novos vestígios de povos do passado

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#143 EDIÇÃO OÁSIS NOVOS VESTÍGIOS DE POVOS DO PASSADO CIVILIZAÇÕES PERDIDAS OBESIDADE As causas de uma epidemia contemporânea INDÚSTRIA DA CAÇA ENLATADA Quando leões são criados para serem mortos INVEJA Um caminho para o autoconhecimento

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Page 1: Novos vEstígios dE povos do passado

#143

Edição Oásis

Novos vEstígios dE povos do passado

CIVILIZAÇÕES PERDIDAS

OBESIDADE as causas de uma epidemia contemporânea

INDÚSTRIA DA CAÇA ENLATADAQuando leões são criados para serem mortos

INVEJAUm caminho para o autoconhecimento

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2/38OáSIS . Editorial

por

Editor

PEllEgriniLuis

E m 1999, o alemão Carlo Bergmann encontrou três cacos de cerâmica antiga nas redondezas do oásis de dakhla, a 350 qui-lômetros a oeste do Cairo. a descoberta levou-o a pesquisar

mais, com a ajuda de dois arqueólogos conterrâneos, e em 2001 os três localizaram os vestígios de 27 “estações” ao longo de uma trilha usada no passado, denominada abu Ballas, que corria 350 quilômetros a sudoeste de dakhla, em pleno Saara, e desaparecia de repente. “É a primeira estrada transaariana e mostra que havia expedições faraôni-cas que mergulhavam no deserto”, afirma Stefan Krö, da Universidade de Colônia (alemanha), um dos arqueólogos envolvidos na expedi-ção. Mas Bergmann e outros estudiosos sugerem uma hipótese mais ousada: em vez de uma rota concebida pelos antigos egípcios, ela seria obra de outra civilização, instalada no deserto, cujos conhecimentos permitiram ao Egito faraônico chegar ao seu elevado grau de evolu-ção.

as antigas civilizações que floresceram no deserto do Saara são apenas

O passadO da presença humana na superfície dO planeta, já em sOciedades Organizadas, é

muitO mais antigO e cheiO de mistériOs dO que se pensava até pOucO tempO

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OáSIS . Editorial

por

Editor

PEllEgriniLuis

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algumas das inúmeras culturas misteriosas que desapareceram da face da terra quase sem deixar vestígios. outra delas, a da atlântida, hoje perdida entre o mito e as especulações de arqueólogos “românticos”, também é objeto de considerações na nossa matéria de capa. da mesma forma que as inúmeras culturas, algumas de provável alto grau tecnológico, que surgiram e depois desapareceram na nossa amazônia muito antes desse território ser tomado pelos povos dos quais nossos indígenas são os descendentes na atualidade.tudo para dizer que o passado da presença humana na superfície do planeta, já em sociedades organizadas, é muito mais antigo e cheio de mistérios do que se pensava até pouco tempo.

não deixe de ler também, neste número de oásis, a matéria sobre a “caça enlatada”, na África do Sul. animais, sobretudo leões, são criados e praticamente domesticados simplesmente para servirem de tiro-ao--alvo para caçadores covardes e cruéis. Um horror.

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AR

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EOLO

gIACIVILIZAÇÕES PERDIDAS

Novos vestígios de povos do passado

Santorini, no Mar EgEu: a Erupção Do Vulcão Da ilha, EM 1628 a.c., poDEria tEr DaDo origEM ao Mito Da atlântiDa

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tlântida, a grande ilha descri-ta pelo filósofo grego Platão (427- 347 a.C.) nos livros Ti-meu e Crítias, cuja civiliza-ção teria sido destruída por

terremotos e tsunamis depois de passar por um processo de degeneração, já ganhou dos pesquisadores as mais variadas localizações. Segundo algumas hipóteses, ela ficava: ao sul da Espanha; no litoral da Holanda; na costa atlântica perto do Estreito de Gibraltar; a su-doeste da Inglaterra; na Irlanda; no Mar Ne-gro; ou até mesmo seria o continente america-no.

Para Julia Annas, professora de filosofia da Universidade do Arizona (EUA), as coorde-nadas geográficas da Atlântida não interes-savam muito a Platão; na verdade, ele teria elaborado uma ficção como suporte para discutir temas como governo e poder. Já pesquisadores que buscam o palco dessa su-posta ficção salientam que os eventos descri-tos não teriam ocorrido em um ponto muito distante do lar do filósofo.

O australiano Dale Dominey-Howes, da Uni-versidade de Nova Gales do Sul, é um dos que apostam na ilha de Santorini, no Mar Egeu, cujo vulcão teve uma violenta erupção em 1628 a.C. O vulcão “basicamente entrou em colapso no mar no fim da erupção”, afir-ma ele. No epicentro, calcula-se que as ondas resultantes superaram 100 metros de altu-ra. “O tsunami viajou em todas as direções”, avalia Dominey-Howes. O episódio é ligado ao fim da civilização minoica, na ilha de Cre-ta.

Outra possível localização da Atlântida seria Helike, cidade-estado 150 quilômetros a oes-te de Atenas, sede de uma floresta dedicada ao deus do mar, Poseidon, e conhecida por promover a coexistência pacífica com os es-tados vizinhos. O terremoto que varreu

Aatlântida, amazônia, ilha de páscoa, são apenas alguns dos lugares que abrigaram importantes civilizações, reais ou míticas. a cada dia, a arqueologia encontra mais vestígios desses povos do passado ainda envoltos em mistériopor: EquipE oáSiS

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totalmente Helike do mapa, em 373 a.C., quando Platão estava na casa dos 50 anos, pode tê-lo inspirado a criar o cataclismo que destruiu a Atlântida.

As avenidas da Atlântida

A hipótese de que a Atlântida estaria além do Estreito de Gibraltar ganhou algum fôlego em 2009, quando o jor-nal britânico The Sun divulgou que uma busca feita pelo engenheiro aeronáutico inglês Bernie Bamford com o

uso da ferramenta Google Ocean (uma extensão do Google Earth que combina imagens de satélite e ma-pas marinhos) encontrou no Oceano Atlântico, cerca de mil quilômetros a oeste da costa africana, na região das Ilhas Canárias, uma vas-ta área submersa (ao redor de 20.000 km2) com linhas cruzadas que lembrariam as vias de uma grande me-trópole. Na avaliação de Ba-mford, as linhas – situadas a mais de 5,5 mil metros de profundidade, na Planí-cie Abissal da Madeira – se mostram muito extensas e organizadas para serem algo feito pela natureza. O Google

afirmou que as linhas cruzadas eram dados de sonar co-letados enquanto os barcos mapeavam o leito oceânico, mas não soube explicar o que significavam os pontos em branco entre as linhas.

Amazônia

Um voo para Rio Branco, a capital acreana, feito em 1999 pelo paleontólogo brasileiro Alceu Ranzi (da Universida-de Federal do Acre) pode ter sido o início de uma ampla reviravolta na arqueologia amazônica. Essa região, domi-nada pela floresta tropical, tradicionalmente não era

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a ciDaDE grEga DE Santorini fica SituaDa na borDa Do antigo Vulcão

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considerada lar de civilizações mais desenvolvidas. Mas o que Ranzi viu do alto, graças ao avanço do desmatamento na área, estava longe de parecer obra de uma tribo primi-tiva: uma grande série de figuras geométricas, incluindo retângulos e círculos perfeitos, gravadas no solo.

Vídeo: Mistério na Amazônia: Gigantescos Geo-glifos na Floresta

Ranzi atraiu a atenção de pesquisadores nacionais e es-trangeiros para sua descoberta e, hoje em dia, já foram encontrados mais de 250 geoglifos (nome cunhado por Ranzi) na região do Alto Rio Purus, abrangendo o leste do Acre, o sul do Amazonas, o oeste de Rondônia e o norte da Bolívia. Em artigo publicado na revista Antiquity em 2009, Ranzi, a arqueóloga brasileira Denise Schaan (da Universidade Federal do Pará) e o antropólogo finlandês Martti Pärssinen descrevem os achados:

A civilização do Xingu

A fronteira do Acre com a Bolívia não seria o único re-duto de uma civilização adiantada na Amazônia. O an-tropólogo norte-americano Michael Heckenberger, da Universidade da Flórida em Gainesville, passou parte de 1993 vivendo com a tribo kuikuro, perto da cabeceira do Rio Xingu, e ali ouviu narrativas sobre vestígios de povos antigos nas redondezas. Ele começou a mapear esses lo-cais – traços de estradas, casas e represas – em detalhes e publicou um artigo sobre o tema na revista Science em 2008. Heckenberger suspeita que dúzias de povos evolu-ídos viveram na Amazônia até serem dizimados por do-enças trazidas pelo homem branco.

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o palEontólogo alcEu ranzi, Da uniVErSiDaDE Do acrE (foto DE altino MachaDo

uM DoS MiStErioSoS gEoglifoS Do acrE, proVa DE quE n a rEgião já ViVEu uMa cultura Muito aVançaDa

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“Em geral, as figuras geométricas são formadas por uma vala de cerca de 11 metros de largura e atualmente 1-3 metros de profundidade, com bordas de terra adjacentes com 0,5-1 metro de altura, formadas pela deposição do solo escavado”, explicam os autores. “Os anéis das valas têm diâmetros que variam de 90 metros a 300 metros. As estruturas circulares são mais comuns no sul, enquanto estruturas compó-sitas e retangulares se tornam mais frequentes na direção norte. Quando há duas ou mais estruturas, elas são geralmente ligadas por estra-das de terra. Algumas das estruturas retangulares simples podem ter es-tradas curtas saindo do meio dos lados ou dos cantos. As figuras compostas incluem um retângulo dentro de um círculo ou vice-versa.”

Datados entre os anos 1200 e 1283, esses geoglifos pré--colombianos seriam resquícios de avenidas, praças, sítios cerimoniais, casas, pontes, canais e estradas, espa-lhados ao longo de mais de 250 quilômetros de extensão. A população responsável por essas obras teria atingido 60 mil pessoas, avaliam Denise, Ranzi e Pärssinen – um nú-mero excessivo de habitantes para a capacidade da área.

Hoje se suspeita que o que já foi descoberto representa apenas 10% do total de geoglifos e ruínas existentes na área – o resto estaria coberto pela vegetação. As marcas

são visíveis pelo Google Earth – uma ferramenta precio-sa para os estudos na área, segundo os cientistas, já que é mais fácil observar essas figuras do alto do que no nível do solo.

As estátuas da Ilha de Páscoa são um testemunho de uma cultura que não resistiu a obstáculos criados por ela mesma – e pelos visitantes ocidentais, segundo as mais recentes teorias. Na página ao lado, um dos geoglifos re-centemente encontrados na Amazônia.

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ESquErDa, facES huManaS EM rElEVo EM urnaS funEráriaS Da rEgião Do oiapoquE. DirEita, urna antropoMórfica DoS ínDioS cunaní Do aMapá

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Ilha de Páscoa

Quando o navegador holandês Jacob Roggeveen chegou a esse remoto ponto do Pacífico, em 1722, encontrou uma terra escassamente povoada, cuja “aparência desgastada não daria outra impressão que não fosse a de uma singu-lar aridez e pobreza”. A partir dos relatos dos habitantes locais, encadeou-se uma série de eventos que explicava como a ilha chegara àquela condição: degradação am-biental, superpopulação, disputas entre clãs, surtos de

fome que degeneraram inclusive em canibalismo. O bi-ólogo norte-americano Jared Diamond abordou o caso detalhadamente em seu livro Colapso, de 2005, citando--o como amostra do que os homens podem gerar ao des-truir o ambiente que os abriga.

O antropólogo Terry Hunt, da Universidade do Havaí, e o arqueólogo Carl Lipo, da Universidade Estadual da Califórnia, Long Beach, têm reparos a fazer em relação a esse roteiro. Segundo seus estudos, divulgados em 2006, o desflorestamento, por exemplo, foi causado não apenas pelo corte para a produção de embarcações, mas também pela ação de ratos que vieram nos barcos dos primeiros

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granDE SupErfíciE paViMEntaDa coM pEDraS na zona DE Karouabo, na guiana francESa

na rEgião Do Xingu, braSil cEntral, cErtaMEntE já ViVEraM oS MEMbroS DE VáriaS ciVilizaçõES EXtintaS

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Mas e a descrição de Roggeve-en? Hunt e Lipo não a expli-cam, mas contrapõem a ela o relato de um membro de uma expedição francesa à ilha em 1789: “Em vez de encontrar ho-mens exaustos pela fome (...), deparei, ao contrário, com uma população considerável, com mais beleza e graça do que os que encontrei depois em qual-quer outra ilha; e um solo que, com muito pouco trabalho, ofe-recia excelentes provisões.”

As únicas evidências mais ní-tidas de um colapso popula-cional, segundo Hunt e Lipo, surgiram apenas depois da che-gada de navegadores ociden-tais à ilha. Entre 1722 e 1862,

cerca de 50 navios europeus aportaram ali. Há relatos da difusão de doenças transmitidas sexualmente nos anos 1830, e a varíola se espalhou após a passagem de navios escravos com bandeiras do Peru e da Espanha, nos anos 1860. Em 1877, as doenças e as expedições em busca de escravos reduziram a população pascoana a cerca de 100 pessoas.

Em suma: foi a presença europeia, e não a devastação ambiental, a principal responsável pelo desastre pascoa-no, afirmam Hunt e Lipo. “As coisas funcionaram bem

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ocupantes da ilha. Os dados disponíveis sobre a erosão do solo foram extrapolados de um único ponto da ilha para todo seu território. E as severas ondas de fome pro-duzidas enquanto Páscoa era desmatada têm poucas evi-dências comprobatórias. Pesquisas mais recentes, aliás, apontam na direção contrária: a população da Ilha cres-ceu durante o processo de desflorestamento.

oS rElatoS traDicionaiS Da DErrocaDa Da ilha DE páScoa EStão SEnDo rEViStoS. não há, por EXEMplo, MuitaS EViDênciaS quE confirMEM uMa onDa DE foME quE tEria fEito pErEcEr boa partE DoS SEuS habitantES

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para os antigos ilhéus por sécu-los antes de os forasteiros che-garem”, diz Hunt. “Os visitan-tes europeus viram um estado patético e quiseram saber sobre um passado mais glorioso. O que eles não reconheceram foi que as doenças que haviam introduzido explicavam o triste estado que testemunharam.”

Vista do oásis de Dakhla, no oeste do Egito. O local teria sido ponto de passagem de uma civilização que habitava o deserto, cujos conhecimentos permitiram aos antigos egípcios atingir um elevado grau de evolução.

Civilizações do Saara

Em 1999, o alemão Carlo Bergmann encontrou três cacos de cerâmica antiga nas redondezas do oásis de Dakhla, a 350 quilômetros a oeste do Cairo. A descoberta levou-o a pesquisar mais, com a ajuda de dois arqueólogos conter-râneos, e em 2001 os três localizaram os vestígios de 27 “estações” ao longo de uma trilha usada no passado, de-nominada Abu Ballas, que corria 350 quilômetros a sudo-este de Dakhla, em pleno Saara, e desaparecia de repente. “É a primeira estrada transaariana e mostra que havia expedições faraônicas que mergulhavam no deserto”, afirma Stefan Krö, da Universidade de Colônia (Alema-nha), um dos arqueólogos envolvidos na expedição. Mas

Bergmann e outros estudiosos sugerem uma hipótese mais ousada: em vez de uma rota concebida pelos antigos egípcios, ela seria obra de outra civilização, instalada no deserto, cujos conhecimentos permitiram ao Egito faraô-nico chegar ao seu elevado grau de evolução.

Como reforço à tese, pesquisadores encontraram ferra-mentas de pedra datadas de cerca de 5500 a.C. em Dja-ra, local situado entre os oásis ocidentais e o vale do Rio Nilo. Essas peças só surgiram no vale do Nilo por volta de 500 anos depois. O deserto a oeste do Nilo também

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iMagEM Da ilha DE páScoa Do Século 19, coM aluSão ao SupoSto canibaliSMo quE tEria graSSaDo cEntEnaS DE anoS

antES EntrE a população. para hunt E lipo, não há confirMação hiStórica DE onDa DE foME na ilha

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influência externa no antigo Egito.

Mas não foram esses os únicos segredos expostos pelo deserto ocidental. No sul da Lí-bia, pesquisadores das Univer-sidades de Leicester e Newcas-tle (Grã-Bretanha) encontraram restos de cidades e uma grande rede de canais de irrigação es-palhada por milhares de quilô-metros. As obras são atribuídas aos garamantes, povo cujo ápi-ce se deu nos primeiros séculos depois de Cristo. Eles teriam comerciado com seus contem-porâneos romanos e, por vezes, atacado suas bases. Uma das curiosidades achadas pelos pes-quisadores foi um azulejo de banho romano mil quilômetros

deserto adentro. Os garamantes desapareceram miste-riosamente, mas, para David Mattingly, da Universidade de Leicester, não há dúvida de que eles formaram um dos primeiros Estados saarianos.

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foi objeto de escavações do norte-americano Fred Wen-dorf, da Universidade Metodista do Sul, em Dallas. O material ali descoberto sugere que o culto a animais de criação, importante na época dos faraós, nasceu ali. Para Wendorf, a cultura ali baseada também desenvolveu co-nhecimentos astronômicos, adotados depois pela era pré--dinástica – outro reforço à hipótese de uma inesperada

o DESErto Do Saara, nortE Da áfrica, já foi uM Mar intErior. ao rEDor DElE ViViaM VáriaS iMportantES ciVilizaçõES já DESaparEciDaS

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SA

ÚD

E OBESIDADE

As causas de uma epidemia contemporânea

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cada ano aumenta a quanti-dade de obesos e de pesso-as com excesso de peso no mundo. E, pior, esse número crescente não é mais uma

particularidade de países desenvolvidos, como os Estados Unidos. Segundo a Pesqui-sa de Orçamentos Familiares (POF 2008-2009), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), metade da população adulta brasileira está acima do peso. A mudança no padrão de alimentação – aumento no consumo de comidas industriali-zadas – e a vida sedentária são os principais

fatores de sobrepeso.

Ao longo dos anos, com o aumento da obe-sidade e da preocupação sobre o tema, fo-ram desenvolvidos muitos estudos para se combater esse mal. É muito aceita a hipóte-se de que a obesidade pode ser uma doença sem uma única causa, mas várias. Predispo-sição genética, meio ambiente, vírus e dis-túrbio alimentar estão entre os fatores que podem desencadear um quadro de obesida-de.

Pode ser hereditária

Uma teoria é de que a obesidade pode ser hereditária. Pesquisas feitas pelo Consórcio de Investigação Genética de Traços Antro-pométricos (Giant), que conta com mais de 400 cientistas de 280 instituições de pes-quisa ao redor do mundo, mostraram novos determinantes genéticos relacionados ao alto índice de massa corpórea (IMC) e à dis-tribuição de gordura no corpo.

No primeiro estudo sobre o IMC, os cien-tistas identificaram 32 regiões que podem estar associadas ao IMC, 18 das quais nunca haviam sido relacionadas à obesidade antes. Uma das novas variantes descobertas está no gene que faz a codificação para um

Acomidas que viciam, falha no sistema de compensação neurológico e fatores genéticos mostram por que é tão difícil manter o peso

por: EquipE oáSiS

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receptor de proteína que responde a sinais vindos do estômago e influencia no nível de insulina e no metabo-lismo. Outra variável fica próxima a um gene conhecido por codificar proteínas que afetam o apetite.

Embora se diga que o efeito de cada variante seja mo-desto, os voluntários que têm mais de 38 delas eram, em média, de 6 a 9 quilos mais pesados que os que tinham 22 variantes ou menos. É importante lembrar que a ex-pressão dessas variantes é muito pequena quando se quer determinar se, no futuro, uma pessoa será obesa.

Tanto fatores genéticos quanto ambientais interferem no peso.

No segundo estudo foram encontrados 13 determinan-tes genéticos que influenciam a distribuição de gordura corporal, a razão cintura/quadril. De acordo com essa razão, o fato de a gordura ser armazenada na região do abdômen aumenta o risco de diabetes tipo 2 e doenças cardíacas. Por outro lado, ao se estabelecer no quadril ou coxas, ela pode ser benéfica, nos protegendo desses males.

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Vírus da obesidade

Já pesquisadores da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, acreditam que a obesidade seja trans-mitida de pessoa para pessoa como se fosse uma infec-ção. Não por acaso, os cientistas apelidaram a doença de “infectobesidade”, causada pelo adenovírus 36, uma variação do vírus associado ao resfriado. O estudo foi feito com 124 crianças de 8 a 18 anos e constatou-se que 54% delas eram obesas.

Dezenove crianças apresentavam o adenovírus 36 e, desse total, 78% tinham quadro de obesidade.

Outra observação foi que as crianças que portavam o vírus pesavam, em média, 22 quilos a mais que aquelas que não o tinham. Os cientistas alertam que esse exce-dente pode significar um aumento no risco de outras doenças, como problemas cardíacos, diabetes e doenças no fígado.

A ideia de uma causa viral para a obesidade foi levanta-da uma década atrás por Nikhil Dhurandhar, professor do Centro de Pesquisa em Biomedicina de Pennington, nos Estados Unidos. Ele notou que os frangos que mor-riam durante uma epidemia de gripe (causada pelo ade-novírus) na Índia, nos anos 1980, eram mais gordos, ao invés de serem magros, perfil esperado de um organis-mo doente.

42% de obesos

Pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, estimam que a epidemia de obesidade na Amé-rica do Norte não vai parar até que pelo menos 42% dos adultos estejam obesos. O estudo de matemática modular, que levou em consideração dados de 40 anos do estudo Framingham Heart sobre doenças cardiovas-culares, foi publicado no periódico PloS Computational Biology.

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Gordura vicia

Além da predisposição genética e de um vírus da obesidade, evitar essa doença se torna muito difí-cil, já que alimentos extremamen-te gordurosos e deliciosos estão ao nosso alcance a toda hora. Um artigo que saiu no periódico Na-ture Neuroscience dá uma outra perspectiva do porquê é tão difícil deixar de comer alguns pratos e alimentos gordurosos, mas muito palatáveis. Em uma experiência com ratos foi constatado que aque-les que se alimentavam de comida gordurosa apresentavam um déficit nos receptores de dopamina D2, hormônio que está associado à sen-sação de prazer e satisfação.

No experimento, os ratos foram divididos em três grupos: um que só se alimentava de ração, um que tinha acesso limitado a comidas gorduro-sas e um que poderia comer todos os alimentos gorduro-sos que quisesse. Depois de 40 dias, os ratos que tinham acesso ilimitado à gordura ganharam muito mais peso se comparados aos demais roedores. “O desenvolvimen-to da obesidade em ratos com acesso ilimitado à comi-da palatável está muito associado à piora do sistema de recompensa do cérebro”, escrevem os cientistas.

Os pesquisadores afirmam que déficits similares no sis-

tema de recompensa do cérebro foram reportados em ratos viciados em drogas, como cocaína injetável. Logo, essa deficiência de receptores de dopamina D2 pode levar ao exagero na comilança, contribuindo para a obe-sidade.

Por que as dietas falham?

Segundo cientistas da Universidade da Pensilvânia, se-guir uma dieta de emagrecimento faz com que o cérebro fique mais sensível ao estresse e busque recompensas

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calóricas, como comidas gordurosas. Um experimento feito com ratos mostrou que o nível de cortisol, hormô-nio relacionado ao estresse, é muito maior naqueles que perderam peso em relação ao grupo de controle. Foi constatado que houve mais episódios de descontrole ali-mentar e ganho de peso nos roedores que passaram por dieta. Descontrole com a comida

De fato, a oferta de comida extremamente palatável au-menta cada vez mais. Indústrias trabalham muito com

produtos que priorizem a praticidade e o sabor acentu-ado. Esse tipo de alimento geralmente contém muitas substâncias que, em excesso, fazem mal ao organismo, levando ao ganho de peso, ao aumento de colesterol e de triglicérides, entre outros problemas. “A oferta de alimentos palatáveis de alta caloria favorece episódios de transtorno alimentar compulsivo periódico. Mas também a questão da aprendizagem influi”, diz Herma-no Tavares, médico psiquiatra e coordenador do Am-bulatório dos Transtornos por Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo.

Segundo ele, existe a necessidade de uma figura que zele pela boa alimentação das crianças e pelo apren-dizado alimentar. E hoje, em razão do ritmo de vida e da inserção da mulher no mercado de trabalho, é mais difícil encontrar lares com tal figura de autoridade. “Às vezes, as pessoas comem de maneira equivocada por-que não foram ensinadas como se alimentar de maneira apropriada”, argumenta. Além disso, há estudos que mostram que há doenças que têm fatores contribuintes de origem intrauterina. Maus hábitos alimentares po-dem comprometer a saúde do bebê no período em que ele está na barriga da mãe.

Tavares aponta que a reeducação alimentar seria um bom modo de combater a obesidade. Isso porque ela pode estar associada a outras dependências, como a ansiedade. É possível combater a ansiedade com psico-terapias e medicamentos, mas ainda assim é necessário ter um hábito alimentar saudável. O psiquiatra observa que uma linha de pesquisa da disciplina de telemedicina da Faculdade de Medicina da USP, batizado de Acade

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O quarto pilar seria alimentar um bichinho virtual (represen-tação do aluno), como modo de trabalhar a conscientização e a honestidade consigo mes-mo. O último fundamento é a formação de comunidades para estimular a boa alimentação e a experimentação de novos sabo-res.

Tavares afirma que esse método de reeducação alimentar pode ser muito eficaz, já que se está lidando com um comportamen-to praticado por anos. “É preci-so de métodos muito criativos para se promover uma mudan-ça comportamental. Tudo, cla-ro, num ambiente afetivo, por-que ele facilita essa mudança. A brincadeira do bichinho virtual

pode envolver mais respostas afetivas”, argumenta.

Paladar da mãe influencia na dieta do filho

Estudo publicado no periódico Proceedings of Royal So-ciety B mostrou que a alimentação da mãe na gravidez pode influenciar no paladar do filho. O experimento foi feito com dois grupos de ratos: um em que as mães se alimentavam de comidas com sabores mentolados e ce-rejas, e outro em que elas tinham uma dieta branda.

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mia Nutricional, para estimular a reeducação alimentar.

A Academia Nutricional funcionaria como um colégio, com aproximadamente 3 anos de duração, e se funda-mentaria em cinco pilares. O primeiro diz respeito a ex-perimentar novos sabores e alterar, numa taxa de 3% ao mês, o cardápio da pessoa. Já o segundo pilar se basea-ria na conscientização dos benefícios que cada alimento traz ao corpo. No terceiro momento, o nutricionista agi-ria como um negociador, que tiraria algum alimento do prato do paciente e o substituiria por um mais saudável.

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Os filhotes do primeiro grupo tinham um glomérulo (região do cérebro responsável pelo odor) maior. É a primeira evidência de que os odores no útero podem alterar o modo como o cérebro se desenvolve. Acredita-se que todos os mamíferos desenvol-vam seu paladar do mesmo modo.

Novos modos de emagrecer

Em busca de combater o sobrepeso com mais eficácia, muitos métodos de emagrecimento estão sendo refor-mulados. Entre eles está a contagem de calorias. Os Vigilantes do Peso do Reino Unido im-plantaram recentemente o sistema ProPoints, em que os alimentos ganham pontuação por suas características e seu modo de preparo e não pela quantidade de calorias que possuem (antigo método).

Pesquisas realizadas pela própria instituição constata-ram que o sucesso em emagrecer não diz respeito so-mente à contagem de calorias, mas quão rápido nosso corpo processa os nutrientes. Por exemplo, de acordo com o antigo sistema, uma barra de chocolate e um bife tinham a mesma pontuação. Mas o corpo pode queimar 25% mais energia digerindo proteínas e fibras (carne) que processando açúcares e gordura (chocolate).

O ProPoints trabalha com uma meta de consumo de pontos diários, baseada em gênero, idade, peso e altura. Ao mesmo tempo, há um bônus de pontos por semana

que podem ser gastos em qualquer dia, como preferir. Então, a pessoa, caso tenha um jantar ou uma festa, não precisa se limitar tanto pela dieta. Por enquanto, a me-dida do ProPoints só foi implantada no Reino Unido. Mas possivelmente, em breve, será utilizada pelo Vigi-lantes do Peso do Brasil.

Outro método de emagrecimento que tem sido posto em xeque são os exercícios físicos. Estudos recentes mostram que, a partir de um certo ponto, o corpo para de queimar energia e começa a querer repô-la, fazendo com que a pessoa coma mais e engorde. Um experimen-to realizado na Universidade de Louisiana, nos Estados Unidos, analisou quatro grupos de mulheres com sobre-peso durante 6 meses. No primeiro, elas se exercitavam 72 minutos por semana. No segundo, por 136 minutos. Já o terceiro grupo, por 194 minutos. As mulheres

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membros do último seguiam sua rotina normal, sem exercícios adicionais.

No final do estudo, os pesquisadores não constataram nenhuma diferença significativa de perda de peso en-tre aquelas que se exercitaram em relação ao grupo de controle. Os cientistas sugerem que isso aconteceu em virtude de um sistema de “compensação” do corpo, pois aquelas que se exercitaram compensaram as calorias gastas comendo mais, como uma forma de autorrecom-pensa.

Obsessão por comer

O transtorno alimentar compulsivo periódico (TCAP) é um distúrbio em que, por muitos episódios, a pessoa perde o controle e come até passar mal ou até a comida acabar. Grande parte dos pacientes com esse transtor-no tem sobrepeso e cerca de 30% dos obesos têm esse comportamento. “A perda de controle com a comida não é obesidade. Ela é frequentemente associada a outras formas de perda de controle, como jogo, sexo, compras”, explica Hermano Tavares, coordenador do Ambulatório dos Transtornos por Impulso do Instituto de Psiquia-tria da USP. Esse descontrole é mais comum do que se pensa. Imagine uma noite mal dormida, estresse no trânsito, período de pressão no trabalho somados a um jejum de 12 horas. Depois desse dia, quando for a uma churrascaria, tente se controlar. “A tendência de perder o controle está associada a fatores genéticos e ambien-tais”, conclui.

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INDÚSTRIA DA CAÇA ENLATADAQuando leões são criados para serem mortos

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jornalista britânico Patrick Barkham visitou uma fa-zenda de criação de leões no North Eastern Free State, África do Sul, para investi-gar a relação entre a repro-dução de leões em cativeiro e

a assim-chamada “indústria da caça enlata-da”. A reportagem de Barkham é completada por fotos. A ela acrescentamos um vídeo que

mostra esses “caçadores” em plena ação. De forma covarde e debochada, apenas para se divertir, eles matam animais habituados à presença humana desde que nasceram: le-ões que nunca conheceram a vida selvagem, e que foram soltos de seus recintos horas antes da carnificina.

Eles são adoravelmente bonitos, com um pelo marrom-dourado tão suave que parece escapar por entre meus dedos, como se fosse farinha. Somente quando um dos filhotes de nove se-manas de idade agarra meu braço, usando seus dentes para brincar, é que me lembro de que ele é um leão, um animal selvagem. Estes quatro fi-lhotes, no entanto, não são selvagens. Eles nas-ceram e são mantidos em um pequeno rancho, no meio de um campo desolado, situado cerca de 200 quilômetros ao sul de Johanesburgo. Muitos turistas param para acariciar os filho-tes, mas não se aventuram sobre a colina onde os donos do rancho mantêm quase 50 outros leões, entre jovens e adultos, e dois tigres, todos eles presos no interior de cercados.

O Rancho Moreson é apenas uma das mais de 160 fazendas de criação legal de grandes felinos na África do Sul. Há agora mais leões em cati-veiro (mais de 5 mil) no país do que leões soltos e selvagens (cerca de 2 mil). Os donos dessas fazendas dizem não caçar nem matar os seus

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na áfrica do sul existem mais leões em cativeiro do que em estado selvagem. muitos desses animais são criados especificamente para serem abatidos por turistas ricos da europa e da américa do norte nos programas batizados de “indústria da caça enlatada”

por: patricK barKhaM, Da áfrica Do SulfontE: jornal thE guarDian

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leões. Mas membros de ONGs e de associações protetoras dos animais afirmam que eles costumam vender seu plantel qua-se inteiro para serem mortos e transformados em troféus por caçadores da Europa e da América do Norte, e também por importadores da Ásia, onde partes dos seus corpos são usadas na medicina tradicional. Esse abate fácil de animais em áreas cercadas é chamado de “caça enlatada”, talvez porque caçar assim seja quase tão fácil quanto pegar um doce na bandeja.

As coisas se passam assim: Um leão totalmente crescido, po-rém nascido e criado em cativeiro, é retirado do seu cercado e colocado numa área fechada onde, indiferente ao que está acontecendo, vagueia durante algumas horas antes de ser morto por um homem que empunha uma espingarda, um revolver ou até mesmo uma besta que atira flechas. Quase sempre, o massacre é feito com toda a segurança para o caçador, que permanece de pé na carroçaria do caminhão. Para sentir o prazer de matar, o cliente paga uma soma que varia entre 5 mil e 25 mil libras esterlinas, e toda a transação é completamente legal.

O passeio do leão

Com outros turistas e excursionistas procedentes de Johanes-burgo, pago a soma muito mais modesta de 3,50 libras para simplesmente abraçar alguns leões em Moreson. Esse ran-cho, dedicado à criação de animais em cativeiro, em seu we-bsite convida os turistas a usufruir da caça enlatada de vários animais, não apenas leões, mas também gazelas blesbok – símbolo nacional da África do Sul, búfalos e crocodilos, entre vários outros. Depois de um abraço com os filhotes, participo de um “game drive” através da propriedade de 2 mil hectares. Passamos por rebanhos de gnus, de antílopes azuis, antílo

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pes vermelhos, de elandes. O caminhão para, os animais nos veem, mas não fogem. De acordo com os guias, eles parecem saber quando os visitantes não estão carregando armas para matá-los.

Na outra extremidade da propriedade existe uma casa de fazenda abandonada e, ao redor dela, rondam grandes felinos letárgicos que parecem passar todo o tempo sondando o pró-prio futuro. Um par deles está bem à frente de nós. São dois tigres que parecem bem contentes destruindo carcaças de

frango que apodrecem rapidamente sob o calor do sol africa-no.

Os animais parecem bem cuidados. Mas Cathleen Benade, assistente da fazenda que está desenvolvendo um trabalho de fotografia da vida selvagem, dedicada especialmente aos filhotes, revela que eles foram tirados de suas mães apenas uma hora após o nascimento e entregues a seres humanos que os alimentam com mamadeira durante as primeiras oito semanas de vida.

Depois de escurecer, trancafiados em seus cercados localiza-dos logo abaixo do bar do rancho, os leões rugem continu-amente. Na varanda do bar, Maryke Van der Merwe, filha do proprietário do rancho, explica que, se os filhotes não fossem separados de sua mãe, eles morreriam de fome, pois a mãe não tinha leite. Informa também que a mãe leoa não fica angustiada pela perda dos filhos. “Ela os fica procurando durante algumas horas, mas depois de um ou dois dias acho que ela nem se lembra mais deles”, diz a jovem, que é tam-bém gerente do estabelecimento.

Mas especialistas do bem-estar animal discordam dessa opinião. Os criadores removem os filhotes para que as leoas paridas entrem de novo no cio e se tornem férteis, produzin-do mais uma safra de filhotes. Acontece que para os jovens leões, que na vida normal desmamam aos seis meses de ida-de, a perda do colostro fundamental – o primeiro leite – pode causar sérios problemas de saúde. “Esses criadores dizem que removem os filhotes porque a mãe não tinha leite, mas eu nunca vi isso acontecer na natureza”, diz Pieter Kat, bió-logo evolucionista que já trabalhou com leões selvagens no Quênia e em Botswana. “Leões e tigres em cativeiro podem

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matar os filhotes porque eles estão sob enorme estresse. Mas a principal razão de os criado-res separarem os jovens de suas mães é porque eles não querem que as crias dependam delas. A separação reconduz rapida-mente a fêmea adulta a uma condição de reprodução. Assim sendo, tudo se passa como se fosse a cadeia de montagem de uma fábrica de automóveis”.

A África do Sul desfruta de uma forte tradição de caça, mas al-gumas pessoas expressam pou-co entusiasmo pela forma de “caça enlatada”, considerando isso um rebaixamento desse esporte. O fato é que ainda hoje é legal e possível trazer uma carcaça de leão na volta à Grã--Bretanha ou a qualquer outro lugar da Europa ou da Améri-ca do Norte como um troféu, e grande parte dessa demanda vem do exterior. Grande número de caçadores é atraído pela garantia de su-cesso e pelo preço cobrado: um leão selvagem abatido a tiros em um safári na Tanzânia pode custar 50 mil libras esterli-nas, muito dinheiro cobrado em comparação com as 5 mil libras gastas para se matar um animal criado em cativeiro na África do Sul. Há cinco anos o governo sul-africano proibiu a caça enlatada, exigindo que o animal criado em cativeiro possa viver livremente na savana durante dois anos antes de

ser caçado. Mas os criadores desafiaram essa política nos tri-bunais da África do Sul e um juiz da Suprema Corte decidiu afinal que “essas restrições não eram racionais”. Desde então, o número de animais-troféus caçados e mortos disparou. No período de cinco anos até 2006, 1830 leões-troféus foram ex-portados da África do Sul. No período seguinte de cinco anos, até 2011, 4062 carcaças de animais foram exportadas, repre-sentando um aumento de 122%. A quase totalidade desses números era de animais criados em cativeiro.A demanda do Extremo Oriente também incrementa o lucro dos criadores de leões. Em 2001, apenas dois leões foram

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exportados como “troféus” para a China , Laos e Vietnã. Em 2011, 70 troféus-leão foram exportados para esses países. Como o comércio de partes do corpo de tigres é atualmente ilegal, a demanda de partes do corpo de leões destinadas à medicina tradicional asiática está subindo continuamente. Em 2009, apenas cinco esqueletos de leão foram exporta-dos da África do Sul para o Laos; em 2011 esse número subiu para 496. A exportação legal de ossos de leão e carcaças in-teiras também disparou. “É com certeza uma fonte crescente de receita para essas instalações de reprodução em cativeiro de animais destinados à caça enlatada”, diz Will Travers, da ONG Charity Born Free.

Os criadores argumentam ser melhor que os caçadores ati-rem num leão criado em cativeiro do que pôr mais ainda em

perigo as populações selvagens. Mas ambientalistas e grupos que trabalham para o bem-estar animal desmentem esse ra-ciocínio. Na África, as populações selvagens de leões caíram 80% em 20 anos. Por isso, vê-se que o surgimento de fazen-das de leões destinados à caça enlatada não tem protegido os leões selvagens. Na verdade, de acordo com Fiona Miles, di-retora da Lionsrock, um santuário de grandes felinos na Áfri-ca do Sul, ela alimenta e estimula a caça ao animal selvagem. A criação de um mercado para a caça enlatada de leões cria uma etiqueta de preço sobre a cabeça de cada leão selvagem, diz Fiona. Criam um incentivo financeiro para a população local, que passa a conspirar em sociedade com os caçadores furtivos ou fazendo vista grossa para a matança ilegal de le

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enlatada os reduz a uma simples mercadoria, um objetode tiro-ao-alvo, algo que pode ser comercializado e usado como por quem vai a um parque de diversões dar uma volta na roda-gigante”.

Um uso alternativo para os leões criados em cativeiro pode ser o turismo. Fomos dar um “passeio do leão”, em companhia de Martin Quinn, um educador conservacionista e “leão whisperer” (aquele que sussurra no ouvido do leão). Trata-se de passear pela estepe com três leões brancos adolescentes que foram criados no rancho Moreson e treinados por Quinn e por seu assistente, Thompson. Esses impres-sionantes leões brancos circulam ao nosso redor, correm, para em seguida deitar-se na relva, como se estivessem prontos para uma emboscada. Armados apenas com pedaços de madeira, Quinn e Thompson conseguem controlá-los, ao mesmo tempo em que nos ad-vertem para não esquecer que eles ainda são

animais selvagens. A experiência pode ser enervante para algumas pessoas, mas Quinn espera que empreendimentos como esse possam con-vencer o Rancho Moreson e outros criadores que um leão vivo vale mais do que um morto. Quinn afirma que desde que começou a trabalhar com os leões no rancho, em janei-ro último, os proprietários não venderam mais animais para serem caçados. Ele espera que o rancho acabará permitindo a descendentes de seus animais cativos que cresçam no meio selvagem.

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ões. Existem também muitos caçadores que iniciam matando animais criados em cativeiro, tomam gosto pela matança, e decidem mudar para a caça real ao animal selvagem.“Essas fazendas são verdadeiras fábricas para a produção de leões. Isso é chocante”, continua Fiona Miles. Ela decidiu co-meçar a trabalhar para a proteção dos leões depois de assistir a um documentário sobre a caça enlatada. “O leão é conhe-cido em todo o mundo como o rei das selvas, um verdadeiro ícone do mundo animal. É assim que ele aparece nos livros de história, nos romances de aventura e na publicidade. A caça

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Os criadores muitas vezes se justificam reivindicando que seus leões destinam-se a programas de conservação. Mas exemplos de leões criados em cativeiro que se tornam nova-mente animais selvagens são incrivelmente raros. Até mesmo os zoológicos mais respeitáveis não conseguiram estabelecer um programa de sucesso para a liberação de leões criados em cativeiro de volta à vida selvagem.

Pieter Kat, fundador da ONG Charity Lion Aid, diz que os passeios-do-leão constituem simplesmente mais uma fonte de renda para os criadores, com lucros muito menos impor-tantes do que as vendas para a caça enlatada. Marike Van

Der Merwe, por seu lado, duvida que os passeios-do-leão de Quinn possam substituir a renda que sua fazenda obtém com a venda de seus leões: “Nossa intenção é mantê-los conosco até os seis meses e, em seguida, vendê-los a outros parques de leões”, diz ela . Marike insiste que as informações exis-tentes no site do seu rancho estão erradas, que na verdade a intenção deles não é criar leões para a caça enlatada: “Nós os vendemos para outras pessoas e fazendas que têm licença para caçar leões. O que eles fazem com os animais que com-pram nós não sabemos. Mas nós não fazemos caça enlatada”.

Distante três horas de carro do Rancho Moreson, fica Lions-rock, uma ex-fazenda de criação de leões transformada em santuário para cerca de 80 grandes felinos que sofreram os abusos da reprodução forçada. Alguns vêm de fazendas de

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no tempo. Mas certamente não tem espaço suficiente para abrigar cada leão criado em cativeiro na África do Sul. Várias instituições de caridade e proteção aos animais que traba-lham na África do Sul querem uma moratória para o funcionamento das fazendas de criação de leões por temerem que, se a proibição for promulgada de modo abrupto, milhares de leões serão simplesmente mortos ou despeja-dos, soltos na natureza sem nenhum preparo para a sua sobrevivência.

Marike Van Der Merwe não tem certeza de que uma proibição rigorosa da criação em ca-tiveiro e da caça enlatada de leões e de outros animais selvagens será uma coisa boa para o país. “Existe um montão de pessoas do ex-terior que vêm à África do Sul simplesmente para atirar em leões. Para se fazer fotografar junto a um animal abatido, para levar um tro-féu para seu país e poder dizer aos amigos ‘Eu atirei num leão’. Essas pessoas certamente

trazem dinheiro para o nosso país”. Ela não vê nada de errado em caçar leões ou mantê-los em cativeiro. Na verdade, ela diz ser parte de uma família que ama os animais: “Nós vivemos e crescemos com eles. São como ter bebês em casa. Quando eles ainda são bem pequenos, andam ao redor de nós, ao re-dor de nossas casas e querem nos seguir para todo lado...”

Vídeo: Este vídeo mostra a chocante e muito lucrati-va indústria da caça enlatada. Surpreendentemente, essa prática permanece legal na África do Sul

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criação locais, mas a ONG Quatro Patas, por exemplo, tam-bém já resgatou animais mantidos em condições desumanas em zoológicos na Romênia, na Jordânia e no Congo. Ao con-trário do que acontece nas fazendas de criação de leões, os animais de Lionsrock não têm a permissão de se reproduzir. Mas, em vez de viverem dentro de cercados que mais pare-cem caixas, como em Moreson, eles aqui vivem soltos, em grupos familiares de até dez leões.

Lionsrock pode realojar mais 100 leões, e pretende fazê-lo

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INVEJAUm caminho para o autoconhecimento

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e origem indiana, residente em Nova York, Parul Sehgal é uma das editoras do “The New York Times Book Re-view”. Detentora de vários prêmios pela excelência do seu trabalho jornalístico e de crítica literária.

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O que é a inveja? O que a causa e por que nós a amamos secretamente? nenhum estudo jamais conseguiu capturar sua “solidão, longevidade, exaltação cruel” - diz parul sehgal, a não ser pela ficção. numa meditação eloquente ela busca em páginas da literatura para mostrar como a inveja não é tão diferente de qualquer outra busca pelo autoconhecimento

VíDEo: tED – iDEaS Worth SprEaDingtraDução: guStaVo rocha. rEViSão: lEonarDo SilVa

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Video da conferencia de Parul Sehgal

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Tradução integral da conferencia de Parul Sehgal

Bem, quando eu tinha oito anos, uma aluna nova entrou na classe, e ela era tão impressionante, como uma nova aluna sempre é. Ela tinha cabelos reluzentes e volumosos e um estojo de lápis boniti-nho, sabia todas as capitais dos estados, ótima em ortografia. E eu não me aguentei de inveja naquele ano, até que eu criei um plano maligno. Então eu fiquei até mais tarde um dia na escola, um pou-co tarde demais, e me escondi no banheiro das meninas. Quando a barra ficou limpa, eu surgi, me esgueirei até a sala de aula, e peguei o livro com as notas da escrivaninha do professor. E então, eu fiz. Eu mexi nas notas da minha rival, só um pouco, só diminuí alguns 10’s. Todos os 10’s. (Risos) Eu me preparava para colocar o livro de volta na gaveta, quando, espera aí, alguns dos meus outros colegas tinham notas muito boas também. Então, num delírio, eu corrigi as notas de todos, não imaginariamente. Eu coloquei 7’s. e coloquei para mim mesma vários 10’s, só porque eu estava lá, sabem, eu po-dia.E eu ainda fico desconcertada com meu comportamento. Não entendo de onde veio a ideia. Não entendo por que me senti tão bem fazendo aquilo. Me senti ótima. Não entendo por que nun-ca descobriram. Quero dizer, deve ter ficado descaradamente óbvio. Nunca descobriram. Mas acima de tudo, fico desconcertada, por que me incomodava tanto que essa garota, essa garotinha, era tão boa em ortografia? A inveja me desconcerta. É tão misteriosa, e tão difundida. Sabemos que bebês têm inveja. Sabemos que os prima-tas têm. Pássaros azuis têm uma tendência. Sabemos que a inveja é a causa número um de assassinato de cônjuges nos Estados Unidos E mesmo assim, nunca li um estudo que analise sua solidão ou lon-gevidade ou exaltação cruel. Para isso, temos que ir para a ficção, porque o romance é o laboratório que estudou a inveja em todas as configurações possíveis. Na verdade, não sei se é exagero dizer que se não existisse a inveja, será que teríamos literatura? Bem, sem a infiel Helena não haveria “Odisseia”. Sem o rei invejoso não haveria “As Mil e Uma Noites”. Não haveria Shakespeare. Aí se vão as listas

de leitura do ensino médio, porque perderíamos “Som e a Fúria”, perderíamos “Gatsby”, “O Sol Também de Levanta”, perderíamos “Madame Bovary”, “Anna K”. Sem inveja não haveria Proust. E agora, quero dizer, sei que está na moda dizer que Proust tem a resposta para tudo, mas no caso da in-veja, ele realmente tem. Este ano é o centenário de sua obra--prima “Em Busca do Tempo Perdido”, e é o estudo

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Tradução integral da conferencia de Parul Sehgal

mais completo de inveja sexual e somente competitividade comum, o meu tipo, que podemos esperar conseguir. (Risos) E pensamos em Proust, pensamos nas partes sentimentais, certo? Pensamos em um garotinho tentando dormir. Pensamos numa madeleine mo-lhada em chá de lavanda. Esquecemos como sua visão era rigorosa. Esquecemos como ele era impiedoso. Quero dizer, esses são livros que Virginia Woolf descreveu serem tão fortes quanto catgut. Não sei o que é catgut,mas vamos acreditar que seja algo formidável.Vamos ver por que eles se dão tão bem, o romance e a inveja, a inveja e Proust. Será que é tão óbvio que a inveja, que se resume a pessoa, desejo, impedimento, é uma fundação de narrativa tão sólida? Não sei. Acho que chega bem perto, porque vamos pensar no que acontece quando sentimos inveja. Quando sentimos inveja, contamos a nós mesmos uma história. Contamos a nós mesmos uma história sobre as vidas de outras pessoas, e essas histórias nos dão um sentimento terrível porque elas são feitas para que nos sin-tamos terríveis. Como contadores da história e plateia, sabemos exatamente que detalhes incluir, para apertar mais a faca. Certo? A inveja nos transforma em romancistas amadores, e isso é algo que Proust entendia.

No primeiro volume, No Caminho de Swann, a série de livros, Swann, um dos personagens principais, tem muito carinho por sua amante e como ela é boa na cama e, de repente, no decorrer de algumas sentenças, e essas são sentenças proustianas, então elas são longas como rios, mas no decorrer de algumas sentenças, de repente, ele recua e se dá conta: “Espera aí, tudo que eu amo nesta mulher qualquer um amaria nela. Tudo que ela faz que me dá pra-zer poderia dar prazer a qualquer outro, talvez exatamente agora. “E essa é a história que ele começa a contar para si mesmo, e daí em diante, Proust escreve que todo encanto novo que Swann encontra em sua amante, ele adiciona à sua “coleção de instrumentos em sua câmara de tortura particular”.

Bem, Swann e Proust, temos que admitir, eram notoriamen-te invejosos. Sabem, os namorados de Proust tinham que sair do país se quisessem terminar com ele. Mas você não precisa ser tão invejoso para admitir que é difícil, certo? A inveja é desgastante. É um sentimento faminto. Precisa ser alimenta-do.

E do que a inveja gosta? A inveja gosta de informação. A inveja gosta de detalhes. A inveja gosta de cabelos reluzen-tes e volumosos, de estojo de lápis bonitinho. A inveja gosta de fotos. É por isso que o Instagram fez tanto sucesso. (Risos) Proust conecta as linguagens do conhecimento e da inveja. Quando Swann tem seus ataques de inveja, e de repente ele está ouvindo pelos corredores e subornando os servos de sua

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amante, ele defende esses comportamentos. Ele diz: “Sabe, veja, sei que você pensa que isso é repugnante, mas não é diferente de inter-pretar um texto antigo ou observar um monumento”. Ele diz: “Eles são investigações científicas com valor intelectual real”. Proust está tentando nos mostrar que a inveja é intolerável e nos faz parecer ridículos, mas ela é, em seu ponto crucial, uma busca por conheci-mento, uma busca pela verdade, a verdade dolorosa, e na verdade, segundo Proust, quanto mais dolorosa a verdade, melhor. Mágoa, humilhação, perda. Essas eram as avenidas para o conhecimento, para Proust. Ele diz: “Uma mulher de que precisamos, que nos faz sofrer, gera em nós uma gama de sentimentos muito mais profun-dos e vitais do que um homem de gênio forte que nos interesse”. Ele está nos dizendo para sair e encontrar mulheres cruéis? Não, acho que ele está tentando dizer que a inveja nos revela a nós mes-mos. E será que algum outro sentimento nos expõe deste modo em particular? Será que algum outro sentimento nos revela nossa agressão e nossa terrível ambição e nosso direito? Será que algum outro sentimento nos ensina a olhar com tal intensidade peculiar?

Freud escreveria sobre isso mais tarde. Um dia, Freud recebeu a visita de um jovem muito ansioso, que estava sendo consumido pelo pensamento de sua mulher o traindo. E Freud diz: “Há algo estranho com esse cara, porque ele não está olhando para o que sua esposa está fazendo. Porque ela é inocente; todos sabem disso. A pobre criatura está simplesmente sob suspeita por nenhum motivo. Mas ele está procurando coisas que sua esposa está fazendo sem perceber, comportamentos involuntários. Será que ela está sorrin-do demais aqui, ou será que ela esbarrou em um cara ali acidental-mente?” [Freud] diz que o homem está se tornando o zelador do inconsciente de sua esposa.

O romance é muito bom nesse ponto. O romance é muito bom em descrever como a invejamos treina a olhar com intensidade, mas

sem exatidão. Na verdade, quanto mais intensamente invejo-sos somos, mais nos tornamos residentes da fantasia. E por isso, acredito, que a inveja não nos atiça a fazer coisas violen-tas ou coisas ilegais. A inveja nos incita a nos comportar de maneiras que são freneticamente inventivas. Bom, pensando em mim mesma com oito anos, eu reconheço, mas também penso numa história que ouvi no noticiário. Uma mulher de 52 anos de Michigan foi pega criando uma perfil falso no Facebook, do qual ela enviava mensagens perversas e terrí-veis para ela mesma, por um ano. Por um ano. Um ano. E ela estava tentando incriminar a nova namorada de seu ex-na

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morado, e tenho que confessar que, quando ouvi isso, eu só reagi com admiração.(Risos) Porque, quero dizer, sejamos realistas. Que criatividade enorme, senão equivocada. Certo? Isso é algo de um romance. Isso é algo de um romance de Patricia Highsmith.

Bom, Highsmith é uma das minhas favoritas, particularmente. Ela é a mulher brilhante e bizarra das cartas americanas. Ela é a autora de “Pacto Sinistro” e “O Talentoso Mr. Ripley”, livros que tratam exatamente de como a inveja confunde a nossa mente e, uma vez nessa esfera, nesse reinado da inveja, a membrana entre o que é e o que poderia ser pode ser perfurada em um instante. Vejam Tom Ripley, seu personagem mais famoso. Agora, Tom Ripley vai desde querer você ou querer o que você tem até ser você e ter o que você uma vez teve, e você está sob as tábuas do chão, ele responde pelo seu nome, ele usa seus anéis, esvaziando sua conta bancária. Essa é uma maneira de enfrentar.

Mas o que nós fazemos? Não podemos seguir o caminho de Tom Ripley. Não posso dar 7’s ao mundo, por mais que eu realmente queira, às vezes. E é uma pena, porque vivemos em tempos de inve-ja. Vivemos em tempos de ciúmes. Quero dizer, somos todos bons cidadãos da mídia social, não somos, onde a moeda é a inveja?

Será que o romance nos mostra uma saída? Não tenho certeza. Então vamos fazer o que os personagens sempre fazem quando não têm certeza, quando possuem um mistério.Vamos até a Baker Stre-et, nº 221B, para perguntar a Sherlock Holmes. Quando as pessoas pensam em Holmes, elas pensam que seu nêmesis é o Professor Moriarty, certo, essa mente brilhante do crime. Mas eu sempre preferi o [Inspetor] Lestrade, que é o diretor com cara de rato da Scotland Yard, que precisa desesperadamente de Holmes, precisa de engenhosidade de Holmes, mas tem rancor dele. Oh, parece tão familiar para mim. Então, Lestrade precisa da ajuda dele, tem ran-

cor dele, e meio que se remói em amargura no decorrer dos mistérios. Mas enquanto eles trabalham juntos, algo come-ça a mudar, e finalmente em “Os Seis Bustos de Napoleão”, quando Holmes entra, e deslumbra todos com a solução, Lestrade se vira para Holmes e diz: “Não sentimos inveja de você, Sr. Holmes. Estamos orgulhosos de você.” E ele diz que não há um único homem na Scotland Yard que não gostaria de apertar a mão de Sherlock Holmes.É uma das poucas vezes que vemos Holmes comovido nos mistérios e eu acho muito comovente, essa pequena cena, mas também é misteriosa, certo? Parece que trata da inveja como um problema de geometria, não um sentimento. Sa-bem, num momento Holmes está do lado oposto a Lestrade. No próximo, eles estão do mesmo lado. De repente, Lestrade se deixa admirar essa mente de que ele tem rancor. Será que pode ser tão simples? E se a inveja for mesmo somente um problema de geometria, só uma questão de onde nos permiti-mos estar em relação a uma outra pessoa? Bem, talvez assim não sentiríamos rancor da excelência de alguém. Poderíamos nos alinhar com ela.

Mas eu gosto de planos de contingência. Então, enquanto esperamos isso acontecer,vamos lembrar que temos a ficção como consolo. Só a ficção já desmistifica a inveja. Só a ficção já a domestica, coloca-a na mesa. E olhem só quem ela reú-ne: o amável Lestrade, o terrível Tom Ripley, o louco Swann, o próprio Marcel Proust. Estamos em excelente companhia. Obrigada. (Aplausos)

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