860”. Publicado em 10 fascículos,
entre 1862 e 1867, o primeiro iniciou pelo trecho que ia da província de Islaý, na costa
peruana, até Arequipa. O percurso compreendendo o território brasileiro só veio a
aparecer em 1867, nos volumes 15 e 16, sempre sob o mesmo título. Dois contra-sensos
acompanharam todas as edições dos relatos de Paul Marcoy. Um deles, relativo ao
título, que indicava o sentido da viagem, do Atlântico para o Pacífico, contrário àquele
que foi realmente feito, pois o viajante partiu da costa do Peru para chegar a Belém. O 5
outro insólito referia-se às datas, impressas 1848-1860, quando o trajeto foi cumprido
em pouco mais de um ano, de 1846 para 1847. Em 1869, apenas dois anos após a
publicação do último fascículo, a editora Hachette deu grande destaque à saga de Paul
Marcoy, reunindo tudo em dois grandes volumes, de cerca de 500 páginas cada um,
com mais de 600 gravuras desenhadas pelo célebre Riou, e, desta vez, corrigindo uma
das imprecisões anteriores: mudou o título para Viagem através da América do Sul, do
oceano Pacífico ao oceano Atlântico
2
Deixou, porém, de estampar o período em que .
foi realizada.
Boa parte dessa viagem se deu em território brasileiro, descendo os rios
Solimões e Amazonas até encontrar o Atlântico, na foz do rio Guajará, em Belém. A
entrada na Amazônia brasileira foi feita pelas águas do rio Solimões, que banham o
município de Tabatinga, cidade fronteiriça que limita o Brasil, a Noroeste, com o Peru e
com a Colômbia. Desde lá, Paul Marcoy veio fazendo descrições do rio, das matas, dos
povoados e das populações que aí encontrava. Seu poder descritivo se apóia muito no
texto, ao qual ele procura conferir um sabor pitoresco, buscando com freqüência jogar
luz sobre aspectos destoantes, sobre atributos que permitam ajuizar acerca do lugar ou
da população de uma comunidade ou de uma etnia. E em combinação com o texto, as
imagens jogam um papel muito importante na caracterização do mundo exterior tal qual
Paul Marcoy conseguiu enxergá-lo.
Nas narrativas deixadas por Marcoy, ressalta sua forma livre de cuidados
acadêmicos de se expressar acerca do mundo natural quando tinha que descrevê-lo, sem
querer esconder sua inegável atração pelo novo e pelo exótico. Ao contrário dos
naturalistas de gabinete, um viajante experimentado como Marcoy realizava o sonho do
conhecimento empírico e justamente essa possibilidade é que conferia aos seus relatos
um sabor muito particular.
Ao chegar à parte brasileira da região Amazônica, ele percorreu inúmeras
localidades, passando por Tabatinga e São Paulo de Olivença, visitou ilhas e praias dos
Solimões, roçou o rio Tocantins, esteve na foz do Jutaí e do Purus, conferiu parte do
curso do Juruá, aportou em Fonte Boa, em Caiçara, Tefé, Coari, Manacapuru, até
alcançar Manaus. A lista poderia se estender até Belém, mas essa amostra nos dá uma
boa idéia da amplitude que o olhar desses homens ganhava, pela possibilidade de
2
Voyage à travers l'Amérique du sud de l'océan Pacifique à l'océan Atlantique. Paris :
Hachette, 1869. 626 il.6
comparar, de se certificar quando retornavam aos locais, de exercitar a arte da
descrição.
Em cada um esses lugares, Paul Marcoy desempenhou um conjunto de
atividades, com observações e descrições etnográficas e paisagísticas reunidas em
Viagem pelo Rio Amazonas, versão resumida, para o idioma português, da obra
publicada em 1869 pela Hachette. Nessa edição, Antonio Porro, o prefaciador da obra,
chamou a atenção para a importância das observações do viajante. Diz ele:
Suas descrições etnográficas são cuidadosas e, hoje, muito úteis, especialmente,
no trecho brasileiro, em relação aos Tikuna, Omagua, Miranha, Mesaya e Mura.
A par delas, de uma perspectiva humanística e em última instância
antropológica, merecem elogio suas observações, freqüentemente irônicas mas
sempre permeadas de preocupação social e profunda solidariedade humana,
sobre as condições de vida da população indígena, cabocla e negra da Amazônia.
(Porro/Marcoy 2001:11-12)
Quando lemos as descrições de Paul Marcoy, temos, a despeito desse
comentário, a nítida impressão de que sua escrita se ampara mais no lirismo literário
que na objetividade científica. Segundo suas descrições, ele teria presenciado
admiráveis belezas naturais em sua viagem pelo Rio Amazonas, como narra agora:
Saindo de Fonte Boa ao meio dia, chegamos de noite á boca do Juruá e
acampamos. Na manhã seguinte, por volta das seis, fomos inspecionar o rio.
Suas margens estavam cobertas de uma brilhante vegetação com tons de rosa e
lilás. Uma luminosidade prateada banhava no horizonte a margem do rio, cuja
superfície estava levemente franzida por um vento suave de nordeste. Grandes
golfinhos executavam acrobacias surpreendentes ao nosso redor. (Marcoy
2001:00)
Trata-se de uma descrição que se permite a manifestação das impressões
subjetivas que o autor empresta à natureza ao descrevê-la: o “vento suave do nordeste”,
“acrobacias surpreendentes”; ou realça aspectos de apelo sensorial, como as cores:
“vegetação com tons de rosa e lilás”, “uma luminosidade prateada”.
Paul Marcoy nos parece um bom exemplo das formas como a experiência
sensorial pode afetar a percepção visual humana. É do que fala Michael Baxandall
(1991) em seu livro sobre a atuação da percepção na produção pictórica renascentista.
Ele defende que as capacidades visuais desenvolvidas ao longo das experiências da vida 7
cotidiana tornam-se parte determinante do estilo do pintor e ligam as representações em
pintura à vida social, religiosa e comercial de sua época.
Combinando uma cultura visual com a propensão científica, Paul Marcoy
confirma essa característica tanto nas manifestações iconográficas a que dá origem com
seus croquis, quanto na sua prosa. Defensor do poligenismo (Chaumeil 1994:276) como
explicação para a origem do homem e, ao mesmo tempo, do difusionismo cultural,
Marcoy procedeu sistematicamente à separação do elemento humano do meio
circundante quando tratou de representar o ambiente da Amazônia brasileira. Tanto as
descrições textuais quanto as gravuras isolavam um do outro homem e natureza. Há um
cuidado notável em apresentar os indígenas em sua condição de representantes de uma
etnia específica (figuras 1 e 2).
Não tendo formação em zoologia, Marcoy praticamente não produziu gravuras
de animais, assim como foram poucas suas referências textuais a eles. Mas, seja como
for, Marcoy deu um tratamento biologizante para os tipos humanos que encontrou,
assim como o fez, posteriormente, um outro viajante, o naturalista Henry Bates (1864),
este, porém demonstrando inclinação para os pássaros, os mamíferos e os insetos, os
quais também representou como espécimes isoladas do contexto, em lugar de abordá-las
em paisagens inteiras em suas gravuras (figuras3 e 4).
Durante o seu trajeto, Paul Marcoy deu-se o direito de fazer longas paradas. A
então pequena vila de Tefé, foi, durante quinze dias, estadia para o viajante. Ele fez
desse lugar um de seus campos de pesquisa e dedicou parte de seus escritos a descrever
o local e suas características. Curiosamente, apesar da permanência dilatada, ele não
dedicou mais que uma gravura apenas a Tefé, dando descrição sucinta e geral do lugar.
Como costumava fazer, os seus desenhos dos lugares aonde chegava reproduziam,
sistematicamente, uma vista a partir de fora (figura 5). Mais estranho ainda se
considerarmos que Tefé possuía edificações de maior gabarito, como o sobrado visto à
direita na gravura (figura 6), só encontradas novamente em Manaus.
Paul Marcoy praticava uma relação de distanciamento para com seus observados,
diferente daquela que tiveram o casal de viajantes Louis e Elizabeth Agazziz (1868),
que, da mesma vila, produziram, vinte anos depois, uma vista em plano semi-aberto,
apresentando em destaque alguns casebres e, no plano do horizonte, o rio e algumas
embarcações (figura 7).
Sobre a vila de Tefé, Paul Marcoy relata que ela consistia de sessenta casas
“alinhadas de frente para o lago, feitas de barro, caiadas e cobertas de palha, com 8
paredes de madeira ou pedras toscas, portas e batentes pintados de verde e azul
brilhante” (Marcoy 2001:107). A essa estrutura, representada pelas edificações, o
viajante associa a noção de organização e aconchego. Mas ao relatar que Tefé era uma
cidade bem aconchegante e organizada, traçava ainda outra relação, que, no fundo,
percorria os dois aspectos (o das edificações e seu correspondente conforto e
organização), qual seja, o fato de que, naquele lugar, parte significativa de seus
habitantes exercia funções na administração pública (“muitas autoridades e pessoas de
renome”, p.107), e tinham assento em postos de autoridade, tais como juiz, delegado,
comandante militar, chefe de polícia, entre outros.
De fato, essa característica manifesta pelas edificações pode ser constatada na
gravura que ilustra a vila de Tefé. São de porte avantajado, com acabamento
visivelmente superior, dentre as quais figura até “uma esplêndida mansão assobradada”
(figuras 5 e 6 novamente). A igreja mencionada por Marcoy não aparece nas gravuras,
mas podemos supor que a associação, feita pelo viajante, entre esse espaço de
socialização dos habitantes e o desfile das mulheres da cidade (Marcoy 2001:109) tenha
a intenção de transmitir a idéia de que as características da igreja reforçavam as das
mulheres e vice-versa. Em vez de se referir diretamente, seja às qualidades das
senhoras, seja às qualidades arquitetônicas da igreja, aproximou os dois elementos de
modo a fazer com que um se beneficiasse dos atributos do outro, em estratégia
metonímica semelhante àquela atribuída a outros viajantes por Pierre Rajotte (1998).
Como um homem de ciência que era, Marcoy não deixa também de enfatizar o aspecto
do hábito religioso a condicionar as formas de sociabilidade local e, assim, situa a cena
no cenário do largo da igreja e na hora precisa da missa.
Mais uma vez, interessa-nos comparar as impressões e as narrativas de Marcoy
com as de outro viajante. Vejamos o relato do inglês Henry Bates, que, por
aproximadamente quatro anos e meio, percorreu e morou por lugarejos às margens do
rio Solimões, sendo Tefé um destes. Bates julgava que Tefé era a única cidade para a
qual valeria a pena se deslocar, devido à importância que exercia na imensa região do
Solimões.
Bates, ao contrário do viajante francês, centrou seus comentários muito mais
sobre os aspectos da natureza. Ele diz ter ficado admirado ao chegar à cidade e se
deparado com sua paisagem, constituída por “garças brancas nas margens do lago,
beija-flores ao redor das flores” (Bates 1979:192), num cenário cuja beleza se acentuava
com o pôr do sol e, em seguida, com o surgimento da lua. 9
Quando, porém, decide falar dos traços urbanos de Tefé, principia pela igreja,
mas que considera uma construção tosca, parecendo um celeiro (Bates 1979:200).
Como sua passagem se deu em 1864, portanto, quase 20 anos após a estadia de seu
predecessor, é plausível que as edificações de Tefé tenham se deteriorado. Se, por um
lado, isto mostra a ação do tempo, por outro, pode significar o estancamento da
economia tefeense, o que talvez se devesse ao deslocamento de alguns de seus
importantes moradores para a vila de Coary, que se dinamizava na segunda metade do
século XIX (Guimarães 1900).
Compondo esse povoado, que Bates descreve como situado na “confluência do
(rio) Tefé com um volumoso afluente”, o viajante inglês relaciona uma choupana com
“teto de palha” e casas caiadas de branco – o que denotava alguma sofisticação – e
“cobertas por telhas vermelhas”. A estes elementos construídos pelo homem, ele associa
árvores frutíferas (como laranjeira, bananeira, goiabeira e limoeiro), palmeiras e
bovinos, todos presentes para compor o conjunto das unidades de habitação (1979:200).
Trata-se não só de um cenário construído pelo homem (do pedreiro ao agricultor) mas,
também, de uma paisagem elaborada pelo viajante, o qual, observando o conjunto,
preocupava-se em distingui-lo em seus elementos constitutivos, classificá-los,
caracterizá-los e ordená-los: moradias dividem-se em choupanas e casas; estas
correspondem a um núcleo, rodeado por seus recursos de subsistência, constituídos por
espécimes vegetais frutíferas e oleaginosas (palmeiras) e de animais de corte e de leite.
Esse olhar funcional direcionado para a organização do povoado tinha seu
correspondente no uso da natureza e da paisagem humanamente modificada para
associar idéias de civilização e barbárie. Cremos estar diante de expressões dessa ordem
quando o vemos relacionar “pessoas decentes, sossegadas, e muito sociáveis”
(1979:202) à cidade, e a forma de vida selvagem à “beira dos rios próximos á Tefé”
(1979:207), onde viviam os índios e os serviçais domésticos. De modo semelhante, ele
associa os “miseráveis casebres de barro” com a cobertura de “folhas de palmeiras”
(1979:200).
Paul Marcoy, como combinação de cientista e artista, deixou um legado muito
mais sobre as formas segundo as quais concebia a natureza e a relação do homem com
ela que, propriamente, um testemunho de como as coisas eram no tempo em que esteve
naqueles lugares. O tempo todo, ele empreendeu, como diz o título de um livro de
Monique Sicard, uma fabricação do olhar (1998). Seus desenhos fazem parte do grande 10
conjunto de representações visuais que, ao longo do século XIX, o grande século
europeu, foi construído para dar conta do conhecimento e do domínio do mundo.
Produto de um esforço de compreensão, mas, também, de conformação do outro às
expectativas que eles carregavam consigo para onde quer que fossem. E na esteira dessa
construção, a segregação cada vez mais aguda entre homem e natureza, produto de uma
distinção, inexistente para aqueles que eram observados pelo viajante, mas regulador da
vida no velho mundo, como Keith Thomas demonstrou já há mais de duas décadas
(1983), e que se encarnava de um modo tão concreto que não deixava margem para que
os traços da realidade remodelassem as concepções preexistentes.
Paul Marcoy foi, por um longo tempo, relegado a uma espécie de esquecimento,
seja por seus potenciais pares dele coetâneos, seja pelos pesquisadores que, bem
posteriormente, se interessaram pelo intenso movimento de homens de ciência pelo
mundo afora e, muito especialmente, pela região amazônica. Isto, a despeito do fato de
que, no século XIX e por boa parte do século XX adentro, foram relatos como os dele
que fizeram os contornos do que éramos e de como e onde vivíamos. Pierre Chaumeil já
chamava a atenção para o obscurecimento que se projetou sobre esse viajante
oitocentista que, no fim da vida, deixou de vulgarizar suas experiências pelos magazines
especializados em troca da administração do Jardim Botânico e dos parques de sua
cidade, cargo que ocupou até sua morte em 1888 (Gazette 1888:91).
Numa das últimas páginas de seu extenso relato, escrita mais de vinte anos após
concluída a viagem, Paul Marcoy produziu um breve balanço de suas experiências e
escreveu:
Mas quantos anos se perdem na vida com empreitadas muito menos
proveitosas! E por outro lado, devo confessar, eu não estava com
pressa de voltar. (...) Para que içar as velas ao máximo e cruzar os
mares a sete ou oito nós por hora, só para afundar desastradamente ao
chegar ao porto? Na viagem, como na literatura e em tantas outras
coisas, devagar se vai ao longe. Um proceder prudente é condição
necessária de toda realização. Horácio fez dessa fórmula uma máxima,
Despréaux fez dela um alexandrino, e se essa longa narrativa deve ter
uma moral, eu não poderia subscrever outra melhor. Vale. (Marcoy
2001:304) 11
Figuras
4
5
6 7
3
1 212
PROCEDÊNCIA DAS FIGURAS
1, 2, 5, 6: MARCOY, Paul. Voyage de l'océan Atlantique à l'océan Pacifique à travers
l'Amérique du sud, 1848-1860. Le tour du monde. Paris : Hachette, 1862-1867.
3 e 4: BATES, Henry Walter. The naturalist on the River Amazons. 2
nd
ed. London: John
Murray, 1864.
7: AGASSIZ, Louis et AGASSIZ Elisabeth. Voyage au Brésil, 1865-1866. Le tour du monde.
Paris : Hachette, 1868.
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BATES, Henry Walter. The naturalist on the River Amazons. 2
nd
ed. London: John Murray,
1864.
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