viagem ao brasil · 2020. 9. 18. · a empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental...
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Viagem ao BrasilHans Staden
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América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro
Prefácio: Eric Nepomuceno
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Viagem ao BrasilHans Staden
Prefácio: Alcmeno Bastos
América Latina: a pátria grandeDarcy Ribeiro
Prefácio: Eric Nepomuceno
1 • Viagem ao Brasil - BBB.indd 3 18/08/14 09:39
Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com
qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em
açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,
pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,
cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-
ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-
mentodacidadania.
ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório
nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza
desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso
emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase
experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões
dopaís.
A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental
importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-
litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro
raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem
disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao
conhecimentodoBrasil.
Correios
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Os Correios, reconhecidos por prestar serviços postais com
qualidade e excelência aos brasileiros, também investem em
açõesquetenhamaculturacomoinstrumentodeinclusãosocial,
pormeiodaconcessãodepatrocínios.Aatuaçãodaempresavisa,
cadavezmais,contribuirparaavalorizaçãodamemóriacultu-
ralbrasileira,ademocratizaçãodoacessoàculturaeofortaleci-
mentodacidadania.
ÉnessesentidoqueosCorreios,presentesemtodooterritório
nacional, apoiam, com grande satisfação, projetos da natureza
desta Biblioteca Básica Brasileira e ratificam seu compromisso
emaproximarosbrasileirosdasdiversas linguagensartísticase
experiênciasculturaisquenascemnasmaisdiferentesregiões
dopaís.
A empresa incentiva o hábito de ler, que é de fundamental
importância para a formação do ser humano. A leitura possibi-
litaenriquecerovocabulário,obterconhecimento,dinamizaro
raciocínioeainterpretação.Assim,osCorreiosseorgulhamem
disponibilizaràsociedadeoacessoalivrosindispensáveisparao
conhecimentodoBrasil.
Correios
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O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a
maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais
queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-
damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.
EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro
tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados
osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-
cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízes do Brasil,Casa-grande
& senzala,A formação econômica do Brasil,Os sertõeseMemórias de
um sargento de milícias.
Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase
dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-
tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas
Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso
públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma
iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-
borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-
nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande
otimismoeprojeçãointernacional.
Petrobras - Petróleo Brasileiro S. A.
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O livro, essa tecnologia conquistada, já demonstrou ter a
maiorlongevidadeentreosprodutosculturais.Noentanto,mais
queossuportesfísicos,asideiasjádemonstraramsobreviverain-
damelhoraosanos.EsseéocasodaBibliotecaBásicaBrasileira.
EsseprojetoculturalepedagógicoidealizadoporDarcyRibeiro
tevesuassementeslançadasem1963,quandoforampublicados
osprimeirosdezvolumesdeumacoleçãoessencialparaoconhe-
cimentodopaís.SãotítuloscomoRaízes do Brasil,Casa-grande
& senzala,A formação econômica do Brasil,Os sertõeseMemórias de
um sargento de milícias.
Esse ideal foi retomado com a viabilização da primeira fase
dacoleçãocom50títulos.Aotodo,360milexemplaresserãodis-
tribuídos entre as unidades do Sistema Nacional de Bibliotecas
Públicas,contribuindoparaaformaçãodeacervoeparaoacesso
públicoegratuitoemcercade6.000bibliotecas.Trata-sedeuma
iniciativaousadaàqualaPetrobrasvemjuntarsuasforças,cola-
borandoparaacompreensãodaformaçãodopaís,deseuimagi-
nário e de seus ideais, especialmente num momento de grande
otimismoeprojeçãointernacional.
Petrobras - Petróleo Brasileiro S. A.
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n ix
sumário
Apresentação xix
Prefácio–AlcmenoBastos xxi
Prefáciodotradutor 3
Dedicatóriadoautor 7
PrefáciodeD.Dryander 11
Primeira parte 19
CapítuloI 21
CapítuloII 23
Descrição da minha primeira viagem de Lissebona
para fora de Portugal
CapítuloIII 27
Como os selvagens do lugar Prannenbucke se
revoltaram e quiseram destruir a colônia dos
portugueses
CapítuloIV 28
De como eram suas fortificações e como eles combatiam
contra nós
CapítuloV 31
De como saímos de Prannenbucke para uma terra
chamada Buttugaris; encontramos um navio
francês e nos batemos com ele
CapítuloVI 34
Narração da minha segunda viagem de Civilia,
em Espanha, para a América
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r ox
CapítuloVII 36
De como chegamos à latitude de 28 graus na terra
da América e não pudemos reconhecer o porto para
onde íamos, e uma grande tempestade se desencadeou
em terra
CapítuloVIII 39
De como saímos outra vez do porto a procurar o lugar
para onde queríamos ir
CapítuloIX 41
De como alguns dos nossos saíram no bote para
reconhecer o porto e acharam um crucifixo sobre uma
rocha
CapítuloX 44
Como me mandaram à nossa nau grande numa
canoa cheia de selvagens
CapítuloXI 46
Como chegou a outra nau da nossa companhia,
que se tinha desgarrado e onde vinha o primeiro
piloto
CapítuloXII 48
Como deliberamos ir a São Vicente, que era dos
portugueses, a arranjar com eles um navio para
fretar, e terminar assim a nossa viagem; porém,
naufragamos e não sabíamos a que distância
estávamos de São Vicente
CapítuloXIII 51
Como viemos a saber em que país de selvagens
tínhamos naufragado
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n xi
sumário CapítuloXIV 53
Como está situado São Vicente
CapítuloXV 55
Como se chama o lugar donde lhes vem a maior
perseguição e como está situado
CapítuloXVI 57
Como os portugueses reedificaram Brickioka e depois
fizeram uma casa forte na ilha de Santo Maro
CapítuloXVII 59
Como e por que motivo tínhamos de observar os
inimigos mais numa época do ano do que na outra
CapítuloXVIII 61
Como fui aprisionado pelos selvagens e como isso
aconteceu
CapítuloXIX 64
Como queriam voltar e os nossos chegaram para
me reclamar, e como voltaram para eles e combateram
CapítuloXX 66
O que se passou na viagem para a terra deles
CapítuloXXI 69
Como me trataram de dia, quando me levaram às
suas casas
CapítuloXXII 71
Como os meus dois amos vieram a mim e me
disseram que me tinham dado a um amigo que me
devia guardar e matar quando me quisessem comer
CapítuloXXIII 73
Como dançaram comigo diante das cabanas nas
quais guardam seus ídolos tammerka
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii
CapítuloXXIV 74
Como depois da dança me entregaram a Ipperu Wasu,
que me devia matar
CapítuloXXV 76
Como os que me capturaram estavam zangados e se
queixavam de que os portugueses mataram a tiro
seu pai, que eles queriam vingar em mim
CapítuloXXVI 78
Como um francês que os navios deixaram entre
os selvagens chegou para me ver e lhes recomendou
que me devorassem, porque eu era português
CapítuloXXVII 80
Como eu sentia fortes dores de dentes
CapítuloXXVIII 81
Como me levaram ao seu rei supremo, chamado
Konyan Bébe, e o que ali fizeram comigo
CapítuloXXIX 85
Como as 25 canoas dos tuppin ikins vieram, como
eu tinha dito ao rei, para atacar as cabanas onde eu
estava
CapítuloXXX 86
Como os chefes se reuniram de noite, ao luar
CapítuloXXXI 87
Como os tuppin ikins incendiaram uma outra aldeia,
chamada Mambukabe
CapítuloXXXII 88
Como chegou um navio de Brickioka e perguntaram
por mim. O que disseram a meu respeito
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n xiii
sumário CapítuloXXXIII 89
Como o irmão de Jeppipo Wasu chegou de
Mambukabe e queixou-se a mim de que seu irmão,
sua mãe e todos os outros estavam doentes e pediu-me
que eu fizesse com que meu Deus lhes desse outra
vez a saúde
CapítuloXXXIV 91
Como o Jeppipo Wasu voltou doente
CapítuloXXXV 94
Como voltou o francês que tinha recomendado aos
selvagens que me devorassem e eu lhe pedi que me
levasse, mas os meus senhores não me queriam deixar
CapítuloXXXVI 97
Como devoraram um prisioneiro e me conduziram
a esse espetáculo
CapítuloXXXVII 99
O que aconteceu na volta, depois de terem comido o
prisioneiro
CapítuloXXXVIII 101
Como outra vez um navio foi mandado pelos
portugueses à minha procura
CapítuloXXXIX 105
Como eles tinham um prisioneiro que sempre me
caluniava e que estimaria que me matassem, e como
o mesmo foi morto e devorado na minha presença
CapítuloXL 108
Como um navio francês chegou para negociar
com os selvagens algodão e pau-brasil, para o qual
navio eu queria ir, mas Deus não permitiu
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxiv
CapítuloXLI 110
Como os selvagens foram para a guerra e me
levaram e o que aconteceu nessa viagem
CapítuloXLII 114
Como, na volta, trataram os prisioneiros
CapítuloXLIII 117
Como dançavam com os seus inimigos, quando
pernoitamos, no dia seguinte
CapítuloXLIV 119
Como o navio francês ainda lá estava, para o qual
me tinham prometido levar quando voltassem da
guerra, etc., como ficou referido
CapítuloXLV 120
Como foi que comeram assado o primeiro dos dois
cristãos, a saber: Jorge Ferrero, o filho do capitão
português
CapítuloXLVI 121
Como Deus Todo-Poderoso me deu uma prova
CapítuloXLVII 122
Como uma noite fui pescar com dois selvagens e
Deus fez um milagre por causa de uma chuva
e tempestade
CapítuloXLVIII 123
Como foi que comeram assado o outro cristão,
chamado Hieronymus
CapítuloXLIX 124
Como foi que me levaram para fazer presente
de mim
CapítuloL 125
Como os selvagens daquele lugar contaram que o
navio francês tinha-se feito a vela de novo
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n xv
sumário CapítuloLI 126
Como, logo depois de terem feito presente de mim,
um outro navio chegou de França, chamado
Catarina de Vattauilla, o qual, por providência de
Deus, me comprou, e como isso aconteceu
CapítuloLII 129
Como se chamavam os comandantes do navio;
de onde era o navio; o que ainda aconteceu antes
de partirmos do porto, e que tempo levamos em
viagem para França
CapítuloLIII 131
Como em Depen eu fui levado para a casa do
capitão do navio Bellete (Bel’Eté), que tinha deixado
o Brasil antes de nós e ainda não tinha voltado
Segunda parte 135
CapítuloI 137
Como se faz a navegação de Portugal para o
Rio de Jannero, situado na América, mais ou menos
no 24º gradus do Tropici Capricorni
CapítuloII 139
Como está situado o país América, ou Brasil,
conforme em parte tenho visto
CapítuloIII 141
Sobre uma grande serra que há no país
CapítuloIV 143
Como os selvagens tuppin inbá, dos quais fui
prisioneiro, têm suas moradas
CapítuloV 145
Como fazem fogo
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxvi
CapítuloVI 146
Onde dormem
CapítuloVII 147
Como são destros em caçar animais e peixes com
flechas
CapítuloVIII 149
Que feição apresenta esta gente
CapítuloIX 150
Com que eles cortam, visto não poderem adquirir
ferramentas cristãs, como machados, facas e tesouras
CapítuloX 151
Qual é o seu pão. Como se chamam os seus frutos,
como eles plantam e como os preparam para comer
CapítuloXI 153
Como cozinham a comida
CapítuloXII 155
Que regime e ordem seguem em relação às autoridades
e à justiça
CapítuloXIII 156
Como se fabricam os potes e as vasilhas que usam
CapítuloXIV 157
Como fabricam as bebidas com que se embriagam
e como celebram essas bebedeiras
CapítuloXV 159
Qual o enfeite dos homens, como se pintam e quais
são os seus nomes
CapítuloXVI 162
Quais são os enfeites das mulheres
CapítuloXVII 163
Como dão o primeiro nome às crianças
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n xvii
sumário CapítuloXVIII 164
Quantas mulheres cada um tem, e comovive com elas
CapítuloXIX 165
Como eles contratam os casamentos
CapítuloXX 166
Quais são as suas riquezas
CapítuloXXI 167
Qual é a sua maior honra
CapítuloXXII 168
Em que creem
CapítuloXXIII 171
Como eles tornam as mulheres adivinhas
CapítuloXXIV 172
Como navegam nas águas
CapítuloXXV 173
Por que um inimigo devora o outro
CapítuloXXVI 174
Como fazem seus planos quando querem ir à terra
de seus inimigos para os guerrear
CapítuloXXVII 176
Qual é o seu armamento para a guerra
CapítuloXXVIII 177
Com que cerimônia matam e comem seus inimigos
Como os matam e como os tratam
CapítuloXXIX 181
Descrição de alguns animais no país
CapítuloXXX 183
Serwoy
CapítuloXXXI 184
Há também muitos tigres no país, que matam gente
e causam muitos prejuízos
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxviii
CapítuloXXXII 185
De uma espécie de insetos pequenos como pulgas
pequenas que os selvagens chamam attun CapítuloXXXIII 186
De uma espécie de morcego do país e como de noite,
durante o sono, ele chupa os dedos do pé e a cabeça
da gente
CapítuloXXXIV 187
Das abelhas do país
CapítuloXXXV 188
Dos pássaros do país
CapítuloXXXVI 189
Descrição de algumas árvores do país
CapítuloXXXVII 190
Como crescem o algodão e a pimenta do Prasil, e
também outras raízes mais, que os selvagens plantam
para comer
Discursofinal 191
Ao leitor deseja Hans Staden a graça e a paz de Deus
a m � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi
apresentação
AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho
sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção
BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.
A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o
primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida
comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento
maisprofundodesuahistóriaecultura.
Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-
sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.
Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava
–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino
emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede
Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.
Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-
zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem
de15.000coleções,ouseja,150millivros.
A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10
volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta
por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB
foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.
Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu
instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento
àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea
atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.
Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora
UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial
que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n xixa m � r i c a l at i n a – a �át r i a g r a n d e | d a r c � r i b e i r o xi
apresentação
AFundaçãoDarcyRibeirorealiza,depoisde50anos,osonho
sonhado pelo professor Darcy Ribeiro, de publicar a Coleção
BibliotecaBásicaBrasileira–aBBB.
A BBB foi formulada em 1962, quando Darcy tornou-se o
primeiroreitordaUniversidadedeBrasília–UnB.Foiconcebida
comoobjetivodeproporcionaraosbrasileirosumconhecimento
maisprofundodesuahistóriaecultura.
Darcy reuniu um brilhante grupo de intelectuais e profes-
sorespara, juntos,criaremoqueseriaauniversidadedofuturo.
Eraosonhodeumageraçãoqueconfiavaemsi,quereivindicava
–comoDarcyfezaolongodavida–odireitodetomarodestino
emsuasmãos.DessaentregagenerosanasceuaUniversidadede
Brasíliae,comela,muitosoutrossonhoseprojetos,comoaBBB.
Em1963,quandoministrodaEducação,DarcyRibeiroviabili-
zouapublicaçãodosprimeiros10volumesdaBBB,comtiragem
de15.000coleções,ouseja,150millivros.
A proposta previa a publicação de 9 outras edições com 10
volumescada,poisaBibliotecaBásicaBrasileiraseriacomposta
por100títulos.AcontinuidadedoprogramadeediçõespelaUnB
foiinviabilizadadevidoàtruculênciapolíticadoregimemilitar.
Comamissãodemantervivosopensamentoeaobradeseu
instituidore,sobretudo,comprometidaemdarprosseguimento
àssuaslutas,aFundaçãoDarcyRibeiroretomouapropostaea
atualizou,configurando,assim,umanovaBBB.
Aliada aos parceiros Fundação Biblioteca Nacional e Editora
UnB, a Fundação Darcy Ribeiro constituiu um comitê editorial
que redesenhou o projeto. Com a inclusão de 50 novos títulos,
apresentação
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxx b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii
a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil
coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja
distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram
oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo
detrêsanos.
A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy
Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;
Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação
literária.
Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-
mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da
Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de
pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova
Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue
índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo
uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a
solidariedade.
Paulo de F. RibeiroPresidente
FundaçãoDarcyRibeiro
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n xxi
prefácio – alcmeno bastos
Quase nada se sabe da vida de Hans Staden além do que ele
mesmoinformaemseuDuas viagens ao Brasil,publicadopelapri-
meiravezem1557,nacidadealemãdeMarburg.Dificilmente,po-
rém,orestodesuavidapoderásuperareminteresseorelatoque
lhedeufama.Oprefáciodaobra,escritopeloProfessorDr.Johann
Eichmann, “chamado Dryander”, da Universidade de Marburg,
atesta,aindaquedemodocautelar,aboaprocedênciafamiliarde
Staden,filhodeumhomemqueopróprioDryanderconhecera
desde a infância, o que deveria confirmar o dito popular: “Se a
maçãsabeaotronco,pode-seesperarqueofilhodestehonrado
homemseassemelheaopaiemseuvalorepiedade”.
Percebe-sequeStaden,talvezporcontadediferençadeidade,
nãoeraíntimodeDryander,aquempedirarevisarseutrabalho,
masnenhumarestriçãoéfeitaàveracidadedorelato.Antes,pelo
contrário, o prefaciador destaca as numerosas referências que
Staden fornece e que poderiam ser desmentidas, caso faltassem
à verdade. Contudo, o prefácio serve bem mais à autenticidade
dolivroqueàbiografiadoautor,poisnadaéacrescentadoàin-
formaçãosobreaascendênciadeStaden.Dessemodo,tudooque
nabiografiadeStadenpossainteressaraoleitorserestringe,real-
mente,aosaproximadamentenoveanostomadosporsuasduas
viagens ao Brasil.
OsdoislivrosquecompõemasDuas viagens ao Brasilsãode
teor bem distinto. No primeiro, Hans Staden conta como che-
gouaPortugalcomointuitodeconheceraÍndia,masteveseus
planos modificados pelo fato de que “os navios do Rei, que se
b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxii
a Coleção atualmente apresenta 150 obras, totalizando 18 mil
coleções, o que perfaz um total de 2.700.000 exemplares, cuja
distribuiçãoserágratuitaparatodasasbibliotecasqueintegram
oSistemaNacionaldeBibliotecasPúblicas,eocorreráaolongo
detrêsanos.
A BBB tem como base os temas gerais definidos por Darcy
Ribeiro: O Brasil e os brasileiros; Os cronistas da edificação;
Culturapopulareculturaerudita;EstudosbrasileiroseCriação
literária.
Impulsionados pelas utopias do professor Darcy, apresenta-
mos ao Brasil e aos brasileiros, com o apoio dos Correios e da
Petrobras, no âmbito da Lei Rouanet, um valioso trabalho de
pesquisa,comodesejodequenosreconheçamoscomoaNova
Roma, porém melhor, porque lavada em sangue negro, sangue
índio, tropical.ANaçãoMestiçaqueserevelaaomundocomo
uma civilização vocacionada para a alegria, a tolerância e a
solidariedade.
Paulo de F. RibeiroPresidente
FundaçãoDarcyRibeiro
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r oxxii
destinavamàsÍndias,jáhaviamlargado”.Embarcou,então,para
oBrasil,comoartilheirodeumnaviomercadorque,adespeito
dessafunçãonãobeligerante,poderiatambémaprisionarnavios
deoutrasnacionalidadesquecomerciassemilegalmentecomos
nativosdaÁfricaoudaAmérica.EmPernambuco,ajudouospor-
tuguesesacombateremosíndiosemrevoltaevoltouaLisboano
mesmoano.JáoLivroIInarraasegundaviagemdeStaden,dessa
vezcomdestinoaoRiodaPrata,partindodeSevilha,naEspanha,
em1549.AntesdechegaraAssunção,porém,onavionaufragou
nascostasdeSantaCatarina,noBrasil.Stadeneossobreviventes
alipermaneceramporcercadedoisanos,quando,enfim,parte
delesdecidiuviajaratéSãoVicente,ondepretendiamfretarum
navio que os levaria a Assunção. Novo naufrágio, porém, nas
proximidades de São Vicente, reteve Staden no Brasil. Em São
Vicente,aondeossobreviventes,commuitosacrifício,consegui-
ramchegar,apé,serviuaosportuguesescomoartilheirodoForte
deBertioga,atéque,tendo-seafastadodoslimitesdesegurança
do forte, durante uma caçada, caiu prisioneiro dos índios tupi-
nambás. Nessa condição permaneceu por nove meses, sempre
sobameaçadesercomido,jáqueseuscaptoreseramantropófa-
gos,atéserresgatadoporumnaviofrancêsqueolevoudevolta
àAlemanha.
Como informa Francisco de Assis Carvalho Franco na Intro-
duçãoàediçãobrasileirade1974,játinhamvindoapúblico“mais
decinquentaediçõesemalemão,flamengo,holandês,latim,fran-
cês,inglêseportuguês”dolivrodeStaden.Entretanto,apesarda
importânciadorelatoparaamelhorcompreensãodosprimeiros
encontros de europeus e nativos da terra, a primeira tradução
paraoportuguês,feitaporTristãodeAlencarAraripeJunior,apa-
receusomenteem1892,naRevista Trimestral do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro,comotítulode“Relaçãoverídicaesucinta
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dosusosecostumesdostupinambásporHansStaden,traduzida
emlínguavernácula”. 1
HansStadenocupaumaposiçãosingularíssimanoquadroda
chamada“literaturadeinformação”sobreoBrasildosséculosXVI
eXVII.Emprimeirolugar,pelofatodetersidooúnicoavivenciar,
numacondiçãodecompletodesfavorecimento,aculturadoindí-
genabrasileiro,poisfoiprisioneiroeesteveameaçadodemorrer
pormaisdeumavez,escapandopormuitopouco.Osdemaiscro-
nistaspertenciamaoscírculosdopodereestiveramisentosdos
riscosqueStadencorreu.Emsegundolugar,Stadenfoioprimeiro
europeuapublicarumtextosobreaterraeoindígenabrasileiros
comtãocopiosasinformaçõesobtidasin loco,resultado,portanto,
deexperiênciadireta.Emterceirolugar,orelatodeStadenéprati-
camenteisentodequalquerpreconceitocomrelaçãoaoindígena,
atésimpático,adespeitodenãolhefaltaremmotivosparapintar
deseus“anfitriões”umretratonegativo.
A tradução tardia do texto para o português talvez explique
ofatodequenastentativasépicasdoséculoXVIIIqueseocupa-
ramdafiguradoindígena–O Uraguai (1769),deBasíliodaGama,
e Caramuru (1781), de Frei Santa Rita Durão – não há vestígios
de Staden na bibliografia de apoio. Já no caso dos românticos
GonçalvesDiaseJosédeAlencar,nomestutelaresdoindianismo
do século XIX, há indícios claros de leitura do livro de Staden.
Oprimeiro,nasnotasexplicativassobrealgunsdeseuspoemas
indianistas, 2 cita Staden oito vezes, ora em francês, provavel-
menteapartirdeumacoletânea–“acoleçãodeTernaux”–,ora
1 Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo LV,ParteI(1º e2º trimestres), p.264-357. Disponível em http://www.ihgb.org.br/rihgb/rihgb1892t00551c.pdf.
2 DIAS,Gonçalves.Poesia completa e prosa escolhida.RiodeJaneiro:JoséAguilar,1959. No texto, entre parênteses, estão feitas as indicações de páginas dessaedição.
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emportuguês,equasesemprecomindicaçãodepáginas,oque
atestaleituradiretadotextodeStaden.QuantoaJosédeAlencar,
nasnumerosasnotasexplicativasaosseusromancesindianistas
Iracema e Ubirajara, 3háumasómençãoaStaden,eaindaassim
nãodireta,masapartirdaHistória do Brasil (1810-1819) deRobert
Southey,apropósitodomodoindígenadedarnomeàscrianças.
Sobre a antropofagia, Alencar faz extensa nota ao Ubirajara, na
qualcontestadever-seela“àferocidade,quetransformavaossel-
vagensemverdadeiroscarniceiros”ouàgula,masa“umaespécie
decomunhãodacarne;pelaqualseoperavaatransfusãodoheroís-
mo”,masemnenhummomentocitaStaden.
NãoháexageroemdizerqueorelatodeStadenrepercutiuen-
treosmodernistasbrasileirosde1922.RaulBopp,autordeCobra
Norato (1931), integrante da primeira geração modernista e par-
ticipantedacorrenteantropofágicaentre1927e1929,contaque,
certanoite,TarsiladoAmaraleOswalddeAndrade“resolveram
levarogrupoquefrequentavaosolar[deTarsila]aumrestaurante
situadonasbandasdeSantaAna”, 4especializadoemrãs.Àche-
gadadoprato,“entreaplausos”,“Oswaldlevantou-seecomeçou
afazeroelogiodarã,explicando,comumaaltapercentagemde
burla,ateoriadaevoluçãodasespécies”.AoqueTarsiladoAmaral,
noclimajocosoda“explicação”deOswald,comentou:“Emresu-
mo,issosignificaque,teoricamente,deglutindorãs,somosuns...
quaseantropófagos.”ComentaRaulBopp:“Atese,comumforte
temperodeblague,tomouamplitude.Deulugarajogodivertido
de ideias. Citaram-se logo o velho Staden e outros clássicos da
Antropofagia: ‘Lá vem a nossa comida pulando.’” Alguns dias
3 ALENCAR,Joséde.José de Alencar: obra completa.Vol.II.Notexto,entreparên-teses,estãofeitasasindicaçõesdepáginasdessaedição.
4 BOPP,Raul.Movimentos modernistas no Brasil: 1922-1928.RiodeJaneiro:SãoJosé,1966.p.70.
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depoisdanoite das rãs,TarsiladoAmaraloferecia,parabatismo
pelogrupo,umquadronovo,chamadoprecisamenteO antropó-
fago (ouAbaporu,emtupi-guarani).OswalddeAndradepropôs,
então, “desencadear um movimento de reação, genuinamente
brasileiro”,paraoqualredigiuum“Manifesto”. 5
Como se pode observar pelo depoimento de Raul Bopp, o
texto de Staden pode muito bem ter sido a fonte de inspiração
do Manifesto Antropofágico, pelo menos no que diz respeito ao
destaquedadoporeleàantropofagiadosindígenas.Acitaçãodo
“velhoStaden”aqueBoppserefereevocavaumdossuplíciosa
queStadenforasubmetido,equeadespeitodissochegavaaser
cômico. Staden, tendo as pernas amarradas em três lugares, era
obrigado a caminhar pela choça aos pulos, causando riso nos
queoobservavam.Ocomentáriodosindígenas,àvisãodopobre
Stadenesforçando-separanãocair,eravazadonomaislegítimo
humornegro:“Aívempulandoonossomanjar!”,enãodesonraria
ogostomodernistapelopoema-piada. Tambémo estilofluente
dorelatodeStadencasa-seperfeitamentecomosprincípiosmo-
dernistasdeaversãoaoempoladoeretórico.
Comojádito,HansStadenescreveudoislivrossobresuaexpe-
riêncianoBrasil.No“LivroPrimeiro”,narraasviagensfeitas,entre
osanosde1548e1555,seuaprisionamentopelosíndiostupinam-
báse,porfim,seuresgate.Em“meadosdejaneirode1554”,Hans
Staden caiu prisioneiro dos índios tupinambás. Tomado como
português, e apesar de seus veementes desmentidos, tornou-se
alvodofurordosíndiostupinambás,queodiavammortalmente
oslusitanos.Tendoditoqueeraamigodosfranceses,Stadenfoi
colocado frente a frente com um francês, para reconhecimento
ecomprovaçãodoquealegava.OinfelizStaden,porém,nãocon-
seguiuentenderafaladofrancêseacabouporser“confirmado”
5 Ibidem,p.71.
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como “português legítimo”, pois, como alegavam os indígenas,
“grita, apavora-se diante da morte”. O próprio francês recomen-
douaostupinambásqueocomessem.Numasegundaentrevista,
temposdepois,mesmotendoofrancêsreconhecidoqueseenga-
naranavezanterior,asseverandoqueStadennãoeraportuguês,
masalemão,osíndiostupinambásrecusaram-seapôroprisio-
neiro em liberdade. Após diversas outras peripécias, incluindo
uma tentativa gorada de fuga, uma expedição guerreira contra
índios tupiniquins, um “milagre” obrado por Staden – a pedido
dos índios, Staden rezou a seu deus para que a tempestade não
atrapalhasseapescaria,e,parasuasorte,talaconteceu–,Staden
foi, finalmente, libertado por um navio francês, não sem custo,
poisfoiindispensávelumateiaardilosadefingimentosepromes-
sasparaqueoprisioneiropudesseescapardosseuscaptores.
No“LivroSegundo”,suaatençãovolta-separaadescriçãoda
terra e dos indígenas que a habitavam. Nada lhe escapa: como
sevestem(?)osindígenas,dequesealimentam,comodormem,
sua destreza no manejo de armas, como produzem fogo, como
são as árvores e os animais etc. Tal como acontece com todos
os cronistas dos primeiros tempos, a começar por Caminha e
suaCartade1500,Stadenrevelaqueos indígenaslhecausaram
muitoboaimpressão,parecendo-lheuma“gentebonitaedeboa
estatura,homensemulheresigualmente”,semprejuízodeaeles
sereferirtambémcomo“gentecapaz,astutaemaldosa,sempre
prontaparaperseguirosinimigosedevorá-los”.Observaqueos
indígenas possuíam elevado senso de vida comunitária, eram
absolutamentedesapegadosaosbensmateriaisenãocultivavam
a propriedade particular, além de desconhecerem o dinheiro.
Viviamsobumregimepolíticodemocrático,atémesmoanárquico,
poisnãotinham“governo,nemdireitosestabelecidos”.Também
éaltamentefavorávelaimpressãoquelhecausouaterra:“asárvo-
res estão sempre verdes” e “em nenhum tempo do ano faz frio,
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comoaqui[naEuropa],nodiadeSãoMiguel,masaterraaosuldo
trópicoéumpoucomaisfria”.
A respeito da religiosidade dos indígenas, observa que “Com
overdadeiroDeus,quecriouocéueaterra,nãosepreocupam”,
embora afirme ter notado entre eles uma memória residual de
umtempo“bíblico”,quandoteriahavido“umavastidãodeáguas
naqualtodososseusantepassadosmorreramafogados”,àexce-
çãodeunspoucos.Stadenconclui,naturalmente, “quedeveter
sido o dilúvio”. Destaca ainda a função dos maracás, os quais,
por interveniência dos pajés, “considerados por eles como aqui
[na Europa] se consideram os adivinhos”, tornar-se-iam objetos
mágicos,capazesmesmodefalar.Staden,queaprincípiojulgara
poder tratar-se de “uma arte do diabo”, levado por agudo senso
derealismo,percebeotruque–opajélevaomaracá“bemjunto
àboca,chocalha-aediz-lhe:Nécora,falaagoraefaze-teouvir,se
aíestás”,eemseguida,“Profereapósemvozaltaedepressauma
palavra,demodoquenãosepodebemdistinguirseaemitiuele
ouamatraca”–econdói-sedaingenuidadedosindígenas:“pobre
gentecegaéesta!”.
Quantoaoscostumes,atentaparaapoligamia,destacandoa
posiçãosubalternadamulher,quenãoapenasaaceita–“vivem
emharmoniaumascomasoutras”–comoservedeobjetodetro-
ca:“écostumeumdardepresenteaoutroumamulherquando
delaseenfada”.Omaisrelevanteé,semdúvida,asurpreendente
compreensão que Staden demonstra do sentido cultural da an-
tropofagia, sendoenfáticoaodizer: “Fazemissonãoparamatar
afome,masporhostilidade,porgrandeódio”,poisnãoosmove
nenhuma espécie de ambição material, mas apenas o desejo de
vingarosparenteseamigosquetenhamsidovitimadospelosque
agora são seus prisioneiros. No Capítulo29 do “Livro Segundo”
–Aterraeseushabitantes,Stadendeixaminuciosadescriçãodo
ritualdeexecuçãodoprisioneiro,numtomserenoenemporisso
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menosincisivo,quesecoroacomaafirmaçãolapidar:“Tudoisso
euvi,eassisti.”,semimprecaçõescondenatórias,deixandoclaro
tratar-sedeumapráticaaceitaportodos(portanto,ritualística),
inclusive pelo prisioneiro, que conhece perfeitamente o papel
que lhe cabe desempenhar na cerimônia. O prisioneiro é bem-
-tratado,sevaleoparadoxo,apontodelheserdada“umamulher,
quedelecuida,servindo-otambém”,atéomomentoemquejul-
gam estar tudo preparado, quando “determinam o tempo em
quedevemorreroprisioneiroeconvidamosselvagensdeoutras
aldeiasparaquevenhamassistir”.Nosmomentosfinaisdaceri-
mônia,oprisioneiroretruca,altivo,aosúltimosinsultos,dizendo:
“Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão
vingar-me”.
AsDuas viagens ao BrasildeHansStadenpermaneceumtexto
de grande interesse para o fascinante estudo das relações entre
europeus e habitantes do Novo Mundo no primeiro século de
convívioconturbadoentrehomensdeetnias, línguas,valorese
costumes tão diferentes. A circunstância, já aqui ressaltada, de
tratar-sedodepoimentodealguémqueexperimentouemcondi-
çõestãodesfavoráveisoquehojesecostumachamarde“encontro
deculturas”,aindaquesepossaaporalgumareservaàveracidade
dos acontecimentos narrados, só aumenta a necessidade de ser
dadoodevidovaloràspalavrasdoalemãoque,nãoforaporisso,
certamentenãoocuparialugarderelevonoacervohistoriográfi-
cosobreoBrasil.
alcmeno bastos é professor de literatura brasileira da ufrj – universidade federal do rio de janeiro. doutor em letras pela mesma instituição.
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Viagem ao BrasilHans Staden
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prefácio do tradutor
A presente tradução do interessante livro de HansStaden é a segunda em língua portuguesa. A primei-
ra apareceu em 1892, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, volume 55, parte 1ª, e tem por autor o Dr. AlencarAraripe,queadotouaortografiafonética.Ooriginaldequeestase serviu foi da edição francesa da coleção Ternaux Compans,que, provavelmente, por sua vez, foi traduzida da versão latina.Comparando as duas, vê-se que a tradução é fidelíssima, mas,comonãofoiotrabalhofeitoàvistadooriginalalemão,nãoédeestranharqueseafastebastantedeste,principalmentenoestiloque,detodo,foidesprezadocomsacrifíciodaquelecunhocarac-terístico,comquelembraasuaépoca.
Mas,alémdestas,háváriasoutrastraduçõesemuitasedições,tantodooriginalcomodasversões;segundooqueconhecemossãoelas:
1ª O original primitivo, publicado em 1557 na cidade de
Marburg,emHessen,naAlemanha. 1
1 “A obra apareceu primeiramente em 1556 em Frankfurt sur Mein, “durchWeygandtHan”.Nãohádatanolivro,masoprefácioéde1556eédesuporque, sendo já Frankfurt grande centro bibliográfico, e outras edições futu-ras tendo saído dali, também o fosse esta. Como as provas foram revistaspeloDr.DryanderdeMarburg(olivrotemilustraçõesemmadeiraquemalpodiamtersidopreparadasali),édecrerque,nãosesatisfazendoelecomasgravurasque,finascomoeram,poucaideiadavamdasaventurasdeseuherói, procurasse fazer outra edição em Marburg mesmo, e com gravuras
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2ª Segundaedição, impressanomesmoano,masnacidade
deFrankfurtsurMein.
3ªTraduçãoflamenga,publicadanaAntuérpia,em1558.
4ªNovaediçãoalemã,publicadaemFrankfurtsurMein,em
1567,naterceirapartedeumlivrointitulado:Dieses Weltbuch von
Newen erfundene Landschaften durch Leb. Francke.
5ªOutraedição,aindaem1567,namesmacidade,publicada
nacoleçãodasviagensdeDeBry.
6ªAtraduçãoemlatim,em1567,dacoleçãotodadeDeBry.
7ªNovaediçãolatinapublicadaem1560. 2
8ªEm1630aindaumaterceira.
9ªUmaquartaediçãoalemãdooriginal,in-fólio,tornaaapa-
recerem1593.
10ª Novatradução,publicadaem1630,comotítulodeHans
Staden van Homburgs Beschryringhe van America.
11ª Reimpressaem1640.
12ª Quinta edição alemã, publicada em Frankfurt sur Mein,
em1631.
13ª Mais uma sexta edição, em quarto, publicada em
Oldenburg,noanode1664.
14ª Em1686houveoutraediçãoholandesa,emquartoeilus-
tradaemxilografias,publicadaemAmsterdã.
15ª Maisumaem1706,numacoleçãodeviagens,publicadana
cidadedeLeydenporPieter Vanden Aa.
mais verdadeiras, se bem que muito toscas. E assim o fez, em 1577”. (J. C.Rodrigues,Biblioteca Brasiliense,Rio,1907,p.590).–A.P.
2 “... lastimodizerqueosnúmeros5,6eé7dabibliografiadoSr.Löfgrensãomerafantasia”.(J.C.Rodrigues,Biblioteca Brasiliense,Rio,1907,p.590).
“Em1595apareceuaprimeiraversãoholandesa(nãomencionadaporBrunetou Graesse) e foi reproduzida (sem prefácio) em 1627 e 1634 (Amsterdã...)nenhumadelassendoacusadapeloSr.Löfgren”(J.C.Rodrigues,op. cit.,p,591).–A,P.
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16ª Em 1714 seguiu-se a quinta edição holandesa, publicada
emAmsterdã,emparte.EstaediçãoémencionadaporBouche
deRicharderienaBibliothèqueUniverselledeVoyages.TomoV,
pág.503,1806.
17ª Uma tradução francesa foi publicada na coleção de via-
gensdeTernauxCompans;Vol.III,Paris,1839,emoitavo.
18ª A sexta edição holandesa, in-fólio, foi publicada em
Leyden,em1727,comonovaediçãodePieter Vanden Aa.
19ª AultimaediçãoalemãapareceuemStuttgartem1859,na
BibliothekdesLiberischenVereins,emStuttgart.Vol.XLVII.
20ª Em 1874 a sociedade inglesa The Hakluyt publicou, em
volume separado, uma tradução magistral, feita pelo Sr. Albert
Tootal, com anotações do então cônsul inglês em Santos, Sir
RichardP.Burton.Estatraduçãofoifeitasobreasegundaedição
alemãde1557eéatéhojeamelhor.
21ª Tradução brasileira na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro,peloDr.AlencarAraripe.
• • •
Tendo o ilustrado Dr. Eduardo Prado adquirido em Paris um
exemplar, original da primeira edição de Marburg, de 1557, co-
meçamos a comparar esse original com a tradução portuguesa
e chegamos à conclusão de que talvez houvesse vantagem em
dar uma nova edição desse livro tão interessante para a nossa
história.Deliberamosentãocingir-nosestritamenteaométodoe
linguagemdoautor,conservandointegralmenteaortografiados
nomesprópriosdoslugares,coisasepessoase,quantopossível,
opróprioestilosimples,enarrativo,comtodasassuasimperfei-
ções,equer-nosparecerquenonossomodestotrabalhonãohaja
amenoromissão.
Porabsolutafaltadetempoe,porjulgarmaiscompetente,pe-
dimosaonossodistintoamigoeconsóciooDr.TeodoroSampaio
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queseencarregassedasanotaçõeseesclarecimentosrelativosaos
nomeseposiçõesrelatadospeloautor.
Natraduçãoinglesa,oSr.Burtonfezmuitasanotaçõesedeu
váriasexplicações,porém,nãosendotodassempreacertadas,não
ascopiamos,julgandonecessáriaumarevisãocompletadetodas
elas.
As palavras “pela segunda vez diligentemente aumentada e
melhorada”,queseachamnotítulo,podiamfazersuporquese
tratasseaquideumasegundaediçãoenãodaprimeiraouoriginal,
masessaspalavrasdevemserentendidascomo“porduasvezes
aumentadaemelhorada”,porqueoprefaciadorDr.Dryanderti-
nha,certamente,auxiliadoaoautorporserestepoucoversadona
artedeescreverecompor.Acrescequeestaediçãoéimpressaem
MarburgnacasadeAndréColben,oqueporsisóprovaeviden-
tementeseraprimeiraediçãoconhecida,vistoasegundaedição
ter sido feitaemFrankfurt surMein,aindaqueno mesmoano.
TendooDr.Dryanderrevistoomanuscritoparaserapresentado
aopríncipeem1556,émuitoprovávelque,paraaimpressão,que
sótevelugarem1557,orevissepelasegundavezenessaocasião
talvezaumentassealgumacoisa,comodizotítulo.
Alberto Löfgren, F. L. S.Janeirode1900.
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dedicatória do autor
D escrição verdadeira de um país de selvagens nus, fe-
rozes e canibais, situado no novo mundo América,
desconhecido na terra de Hessen antes e depois do nascimento
de Cristo, até que, há dois anos, Hans Staden de Homberg, em
Hessen,porsuaprópriaexperiência,oconheceueagoraadáàluz
pelasegundavezdiligentemente,aumentadaemelhorada.
Dedicada a sua sereníssima alteza Príncipe H. Philipsen, Landtgraf
de Hessen, Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda, seu
Gracioso Senhor.
Com um prefácio de Dr. John. Dryander, denominado Eychman, LenteCatedráticodeMedicinaemMarburg.
Oconteúdodestelivrinhoseguedepoisdosprefácios. ImpressãoemMarburgnoanodeM.D.LVII.
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Ao sereníssimo e nobilíssimo Príncipe e Senhor, Senhor Philipsen Landtgraf de Hessen,
Conde de Catzenelnbogen, Dietz, Ziegenhain e Nidda, etc., meu gracioso príncipe e senhor.
G raça e paz em Cristo Jesus nosso redentor, Gracioso
Príncipe e Senhor. Diz o Santo Rei Profeta, Davi, no
salmocentoesete.
“Os que se fazem ao mar em navios, traficando em grandes
águas.
EssesveemasobrasdeJeováesuasmaravilhasnoprofundo.
Aumaceno,Elefazsoprartormentosovento,quelheergueas
ondas.
Sobemaoscéus,descemaosabismos:suasalmasseaniquilam
deangústia.
Tropeçametitubeiamcomobêbedos:e todaasuasabedoria
selhesfoi.
Clamam,porém,porJeováemsuasaflições;eEleostirados
apertos.
Fazcessarastormentas,eseaquietamasondas.
Então se alegram, porque tranquilizados, e Ele os conduz ao
desejadoporto.
Louvem,pois,oSenhorpelasuabondadeepelassuasmaravi-
lhas,paracomosfilhosdoshomens.
E o exaltem no seio do povo, e no conselho dos anciãos o
glorifiquem.”
Assim,agradeçoaoTodo-Poderoso,Criadordocéu,daterrae
domar,aoseufilhoJesusCristoeaoEspíritoSanto,pelagrande
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graçaeclemênciadequefuialvoduranteaminhaestadaentre
osselvagensdaterradoPrasilien(Brasil),chamadostuppin imba 3 e
quecomemcarnedegente,ondeestiveprisioneironovemeses
ecorrimuitosperigos,dosquaisaSantaTrindade inesperadae
milagrosamente me salvou, para que eu, depois de longa, triste
e perigosa vida, tornasse a ver minha querida pátria, no princi-
padodeVossaGraciosaAlteza,apósmuitosanos.Modestamente
ecombrevidadetenhonarradoessaminhaviagemenavegação
paraqueVossaGraciosaAltezaaqueiraouvir, lidaporoutrem,
dequemodoeu,comauxíliodeDeus,atravesseiterrasemarese
comoDeusmilagrosamentesemostrouparacomigonosperigos.
E para que Vossa Graciosa Alteza não duvide de mim, como se
eu estivesse a contar coisas mentirosas, queira oferecer a Vossa
Graciosa Alteza, em minha própria pessoa, uma garantia para
estelivro.ADeussomenteseja,emtudo,aGlória.Recomendo-me
humildementeaVossaGraciosaAlteza.
Datum Wolfhagen Avintedejunho–AnnoDomini.Milquinhentosecinquentaeseis.
DeV.A.súditoHansStaden,deHomberg,emHessen,agoracidadãoemWolfhagen.
3 Tuppin imbaémaisumadasmuitasformascomquesenosdeparaonometupidogentiobrasílico,dominadornacostaaotempodaconquista.Entreosportuguesesdessaépocaescrevia-se tupinambá,nomequesevulgarizou.Entre os escritores franceses contemporâneos leem-se, porém topinamboux,tapinambós,toupinambaseatétououpinambaoultescreveuJoãodeLevy,grafiaque, apesar de estranha, foi consideradapor Ferdinand Denis como a maispróximadaverdade.Detãograndediversidadedeformaresultaatãocontro-vertidainterpretaçãodovocábuloqueaninguémsatisfaz.Tuppinou tupimquerdizertio,o irmãodopai; imbaou imbá=aba,homem,gente,geração.Tambémtu-upi,significaopai primeiro,oprogenitor.Tu-upiabá,ageraçãodoprogenitor.
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n 11
prefácio de d. dryander
Ao nobilíssimo Senhor H. Philipsen, Conde de Nassãu e Sarprück, etc., meu gracioso Senhor, deseja D. Dryander muita felicidade,
com o oferecimento de seus préstimos.
H ansStaden,queacabadepublicareste livro-história,
pediu-mepararever,corrigir,e,ondefossenecessário,
melhoraroseutrabalho.Aessepedidoacedi,pormuitosmotivos.
PrimeiroporqueconheçoopaidoAutor,hámaisdecinquenta
anos(poisquenascemosnomesmoestadodeWetter,ondefomos
educados),comoumhomemque,tantonaterranatalcomoem
Homberg,étidoporfranco,devotoebravo,equeestudouasboas
artes,e(comodizorifão),porqueamaçãnãocailongedaárvore,
édeesperarqueHansStaden,comofilhodestebomhomem,deva
terherdadoasvirtudeseadevoçãodopai.
Além disso, aceito o trabalho de rever este livro com tanto
maisgostoeamorquantomeinteressomuitopelasnotíciascon-
cernentesàsmatemáticas,comoàCosmografia,istoé,adescrição
emediçãodospaíses,cidadesecaminhos,taiscomonestelivrose
deparam,mormentequandovejoossucessosnarradoscomfran-
quezaeverdade,enãopossoduvidarqueesteHansStadenconte
eescrevacomexatidãoeverdadeasuanarrativaeviagemnãopor
tê-lascolhidodeoutrem,masdeexperiênciaprópria,semfalsida-
de,equeeledaínãoquertirarglórianemfamaparasi,massim,
unicamente,aglóriadeDeus,comlouvoregratidãoporbenefí-
ciosrecebidosepelasualibertação.Oseuprincipalobjetivoétor-
narconhecidasuahistóriaatodos,paraquesepossavercomque
favorecomo,contratodaaexpectativa,Deus,oSenhor,salvoude
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tantosperigosaHansStaden,quandoeleo implorou, tirando-odopoderdosferozesselvagens(ondedurantenovemeses,todososdiasehoras,estavaesperandoserimpiedosamentetrucidadoedevorado),paralhepermitir,aele,tornaràsuaqueridapátria,Hessen.
Poressainefávelclemênciadivinaepelosbenefíciosrecebidos,queriaeleagradeceraDeusnolimitedesuasforças,eemlouvordeDeuscomunicaratodosoqueaconteceu.Nestagratatarefa,aordemdosacontecimentos levou-oadescrevertodaaviagemcomsuasperipécias,duranteosdoisanosqueesteveausentedapátria.
Ecomofazeleestadescriçãosempalavraspomposaseflori-das,semexagerações,tenhoplenaconfiançanasuaautenticidadeeverdade,atéporquenenhumbenefíciopodeelecolheremmen-tir,emvezdecontaraverdade.
Além disso, fixou-se ele agora com os seus pais nesta terra enãoédadoavagabundagem,comoosmentirososeciganos,quesemudamdeumpaísparaoutro,peloqueéfácilesperarqueal-guémdevoltadaquelasilhas 4opossaacusardementiroso.
Soudeopiniãoeconsideroparamimvaliosaprovadeverdadeofazereleestadescriçãodeummodotãosimpleseindicaraépo-ca,opaíseolugar,emqueHeliodorus,ofilhodosábioemuitofamosoEobandeHessen,oqualaquifoitidopormorto,estevecomHansStadennaquelepaíseviucomoelefoimiseravelmentepresoelevadopelosselvagens.EsseHeliodorus,digo,pode,maiscedooumaistarde,voltar(comoseesperaqueaconteça)eentãoenvergonhá-lo e denunciá-lo como um homem sem valor, casosuahistóriasejafalsaouinventada.
ParaentãoressalvaredefenderaveracidadedeHansStaden,quero agora apontar os motivos pelos quais esta e semelhantes
históriaslogram,emgeral,poucocréditoeconfiança.
4 Vejaadianteanota6.
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Emprimeirolugar,viajanteshouveque,commentirasenar-
rativasdecoisasfalsaseinventadas,fizeramcomquehomensho-
nestoseverídicos,devoltadeterrasestranhas,nãofossemacre-
ditados,eentãosedizgeralmente:“quemquermentir,queminta
de longe e de terras longínquas”, porque ninguém vai lá para
verificar,eantesdesedaraessetrabalhomaisfáciléacreditar.
Nada,contudo,seganhaemdesacreditaraverdadeporamor
de mentiras. É também para notar que certas coisas contadas e
tidas pelo vulgo como impossíveis, para homens de entendi-
mentonãoosão;etomadasporverídicas,quandoinvestigadas,
mostram sê-lo evidentemente. Isto pode-se observar em um ou
doisexemplos,tiradosdaastronomia.Nós,quevivemosaquina
Alemanhaoupertodela,sabemosdelongaexperiênciaaduração
doinvernoedoverãoedasoutrasduasestações,aprimaveraeo
outono.Tambémconhecemosaduraçãodomaiordiadeverãoe
domenordiadeinverno,bemcomoadasnoites.Sealguémentão
disserquehálugaresnaTerraondeosolnãosepõedurantemeio
ano,equealiodiamaioréde6meses,istoé,meioano,equeao
contrárioanoitemaioréde6mesesoumeioano,assimcomohá
lugaresnomundoondeasquatroestaçõessãoduplas,ocertoé
quedoisinvernosedoisverõesláexistem.
Étambémcertoqueosoleoutrasestrelas,porpequenasque
nospareçam,emesmoamenordelasnofirmamento,sãomaiores
quetodaaTerraesãoinumeráveis.
Quandoentãoovulgoouveessascoisas,desconfia,nãoacredi-
taeachatudoimpossível.Entretanto,osastrônomosodemons-
traram de modo que os entendidos nas ciências não duvidam
disso.
Porissonãosedeveconcluirqueassimnãoseja,apesardeque
ovulgolhenãodêcrédito,ecomonãoestariamalaciênciaastro-
nômicasenãopudessedemonstrarestecorporaedeterminar,por
cálculos,oseclipses,istoé,oescurecimentodoSoledaLua,como
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indicarodiaeahoraemqueelessedevemdar.Comséculosde
antecedênciapodemserpreditos,eaexperiênciademonstraser
verdade,“Sim”,dizemeles,“quemestevenocéuparaveremedir
isso?”Resposta:porqueaexperiênciadiárianessascoisascombi-
nacomasdemonstrationibus.É,pois,necessárioconsiderá-lasver-
dadeiras,comoéverdadeirosomar3e2são5.Edecertasrazõese
demonstraçõesdaciênciaacontecequesepodemedirecalculara
distânciacelesteatéaLuaedaíparatodososplanetasefinalmente
atéofirmamentoestrelado.AtéotamanhoedensidadedoSol,da
Luaeoutroscorposcelestesedaciênciadocéu,ouastronomia,de
combinaçãocomageometria,calculam-seagrandeza,aredonde-
za,alarguraeocomprimentodaTerra,coisasestastodasdesco-
nhecidasdovulgoeporelenãoacreditadas.Essaignorânciapor
partedovulgoaindaéperdoávelpornãoestudareleafilosofia;
masquepessoasimportantesequasesábiasduvidemdessascoi-
sastãoverdadeirasévergonhosoeatéperigoso,porqueovulgo
temconfiançanelasepersistenoseuerrodizendo:seassimfosse,
esseouaqueleescritornãoteriarefutado.Ergo,etc.
QueSantoAgostinhoeLactâncioFirmiano,doissantossábios,
nãosomenteemteologia,comotambémemoutrasartesversa-
dos,duvidaramenãoquiseramadmitirquepudessehaverantí-
podas, isto é, que houvesse habitantes no outro lado da Terra,
queandamcomseuspésvoltadoscontranóse,portanto,acabeça
e o corpo pendentes para o céu, isto sem cair, parece singular,
apesardequemuitosoutrossábiosoadmitamcontraaopinião
dossantosegrandessábios,acimamencionados,queonegaram
eotiveramporinventado.Deve,porém,serverdade,queaqueles
que habitam ex diametro per centrum terrae são antípodas e vera
propositio é que “Omne versus coelum vergens, ubicumque locorum,
sursum est”.Enãoénecessárioiratéonovomundoaprocuraros
antípodas,poiselesexistemtambémaquinohemisfériosuperior
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daTerra.Poissecompararmoseconfrontarmosoúltimopaísdo
OrienteondeestáaÍndia,estasgentesextremasehabitantester-
restressãotambémquaseumaespéciedeantípodas.
Pretendem alguns santos teólogos com isso provar que se
tornouverdadeasúplicadamãedosfilhosdeZebedeu,quando
rogouaCristo,SenhorNosso,queseusfilhosficassem,umaolado
direitoeoutroaoesquerdodele.Eissodefatoaconteceu,poisque
São Tiago sepultou-se em Compostela, não longe de Finisterra,
geralmente denominado Finstern Stern 5 (estrela escura), onde
é venerado, e o outro apóstolo na Índia, ou onde o sol levanta.
Que,pois,osantípodasexistiamhámuitotemposemsernotados,
e que ao tempo de Santo Agostinho, quando o novo mundo da
América,naparteinferiordoglobo,aindasenãodescobrira,não
deixaram de existir, é um fato. Alguns teólogos, especialmente
NicolauLira(reputado,todavia,excelentehomem),afirmamter
apartefirmedogloboterráqueoumametadeapenasforad’água,
naqualflutuaeondehabitamos,aoutraparteoculta-sepelomar
epelaágua,demodoquenelaninguémpodeexistir.Tudoisso,
porém,écontrárioàciênciadaCosmografia,poisquehojeestá
verificado pelas muitas viagens marítimas dos portugueses e
dosespanhóisqueaTerraéhabitadaportodaaparte.Aprópria
zonatórridatambémoé,oquenossosantepassadoseescritores
jamais admitiram. A nossa experiência de cada dia mostra-nos
queoaçúcar,aspérolaseprodutosoutrosparacávêmdaqueles
países.Oparadoxodosantípodaseajáreferidamediçãodocéu,
mencionei-osaquitãosomenteareforçaromeuargumento,epo-
diaaindareferir-meamuitasoutrascoisasmais,senãotemesse
aborrecer-voscomomeulongoprefácio.
5 Querdizerestrelas escurasporumaespéciedetrocadilho,sópossívelnalínguaalemã.(Otradutor.)
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Muitosoutrosargumentossemelhantes,porém,podemlerno
livro do digno e sábio Magister Casparus Goldtworm, diligente
superintendenteepregadordeVossaAlteza,emWeilburgk,livro
emseispartes, tratandodemuitosmilagres,maravilhase para-
doxosdostemposantigosemodernos,equesemdemorasedeve
daraimprimir.Paraesselivroemuitosoutrosquedescrevemtais
coisas,como,p.ex.,oseuLibri Galeotti, De rebus vulgo incredibilibus,
etc., chamo a atenção do benévolo leitor desejoso de conhecer
maisessascoisas.
Comtudoissoseprovaquenãoénecessariamenteumamen-
tiraoafirmar-secoisaestranhaedescomunalparaovulgo,como
nestahistóriaseverá,naqualtodaagentedailha 6andanuaenão
tem por alimento animais domésticos, nem possui coisas para
suasubsistênciadasquenósusamos,comovestimentas,camas,
cavalos,porcosouvacas;nemvinho,nemcerveja,etc.,etemque
searranjareviveraseumodo.
Quero, porém, para finalizar com este prefácio, mostrar em
poucaspalavrasoqueinduziuaHansStadenaimprimirassuas
duasnavegaçõeseaviagemporterra.Certo,muitoshãodeinter-
pretarissoemseudesabono,comosequisesseeleganharglória
ou notoriedade. Eu, porém, penso de outra forma e acredito se-
riamentequesuaintençãoémuitodiversa,comosepercebeem
várioslugaresdestahistória.Passoueleportantamisériaesofreu
tantosrevesesnosquaisavidatãoamiúdolheesteveameaçada
quechegouaperderaesperançadeselivraroudejamaisvoltarao
larpaterno.Deus,porém,emquemsempreconfiavaeinvocava,
nãosomenteolivroudasmãosdeseusinimigoscomotambém
poramordassuasfervorosasorações,quismostraràquelagente
6 PoressetempoaindasenãotinhaidentificadoointeirocontinentedaAmérica.Os novos descobridores, isolados ou destacados, consideravam-no ilhas. OBrasildeHansStadenéaindaumailha.
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ímpiaqueoverdadeiroelegítimoDeus,justoepoderoso,ainda
existia. Sabe-se perfeitamente que a oração do crente não deve
marcaraDeuslimite,medidaoutempo;aprouve,porém,aEle,
porintermédiodeHansStaden,odemonstrarosseusmilagresa
essesímpiosselvagens.Eistonãoseicomocontestar.
Sabe-se tambémcomoascontrariedades,as tristezas,desgra-
ças e doenças fazem geralmente com que as pessoas se dirijam
aDeuseque,naadversidade,neleacreditemmaisdoqueantes,
oucomoalguns,segundoocostumecatólico,fazemvotosaesseou
aquele santo de fazer romaria ou penitência, para que ele os li-
vre nos apuros, cumprindo rigorosamente essas promessas, a
nãoseraquelesquepretendemdefraudarosanto,comonosrefere
Erasmus Roterodamus, nos Colloquiis sobre o naufrágio de um
navio de nome S. Cristovam, cuja imagem de dez côvados de
alto, como um grande Polifemo, se acha num templo em Paris,
navio em que vinha alguém que fizera a promessa a esse santo
deoferecer-lheumaveladeceradotamanhodoprópriosanto,se
esteotirassedassuasaperturas.Umcompanheiro,queestavaao
ladonessaocasião,conhecendo-lheapobreza,orepreendeupor
tal promessa; pois, ainda que vendesse tudo quanto possuía no
mundo,nãoseriacapazdeadquiriraceradequehaviadeprecisar
paratamanhavela.Ooutro,porém,respondeuemvozbaixa,que
osantonãoouvisse:“Quandoosantometiversalvodestesperi-
gos,dar-lhe-eiumaveladesebo,dovalordeumvintém!”
E a história do cavaleiro, que estava arriscado a naufrágio, é
tambémoutra:Essecavaleiro,quandoviuqueonavioiaseper-
der,fezvotoaSãoNicolau,dequeseeleosalvasse,lhesacrificaria
oseucavaloouseupajem.Ocriado,porém,advertiudequenãoo
fizesse,porqueemquehaviademontardepois?Ocavaleirores-
pondeuaocriado,baixinho,paraqueosantonãoouvisse:“Cala
aboca,porqueseosantomesalvar,nãolhedareinemacauda
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docavalo.”Eassimpensavacadaumdosdoisenganarosantoe
esquecerobenefício.
Paraque,pois,HansStadennãosejataxadoassimdeesquecer
aDeusqueosalvou,assentoueledeolouvareglorificarcomo
imprimirestanarrativa,ecomespíritocristãodivulgaragraça
eobrarecebidas,semprequetiverocasião.Eseessanãofossea
suaintenção(aliáshonestaejusta)podiaelepoupar-seaessetra-
balhoeeconomizaradespesa,nãopequena,queaimpressãoeas
gravuraslhecustaram.
Comoestahistóriafoipeloautorhumildementededicadaao
Sereníssimo e de elevadíssimo nascimento Príncipe, e Senhor,
Philipsen,LandtgrafdeHessen,CondedeCatzenelnbogen,Dietz,
ZiegenhaineNidda,seuPríncipeegraciosoSenhor,eemnome
desuaAltezao fezpúblico,e tendoelesido,muitoantesdisso,
examinado e interrogado por Vossa Alteza em minha presença
e na de muitas outras pessoas sobre a sua viagem e prisão, que
eujápordiversasvezestinhacontadoaVossaAltezaeaoutros
senhores,ecomoeu,hámuito,tinhavistoeobservadoogrande
amorqueVossaAltezamanifestouporestasoutrasciênciasastro-
nômicas e cosmográficas, desejava humildemente escrever este
prefácioouintroduçãoparaVossaAlteza,e lhepedirdeaceitar
estemimo,atéquepossaeupublicarcoisademaiorimportância
emnomedeVossaAlteza.
Recomendo-mesubmissamenteàVossaAlteza.
Datum Marpurgk, DiadeSãoTomé,anoMDLVI.
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n 19
primeira parte
C onteúdodolivro
1–Duasviagensdemar,efetuadasporHansStaden,emoitoanos
emeio.
AprimeirafoiemPortugal,easegundadaEspanhaaoNovo
Mundo–América.
2 – Como ele, no país dos selvagens, denominados toppinikin
(súditosd’El-ReidePortugal),foiempregadocomoartilheiro
contraosinimigos.
Finalmente,feitoprisioneiropelosinimigoselevadoporeles,
permaneceu dez meses e meio em constante perigo de ser
mortoedevoradoporeles.
3–ComoDeuslivroumisericordiosaemaravilhosamenteaeste
prisioneiro, no ano já mencionado, e como ele tornou a sua
queridapátria.
Tudo para honra e glória da misericórdia de Deus, dado à
impressão.
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n 21
capítulo i
De que vale à cidade o guarda, E ao navio possante os mares,
Se Deus a eles não proteger?
Eu, Hans Staden, de Homberg, em Hessen, resolvi, caso
Deusquisesse,visitaraÍndia.Comestaintenção,saíde
BremenparaaHolandaeacheiemCampen(Campon)navios
quetencionavamtomarcargadesal,emPortugal.Embarquei-
-meemumdelese,nodia29deabrilde1547,chegamosàcidade
deSãoTuval(Setúbal)depoisdeumatravessiadequatrosema-
nas.DaífuiaLissebona(Lisboa),quedistacincomilhasdeSão
Tuval.
EmLissebona,alojei-meemumahospedaria,cujodonoera
alemãoesechamavaLeuhr,omoço,ondefiqueialgumtempo.
Contei-lhequetinhasaídodaminhapátriae lheperguntei
quando esperava que houvesse expedição para a Índia. Disse-
-mequeeutinhademoradodemaisequeosnaviosd’El-Rei,que
navegavamparaaÍndia,játinhamsaído.Pedi-lheentãoqueme
auxiliassenointentodeencontraroutronavio,vistoqueperde-
raestes,tantomaisqueelesabiaalíngua,equeeuestavapronto
aservi-loporminhavez.
Levou-me, para um navio, como artilheiro. O capitão desta
nau chamava-se Pintyado (Penteado) e se destinava ao Brasil,
para traficar e tinha ordens de atacar os navios que comercia-
vam com os mouros brancos da Barbaria. Também se achasse
navios franceses em tráfico com os selvagens do Brasil devia
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aprisioná-los, bem como transportar alguns criminosos 7 sujei-
tosadegredo,parapovoarasnovasterras.
Onossonavioestavabem-aparelhadodetudoqueénecessá-
rioparaguerranomar.Éramostrêsalemães,umchamadoHans
vonBruchhausen,ooutro,HeinrichBrant,deBremen,eeu.
7 Era costume, nessa época, levar-se criminosos em degredo para as terrasrecém-descobertas,afimdeaprenderemalínguadosnaturaiseseremúteisdepoisaocomércioeànavegação.
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v i a g e m a o b r a s i l | h a n s s ta d e n 23
capítulo ii
Descrição da minha primeira viagem de Lissebona para fora de Portugal.
S aímos de Lissebona com mais um navio pequeno, que
tambémpertenciaaonossocapitão,eaportamosprimei-
roaumailhadenominadailhadaMadeira,quepertenceaEl-Rei
dePortugal,eondemoramportugueses.Égrandeprodutorade
vinhoedeaçúcar.Alimesmo,numacidadechamadaFuntschal
(Funchal),embarcamosmantimentos.
Depoisdisso,deixamosailhaemdemandadaBarbaria,para
umacidadechamadaCape de Gel, 8quepertenceaumreimouro,
branco, a quem chamam Shiriffi (xerife). Esta cidade pertencia,
outrora,aEl-ReidePortugal;masfoiretomadapeloShiriffi.Nela
pensávamos encontrar os mencionados navios que negociam
com os infiéis. Chegamos e achamos, perto de terra, muitos
pescadorescastelhanos,quenos informaramquealgunsnavios
estavamparachegar,eaoafastarmo-nossaiudoportoumnavio
bemcarregado.Perseguimo-lo,alcançando-o;porématripulação
escapounosbotes.Divisamosentãoemterraumbotevazioque
bemnospodiaservirparaabordaronavioaprisionado,efomos
buscá-lo.
8 ÉoCabo de Gelo,nacostadoMarrocos,ondeestáacidadeepraçadeArzilla,cercadetrintamilhasdistantedeTânger,equeesteveempoderdosportugue-sesatéqueD.JoãoIIIaabandonou.
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Os mouros brancos chegaram então a cavalo, a protegerem
obarco;masnãopodiamaproximar-seporcausadosnossosca-
nhões.Tomamoscontadonavioepartimoscomanossapresa,
que consistia em açúcar, amêndoas, tâmaras, couros de cabra e
goma-arábica, que levamos até a ilha da Madeira, e mandamos
o nosso navio menor a Lissebona, a informar a El-Rei e receber
instruçõesarespeitodapresa,poisquehavianegociantesvalen-
cianosecastelhanosentreosproprietários.
El-Reinosrespondeuquedeixássemosapresanailhaeconti-
nuássemosaviagem,enquantoSuaMajestadedeliberavasobreo
caso.
Assimofizemos,enavegamosdenovo,atéoCapedeGel,aver
seencontrávamosmaispresas.Porémfoiemvão;fomosimpedi-
dospelovento,quepróximodacostanoserasemprecontrário.
Ànoite,vésperadeTodososSantos,umatempestadenoslevou
da Barbaria para o lado do Brasil. Quando estávamos a400 mi-
lhasdaBarbariagrande,umcardumedepeixescercouonavio;
apanhamosmuitoscomoanzol.Alguns,grandes,eramdosque
osmarinheiroschamavamalbakores.Outros,bonitas,erammeno-
res,eaindaaoutroschamavamdurados. 9Tambémhaviamuitos
dotamanhodoarenque,quetinhamasasnosdoislados,como
osmorcegos,eerammuitosperseguidospelosgrandes.Quando
percebiamisso,saíamdaáguaemgrandescardumesevoavam,
cercadeduasbraçasacimadaágua;muitoscaíampertoeoutros
longeaperderdevista;depoiscaíamoutraveznaágua.Nósos
achávamos frequentemente, de manhã cedo, dentro do barco,
caídosduranteanoite,quandovoavam.Esãodenominadosna
línguaportuguesapisce bolador. 10
9 Sãodourados,nomedeváriasespéciesdepeixesacanthopterygios.10 Éopeixe-voador,comofacilmentesedepreendedanarrativa.
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Daíchegamosatéalinhaequinocialondereinavaintensoca-
lor,porqueaomeio-diaosolestavaexatamenteapinosobreas
nossascabeças.Durantealgumtempo,dedia,nãosopravavento
algum;masdenoitesedesencadeavam,muitasvezes,fortestro-
voadas,acompanhadasdechuva evento, quepassavam rápido.
Entretanto,tínhamosdevelarconstantemente,paraquenosnão
surpreendessem,quandonavegávamosapano.
Mas,quandodenovosoprouovento,quesetornoutemporal,
durantealgunsdias,econtrárioanós, julgamo-nosameaçados
defome,secontinuássemos.OramosaDeus,pedindobomven-
to.Aconteceuentão,umanoite,porocasiãodefortetempestade,
que nos pôs em grande perigo, aparecerem muitas luzes azuis
nonavio,comonuncamaistenhovisto.Ondeasvagasbatiamno
costado,láestavamtambémasluzes.Osportuguesesdiziamque
essasluzeseramumsinaldebomtempoqueDeusnosmandava,
paranosconsolarnoperigo.AgradecíamosentãoaDeus,depois
que desapareciam. Chamam-se santelmo, ou corpus santon, essas
luzes.
Quandoodiaraiou,otemposetornoubom,soprandovento
favorável,demodoquevimosclaramentequetaisluzessãomi-
lagresdeDeus.
Continuamosaviagematravésdooceano,combomvento.
A28de janeiro(1548)houvemosvistadeterra,vizinhadeum
cabo chamado Sanct Augustin. A oito milhas daí, chegamos a
um porto denominado Prannenbucke. 11 Contavam-se oitenta e
quatrodiasquetínhamosestadonomarsemteravistadoaterra.
Aliosportuguesestinhamestabelecidoumacolônia,chamada
11 O nome atual Pernambuco, de procedência do tupi Paranambuca, que aosouvidosdonarradorsoouPranenbucke.(VedeO tupi na geografia nacional,deTheodoroSampaio)Ed.LivrariaProgressoEditora.
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Marin. 12Ogovernadordessacolôniachamava-seArto Koelio, 13a
quementregamososcriminosos;ealidescarregamosalgumas
mercadorias, que lá ficaram. Terminamos os nossos negócios
nesteporto,comintuitodeprosseguirviagematomarcargas.
12 AColôniaaífundadapelosportugueseseraaViladeOlinda,aqueogentiocomeçouachamarmairy,quequerdizercidadeoupovoação,comoacons-truíamoseuropeus.DaíacorruptelaMaryouMarim,comoStadenno-latransmite.
13 É o nome estropiado do primeiro donatário da capitania de Pernambuco.Staden,ignorandooportuguês,teriaescritoArto Koelho,porDuarteCoelho.Oscopistasfizeramoresto.
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capítulo iii
Como os selvagens do lugar Prannenbucke se revoltaram e quiseram destruir a colônia dos portugueses.
Aconteceuqueosselvagensdolugarsetinhamrevoltado
contraosportugueses,oquedantesnuncafizeram;mas
agoraofaziam,porsesentiremescravizados.Porisso,ogoverna-
dornospediupeloamordeDeus,queocupássemosolugardeno-
minadoGarasu, 14acincomilhasdedistânciadoportodeMarin,
ondeestávamosancorados,edequeosselvagenssequeriamapo-
derar.OshabitantesdacolôniadeMarinnãopodiamiremauxílio
deles,porquereceavamqueosselvagensosviessematacar.
Fomos,poisemauxíliodagentedeGarasu,comquarentaho-
mensdonossonavio,eparalánosdirigimosnumaembarcação
pequena.Acolôniaficanumbraçodomar,queavançaduaslé-
guaspelaterraadentro.Haveriaaliunsnoventacristãosparaa
defesa.Comelesseachavammaisunstrintamouroseescravos
brasileiros 15 pertencentes aos moradores. Os selvagens que nos
sitiavam 16orçavamporoitomil.
Tínhamosaoredordapraçaapenasumaestacadademadeira. 17
14 ÉIgarassu(igara-assu),canoagrande,barco,emvezdeIguarassu,comoerro-neamentehojeseescreve.
15 Eramafricanoseíndiosescravos.16 Eramoscaetés,moradoresdasmatas,inimigosdospotiguaras,aliadosdos
portugueses.17 AdotaramosportuguesesnoBrasilomesmoprocessodedefesausadopelo
gentionassuasaldeias,construindoestacadasoucaiçarasemtornodospo-voadosmaisexpostosàinjúriadosselvagens.
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capítulo iv
De como eram suas fortificações e como eles combatiam contra nós.
A o redor do lugar onde estávamos sitiados havia uma
mata,naqualtinhamconstruídodoisredutosdetron-
cosgrossos,ondeserecolhiamànoite;equandonósosatacáva-
mos, para nos guerrilhar. Quando atirávamos sobre eles, caíam
todosporterra,pensandoassimevitarotiro.Tinham-nossitiado
tãobemquenãopodíamossairnementrar.Aproximavam-sedo
povoado;atiravamflechasparaoar,visandonaquedanosalcan-
çar; atiravam fogo com o fim de incendiar os tetos das casas e
combinavamjádeantemãoomododenosdevorarquandonos
houvessemcolhido.
Restava-nosaindaalgummantimento,masestelogoseacabou.
Nestepaíséusotrazerdiariamenteoudedoisemdoisdiasraízes
frescas de mandioca para fazer farinha ou bolos; mas os nossos
nãopodiamseaproximardolugaremqueseencontravamessas
raízes.
Como percebêssemos que nos havia de faltar mantimen-
tos, saímosemdoisbarcosporumlugarchamadoTamaraká 18
a buscá-los. Os selvagens, porém, tinham atravessado grandes
troncosdeárvoresnorioesepostarammuitosdelesnasduas
18 AilhadeItamaracá,queogentiodaterrachamavaIpãussu Itamaracá,daca-pitaniadePeroLopesdeSouza.NailhaestavaaViladeNossaSenhoradaConceição,cabeçadacapitania,situadanapartemeridionalecercademeialéguaacimadafozdorioIgarassu.
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margens,como intuitode impediranossaviagem.Forçamos,
porém, a tranqueira e ao meio-dia, mais ou menos, estávamos
devoltasãosesalvos.Osselvagensnadanospuderamfazernas
embarcações;arrumaram,porém,porçãodelenhaentreamar-
gemeosbarcosaquedeitaramfogo,averseosincendiavam,e
queimavamumaespéciedepimenta,quelácresce,comofimde
nosfazerabandonarasembarcaçõesporcausadafumaça.Mas
nãoforambemsucedidos,e,enquantoisso,cresceuamaréenós
voltamos. Fomos a Tamaraká, onde os habitantes nos fornece-
ramosmantimentos.
Comestesvoltamos,outravez,paraolugarsitiado.Nomesmo
pontoemqueanteshaviampostoobstáculos,tinhamosselvagens
denovoderrubadoárvores,comoanteriormente;masacimado
níveld’águae,namargem,tinhamcortadoduasárvoresdemodo
aficaremaindaempé.Nasramagens,amarraram-lhesunsliames
chamadossippo 19quecrescemcomolúpulo,porémmaisgrossos.
As extremidades ficavam amarradas nas estacadas, e, puxando
porelas,eraseuintentofazertombarasárvorescaindosobreas
nossas embarcações. Avançamos para lá; forçamos a passagem,
caindoaprimeiradasárvoresparaoladodaestacadaeaoutrana
água,umpoucoparatrásdonossobarco.Eantesquecomeçásse-
mosachamar,emvozalta,gritaramosselvagenstambém,para
queosnossoscompanheirosnãonosouvissem,vistoquenãonos
podiamverporcausadeumapequenamatainterposta;mastão
pertoestávamosquenosteriamdecertoouvido,seosselvagens
nãogritassem.
Levamosasprovisõesàpovoação,e,comoosselvagensviram
que nada podiam fazer, pediram a paz e se retiraram. O cerco
19 Éovocábulocípó,dotupiçãpó,quevaledizercordavara,istoé,galhoouramoem forma de corda. Os selvagens sabiam tirar partido dos cipós nas suasconstruçõesenofabricodeutensíliosdomésticos.
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duravahaviaquaseummêseváriosdosselvagensmorreram;ne-
nhum,porém,doscristãos.Umavezpacificadososselvagensvol-
tamosaonaviograndeemMearim,eaítomamoságuaetambém
farinhademandiocaparaservirdemantimento,eogovernador
dacolôniadeMearimnosagradeceu.
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capítulo v
De como saímos de Prannenbucke para uma terra chamada Buttugaris;
encontramos um navio francês e nos batemos com ele.
V iajamosquarentamilhasparadiante,atéumportocha-
madoButtugaris, 20ondepretendíamoscarregaronavio
compau-brasilereceberprovisõesempermutacomosselvagens.
Aochegarmos,aíencontramosumnaviodeFrança,quecarre-
gavapau-brasil.Atacamo-loparaoaprisionar,mascortaram-nos
omastrograndecomumtiro,eseescaparam;algunsdosnossos
morrerameoutrosficaramferidos.
Depois disso, queríamos tornar para Portugal, visto que não
conseguíamos vento favorável para entrar no porto, onde pen-
sávamosobtermantimentos.Oventoera-noscontrário,eassim
fomo-nosembora,comtãopoucasprovisõesquetivemosdepa-
decermuitafome;algunscomiamcourodecabritoquetínhamos
a bordo. Distribuíam-se a cada um de nós por dia um copinho
de água e um pouco de farinha de raiz brasileira (mandioca).
Estivemosassim108diasnomar,enodia12deagostoalcançamos
umas ilhaschamadasLosaSores (LosAçores),quepertencema
El-ReidePortugal;aílançamosâncora,descansamosepescamos.
20 Deve ser Potiguares, como diziam os portugueses, derivado de Petiguara,papa-camarões, apelido de uma nação dos tupis do Nordeste, inimiga doscaetés.OutrosautoresescrevemPetiguaras,casoemqueovocábulosederivadePety-guaras,eentãosignificamascadordefumo,porqueoselvagemdessenome,segundoA.Knivet,traziahabitualmenteentreoslábioseosdentesumafolhadefumo,outabaco.–Olocal,chamadopelonarradorportodoButtugaris,quarentamilhasgermânicasparaonortedeIgaraçu,deveserodaParaíba.
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Alimesmovimosumnavionomar,aoqualnosdirigimospara
verquenavioera.Manifestousernaviodepiratas,quesepuseram
emdefesa;masnósficamosvitoriosose lhes tomamosonavio.
Escaparamnosescaleresparaasilhas.Onaviotinhamuitovinho
epão,comquenosregalamos.Depoisencontramosumascinco
velasquepertenciamaEl-ReidePortugaletinhamdeaguardar
nasilhasavindadeoutronaviodasÍndias,queveioparaumailha
chamadaTercera(Terceira),ondeficamos.Nessailha,tinham-se
reunido muitos navios, todos vindos do novo mundo; uns iam
paraaEspanha,outrosparaPortugal.SaímosdailhaTerceraem
companhiadequasecemnavios,echegamosaLissebona(Lisboa)
a8deoutubro,maisoumenos,doano1548;tínhamosgastode-
zesseismesesemviagem.
Depois, descansei algum tempo em Lissebona e fiquei com
vontade de ir com os espanhóis para as novas terras que eles
possuem.SaíporissodeLissebona,emnavioinglês,parauma
cidade chamada porto Santa Maria, 21 na Castilia (Castela). Ali
queriamcarregaronaviodevinho;daífuiparaumacidadede-
nominadaCivilia, 22ondeencontreitrêsnaviosqueseestavam
aparelhandoparairemaumpaíschamadoRio de Plata,situado
naAmérica.Essepaís,aauríferaterrachamadadePirau, 23que,
hápoucosanos,foidescoberta,eoBrasilsãotudoumaemesma
terrafirme.
Paraconquistaraqueleterritório,mandaram,háanos,navios
dosquaisumvoltarapedindomaisauxílioecontoucomoerarico
emouro.OComandantedostrêsnavioschamava-seDomDiego
21 OportoeacidadedeSantaMariaemEspanha, fronteiraaCádiz,poucoacimadafozdoGuadalete.
22 AcidadedeSevilhanaAndaluzia.23 OPeru,descobertoem1524econquistadoporPizarro.
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deSenabriaedeviaserogovernador,porparted’El-Rei,daquele
país. Fui a bordo de um desses navios que estavam muito bem
equipados.SaímosdeCiviliaparaSanct Lucas , 24porondeagente
deCiviliasaiparaomar,eaíficamosesperandobomvento.
24 OportodeSanLucardeBarrameda,nafozdoGuadalquevir.
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capítulo vi
Narração da minha segunda viagem de Civilia, em Espanha, para a América.
N oanode1549,noquartodiadepoisdaPáscoa,fizemo-
-nos de vela de São Lucas com vento contrário; pelo
queaportamosaLissebona.Quandooventomelhoroufomosaté
asilhasCanáriasedeitamosâncoranumailhachamadaPalama
(Palma),ondeembarcamosalgumvinhoparaaviagem.Ospilotos
dosnaviosresolveram,casodesgarrassemnomar,encontrarem-se
emqualquerterraquefosse,nograu28aosuldalinhaequinocial.
DePalama,fomosatéCape-Virde(CaboVerde),istoé,aponte
verde, situada na terra dos mouros pretos. Aí quase naufraga-
mos; mas continuamos a nossa derrota; o vento porém era-nos
contrárioelevou-nosalgumasvezesatéaterradeGene(Guiné),
ondetambémhabitammourospretos.Depois,chegamosauma
ilha denominada São Tomé, que pertence a El-Rei de Portugal.
Éumailharicaemaçúcar,masmuitoinsalubre.Aíhabitamos
portugueses com muitos mouros pretos, que lhes pertencem.
Tomamoságuafrescanailhaecontinuamosaviagem;perdemos
aídevistadoisdosnossosnavios,que,porcausadeumatempes-
tade,seafastaram,demodoqueficamossós.Osventoseram-nos
contrários,porquenaquelesmarestêmelesaparticularidadede
sopraremdosul,quandoosolestáaonortedalinhaequinocial,
equandoosolestáaosuldestalinhavêmelesdonorte,ecostu-
mamentãopermanecernamesmadireçãodurantecincomeses,e
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porissonãopudemosseguironossorumodurantequatromeses.
Quando, porém, entrou o mês de setembro, começou o vento a
serdonorte,eentãocontinuamosanossaviagemdesul-sudoeste
paraaAmérica.
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capítulo vii
De como chegamos à latitude de 28 graus na terra da América e não pudemos reconhecer o porto para onde íamos, e uma grande
tempestade se desencadeou em terra.
U mdiaqueerao18denovembro,opilototomouaal-
turadosol,queerade28graus,peloqueprocuramos
terraaoeste.Nodia24domesmomêsvimosterra.Tínhamos
estado 6 meses no mar; algumas vezes em grande perigo.
Aproximando-nosde terra,nãoreconhecemosoportonemos
sinais que o primeiro oficial nos tinha descrito. Também não
podíamos nos arriscar a entrar num porto desconhecido, pelo
quecruzamosemfrenteàterra.Começouaventarmuito,detal
modoquetemíamosseratiradoscontraos rochedos,peloque
amarramos alguns barris vazios, nos quais pusemos pólvora,
bem jungidos, e nelas amarramos as nossas armas, de forma
que, se naufragássemos e alguns escapassem, teriam com que
sedefenderemterra,porqueasondaslevariamosbarrisparaa
praia.Continuamosentãoacruzar,masdebalde,porqueovento
atirou-noscontraosrochedoseparcéiscom4braçasdeágua,eà
vistadosimensosvagalhõeshouvemosdeaproarparaterra,na
persuasãodequetodosíamosperecer.QuisDeus,porém,queao
chegarmosmaispertodosescolhossenosdeparasseporto,no
qualentramos.Aíavistamospequenobarcoquefugiudenóse
seescondeupordetrásdeumailha,ondenãoopodíamosver,
nemsaberquebarcoera;porémnãooseguimos.Deitamosaqui
âncora,agradecendoaDeusquenossalvou;descansamoseen-
xugamosanossaroupa.
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Eram mais ou menos duas horas da tarde, quando deitamos
âncora. De tarde, veio uma grande embarcação com selvagens,
que queriam falar conosco. Nenhum de nós, porém, entendia a
línguadeles.Demos-lhesalgumasfacaseanzóis,comquevolta-
ram.Namesmanoite,veio,maisumaembarcaçãocheia,naqual
estavamdoisportugueses.Estesnosperguntaramdeondevínha-
mos.RespondemosquevínhamosdeEspanha.Aistoreplicaram
quedevíamosterumbompiloto,quepudessenoslevaraoporto,
porque,apesardeelesbemoconhecerem,comumatempestade
destas não poderiam ter entrado. Contamos-lhes então tudo e
comooventoeasondasquasenosfizeramnaufragar;equando
nos julgávamos perdidos, ganhamos inesperadamente o porto.
Foi, pois, Deus que nos guiou milagrosamente e nos salvou do
naufrágio;enemsabíamosondeestávamos.
Aoouviremisso,admiraram-semuitoeagradeceramaDeus
enosdisseramqueoportoondeestávamoseraSupraway 25 e
queestávamosa18léguasdeumailha,chamadaSãoVicente, 26que
pertenciaaEl-ReidePortugal,elámoravameleseaquelesoutros
quetínhamosvistonobarcopequenoafugirporpensarqueéra-
mosfranceses.
Perguntamos também a que distância ficava a ilha de Santa
Catarina, para onde queríamos ir. Responderam que podia ser
umas trinta milhas para o sul e que lá havia uma tribo de sel-
vagens chamados cariós (carijós) e que tivéssemos cautela com
eles.Osselvagensdoportoondeestávamoschamavam-setuppin
ikins(tupiniquins)eeramseusamigos,demodoquenãocorriam
perigo.
25 HojeSuperaguy,numalínguadeterraàpartedonortedeParanaguá.26 AilhadeSãoVicentefica,emverdade,maisdistantedoqueno-lodizonar-
rador,seassuasléguasforemdasdevinteaograu.Dessascontam-se48entreosdoispontos.
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Perguntamosmaisemquelatitudeestavaolugar,eresponde-
ram-nos que estava a 28 graus, o que era verdade. Também nos
ensinaramcomohavíamosdeconheceropaís.
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capítulo viii
De como saímos outra vez do porto a procurar o lugar para onde queríamos ir.
Q uandooventodees-suestecessou,melhorouotempo
comoventodenordeste.Levantamosentãoferroeru-
mamosparaaterrajámencionada.Viajamosdoisdias,àprocura
do porto, mas não pudemos reconhecê-lo. Percebemos, porém,
pelaterra,quejátínhamospassadooporto,umavezque,enco-
berto o sol, não podíamos fazer observações, nem voltar com o
ventocontrário.
Mas Deus é salvador nas necessidades. Ao fazermos a nossa
oraçãovespertina,implorandoaproteçãodeDeus,aconteceuque
nuvensgrossasseformassemaosulparaondetínhamosavança-
do.Antesdeterminadaareza,onordesteacalmou,demodoanão
sermaisperceptível,eoventosul,apesardenãoseraépocado
anoemqueelereina,começouasoprar,acompanhadodetantos
trovõeserelâmpagosqueficamosamedrontados.Omartornou-
-se tempestuoso, porque o vento sul, de encontro ao do norte,
levantavaasondasetãoescuroestavaquesenãopodiaenxergar.
Osgrandesrelâmpagoseostrovõesatemorizavamatripulação,
demodoquejáninguémsabiaoquefazerparacolherasvelas.
Esperávamos todos perecer aquela noite. Deus, porém, fez com
queotempomudasseemelhorasse;evoltamosparaolugarde
ondetínhamospartidonaqueledia,procurandodenovooporto,
massemoconseguirmos,porcausadasmuitasilhaspróximasde
terrafirme.
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Comochegássemosaograu28,disseocapitãoaopilotoque
entrasse por detrás de uma ilha e deitasse âncora, a fim de ver
emqueterraestávamos.Entramos,então,entreduasterras,onde
haviaumportoexcelente,deixamosaâncorairaofundoedelibe-
rarmostomaroboteparamelhorexploraroporto.
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capítulo ix
De como alguns dos nossos saíram no bote para reconhecer o porto e acharam um crucifixo sobre uma rocha.
F oinodiadeSantaCatarina,noanode1549,quedeitamos
âncora,e,nomesmodia,algunsdosnossos,bemmuni-
ciados, saíramnoboteparaexplorarabaía.Começamosapen-
sarquefosseumrio,quesechamariodeSãoFrancisco,situado
tambémnamesmaprovíncia,poisque,quantomaisentrávamos,
maiscompridoparecia.
Olhávamosdevezemquando,aversedescobríamosalguma
fumaça, porém nada vimos. Finalmente, pareceu-nos ver umas
cabanaseparalánosdirigimos.Eramjávelhas,sempessoaalgu-
madentro,umailhapequenanafrente,paraaqualnosdirigimos,
apassaranoite,julgandohaveraliumabrigo.Chegamosàilha,
jánoite;nãopodíamos,porém,arriscar-nosairmosaterra,pelo
quealgunsdosnossosforamrodeá-laverseporalihaviagente;
mas não descobriram ninguém. Fizemos então fogo e coramos
umapalmeira,paracomeropalmito,eficamosaliduranteanoi-
te.Demanhãcedo,avançamospelaterraadentro.Nossaopinião
eraquehaviaaligente,porqueascabanaseramdissoumindício.
Adiantando-nos,vimosaolonge,sobreumarocha,ummadeiro,
quenospareceuumacruzenãocompreendíamosquemateria
postoali.Chegamosaelaeachamosumagrandecruzdemadeira,
apoiadacompedrasecomumpedaçodefundodebarrilamarra-
doe,nestefundo,gravadasumasletrasquenãopodíamosler,nem
adivinharqualonavioqueteriaerigidoessacruz;enãosabíamos
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seesseeraoportoondedevíamosnosreunir.Continuamosentão
rioacimaelevamosofundodobarril.Duranteaviagem,umdos
nossosexaminoudenovoainscriçãoecomeçouacompreendê-la.
Estavaaligravadoemlínguaespanhola–SIVEHNPORVENTURA,
ECKYLAARMADADESUMAJESTETTIRENUHNTIREAYAUERAN
RECADO(se viene por ventura aqui lá armada de su magestad, tiren
um tiro y haran recado).Issoquerdizer:Seporacasoaquivierem
naviosdesuamajestade,deemumtiroeterãoresposta.
Voltamosentãosemdemoraparaacruzedisparamosumtiro
depeça,continuandodepois,rioacima,anossaviagem.
Poucodepois,vimoscincocanoascomselvagens,quevieram
sobrenós,peloqueaprontamosasnossasarmas.Chegandomais
perto,vimosumhomemvestidoebarbadoquevinhaàproade
umadascanoasenospareciacristão.Gritamos-lheparafazeralto
àsoutrascanoasevircomumasóaconversarconosco.Quando
senosaproximou,perguntamos-lheemqueterraestávamos;ao
quenosrespondeuqueestávamosnoportodeSchirmirein, 27assim
denominadopelosselvagens,eparamelhorentendermosacres-
centouchamar-seSantaCatarina,nomedadopelosdescobridores.
Alegrou-nosmuitoisso,porqueesteeraoportoqueprocurá-
vamos,semconhecerquejáneleestávamos,coincidindoserisso
nomesmodiadeSantaCatarina.Vede,pois,comoDeussocorre
aquelequenoperigooimploracomfervor.
Entãonosperguntoueledeondevínhamos,aoqueresponde-
mosquepertencíamosàarmadadoReidaEspanha,emcaminho
paraoriodeLaPlata,equehaviamaisnaviosemviagem,que
27 Jurumirim,nomedadopeloscarijós,habitantesdailhadeSantaCatarina,àbocadonortedocanalqueseparaessailhadocontinente.Notupi, – juru--mirimsetraduzbocapequena,barra.OnaviodeSenabriaavistouprimeiroeentrouabarradosuldocanalentreocontinenteeailha,ondeancorou.Navegounocanalcomoseforaumrio,cujacorrentesubiraemumbote,ejápróximodabarradonorteéqueseencontrou,noportodeJurumirimdoscarijós,comoeuropeuquelheacudiraaosinal.
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esperávamos, com Deus, chegassem logo para nos unirmos a
eles.AissorespondeuelequeestimavamuitoeagradeciaaDeus,
porquehaviatrêsanosquetinhasaídodaprovínciadoRiodeLa
Plata,dacidadechamadaLaSoncion, 28pertencenteaosespanhóis,
portersidomandadoaCosta,cidadedistante300milhasdolugar
ondeestávamos,parafazercomqueoscariós,queeramamigos
dos espanhóis, plantassem raízes que se chamam mandioca e
suprissem as naus que disso precisassem. Eram essas as ordens
docapitãoquelevaraasúltimasnovasàEspanhaesechamava
Salaser 29equeagoravoltavacomoutrasnaus.
Acompanhados então dos selvagens até as cabanas onde ele
morava,alifomosbemtratados.
28 A cidade de Assunção, no Paraguai, então acessível pelos portos de SantaCatarina,desdeaprimeiraviagemdeD.ÁlvaroNúñezCabezadeVaca,go-vernadordaquelaterra.
29 JoãodeSalazar,umdoscompanheirosdeD.PedrodeMendoza,nafundaçãodacidadedeBuenosAiresem1534.
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capítulo x
Como me mandaram à nossa nau grande numa canoa cheia de selvagens.
P ediuentãoonossocapitãoaohomem,queachamosen-
treosselvagens,quemandassevirumacanoa,comgente
quelevasseumdenósànau,paraqueestatambémpudessevir.
Ordenou-mequeseguissecomosselvagensatéanau,ausentes
delacomoestávamosjátrêsnoites,semqueagentedebordosou-
bessequefimtínhamoslevado.
Quando cheguei à distância de um tiro da nau, fez-se lá um
grandealarido,pondo-seemguardaamarujaenãoconsentindo
quemaispertochegássemoscomacanoa.Gritaram-me,indagan-
dooquehaviaacontecido,ondeficaramosoutrosecomoéque
vinha eu sozinho naquela canoa cheia de selvagens. Calei-me;
não respondi, porque o capitão me ordenara que fingisse estar
tristeeobservasseoquesefaziaabordo.
Comolhesnãorespondi,diziamláentresi:“Aquihácoisa;os
outros, decerto, estão mortos e estes agora vêm com aquele só,
paraarmar-nosumaciladaetomaronavio.”Queriamentãoatirar
contranós,porémchamaram-meaindaumavez.Comeceientão
amerirelhesdissequeficassemtranquilos,poisquelhestrazia
boas-novas,ecomissopermitiramquemeaproximasse.Contei
entãooquesetinhapassado,oquemuitososalegrou,eosselva-
gensvoltaramsozinhos.Seguimoslogocomanauatépertodas
cabanas,ondefundeamos,àesperadasoutrasnaus,quesetinham
desgarradoporefeitodatempestade.
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Aaldeiaondemoravamosselvagenschamava-seAcuttia, 30eo
homemqueláachamoschamava-seJoãoFernandesBiscainho,da
cidadedeBilbao.Osselvagenseramcariós(carijós)etrouxeram-
-nosmuitacaçaepeixe,dando-lhesnósanzóisemtroca.
30 ÉdotupiAguti,ouAcoti,quehojesedizCutia,nomedoconhecidoroedor(Dasyprocta).Onomeagutioua-cuti,notupiquerdizeraquelequecomedepé,dereferênciaaohábitodoanimaldessenomedetomaroalimentocomaspatasdianteiras,oquelhedá,quandocome,aatitudeereta.
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capítulo xi
Como chegou a outra nau da nossa companhia, que se tinha desgarrado e onde vinha o primeiro piloto.
C omcercadetrêssemanasdeespera,chegou-nosanau
emquevinhaoprimeiropiloto;masaterceiranauera
perdidadetodoenadamaissoubemosdela.
Aparelhamos,então,parasairefizemosprovisãopara6meses,
poishaviaaindacercade300léguasdeviagempormar.
Quandotudoestavaprestes,aconteceu-nosperderanaugran-
denoporto,oqueimpediuanossapartida.
Ficamosaídoisanosnomeiodegrandesperigosesofrendo
fome. Tínhamos que comer lagartos, ratos de campo e outros
animais esquisitos, que lográvamos colher, assim como maris-
cos que vivem nas pedras e muitos bichos extravagantes. Os
selvagens que nos davam mantimentos só o fizeram enquanto
recebiam presentes de nossa parte; fugiram depois para outros
lugares,e,comonãopodíamosfiar-nosneles,dissuadimo-nosde
aícontinuarcomperigodearriscarnossasvidas.
Deliberamos,pois,queamaiorpartedosnossosdevia irpor
terraparaaprovínciadeSumption, 31daídistantecercade300mi-
lhas.Osoutrosiriamnonavioquerestava.Ocapitãoconservava
31 A província do Paraguai, cuja capital. Assunção, era então o mais próspe-ro estabelecimento dos espanhóis no rio da Prata, depois do malogro deMendozaemBuenosAires.OcaminhoporterraparaAssunçãocontinuoupraticadodesdeaviagemqueporelefizeraD.ÁlvaroNúñezCabezadeVacaem1541.
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algunsdenós,queiriamporáguacomele.Osqueiamporterra
levavammantimentosealgunsselvagens.Muitosdeles,écerto,
morreramdefomenosertão;masosoutroschegaramaoseudes-
tinocomodepoissoubemos;entretanto,paraorestodosnossos
homensonavioerapequenodemaisparanavegarnomar.
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capítulo xii
Como deliberamos ir a São Vicente, que era dos portugueses, a arranjar com eles um navio para fretar,
e terminar assim a nossa viagem; porém, naufragamos e não sabíamos a que distância estávamos de São Vicente.
O s portugueses têm perto da terra firme uma ilha de-
nominada São Vicente (Urbioneme , 32 na língua dos
selvagens).Essailhaseachaacercade70milhasdolugarondees-
távamos.Eranossaintençãoirmosatélá,avermossepossívelera
havermosdosportuguesesumbarcode freteeseguirmosatéo
riodeLaPlata,poisqueoquetínhamoserapequenodemaispara
nóstodos.Aessefim,algunsdosnossospartiramcomocapitão
SalazarparaailhadeSãoVicente;masnenhumdenóstinhaláes-
tado,excetoumdenomeRamonqueseobrigouamostrarailha.
Saímos,pois,dofortedeImbiassape 33queseachanograu28,ao
suldoequinócio,echegamoscercadedoisdiasdepoisdanossapar-
tidaaumailhachamadaAlkatrases, 34maisoumenosa40milhas
do lugar de onde saímos. Ali o vento se tornou contrário e nos
32 Urbioneme,seprocedentedotupi,comodizStaden,devesermuitoprovavel-menteUrpióneme,queoutrosescrevemMorpion.
33 É vocábulo tupi que significa porto, lugar na extremidade sul do canal deSanta Catarina, onde ancorou a nau de Senabria. O forte de Imbiassape(mbeaçã-pe)devetersidoalgumaestacadaparaadefesadaspalhoçasemque,pordoisanos,aíseabrigouatripulação.
34 A ilhados Alcatrazes, aatual,fica fronteiraquaseà ilhadeSãoVicente.Oautor, porém, refere-se aqui a outra ilha muito mais ao sul, distante cercade 40 milhas do porto donde partira a nau, que ficava a 28° latitude sul, eSão Vicente, lhe ficava a 70. Guardada a devida proporção para as milhasalemãs,essailhadosAlcatrazespodeseralgumdosilhéusnaalturadabarradeParanaguá.
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obrigouaancorar.Nailhahaviamuitospássarosmarítimoscha-
madosAlkatrases,quesãofáceisdeapanhar.Eratempodaincuba-
ção.Desembarcamosparaprocuraráguapotáveleencontramos
cabanasvelhasecacosdepanelasdosselvagens,quelátinham
morado.Tambémachamosumaspequenasfontesnarocha.Ali
matamosmuitosdaquelespássaroselheslevamososovospara
bordo, onde os cozinhamos. Acabada a refeição, assaltou-nos
grandetempestadedosulquenosfezrecearlargassemasâncoras
efosseanauarremessadasobreosrochedos.Issojápelatarde,e
pensávamos ainda alcançar o porto chamado Caninee. 35 Mas
anoiteceuantesdechegarmosenãopudemosentrar.Afastamo-
-nosentãodeterracomgrandeperigo,pensandoacadainstante
queasvagasdespedaçassemonavio,poisquepertodaterrasão
elasmuitomaioresdoqueaolongenoalto-mar.
Duranteanoitetínhamos-nosafastadotantoquedemanhãjá
nãoenxergamosmaisaterra.Somentemuitodepoisapareceuela
àvista,masatempestadeeratamanhaquepensamosnãoresistir.
Entãoaqueledosnossosquejáaquitinhaestadojulgoureconhe-
cerSãoVicente,eaproamosparalá.Umagrandeneblina,porém,
nosnãodeixoureconhecerbematerraetivemosdealijartudo
queerapesadoparaaliviaronavio.Estávamoscommuitomedo,
aindaassimavançamoscomointuitodeencontraroporto,onde
moramportugueses,masnosenganamos.
Quando enfim a névoa se dissipou um pouco, deixando ver
terra, disse Ramon que se lembrava de estar o porto ali à nossa
frente e bastava dobrar o promontório para o alcançarmos por
detrás.Seguimosentão;masquandochegamossóvimosamorte,
35 ÉoportodeCananeiaemSãoPaulo,bastanteconhecidodesdeosprimeirostempos do descobrimento. Staden escreve Caninee, o que combina quasecomCanenédagrafiadeFreiVicentedoSalvadornasuaHistória do Brasilde1627,oquefazsuporqueessenomeeradeprimitivaprocedênciaindígena,istoé,Canineo,Canané,equivalenteaCanindé,nomedeumaespéciedearara.
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porquenãoeraalioporto,oquenosobrigou aembicarparaa
terraenaufragar.Asondasbatiammedonhamentecontraaterra,
erogamosaDeusquenossalvasseaalma,fazendooqueosmari-
nheiroscostumamquandoestãoemperigodenaufrágio.
Aochegarmosaopontoondeasvagasarrebentavam,suspen-
diam-noselastãoaltocomoseestivéssemossobreumamuralha.
Logo ao primeiro baque em terra a nau se despedaçou. Alguns
saltavam no mar e nadavam para a costa, outros ali chegavam
agarradosaosdestroçosdonavio.AssimDeusnosajudouache-
garvivosemterra,continuandooventoeachuva,quequasenos
enregelavam.
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capítulo xiii
Como viemos a saber em que país de selvagens tínhamos naufragado.
C hegando à terra, demos graças a Deus que nos conce-
deudealcançarvivosacosta,aindaqueinquietospor
não sabermos em que lugar estávamos, visto que o Ramon não
conheciaaquelaparagem,nemsabiaseestávamoslongeouperto
deSãoVicente,ousealihaviaselvagensquenospudessemfazer
mal. Um dos companheiros, de nome Cláudio, que era francês,
começouacorrerpelapraiaparaseaquecer,quandoderepente
reparou numas casas que ficavam por detrás do mato e que se
pareciam com casas de cristãos. Dirigiu-se então para lá e deu
comumlugarondemoravamportuguesesesechamavamItenge-
-Ehm, 36cercadeduasmilhasdistantedeSãoVicente.Contou-lhes
entãoonossonaufrágioeomuitofrioquesofríamossemtermos
para onde ir. Quando isso ouviram vieram correndo ao nosso
encontroenoslevaramparasuascasas,dando-nosroupas.Aíper-
manecemosalgunsdias,atéganharmosforças.
Desselugar,fomosporterraatéSãoVicente,ondeosportugue-
sesnosreceberambemenosderamalimentoporalgumtempo.
36 ÉabarradeItanhaém,grafadoonomecomosoaraaosouvidosdonarrador–Itenge-Ehm,nacostaaosudoestedeSãoVicente,ondejá,nessetempo,haviaumnúcleodecolonosportugueses.Onomeindígenaprocededeitá nhaen,quesignificabacia de pedra,muitoconformecomoaspectodalocalidadequeédeverasumabaciarodeadadepedras,dasquaisnamaisaltaestáaigre-jadeN.S.daConceição.
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Uma vez verificada a perda das nossas naus, mandou o capitão
umnavioportuguêsàbuscadosoutroscompanheirosnossosque
tinhamficadoemByassape, 37oqueserealizou.
37 É o mesmo porto de Imbiassape, donde saíra a nau de Senabria para SãoVicente.Agrafiadoautorémuitoincertanosnomesbárbaros.Byasapeaqui,Imbiassape no capítulo antecedente. No tupi, como vimos, mbeaçá-pe, dequemaiscomumentesefezpeuçápe,esignificaliteralmente,noportoouaoporto.
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capítulo xiv
Como está situado São Vicente
S ão Vicente é uma ilha muito próxima da terra firme e
ondehádoislugares,umdenominadoemportuguêsSão
VicenteenalínguadosselvagensOrbioneme. 38Ooutro,quedista
cercade2léguaschama-seYwawasupe, 39alémdealgumascasas
nailhaquesechamamingenio, 40nasquaissefazaçúcar.Ospor-
tugueses,queaímoram,têmporamigaumanaçãobrasílicade
nome tuppin ikin, 41cujasterrasseestendempelosertãoadentro,
cercade80léguaseaolongodomarumas40léguas.Estanação
teminimigosparaambososlados,paraosuleparaonorte.Seus
inimigosparaoladodosulchamam-secariós(carijós)eosdolado
38 OrbiónemeouUrbioneme,comonoCap.XII.39 YwawasupeparececorresponderaovocábulotupiIguaguasupe,istoé,íguá-
-guassú-pe, que vale dizer no lagamar grande, querendo referir-se provavel-menteaocanaloubraçogrande,ondeseergueudepoisacidadedeSantos.
40 Ingenio por engenho, fábrica de açúcar de propriedade do donatário quedepoisaarrendouaJorgeErasmoSchoteresechamou,porisso,fazenda do trato,deSãoJorgedosErasmos.
41 Ogentiotupininquimdominava,comefeito,nessaépoca,olitoralnamaiorparte de sua extensão, partindo ao norte com os tupinambás do Rio deJaneiro,eaosulcomoscarijós.Desconhecidaeraaextensãodoseudomí-nionosertão;oautor,porém,avalia issoemoitenta léguasaproximada-mente.Nesseâmbitosecompreendiamosguayanazes,querosdocampo,querosdomato,osquaisseligavamporvezesaos tupininquinsporlaçosconsanguíneos,comono-lotransmiteAnchieta.Osguayanazesnãoeram,porém,tupis.
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donorte,tuppin inbá.Apelidam-nostawaijar 42osseuscontrários,
oquequerdizerinimigo.Sofrem-lhesosportuguesesmuitosda-
noseaindahojeelessearreceiam.
42 Tawaijar,asignificarcontrário,ouinimigo,seescreveránotupitobaiguara, que vale dizer fronteiro, oposto ou literalmente indivíduo em face.
Tawaijar,tomadocomotabayaroutabayara,querdizersenhordealdeias,aldeõesmoradoresdealdeias.
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capítulo xv
Como se chama o lugar donde lhes vem a maior perseguição e como está situado.
A cincomilhasdeSãoVicenteháumlugardenominado
Brikioka, 43 onde os inimigos selvagens primeiro che-
gam,paradaíseguiremporentreumailhachamadaSanto Maro 44
eaterrafirme.
Paraimpediressecaminhoaosíndios,haviaunsirmãosma-
melucos,oriundosdepaiportuguêsemãebrasileira,todoscris-
tãosetãoversadosnalínguadoscristãoscomonadosselvagens.
Omaisvelhochamava-seJohan de Praga(JoãodeBraga),osegun-
do,Diego de Praga(DiogodeBraga),oterceiro,Domingos de Praga
(Domingos de Braga), o quarto, Francisco de Praga (Francisco de
Braga),oquinto,Andréa de Praga(AndrédeBraga),eopaichama-
va-seDiego de Praga(DiogodeBraga).
43 Brikioka é corruptela do nome tupi piraty-oca, donde procede o atual –Bertioga,nomedocanalqueseparaailhadeSantoAmarodocontinente.
OautorteriaescritoBritiokaeocopista,Brikioka,oquedeuasaainterpre-tações diversas. O canal é um excelente abrigo dos cardumes de tainhas(piraty),eoíndioquissignificarissocomonomedepiratyoca,quevaledizerparadeirodastainhas.Ovocábulotupipiratyevoluiunadicçãoportuguesaparaparaty,dondedepoisvieramparty,barty,berty,ouberti,queécomoorasevênacomposiçãodonomeBertioga.
44 SantoAmaroéonomedadopelosportuguesesàilhavizinhadeSãoVicente,aqueogentiochamavaGuaybeouGuaimbé,equefoionomedacapitaniadoadaaPeroLopesdeSouzanazonadosul.
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Cercadedoisanosantesdaminhavinda,oscincoirmãosti-
nhamdecididocomalgunsíndiosamigosedificarumacasa-forte
paradeteroscontrários,oquejátinhamexecutado.
Aelesseajuntarammaisalgunsportugueses,seusagregados,
porque era a terra boa. Os inimigos tuppin inbás, logo que isso
descobriramseprepararamnasuaterra,dalidistantecercade25
milhas,evieramumanoitecom70canoas,e,comodeseucos-
tume,atacaramdemadrugada.Osmamelucoseosportugueses
correramparaumacasa,quetinhamfeitodepauapiqueeaíse
defenderam.Osoutrosselvagensfugiramparasuascasaseresisti-
ramquantopuderam.Assimmorrerammuitosinimigos.Maspor
fimvenceramesteseincendiaramosítiodeBrikioka;capturaram
todososselvagens,masaoscristãos,queeramunsoitomaisou
menos,eaosmamelucosnadapuderamfazerporqueDeusquis
salvá-los. Aos outros selvagens, porém, que tinham capturado,
esquartejaram-noserepartiram-nosentresi,depoisdoquevolta-
ramparasuaterra.
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capítulo xvi
Como os portugueses reedificaram Brikioka e depois fizeram uma casa-forte na ilha de Santo Maro.
D epois disso pensaram as autoridades e o povo que
erabomnãoabandonareste lugar,masquecumpria
fortificá-lo,poisquedestepontotodopaíspodiaserdefendido.E
assimofizeram.
Quando os inimigos perceberam que o lugar lhes oferecia
grande dificuldade de ataque, vieram de noite, mas por água, e
aprisionaramaquantosencontraramemSãoVicente.Osquemo-
ravammaislongepensavamnãocorrerperigo,vistoexistiruma
casa-fortenavizinhança,peloquesofrerammuito.
Porcausadisso,deliberaramosmoradoresedificaroutracasa
aopédaágua,ebemdefrontedeBrikioka,eaícolocarcanhões
egenteparaimpedirosselvagens.Assimtinhamcomeçadoum
fortenailha;masnãootinhamacabado,àfaltadeartilheiropor-
tuguêsquesearriscasseamorarali.
Fuiverolugar.Quandoosmoradoressouberamqueeueraale-
mãoequeentendiadeartilharia,pediram-meparaficarnoforte
eajudá-losavigiaroinimigo.Prometiamdar-mecompanheirose
umbomsoldo.Diziamtambémqueseeuofizesseseriaestima-
dopelorei,porqueestecostumavavercombonsolhosaqueles
que,emterrasassimnovas,contribuíamcomseuauxílioeseus
conselhos.
Contratei com eles para servir quatro meses na casa, depois
do que um oficial devia vir por parte do rei, trazendo navios, e
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edificaraliumfortedepedra,paramaiorsegurança;oquefoifei-
to.Amaiorpartedotempoestivenofortecommaistrêsetinha
algumaspeçascomigo,masestavasempreemperigodosselva-
gens,porqueacasanãoestavabemsegura.Eranecessárioestar
alertaparaqueosselvagensnãonossurpreendessemdurantea
noite,oqueváriasvezestentaram;porém,Deussemprenosaju-
dou,esempreospercebemos.
Depois de alguns meses, chegou um oficial por parte do rei,
poisque lhetinhamescritoquãograndeeraoatrevimentodos
selvagenseomalqueosmesmoslhefaziam.Tambémtinhames-
critoquãobelaeraestaterraenãoserprudenteabandoná-la.Para
entãomelhoraressascondições,veioogovernadorTomé de Susse
(TomédeSouza)paraveropaíseolugarquequeriamfortificar.
Contaram-lhe também os serviços que eu tinha prestado; e
queeutinhaficadonacasa-forte,ondealiásnenhumportuguês
queriapermanecer,porestarmuitomaldefendida.
Issooagradoumuitoeeledissequeiafalaraoreiameures-
peito,seDeuslhepermitissevoltarparaPortugal,comoqueeu
haviadeaproveitar.
Acabou, porém, o tempo de meu serviço, que era de quatro
meses,epedilicença.Ogovernador,comtodoopovo,pediu-me
queficassepormaisalgumtempo.Respondiquesimequeficava
aindapordoisanos;e,quandoacabasseestetempo, tinhamde
deixar-mevoltarnoprimeironavioparaPortugal,ondeoreiha-
viaderecompensarosmeusserviços.Paraestefim,deu-meogo-
vernador,porpartedorei,asminhasprivilegia(patentes),como
édecostumedar-seaosartilheirosreais,queaspedem.Fizeram
acasadepedras,puseramdentroalgunscanhões,eordenaram-
-mequezelassebemdacasaedasarmas.
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capítulo xvii
Como e por que motivo tínhamos de observar os inimigos mais numa época do ano do que na outra.
E ranecessárioestarmaisalertaemduasépocasdoano
doquenoresto,quandoosinimigostratavamespecial-
mente de invadir com forças o país. E estas duas épocas eram:
primeiro, no mês de novembro, quando umas frutas de nome
abbati 45amadureciam,edasquaispreparavamumabebidacha-
madadekaa wy. 46Alémdessahátambémumaraizdenominada
mandioka,quemisturamcomoabbati,quandomaduro,parafazer
asuabebida.Quandovoltamdeumaguerra,queremterosabbatis
parafabricaressabebida,queéparaquandocomemosinimigos,
setiveremcapturadoalgum,eduranteoanointeiroesperamcom
impaciênciaotempodosabbatis.
Tambémemagostodevíamosesperá-los,porquenessetempo
vãoàcaçadeumaespéciedepeixe,queentãosaidomarparaa
águadoce,ondedesova.Estespeixeschamamelesemsualíngua
brati 47 (parati), e os espanhóis lhes dão o nome de lysses. Nesse
tempocostumamsairparaocombate,comofimdetertambém
mais abundância de comida. Os tais peixes, eles apanham com
pequenas redes ou matam-nos com flechas, e levam-nos fritos
45 Abbatiouavatyéomilhonalínguadogentiotupi.46 Kaa wy, é o mesmo cauim, bebida preparada com o milho mastigado e
fermentado.47 Bratiéomesmoparatydogentio,queemportuguêssechamatainha.
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consigo em grande quantidade; também fazem deles uma fari-
nha,aquechamampira-kui. 48
48 Pirá-kui é o vocábulo tupi pirá-cui, que se traduz farinha de peixe, porquefabricadacomopeixesecoemoqueado.
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capítulo xviii
Como fui aprisionado pelos selvagens e como isso aconteceu.
T inha comigo um selvagem de uma tribo denominada
cariós,queerameuescravo.Elecaçavaparamimecom
elefuiàsvezesaomato.
Aconteceu porém uma vez que um espanhol da ilha de São
VicenteveiomevisitarnailhadeSanto Maro,queficaacercade5
milhas,emaisumalemãodenomeHeliodorusHessus,filhode
Eobanusfalecido.EstemoravanailhadeSãoVicente,numinge-
nio 49ondesefabricavaaçúcar.Esseingeniopertenciaaumgenovês
quesechamava Josepe Ornio 50 (GiusephAdorno)eoHeliodorus
eracaixeiroegerentedonegociantedonodoingenio(ingeniosão
casasondesefabricaaçúcar).JáconheciaesseHeliodorusporque
quandonaufragueicomosespanhóisestavaelecomagenteque
encontramosemSãoVicenteeficoudesdeentãomeuamigo.Veio
eleparaver-me,poistinhasabidotalvezqueeuestavadoente.
Nodiaanteriortinhaeumandadoomeuescravoparaomato
aprocurarcaça,equeriabuscá-lanodiaseguinteparateralguma
coisaquecomer,poisnaquelepaísnãohámuitacoisamais,além
doquehánomato.
49 Leia-seengenho,fábricadeaçúcarnoBrasil.50 ÉonomeestropiadodogenovêsGiuseppeDoria,dequeentreosportugue-
sesse fez JoséAdorno,homemempreendedore troncode famílianotávelnosprimeirostemposdacolônia.
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Quando eu ia indo pelo mato, ouvi dos dois lados do cami-
nhoumagrandegritaria,comocostumamfazerosselvagens,e
avançando para o meu lado. Reconheci então que me tinham
cercado e apontavam flechas sobre mim e atiravam. Exclamei:
Valha-me Deus! Mal tinha pronunciado essas palavras quando
meestenderamporterra,atirandosobremimepicando-mecom
as lanças.Masnãomeferirammais(graçasaDeus)doqueem
umapernadespindo-mecompletamente.Umtirou-meagravata,
outro,ochapéu,oterceiro,acamisaetc.,ecomeçavamadisputar
aminhaposse,dizendoumquetinhasidooprimeiroachegara
mim,eooutro,quemetinhaaprisionado.Enquantoissosedava,
bateram-me os outros com os arcos. Finalmente, dois levanta-
ram-menucomoestava,pegando-meumemumbraçoeooutro,
no outro, com muitos atrás de mim, e assim correram comigo
pelomatoatéomar,ondetinhamsuascanoas.Chegandoaomar
vi,àdistânciadeumtirodepedra,umaouduascanoassuas,que
tinhamtiradoparaterra,porbaixodeumamoitaecomumapor-
çãodeles,emroda.Quandomeavistaram,trazido,pelosoutros,
correramaonossoencontro,enfeitadoscomplumas,comoera
costume, mordendo os braços, fazendo com isso compreender
quemequeriamdevorar.Diantedemim,iaumreicombastãoque
serveparamatarosprisioneiros.Fezumdiscursoecontoucomo
metinhacapturadoefeitoseuescravooperot 51(assimchamam
aos portugueses), querendo vingar em mim a morte de seus
amigos.Eaolevarem-meatéascanoas,algunsmedavambofe-
tadas.Apressaram-seentãoemarrastarascanoasparaaágua,de
51 Perot,ouantesperó,écomoogentiochamavaaosportugueses,eaosfrancêschamavamair.PerôqueremalgunsquesejaumacorrupçãodonomePedro;queremoutros,porém,quesejaomesmovocábulotupipiro,quevaledizerroupadecouro,porqueosportuguesesseencouravamparaassuaslutasnosertão.
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medodequeemBrikiokajáestivessemalarmados,comodefato
estavam.
Antes,porém,dearrastaremascanoasparaaágua,manieta-
ram-me, e, como não eram todos do mesmo lugar, cada aldeia
ficou zangada por voltar sem nada e disputavam com aqueles
que me detinham. Uns diziam que tinham estado tão perto de
mimcomoosoutros,equeriamtambémtersuaparte,propondo
matar-meimediatamente.
Eu orava e esperava o golpe; porém, o rei, que me queria
possuir, disse que desejava levar-me vivo para casa, para que as
mulheres me vissem e se divertissem à minha custa, depois do
quematar-me-iaekawewi pepicke, 52istoé,queriamfabricarasua
bebida, reunir-se para uma festa e me devorar conjuntamente.
Assimmedeixaramemeamarraramquatrocordasaopescoço,
fazendo-meentrarnumacanoaenquantoaindaestavamemterra.
Aspontasdascordasaamarraramnacanoa,quearrastarampara
aáguaparavoltarparaaaldeia.
52 Kawewi pepickeéfrasetupi,omesmoquecaium pipig,quequerdizercauimferve. O bárbaro quis dizer que mataria o prisioneiro com solenidade e ocauimhaviadeferver.
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capítulo xix
Como queriam voltar e os nossos chegaram para me reclamar, e como voltaram para eles e combateram.
A opédailha,naqualfuiaprisionado,háumaoutrailha
pequena, onde se aninham uns pássaros marítimos
denomeuwara, 53quetêmpenasvermelhas.Perguntaram-meos
índiosseosseusinimigostuppin ikinstinhamestadoláesteano,
para apanhar os pássaros e os filhotes. Disse-lhes que sim, mas
quiseramverelesmesmos,poisestimammuitoaspenasdaqueles
pássaros,porquetodososseusenfeitessãogeralmentedepenas.
A particularidade desse pássaro é que suas primeiras penas são
pardacentas, ficando pretas quando começam a voar, tornando-
-sedepoisencarnadas,comotintavermelha.Foramentãoparaa
ilhapensandoencontraraíospássaros.Quandotinhamchegado
a cerca de dez tiros de espingarda do lugar onde tinham deixa-
do as canoas, voltaram-se e avistaram um bando de tuppin ikins
e alguns portugueses entre eles, porque um escravo que me ti-
nhaacompanhado,quandofuiagarrado,escaparaederaalarma
quandomeprenderam.Pensavamvirlivrar-meegritaramparaos
quemecapturaramqueviessemcombater, se tinhamcoragem.
Voltaramentãocomacanoaparaosqueestavamemterraeestes
atiraramcomzarabatanas 54eflechas,eosdacanoaresponderam;
53 Uwaraéovocábulotupiwaráouguará,comoogentiochamavaaavedepenasrosadas,aibis rubra.
54 PorenganoLöfgrentraduziu“rore”por“zarabatana”,armadearremessodeseta hervada, por um tubo no qual se assoprava, desconhecida dos índios
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desataramasminhasmãos,masascordasdomeupescoçoconti-
nuavamfortementeatadas.
Orei , 55queestavacomigonacanoa, tinhaumaespingardae
umpoucodepólvora,queumfrancêslhederaemtrocadepau-
-brasil.Ordenou-mequeatirassesobreosqueestavamemterra.
Depoisdeteremcombatidoumpouco,ficaramcommedode
que os outros tivessem canoas para os perseguir, pelo que fugi-
ram.Trêsdelestinhamsidoferidos.Passaramacercadeumtiro
de falconete 56 de Brikioka, onde eu costumava estar, e quando
passamosdefrontefizeram-meficarempé,paraquemeuscompa-
nheirosmevissem.Dofortedisparamdoisgrandestiros,porém
nosnãoalcançaram.
Enquanto isso, saíram algumas canoas de Brikioka para nos
alcançar,masosselvagensfugiramdepressa,e,vendoosamigos
quenadapodiamfazer,voltaram.
da costa.Espingarda éoqueé,queessesselvagenspossuíampor trocacomos franceses.Essaadvertênciaquenos fezoSr.ProfessorRoquettePinto,eque aceitamos, confirma-se pela nota que o Prof. Wegner pôs nesta alturadotextofac-similardeFrankfurt:“Rore”–espingardaemcujaposse,aoqueparece,estavamostupisdacosta,emdiferentescasosisolados.AzarabatananãoerausadapelostupisdacostadoBrasil.–A.P.
55 Onarradorchamareiaoprincipaldatriboqueoaprisionou.Entreostupis,esseprincipaleraomorubixabaoutuxaua.
56 PoressafrasesevêqueonarradorforacomefeitocapturadoemumpontodailhadeSantoAmaro,paraoladodedentrodoscanaiselagamares,sendoen-tãoconduzidopelosíndiosatravésdabarradeBertioga,passandoemfrentedoforteouaoalcancedeumtirodefalconete.
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o66
capítulo xx
O que se passou na viagem para a terra deles.
C omo havia mais ou menos sete milhas de caminho
de Brikioka à terra deles, seriam, conforme a posição
do sol, cerca de 4 horas de tarde desse mesmo dia quando me
capturaram.
Foramaumailhaepuxaramascanoasparaterra,pretendendo
ficaraíessanoite,emetiraramdacanoa.Umavezemterra,nada
podiaenxergarporquemetinhamferidonacara,nempodiaan-
darporcausadaferidadaperna,peloquefiqueideitadosobrea
areia.Cercaram-me,comameaçasdemedevorar.
Estando nessa grande aflição, pensava no que nunca tinha
cogitadonestevaledelágrimas,ondevivemos.Comosolhosba-
nhadosempranto,comeceiacantardofundodomeucoraçãoo
Salmo:“AtiimploromeuDeus,nomeupesar,etc.”Osselvagens
diziamentão:“Vedecomoelechora,ouvecomoselamenta.”
Parecia-lhes,noentanto,quenãoeraprudenteficarnailhadu-
ranteanoite,eseembarcaramdenovo,parairàterrafirme,onde
estavamumascabanasqueantestinhamlevantado.Quandoche-
gamos,eraaltanoite.Acenderamentãofogueiraseconduziram-
-meparalá.Aítivededormirnumaredequenalínguadelesse
chamainnieéacamadeles,queamarramadoispausacimado
chão, ou, quando estão no mato, a duas árvores. As cordas que
eutinhanopescoço,amarraram-nasporcimanumaárvoreese
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deitaram em roda de mim, caçoando comigo e me chamando
Schere inbau ende : 57“Tuésmeubichoamarrado.”
Antes de raiar o dia saíram de novo, remaram todo o dia e
quandoosoldescambounohorizontefaltavam-lhesaindaduas
milhas para chegar ao lugar onde queriam pousar. Levantou-se
entãograndenuvemnegrapordetrásdenós,tãomedonhaqueos
obrigouaremarcomtodaapressaparaalcançaraterra,porcausa
doventoedosbulcões.
Quando viram que já não podiam escapar, disseram-me: Ne
mungitta dee, tuppan do Quabe, amanasy y an dee Imme Ranni me
sisse , 58oquerdizer:“PedeateuDeusqueagrandechuvaevento
nãonosfaçammal.”Calei-me,fizaminhaoraçãoaDeus,como
pediram,edisse:“Ótu,DeusOnipotente,quetensopodernaterra
enocéu;tuquedocomeçoauxiliasteaquelesqueimploramoteu
nomeequeosescutaste,mostraatuaclemênciaaessespagãos,
paraqueeusaibaquetuaindaestáscomigoeparaqueosselva-
gens,quetenãoconhecem,possamverquetu,meuDeus,ouviste
aminhaoração.”
Estava deitado na canoa e amarrado, de modo que não po-
diaverotempo,maselesvoltavam-secontinuamenteparatrás
e começavam a dizer “O qua moa amanassu”, 59 o que quer dizer:
“Agrandetempestadeficaparatrás.”Ergui-meentãoumpouco,
olhei para trás e vi que a grande nuvem se dissipava. Agradeci
entãoaDeus.
57 Schere inbau endeéfrasetupialteradaequecorrespondeache remimbab ndé,cujatraduçãoaopédaletraémeubichodecriaçãotu,istoparasignificaraoprisioneiroqueeledaliemdianteerabichodecriaçãoelhespertencia.
58 Afrasetupiéaseguinte:“Ne monghetá ndé Tupan quaabe amanaçú yandê eima rana mocecy”,cujatraduçãoé“PedeateuDeusqueaquelatempestadenãonosfaçamal”.
59 Corrigindoafrasetupi,diga-se:“Oquara mõ amanaçú”,oquequerdizeratem-pestaderecolhe-se.
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Chegandoemterra,fizeramcomigocomodantes;amarraram-
-me a uma árvore e deitaram-se ao redor de mim, dizendo que
estávamos agora perto da terra deles, onde chegaríamos no dia
seguinteàtarde,oquemuitopoucomealegrou.
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capítulo xxi
Como me trataram de dia, quando me levaram às suas casas.
Nomesmodia,ajulgarpelosol,deviaserpelaave-maria,
maisoumenos,quandochegamosassuascasas;havia
játrêsdiasqueestávamosviajando.Eatéolugarondemeleva-
ram,contavam-setrintamilhasdeBrikioka, 60ondeeutinhasido
aprisionado.
Ao chegarmos perto das suas moradas, vimos que era uma
aldeia com sete casas e se chamava Uwattibi . 61 Entramos numa
praia que vai abeirando o mar e ali perto estavam as suas mu-
lheres numa plantação de raízes, a que chamam mandioca. Na
mesmaplantaçãohaviamuitasmulheresquearrancavamdessas
raízesefuiobrigadoentãoagritarnalíngua:“A Junesche been ermi
vramme , 62istoé:“Eu,vossacomida,cheguei.”
Umavezemterracorreramtodosdascasas(queestavamsitua-
das num morro), moços e velhos, para me verem. Os homens
iamcomflechasearcosparasuascasasemerecomendaramàs
mulheresquemelevassemconsigo,indoalgumasadiante,outras
atrásdemim.Cantavamedançavamuníssonososcantosquecos-
tumam,comocantasuagentequandoestáparadevoraralguém.
60 AgrafiadonomeBertiogavarianestanarração.Brickioka,Brikiocaetc.61 Uwattibi,oumelhorUbatyba,dequeporcorrupçãosefezUbatuba.62 Afrasetupirestauradaé:“Ayú ichebe enê remiurama”quesetraduzcheguei
eu,vossoregalo,ou,emoutrostermos:“Aquiestouparavossacomida.”
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Assimmelevaramatéaywara, 63diantedesuascasas, istoé,
asuafortificação,feitadegrossasecompridasachasdemadeira,
comoumacercaaoredordeumjardim.Issoservecontraosini-
migos.Quandoentrei,correramasmulheresaomeuencontroe
mederambofetadas,arrancandoaminhabarbaefalandoemsua
língua:“Sche innamme pepike a e”, 64oquequerdizer:“vingoemtio
golpequematouomeuamigo,oqualfoimortoporaquelesentre
osquaistuestiveste”.
Conduziram-me,depois,paradentrodecasa,ondefuiobriga-
doamedeitaremumainni.Voltaramasmulheresecontinuaram
amebateremaltratar,ameaçandodemedevorar.
Enquantoisso,ficavamoshomensreunidosemumacabanae
bebiamoseukawi,tendoconsigoosseusdeuses,quesechamam
tammerka, 65emcujahonracantavam,porteremprofetizadoque
mehaviamdeprender.
Talcantoouviduranteumameiahorasenãoapareceuumsó
homem;somentemulheresecriançasestavamcomigo.
63 Ywaradevesergrafiaerrôneadotupiywiráouybirá,quesignificamadeira,tranqueira,paus,materialcomqueogentioconstruíaacaiçara,ouestacada,emtornodassuasaldeias.
64 Afrasetupideveescrever-seche anama pipike aé,esetraduz:”meusparentesvingoemti”,queécomosedissessemaoprisioneiro:“agoramepagarásosmeus”.
65 Tawerka, ou antes, itamaracá, que quer dizer sino ou chocalho de ferro. Onarradordecertoconfundeomaracácomitamaracá.Estenãoeraobjetodocultogentio,esimaquelequeeratidocomosagradoeporissooenfeitavameoguardavamemsítioreservado.
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capítulo xxii
Como os meus dois amos vieram a mim e me disseram que me tinham dado a um amigo que me devia guardar e matar
quando me quisessem comer.
N ão conhecia eu ainda seus costumes, tão bem como
depois, e pensava agora que se preparavam para me
matar.Logodepoisvieramosdoisquemecapturaram,denome
Ieppipo WasueseuirmãoAlkindar Miri , 66emecontaramcomome
tinhamdadoaoirmãodeseupai,Ipperu Wasu, 67poramizade.Este
medeviaconservarematarquandomequisessemcomer,eassim
ganharumnomeàminhacusta.
ComoessemesmoIpperu Wasutinhacapturadoumescravo,
haviaumano,eporamizadedelefizerapresenteaAlkindar Miri,
esteomatoueganhoucomissoumnome.Alkindar Miri tinha
entãoprometidoaIpperu Wasudefazerpresenteaeledoprimeiro
quecapturasse.Esteeraeu.
Os dois que me capturaram disseram-me mais: “Agora, as
mulherestelevarãoparafora,Aprasse .” 68Nãocompreendientão
estapalavra,quequerdizerdançar.Puxaram-meparafora,pelas
cordasqueaindatinhaaopescoço,atéapraça.Vieramtodasas
66 Ieppipo Wasu, Alkindar Miri são nomes um tanto alterados. Wasu podeser uma leve alteração de ye-pipo-uaçu, traduzindo-se “esguicho grande”.Alkindar Miripareceumaalteraçãodearacundá mirim,papagaiodemeneiospequeno.
67 Ypperu Wasuéomesmoipiru guassudotupi,esignificaotubarãogrande.68 Aprasseéalteraçãodovocábulotupiaporacê,ou,simplesmente,poracêque
querdizer,“reuniãoparafolguedoouparadançar”.
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mulheresquehavianassetecabanasemelevaram,eoshomens
seforamembora.Umaspegaram-menosbraços,outrasnascor-
dasquetinhaaopescoço,deformaquequasenãopodiarespirar.
Assimmelevaram;eunãosabiaoquequeriamfazerdemime
melembravadosofrimentodonossoredentorJesusCristo,quan-
doeramaltratadoinocentementepelosinfamesjudeus.Porisso,
consolei-meemetorneipaciente.Conduziram-meatéacabana
dorei,quesechamavaUratinge Wasu, 69quequerdizernaminha
língua“ograndepássarobranco”.Diantedacabanadorei,havia
ummontedeterrafresca,ealimeassentaram,enquantoalgumas
mulheresmeseguravam.Penseientãoquequeriammatar-mee
procuravacomosolhoso iwera pemme, 70 instrumentocomque
matamgente,eperguntei se jámequeriammatar.Nãomeres-
ponderam,masveioumamulherquetinhaumpedaçodecristal
em uma coisa que parecia um pau arcado, cortou-me com esse
cristalaspestanasdosolhosequeriacortar-metambémabarba.
Masissonãoquissuportaredissequemematassemcombarbae
tudo.Disseramentãoquemenãoqueriammataraindaemedei-
xaramcom abarba.Porém,algunsdiasdepois,acortaramcom
umatesouraqueosfranceseslhestinhamdado.
69 Uratinge Wasu é alteração de Uiratinga Uaçu, que também se escreveGuiratinga guaçuesetraduzagarçagrande.
70 Iwera Pemme é do tupi ibirá-pema, que quer dizer pau aplainado, ou clavaachatadaemformaderemooudeespada.Éonomedeuminstrumentodeguerra, a que o gentio chamava também tangapema ou, melhor, tacapema,paradizerotacapechato.
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capítulo xxiii
Como dançaram comigo diante das cabanas nas quais guardam seus ídolos tammerka.
D epois conduziram-me do lugar onde me cortaram as
pestanas para as cabanas, onde guardavam os seus
tammerka,ouídolos.Formaramumcírculoaoredordemim,fi-
cando eu no centro, com duas mulheres; amarraram-me numa
perna umas coisas que chocalhavam e na nuca colocaram-me
umaoutracoisa,feitadepenasdepássaros,queexcediaacabeça
equesechamanalínguadelesarasoya. 71Depoiscomeçaramas
mulheresacantar,econformeumsomdadotinhaeudebaterno
chãocomopé,emqueestavamatadososchocalhos,paracho-
calhar em acompanhamento do canto. A perna ferida me doía
tantoqueeumalpodiaconservar-medepé,poisa feridaainda
nãoestavacurada.
71 Arasoya éovocábulotupiaraçoyá,ouaracoyaba, espéciede turbante feitode penas multicores. Era, em verdade, o chapéu do selvagem em ocasiõessolenes.
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capítulo xxiv
Como depois da dança me entregaram a Ipperu Wasu, que me devia matar.
A cabadaadança, fuientregueaIpperu Wasu.Aliestava
muito bem guardado. Tinha ainda algum tempo para
viver.Trouxeramtodososídolosquehavianascabanasecoloca-
ramaoredordemim,dizendoqueelestinhamprofetizadoacap-
turadeumportuguês.Disseeuentão:“Estascoisasnãotêmpoder
nempodemfalar,eéfalsoqueeusejaportuguês.Souamigoepa-
rentedosfranceseseaterradeondeeusou,chama-seAlemanha.”
Responderam-mequeissodeviasermentira,porqueseeufosse
amigo dos franceses nada tinha que fazer entre os portugueses;
poissabiambemqueosfranceseseramtãoinimigosdosportu-
gueses,comoelesmesmos.
Osfrancesesvinhamtodososanoscomembarcaçõeselhestra-
ziam facas, machados, espelhos, pentes e tesouras; e eles lhes
haviamdadoemtrocapau-brasil,algodãoeoutrasmercadorias,
comoenfeitesdepenasepimenta.Porisso,eramelesseusamigos;
osportuguesesassimnuncafizeram.Tinhamvindoosportugue-
seshámuitosanosaestaterra,etinham,nolugarondeaindamo-
ravam,contraídoamizadecomosseusinimigos.Depois,tinham-
-sedirigido,eles,aosportuguesesparanegociar,edeboa-féforam
aos seus navios e entraram neles, tal como faziam ainda hoje
comos franceses;mas,quandoosportuguesesviramquehavia
bomnúmeronosnavios,osatacaram,amarrarameentregaram
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aosseusinimigos,queosmataramedevoraram.Algunstinham
sidotambémmortosatirosemuitossofreramoutrascrueldades
mais.Diziamqueosportuguesestinhamassimpraticado,porque
vieramguerreá-los,comseusinimigos.
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capítulo xxv
Como os que me capturaram estavam zangados e se queixavam de que os portugueses mataram a tiro seu pai,
que eles queriam vingar em mim.
E diziammaisqueosportuguesestinhamatiradonobraço
dopaidosdoisirmãosquemecapturaramdoqueveio
ele a falecer; e essa morte do pai queriam vingar em mim. Eu
repliqueiquenãodeviamvingar-seemmim,porqueeunãoera
portuguêsetinhavindo,haviapouco,comoscastelhanos;queeu
tinhanaufragadoeporissotinhaláficado.
Entre os índios havia um moço que tinha sido escravo dos
portugueses. Os selvagens, que moravam com os portugueses,
tinhamidoguerrearostuppin inbáetomadoumaaldeiainteira.
Osvelhosforamcomidoseosmoçosforamtrocadospormerca-
dorias com os portugueses. Esse moço era um dos que tinham
sidovendidoseficarapertodeBrickiokacomoseusenhor,quese
chamavaAntonioAgudin,umgalego.
Aessemesmoescravotinhamcapturado,unstrêsmesesantes
daminhacaptura.
Como era da mesma raça que eles, não o mataram. Ele me
conhecia.Perguntaram-lhequemeuera.Eleentãodissequeera
verdade; que um barco tinha naufragado e os homens que nele
haviachamavam-secastelhanoseeramamigosdosportugueses.
Comelesestavaeu,enadamaissabiaeledemim.
Ouvindoagoracomotambémantesquehaviafrancesesentre
elesequecostumavamvirembarcados,insistinoquetinhadito
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econtinuei:“queeueraamigoeparentedosfranceses,quenão
mematassem,atéqueosfrancesesviessememereconhecessem”.
Guardaram-meentãomuitobem,porquehaviaalialgunsfrance-
sesqueosnaviostinhamdeixadoparacarregarpimenta.
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capítulo xxvi
Como um francês que os navios deixaram entre os selvagens chegou para me ver e lhes recomendou que me devorassem,
porque eu era português.
H aviaumfrancêsaquatromilhasdedistânciadolugar
dascabanas,ondeeuestava.Logoquesoubedanotí-
cia,veioparaumadascabanasemfrentedaquelaemqueeuesta-
va.Vieramentãoosselvagensmechamar:“Estáaquiumfrancês,
queremosveragoraseésfrancêsounão.”Issomealegrou,edisse
comigo:“Eleécristão,elefalaráparaobem.”
Conduziram-menuàsuapresença.Eramoço,eosselvagens
ochamavamKarwattuware. 72Falou-meemfrancês,maseunão
podiaentendê-lobem.Osselvagensestavampresenteseescuta-
vam.Comoeulhenãopodiaresponder,disseeleaosselvagens
na língua deles: “Matem-no e devorem-no, o celerado é portu-
guêslegítimo,vossoemeuinimigo.”Compreendiperfeitamente
epedi,poramordeDeus,quelhesdissessequenãomedevoras-
sem.Maselemedisse: “Querem-tedevorar.”Lembrei-meentão
de Jeremias, Cap.17, onde diz: “Maldito seja o homem que nos
outroshomensconfia.”Ecomisso,saídalicomgrandepesarno
coração.Nosombrostinhaumpedaçodepanodelinho,queme
tinhamdado(ondeoteriamadquirido?),tirei-o(osolmetinha
queimado muito) e o arremessei aos pés do francês, dizendo a
72 Karwattuware é alteração do tupi karauatawara (karauatáwara), que querdizercomedordegravatás,istoé,apreciadordosfrutosdessabromeliácea.
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mimmesmo:“Setenhodemorrer,paraqueentãocuidarempro-
veitodosoutrosdaminhacarne?”Conduziram-meentãooutra
vezàcabana,ondemeguardaram.Deitei-menarede,eDeussabe
quanto me considerava desgraçado. Comecei a me lamentar,
cantandoosalmo:
Roguem ao Espírito Santo 73
Que nos dê a verdadeira fé
Que nos guarde até ao fim.
Quando sairmos desta triste vida.
Kyrioleys
Disseram, então: “É legítimo português, agora se lamenta e
temmedodamorte.”
O referido francês ficou dois dias nas cabanas e no terceiro
foi-seembora.Entãodeterminaramquesefizessemosprepara-
tivosparamematarnoprimeirodia,depoisdetudoarranjado.
Guardaram-memuitobemeescarneceramdemim,tantoosmo-
çoscomoosvelhos.
73 Sanctum precemur Spiritum Vera beare nos fide Ut nos in hac reservet, In fine nempe vitae Hic quando commigramus Doloribus soluti. KyrieEleison
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capítulo xxvii
Como eu sentia fortes dores de dentes.
A conteceuque,enquantoeuestavareduzidoaestami-
séria (e, como se costuma dizer, uma desgraça nunca
vemsó),umdentecomeçouadoer-metantoquequasedesanimei
detodo.Omeusenhorveioamimemeperguntouporquecomia
tãopouco.Respondiquemedoíaumdente.Voltouentãocomum
instrumentodemadeiraemequisextrairumdente.Disse-lheque
nãodoíamais,maselequeriaextraí-loporforça.Porém,opus-me
tantoqueelemedeixou;masdisseque,seeunãoquisessecomer
eengordar,matar-me-iamantesdotempo.Deussabequantasve-
zeseupedidecoraçãoque,sefosseasuavontade,medeixassem
morrersemqueosselvagensosoubessem,paraqueelesnãosatis-
fizessemoseudesejoemmim.
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capítulo xxviii
Como me levaram ao seu rei supremo, chamado Konyan Bébe, e o que ali fizeram comigo.
A lguns dias depois, levaram-me para uma outra aldeia
queeleschamamArirab , 74paraumrei,denomeKonyan
Bébe , 75queeraoprincipalreidetodos.Alisehaviamreunidomais
algunsemumagrandefesta,amododeles,equeriammever,pelo
quememandarambuscarnaqueledia.
Chegandopertodascabanas,ouviumgranderumordecanto
edetrombetas,ediantedascabanashaviaumasquinzecabeças
espetadas; eram da gente sua inimiga, chamada markayas , 76 e
quetinhasidodevorada.Quandomelevaramparalá,disseram-
-mequeascabeçaseramdeseusinimigosequeestessechamam
markayas.Fiqueicommedoepensei:“Assimfarãocomigotam-
bém.”Aoentrarmosnascabanas,umdosmeusguardasavançou
e gritou com voz forte, para que todos o ouvissem: “Aqui trago
o escravo, o português”, pensando que era coisa muito boa ter o
inimigo em seu poder. E falou muitas coisas mais, como é de
costume,conduzindo-meatéondeestavaoreisentado,bebendo
74 Arirab, grafia errada de Ariroba ou Ariró, nome da aldeia de Cunhambebe,paraosladosdeAngradosReis.NoestadodoRiodeJaneiro,háorioAriróetambémumaserracomessemesmonomeporaqueleslados.
75 Konyan Bébe é o mesmo Cunhambebe, chefe famoso dos tamoios, inimigodosportugueses.
76 Markayadevesermaracayá,nomedeumatriboinimigadostamoios,vocá-bulotupicomquesedesignaogato-do-mato.
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comosoutros,eestandojáembriagadospelabebidaquefazem,
chamada kawawy. Fitaram-me desconfiados e perguntaram:
“Viestescomonossoinimigo?”Respondi:“Vim,masnãosouvos-
soinimigo.”Deram-meentãoabeber.Játinhaouvidofalarmuito
doreiKonyan Bébe,quedeviaserumhomemgrande,umgrande
tirano,paracomercarnehumana.Fuidiretoaumdeles,queeu
pensavaserele,elhefaleitalcomomevieramaspalavras,nasua
língua,edisse:“ÉstuKonyan Bébe,vivesainda?”“Sim”,disseele,
“euvivoainda.”Entãorepliquei: “Tenhoouvidofalarmuitodeti
equeésumvalentehomem.”Comissolevantou-see,cheiodesi,
começouapassear.Traziaeleumagrandepedraverdeatravessada
noslábios, 77comoécostumedeles.Fazemtambémrosáriosbran-
cos de uma espécie de conchas, que é o seu enfeite. Um desses,
tinha-ooreiaopescoço,eerademaisde6braçasdecomprido.Por
esseenfeiteviqueeleeraumdosmaisnobres.
Tornouaassentar-seecomeçouameperguntaroqueplaneja-
vamseusinimigos,ostuppin ikinseosportugueses.Edissemais:
“Porquequeriaeuatirarsobreele,emBrickioka?”Porquelhecon-
taramqueeueraartilheiroeatiravacontraeles.Entãorespondi
queosportuguesesmetinhammandadoemeobrigaramaisso.
Disseeleentãoqueeutambémeraportuguês,porqueofrancês,
quemelevouissoeaquemelechamava“seufilho”,lhedisseraque
eu não sabia a sua língua por ser português legítimo. Eu disse
então: “Sim, é verdade, estive muito tempo fora daquela terra e
tinha esquecido a língua.” Ele replicou que já tinha ajudado a
capturarecomercincoportuguesesequetodostinhammentido.
Sómerestavaentãoconsolar-meerecomendar-meàvontadede
Deus,porquecompreendiquedeviamorrer.Tornouentãoame
perguntar o que os portugueses diziam dele e se tinham muito
77 Éoornatodenefritaaqueogentiochamavatembetáistoé,tembê-itá,quevaledizerpedradobeiço.
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medodele.Eurespondi:“Sim,elesfalammuitodetiedasgrandes
guerrasquetulhescostumafazer;masagorafortificammelhor
Brickioka.”“Sim”,continuouele,“queriadevezemquandocaptu-
rá-los”,comometinhamcapturadonomato.
Aindamaisconteieuaele:“Sim,teusverdadeirosinimigossão
os tuppin ikins,quepreparam25 canoasparavirematacaro teu
país”,comorealmentetambémaconteceu.
Enquanto ele me fazia perguntas, ficavam os outros em
pé escutando. Em suma, perguntou-me muito e falou muito.
Regozijava-sedosmuitosportuguesesedosselvagens,seusinimi-
gos,quetinhammorto.Enquantoissosepassavacomigo,osque
estavambebendonacabanaacabaramcomabebidaquealihavia;
passaramentãotodosaumaoutracabananaqualcontinuarama
beber,eporissoterminouaminhaconferênciacomochefe.
Nasoutrascabanas,continuaramsuaszombariascomigo,eo
filho do rei atou-me as pernas em três lugares, obrigando-me a
pularcomospésjuntos.Riam-sedissoediziam:“Aívemanossa
comidapulando.”Pergunteiaomeusenhorquemelevaraatéaí
seeraparamemataraqui.Respondeu-mequenão,masqueera
costumetratarassimosescravos.Tiraram-meentãoascordasdas
pernasemebeliscaram,rodeando-mee falando;umdisseque
couro da cabeça era dele, outro que a barriga da perna lhe per-
tencia.Depoisobrigaram-meacantarecanteiversosreligiosos.
Queriamelesqueeuostraduzisse.Disseentãoquetinhacantado
ao meu Deus. Eles respondiam que meu Deus era excremento,
istoé,nalínguadeles,teuire. 78Taispalavrasmemagoarameeu
pensava:“ÓmeuDeusbondoso,comopodessofreristocompa-
ciência?”Quando,nodiaseguintetodosnaaldeiajámetinham
78 Notupi,excremento,tipotyourepoty.É,porém,desuporqueovocábuloteuiresejaalteraçãodetebira,quesignificavil,corrupto,infame,ruim.Possívelé,também,queprocedadeteõuira,quevaledizeroqueélançadooutiradodocorpo.
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vistoedescarregadotodosos insultossobremim,KonyanBébe
disseaosquemeguardavamquetomassemmuitosentidocomigo.
Levaram-meentãooutravezparafora,paravoltaraUwattibi,
ondemedeviammatar.Gritavamatrásdemimquelogoviriamà
cabanademeusenhorparadeliberaremsobreminhamorteeme
devorarem,masmeusenhormeconsoloudizendoquetãocedo
eunãoseriamorto.
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capítulo xxix
Como as 25 canoas dos tuppin ikins vieram, como eu tinha dito ao rei, para atacar as cabanas onde eu estava.
E nquantoisso,aconteceuqueas25canoasdosselvagens
queeramamigosdosportugueses,comoeutinhadito,
eestavamprontosparairàguerraantesdeeuserpreso,vieram
umamanhãparaatacarascabanas.
Quandoos tuppin ikins investiramcontraascabanasecome-
çaramaatirarsobreelas,encheram-sedemedoosdedentro,eas
mulheresqueriamfugir.Disse-lheseuentão:“Vósmetendespor
português,vossoinimigo,dai-meumarcoeflechasedeixai-me
ir,queroajudar-vosadefenderascabanas.”Deram-meumarcoe
flechas.Eugritavaeatiravaaomododelesomelhorquepodia,
elhesdiziaquetivessemânimo,nãohaviaperigo.Minhainten-
çãoeradeatravessaracercaaoredordascabanasecorrerparaos
outros,poiselesmeconheciamesabiamqueeuestavanaaldeia.
Mas,vendoostuppin ikinsquenadapodiamfazer,voltaramoutra
vez para suas canoas e se foram embora. Quando bem longe já
estavameles,prenderam-medenovo.
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capítulo xxx
Como os chefes se reuniram de noite, ao luar.
N atardedodiaemosoutrosseforam,reuniram-seao
luar,napraçaqueficaentreascabanas,econferencia-
ramarespeitodaépocaemquemedeviammataremecondu-
ziramparaomeiodeles,maltratando-meefazendozombariade
mim.Euestava triste,olheiparaa luaepensei: “Oh,meuDeus
e Senhor, ajuda-me nesta aflição, para que me veja livre.”
Perguntaram-meporqueeuolhavaparaalua.Entãolhesrespon-
di:“Vejoqueelaestázangada”,porqueafiguraqueestánaluapa-
recia-metãoterrível(Deusmeperdoe)queeupensavaqueDeus
etodasascriaturasdeviamestarzangadoscomigo.Perguntou-me
entãooreiquemequeriamatar,ochamadoJeppipoWasu,umdos
chefesdascabanas:“Comquemestázangadaalua?”Respondi-lhe:
“Elaolhaparatuacabana.”Porcausadessaspalavras,começouele
afalarásperocomigo.Paracontradizerisso,disseeu:“Decertonão
serácomatuacabana,elaestázangadacomosescravoscariós”,
(quetambémháumaraçaqueassimsechama).
“Sim”,disseele,“sobreelesquevenhaadesgraça.”Ficounisso
enãopenseimaissobreessaconversa.
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capítulo xxxi
Como os tuppin ikins incendiaram uma outra aldeia, chamada Mambukabe.
N odiaseguintechegouanotícia,deumaaldeiacha-
madaMambukabe(Mambucaba),dequeostuppin ikins
tinhamatacado,quandosaíramdolugarondeeuestavacativo;
eosmoradorestinhamfugido,excetoummeninoqueelescati-
varam, e depois foram incendiadas as cabanas. Então o Jeppipo
Wasu(quetinhapodersobremimequemuitomemaltratava)
foiparalá,porqueeramseusamigoseparentesequeriaajudá-los
afazernovascabanas.Porisso,levouconsigotodososamigosde
suaaldeiaetevealembrançadelevarafarinhaderaízes(man-
dioca),parafazerafesta,elámedevorarem.Equandosefoiem-
bora,ordenouàqueleaquemmetinhaentregue,chamadoIpperu
Wasu,quemeguardassebem.Ficaramentãoforamaisdequinze
diaseláprepararamtudo.
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capítulo xxxii
Como chegou um navio de Brickioka e perguntaram por mim.O que disseram a meu respeito.
N esse interim, chegou um navio dos portugueses de
Brickioka,deitouâncoranãolongedolugaremqueeu
estavacativoedisparouumtirodepeça, 79paraqueosselvagens
ouvissemeviessemfalarcomeles.
Quando perceberam isso, disseram-me: “Aí vêm os teus ami-
gos,osportugueses,equeremtalvezsabersetuaindavivesoute
comprar.”Disseeuentão:“Decertoémeuirmão”,porqueeusupu-
nhaqueseonaviodosportuguesespassasseporaliperguntariam
por mim. Para que os selvagens não pensassem que eu era por-
tuguês,disse-lhesquetinhaumirmãoquetambémerafrancêse
estavacomosportugueses.Masnãoqueriamacreditarqueeunão
eraportuguês,eforamtãopertodonavioquepuderamchegara
fala.Osportuguesesentãoperguntaramcomoeupassava.Eeles
responderamquenãoseimportavamcomigo.Quandoeuviona-
vioir-seembora,sabeDeusoquefiqueipensando.Elesdisseram
entresi:“Temosmesmoohomem;jámandamnaviosatrásdele.”
79 Era esse o costume naqueles tempos em que o tráfico com o gentio era oúniconegóciopossívelnestapartedaAmérica.Osnaviosdoscontratadoresdopau-brasilcomoassimplesnausderesgate,portuguesasouestrangeiras,empregavamtodasomesmoprocesso.
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capítulo xxxiii
Como o irmão de Jeppipo Wasu chegou de Mambukabe e queixou-se a mim de que seu irmão, sua mãe e todos os outros estavam doentes
e pediu-me que eu fizesse com que meu Deus lhes desse outra vez a saúde.
E speravaeutodososdiasosoutrosque,comoantesdisse,
estavamfora,preparando-secontramim.Umdiadepois
ouvi alguém gritar na cabana do rei que estava ausente. Tive
medopensandoquevoltavam,porqueécostumedosselvagens
não se ausentarem mais de quatro dias. Quando então voltam,
seus amigos gritam de alegria. Não muito depois dessa gritaria,
veioumdelestercomigoemedisse:“Oirmãodoteusenhorche-
gouedizqueosoutrosficaramdoentes.”Fiqueialegreepensei:
“AquiDeusquerfazeralgumacoisa.”Poucotempodepoisveioo
irmãodomeusenhoràcabanaondeeuestava,assentou-seaopé
demim,começouaselamentareadizerqueseuirmão,suamãe
eosfilhosdeseuirmãotodostinhamcaídodoentes,eseuirmão
otinhamandadoamimparamedizerqueeudeviafazercomque
meuDeuslhesdessesaúde,eacrescentou:“Meuirmãoestápen-
sandoqueteuDeusestázangado.”Eulhedissequesim,quemeu
Deusestavazangado,porqueelesmequeriamdevoraretinham
ido a Mambukabe a fazerem os preparativos. E lhe disse mais:
“Vósdizeisqueeusouportuguês,eeunãoosou.”Eacrescentei:
“Vaitercomteuirmão,paraqueelevolteàsuacabana,eeufalarei
a meu Deus, para que ele fique bom.” Então respondeu-me que
oirmãoestavamuitodoente,enãopodiavir;queelesabiaeti-
nhareparadoqueseeuquisesseeleficariabomlámesmo.Eulhe
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respondi que ficaria tão bom que podia voltar para sua cabana,
ondeeleentãohaviadesararcompletamente.Comisso,partiu
elecomarespostaparaMambukabe,queficaaquatroléguasde
Uwattibi,ondeeuestava.
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capítulo xxxiv
Como o Jeppipo Wasu voltou doente.
D epois de alguns dias, voltaram todos os doentes.Entãomandouoreimeconduzirparaasuacabana
e me disse como tinham todos ficado doentes e que eu bem osabia,porqueeleselembravaaindaqueeutinhadito:“Aluaes-tavazangadacontraasuacabana.”Quandoouviestaspalavras,penseicomigo:“AconteceupelaprovidênciadeDeusqueeuemanoitereferidativessefaladodalua.”Fiqueimuitoalegreepen-sei:“AgoraDeusestácomigo.”
Entãolhedissemaisqueeraverdade,porelequerer-mecomereeunãoserseuinimigo,eporissolheveioadesgraça.Eledisseentão:quenadamefariam,seeletornassealevantar-se.Nãosa-bia como melhor rogar a Deus. Disse comigo: “Se voltam outravezàsaúde,matam-meassimmesmo:semorrem,entãodirãoosoutros:‘vamosmatá-loantesqueaconteçammaisdesgraçasporcausadele’,comojácomeçavamadizer.SejacomoDeusquiser.”Ele(orei)pediu-memuitoparaqueficassembons.Andeiemrodadeleselhesdeiteiamãonascabeças,comopediram.Deusporémnãooquis,ecomeçaramamorrer.Morreu-lhesumacriança,de-poismorreuamãedorei,umamulhervelha,aqualqueriafazerospotesnosquaispretendiamfabricarabebidaquandotivessemdemedevorar.
Alguns dias depois morreu o irmão do rei, depois mais umacriança, e mais um irmão, que era aquele que me tinha dado anotíciaquandotinhamficadodoentes.
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Vendoentãoqueseusfilhos,suamãeeirmãostinhammor-
rido,ficoumuitotriste,etemendoqueeleemaisasmulheres
tambémmorressem,mepediurogasseameuDeusquenãofi-
cassemaiszangadoeodeixasseviver.Euoconsoleicomopude
edissequeelenadasofreria,equenãodeviapensaremmede-
vorarquandoficassesão.Respondeu-mequenãoeordenouaos
outrosdasuacabanaquenãofizessemmaiszombariademim,
nemameaçassemdemedevorar.Assimmesmocontinuouain-
dadoentealgumtempo,porémficououtravezbometambém
umadesuasmulheres,queestavadoente.Masmorrerammais
oumenosoitodesuaamizade,osquaismetinhamfeitomuito
mal.Haviaaindadoisoutrosreisemduascabanas,um,Vratinge
Wasu;outro,Kenrimakuí, 80ficoubom.VratingeWasutinhaso-
nhadoqueeutinhavindoelhedisseraqueelehaviademorrer.
Demanhãcedoveioeletercomigoesequeixou.Eudisseque
não,equenãohaviaperigo;masqueeletambémnãopensasse
emmematar,nemqueissoaconselhasse.Disseeleentãoquese
aquelesquemetinhamcapturadonãomematassemelenãome
fariamal,eaindaquemematassemelenãocomeriadaminha
carne.
Porsuavez,ooutrorei,Kenrimakui,tinhatambémsonhado
comigo,umsonhoquemuitooalarmou.Chamou-measuaca-
bana,deu-medecomere,depois,queixou-seamimdizendoque
tinhaumavezestadoemguerra,ondecapturaraumportuguês
queelematoucomsuasmãosecomeudeletantoqueseupeito
aindadoíadisso,enãoqueriacomermaisninguém.Etinhaso-
nhadocomigosonhostãohorríveisquepensavatambémqueia
morrer.Eudisse-lhequenãohaviaperigosenãocomessemais
carnedegente.
80 Kenrimakuíéalteraçãodecarimã-cui,quequerdizerfarinhadecarimã,oupódecarimã.
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Tambémasmulheresvelhasdealgumascabanas,asquemui-
tometinhammaltratadocombeliscões,pancadaseameaçasde
medevorar,estasmesmasmechamaramentãoscheraeire, 81isto
é, “meu filho, não me deixes morrer”. “Se te tratamos assim”,
diziam,“foiporquepensávamosqueerasportuguês,eestenós
detestamos.Temostambémtidoalgunsportugueses,quecome-
mos;masoDeusdelesnãoficavatãozangadocomooteu;por
isso,vemosagoraquetunãopodesserportuguês”.
Assim, deixaram-me por algum tempo, porque não sabiam
bemoquepensardemim,seeueraportuguês,ouseerafrancês.
Disseram-me que se tinha barba vermelha, como os franceses,
também tinham visto portugueses com igual barba, mas eles
tinhamgeralmentebarbaspretas.
Depois desse pânico, quando um dos meus senhores ficou
bom, não falaram mais em me devorar, porém guardaram-me
tãobemcomodantesenãoqueriammedeixarandarsozinho.
81 Scheraeire,diga-seche raíra,quequerdizermeufilho.
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capítulo xxxv
Como voltou o francês que tinha recomendado aos selvagens que me devorassem e eu lhe pedi que me levasse,
mas os meus senhores não me queriam deixar.
O talfrancêsKarwattuware,doqualjáfaleiquesevirou
contramim,comoosselvagensqueoacompanhavam
eeramamigosdos franceses,veioparaarranjarcomos índios
pimentaeumaespéciedepenas. 82
Quandoentãoestavadevoltaparaolugarondeosnaviosche-
gam,chamadoMungu WappeeIterwenne , 83tinhaeledepassarpor
ondeeuestava.Àsaídadofrancês,nãoduvideiquemeiamdevo-
rar,comoeleotinharecomendado;ecomoesteveausentealgum
tempo,nãopodiapensarqueeuaindaestivessevivo.
Chegandooutravezàscabanas,ondeeuestava,faloucomigo
na línguadosselvagens;eumeagasteicomeleporquemeper-
guntouseeuaindaestavavivo.“Simrespondi,graçasaDeus,que
me conservou por tanto tempo.” Talvez tivesse ele ouvido dos
selvagenscomoissoaconteceu,eochameiparaumlugaronde
podíamosfalarasós,paraqueosselvagensnãoouvissemoque
eulhedizia.AílhedissequebempodiaeleverqueDeusmetinha
82 Apimenta(kiinha),chamadacumuri,valiaentãocomoumaespeciariadater-ra.Aspenasdoguará,daarara,aspenasdetucanoedosfelinoseramentãomuitoprocuradas.OtrouchementfrancêsadquiriaessesartigoseesperavaobarcoqueosvinhabuscarelevarparaaEuropa.
83 Mungu WappeeIterwennesãodedifícilidentificação.OprimeiropareceseralteraçãodeMongaguape,eosegundo,deIteruenneoutalvezIteronne,maisaproximadosdeIteron,quequerdizeráguaemseio,enseada.Aliás,naediçãopríncipe,lê-se:Iterroenne.V.nota87.
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poupado a vida; como também que eu não era português, mas
alemão, e por causa do naufrágio dos espanhóis tinha chegado
àterradosportugueses;epediquecontasseaosselvagensoque
eutinhaditoaele,dissesse-lhesqueeueraamigoeparentedele,
equemelevassequandochegassemosnavios.Porqueeutinha
medodequeseeleonãofizesseosselvagenshaviamdepensar
que havia charlatanismo na minha parte, e, uma vez zangados,
mematariam.
Fiz-lheumaadmoestação,nalínguadosselvagens,elheper-
gunteiseelenãotinhaumcoraçãocristãonopeitoesenãose
lembrava que depois desta vida havia uma outra, para ele ter
recomendadoquemematassem.Começouentãoasearrepender
emedissequetinhajulgadoqueeueraportuguês,gentetãomá,
quequandoosíndiosapanhavamalgumnasprovínciasdoBrasil
enforcavamlogo;oqueéverdade.Tambémmedissequeeles,os
franceses, tinham de respeitar os costumes dos selvagens, e fa-
ziamcausacomumcomelesporqueeraminimigostradicionais
dosportugueses.
Conformeeutinhapedido,contoueleaosselvagensqueda
primeiraveznãomeconhecerabem,masqueeueradaAlemanha
e amigo deles, pelo que queria levar-me consigo quando che-
gassem os navios. Mas, os meus senhores responderam-lhe que
não,quenãomedariamaninguém,sóseviessemeupaioumeu
irmão, com um navio cheio de carga, com machados, espelhos,
facas,pentesetesouras,acrescentandoqueelesmeacharamna
terradosinimigoseeulhespertencia.
Quandoofrancêsouviuisso,disse-mequeestavaconvencido
dequeelesnãomelargariam.Pedi-lheentão,poramordeDeus,
que me mandasse buscar para me levar à França no primeiro
navioquechegasse.Issomeprometeuele,edisseaosselvagens
quemeguardassembemequenãomematassem,porquemeus
amigoshaviamdeviràminhaprocura;esefoiembora.
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Tendopartidoo francês,perguntou-meumdosmeussenho-
res, chamado Alkindar Miri (não o que estava doente), o que o
Karwattuwara (que era o nome do francês, na língua dos selva-
gens)metinhadadoeseeleerameupatrício,respondiquesim.
“Porqueentão”,diziaele,“nãotedeuumafacaparatumedares?”
eficouzangado.Maistarde,umavezrestabelecidos,começaram
denovoamurmurarameurespeitoediziamqueosfrancesesnão
valiammaisqueosportugueses.Comeceiatermedodenovo.
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capítulo xxxvi
Como devoraram um prisioneiro e me conduziram a esse espetáculo.
A conteceuquealgunsdiasdepoisquiseramdevorarum
prisioneiro,numaaldeiachamadaTickquarippe , 84 cer-
ca de seis milhas de distância do lugar onde me achava cativo.
Algunsdascabanasondeeuestavaforamparaláemelevaram
também.Oescravoqueelesiamcomereradeumanaçãochama-
daMarckaya.Fomosparaláemumacanoa.
Quandochegaomomentodeseembriagarem,comoéseucos-
tume,quandodevoramalgumavítima, fazemdeumaraizuma
bebidaquechamamkawi;bebem-natodaematamoprisioneiro.
Na noite seguinte, ao beberem à morte do homem, cheguei-me
paraavítimaelheperguntei:“Estásprontoparamorrer?”Riu-se
emerespondeu:“Sim.”Acordacomqueamarramosprisionei-
ros,mussurana,édealgodãoemaisgrossadoqueumdedo.“Sim”,
disseele, “estou pronto para tudo.”Somenteamussurananãoera
bemcomprida(faltavam-lhecercadeseisbraças).“Sim, nós temos
melhores cordas”,disseele,assimcomoquemvaiaumafeira.
Eutinhacomigoumlivro,emlínguaportuguesa,queossel-
vagenstiraramdeumnavioqueaprisionaramcomoauxíliodos
franceses;fizeram-mepresentedesselivro.
84 Tickquarippe édotupiTyquarype,compostode tyquara-y-pe,quesetraduzpornaáguadopoço.
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Deixeioprisioneiroeliolivro,etivemuitodódele.Volteiater
comeleporqueosportuguesestêmessesmarkayasporamigos,
elhedisse:“Eutambémsouprisioneirocomotuenãovimaqui
para devorar a tua carne, foram os outros que me trouxeram.”
Entãorespondeuquesabiabemqueanossagentenãocomecar-
nehumana.
Disse-lhemaisquenãoafligisseporque,selhecomiamacarne,
suaalmaiaparaoutrolugar,aondevãotambémasalmasdanossa
gente,ealihámuitaalegria.Entãoperguntou-meseissoeraver-
dade.Eurespondiquesim,eelemedissequenuncaviraaDeus.
Respondiquenaoutravidahaviadevê-lo;equandoacabeidelhe
falar,deixei-o.
Na mesma noite em que com ele falei, levantou-se um forte
vento, soprandotãohorrorosamentequetiravapedaçosdasco-
bertasdascasas.Osselvagenszangaram-seentãocomigo,edisse-
ramnasualíngua:“Apomeiren geuppawy wittu wasu Immou , 85isto
é, “o maldito, o santo, fez agora vir o vento, porque olhou hoje
nocouro da trovoada”,queeraolivroqueeutinha.Eeualegrei-
-mecomisso,porqueoescravoeraamigodosportugueseseeu
pensavaqueomautempoimpedisseafesta.Orei,então,aDeuse
Senhor,dizendo:“Setumepreservasteatéagora,continuaainda
porqueestãozangadoscomigo.”
85 A frase tupi é como se segue: Apomirim jurupary ybytu uaçú omô, que setraduz por “aquele diabinho é que trouxe o furacão”. O diabinho, para osbárbaros,eraolivroqueeleschamavamcouro da trovoada.
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capítulo xxxvii
O que aconteceu na volta, depois de terem comido o prisioneiro.
A cabadaafesta,voltamosoutravezparaasnossascasas
e os meus senhores trouxeram consigo um pouco de
carneassada.Gastamostrêsdiasnavolta,viagemqueoriginaria-
mentepodeserfeitaemum;masventavaechoviamuito.Nopri-
meirodia,ànoite,aofazermosranchosnomatoondepousamos,
disseram-me que eu fizesse acabar a chuva. Conosco vinha um
meninoquetraziaumacaneladoprisioneiro,enelahaviaainda
carnequeelecomia.Eudisseaomeninoquedeitasseforaoosso.
Zangaram-seentãotodoscomigoemedisseramqueissoqueeraa
suaverdadeiracomida.Levamostrêsdiasemcaminho.
Jáàdistânciadeumquartodemilhadenossascasas,nãopude-
mosmaisavançar,porqueasondascrescerammuito.Arrastamos
as canoas para terra, pensando que no dia seguinte faria bom
tempoepoderíamoslevaracanoaparacasa;masatempestade
continuava.Pensamosentãoemirporterraevoltarabuscaraca-
noaquandofizessebomtempo.Antes,porém,desairmos,eleseo
meninocomeramacarnedoossoedepoisodeitaramfora.Fomos
porterra,e,compouco,otempoficoubom.“Oramuitobem”,dis-
seeu,“nãomequeríeisacreditarquandoeudissequeomeuDeus
estavazangado,porqueomeninoestavaacomercarnedoosso”.
“Sim”,responderam-me;mas“seeleativessecomidosemeuver,
otempoteriacontinuadobom”.Enissoficamos.
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Deregressooutravezàscabanas,umdosquetinhamparteem
mim,chamadoAlkindar,perguntou-meseeuagoratinhavisto,
comotratavamaosseusinimigos;respondiquemepareciahor-
rorosoqueelesosdevorassem:ofatodeosmataremnãoeratão
horrível.“Sim”,disseele,“éonossocostume,eassimfazemoscom
osportuguesestambém.”
EsseAlkindarmeeramuitoadversoeestimariabemqueme
tivessemortoaqueleaquemmetinhadado,porque,comojáde-
veisterlido,IpperuWasulhetinhadadoumescravoparamatar
como o fim de ele ganhar mais um nome. Então Alkindar lhe
prometera, por sua vez, fazer-lhe presente do primeiro inimigo
queelecapturasse.Mas,comoissonãosederacomigo,eledebom
gradooteriafeito;porémoirmãoimpedira-o,pormedodeque
lheacontecessealgumadesgraça.
Porisso,essemesmoAlkindar,antesqueosoutrosmetivessem
levado ao lugar onde tinham devorado aquele outro, me tinha
ameaçadodemorte.Masvoltandoagora,enaminhaausência,
tinhaeleficadocomdordeolhos,queoobrigouaficaremrepou-
soenãoenxergarporalgumtempo;disse-mequeeufalasseameu
Deusparaqueosseusolhossarassem.Eudissequesim,masque
eledepoisnãofossemaucomigo.Disse-meelequenão.Alguns
diasdepois,estavarestabelecido.
Quando o dia nasceu, tornou-se bonito o tempo, e eles bebe
ram e alegraram-se muito. Então fui ter com o prisioneiro e
disse-lhe: “O vento forte era o próprio Deus.” No dia seguinte,
comeram-no.Oqueseseguiu,vereisnocapítuloseguinte.
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capítulo xxxviii
Como outra vez um navio foi mandado pelos portugueses à minha procura.
J ánoquintomêsdaminhaestadaentreeles,chegououtra
vez um navio da ilha de São Vicente. Os portugueses têm
costume de ir à terra dos seus inimigos, porém bem-armados,
a negociarem com eles. Dão -lhes facas e anzóis por farinha de
mandiocaqueosselvagenstêmemmuitos lugares,edequeos
portugueses, com muitos escravos para as suas plantações de
cana,precisamparaosustentodosmesmos. 86Chegandoonavio,
vãoosselvagens,reunidosouadoisnascanoas,eentregamamer-
cadoria na maior distância possível. Depois, dizem o preço que
queremporelas,oqueosportugueseslhesdão;mas,enquantoos
doisficamaopédonavioestãoàespera,e,umavezacabados
os negócios, investem muitas vezes e combatem com os portu-
gueses,arremessando-lhesflechas,eretirando-seemseguida.
Disparouobarcoreferidoumtirodepeça,paraqueosselva-
genssoubessemqueelealiestava.Aproximaramdele.Debordo
86 EstareferênciadonarradorexplicabemumafaseoriginalíssimadacolôniaportuguesadeSãoVicentenessaépoca.Aculturanasilhas,jáaessetempo,fazia-se com caráter exclusivista. Plantava-se a cana para açúcar e aguar-denteesedescuravaomais,oupelomenosasterrasalinãoseprestavamsuficientementeparaasoutrasculturasdemantimento.Daí,vinhaque,nãoobstanteoestadodeguerraentreportuguesesetamoios,oconcursodestesnãopodiaserdispensadoporaqueles.Armava-sebemumnavioparapoderafrontarasanhadogentioadverso,entrava-se-lhepelosportos,propondo--lhe negócios ou simples troca de produtos de que reciprocamente uns eoutroscareciam,eavidanacolôniaseequilibrava.
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perguntaram por mim e se eu ainda estava vivo. Responderam
que sim. Então pediram os portugueses para me ver, porque ti-
nhamumcaixãocheiodemercadorias,quemeuirmão,também
francês,tinhamandadoeestavacomelesnobarco.
No navio, com os portugueses, estava um francês, de nome
Claudio Mirando, que antes tinha sido meu camarada; a este
chamei-lhe “meu irmão”, pois que supunha estivesse a bordo e
perguntassepormim,vistojáterfeitoessaviagem.
Voltaramdonavioparaaterraemedisseramquemeuirmão
tinhavindo,maisumavez,comumcaixãocheiodemercadorias,
equeriamuitomever.Eulhesdisseentão:“Levai-meparalá,mas
delonge,poisquerofalarcommeuirmão;osportuguesesnãonos
entendem;querolhepedirqueconteaonossopai,quandochegar
a casa, e lhe peça que venha com muitas mercadorias para me
buscar.”Acharamqueerabomassim,mastinhammedodequeos
portuguesesnosentendessem,poisqueestavampreparandouma
grandeguerraquequeriamdeclararomêsdeagosto,navizinhan-
çadeBrickioka,ondefuicapturado.Eusabiabemdetodososseus
planoseporissotinhammedodequeeufalassesozinhocomeles
(os portugueses). Mas eu disse que não havia perigo, porque os
portuguesesnãocompreendiamalínguademeuirmãoeaminha.
Levaram-meentãoatécercadeumtirodefundadonavioetodo
nu,comoeusempreandavaentreeles.Chameientãoosdebordo
elhesdisse:“DeuseSenhorsejaconvosco,queridosirmãos.Que
umsófalecomigoenãodeixeperceberqueeunãosoufrancês.”
Então um chamado Johann Senchez, Boschkeyer (Biscaio), que
eubemconhecia,medisse:“Meuqueridoirmão,éporvossacausa
quecáviemoscomobarco,nãosabendoseestáveisvivooumorto,
poisqueoprimeirobarconãonosdeunotíciasvossas.Agorao
capitãoBrascupas(BrásCubas)emSanctus(Santos)ordenouque
diligenciássemos por saber se ainda estáveis vivo, e, quando o
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soubéssemos,queprocurássemosverseelesvosqueriamvender;
senão,quetentássemoscapturaralgunsparatrocarporvós.”
Respondientão:“QueDeusvosrecompenseeternamente,pois
estoucommuitoreceiosemsaberquaisasintençõesdessagente;
jámeteriamdevorado,seDeusnãootivesseimpedidomilagrosa-
mente.”Continuei,dizendoqueelesnãomevenderiam;quenão
deixasseperceberqueeunãoerafrancês,eporamordeDeusme
dessealgumasmercadorias,facas,anzóis.Fez-seisso,eumíndio
foientãoaobarco,emcanoa,buscá-los.
Vistoqueosselvagensnãomequeriamdeixarconversarpor
maistempo,disseeuaosportuguesesqueseacautelassembem,
pois que cá se aprestavam para atacar de novo na Brickioka.
Responderam-mequeosíndiosseusaliadostambémseprepara-
vamequeriamatacaraaldeia,exatamenteaquelaondeeuestava,
equeeutivessecoragemporqueDeushaviadelevartudopelo
melhor, pois, do contrário, como eu via, eles não podiam me
auxiliar.“Sim”,disseeu;“porqueémelhorqueDeusmecastigue
nestavidadoquenaoutraerogaiaDeusquemeajudeasairdesta
miséria.”
ComissomerecomendeiaDeus,oSenhor.Queriamfalarain-
dacomigo;masosselvagensnãomeconsentiramtermaiscon-
versacomelesetornaramalevar-meparaascabanas.
Tomeientãoasfacaseosanzóiseosdistribuíentreeleselhes
disse:“Tudoisto,meuirmão,ofrancês,medeu.”Perguntaram-me
oquetinhameuirmãoconversadocomigo.Respondi“quetinha
aconselhadoameuirmãodeprocurarescapardosportuguesese
voltarparaanossaterra,equedelátrouxessemembarcaçõescom
muitas mercadorias para mim, pois que sois bons e me tratais
bem; o que desejo recompensar quando voltar o barco”. Assim,
tinhaeusempreoquepretextar,oquemuitolhesagradou.
Depoisdisso,começaramadizerentresi:“ele,decerto,éfran-
cês;vamos,pois,tratá-loagoramelhor”.Eucontinueiadizer-lhes
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sempre:“Nãohádedemoraravindadeumnavioabuscar-me.”
Istoparaqueelesmetratassembem.Daíemdiante,levavam-
-me,àsvezes,aomato,ondehaviaoquefazeremeobrigavam
aajudá-los.
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capítulo xxxix
Como eles tinham um prisioneiro que sempre me caluniava e que estimaria que me matassem, e como o mesmo
foi morto e devorado na minha presença.
H aviaentreelesumprisioneirodanaçãoquesechama
cariós, inimigos dos selvagens, mas amigos dos por-
tugueses. O mesmo tinha pertencido aos portugueses, de quem
tinha fugido. Aos que assim vêm a eles, não os matam, senão
quandocometemalgumcrimegrave;conservam-noscomopro-
priedadesuaeosobrigamaservir.
Esse carió tinha estado três anos entre os tuppin inbá contou
quemetinhavistoentreosportuguesesequeeutinhaatirado
porvezescontraostuppin inbás,quandoiamàguerra.
Haviajáanosqueosportugueseslhestinhammortoatiroum
dosmaioreseessemaioral,diziaocarió,tinhasidoeuqueoati-
rara.Eosinstigavasempreparaquemematassem,porqueeuera
oinimigoverdadeiro;eleotinhavisto.Mentia,porém,emtudo
isso, porquanto havia já três anos que estava entre eles e havia
apenasumanoqueeutinhachegadoSãoVicente,deondeeleti-
nhafugido.OreiaDeusparaquemeguardassecontraessasmen-
tiras.Aconteceuentão,noano1554,maisoumenos,nosextomês
depoisquefiqueiprisioneiro,cairdoenteocarió,eosenhordele
mepediuentãoqueeuotratasseparaqueficassebomepudesse
caçar,paratermosoquecomer,poisqueeubemsabiaquequando
eletraziaalgumacoisatambémmedavaamim.Como,porémme
pareceuqueelenãomaissecuraria,desejavaele(osenhor)dá-loa
umamigoparaqueomatasseeganhassemaisnome.
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Assim, estava ele doente havia já uns nove ou dez dias.
Guardamessesselvagensosdentesdeumanimalaquechamam
backe (paca); amolam esses dentes, e, onde quer que o sangue
estanque,fazemcomumdessesdentesumaincisãonapele,eo
sanguecorrecomtantaquantidadecomoquandoaquisecortaa
cabeçadealguém.
Tomei então um desses dentes a ver se o paciente lhe abria
uma veia mediana. Mas nada consegui porque o dente estava
muitocego.Rodeavam-metodos.Como,porém,meretireivendo
que nada valia, perguntaram-me se o doente ficava bom outra
vez.Disse-lhesquenadatinhaconseguido,poisosanguenãocor-
ria, como podiam ter visto. “Sim”, replicaram; “ele quer morrer,
vamospoismatá-lo,antesquemorra.”
Disse-lheseuentão:“Não,nãoomatem;talvezpossasararain-
da.”Masdenadavaleuodizer.Levaram-noparafrentedacabana
domaioralVratinge(Uiratinga)comdoisasustentá-lo,poisquejá
estavatãodesacordadoquenãopercebiamaisoquefaziamcom
ele.Aproximou-se-lheentãoaqueleaquemtinhasidodadopara
matá-loelhedeutãograndegolpenacabeçaqueosmiolossalta-
ram.Deixaram-noassimdiantedacabanaeiamcomê-lo.Disse-
-lheseuentãoquenãoofizessem,porqueeraumhomemdoente
e podiam eles adoecer também. Ficaram sem saber o que fazer.
Saiuentãoumdelesdacabanaondeeumorava,chamouasmu-
lheresparaquefizessemumfogoaopédomortoelhecortoua
cabeça,porquetinhaumsóolhoelhepareciatãofeiodadoença
queeledeitouforaacabeçaeesfolouocorposobreofogo.Depois
oesquartejouedividiucomosoutros,comoédeseucostume,eo
devoraram,excetoacabeçaeosintestinos,quelhesrepugnavam,
porqueeletinhaestadodoente.
Fui de uma para outra cabana. Em uma assaram os pés, em
outra,asmãos;enaterceira,pedaçosdocorpo.Disse-lhesentão
comoocarió,queelesestavamassandoequeriamdevorar,tinha
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sempre caluniado e dito que eu é que tinha morto alguns dos
seusamigos,quandoestiveentreosportugueses;oqueeramenti-
ra,poisqueelenuncalámetinhavisto.“Sabeisqueeleesteveente
vósalgunsanosenuncaestevedoente;agora,porém,quandodeu
dementirameurespeito,meuDeusseirritoueofezadoecere
meteuemvossascabeçasqueomatásseiseodevorásseis.Assim
équemeuDeushádefazercomquantosmalvadosmetêmfeito
mal, ou me fazem.” Atemorizaram-se com essas palavras, e isso
agradeçoaDeustodo-poderoso,que,emtudo,semostroutãofor-
teemisericordiosoparacomigo.
Peço,porisso,aoleitorquepresteatençãoaomeuescrito,não
quetomeeuestetrabalhopelovãodesejodeescrevernovidades;
mastãosomenteparamostrarobenefíciodeDeus.
Aproximou-se o tempo da guerra que durante 3 meses eles
vinham preparando. Sempre esperei que, quando saíssem, me
deixassememcasacomasmulheres,poisqueriaverse,enquanto
estivessemausentes,podiaeufugir.
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capítulo xl
Como um navio francês chegou para negociar com os selvagens algodão e pau-brasil, para o qual navio eu queria ir,
mas Deus não permitiu.
C ercadeoitodiasantesdapartidaparaaguerra,umnavio
francêstinhasurgidoaoitomilhasdali,emumporto
queosportugueseschamamRiodeJaneiro,e,nalínguadossel-
vagens,Iteronne 87(Niterói).Alicostumavamosfrancesescarregar
pau-brasil.Chegaramtambémaaldeia,ondeeuestava,comoseu
bote,etrocaramcomosselvagenspimenta,macacosepapagaios. 88
Umdosqueestavamnobotesaltouemterra.Sabiaalínguados
selvagensesechamavaJacob.Negocioucomeleseeu lhepedi
quemelevasseparabordo.Masmeusenhordissequenão,pois
nãomedeixariairassim,semlhedaremmercadoriaspormim.
Pedi-lhesentãoquemelevassemelesmesmosabordo;meusami-
gos lá lhes dariam então mercadorias bastante. Replicaram que
essesnãoeramosmeusverdadeirosamigos.
“Porqueéentãoqueesteschegadosnobotenãotederamuma
camisa, apesar de tu andares nu? É que não fazem caso de ti.”
(como de fato era). Mas respondi: “Se eu fosse ao barco grande,
elesmevestiriam.”Disseram-meentãoqueonavionãosairiatão
87 Verifica-seporaquiqueonomeIterwenneaoCap.XXXVésimplesalteraçãodeIteron,ouIterô,que,comojávimos,querdizerbaía,enseada.
88 Vê-sedaíqueotráficocomogentiosereproduziaabempoucos,alémdopau-brasil,istoé,pimenta,macacosepapagaios.Oseuropeustraziam-lhesem troca, instrumentos de ferro, pentes, guizos, anzóis, pano ordinário,espelhos.
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cedo,primeirotinhamdeiràguerra,equandovoltasseméque
haviamdemelevaraonavio.Obotequeriapoisvoltar,vistojá
estar ausente do navio uma noite. Quando então vi que o bote
seiaemboraoutravez,pensei:“ÓDeusbondoso,seonaviosair
agoraenãomelevarconsigo,tenhodeparecerentreessagente,
porquenãosãodeconfiança.”Comessepensamento,saídacaba-
naemedirigiparaaágua;quandoissoviram,correramatrásde
mim.Eucorrinafrente,eelesqueriammeagarrar.Aoprimeiro
quesechegouamimbatiatémelargar,etodaaaldeiaestavaatrás
demim;assimmesmoescapeidelesenadeiparaobote.Quando
jáestavaaentrarnobote,osfrancesesnãomeconsentirameme
disseramquesemelevassemcontraavontadedosselvagensestes
selevantariamtambémcontraelesesetornariamseusinimigos.
Volteientãotriste,nadandoparaaterra,edissecomigo:“Vejoque
édavontadedeDeusquecontinueeuaindanadesgraça.Masse
eu não tivesse procurado escapar, teria pensado depois que era
issoporminhaculpa.”
Quando tornei à terra, ficaram alegres e disseram: “Não, ele
volta.”Fiqueientãozangadoelhesdisse:“Pensáveisqueeuqueria
fugir? Eu fui ao bote dizer aos meus patrícios que se preparem
para,quandovoltardesdaguerra,emelevardesparalá,vosdeem,
emtroca,muitasmercadorias.”Issolhesagradoueficaramoutra
vezcontentes.
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capítulo xli
Como os selvagens foram para a guerra e me levaram e o que aconteceu nessa viagem.
Q uatro dias depois reuniram-se algumas canoas que
queriamirparaaguerra,naaldeiaondeeuestava.Aí
chegouochefeKonyanBébe,comosseus.Disse-meentãoomeu
senhorquemequerialevar.Pedi-lhequemedeixasseemcasa.E
eletalvezotivessefeito;masKonyanBébedissequemelevassem.
Nãodeixeitransparecerqueiacontrariado,paraquepensassem
queiadebomgradoequeeunãodesejavafugirumaveznaterra
do inimigo e tivessem assim menos cautela comigo. Era, com
efeito, minha intenção, se me tivessem deixado em casa, fugir
paraonaviofrancês.
Mas levaram-me. Tinham uma força de 38 canoas e cada ca-
noatripuladacom18 (homens)maisoumenos, 89ealgunsdeles
tinhamtiradobonsaugúriosdaguerra,consultandoosseusídolos
emsonhoseoutrassuperstições,comoéseucostume,demodo
queestavambem-dispostos.Suaintençãoeradirigirem-seàvizi-
nhançadeBrickioka,ondemecapturaram,e,escondendo-senas
matasdosarredores,aprisionartodosquelhescaíssemnasmãos.
Aopartirmosparaaguerra,eraoanode1554,cercade14de
agosto.Nessemês(comojáfoireferidoaqui)umaespéciedepeixe,
89 Eram,naverdade,enormesascanoasdostamoios,feitasdeumtroncointei-riço.Aforçadaesquadradeguerra,comoaquisevê,erarespeitável,subiaa684homens,senãomais.
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chamadoemportuguêsdoynges(tainha),emespanholliesses,ena
línguadosselvagensbrati(parati),saidomarparaaságuasdoces,
adesovar.Osselvagenschamamaissozeitpirakaen . 90Nessetempo
costumavamtodosiràguerra,tantoseusinimigoscomoelespró-
prios,aapanharpeixesnaviagemecomerem.Naida,vãomuito
devagar;masnavolta,comamaiorpressaquepodem.
Euesperavasemprequeosaliadosdosportugueses também
estivessem em viagem, pois que estavam também prontos para
invadiraterradosoutros,comoantesmetinhamditonobarco
osportugueses.
Duranteaviagemperguntaram-mesempreomeupalpite,se
haviamdeaprisionaralguém.Paraosnãozangar,dissequesim;
também disse que os inimigos nos haviam de encontrar. Uma
noite,quandoestávamosnumlugardacostachamadoUwattibi,
apanhamosmuitosdospeixesbrati,quesãodotamanhodeum
lúcio;ventavamuitodenoite.Conversavammuitocomigoque-
rendo saber de muita coisa. Disse-lhes eu então que esse vento
estavapassandosobremuitosmortos.Umaporçãodeselvagens
encontravam-se também no mar, tendo entrado num rio cha-
madoParaíbe. 91“Sim”,disseram,“estesatacaramosinimigosem
terraemuitosdelesmorreram”(comomaistardesoubequetinha
acontecido).Quandochegamosàdistânciadeumdiadeviagem
dolugarondequeriamexecutaroseuplano,arrancharam-sena
mata,numailhaqueosportugueseschamamdeS.Sebastian,mas
queosselvagensdenominamMeyenbipe. 92
90 Difíciléaquirestauraragrafiadessevocábulo.Admitindo-sequesejaumaalteraçãodeçoópiracaen,osentidodovocábulo,seria:“peixesecodesustentooudemantimento”.
91 ÉorioParaíbadoSul.92 ÉMaembipe,quesignificanoestreito,maisdereferênciaaocanalquesepara
ailhadocontinentedoqueaesta.
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Ànoite,ochefeKonyanBébe,achamado,passoupeloacam-
pamento na mata, e disse que eram chegados agora perto da
terra dos inimigos, e todos se lembrassem do sonho que acaso
tivessem durante a noite, e que procurassem ter sonhos felizes.
Acabadaaarenga,começaramadançaremhonradeseusídolos
eatéaltanoiteeforamdepoisdormir.Omeusenhoraodeitar-se
recomendou-mequeprocurasseterumbomsonho.Respondi-lhe
quenãomeimportavacomsonhos,quesãosemprefalsos.“Então,
insistiuele, “rogaassimmesmoa teuDeus,paraqueaprisione-
mosinimigos.”
Aoraiardodiareuniram-seoschefesaoredordeumapanela
depeixefrito,quecomeram,contandoossonhosquemaislhes
agradaram. Alguns dançaram em homenagem aos seus ídolos,
e quiseram nesse mesmo dia ir à terra dos seus inimigos, a um
lugarchamadoBoywassukange(Boisucanga),esperandoaíatéque
anoitecesse.
Ao deixarmos o lugar onde tínhamos pernoitado, chamado
Meyenbipe, perguntaram-me de novo o que eu pensava. Disse
então,aoacaso,queemBoywassukangehavíamosdeencontrar
inimigos,equetivessemcoragem.Eeraminhaintençãofugirde-
lesnomesmolugarBoywassukange,logoquechegássemos,por-
quedeláatéondemetinhamcapturadohaviasomente6léguas.
Quandoperlongávamosaterra,avistamos,pordetrásdeuma
ilha, umas canoas que se dirigiam a nós. Gritaram então: “Aí
vêm os nossos inimigos, os tuppin ikins”. Quiseram ainda assim
esconder-secomassuascanoaspordetrásdeumrochedo,para
queosoutrospassassemsemosver.Masfoidebalde,viram-nos
efugiramparaasuaterra.Remamoscomtodaforçaatrásdeles,
talvez umas quatro horas, e os alcançamos. Eram cinco canoas,
cheias, todas de Brickioka. Conheci-os a todos. Vinham seis ma-
melucosemumadessascanoas,edoiseramirmãos.Chamava-se
umDiegodePraga(Braga),eooutro,DomingosdePraga(Braga).
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Defenderam-seestesvalentemente,umcomumtubo(espingar-
da),eooutrocomumarco.Resistiramnasuacanoa,duranteduas
horas,atrintaetantascanoasnossas.
Acabadas as suas flechas, os tuppin inbá atacaram e os apri-
sionaram,ealgunsforamlogomortosatiro.Osdoisirmãosnão
saíramferidos,masdoisdosseismamelucosficarammuitomal-
tratados, bem como alguns dos tuppin ikin, entre os quais havia
umamulher.
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capítulo xlii
Como, na volta, trataram os prisioneiros.
F oinomar,aduasboasléguasdistantesdeterra,queforam
capturados.Voltaramomaisdepressapossívelparaterra
a pernoitarem outra vez no mesmo lugar, onde já tinham esta-
do.ChegamosaMeyenbipeàtarde,quandoosolestavaentrando.
Levaramentãoosprisioneiros,cadaum,parasuacabana;masa
muitosferidosdesembarcarameosmataramlogo,cortaram-nos
empedaçoseassaramacarne.Entreosqueforamassadosdenoi-
te,haviadoismamelucosqueeramcristãos.Umeraportuguês,
filhodeumcapitãoesechamavaGeorgeFerrero(JorgeFerreira),
cujamãeeraíndia.
O outro chamava-se Hieronymus; este ficou prisioneiro de
umselvagemmoradornamesmacabanaemqueeuestavaecujo
nomeeraParwaa . 93AssouaHieronymusdenoite,maisoume-
nosadistânciadeumpassodolugarondeeuestavadeitado.Esse
Hieronymus(Deustenhaasuaalma!)eraparenteconsanguíneo
deDiogoPraga(DiogoBraga).
Nessamesmanoite,quandojáacampados,fuiàcabanaemque
guardavamosdoisirmãos,paraconversarcomeles,poistinham
sidobonsamigosmeusemBrickioka,ondefuipreso.Entãoper-
guntaram-meseteriamdeserdevorados;respondiqueissoentre-
gassemàvontadedoPaiCelesteedeseuamadofilhoJesusCristo,o
93 ParwaaécertamenteParauá,quesignificapapagaio.
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crucificadopornossospecados,emcujonomeéramosbatizados
atéanossamorte.“Nele”,disseeu,“tenhamfé,poisEleéqueme
tem conservado tanto tempo entre os selvagens e o que Deus
todo-poderosofizerconosco,comissodevemosnosconformar.”
Perguntaram-meentãoosdoisirmãoscomoiaoprimodeles,
Hieronymus;disse-lhesqueforaeleassadoaofogoequetinha
vistojácomeremumpedaçodofilhodeFerrero.Choraramen-
tão.Consolei-osedisseque,decerto,sabiamqueeuaquiestava
havia cerca de8 meses e que Deus me tinha conservado. “Fará
eleomesmoconvoscotambém;confiemnele”,disseeu.“Sinto
isso mais do que vós, porque sou de uma terra estranha e não
estou acostumado aos horrores desta gente; mas vós nascestes
aqui e aqui fostes criados.” Responderam que eu tinha coração
endurecido por causa da minha própria desgraça e por isso os
nãoestranhavamais.
Estando assim a falar-lhes, chamaram-me os selvagens para
minhacabanaemeperguntaramqueconversacompridatinha
eutidocomeles.
Sentimuitoterdeosdeixarelhesdissequeseentregassemà
vontadedeDeus,e fossemvendoquemisériashavianestevale
delágrimas.Responderam-mequenuncatinhamexperimentado
isso tanto como agora, e que se sentiam mais animados por eu
estaremcompanhiadeles.Saíentãodasuacabanaeatravessei
todooacampamento,averosprisioneiros.Andeiassimsozinho
eninguémmeguardava,demodoque,dessavez,podiabemter
fugido,poisqueestávamosnumailha,Meyenbipechamada,cerca
de10léguasdecaminhodeBrickioka,masdeixeideofazerpor
causa dos cristãos presos, dos quais ainda havia quatro vivos.
Assim,refletieu: “Seeufugir,ficamzangadoseosmatamlogo;
talvezatéDeusnospreserveatodos.”Ademais,osselvagenses-
tavammuitocontentescomigo,porqueeuanteslhesanunciara,
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poracaso,queosinimigosviriamaonossoencontro.Eporqueeu
tinhaadivinhadoisso,disseramqueeueramelhorprofetadoque
omaraka 94deles.
94 DaquisedepreendequeosídolosdostupinambásdeCunhambebe,aquepormaisdeumavezStadenserefere,eramosmaracás,chocalhosfeitosdeunscabaçoscontendoseixosousementesequeogentiocostumavaaornarcomaspenasmulticoresdemaiorpreço.Essesmaracás,tinham-noselesemca-banaàparte,àguisadesantuário.
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capítulo xliii
Como dançavam com os seus inimigos, quando pernoitamos, no dia seguinte.
N odiaseguinte,estávamosnãolongedasuaterra,aopé
deumagrandemontanha,denominadaOccarasu. 95Aí
acamparamparapassaranoite.Fuientãoàcabanadochefeprin-
cipal(KonyanBébechamado)elhepergunteioquetencionava
fazerdosmamelucos.Disse-mequeseriamdevoradosemeproi-
biudelhesfalar,poisqueestavamuitozangadocomeles;deviam
terficadoemcasaenãoircomseusinimigosemguerracontra
ele.Pedi-lhequeosdeixassevivereosvendesseaosseusamigos,
outravez.Tornouadizer-mequeseriamdevorados.
EessemesmoKoniamBébetinhaumagrandecestacheiade
carnehumanadiantedesieestavaacomerumaperna,queele
fezchegarpertodeminhaboca,perguntandoseeutambémque-
riacomer.Respondiquesomenteumanimalirracionaldevoraa
outro, como podia então um homem devorar a outro homem?
Cravou então os dentes na carne e disse: “Jau ware sche , 96” que
querdizer:“Souumaonça,estágostoso.”Comisso,retirei-mede
suapresença.
95 AindahojeéessamontanhachamadaOcaruçu–formandoassinaladopro-motório,àpartedesudoestedagrandebaíadeParaty.OnometupiOcaruçuquer dizer, terreiro ou praça grande e a aldeia de Cunhambebe ficava-lheparaointerior,norecôncavodessabaía.
96 Afrasetupiéenfáticaeestámal-escrita.Onarradorquisdizer–Yauara inchê!,quesetraduzsou onça!
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Essa mesma noite, ordenou ele que cada um levasse os seus
prisioneirosparaadiantedomato,aopédaágua,numlugarlim-
po.Issofeito,reuniram-se,formandoumgrandecírculoedentro
ficaram os prisioneiros. Obrigaram a todos estes a cantarem e
chocalharemosídolostammaraka.Malosprisioneirosacabaram
o canto, começaram, um após o outro, a falar com arrogância:
“Sim, saímos como costuma sair gente brava, para aprender a
comerosnossosinimigos.Agoravósvencestesenosaprisionas-
tes,masnãofazemoscasodisso!Osvalentesmorremnaterrados
inimigos;anossaéaindagrande;osnossosnoshãodevingarem
vós.”“Sim”,responderamosoutros,“vósjáacabastesamuitosdos
nossos,porissoqueremosnosvingardevós.”
Acabada essa disputa, levou cada um seu prisioneiro, outra
vez,paraoalojamento.
Três dias depois, partimos novamente para a terra deles;
cadaquallevouoseuprisioneiroparasuacasa.Osqueeramde
Uwattibi,ondeeuestava,tinhamcapturadooitoselvagensvivos
e três mamelucos que eram cristãos, a saber: Diogo e seu irmão e
mais um cristão chamado Antônio; este tinha sido aprisiona-
do pelo filho do meu senhor. Dois mamelucos mais que eram
cristãos, levaram-nos assados para a casa, para lá os devorar.
Tínhamoslevadoonzediasnaviagem,idaevolta.
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capítulo xliv
Como o navio francês ainda lá estava, para o qual me tinham prometido levar quando voltassem da guerra, etc., como ficou referido.
C hegamos outra vez à casa, pedi-lhes que me levassem
paraonaviofrancês,poisjátinhaestadonaguerracom
eleseostinhaajudadoacapturarosseusinimigos,aosquaisjá
deviamterouvidoqueeunãoeranenhumportuguês.
Disseram-mequesim,queiamlevar-me;masqueriamprimei-
rodescansarecomeromokaen(moquém)istoé,carneassadados
doiscristãos.
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capítulo xlv
Como foi que comeram assado o primeiro dos dois cristãos, a saber: Jorge Ferrero, o filho do capitão português.
H aviaumprincipalnumadascabanas,emfrentedaemqueeuestava.Chamava-seeleTatamiri , 97e foiquem
forneceuoassadoemandoufazerasbebidas,comoeraocostumedeles. Reuniram-se então muitos para beber, cantar e folgar. Nodiaseguinte,edepoisdemuitobeberem,aqueceramoutravezacarneassadaeacomeram.MasacarnedeHieronymusestavaain-dadentrodeumacesta,penduradanofumeiro,nacabanaondeeuestava,haviamaisdetrêssemanas;estavatãosecacomoumpauporterestadotantotemponofumeirosemqueacomessem.Oselvagemqueapossuíachamava-seParwaa.Tinhaidoalguresbuscar raízes para fazer bebida que havia de servir por ocasiãodesecomeracarnedeHieronymus.Assimsepassavao tempoenãoqueriamlevar-meparaonavioantesdepassadaafestadeHieronymusedeacabaremdecomer-lheacarne.Enquantoisso,foi-seemboraoutravezonaviofrancês,semqueeusoubesse,poishaviamaisoumenosoitomilhasdedistânciadolocalondeeuestava.
Aoteressanotíciafiqueimuitotriste;masosselvagensmedi-ziamqueeracostumegeralmentevoltaronaviotodososanos, 98comoquetivedemecontentar.
97 Tatamiri,ouTatá-mirim,querdizerfoguinhooulumezinho.98 PorondesevêqueocomérciodosfrancesescomogentiodacostadoBrasil
eraentãoregularefrequente,eque,naquelesprimeirosanosdaconquista,ainfluênciafrancesaentreosselvagenseraincontestável.
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capítulo xlvi
Como Deus Todo-Poderoso me deu uma prova.
T inhaeufeitoumacruzdeumpauocoeatinhalevan-
tadoemfrentedacabana,ondemorava.Muitasvezesaí
fizaminhaoraçãoaoSenhoretinharecomendadoaosselvagens
de a não arrancar, porque havia de acontecer alguma desgraça;
desprezaram,porém,asminhaspalavras.Certavez,emqueeues-
tavacomelesapescar,umamulherarrancouacruzeadeuaseu
marido,paranamadeiraqueeraroliçapolirumaespéciedecolar
quefazemdeconchasmarinhas.Issomecontrariou.Logodepois
começou a chover muito e a chuva durou alguns dias. Vieram
entãoàminhacabanaemepediramqueimplorasseameuDeus
paraquecessasseachuva,poisque,senãocessasse,impediriaa
plantação,vistoserjátempodeplantarem.Disse-lhesqueaculpa
era deles, pois tinham ofendido a meu Deus, arrancando o ma-
deiro; e era ao pé deste que eu costumava falar com ele. Como
acreditassemseressaacausadachuva,ajudou-meofilhodomeu
senhoralevantar,denovo,acruz.Eramaisoumenosumahora
datarde,calculadapelosol.Tantoqueacruzseergueu,ficouime-
diatamentebomotempo,quetinhaestadomuitotempestuoso
até ali. Admiraram-se todos, acreditando que o meu Deus fazia
tudooqueeuqueria.
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capítulo xlvii
Como uma noite fui pescar com dois selvagens e Deus fez um milagre por causa de uma chuva e tempestade.
E stavaeucomumdosmaisnobresdentreeles,chamado
Parwaa,omesmoquetinhaassadoaHieronymus.Ele,eu
e mais outro pescávamos. Ao escurecer levantou-se uma chuva
comtrovoada,nãolongedenós,eoventotangiaachuvaparao
nossolado.Pediram-meentãoosdoisselvagensqueeurogassea
meuDeusqueimpedisseachuva,porqueassimtalvezapanhás-
semosmaispeixe.Eusabiaquenascabanasnadamaistínhamos
paracomer.Assuaspalavrasmecomoveram,epediaDeus,do
fundodomeucoração,quequisessemostraroseupoder,nãosó
porteremosselvagenspedidocomoparaquevissemquetu,oh!
meuDeus,estavassemprecomigo.Tantoqueacabeideorar,so-
prouoventocomviolência,trazendoachuva,atémaisoumenos
unsseispassosdenós,enemdemosporisso.Disseentãooselva-
gemParwaa:“AgoraestoucertodequefalastecomoteuDeus.”E
apanhamosalgunspeixes.
Quandotornamosàscabanas,contaramosdoisselvagensaos
outrosqueeuhaviafaladocomomeuDeusequecoisastinham
acontecido.Foiadmiraçãoparatodos.
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capítulo xlviii
Como foi que comeram assado o outro cristão, chamado Hieronymus.
L ogo que o selvagem Parwaa teve tudo pronto, como já
disse, mandou fazer as bebidas para quando comessem
a Hieronymus. Acabado isso, foram buscar os dois irmãos e
maisum,queofilhodomeusenhortinhacapturado,chamado
Antonius.Quandonósquatrocristãosnosajuntamos,obrigaram-
-nosabebercomeles;antesporémdebebermos,fizemosanossa
oraçãoaDeusparaquesalvasseasnossasalmaseanóstambém
quando chegasse a nossa hora. Os índios conversavam conosco
esemostravamalegres;nós,porém,sóvíamosdesgraças!Nodia
seguintedemanhã,aqueceramdenovoacarne,comerameaca-
baramlogocomela.Nessemesmodia,levaram-meparafazerpre-
sente de mim. Ao separar-me dos dois irmãos, pediram-me eles
queorasseaDeusporeles;eeulhesensineiomeiodefugirem,o
lugarparaondedeviamdirigir-senaserrasemseremperseguidos,
poisqueeujátinhaexploradoaserra.Issofizeram,ficaramlivres
eescaparam,comosoubedepois;masignoroseforamapanhados
outravez.
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capítulo xlix
Como foi que me levaram para fazer presente de mim.
L evaram-meparaolugarondemequeriamdardepresen-
te, a caminho, num ponto chamado Tackawara sutibi, 99
quandojáestávamosacertadistância,voltei-meparaascabanas
deondetínhamossaídoeviquehaviaumanuvemnegrasobre
elas.AponteiparaanuvemedissequeomeuDeusestavairrita-
docomaaldeiaporque tinhamcomido carnede gente. E, uma
vez chegados, entregaram-me a um principal de nome Abbati
Bossange. 100Aestedisseramquenãomefizessemal,nemodeixas-
sefazer,porqueomeuDeuseraterrívelquandomemaltratavam.
Eelesotinhamexperimentadoquandoaindaestavaeuentreeles;
porminhavez,tambémoexorteielhedissequenãodemoraria,
haviamdevirmeuirmãoemeusparentescomumnaviocarre-
gadodemercadoriase,semetratassembem,euhaviadelhesdar
muitospresentes,poiseusabiaqueDeusfariachegarsemdemora
onaviodomeuirmão.Oprincipalchamou-me“seufilho”efuià
caçacomosdele.
99 Tackawara sutibi é aqui o mesmo que Taquarucutyba, e significa sítio dostaquaruçus.
100 Abbati Bossange é alteração do tupi Abati-possanga, e quer dizer caldo de milho,ouremédio feito de milho.
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capítulo l
Como os selvagens daquele lugar contaram que o navio francês tinha-se feito a vela de novo.
C ontaram-mecomoonavioanterior,Maria Bellete,cha-
mado de Depen (Dieppe), com o qual eu tanto queria
partir,alireceberacargacompleta,asaber:opau-brasil,pimenta,
algodão,penas,macacos,papagaiosemuitasoutrascoisas,que
não tinham encontrado em outra parte. No porto do Rio de
Jannero 101 tinhamaprisionadoumnavioportuguêsedadoum
portuguêsaumprincipaldosselvagens,chamadoItawu,queo
tinhadevorado.Tambémaquelefrancêsque,quandocaíprisio-
neiro,tinharecomendadoquemecomessemestavaabordodo
navioequeriavoltarparasuaterra.Onaviodosfranceses,como
jácontei,daquelesmesmosquenãomequiseramrecolherquan-
dofugiparaobotedeles,tinhanaufragadonavolta, 102equando
volteiparaaFrançaemoutronavioninguémsabiaaindaonde
eleparava,comodireimaistarde.
101 AbaíadoRiodeJaneiro,aessetempo,estavavirtualmenteempoderdosfranceses.Noanoseguinte(1555)aodestanarração,Villegagnonfortifica-va-senumilhéudentrodessaformosabaía.
102 FrequenteseramentãoosnaufrágiosemáguasdoBrasil;esseagoradequenosfalaonarradorerajáosextoocorridosparaosuldeCaboFrio,emen-cionadospeloresignadoprisioneirodostamoios.
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capítulo li
Como, logo depois de terem feito presente de mim, um outro navio chegou de França, chamado Catarina de Vattauilla,
o qual, por providência de Deus, me comprou, e como isso aconteceu.
D epoisdemaisoumenosquatorzediasdepermanên-
cianolugarTackwara sutibi(Taquaruçutiba),emcasa
deAbbatiBossange,aconteceuviremamimunsselvagenseme
dizeremquetinhamouvidotiros,paraosladosdeIteronne,cujo
porto também chamam Rio de Jannero. Como julguei que, de
fato,umnavioláestava,pedi-lhesquemelevassemparalá,por-
queera,decerto,omeuirmão.Disseram-mequesim,porémme
detiveramaindaporalgunsdias.
Foiotempoqueosfranceses,recém-chegados,souberamque
euestavaentreosselvagens.Ocapitãomandoudoishomensde
bordo,emcompanhiadeseisdosselvagens,seusamigosnolugar,
os quais chegaram à cabana do principal chamado Sewarasu , 103
pertodaquelasondeeuestava.Osselvagensmeviramdizerque
duas pessoas desembarcadas do navio ali estavam. Fiquei con-
tentee fui tercomelase lhesdeiasboas-vindas,na línguados
selvagens.Vendo-meemtãomíseroestado,tiverampenademim
e repartiram suas roupas comigo. Perguntei-lhes a que tinham
vindo. Responderam que por minha causa; tinham recebido or-
demdemelevarparabordoeestavamdispostosausardetodos
osmeiosparaisso.Entãomeucoraçãosealegroureconhecendoa
103 Sowarasuou,antes,çoóguara-açu,o“grandecomedordecaça”ouo“comilão”.
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clemênciadeDeus.EeudisseaumdosdoisquesechamavaPerot
esabiaalínguadosselvagensqueeledeviadeclararqueerameu
irmão e tinha trazido para mim uns caixões, cheios de merca-
dorias,equeelesmelevassemabordoparabuscaroscaixões;e
acrescentasse que eu desejava ficar ainda com eles para colher
pimentas e outras coisas mais, até que o navio voltasse no ano
seguinte.Depoisdessaconversa,levaram-meparaonavio,emeu
senhortambémfoicomigo.Abordotodostiverampenademime
metratarammuitobem.Depoisdeestarmosunscincodiasabor-
do,perguntou-meoprincipaldosselvagens,AbbatiBossange,a
quemeutinhasidodado,ondeestavamoscaixõesparamedarem
epodermoslogovoltarparaterra.Conteiissomesmoaocoman-
dantedonavio.Estemeordenouqueeufosseentretantoatéque
onavioestivessecomtodaacarga,paraquesenãozangassemou
fizessemalgummalaoverificaremquemeretinhanonavio,
ounãotramassemqualquertraição;tantomaisquantotalgente
nãoédeconfiança.Meusenhor,porém,insistiuemlevar-mecon-
sigoparaaterra.Eu,porém,oentretivecomaminhaprosaelhe
dissequenãotivessetantapressa;queelebemsabiaque,quando
bonsamigossereúnem,nãopodemseparar-setãocedo;mas,logo
queonaviotivessedepartir,havíamosdevoltarparaasuacasa;e
assimodetive.Finalmente,quandoonavioesteveprestesapartir,
reuniram-seosfrancesestodosdonavio;euestavacomeleseo
meusenhor,oprincipal,comosquetinhalevado,tambémláes-
tava.Ocapitãodobarcomandouentãooseuintérpretedizeraos
selvagensqueeleestavasatisfeitodemenãoteremmorto,depois
demetertiradodopoderdeseusinimigos.Mandoudizermais
(para com mais facilidade me livrar deles) que tinha mandado
chamar-meabordo,porquequerialhesdaralgunspresentespor
me terem tratado bem. Igualmente era da sua intenção persua-
dir-medequeeudeviaficarentreelesporestarjáfamiliarizado,
eparacolherpimentaeoutrasmercadorias,paraquandoonavio
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voltasse.Tínhamosentãocombinadoqueunsdezhomensdatri-
pulação,quedealgummodosepareciamcomigo,sereunissem
edeclarassemqueerammeusirmãosequedesejavamlevar-me
consigo. Comunicou-se-lhes isso e mais que os mesmos meus
irmãos não queriam que eu tornasse com os selvagens para a
terra;esimquevoltasseparaonossopaís,poisqueonossopai
desejavaver-meaindaumavezantesdemorrer.
O capitão mandou dizer que era ele ali o superior no navio
e desejava muito que eu fosse com os selvagens de novo para
terra;masqueeleestavasóeosmeusirmãoserammuitos,pelo
que nada podia contra eles. Esses pretextos todos foram dados
paraquenãohouvessedesarmoniacomosselvagens.Edisseeu
também ao meu senhor, o principal, que desejava muito voltar
com ele; porém podia ele bem ver que os meus irmãos não me
deixavam.Começouentãooprincipaladizeremvozaltaabordo
queeuvoltassenoprimeironavio,queelemeconsideravacomo
seufilhoeestavamuitoirritadocomagentedeUwattibi,queme
queriadevorar.
Eumadasmulheresdoprincipalquetinhavindoabordofoi
poreleexcitadaamegritarnosouvidoscomoécostumedeles,
eeugriteitambém,segundoomesmocostume.Apósisso,oca-
pitão deu a todos algumas mercadorias, que podiam valer uns
cincoducados,emfacas,machados,espelhosepentes.Comisso
partiramparaassuascasas,emterra.
AssimmelivrouoSenhorTodo-Poderoso,oDeusdeAbraão,
Isaac e Jacó, do poder dos bárbaros. A Ele sejam dados louvor,
honraeglória,porintermédiodeJesusCristo,seuamadofilho,
nossoSalvador.Amém.
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capítulo lii
Como se chamavam os comandantes do navio; de onde era o navio; o que ainda aconteceu antes de partirmos do porto,
e que tempo levamos em viagem para França.
O capitão do navio chamava-se Wilhelm de Moner e
o piloto, Françoy de Schantz. O navio tinha o nome
de Catarina de Wattauilla, etc. Apresentaram-no para voltar a
França,e,umdiademanhã,enquantoaindaestávamosnoporto
(RiodeJaneirochamado),aconteceuchegarumpequenobarco
português, pretendendo deixar o porto depois de ter traficado
com uma casta de selvagens, de sua amizade, chamados Los
Markayas (os Maracaiás), cujo país limita diretamente com o
dos tuppin ikins (tupinambás), amigos dos franceses. 104 As duas
naçõessãograndesinimigas.
Era pequeno o navio (como já contei); tinha vindo para me
compraraosselvagensepertenciaaum factor(feitor),chamado
PeterRoesel.Osfrancesesmeteram-menoseubotecomalgumasarmasde
fogo e partiram para aprisioná-lo. Tinham-me levado consigo,paraqueeulhesfalassedeserender.Mas,aoatacarmosobarqui-nho,fomosrepelidos,ealgunsfrancesessaíramatiradoseoutrosferidos.Eutambémfuigravementeferidodeumtiroemuitomaisquequalquerdosoutrosferidos,sobreviventes.Invoqueientãonessa angústia o Senhor, porque já sentia a agonia da morte.; e
104 Osmarkaias,oumelhor,osmaracayás,aofundodebaíadoRiodeJaneiro,eram vizinhos e inimigos dos tupinambás (tuppin inbás) e não tupiniquins(tuppin ikins),comoestánanarração.
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o130
pedi ao bondoso Pai que, uma vez que me livrara do poder dosbárbaros,meconservasseavida paraqueaindapudesse chegarà terra cristã e contar a outros os benefícios que ele me tinhadispensado.Efiqueioutravezcompletamentebom,louvadosejaDeusportodaaeternidade.
Noanodominide1554,últimodiadeoutubro,partimosàveladoportoRiodeJannero,efomosdevoltaparaaFrança.Tivemosnomarsemprebomvento,dequeosmarinheirosestavamadmi-radoseacreditavamquefosseumagraçadeDeusumtaltempo(comonaverdadeofoi).
NavésperadoNatal,depararam-semuitospeixesemtornodonavio,dosquesechamammeerschweins.Apanhamostantosquenosderamparaalgunsdias.OmesmoaconteceudetardenodiadeReis.Deusnosmandougrandefarturadepeixes,poisquenãotínhamosquecomersenãooqueDeusnosdavadomar.Maisoumenosa20defevereirodoanoLV(1555),chegamosaFrança,àcidadechamadaHonflor(Honfleur),naNormandia.Durantetodaaviagemdevolta,nãovimosterraalguma,durantecercadequa-tromeses.Quandofoidadescargadonavio,tomeiparte.Acabadoisso,agradeciatodososbenefíciosrecebidosepedientãoumpas-saporteaocapitão.Ele,porém,preferiaqueeufizessemaisumaviagememsuacompanhia;vendo,porém,queeunãodesejavafi-car,arranjou-meumpassaportedoMoensoralMiranth(Monsierl’amiral),governadordaNormandia.Eocapitãodeu-medinheiroparaaviagem.Despedi-meepartideHonfleurparaHabelnoeff(HavreNeuf)edeHabelnoeffparaDepen.
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capítulo liii
Como em Depen eu fui levado para a casa do capitão do navio Bellete (Bel’Eté), que tinha deixado o Brasil antes de nós
e ainda não tinha voltado.
F ora daqui que havia partido o primeiro navio, Maria
Bellete,dequeeraintérpreteaqueleindivíduo(quetinha
recomendadoaosselvagensquemedevorassem),navioemque
elepretendiavoltarparaaFrança.Nomesmoéquetambémesta-
vamaquelesquenãomequiseramrecolhernobote,quandofugi
dosselvagens;tambémoseucapitãoeraaqueleque,segundome
contaramosselvagens,lhestinhaentregue,paraelesdevorarem,
umportuguês,aprisionadonumnaviocomoantesnarrei.
EssagentedoBelletenãotinhaaindachegadocomoseubarco
quando ali aportei, apesar de que, segundo o cálculo do navio
Wattauilla,chegado(ao Brasil)depoisdaquele,equefoiquemme
comprou,jádeviatercáchegadotrêsmesesantesdenós.Asmu-
lhereseosamigosdessagentevierammeprocuraremepergun-
taramseeunadasabiadeles.
Respondi: “Sim, sei: há uma parte má dessa gente no navio,
esteja lá onde estiver.” E contei então como um deles, que este-
venaterradosselvagenseseachavaabordo,tinhaaconselhado
aosselvagensquemedevorassem,masqueDeus,todo-poderoso,
tinha-mepreservado;econteicomotinhamvindonoboteatéas
cabanas,ondeeuestava,afazerempermutascomosselvagense
nadadoatéoseubote;masquenãoquiseramreceber-meecomo
fuiobrigadoavoltardenovoaterraparaopoderdosselvagens,
que me tinham maltratado tanto. Tinham também entregue
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b i b l i o t e c a b á s i c a b r a s i l e i r a – c u lt i v e u m l i v r o132
umportuguêsaosselvagensparaodevorarem,disse-lheseu,do
mesmomodoquenãotinhamtidocompaixãodemim.Portudo
issoviaagoracomoDeustinhasidotãobomparacomigo,pois,
louvadosejaEle,tinhaeuchegadoprimeiroparavosdarnotícias.
Hãodechegardecertoquandoforpossível;masqueroprofetizar
que Deus não deixará sem castigo, por mais ou menos tempo,
tamanhainclemênciaedurezacomotinhammostradoparaco-
migo.Deuslhesperdoe;poisestavaclaroqueDeus,nocéu,tinha
ouvidoosmeuslamentosesetinhacompadecidodemim.Elhes
conteimaiscomo,paraosquemetinhamresgatadodopoderdos
selvagens,tudotinhacorridobemdurantetodaaviagem,como
defatosedeu.Deusnosconcederabomtempo,bomventoenos
derapeixesnofundodomar.
Ficaramtristesemeperguntaramseeujulgavaqueelesain-
daexistiam;paraosnãodesconsolar,disse-lhesentãoqueainda
podiamvoltar,apesardequetodoseeutambémnãopodíamos
presumirsenãoquetivessemperecido.
Depoisdetodaessaconversa,despedi-meedisseque,sevoltas-
sem,contassemaelesqueDeusmetinhaajudadoequeeutinha
estadoaqui.
De Depen parti em um barco para Lunden (Londres), em
Engellandt (Inglaterra), onde fiquei alguns dias. Dali parti para
Seelandt e de Seelandt para Andorff (Antuérpia). Assim é que
Deustodo-poderoso,paraoqualtudoépossível,ajudou-meavol-
tarparaapátria.LouvadosejaEleeternamente.Amém.
Minha oração a Deus, o Senhor, enquanto eu estive no poder dos selvagens, para ser devorado.
Oh,tu,DeusTodo-Poderoso,quefizesteocéueaterra;tu,Deus
dosnossosantepassados,Abraão,IsaaceJacó;tuquetãopodero-
samenteconduzisteoteupovodeIsraeldamãodeseusinimigos
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atravésdoMarVermelho.Ati,queeternopodertens,peçoque
me livres das mãos destes bárbaros, que não te conhecem, em
nomedeJesusCristoteuamadofilho,quelivrouospecadoresda
prisãoeterna.Porém,Senhor,seétuavontadequeeusofra,que
heidesofrermortetãocrueldasmãosdestespovosquenãote
conhecem e que dizem, quando lhes falo de ti, que tu não tens
poder de me tirar de suas mãos, então fortalece-me no último
momento,quandorealizaremosseusdesígniossobremim,para
que eu não duvide da tua clemência. Se tenho de sofrer tanto
nesta desgraça, dá-me ao depois repouso e me preserva do mal
quehorrorizoua todososnossosantepassados.Mas,Senhor, tu
podesbemlivrar-medoseupoder;livra-me,euseiquetumepo-
desauxiliar,e,quandotumetivereslivrado,nãooqueroatribuir
afelicidadesenãounicamenteàmãopoderosaquemeauxiliou,
porqueagoranenhumpoderdehomempodemevaler.Equando
metivereslivradodeseupoder,querolouvaratuaGraçaedá-laa
conheceratodasasnaçõesondeeuchegar.Amém.
Não posso crer que alguém possa orar de coração
Sem que esteja em grande perigo ou perseguição,
Porque enquanto o corpo vive conforme quer,
Está sempre contra o seu Criador.
Por isso, Deus, quando manda alguma desgraça,
É prova que ele nos quer ainda bem,
E ninguém deve ter disso dúvida,
Porque isso é uma dádiva de Deus.
Nenhuma consolação, nem arma, existe melhor
Que a simples fé em Deus.
Por isso, cada homem de devoção
Nada melhor pode ensinar a seus filhos
Do que a compreensão da palavra Deus,
Na qual sempre podem ter confiança.
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Para que tu, leitor, não julgues
Que eu tive todos este trabalho para ter fama e honra,
Digo que é para o louvor e honra de Deus,
Que conhece todos os pensamentos do homem.
A Ele, caro leitor, te recomendo,
E peço que Ele continue a me ajudar.
Amém.
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segunda parte
V erdadeiraecurtanarraçãodocomércioecostumesdos
tupininbas,cujoprisioneiroeufui.MoramnaAmérica.
O seu país está situado no 24º gradus, no lado do sul da linha
equinocial.Asuaterraconfinacomumdistrito,chamadoRiode
Janeiro.
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capítulo i
Como se faz a navegação de Portugal para o Rio de Jannero, situado na América, mais ou menos no
24º gradus do Tropici Capricorni.
L issebonaéumacidadedePortugal,situadaa39grausao
nortedalinhaequinocial.QuandosepartedeLissebona
paraaprovínciadoRiodeJaneiro,situadanopaísdoBrasil(Brasil),
que também se chama América, vai-se primeiro a umas ilhas
chamadasCannarix (Canárias),quepertencemaoReideEspanha.
Seisdelasmencionareiaqui:Aprimeira,GranCanária;asegunda,
Lanserutta;aterceira,ForteVentura;aquarta, IIFerro;aquinta,
LaPalma;asexta,Tineriffe.DaísevaiàsilhasquesechamamLos
insules de Cape virde.Oquequerdizer:asilhasdoCaboVerde, 105
cujoCaboVerdeseachanaterradosmourospretos,quesecha-
ma também Gene. 106 As supramencionadas ilhas estão debaixo
doTrópicodeCancri 107epertencemaoReidePortugal.Dasilhas
navega-sesu-sudoesteparaopaísdoBrasilemumgrandeevasto
mar, muitasvezes trêsmesesemaisantes de se chegarao país.
Primeiro navega-se passando o Tropicum Cancri que fica para
trás.Depoispassa-sea lineam equinoxialem.Quandoentão,nesse
navegar,seobservaoNorte,nãoseenxergamaisaestrelapolar
(chamada também Polum Articum). Depois chega-se à altura do
TropiciCapricorni;navega-seporbaixodosol,equandosetem
105 As ilhas de Cabo Verde, do nome do cabo que se acha na costa africana,habitadapormourosnegros.
106 OnarradoraquiserefereàGuiné.107 OTrópicodeCâncer.
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chegadoàalturadoTropiciCapricorni,nahoradomeio-dia,vê-
-seosolparaoladodoNorte,efazsempremuitocalorentreos
doisTropicis.OreferidopaísBrasilestá,emparte,dentrodosdois
Tropicis.
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capítulo ii
Como está situado o país América, ou Brasil, conforme em parte tenho visto.
A América é uma grande terra com muitas nações sel-
vagens,emuitadiferençanassuas línguas. 108Hánela
muitosanimaisestranhos,eébeladever-se.Asárvoresestãosem-
preverdes,enenhumamadeiradestaterraseassemelhaàsoutras.
Agenteandanua,eemnenhumapartedaterra,queestáentre
os Tropicis, em tempo algum do ano faz tanto frio como aqui
emMichalis;masapartedestaterra,queestáaosuldoTropicus
Capricorni,éumpoucomaisfria.Alihabitaanaçãodeselvagens
quesechamacariós(carijós),queusampelesdeanimaisferozes,
as quais eles preparam bem para com elas se cobrirem. As mu-
lheres desses mesmos selvagens fazem, de fios de algodão, uma
espéciedesaco,abertoemcimaeembaixo,queelasvestemeque,
nalínguadeles,sechamatyppoy. 109Hánestepaísfrutasdaterrae
dasárvores,dequeagenteeosanimaissenutrem.Agentetem
apeledecorvermelho-parda,porcausadosolquearequeima.É
povobemparecido,muitoladinonopraticaromalepropensoa
perseguiredevorarosseusinimigos.
108 InúmeraseramasprimitivasnaçõesselvagensdoBrasileassuaslínguasmuitodiferentesumasdasoutras.Amaisespalhadaeraalínguatupi,fala-danolitoral.
109 Espéciedecamisasemmangasesemtalhe,verdadeirosacocomosfurosprecisosparapassaracabeçaeosbraços.Chamavam-setipoynotupi,de-poislusitanizadoemtipoia.
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A sua terra América 110 tem muitas centenas de milhas para
onorteeparaosulnocomprimento,dasquaisnavegueitalvez
umasquinhentas,tendotocadoemmuitoslugaresdopaís.
110 Até a época do cativeiro de Hans Staden entre os tupinambás, o nomeAmérica só era usado para designar a parte do continente que é hoje oBrasil.
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capítulo iii
Sobre uma grande serra que há no país.
H áumagrande,serraqueseestendea3milhasdomar,
emalgunslugaresmaislonge,emoutrostalvezmais
perto,equechegamaisoumenosatéaalturadeBoigadeTodolos
Sanctus, 111umlugarassimchamado,ondeosportuguesesedifica-
ramemoram.Essaserraestende-seaolongodomarexatamente
204milhas,atéaalturado29ºgradusdoladodosuldalinhaequi-
nocial,ondetermina.Emalgunslugares,temelaoitomilhasde
largura.Pordetrásdaserraháumplanalto.Descembonitosrios
ehánelamuitacaça.Naserraháumacastadeselvagensquese
chamaWayganna. 112Estesnãotêmhabitaçãofixacomoosoutros,
quemoramdianteepordetrásdaserra.OsmesmosWayganna
estãoemguerracomtodasasoutrasnaçõesequandoapanham
algum inimigo o devoram; os outros também fazem o mesmo
comeles.Vãoàprocuradacaçanaserra;sãoperitosnoatirarcom
oarcoehábeisemoutrascoisas,comoemfazerlaçosearmadi-
lhascomqueapanhamcaça.
111 ÉaBaíadeTodososSantos,ondejáosportugueses,em1549,tinhamedifi-cadoacidadedoSalvadorparacabeçadasuacolônianoNovoMundo.
112 Wayganna–queronarradordizerGuayanã,nomedeumanaçãoselvagemquehabitaasmatasdaserra,entremetidaentretamoiosoutupinambás,tupiniquinsecarijós.Anchietaassinala–GuayanãsdomatoeGuayanãsdocampo;masnãoostemnacontadaferocidadeemqueosdescreveaquionarrador.OjesuítaeoautordoRoteiro do BrasildivergemdeHansStadennodescreveremaíndoleeocaráterdessesíndios.
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Hátambémmuitomelsilvestre,naserra,servindodealimento.
Sabemtambémimitaravozdosanimaiseocantodospássaros,
para melhor apanhá-los e matá-los. Fazem fogo com dois paus,
comoosoutrosselvagenstambémofazem.Geralmenteassamas
carnesquecomem.Viajamcomasmulheresefilhos.Quandose
acampamjuntoaterradeseusinimigos,fazemcercasdearbustos
aoredordassuascabanas,paraqueosnãopossamsurpreender
etambémporcausadotigres,epõemespinhos(Maraga eibe Ju
chamados)aoredordascabanas,domesmomodocomoaquise
fazemarmadilhas.Praticamissodemedodeseusinimigos.Toda
anoite,conservamo fogoaceso.Quandoraiaodiaapagam-no,
paraquesenãovejaafumaçaqueosdenuncia.Deixamcrescero
cabelonacabeça,etambémconservamunhascompridas.Usam
também um chocalho, chamado maraka, como os outros selva-
gensetêm-noemcontadeumdeus.Gostamigualmentedebeber
edançar.Tambémseservemdedentesdeanimaisparacortar,e
demachadosdepedra,comoasoutrasnaçõesselvagenstambém
usaramantesdeestaremcontatocomosnaviosestrangeiros.
Partem também muitas vezes em busca de seus inimigos.
Quandoqueremaprisioná-los,escondem-sepordetrásdas tran-
queirasqueficamemfrentedascabanasdestes.Fazemissopara
colheralguémqueacasosaiadascabanasabuscarlenha.
Sãotambémmaiscruéiscomseusinimigosdoqueosinimi-
goscomeles.Porexemplo:cortam-lhesosbraçoseaspernas,en-
quantoaindavivem,pelagrandegulaqueosdistingue.Osoutros,
porém,matamprimeiroantesdeosdespedaçarparaoscomer.
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capítulo iv
Como os selvagens tuppin inbá, dos quais fui prisioneiro, têm suas moradas.
T êmelesassuashabitaçõesemfrentedaserragrande,já
mencionada,juntodomar.Tambémpordetrásdames-
maserraestende-seoseudomíniocercade60milhas.Umgrande
riodescedaserraecorreparaomar;emumlugardesseriomo-
ramelesechamamParacibe . 113Aextensãodoterrenoqueelesaí
ocupampodeserde28milhas,eestãoaírodeadosdeinimigos.
Doladodonorteconfinamcomumacastadeselvagens,quese
chamamWeittaka, 114esãoseusinimigos;doladodosulchamam-
-seseus inimigos tuppin ikin,edo ladodaterraadentroosseus
inimigos são chamados Karaya. 115 Depois vêm os Wayganna,
quemoramnaserrapertodeles,emaisumanaçãoquesechama
Markaya (Maracaiá), que habita entre estes, e são seus grandes
perseguidores.Osoutrosjámencionadosguerreiam-seentresie
tantoqueumdelesapanhaalgumdosoutrosedevora.
Gostammuitodecolocarassuascabanasondeaáguaealenha
nãofiquemlonge.Omesmoquantoàcaçaeaopeixe,equando
113 EssegranderioParaeibeémuitoprovavelmenteonossoParaíba,cujasca-beceiras confrontam com o trecho do litoral ocupado pelos tupinambás(tuppin inbá),dequenosfalaonarrador.
114 Refere-seaquionarradoraogentioGuaytacáquedominavaobaixoParaíba.Onometupiécontraçãodegoatacara,quequerdizeroandejo,onômade,errante.
115 Karayaé,decerto,Carayá,gentiodosertãoedaraçanãotupidequehojesótemosnotíciasnovaledoAraguaia.
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têm devastado um lugar mudam as moradas para outra parte.
Paraconstruirassuashabitações,umdoschefesentreelesreú-
neparaissouns40homensemulheres,quantospodeencontrar,
geralmenteseusamigoseparentes.
Levantamestesacabana,quetemmaisoumenos14pésde
larguraeuns150pésdecomprimento,e,seforemmuitos,duas
braçasdealtura;otetoéredondo,comoumaabóbada.Cobrem
depoiscomumagrossacamadaderamasdepalmeira,demodo
anãochoverdentro.Ninguémtemquartoseparado;cadacasal
dehomememulhertemumespaçonacabana,deumdoslados,de
12 pés; de outro lado, um outro casal, o mesmo espaço. Assim
seenchemascabanas,ecadacasaltemoseufogo.Ochefetem
oseuaposentonocentrodacabana.Estastêmgeralmentetrês
portinhas,umaemcadaextremidadeeoutranocentro;sãobai-
xasdemodoasernecessárioagentecurvar-separasaireentrar.
Poucasdassuasaldeiastêmmaisdesetecabanas.Nomeio,entre
ascabanas,deixamumespaço,ondematamosprisioneiros.São
tambéminclinadosafazerfortificaçõesaoredordassuascaba-
nas;eofazemassim:erguem,aoredordascabanas,umacerca
detroncosrachadosdepalmeiras.Acercacostumaterbraçae
meiadealtura,efazem-natãojuntaquenenhumaflechapossa
atravessá-la.Deixamumasaberturaspelasquaisatiram.Aore-
dordacercafazemoutracercadevarasgrossasecompridas,po-
rémnãoascolocammuitopertoumasdasoutras,apenastanto
anãodeixarpassarumhomem.Algunsdelestêmocostumede
espetarempostes,emfrenteàentradadaspalhoças,ascabeças
dosqueforamdevorados.
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capítulo v
Como fazem fogo.
T êm eles um espécie de madeira, chamada vrakueiba, 116
quesecamedaqualcortamdoispauzinhosdagrossura
deumdedoqueesfregamumnooutro.Comissoproduz-seum
pó,queocalordafricçãoacende,eassimfazemfogo.
116 Vrakueiba,muitoprovavelmentedotupibracuyba,oumelhor,ybira-acu---yba,quesetraduz“árvoredemadeiraquente”,istoé,quedáfogo.
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capítulo vi
Onde dormem.
D ormememcamasaquechamaminni 117nasualíngua,
as quais são feitas de fios de algodão. Amarram-nas
emdoisesteios,acimadochão,eaoladoconservamfogoaceso
duranteanoite.Nãogostamtambémdesairdascabanasànoite
parasatisfazerassuasnecessidades,pormedododiabo,aquecha-
mamingange , 118eaoqualveemmuitasvezes.
117 Inniéaredededormir,amaca.118 Ingangeédotupiinhang,ouanhanga,queoutrosescrevem“anham”,esigni-
ficapropriamente“ogênioouespíritovagabundo,osererrante”.
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capítulo vii
Como são destros em caçar animais e peixes com flechas.
P orondeandam,quernamataquernaágua,levamsempre
consigo o seu arco e as suas flechas. Andando na mata,
caminhamdecabeçaerguida,aexaminarasárvoresparadesco-
briremalgumpássarogrande,macacoououtroanimalquevive
sobreasárvores,paraomatar,eoperseguematéqueomatam.
Raras vezes acontece ir alguém à caça e voltar sem trazer coisa
alguma.
Domesmomodoperseguemospeixesàbeira-maretêmuma
vistamuitopenetrante.Malapareceumpeixe,atiram,epoucos
tiros erram. Se acaso ferem algum, atiram-se na água e nadam
atrásdele.Certospeixesgrandesquandoferidosvãoparaofundo,
maselesseguematrás,mergulhamaté6braçaseoscolhem.
Usam também de pequenas redes, feitas de fibras, que tiram
de umas folhas agudas e compridas tochaun (tocum); e quando
querempescarcomredes,reúnem-sealgunsecadaqualocupao
seulugarnaágua.Quandoestanãoéfunda,entramunspoucos,
formando círculo, e batem na água para o peixe afundar e cair
entãonarede. 119Quemmaisapanhadividecomosoutros.
Muitas vezes vêm à pescaria aqueles que moram longe do
mar.Apanhammuitopeixe,secam-noaofogoeomoemnum
119 Esse modo de pescar do gentio ainda hoje é usado pela população dointerior.
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pilão,fazendoumafarinha,queseconservapormuitotempo.
Levam-naconsigoeacomemcomfarinhaderaiz,poisquese
levassem o peixe apenas frito não durava nada, por não o sal-
garem;ademaisafarinhadáparamaiorporçãodegentedoque
umpeixeinteiroassado.
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capítulo viii
Que feição apresenta esta gente.
É umagentebonitadecorpoedefeição,tantooshomens
como as mulheres, iguais à gente daqui; somente são
queimadosdosol,poisandamtodosnus,moçosevelhos,enada
têmqueencubraaspartesvergonhosas.Desfeiam-seasimesmos
com pinturas e não têm barbas, porque as arrancam pela raiz,
logoquelhesnascem.Fazemfurosnabocaenasorelhaseneles
introduzempedras,quesãoseusornamentos,eseenfeitamcom
penas.
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capítulo ix
Com que eles cortam, visto não poderem adquirir ferramentas cristãs, como machados, facas e tesouras.
T inhamantigamente,antesdecáviremnavios,eaindaa
têmemmuitoslugaresdopaís,ondenavioalgumche-
gou, uma espécie de pedra preto-azulada, a que davam a forma
deumacunha,cujapartemaislargaémalcortante,commaisou
menos um palmo de comprimento, dois dedos de grossura e a
larguradeumamão.Umassãomaiores,outrasmenores.Tomam
depoisumpaufinoquevergamaoredordapedraeamarramcom
fibrasdeembira.
Servem-setambémdedentesdeporco-do-mato,queamolam
atéficaremcortantes,eosamarramdepoisentredoispauzinhos.
Comistoraspamsuasflechasearcosatéquefiquemtãoroliços
comoseforamtorneados.
Empregam também o dente de um animal chamado paca;
aguçam-lhe a ponta e, se sentem alguma doença no corpo que
provémdosangue,arranhamaparteatésair;eesteéoseumodo
desangrar.
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capítulo x
Qual é o seu pão. Como se chamam os seus frutos, como eles plantam e como os preparam para comer.
N os lugares onde querem plantar, cortam primeiro as
árvoresedeixam-nassecardeumatrêsmeses.Deitam-
-lhesfogo,edepoisqueimam-naseentãoéqueplantamentreos
troncos as raízes de que precisam, a que chamam mandioca. É
arbustodeumabraçadealtura,quedáumastrêsraízes.Quando
asqueremcomer,arrancamopé,quebram-lheasraízesedepoisos
galhos.Aestescolocam-nosoutraveznaterra,ondecriamraízes
denovo,ecomseismesescrescemtantoquedãojáoquecomer.
Araizpreparam-nadetrêsmodos.
Primeiroralamasraízesnumapedra,atéquefiquememgrãos
miúdos;tiram-lhedepoisosucocomumaparelhofeitodafolha-
gemdapalmeira,aoqualchamam tippiti,queelesesticam;pas-
samdepoistudonumapeneiraefazemdafarinhaunsbolinhos
achatados.
Avasilhaemquesecametorramafarinhaédebarrocozido
e tem a forma de uma grande bacia chata. Também tomam as
raízesfrescaseasdeitamn’água,atéapodrecerem,queéquando
entãoasretiram,epõem-nasaofumeiro,ondesecam.Aessasraí-
zessecaschamamkeinrima 120econservam-sepormuitotempo,e
quandoprecisamdelassecam-nasemumpilãodemadeira,onde
120 Keinrimaédotupicarimã,aindahojeconhecidoeempregadopelovulgoparadesignaramassadamandiocapuba.
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ficamalvascomoafarinhadetrigo.Dissofazemelesbolinhosa
quechamambyyw. 121
Também tomam a mandioca apodrecida, antes de seca, e a
misturamcomasecaecomafresca,comoquepreparametor-
ramumafarinhaquepodeconservar-seumano,sempreboapara
comer.Essafarinhachama-naV. y than. 122
Fazemfarinhatambémdepeixeedecarne.Assamacarneou
opeixeaofogo,ouaofumo,edeixamficarbemduro;rasgam-no
comamãoempequeninospedaços,põem-nomaisumavezao
fogo,emumavasilhadebarrocozidoaquechamamineppaun. 123
Depoissocam-noempilãodemadeiraatéficarreduzidoafarinha,
e passam em uma peneira. Essa farinha conserva-se por muito
tempo.Nãotêmocostumedesalgaropeixeouacarne.Comem
entãoatalfarinhacomaderaízes,etemgostobemregular.
121 Byywédotupimbeyú,quevaledizeroenroscado,enrolado.Hojevulgar-mente,beiju.
122 V. y than,diga-seuytã,quesignificafarinhadura.123 Ineppaunédotupinhaen-puna,ouyapuna,quesignificaforno,aindausado
paracozerafarinhademandioca.
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capítulo xi
Como cozinham a comida.
H ámuitasraçasdepovosquenãocomemsal.Aqueles
entreosquaisestiveprisioneirocomem,àsvezes,sal
porqueviramusardeleosfranceses,comosquaisnegociam.Mas
contaram-medeumanação,cujaterraselimitacomadeles,na-
çãoKaraya,moradoranointerior, longedomar,quefazsaldas
palmeiraseocome,sendoqueosqueseservemmuitodelenão
vivem muito tempo. Preparam-no da seguinte maneira, que eu
vi e ajudei a preparar: derrubam um grosso tronco de palmeira
eracham-noempequenasachas;fazemdepoisumaarmaçãode
madeira seca e lhe põem as achas em cima, queimando-as jun-
tamentecomamadeira secaatéficaremreduzidasacinza.Das
cinzas fazem então decoada, que fervem, e assim obtêm o sal.
Eujulgavaqueerasalitreeoexperimenteiaofogo;masnãoera.
Tinhagostodesaleeradecorparda.Amaiorpartedagentepo-
rém,nãocomesal.
Quandocozinhamalgumacoisa,sejapeixeoucarne,põem-
-lheemgeralpimentaverde,e,quandoestámaisoumenosbem
cozida,tiram-nadocaldoeareduzemaumasoparalaaquecha-
mammingauequebebememcascasdepurungas, 124queservem
devasilhas.Equandoqueremguardaralgumacomidapormais
tempo, carne ou peixe, penduram-na uns quatro palmos acima
124 Sãoasnossascuias,feitasdoscascosdascabeçasoucuités.
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dofogo,emvaras,efazembastantefogobaixo,Deixam-naentão
secareenfumaçar,atéficarbemseca.Quandoqueremcomê-las,
aferventam-na outra vez e se servem. A carne assim preparada
chamam-namockaein. 125
125 Mockaein,dotupimbocaen,quequerdizertostar, secar ao fogo.Chamavamosselvagensmocaenaoaparelhofeitodevarasqueserviadegrelha.Acarneassadanomocaentomava-lheassimonome.Hojeévulgaronomemoquémcomomesmosentido.
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capítulo xii
Que regime e ordem seguem em relação às autoridades e à justiça.
N ãotêmregimeespecial,nemjustiça.Cadacabanatem
umchefe,queéoseuprincipal.Todososseuschefes
sãodeumamesmaraça,commandoeregime,epodemfazertudo
oquequiser.Podeporventuraumdelestersedistinguidomaisna
guerradoqueooutro;esseentãoésempremaisouvido,quandose
tratadenovasguerras,comoojáreferidoKonyanBébe.Nomais,
nãovidireitoalgumespecialentreeles,senãoqueosmaismoços
prestamobediênciaaosmaisvelhos,comoédosseuscostumes.
Quandoalguémmataoufereaoutrem,osamigosdestesedis-
põemlogoamatar,porsuavez,oofensor,oque,porém,rarasve-
zesacontece.Prestamobediênciatambémaoschefesdascabanas,
e o que estes mandarem fazer executam sem constrangimento
nemmedo,esomenteporboavontade.
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capítulo xiii
Como se fabricam os potes e as vasilhas que usam.
A s mulheres é que fazem as vasilhas de que precisam.
Tiramobarroeoamassam;delefazemtodasasvasi-
lhas que querem, deixam-nas secar por algum tempo, e sabem
pintá-lasbem.Quandoqueremqueimá-las,emborcam-nassobre
pedraseamontoamaoredorgrandeporçãodecascasdeárvores,
queacendem,e,comisso,ficamqueimadas,poisquesetornam
embrasas,comoferroquente.
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capítulo xiv
Como fabricam as bebidas com que se embriagam e como celebram essas bebedeiras.
A s mulheres é que fazem também as bebidas. Tomam
asraízesdamandioca,quedeitamaferveremgrandes
potes,e,quandobemfervidas,tiram-nasepassamparaoutrasva-
silhasoupotes,ondedeixamesfriarumpouco.Entãoasmoças
assentam-seaopéamastigarasraízes,eoqueficamastigadoé
postonumavasilhaàparte.
Umavezmastigadastodasessasraízesfervidas,tornamapôra
massamascadanospotes,queentãoenchemd’água,emisturam
muitobem,deixandotudoferverdenovo.
Háentãoumasvasilhasespeciais,queestãoenterradasatéo
meioequeelesempregam,comonós,ostonéisparaovinhoou
a cerveja. Aí despejam tudo e tampam bem; começa a bebida a
fermentaretorna-seforte.Assimficadurantedoisdias,depoisdo
quebebemeficambêbedos.Édensaedevesernutritiva.
Cadacabanafazsuaprópriabebida.Equandoumaaldeiain-
teiraquerfazerfestas,oquedeordinárioaconteceumavezpor
mês, reúnem-setodosprimeiroemumacabana,eaíbebematé
acabarcomabebidatoda;passamdepoisparaoutracabana,eas-
simpordianteatéquetenhambebidotudoemtodaselas.
Quandobebemassentam-seaoredordospotes,algunssobre
achasdelenhaeoutrosnochão.Asmulheresdão-lhesabebida
por ordem. Alguns ficam de pé, cantam e dançam ao redor dos
potes.Enolugarondeestãobebendo,vertemtambémasuaágua.
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Obeberduraanoiteinteira;àsvezes,tambémdançamporen-
trefogueirase,quandoficambêbedos,gritam,tocamtrombetase
fazemumbarulhoformidável.Raroficamzangadosunscomos
outros.Sãotambémmuitoliberais,eoquelhessobraemcomida
repartemcomoutros.
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capítulo xv
Qual o enfeite dos homens, como se pintam e quais são os seus nomes.
R apamumapartedacabeçaedeixamaoredorumacoroa
decabelos,comoosfrades.Muitasvezeslhesperguntei
ondetinhamaprendidoessamodadecabeleira.Responderam-me
queseusantepassadosatinhamvistonumhomemquesechama-
raMeire Humane, 126equetinhafeitomuitosmilagresentreeles;e
entendiamquetivessesidoumprofetaouapóstolo.
Perguntei-lhes mais com que cortavam os cabelos antes dos
navios lhes trazerem tesouras. Respondiam que para isso toma-
vam uma cunha de pedra, e pondo uma por baixo dos cabelos
batiamatécortá-los.Acoroanomeiodacabeçafaziam-nacom
umaraspadeira,fabricadadeumapedracristalqueusammuito
paracortar.
Têm mais um ornato de penas vermelhas, a que chamam
kanittare 127equeamarramemrodadacabeça.
Usamtambémtrazernolábioinferiorumgrandeorifícioque
fazemlogonainfância.Furamobeiçocomumpedaçodeossode
veadoaguçadoenoorifíciointroduzemdepoisumapedrinhaou
pedacinhodepaueuntamissocomosseusunguentos;oorifício
126 Meire Humane, muito provavelmente Mair Zumane, nome de misteriosapersonagemqueétradiçãoteraparecidoentreosselvagenselhesserviude legislador e mestre. O gentio do Brasil chamava-o Sumé ou Zumé. NoParaguai,Pay Zomé.
127 Kanitareédotupiacanitara,ouacangatara,quequerdizerornatodacabeça.
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continua aberto. Quando ficam homens e aptos para as armas,
fazemesseorifíciomaioreenfiamneleumapedraverde,quetem
estaforma:apontasuperioremaisfinaficaparadentrodoslábios
eagrossaparafora,deixandoolábiosemprependidopelopeso
dapedra.Nasfacestêmelesainda,decadaladodaboca,umape-
quenapedra.
Alguns têm-nas de pedra de cristal, estreitas sim, mas com-
pridas. Usam ainda um enfeite que fazem de grandes búzios
marinhos,equechamammatte pue , 128daformadeumameia-lua.
Penduram-no ao pescoço, é branco, como a neve, e o chamam
bogessy . 129
Fazem também colares brancos, de caracóis marinhos, que
trazemnopescoço,daespessuradeumapalmaequedãomuito
trabalhoparasefazer.
Amarram também feixes de penas nos braços; pintam-se de
pretoetambémcompenasvermelhasebrancasmisturadassem
ordem, estas, porém, grudadas no corpo com substâncias que
tiram das árvores e que passam nas partes onde querem pôr as
penas, aplicando então estas de modo a ficar aderentes. Pintam
também um braço de preto e outro de vermelho, e do mesmo
modoaspernaseocorpo.
Usam eles mais um enfeite de penas de avestruz, enfeite
grandeeredondo,queamarramnapartedetrás,quandovãoà
guerracontraosseusinimigos,oufazemalgumafesta.Chama-se
enduap.
128 Matte pue, do tupi uatapú, nome com que o gentio designava um búziograndeedegrandeboca,quefuradopelofundodavaparasetangercomeleequesoavamuitomaisdoqueumabuzina.Dacascadessebúziofabricavaoselvagemumornatoemformademeia-lua.
129 Bogessy éprovavelmente do tupimbojacy,quequerdizer feito lua,ouàimagemdalua.
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Tiramseusnomesdeanimaisferozesetomammuitosnomes,
mascomcertasparticularidades.Logoquenascemdá-se-lhesum
nome. Conservam-no somente até ficarem aptos para manejar
armasematarinimigos.Aquantosdepoismatam,outrostantos
nomestomam.
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capítulo xvi
Quais são os enfeites das mulheres.
A smulherespintam-seporbaixodosolhoseportodoo
corpo,domesmomodocomodissemosqueoshomens
o fazem. Deixam, porém, crescer os cabelos, como todas elas, e
nãotêmenfeitesespeciais.Abremorifíciosnasorelhas,nosquais
penduram uns objetos do comprimento de um palmo, mais ou
menos,roliçosedagrossuradeumdedopolegar,aquechamam
nasualínguanambibeya.Fazem-nostambémdeconchasdomar,
aquechamammatte pue.
Seusnomessãodepássaros,peixesefrutasdasárvores,etêm
umsónomedesdecrianças;porémquantosescravososseusma-
ridosmatamtantosnomesdãoelesassuasmulheres.
Ao catarem os piolhos uma da outra, vão comendo-os.
Perguntei-lhesmuitasvezesporqueassimfaziam,emerespon-
deram:“Sãonossosinimigosquenoscomemacabeça,eporisso
nosvingamosdeles.”
Tambémnãoháparteiras;quandoumamulherestáparadarà
luz,oprimeiroqueestiverperto,homemoumulher,aacodelogo.
Vialgumasqueselevantavam,comumente,noquartodiadepois
doparto.
Carregam os seus filhos às costas envolvidos em panos de
algodão,eassimcomeles trabalham.Ascriançasaídormeme
andamcontentes,pormaisqueelasseabaixemousemovam.
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capítulo xvii
Como dão o primeiro nome às crianças.
A mulherdeumselvagem,dosqueajudaramamecap-
turar, tinha dado à luz um filho. Alguns dias depois,
convidouomaridoosseusvizinhosdascabanaspróximasecom
elesconferenciouarespeitodonomequehaviadedaràcriança,
paraqueestafossevalenteetemível.Deram-lhesmuitosnomes,
quenãolhesagradaram.Deliberouentãodar-lheonomedeum
de seus quatro antepassados, e disse que crianças que têm três
nomesvingambemeficamdestrasemfazerprisioneiros.Osseus
quatro antepassados se chamam: o primeiro, Krimen; o segun-
do, Hermittan; o terceiro Koem; 130 o quarto nome não retive na
memória.Penseiouvi-lofalardeKoem,quepodiaserCham;mas
Koemquerdizernalínguadelesamanhã.
Disse-lhe que desse esse nome à criança, porque tinha sido
odeumdosseusantepassados.Acriançaficoucomumdesses
nomes.Éassimquedãonomesaosseusfilhos,sembatismo,nem
circuncisão.
130 Krimen,Hermittan,Koemsãotrêsnomesdeprocedênciatupi,masaltera-dos.ÉpossívelqueseidentifiquemrespectivamentecomKirimá,Eiramitã,Coema, que se traduzem na mesma ordem: Corajoso, Abelha-menina,Manhã.
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capítulo xviii
Quantas mulheres cada um tem, e como vive com elas.
A maior parte deles tem uma só mulher; outros têm
mais.Masalgunsdosseusprincipaistêm13ou14mu-
lheres.Oprincipalaquemmederamdaúltimavez,edequemos
francesesmecompraram,chamadoAbbatiBossange,tinhamui-
tasmulheres,eaque foraaprimeiraeraasuperioraentreelas.
Cadaumatinhaoseuaposentonacabana,seuprópriofogoesua
própria plantação de raízes; e aquela com quem ele vivia, e em
cujoaposentoficava,équelheserviaocomer,eassimpassavade
umaparaoutra.Ascriançasquelhesnascem,enquantomeninos
epequenos,educam-nasparaacaça;eoqueosmeninostrazem,
cadaqualdáasuamãe.Elasentãocozinhamepartilhamcomos
outros;easmulheressedãobementresi.
Tambémtêmocostumedefazerpresentesdesuasmulheres
quandoaborrecidosdelas.Fazemdomesmomodopresentesde
umafilhaouirmã.
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capítulo xix
Como eles contratam os casamentos.
C ontratamoscasamentosdesuasfilhas,aindacrianças,
elogoqueelassefazemmulherescortam-lhesocabelo
dacabeça;riscam-lhesnascostasmarcasespeciaiselhespendu-
ramaopescoçounsdentesdeanimaisferozes.Umavezcrescido
ocabelodenovo,asincisõescicatrizam-se,deixandoveraindao
sinaldessesriscos,poisquemisturamcertastintascomosangue,
paraficarpretoquandosaram,coisaqueétidacomoumahonra.
Quando terminadas essas cerimônias, entregam as filhas a
quemasdevepossuirenãocelebramnenhumaoutracerimônia
especial. Homem e mulher procedem decentemente e fazem
osseusajuntamentosàsocultas.Conseguiverqueumdosseus
chefesemcertaocasião,cedopelamanhã,aovisitartodasassuas
cabanas,riscavaaspernasdascriançascomumdenteafiadode
peixe;issosóparalhesfazermedo,demodoque,quandochora-
vamcommanha,ospaisasameaçavam:“Aívemele!”,eelasse
calavam.
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capítulo xx
Quais são as suas riquezas.
N ão há divisão de bens entre eles. Nada sabem de di-
nheiro. Suas riquezas são penas de pássaros; e quem
temmuitaséqueérico.Quemtrazpedrasnoslábios,entreeles,é
umdosmaisricos.
Cadacasal,homememulher,temsuaplantaçãoderaízes,das
quaissealimentam.
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capítulo xxi
Qual é a sua maior honra.
A sua maior honra é prender e matar muitos inimigos.
Costumeentreeleséque,quantosinimigoscadaqual
tivermorto,tantosnomespodetomar.
Eomaisnobreentreeleséaquelequecontamaisnomesdessa
espécie.
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capítulo xxii
Em que creem.
T êm a sua crença em um fruto que cresce como uma
abóboraedetamanhodeummeiopote.Oco,comoé,
atravessam-lheumpau.Fazem-lhedepoisumorifícioàguisade
boquinhaelhedeitamumaspedrinhasdentro,paraquechoca-
lhe.Comissotangemquandocantamedançam,elhechamam
tammaraka,cujaformaécomosegue:
Esseinstrumentoésódoshomens,ecadaumtemoseu.Há
entre eles alguns indivíduos a que chamam paygi 131 e que são
tidosporadivinhos.Estespercorremumavezporanoopaístodo,
decabanaemcabana,asseverandoquetêmconsigoumespírito
quevemdelonge,delugaresestranhos,equelhesdeuavirtude
defazerfalartodosostammarakasqueelesqueriameopoderde
alcançartudoquese lhespede.Cadaqualquerentãoqueesse
podervenhaparaoseuchocalho; faz-seumagrande festa,com
bebidas, cantos e adivinhações, e praticam muitas cerimônias
singulares. Depois marcam os adivinhos um dia para uma ca-
bana, que mandam evacuar, e nenhuma mulher nem criança
podeficarládentro.Ordenamemseguidaquecadaumpinteo
seutammarakadevermelho,enfeitandocompenas,eomande
para eles lhes darem o poder de falar. Dirigem-se então para a
131 Paygi,dotupipayêoupagé,queécomoogentiochamavaosseusfeiticeirosouadivinhos.
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cabana. O adivinho toma assento, em lugar elevado, e tem jun-
to de si o tammaraka fincado no chão. Os outros então fincam
osseus.Dácadaqualosseuspresentesaoadivinho,comosejam
flechas,penasependuricalhosparaasorelhas,afimdequeoseu
tammarakanãofiqueesquecido.Umaveztodosreunidos,tomao
adivinhocadatammaraka,depersi,eodefumacomumaerva,a
quechamaBittin. 132Levadepoisotammarakaàboca;chocalha-o
elhediz:“Nee kora (nheen coire),falaagoraedeixa-teouvir;estás
aí dentro?” Depois diz baixo e muito junto uma palavra, que é
difícildesesaberseédochocalhoouseédele,etodosacreditam
queédochocalho.Naverdade,porém,édopróprioadivinho,e
assimfazelecomtodososchocalhos,umapósooutro.Cadaqual
pensaentãoqueoseuchocalhotemgrandepoder.Osadivinhos
exortam-nosdepoisaquevãoparaaguerraeapanheminimigos,
porqueosespíritosqueestãonostammarakastêmganadecomer
carnedeprisioneiros;ecomisso,sedecidemiràguerra.
Mal o adivinho paygi tem transformado em ídolos todos os
chocalhos,tomacadaqualoseu;chama-oseuqueridofilhoelhe
levantaumapequenacabana,naqualdeveficar.Dá-lhecomidae
lhepedetudoodequeprecisa,talcomonósfazemoscomover-
dadeiroDeus.Sãoessesosseusdeuses.
ComoDeusverdadeiro,quecriouocéueaterra,elesnãose
importam e acham que é uma coisa muito natural que o céu e
aterraexistam.Tambémnadasabemdeespecialdocomeçodo
mundo.
Dizemquehouve,umavez,umagrandeenchenteemquese
afogaramtodososseusantepassadosequealgunssesalvaramem
umacanoa,outrosemárvoresaltas,oqueeupensodevetersido
odilúvio.
132 Bittinédotupipetym,quequerdizertabaco,fumo.
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Quandomeacheipelaprimeiravezentreelesemecontaram
essas coisas, pensei que se tratava talvez de algum fantasma do
diabo, pois que me contaram diversas vezes como esses ídolos
falavam.Penetrandonascabanas,ondeestavamosadivinhosque
deviam fazê-los falar, notei que todos se assentavam. Mas, logo
queviaesperteza,saídacabanaedissecomigo:“Quepobrepovo
iludido!”
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capítulo xxiii
Como eles tornam as mulheres adivinhas.
E ntramprimeiroemumacabanaepegamtodasasmulhe-
res,umaapósaoutra,easdefumam.Depois, temcada
umadegritar,pularecorreremroda,atéquefiquetãocansada
quecaianochão,comodesfalecida.Oadivinhodizentão:“Vejam,
agoraestámorta;maseuquerofazê-laviverdenovo.”Logoque
elavoltaasi,dizele:“Agoraestáaptaparafalardofuturo.”Assim,
quandopartemparaaguerra,obrigamessasmulheresaadivinhar
oquehádeacontecernaluta.
Umavezamulherdemeusenhor(aqueleaquemeutinhasido
entregueparamematar)começoudenoiteavaticinaredisseao
maridoqueumespíritodeterraestranhasetinhadirigidoaelae
lheperguntaraquandoeraqueeudeviasermortoeondeestava
opaucomquemedeviammatar.Elerespondeu:“Nãodemorará,
tudo está pronto; porém desconfio de que não é ele português,
masfrancês.”
Quandoamulheracabouasuaadivinhação,perguntei-lhepor
quedesejavatantoaminhamorte,vistoqueeunãoerainimigo,
eseelanãotemiaqueomeuDeuslhemandassealgumcastigo.
“Eunãodevia incomodar-mecomisso”,disseela, “maseramos
espíritosestranhosquequeriamsaber.”Taiscerimôniascelebram
elesmuitas.
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capítulo xxiv
Como navegam nas águas.
N opaísháumaespéciedeárvoresaquechamamyga
ywera, 133cujacasacaosselvagensdestacamdecimaa
baixo,fazendoumaarmaçãoespecialaoredordaárvoreparatirá-
-lainteira.
Depois,tomamacascaeatransportamdaserraatéomar;aque-
cem-naaofogo,dobram-napordianteepordetráselheamarram
doispausatravessadosnocentroparaquenãoseachate,efazem
assimumacanoa,naqualcabem30pessoas,parairemàguerra.
Acascatemagrossuradeumdedopolegar,maisoumenos4pés
delargurae40decomprimento;algumasmaiscompridaseou-
trasmaiscurtas.Nelasremamapressadosenavegamlongetanto
quantoquerem.Quandoomarestábravo,puxamascanoaspara
aterraatéotempoficarbom.Nãovãomaisdeduasmilhasmar
afora;mas,aolongedaterra,navegammuitolonge.
133 Yga Ywera,dotupiygá-ybyrá,quequerdizerpauoumadeiradecanoa.
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capítulo xxv
Por que um inimigo devora o outro.
N ãoofazemporfome,masporgrandeódioeinveja;e
quandonaguerracombatem,gritamumparaooutro
porgrandeódio:“Dete immeraya schermiuramme beiwoe”, 134“atisu-
cedamtodasasdesgraças,minhacomida”.“De Kange Juca cypota
kurine”, 135 “euqueroaindahojecortaratuacabeça”.“Sche innam
me pepicke keseagu”, 136“paravingaramortedemeusamigos,estou
aqui”. “Yande soo sche mocken sera quera ossarime rire”, 137 etc., “tua
carne será hoje antes que o sol entre, o meu assado”. Tudo isso
fazemporgrandeamizade.
134 Dete immeraya schermiurama beiwoe,frasequeserestaurapelaformaseguin-te:“ndê t’mbaerabva che remiú-rama mae amboe,quesetraduzliteralmente:“atisuceda,oh!comidaminha,coisamá!”Apóstrofecomqueseameaçadefazerdoinimigoasuacomida,isto,édedevorá-lo.
135 De kange yuca cypota kurine,quevaledizer:ndê canga jucá c’ypotá curinê,quesetraduz:“tuacabeçacortarquerojá!”
136 Sche innan me pepicke keseagu,quevaledizernotupi:che y wama pepike ki chaikú,–esetraduzaopédaletra:“osmeusparentesvingaraquiestoueu”.
137 Yande soo sche mocken sera quera ossarime rire,quevaledizernotupi:Rendê, coó che mocaen será coaracy eyma rirê,esetraduz:“tuacarnemoquearei,de-certodepoisdosolposto”.
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capítulo xxvi
Como fazem seus planos quando querem ir à terra de seus inimigos para os guerrear.
Q uandosedispõemalevaraguerraàterradeseusini-
migos, os chefes se reúnem e conferenciam como o
devemfazer.Issocomunicamatodasascabanasparaquesepre-
parem,edãoonomedeumafrutacujoamadurecimentomarcará
otempodapartida,poisquenãoconhecemadiferençadoanoe
dodia.Tambémdeterminamotempodapartidapelotempoda
desova de um peixe a que chamam prati , 138 na língua deles, e o
tempodadesovachamampirakaen . 139Paraessaépocaaprontam
assuascanoas,suasflechasefarinhaduraderaízes,quechamam
vythan (uytã), para mantimento. Depois consultam os pagy, os
adivinhos,sealcançarãovitória.Estes,emgeral,dizemquesim,
maslhesordenamquetomemsentidonossonhosquetêmares-
peitodosinimigos,equandoamaiorpartedelessonhaqueveem
assaracarnedosinimigos,querissodizerqueterãovitória.Mas
seveemassarasuaprópriacarne,nãoédebompresságioedevem
ficar em casa. Quando os seus sonhos lhes agradam, aprestam-
-se em todas as cabanas; fazem muita bebida, bebem e dançam
comosídolostammaraka,ecadaumpedeaoseuqueoajudea
138 Pratiéomesmobratticomooescreveuonarradoranteriormente,nomedopeixeaqueogentiochamavaparaty,istoé,atainha.
139 Pirakaenéotupipirá caen,quesignificapeixeseco.Comoaépocadadesovaeratambémotempodapescariaedasecadopeixe,onarradorusaotermopirá caennosdoissentidos.
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apanharuminimigo.Depoispartem.Aochegarpertodaterrados
seusinimigos,ordenamoschefes,umdiaantesdaqueleemque
vão invadir a terra daqueles, que reparem bem nos sonhos que
tiveremduranteanoite.
Tomeipartecomelesnumaexpediçãopertodaterradosseus
contrários,e,nanoiteanterioràquelaemqueapretendiaminva-
dir,ochefepercorreuoacampamentotodoadizerqueatentas-
sembemnossonhosquetivessemeordenoumaisqueosmoços,
logoqueraiasseodia,fossemcaçarepescar.Issofeito,mandouo
chefepreparartudo.Depoisconvidouosoutroschefesaquevies-
semparaacabanadele.Assentaram-setodosnochãoefizeram
roda.Mandou-lheserviracomida.Acabadaesta,contavam-lheos
sonhos,massomenteosquelhesagradaram;depoisdançaramde
alegriacomostammarakas.
Fazemoreconhecimentodasaldeiasdosseusinimigosduran-
teanoitee,aoraiardodia,investem.
Se apanham algum que esteja gravemente ferido, matam-no
logoelevam-lheacarnedepoisdeassadaparacasa;masseestá
sãooprisioneiro,levam-novivo.Depoismatam-nonacabana.
Atacamcomgrandevozeria;pisamduronochão;tocamtrom-
betas feitas de cabaças, e levam todos cordas enleadas ao redor
docorpo,paraamarrarosinimigos;pintam-seeenfeitam-secom
penasvermelhas,paranãoseconfundiremcomosoutros,eati-
ramcompresteza.Arremessamtambémflechasacesassobreas
cabanasdeseusinimigosparaincendiá-las.Equandoalgumdos
delesrecebeumferimento,aplicam-lheervasprópriascomque
secura.
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capítulo xxvii
Qual é o seu armamento para a guerra.
T êmelesosseusarcos,easpontasdasflechassãodeossos
queaguçameamarram;tambémfazem-nasdedentesde
peixe a que chamam tiberaum 140 e que apanham no mar. Usam
tambémalgodão,quemisturamcomcera,amarramnasflechase
acendem;sãoestasassuasflechasdefogo.Fazemtambémescudo
decascadeárvoresedecourosdeanimaisferozes.Enterramtam-
bémespinhos,comoaquiasarmadilhasdetesoura.
Ouvitambémdeles,masnãovi,que,quandoquerem,expul-
sam os seus inimigos das cabanas fortificadas, como emprega-
rem a pimenta que cresce no país, desta forma: fazem grandes
fogueirase,quandooventosopra,põem-lhegrandeporçãodepi-
menta,cujafumaça,atingindoaschamas,osobrigaafugir;eeu
ocreio.Estavaumavezcomosportuguesesnumalocalidadeda
terradeBrannenbucke(Pernambuco)chamada,aquejámereferi,
eaíaconteceu-nosdeficarnumriocomobarcoemseco,porque
amarébaixara.Vierammuitosselvagensparanosatacar;mas,
comonãoopuderam,amontoaramentãomuitalenhaegalhos
secos,entreonavioeamargem,paranosobrigarasair,porefeito
dafumaçadapimenta;masnãolograrampegarfogonalenha.
140 Tiberaun,doportuguêstubarão,alterado;éopeixeaquechamamnotupiyperú.
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capítulo xxviii
Com que cerimônia matam e comem seus inimigos. Como os matam e como os tratam.
Q uandotrazemparacasaosseusinimigos,asmulheres
eascriançasosesbofeteiam.Enfeitam-nosdepoiscom
penaspardas;cortam-lhesassobrancelhas;dançamemrodade-
les,amarrando-osbem,paraquenãofujam.
Dão-lhesumamulherparaosguardaretambémterrelações
com eles. Se ela concebe, educam a criança até ficar grande; e
depois, quando melhor lhes parece, matam-na a esta e a devo-
ram.Fornecemaosprisioneirosboacomida;tratamassimdeles
algumtempo,eaocomeçaremospreparativosfabricammuitos
potesespeciais,nosquaispõemtodoonecessárioparapintá-los;
ajuntamfeixesdepenasqueamarramnobastãocomqueoshão
dematar.
Trançam também uma corda comprida a que chamam mes-
surana (mussurana)comaqualosamarramnahorademorrer.
Terminados todos os preparativos, marcam o dia do sacrifício.
Convidamentãoosselvagensdeoutrasaldeiasparaaísereuni-
rem naquela época. Enchem todas as vasilhas de bebidas e, um
ou dois dias antes que as mulheres tenham feito essas bebidas,
conduzemoprisioneiroumaouduasvezespelapraçaedançam
aoredordele.
Reunidos todos os convidados, o chefe da cabana lhes dá as
boas-vindaselhesdiz:“Vindeajudaragoraacomerovossoini-
migo.”Diasantesdecomeçarabeber,amarramamussuranaao
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pescoçodoprisioneiro.Nomesmodia,pintameenfeitamobas-
tãochamadoiwera pemme,comqueomatam.
Temestemaisdeumabraçadecomprimento,eountamcom
umasubstânciaquegruda.Tomamentãocascaspardasdeovos
de um pássaro chamado mackukawa e moem-nas até reduzi-las
apó, que esfregam no bastão. Uma mulher então risca figuras
nessepóaderenteaobastão,e,enquantoeladesenha,asmulhe-
res todascantamaoredor.Umavezprontoo iwera pemmecom
osenfeitesdepenaseoutraspreparações,penduram-noemuma
cabanadesocupadaecantamaoredordeletodaanoite.
Do mesmo modo pintam a cara do prisioneiro, e, enquanto
umadasmulheresoestápintando,asoutrascantam.Elogoque
começamabeberlevamoprisioneiroparalá,bebemcomelee
comeleseentretêm.
Acabandodebeber,descansamnodiaseguinte;fazemdepois
umacasinhaparaoprisioneiro,no lugarondeeledevemorrer.
Alificaeleduranteanoite,bemguardado.
Demanhã,antesdeclarearodia,vãodançarecantaraoredor
dobastãocomqueodevemmatar.Tiramentãooprisioneiroda
casinhaeadesmancham,paraabrirespaço;amarramamussura-
naaopescoçoeemredordocorpodopaciente,esticando-apara
os dois lados. Fica ele então no meio, amarrado, e muitos deles
a segurar a corda pelas duas pontas. Deixam-no assim ficar por
algum tempo; dão-lhe pedrinhas para ele arremessar sobre as
mulheresqueandamemredorameaçandodevorá-lo.Entãoelas
estãopintadaseprontaspara,quandooprisioneiroestiverredu-
zidoapostas,comeremosquatroprimeirospedaçosaoredordas
cabanas. Nisso consiste o seu divertimento. Isso pronto, fazem
umfogoacercadedoispassosdoprisioneiroparaqueesteoveja.
Depoisvemumamulhercorrendocomoiwera pemme,viraos
feixesdepenasparacima;gritadealegriaepassapeloprisioneiro,
paraqueesteoveja.
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Feito isso,umhomemtomadaclava;dirige-separaoprisio-
neiro;paranasuafrenteelhemostraocaceteparaqueeleoveja.
Enquantoisso,aquelequedevemataroprisioneirovaicomuns
14ou15dosseusepintaoprópriocorpodepardo,comcinzas.
Voltaentãocomosseuscompanheirosparaolugarondeestáo
prisioneiro,eaquelequetinhaficadoemfrentedestelheentrega
amoça.Surgeagoraoprincipaldascabanas;tomaaclavaeaenfia
porentreaspernasdaquelequedevedesfecharogolpemortal.
Issoéporelesconsideradoumagrandehonra.Denovoaquele
quedevemataroprisioneiropeganaclavaediz:“Sim,aquiestou,
quero matar-te, porque os teus também mataram a muitos dos
meusamigoseosdevoraram.”Responde-lheooutro:“Depoisde
morto, tenho ainda muitos amigos que decerto me hão de vin-
gar.”Entãodesfecha-lheomatadorumgolpenanuca,osmiolos
saltam,elogoasmulherestomamocorpo,puxando-oparaofogo;
esfolam-noatéficarbemalvoelheenfiamumpauzinhoportrás,
paraquenadalhesescape.
Uma vez esfolado, um homem o toma e lhe corta as pernas,
acimadosjoelhos,etambémosbraços.Vêmentãoasmulheres;
pegamnosquatropedaçosecorremaoredordascabanas,fazen-
doumgrandevozerio.
Depoisabrem-lheascostas,queseparamdoladodafrente,e
repartem entre si; mas as mulheres guardam os intestinos, fer-
vem-nos,edocaldofazemumasopaquesechamaMingau,que
elaseascriançasbebem.
Comemosintestinosetambémacarnedacabeça;osmiolos,
alínguaeomaisquehouversãoparaascrianças.Tudoacabado,
voltacadaqualparasuacasalevandooseuquinhão.Aqueleque
foiomatadorganhamaisumnome,eoprincipaldascabanas
risca-lheobraçocomodentedeumanimalferoz.Quandosara,
ficaamarca,e issoéahonraque tem.Depois temele,nomes-
mo dia, de ficar em repouso, deitado na sua rede, e lhe dão um
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pequenoarcocomumaflechaparapassarotempoatirandoem
umalvodecera.Issoéfeitoparaqueosbraçosnãofiquemincer-
tos,dosustodetermatado.
Tudoissoeuviepresenciei.
Eles não sabem contar senão até cinco. Se querem contar
mais,mostramosdedosdamãoedopé.Emquerendofalarde
umnúmerogrande,apontamquatrooucincopessoas,indican-
doquantosdedosdamãoedopéelastêm.
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capítulo xxix
Descrição de alguns animais no país.
H ánopaísveadoseporcos-do-mato,deduasqualidades.
Umaespécieécomoadaqui.Asoutrassãopequenas,
comoporcosnovos,esechamamtaygasu, datu ; 141sãodifíceisde
cairnasarmadilhascomasquaisosselvagenscostumamapanhar
caça.Hátambémmacacosdetrêsespécies.Umaespéciechama-se
key 142eéaquevemparacá.
Hámaisumaespécieaquesechamaacka key 143egeralmente
andaemgrandesbandos,saltandonasárvoresefazendogrande
gritarianomato.
Ehámaisumaespécieaquesechamapricki ; 144sãovermelhos,
têmbarbascomoosbodesesãodotamanhodeumcãoregular.
Também há uma espécie de animal a que chama dattu; 145
tem mais ou menos um palmo de altura, e couraça no corpo
todo,excetonabarrigaondenãoatem.Acouraçaécomochifre
141 Taygasu, Datu,dotupitaytibu, tatu,quehojesechamavulgarmentecaitetuetatu.
142 Keyédotupicayoucahy.143 Acka Key,dotupiaca cay,ouaca cahy,quequerdizermacacodealgazarra
oudebando.144 Pricki,dotupiburiki,nomedeumaespéciedemacacovermelho,dondeFrei
GaspardaMadredeDeusfezderivarapalavraBertioga,queparaoautordasMemórias para História da Capitania de São Vicenteéumacorrupteladeburiquioca,refúgiodemacacos.
145 Datú,dotupitatu.
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e fecha com articulações como uma armadura. Tem focinho
longoepontudoecaudacomprida.Gostadeandarporentreas
pedras;asuacomidasãoformigasetemcarnegorda,quemuitas
vezescomi.
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capítulo xxx
Serwoy.
H á também uma espécie de caça a que se chama
serwoy , 146dotamanhodeumgatobranco,depelepar-
da,tambémcinzento,etemrabocomoogato.Quandopare,pare
umouseisfilhosetemumafendanoventredepertodepalmo
emeiodecomprido.Pordentrodafendahámaisumapele,pois
queoventrenãolheéabertoepordentroestãoastetas.Poronde
querquevá,levaconsigoosfilhosdentrodosaco,entreasduas
peles.Muitasvezes,ajudeiaapanhá-laelhetireiosfilhosdabolsa.
146 Serwoy,dotupiseriguê,ouçoó-r-iguá,quequerdizeranimaldesaco,oudo-tadodebolso.Emoutroslugaresdiz-sesarué,seruê.
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capítulo xxxi
Há também muitos tigres no país, que matam gente e causam muitos prejuízos.
H á também uma espécie de leão, a que chamam
Leopardo , 147istoé,LeãoPardo,eoutrosmuitosanimais
singulares.
Háumanimalchamadocaziuare , 148queviveemterraetam-
bém na água. Alimenta-se da tabua que se encontra nas águas
doces.Quandoseamedronta,fogeparaofundod’água.Sãomaio-
resdoqueumcordeiro,etêmacabeçaparecidacomadelebre,
porémmaior,easorelhascurtas.Acaudaépequena,easpernas
sãoumpoucoaltas.Corremmuitoemterra,deumaáguapara
outra.Têmopelopardoescuro,têmtrêsunhasemcadapé,ea
carnetemogostodadeporco.
Tambémháumaespéciedegrandes lagartosnaágua 149 eem
terra;estessãobonsparasecomer.
147 Leopardo, isto é, “leão pardo”, como diz o narrador, não é aqui nomedadopelogentio,maspelosportugueses.Onometupiéçoó-assú-arana,ousussuara,quevaledizertirandoaveado,nomedadoàonça-parda.
148 Catiuare,dotupicapiuara,hojecapivara,quesignificacomedordecapim,ouherbívoro.
149 Oautorqueraquisereferiraossáuriosbrasileiros;aolagartod’águachama-vaogentioyacaréeodeterra,teyúassú.
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capítulo xxxii
De uma espécie de insetos pequenos como pulgas pequenas que os selvagens chamam “attun”.
H á insetozinhos parecidos com pulgas, porém meno-
res,quesechamamattun , 150nalínguadosselvagens.
Criam-senascabanas,dasujeiradagente.Entramnospés,sópro-
duzindoumacocegazinhaquandoentram,evãopenetrandona
carnedemodoquequasenãosepercebe.Nãosereparandoenão
ostirandologo,põemelesumsacodeovos,redondocomouma
ervilha.Umavez,porém,percebidoseretirados,ficanacarneum
buracodotamanhodeumgrãodeervilha.Euvi,quandocheguei
aestepaís,pelaprimeiravez,osespanhóisealgunsdosnossos
ficaremcomospésestragadospordescuido.
150 Attun,dotupitumoutung,“obicho-de-pé”,quetambémsediztumbyra.
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capítulo xxxiii
De uma espécie de morcego do país e como de noite, durante o sono, ele chupa os dedos do pé e a cabeça da gente.
H átambémumaespéciedemorcegosquesãomaiores
do que os da Alemanha. Voam de noite para dentro
dascabanas,aoredordasredes,emquedormeagente.Tantoque
percebemquealguémdormeeosnãoinquieta,pousam-lhenos
péseossugamatéseencherem,oumordem-lheacabeça,esevão
embora.
Enquantoestiveentreosselvagens,sugaram-memuitasvezes
osdedosdopé.Aoacordaréqueviaentãoosdedosensanguenta-
dos.Mas,aosselvagens,mordiam-lhes,emgeral,acabeça.
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capítulo xxxiv
Das abelhas do país.
T rêsespéciesdeabelhashánopaís.Asprimeirassãose-
melhantesàsdaqui.Assegundassãopretasedotama-
nhodemoscas.Asterceirassãopequenas,comomosquitos.Todas
essasabelhasfabricamomelnoocodasárvores,emuitasvezes
tireimelcomosselvagens,detodasastrêsespécies.Aspequenas
têm,emgeral,melhormelqueasoutras.Tambémnãomordem
comoasabelhasdaqui.Vimuitasvezes,aotiraremmelosselva-
gens,queficavamcheiodeabelhasequeacustoastiravamàmão
docorponu.Eumesmotireimel,nu;masdaprimeiravezfuicoa-
gidopeladorameter-menaáguaetirá-lasaliparamelivrardelas.
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capítulo xxxv
Dos pássaros do país.
H átambémmuitospássarossingularesali.Umaespé-
ciechamadauwara pirange 151temseuspastospertodo
mareseaninhanasrochas,juntoàterra.Temotamanhodeuma
galinha,bicocompridoepernascomoasdagarça,masnãotão
compridas.Asprimeiraspenasquesaemnosfilhotessãoparda-
centasecomelasvoamumano;mudamentãoessaspenasetodo
opássaroficatãovermelhoquantopossível,eassimpersiste.As
suaspenassãomuitoestimadaspelosselvagens.
151 Uwara pirange é do tupi uirá-piranga isto é: “o pássaro vermelho”. (íbisrubra).
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capítulo xxxvi
Descrição de algumas árvores do país.
H á ali árvores a que os selvagens chamam juni-
-pappceywa . 152 Essas árvores dão uma fruta seme-
lhanteàmaçã.Osselvagensmastigamessa fruta,esprememo
suco em uma vasilha e se pintam com ele. Quando o passam
pelaprimeiraveznapeleécomoaágua;masdaliapoucofica-
-lhesapeletãopretacomotinta; issoduraatéononodiaesó
entãoéquesedesmancha,enuncaantesdessetempo,pormais
queselave.
152 Junipappceywa,dotupigenipapayba,aárvoredojenipapo.
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capítulo xxxvii
Como crescem o algodão e a pimenta do Prasil, e também outras raízes mais, que os selvagens
plantam para comer.
O algodão dá em arbustos da altura de mais ou menos
uma braça; tem muitas ramas, e, quando floresce, dá
botões,que,umavezmaduros,seabrem,eoalgodãosevêentão
dentrodoscasulos,aoredordeunscarocinhospretos,quesãoas
sementes, as mesmas que se plantam. Os arbustos estão cheios
dessescasulos.
Apimentadaterraédeduasqualidades,umaamarelaeoutra
vermelha,masambascrescemdamesmamaneira.Enquantover-
des,sãocomoofrutodaroseiradeespinhos;sãopequenosarbus-
tosmaisoumenosdemeiabraçadealtoetêmflorinhas.Ficam
muito carregados de pimenta, das que ardem na boca. Quando
maduras,colhem-nasesecam-nasaosol.Hátambémumaespécie
depimentamiúda,nãomuitodiferentedajámencionada,eque
secadomesmomodo.
Hátambémumasraízesaquechamamjettiki, 153quetembom
gosto.Quandoplantamestas,cortam-nasempedaçospequenos,
e as enterram no chão, onde brotam e se estendem pela terra,
comoasramasdolúpulo,enchendo-sedetubérculos.
153 Jettiki,dotupigeticaanossabatataindígena.
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discurso final
Ao leitor deseja Hans Staden a graça e a paz de Deus.
B ondosoleitor:Propositalmentedescreviestaminhavia-
gemenavegaçãocomamaiorbrevidade,somentepara
contarcomo,pelaprimeiravez,caínopoderdospovosbárbaros.
Eparamostrarcomo,poderosamenteecontratodaexpectativa,o
SalvadornossoSenhoreDeus,todo-poderoso,aindamaravilho-
samenteprotegeeencaminhaosseusfiéisentreospovosímpios
epagãos,comoelesempretemfeito.Etambémparaquecadaum
sejagratoaDeuseconfienelenadesgraça,porqueelemesmodiz:
“Invoca-menotempodanecessidade,paraqueeutesalve,etume
louvarás”,etc.
Agoramuitospoderãodizerque,seeuquisessemandarimpri-
mirtudoqueexperimenteinaminhavidaevi,teriadefazerum
grandelivro.Éverdade;dessemodo,teriaeutambémaindamuito
quedescrever;mas,essenãoéocaso.Euestoucertodequeoque
mefezescreverestelivrinho,játenhosuficientementedemons-
trado,équesomostodosobrigadosalouvareagradeceraDeus
quenospreservoudesdeasprimeirashorasdonascimentoatéa
horapresentedanossavida.Aindamais:possotambémpensar
que o conteúdo deste livrinho pareça estranho a alguns. Quem
tem culpa disso? Não sou o primeiro e não serei o último a ter
conhecimento de tais navegações, nem daqueles a quem ainda
podeacontecer.
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Maspretenderqueaquelequesequerlibertardavidaparaamorteestejanomesmoestadodeespíritoqueaquelequeestálon-geesóvêououvedizer,issocadaqualquejulguemelhorporsi.
EsetodososquenavegamparaaAméricativessemdecairnasmãosdeinimigosbárbaros,quemdesejarialáir?
Mas disto estou certo, que muita gente honesta em Castela,Portugal, França e alguns de Antdorff, em Brabant, que tenhamestadonaAmérica,hãodedarotestemunhodequetudoécomoeuaquiodescrevo.
Para aqueles, porém, que não conhecem essas coisas, chamoemprimeirolugarotestemunhodeDeus.
AprimeiraviagemquefizàAméricafoiemnavioportuguês,cujocapitãosechamavaPintyado,eéramostrêsalemãesabor-do.UmeradeBremenesechamavaHeinrichBrant;osegundochamava-seHansvonBruchhausen,eeu.
Asegundaviagemfi-laeudeSevilha,emEspanha,paraoRiode Plata, província situada na América e assim chamada. O ca-pitão dos navios chamava-se Dom Diego de Senabrio. Nenhumalemãohavianessaviagem.Edepoisdemuitoslabores,angústiaseperigos,tantonomarcomoemterra,durantedoisanos,comojádisse,naufragamosnumailhachamadaSãoVicente,pertodaterrafirmedoPrasil,habitadaporportugueses.Aíencontreiumpatrício,filhodobem-aventuradoEobaniHessi,quemerecebeubem. Havia lá mais um de nome Peter Rösel, que era factor denegociantesdeAntdorff,quesechamamosSchetz. 154Essesdoispodemdartestemunhodecomochegueiecomofuicapturadoporbárbarosinimigos.
154 Jánessetempooprimeiroengenhodeaçúcarmandadoconstruirpelodo-natáriodeSãoVicenteequeporessarazão,emalgunsvelhosdocumentos,sechamouengenho do Senhor Governadoroufazenda do trato,eraproprieda-dedafamíliadeJorgeErasmoSchetzen,queaísefaziarepresentarporumfeitor.Desdeentãocomeçouadenominar-seengenho dos armadoresoudeSão Jorge dos Erasmos.
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Ainda mais. Os marinheiros que me resgataram dos selva-
genseramdeNormandia,emFrança.Ocapitãodonavioerade
Wattauilla,chamava-seWilhelmdeMoner.Opilotochamava-se
FrançoydeSchantzeeradeHarflor. 155OintérpreteeradeHarflor
e se chamava Perott. Essa gente honesta (Deus lhes pague na
vida eterna) auxiliou-me, depois de Deus, para voltar à França.
Arranjaram-me um passaporte, vestiram-me e me deram de co-
mer.Estespodemdartestemunhodeondemeacharam.
Embarquei depois em Dippaw, 156 em França, e fui para
Lunden 157naInglaterra.Aliagentesdeholandesessouberamdo
capitãotudooquemediziaarespeito.Convidaram-meparaser
seuhóspedeemederamdinheiroparaaviagem.Depoisnaveguei
paraaAlemanha.
Em Antdorff, fui à casa de von Oka ter com um negociante
chamadoJasparSchetzen,doqualé factoremSãoVicenteosu-
pramencionadoPeterRösel,comojáfoireferido.Aeledei-lhea
notíciadecomoosfrancesesatacaramobarquinhodoseufactor
emRiodeJaneiromasquetinhamsidorepelidos.Omesmonego-
ciantefez-mepresentededoisducadosimperiais.Deuslhepague,
porisso.
Seagoraalguémhouverquenãofiquecontentecomestees-
crito,eparaquenãocontinueaalimentardúvida,peçaoauxílio
deDeuseempreendaamesmaviagem.Dei-lhejábastanteensi-
no.Sigaaspegadas.
AquemDeusajudaomundonãoestáfechado.
AoDeustodo-poderoso,quetodoestáemtudo,sejamahonra,
aglóriaeolouvor,deeternidadeàeternidade.Amém.
155 Harflor,istoé,Honfleur.156 Dieppe.157 Londres.
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Patrocínio: Realização:
ProduçãoEditora BatelCoordenação editorialCarlos BarbosaProjeto gráfi coSolange Trevisan zc
DiagramaçãoSolange Trevisan zcIlustrarte Design e Produção Editorial
© 2012, Fundação Darcy RibeiroDireitos desta edição pertencentes à Fundação Darcy RibeiroRua Almirante Alexandrino, 199120241-263 - Rio de Janeiro – RJwww.fundar.org.br
1ª Edição. 1ª Impressão. 2014.
Texto estabelecido segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
R369a
Ribeiro, Darcy, 1922-1997 América Lati na: a pátria grande / Darcy Ribeiro. - Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2012. – (Biblioteca básica brasileira). ISBN 978-85-63574-14-5 1. América Lati na – Civilização. 2. América Lati na - Políti ca e governo. I. Fundação Darcy Ribeiro. II. Título. III. Série.
12-6980. CDD: 980 CDU: 94(8) 25.09.12 09.10.12 039335
BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA – CULTIVE UM LIVRO
CuradoriaPaulo de F. Ribeiro – Coordenação Geral Godofredo de Oliveira NetoAntonio Edmilson Marti ns Rodrigues
Comitê Editorial Eric Nepomuceno – Fundação Darcy RibeiroOscar Gonçalves – Fundação Biblioteca NacionalNorberto Abreu e Silva Neto – Editora Universidade de BrasíliaAníbal Bragança – Fundação Biblioteca NacionalLucia Pulino – Editora Universidade de Brasília
Tratamento de textos da coleçãoClara DiamentEdmilson CarneiroCerise Gurgel C. da SilveiraCarina LessaLéia Elias CoelhoMaria Edite Freire RochaProjeto de capaLeonardo VianaAssessoria de Comunicação Fundar Laura Murta
Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB7 5587
Impressão e acabamento :
1 • Viagem ao Brasil - BBB.indd 194 18/08/14 09:39
Patrocínio: Realização:
ProduçãoEditora BatelCoordenação editorialCarlos BarbosaProjeto gráfi coSolange Trevisan zc
DiagramaçãoSolange Trevisan zcIlustrarte Design e Produção Editorial
© 2012, Fundação Darcy RibeiroDireitos desta edição pertencentes à Fundação Darcy RibeiroRua Almirante Alexandrino, 199120241-263 - Rio de Janeiro – RJwww.fundar.org.br
1ª Edição. 1ª Impressão. 2014.
Texto estabelecido segundo o Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
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Ribeiro, Darcy, 1922-1997 América Lati na: a pátria grande / Darcy Ribeiro. - Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2012. – (Biblioteca básica brasileira). ISBN 978-85-63574-14-5 1. América Lati na – Civilização. 2. América Lati na - Políti ca e governo. I. Fundação Darcy Ribeiro. II. Título. III. Série.
12-6980. CDD: 980 CDU: 94(8) 25.09.12 09.10.12 039335
BIBLIOTECA BÁSICA BRASILEIRA – CULTIVE UM LIVRO
CuradoriaPaulo de F. Ribeiro – Coordenação Geral Godofredo de Oliveira NetoAntonio Edmilson Marti ns Rodrigues
Comitê Editorial Eric Nepomuceno – Fundação Darcy RibeiroOscar Gonçalves – Fundação Biblioteca NacionalNorberto Abreu e Silva Neto – Editora Universidade de BrasíliaAníbal Bragança – Fundação Biblioteca NacionalLucia Pulino – Editora Universidade de Brasília
Tratamento de textos da coleçãoClara DiamentEdmilson CarneiroCerise Gurgel C. da SilveiraCarina LessaLéia Elias CoelhoMaria Edite Freire RochaProjeto de capaLeonardo VianaAssessoria de Comunicação Fundar Laura Murta
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DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
S776v
Staden, Hans, ca. 1525-ca.1576 Viagem ao Brasil / ans Staden. – 1. ed. – Rio de Janeiro:Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 234 p.; 21 cm. – (Coleção biblioteca básica brasileira; 12).
ISBN 978-85-63574-23-7
1. Índios da América do Sul – Brasil. 2. Índios tupinambá. 3. Brasil – Descrições e viagens – Obras anteriores a 1800. 4. América – Narrativas anteriores a 1600. I. Fundação Darcy Ribeiro II. Título. III. Série. CDD-981
Roberta Maria de O. V. da Costa – Bibliotecária CRB7 5587
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FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO
Insti tuidorDarcy Ribeiro
Conselho Curador
Alberto Venancio FilhoAntonio Risério
Daniel Corrêa Homem de CarvalhoElizabeth Versiani Formaggini
Eric NepomucenoFernando Otávio de Freitas Peregrino
Gisele Jacon de Araujo MoreiraHaroldo Costa
Haydée Ribeiro CoelhoIrene Figueira FerrazIsa Grinspum Ferraz
Lauro Mário Perdigão SchuchLeonel Kaz
Lucia Velloso MaurícioLuzia de Maria Rodrigues Reis
Maria de Nazareth Gama e SilvaMaria Elizabeth Brêa Monteiro
Maria José Latgé KwammeMaria Stella Faria de Amorim
Maria Vera Teixeira BrantPaulo de F. Ribeiro
Paulo Sergio DuarteSergio Pereira da Silva
Wilson MirzaYolanda Lima Lobo
Conselho Fiscal Eduardo Chuahy
Mauro Justi no da CostaTrajano Ricardo Monteiro Ribeiro
Alexandre Gomes Nordskog – Suplente
Diretoria Executi vaPaulo de F. Ribeiro – Presidente Haroldo Costa – Vice-Presidente
Maria José Latgé Kwamme – Diretora Administrati vo-FinanceiraIsa Grinspum Ferraz – Diretora Cultural
Maria Stella Faria de Amorim – Diretora Técnica
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FUNDAÇÃO DARCY RIBEIRO
Insti tuidorDarcy Ribeiro
Conselho Curador
Alberto Venancio FilhoAntonio Risério
Daniel Corrêa Homem de CarvalhoElizabeth Versiani Formaggini
Eric NepomucenoFernando Otávio de Freitas Peregrino
Gisele Jacon de Araujo MoreiraHaroldo Costa
Haydée Ribeiro CoelhoIrene Figueira FerrazIsa Grinspum Ferraz
Lauro Mário Perdigão SchuchLeonel Kaz
Lucia Velloso MaurícioLuzia de Maria Rodrigues Reis
Maria de Nazareth Gama e SilvaMaria Elizabeth Brêa Monteiro
Maria José Latgé KwammeMaria Stella Faria de Amorim
Maria Vera Teixeira BrantPaulo de F. Ribeiro
Paulo Sergio DuarteSergio Pereira da Silva
Wilson MirzaYolanda Lima Lobo
Conselho Fiscal Eduardo Chuahy
Mauro Justi no da CostaTrajano Ricardo Monteiro Ribeiro
Alexandre Gomes Nordskog – Suplente
Diretoria Executi vaPaulo de F. Ribeiro – Presidente Haroldo Costa – Vice-Presidente
Maria José Latgé Kwamme – Diretora Administrati vo-FinanceiraIsa Grinspum Ferraz – Diretora Cultural
Maria Stella Faria de Amorim – Diretora Técnica
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