vestígios de uma ausência: uma arqueologia da repressão

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  • 7/24/2019 Vestgios de uma ausncia: uma arqueologia da represso

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    ARIGO

    VESTGIOS DE UMAAUSNCIA:

    UMA ARQUEOLOGIA DA REPRESSO

    Beatriz Vallado TiesenClia Maria Pereira

    Eduarda RippelGabriel Rodrigues Vespasiano

    Ingrend Guimares Cornaquini

    Jlio oledoMariana Fernandez

    No. 10ISSN 2237-8294

    dezembro de 2014

    Revista de

    Arqueologia Pblica

    Dossi

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    VESTGIOS DE UMAAUSNCIA:

    UMA ARQUEOLOGIA DA REPRESSO

    Beatriz Vallado Thiesen1

    Clia Maria Pereira2

    Eduarda Rippel3

    Gabriel Rodrigues Vespasiano4

    Ingrend Guimares Cornaquini5

    Jlio Toledo6Mariana Fernandez7

    para os desesperados que nos foi dada a esperanaWalter Benjamin8

    RESUMO

    Relatamos aqui uma experincia de Arqueologia Pblica realizada com o tema dos

    desaparecidos da Ditadura Militar brasileira. O trabalho objetivou atingir as subjetivi-dades e provocar um sentido de pertencimento. Para tanto, utilizando os caminhos damemria e dos afetos, empregando a cultura material e o abandono do texto escrito.Pela utilizao de um simulacro, propusemos fazer uma traduo dos desaparecimentosocorridos durante o perodo da ditadura.

    1 Professora Associada do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do RioGrande FURG. Contato:[email protected]

    2 Arte Educadora e Bacharelanda do Curso de Bacharelado em Arqueologia da UniversidadeFederal do Rio Grande - FURG

    3 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do RioGrande - FURG

    4 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do RioGrande - FURG

    5 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do RioGrande - FURG

    6 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do RioGrande - FURG

    7 Bacharelando do Curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do RioGrande - FURG

    8BENJAMIN, Walter. Les afnitslectivesde Goethe, in Walter Benjamin. Oeuvres Choisies. Trad.Maurice de Gandillac. Paris, Julliard, 1959.

    ARTIGO

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    THIESEN, PEREIRA, RIPPEL, VESPASIANO, CORNAQUINI, TOLEDO e FERNANDEZ

    Revista de Arqueologia Pblica, No. 10, pp. 232-250, Dezembro de 2014 |

    Palavras-chave: Ditadura Militar; Cultura Material; Arqueologia da Represso.

    ABSTRACT

    This article was constituted upon our experiences within public archaeology, based onthe theme: politic missing persons from brazilian Military Dictatorship. Our researchhas its goals on reaching the subjectivities and to induce a sense of belonging, evokingmemories and attachment through material culture only, putting aside made discoursessuch as written texts. We describe in this article how our simulacrum installation wasused to translate the disappearances during the dictatorship period.

    Keywords:Military Dictatorship; Material Culture; Archaeology of Repression.

    RESUMEN

    Relatamos aqu una experiencia de Arqueologa Pblica realizada con el tema de losdesaparecidos de la Dictadura Militar brasilea. El trabajo objetiv atingir las subjeti-vidades y provocar un sentido de pertenencia. Para tanto, utilizamos los caminos de lamemoria y de los afectos, empleando la cultura material y abandonando el texto escrito.Por la utilizacin de un simulacro, propusimos hacer una traduccin de los desapareci-mientos ocurridos durante el perodo de la dictadura.

    Palabras clave:Dictadura Militar; Cultura Material; Arqueologa de la Represin.

    CINQUENTA ANOS SE PASSARAM E AS FERIDAS CONTINUAM ABER-

    TAS

    O golpe de 1964 me encontrou ainda criana e eu cresci naqueles dias tempestuo-sos, entre o medo e a ignorncia, entre o espanto e a ingenuidade. Em 1968, ouvi os

    Beatles pela primeira vez. E gostei. Tinha, ento, 10 anos. A Jovem Guarda no me em-

    polgava, mas achava Ronnie Von um prncipe. Odiava as freiras do colgio, o uniforme

    que nos assexualizava, e sonhava em ir (escondida) loja - frequentada pela juventude

    rica e supostamente rebelde porto-alegrense - que vendia uniformes americanos usados

    por soldados na guerra do Vietn.

    No ouvi falar no AI-5. Minha pr-adolescncia misturou a euforia da chegada do

    homem lua e a vitria do Brasil na copa de 1970, com um desconforto, algo que eu

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    no entendia, mas que cava no ar quando adultos conversavam e mencionavam coisas

    sobre comunistas e generais. Havia bandidos e havia mocinhos. No entendia bem, mas

    sabia que havia o bem, de um lado, e o mal, de outro.

    Na minha casa havia muitos livros. Ouvia-se msica clssica a alto volume, diaria-mente. Havia um clima, at certo ponto, intelectual. Meu pai me ensinava sobre Bee-

    thoven, Michelangelo e Machado de Assis. Para mim, meu pai sabia tudo. No entendia

    como ele no era presidente da repblica: era bvio que consertaria o pas. Um dia, o

    vi pegar nossas apostilas da aula de religio e jogar tudo no cho bradando: As gurias

    vo sair desse colgio! Essas freiras so umas comunistas!.

    Ora viva! As freiras malvadas, que nos colocavam de castigo, que nos chamavam

    de pecadoras, que nos obrigavam a usar saias medonhas e nos condenavam a passar

    frio durante o inverno - j que cala comprida era proibida no colgio -, eram as comu-nistas. Tudo resolvido! Concordei com meu pai: Sim, os comunistas so muito maus.

    Sairemos do colgio!.

    Fomos estudar em um lugar que no exigia uniforme. Podamos matar aula (desde

    que no excedesse o nmero admitido de faltas), podamos fumar no recreio, namorar.

    O paraso. O lugar dos bons, por certo! Eu entrava, ento, na adolescncia. Conheci as

    drogas, as viagens de carona, os primeiros amores. Comecei a ver que alm de Beetho-

    ven, Michelangelo e Machado de Assis, existiam muitas coisas mais. Aprendi o que era

    o AI-5 e o que ter medo da polcia. Mas ainda no tinha perdido aquela doce inocn-

    cia e, mesmo rindo muito com os colegas, todos abraados e pulando juntos para trs e

    cantando Este um pas que vai para frente, ainda achava que o milagre econmico

    dos generais tinha nos salvado: havamos construdo uma casa e no via mais meu pai,

    de madrugada, desesperado e contando moedinhas.

    Quando entrei na Universidade, a coisa toda mudou. Ainda ingnua, conheci Marx,

    Engels e os anarquistas. Fiquei extasiada! Amor livre, cerveja, passeatas, discursos in-

    amados, e, pronto: mudamos o mundo. Apanhamos da polcia, gritamos, fomos parar

    nas delegacias. Sabamos que tinha gente desaparecida. De novo, gritamos e apanha-

    mos. Radicalizamos: deitamos em frente aos nibus, tiramos a roupa e danamos nussobre a bandeira nacional. Apanhamos novamente. E gritando e apanhando, num belo

    dia, a ditadura acabou. O irmo do Henl voltou, mas teve gente que nunca mais

    apareceu. Novamente, entre a euforia e a ignorncia, esperei que tudo se resolvesse: a

    democracia trataria da justia. Mas no...

    Cinquenta anos se passaram e eu pensei que precisava fazer alguma coisa. Profes-

    sora de Arqueologia do Mundo Contemporneo, desaei os meus alunos: ainda precisa-

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    mos mudar o mundo. Eles responderam com a garra da juventude: vambora!9.

    A SAUDADE O PIOR TORMENTO PIOR DO QUE O ESQUECIMEN-

    TO10

    Decidimos espalhar informaes, falar com a voz da arqueologia para aqueles que

    tivessem vivido os anos de chumbo, sem saber o que realmente acontecia. Alm disso,

    as novas geraes, certamente, pouco ou nada sabiam sobre tudo que se passara naque-

    les tempos.

    Na cidade onde vivemos, falas simples e concisas do tipo foi um perodo mui-

    to bom para a economia do pas, ou ainda a polcia levava presos os marginais, e

    os drogados, ou, at mesmo, no me lembro de muito, mas era uma boa vida quelevvamos, do a medida do que se conhece sobre aqueles anos. Ou do que se deseja

    lembrar daqueles anos. Mais do que isso, Rio Grande, nico porto martimo do estado

    do Rio Grande do Sul, uma cidade que se considera devedora de um dos principais

    mentores da Ditadura Militar: o general Golbery do Couto e Silva11. Para grande parte

    da populao local, o general - visto como heri -, atravs de sua inuncia no regime

    militar, alavancou o crescimento da cidade atravs de importantes obras.

    A instalao Vestgios de uma ausncia: uma arqueologia da repressoveio de

    encontro a esta percepo local, ainda muito evidente em nossos atos cotidianos. Esta

    instalao foi pensada pelos alunos da turma 2011 do bacharelado em Arqueologia

    9 Depoimento de Beatriz ValladoThiesen.

    10 Os subttulos deste artigo so versos de Chico Buarque de Holanda da cano Pedao deMim.

    11 Golbery teve uma formao militar, tendo estudado na War School de Fort Leanvenworth, no Kansas.Trabalhou no front italiano da guerra como ocial de inteligncia e informaes. Seu histrico de aescontra o governo comea em 1954, quando, ao lado de coronis, redigiu uma manifesto contra o aumentodo salrio mnimo proposto por Getlio Vargas. Em 1955, tentou impedir a posse de Juscelino Kubits-check e, em 1961, tentou vetar a posse de Joo Goulart. Em 1962, criou e dirigiu o IPES (Instituto dePesquisas e Estudos Sociais) que passou a grampear ilegalmente milhares de telefones no Rio de Janeiro,reunindo arquivos e dossis que mais tarde serviram para criar o SNI (Sistema Nacional de Informaes)em 1964, quando participou ativamente do golpe militar - com intuito de espionar e perseguir qualquerum que estivesse tentando conspirar contra o regime. Criou uma mquina responsvel por centenas dedesaparecimentos, mortes e torturas. Por ser natural de Rio Grande e por ter realizado aes como acriao da atual Universidade Federal do Rio Grande e a transferncia do 5 Distrito Naval de Florian-

    polis para Rio Grande, considerado por muitos como um benfeitor local. Essa imagem reete-se emrecorrentes homenagens feitas pela prefeitura local e por outras instituies. Recentemente, em 2008, o6 Grupo de Artilharia e Campanha (GAC) inaugurou um monumento a Golbery intitulado O reconheci-mento de sua terra natal. A ltima reverncia memria do general diz respeito instituio doAno Acadmico Golbery do Couto e Silva pela Academia Rio-grandina de Letras.

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    da Universidade Federal do Rio Grande/FURG, em resposta proposta da Professora

    Beatriz Thiesen, referente disciplina de Arqueologia do Capitalismo III. A inteno do

    trabalho foi abordar a Ditadura Militar no Brasil atravs de objetos e sensaes. Usando

    as ideias do arquelogo Gonzalez Ruibal (2008), pretendemos demonstrar que uma ar-queologia do passado recente, alm de oferecer meios para contestar as verses ociais

    dos fatos, tambm capaz de escancarar o que nos causa dio e repugnncia. Ressalte-

    se que ela foi a nica interveno trazendo tona o tema da Ditadura Militar realizada

    na cidade do Rio Grande em abril de 2014, ms que marcou os cinquenta anos do golpe.

    Resolvemos revelar, no atravs das palavras, mas da cultura material12, os rostos

    das vtimas da ditadura, mostrando tanto o visvel, como as realidades ocultas da hist-

    ria: a ausncia. Quisemos, seguindo Potter (1994), provocar a autorreexo e integrar

    teoria e prtica. Concordamos com Connerton (2009) que o esquecimento uma ca-racterstica da modernidade e que precisamos realizar esforos para documentar a vida

    contempornea para a sociedade futura. Foi assim que, com um texto de Alfredo Ruibal

    (2008), nas mos e mil ideias na cabea13, nasceu o Vestgios de uma ausncia: uma

    arqueologia da represso.

    O autor de Time to destroy. An archaeology of supermodernity, nos diz14:

    We need alternative ways of translating the remains from the past (Shanks 2004;Witmore2004a), and this need is especially urgent because, given the overabundance of historicalinformation, there is a risk of saturating memory with a proliferation of narratives and de-

    tails, which may eventually neutralize and trivialize the past, and because the evidence isoften very particular in its abject detail and its traumatic political implications. (RUIBAL,2008: 250).

    Assim, buscamos realizar o trabalho tomando os caminhos da memria e do afeto.

    12 A tentativa que realizamos neste artigo a de relatar, com palavras, o que realizamos, evi-tando o uso delas e utilizando a cultura material. Uma tarefa paradoxal, com certeza.

    13 Fazemos referncia aqui clebre frase de Glauber Rocha uma cmera na mo e uma ideiana cabea, utilizada para se referir produo de lmes baratos e voltados realidade brasilei-ra, adotando uma linguagem adequada situao social da poca e buscando a transformaosocial.

    14 Os textos em lngua estrangeira foram traduzidos livremente aqui. A responsabi-lidade pela traduo nossa. Precisamos de formas alternativas de traduzir os res-tos do passado (SHANKS, 2004; WITMORE, 2004) e essa necessidade especial -mente urgente no contexto do passado contemporneo, pelo menos, por duas razes:porque, dada a superabundncia de informaes histricas do passado recente, h umrisco de saturar a memria por uma proliferao de narrativas e detalhes, que podem even-tualmente, neutralizar e banalizar o passado [...], e porque a evidnciana arqueologia da su-permodernidade frequentemente muito especial no seu detalhe abjeto e nas suas implicaespolticas traumticas. (RUIBAL, 2008: 250).

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    Se, como j se disse, somos o que a nossa memria nos diz que somos, precisamos

    no esquecer. Porque se esquecemos, morremos em uma parte. Claro que tambm sabe-

    mos que a memria est permanentemente construindo-se e reconstruindo-se e, assim,

    um engano pensar que podemos resgatarmemrias,pois no se trata de um pacotede informaes acabado (MENEZES, 1992). Ligada ao esquecimento, ela s permite

    lembrar de partes do passado. O que queramos lembrar, ento?

    Consideramos que a arqueologia uma atividade inerentemente poltica e que ela

    pode e deve contribuir com um mundo mais justo e humano (McGUIRRE, 2008; LITT-

    LE & SHACKEL, 2014). Quisemos gritar, em alto e bom som, que a histria est cons-

    truda por tiranias, resistncias, sonhos, lutas, vaidades. Que a histria no feita ape-

    nas de heris reconhecidos, mas tambm de pessoas comuns, cuja agncia ignorada, e

    de outras tantas pessoas banais, que tiveram que viver suas vidas com as consequnciasda violncia, com partes que lhes foram arrancadas, com ausncias... Quisemos mostrar

    as sombras dos rostos daqueles que esto excludos das histrias ociais e dos quais no

    devemos esquecer.

    Mas memria no s lembrana e esquecimento. Ela est em documentos, em

    monumentos, em museus, mas tambm encontra-se nos corpos, nas experincias e nos

    afetos (SILVA, 2008: 62). Ainda conforme Silva,

    Nesse sentido, podemos pensar nos afetos como formas de conhecimento, compreenso e

    experimentao do mundo, bem como de traduo das nossas vivncias para os outros. Oindivduo est mergulhado em uma totalidade de signicados, da que no possvel pen -s-lo fora dos contextos sociais. O homem est sempre, de algum modo, afetado e essasafeces qualicam suas disposies para..., suas relaes com o espao e o tempo, nassuas interdependncias, denindo, inclusive, porque se sente dada emoo e no outra, emsituaes especcas. Razo e emoo so um duplo reversvel: a racionalizao opera com

    base na afetividade em dada situao ao mesmo tempo em que utiliza seu potencial reexivopara orientar as emoes (ibidem: 68).

    Assim, consideramos a necessidade de utilizar um recurso que nos permitisse atin-

    gir as subjetividades. Pretendemos que, ao alcanar as afetividades, provocssemos um

    sentido de pertencimento s memrias que reconstruamos ali. Que, atravs de emoesprovocadas, o indivduo vivenciasse a experincia proposta e pudesse, assim, se consi-

    derar como parte de uma histria da qual ele tambm personagem.

    Atravs de um simulacro15(BAUDRILLARD, 1991), propusemos fazer uma tradu-

    15 Utilizamos simulacro no sentido de Jean Baudrillard (1991), ainda que para este autor, um simulacroseja um signo sem vnculos com o real, que se apresenta mais real que a realidade. Para este autor, osimulacro no mantm qualquer relao com qualquer realidade. Para ns, a construo desse simulacroobedeceu critrios de realidade. Ainda assim, tomamos de Baudrillard a ideia defendida em Simulacros eSimulaode que na ps-modernidade os smbolos tm mais importncia e mais eccia do que a prpria

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    o, ou uma metfora, dos desaparecimentos ocorridos durante o perodo da ditadura.

    Era importante que evitssemos o uso de textos e que pudssemos apresentar o tema

    de forma que fosse capaz de nos assombrar (SHANKS apud RUIBAL, 2008: 251).

    Hlio Oiticica - artista experimental16- em suas obras fazia uso de objetos e mate-riais que possibilitassem ao visitante explorar cores, cheiros e sons como ativadores de

    sentidos. A participao era o fator mais importante em sua obra. Andar descalo so-

    bre areia, gua ou pedra. Sua proposta era recuperar sentimentos, propiciar sensaes.

    Com Vestgios..., algo semelhante ocorre, mesmo sem a inteno de obra de arte. O

    visitante ouve, sente cheiros, percebe cores preto, branco, vermelho - que em alguns

    momentos esto presentes juntas, em outros, isoladas, como na sala escura, onde sons

    simultneos ocorrem (polifonia). As cores, os sons, as imagens e os trajetos conduzem

    a percepes e a sensaes, nos levando h um tempo que - mesmo no vivido -, atra-vs do simulacro, experimentamos. A instalao cria uma narrativa, articulando fatos

    ocorridos durante o regime ditatorial brasileiro, que resultou entre tantos sofrimentos,

    no desaparecimento de pessoas que a ele se opuseram. E nesses acontecidos, persona-

    gens, objetos e lugares [atribuem] uma lgica sequencial e rtmica para compartilh-lo

    com outras pessoas (GLOSSRIO ..., 2010: 11).

    A instalao age como um dispositivo - assim como em obras de arte contempo-

    rnea a partir dos anos 196017 solicitando a participao do espectador. Essa parti-

    cipao ativada pela interao do que compe o trabalho e as memrias, vivncias,

    realidade e que simulacros, como simulaes imperfeitas do real, fascinam o espectador muito mais queo prprio objeto reproduzido.

    16 Helio Oiticica foi um dos primeiros artistas a usar o espao e todos os sentidos humanos emseu trabalho. Na proposta que apresentamos aqui, Oiticica inspirador. Como ele, queremosfazer ver coisas de uma forma diferente.

    17 A dcada de 1960 marcada pela velocidade das vanguardas artsticas, que tem Nova Yorquecomo capital cultural do sculo XX. Dentre as manifestaes artsticas como Minimalismo, Op Arte,Arte Cintica, Novo Realismo e Tropiclia, a Pop Arte surgida na Inglaterra, mas apropriada e difundida

    pelos norte-americanos foi a vanguarda mais decisiva da dcada. Sem programa preestabelecido, semmanifesto, utilizando-se do repertrio do cotidiano do consumo e da cultura de massa, foi rapidamentetransformada em tendncia internacional. Isso mostrou o poder cultural dos americanos.O desao aos

    policias e os protestos dos estudantes nas ruas de Paris foi um marco que desencadeou movimentos decontestao, em vrios Pases, revoltas e guerrilhas urbanas. Estudantes, artistas e intelectuais ocupamas ruas, fazem passeatas. A contra cultura, a revoluo cultural. Os artistas plsticos abandonam os mu-seus, as galerias, saem da solido dos atelis e se misturam na multido. a potica do gesto, da ao,da coletividade, a utopia da arte / vida como participao do espectador na realizao da obra de arte.

    No Brasil a Tropiclia de Hlio Oiticica, foi uma das manifestaes mais polmicas, ao lado de Terraem Transe lme experimental barroco de Glauber Rocha e a pea O Rei da Vela de Oswald de Andrade,dirigida por Jos Celso Martinez.(http://josekuller.wordpress.com/2008/07/17/as-artes-plasticas-na-decada-de-60-e-em-maio-de-68/)

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    conhecimentos e subjetividades. Pode-se pensar o trabalho como a criao de um terri-

    trio, de um espao, no qual cada um percorre em um ritmo particular, conduzido pela

    maneira como se afeta, como interage. Pode-se perceber que nesse trajeto, os estmulos

    geram pausas e reexes, provocadas pela capacidade de sentir e de insero de cadaum.

    Outro aspecto a enfatizar refere-se preocupao esttica que permeou todo o de-

    senvolvimento do trabalho coletivo, desde a proposta.

    fundamental trazermos o signicado da palavra estetizar: lidar com determinado

    fato, acontecimento ou elemento intensicando seu valor esttico, sua beleza18e sua

    atratividade. Leituras e prticas estetizantes envolvem a possibilidade de seduo ou

    repulsa (GLOSSRIO ..., 2010: 9).

    Houve duas instalaes, que apesar de serem em lugares bem diferentes, com pbli-cos diferentes, mantiveram o projeto estrutural inicial intacto. A primeira foi no Prdio

    do Diretrio Central de Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande, com o p-

    blico esperado de acadmicos e pessoas envolvidas no mbito universitrio. A escolha,

    neste momento, esteve relacionada ao fato de que o prdio do DCE um local de livre

    acesso aos estudantes, prximo ao Restaurante Universitrio e, portanto, localizado em

    posio central e estratgica. A segunda instalao abrangeu um projeto bem maior, o

    qual se chamou Circuito Resistncia Manifesta. Este projeto foi o desdobramento da

    proposta inicial. Neste circuito, tivemos atividades tanto na Prefeitura Municipal, no

    centro da cidade, quanto no Bairro Cassino, o bairro/balnerio da cidade. A inteno de

    utilizar estes locais deveu-se possibilidade de atingir um pblico amplo e diversica-

    do. A Prefeitura, localizada na rea central da cidade, favoreceria o acesso do cidado

    comum, que transita cotidianamente por aquela rea. O Cassino, situado a cerca de 20

    quilmetros do centro, apresentava a possibilidade de atender os moradores do bairro

    e os turistas que frequentam o balnerio. Na prefeitura, cou a Instalao aberta ao

    pblico, e tambm foram feitas algumas Rodas de Conversas com convidados que tra-

    balham diretamente com o tema da represso, como foi o caso do Arquelogo Andrs

    Zarankin, do Historiador Renato Della Vechiae, Eliane de Oliveira Rubim, integran-te do Instituto Mrio Alves19. Tambm pessoas que vivenciaram a questo na cidade,

    18 Entendendo-se beleza como relao entre o objeto e o observador. Uma forma das pessoasse relacionarem entre si e com o mundo. Tudo no mundo recebe uma denominao e um valorcomo reexo do sentir e do pensar, que, por sua vez, concretizam-se atravs de smbolos, e apartir destes, conseguimos dar signicaes para as nossas experincias (DUARTE JR, Joo-Francisco. O que Beleza. Coleo Primeiros Passos, vol. 167, 3. ed. So Paulo, Brasiliense,1991).

    19 O Instituto Mrio Alves (IMA) um instituto voltado ao desenvolvimento de estudos epesquisas polticas, econmicas e sociais. Tem como proposta central a criao de um espao

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    como a militante do Movimento Estudantil da poca, Margareth Badejo. No Balnerio

    Cassino, foram exibidos lmes20que, depois de assistidos, foram discutidos.

    Os cartazes de divulgao foram feitos com fotos dos integrantes do grupo, fazen-

    do uma referncia aos antigos cartazes que estampavam o rosto de supostos terroristasprocurados. Estes cartazes eram distribudos pela cidade e conclamavam os cidados

    a delatar, para o seu bem e de seus familiares, os indivduos ali retratados. E solidaria-

    mente nos colocamos em seus lugares, tendo a certeza de que se tivssemos vivido em

    tal perodo, tambm poderamos ser tratados como terroristas. Em uma cidade relativa-

    mente pequena21, sabamos que em alguns casos poderamos ser reconhecidos. Este fato

    traria para o mbito da pessoalidade e da familiaridade algo que, a princpio, estava to

    distante e, provavelmente, no afetaria diretamente o pblico. Os cartazes foram dis-

    tribudos pelo Campusda Universidade, em ruas da cidade, paradas de nibus e outroslocais com grande auncia de pessoas.

    Fig. 1A: Na direita, cartaz de divulgao do evento realizado no recinto do DiretrioAcadmico da Uni-versidade Federal do Rio Grande. Imagem: Clia Maria Pereira. Fig. 1B: Na esquerda,cartaz da poca da

    Ditadura. Fonte: http://folhetando.blogspot.com.br.

    que promova a discusso, elaborao e a formao poltica, objetiva a participao de pessoas,instituies, movimentos sociais e entidades (governamentais e no governamentais). Fonte:http://www.imapelotas.blogspot.com.br/2009/09/o-ima.html.

    20 Os lmes foram: Que bom te ver viva, direo de Lcia Murat, que teve como debatedorLizandro Mello; Batismo de Sangue, dirigido por Helvcio Rattom; e Zuzu Angelde SrgioRezende.

    21 Conforme o Censo 2010, a populao de Rio Grande - RS composta por 94.983homens e 102.245 mulheres, atingindo, naquele ano, quase 200.000 habitantes (http://www.cidades.ibge.gov.br).

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    A SAUDADE ARRUMAR O QUARTO DO FILHO QUE J MORREU

    A estrutura da instalao foi pensada detalhadamente para que o pblico fosse for-temente impactado com o lado perverso da represso e depois usse para a materiali-

    dade, reetindo a ausncia dos indivduos brasileiros desaparecidos durante a ditadura.

    O intuito da proposta da instalao era criar ambientes em que as pessoas cassem

    livres para interpretar o que quisessem sobre aquela arqueologia da represso. Iramos

    usar da cultura material para alcanar a sensibilidade dos sentidos e a percepo de cada

    pessoa que entrasse na instalao, possibilitando com que cada uma delas zesse parte

    da instalao em si, criando o seu prprio discurso ali dentro.

    Dividimos a instalao em cinco ambientes diferentes. O primeiro deles era aEn-trada, onde as pessoas eram recepcionadas pelo ttulo da instalao e seu cone, o pau

    de arara. Neste mesmo ambiente, selecionava-se um nome escrito em um pedao de

    papel entre vrios acondicionados em uma caixa preta.

    Fig. 2: Entrada daInstalaoVestgios de uma Ausncia: uma Arqueologia da Represso. Foto: CliaMaria Pereira, 2014.

    O segundo ambiente era o Quarto Escuro. Este era, de fato, o primeiro ambiente

    em que a pessoa cava s. Era uma pequena sala, completamente escura, sem luz e

    sem ventilao, onde o som de relatos de torturados, gritos e descries de mtodos de

    tortura se misturavam aos sons de discursos dos generais da ditadura - especialmente

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    os que anunciavam as medidas de exceo - e a narrao de jogos da copa do mundo de

    1970. Os sons vinham de todos os lados atravs de caixas colocadas estrategicamente

    nos quatro cantos do quarto. Ao mesmo tempo, em uma parede, projetou-se continua-

    mente um vdeo que apresentava um turbilho de imagens desfocadas de pessoas sendotorturadas. Essas imagens eram interrompidas por fotograas dos mortos da ditadura.

    Como estas:

    Fig. 3: Imagens projetadas no Quarto Escuro de torturados na ditadura. Fonte: http://zequinhabarreto.org.br/?p=7002

    Ficava-se ali... At quando fosse possvel aguentar. Em p. Naquele ambiente ca-

    tico, pavoroso, terricante. Alguns cavam segundos e voltavam, indo embora, aban-

    donando a instalao. Outros seguiam adiante. Poucos toleravam car por muito tempoali. Quando no era mais possvel suportar, achava-se uma sada que, de fato, cava

    escondida entre lonas pretas.

    O terceiro ambiente, mais conhecido como a Sala dos Rostos, tinha uma luz tnue

    e, ao contrrio do ambiente anterior, era todo branco, amplo e silencioso. E a nica coi-

    sa que se via era o mural com o rosto, nome, idade, prosso e data de desaparecimento

    de sessenta e quatro brasileiros22projetados na parede ao fundo. A pessoa identicaria

    22 Fizemos a seleo dos sessenta e quatro desaparecidos polticos conforme os seguintesdados: nome completo, prosso, idade, imagem do rosto e data de desaparecimento. Tais da-

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    ali o rosto daquele nome que tinha retirado naEntrada. Encontravam-se homens e mu-

    lheres, jovens e velhos, estudantes ou prossionais. Todos desaparecidos. A sensao

    era de um intenso vazio.

    Fig. 4: Imagem projetada na Sala dos Rostos. Foto: Clia Maria Pereira, 2014.

    O quarto ambiente era chamado Quarto da Ausncia. Era justamente o que o nome

    diz ser, um quarto de um(a) jovem que estava estagnado no tempo. Era um quarto am-

    bientado de acordo com o nal da dcada de 1960 e comeo da dcada de 1970, poca

    em que houve mais denncias de desaparecimentos e mortes de militantes. O quarto

    apresentava vrios objetos e cheiros que reetiam a imagem de um(a) jovem militante

    e a sua ausncia naquele lugar congelado no tempo.

    Um quarto comum: os chinelos ao lado da cama, uma escrivaninha com uma m-

    quina de escrever ainda com uma folha parcialmente escrita, livros de Karl Marx, um

    violo sobre a cama, uma gura de Che Guevara na parede, almofadas e discos no cho.

    Havia fotos tambm. Nessas fotos, sempre uma pessoa apagada. Uma sombra onde de-

    veria estar uma criana entre os pais. Outra sombra, onde deveria estar um jovem entre

    dos foram retirados do stio http://www.desaparecidospoliticos.org.br, que organizado pelaComisso Nacional da Verdade, entidade que age na luta contra a omisso e o esquecimentodesses crimes cometidos na ditadura. Portanto, esses sessenta e quatro indivduos fazem partede um grupo muito maior de desaparecidos polticos no pas.

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    seus amigos. E assim por diante. Um quarto que cou ali, sem que houvesse algum

    para povo-lo. O quarto vazio. O quarto da ausncia. Ali, as pessoas se emocionavam.

    Fig. 5: Vista geral do Quarto da Ausncia. Foto: Clia Maria Pereira, 2014.

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    Figs. 6, 7, 8, 9: Aspectos do Quarto da Ausncia. Foto: Clia Maria Pereira, 2014.

    O quinto e ltimo ambiente foi o Mural de Escritos, onde painis expositores foram

    revestidos de papel pardo para que as pessoas, recm-sadas do Quarto da Ausncia,

    tambm pudessem deixar seus vestgios na instalao. Este ambiente era bem claro e ali

    se ouvia canes que serviram de resistncia e protesto naqueles anos. Cantores como

    Chico Buarque, Elis Regina, Geraldo Vandr e Milton Nascimento foram alguns dos

    artistas escolhidos para fazer o plano de fundo e manter o clima de envolvimento no

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    momento de deixar seu depoimento23.

    importante esclarecer que ningum foi obrigado a escrever no mural. Ao sair do

    Quarto da Ausncia- por vezes emocionadas ou chocadas - as pessoas eram instrudas,

    se quisessem, a deixar no mural um vestgio seu: um sentimento, uma indignao. A suaparte no nosso trabalho.

    23 Os depoimentos no mural foram feitos espontnea e anonimamente.

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    Fig. 10:Deixe aqui o seu vestgio... Fig. 11: Uma das frases no mural. Fig. 12: Visita de estudantes.Fig. 13: Detalhe do Mural. Fotos: Clia Maria Pereira, 2014.

    Acreditamos que o mural foi mais do que o retorno do pblico: foi uma recompen-

    sa. Foi ento a nossa vez de nos emocionar e ter certeza de que o nosso objetivo foi

    cumprido: a cultura material por si s, as diversas coisas colocadas juntas no contexto

    certo expressam o que palavras no diriam. Conseguimos ento demonstrar o poder que

    a arqueologia tem de, atravs da cultura material, despertar sentimentos, indignao e,

    principalmente, pertencimento e empatia.

    Numa tarde que tinha tudo para ser igual a qualquer outra, as pessoas que se dispu-

    seram a visitar a instalao saram de l com sentimentos diversos:

    -Nojo!

    -Triste!

    -Orgulho, Medo/Revolta, Vergonha!.

    -Agonia, Revolta, desespero, aperto no corao....

    -Esperana de que nunca se repita

    -Momentos de dor....

    -Relembrei minha infncia nos anos 70....

    -Cenas que nos fazem reetir... Obrigada pelas sensaes, por me tirar da zona de

    conforto!

    -Afasta de mim esse cale-se!

    -A sala d uma sensao horrvel, consegue-se sentir, nem que seja um pouco de

    terror, e o quanto d melancolia por ver o sumio da possvel pessoa que viveu ali.

    -Assim como na poca de ditadura me senti desorientado e confuso com as nar-

    rativas de futebol de tal maneira que quei um pouco alienado com as imagens que

    passaram na minha frente. O espetculo do futebol usado para alienar as pessoas.

    Ns, envolvidos no trabalho, nos dividimos em pequenos grupos de dois ou trs

    para podermos auxiliar o pblico em todos os horrios que a instalao cou aberta.

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    Portanto, de maneira geral, todos ns tivemos um contato muito direto com o pblico,

    possibilitando avaliar diariamente como a proposta impactava os visitantes.

    Apesar da emoo geral do pblico, era impossvel pensar que no haveria mani-

    festaes a favor do regime militar. Um aluno pertencente a uma turma de ensino mdiode certa escola pblica da cidade escreveu: No h futuro para o pas sem a ditadura.

    A professora levou as respostas dos alunos como um tema a ser discutido em sala de

    aula, chamando ateno para as diversas verses que se contam sobre o perodo. Esta

    foi a nica manifestao favorvel ditadura que recebemos. Em contrapartida, muitas

    pessoas escreveram chamados de revoluo:

    -Toda revoluo impossvel at que seja inevitvel.

    -No podemos desistir, no podemos por eles, por ns pelo povo!.

    -Hay hombres que luchan un dia y son Buenos/ Hay otros que luchan un ao y sonmejores/ Hay quienes luchan muchos aos y son muy Buenos/ Pero hay los que luchan

    toda la vida/ Esos son inprescindibles (citando Bertold Brecht).

    -Liberdade-Utopia.

    -No nos devemos Sistematizar! Se no fossem as causas perdidas o que nos

    impulsionaria? At quando a culpa no minha?

    A SAUDADE O PIOR CASTIGO E EU NO QUERO LEVAR COMIGO

    A MORTALHA DO AMOR

    Entendendo a Arqueologia como uma disciplina dotada de grande responsabilidade

    social e poltica, a instalao possibilitou ao pblico relacionar experincias de um pas-

    sado sombrio com o presente. Em meio ebulio popular vivida nos ltimos meses,

    percebeu-seque ainda vivemos com marcas daquele tempo. A fora desproporcional, a

    brutalidade policial que, a servio do poder, parece fazer uma limpeza nas ruas, permi-

    tiu aos visitantes uma reexo do panorama atual do pas. A questo da desmilitariza-

    o da polcia apareceu em falas. Atravs do mural feito de papel pardo, a comunidade

    pode interagir e deixar o seu testemunho. Quisemos ouvir o que cada um tinha a dizer.Quisemos que cada um deixasse seu vestgio.

    A instalao trouxe ao pblico talvez uma redescoberta, uma nova viso sobre o

    nosso trabalho, que rotineiramente tratado como um mero entretenimento, dotado de

    aventuras fantsticas com segredos preciosos, e que se atm apenas ao antigo. Ou, como

    quando uma das integrantes do grupo foi questionada: Por que isso arqueologia e no

    histria?. Foi um deleite nalmente poder responder: - arqueologia, pois trazemos

    as coisas tona. A materialidade traz a vidaque os documentos escritos usurpam. No

    que a histria no tenha o poder de emocionar com os textos, mas absolutamente dife-

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    rente ler sobre os fornos utilizados nos campos de concentrao nazistas e deparar-se

    com o sapatinho de uma criana incinerada dentro de um, como frizou Lizandro Mello24

    em sua fala aps a exibio do lme Que bom te ver Viva.

    Conseguimos mostrar que possvel ir alm, e proporcionar momentos mais in-crveis do que uma personagem sendo perseguida por uma bola gigantesca em uma de

    suas aventuras25. Talvez sim, talvez tenhamos um toque de magia, talvez nossa magia

    seja a possibilidade de tocar as pessoas e proporcionar essa reexo ao escancarar o

    sujo, o feio, o que revolta, opondo-se assim a qualquer mecanismo de higienizao do

    passado.

    AGRADECIMENTOS

    Agradecemos a todos os alunos da disciplina de Arqueologia do Capitalismo III, do

    curso de Bacharelado em Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande - FURG

    -, que se envolveram neste projeto. Agradecemos ainda, ao Liber Studium, Laboratrio

    de Arqueologia do Capitalismo da FURG, Direo de Arte e Cultura da Pr-Reitoria

    de Extenso desta Universidade, Secretaria de Municpio da Cultura do Rio Grande,

    Associao dos Professores da FURG (APROFURG), ao Sindicato do Pessoal Tc-

    nico-Administrativo da FURG (APTFURG), ao DCE da FURG, ao Ponto de Cultura

    ArtEstao e ao Instituto Mario Alvez.

    Agradecemos, sobretudo, aos que lutaram para que hoje pudssemos estar aqui.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulao. Lisboa, Relgio dgua EditoresLtda, 1991.

    CONNERTON, Paul. How Modernity Forgets. Cambridge, Cambridge UniversityPress, 2009.

    24 Bacharel em Direito (FURG, 2007), Advogado (OAB/RS 73.076), Bacharel em Histria/ Patrimnio Cultural (FURG, 2013). Atua nas reas de Direitos Humanos, Direito Criminal,Patrimnio Cultural, Ditaduras de Segurana Nacional na Amrica Latina no perodo Ps-IIGuerra, Direito e Justia Social. Foi convidado para participar da roda de discusso sobre olme Que bom te ver viva de Lcia Murat, no Circuito Resistncia Manifesta.

    25 Fazemos referncia aqui ao lme:Indiana Jones e os Caadores da Arca Perdida, de Ste-ven Spilberg.

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    Paulo, Bienal, 2010.McGUIRE, Randall H. Archology as Political Action. Berkeley and Los Angeles,University of California Press, 2008.

    MENESES, Ulpiano B. A. Histria, Cativa Da Memria? Para um Mapeamento daMemria no Campo das Cincias Social.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,So Paulo, n 34, p. 11, 1992.

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