vésperas do notariado brasileiro um passeio histórico às fontes medievais

Upload: sergio-jacomino

Post on 10-Oct-2015

42 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

O texto é simples roteiro para o áudio-visual apresentado no transcurso do XXVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado em Foz de Iguaçu, Paraná entre os dias 19 a 23 de setembro de 2001. Trata-se de um trabalho em curso. Disponibilizado para críticas, adendos, corrigendas e consertos. Agradeço sugestões [sergiojacomino@gmail]. Atualizado em 14.9.2014.

TRANSCRIPT

  • VSPERAS DO NOTARIADO BRASILEIRO

    UM PASSEIO HISTRICO S FONTES MEDIEVAIS

    SRGIO JACOMINO REGISTRADOR DE IMVEIS

    Quinto Registro de Imveis de So Paulo

    19 DE SETEMBRO DE 2001

  • Vsperas do notariado brasileiro um passeio histrico s fontes medievais*

    SRGIO JACOMINO

    5o Registrador Imobilirio de SP, Capital

    Sumrio Vsperas do notariado brasileiro um passeio histrico s fontes medievais .................... 1

    Introduo ..................................................................................................................... 2 O (belo) nome do cartrio ............................................................................................ 3 Tabelliones, tabularii ou notarius? .............................................................................. 4

    Novela XLIV ............................................................................................................ 5 Notrio, desde 1994. Tabelio desde sempre? ............................................................. 9 Os antecedentes dos Regimentos de 1305 .................................................................. 10 Regimento de 12 de janeiro de 1305 .......................................................................... 13 Regimento de 15 de janeiro de 1305 .......................................................................... 22

    Requisitos formais .................................................................................................. 40 Os clrigos e as atividades tabelioas....................................................................... 40 Pelo descumprimento das prescries: pena de morte ........................................... 40 Concluses .............................................................................................................. 41

    Apndice ..................................................................................................................... 42 xxvij. arjgoo .......................................................................................................... 49 xxviij. artigo. ......................................................................................................... 49 Doc. VI Nov. 44 .................................................................................................. 54

    Praefatio .......................................................................................................................... 54 Cap. I .............................................................................................................................. 54 Cap. II ............................................................................................................................. 55

    Doc. VII .................................................................................................................. 57 Cronologia dos Reis de Portugal ............................................................................ 58

    * O texto simples roteiro para o udio-visual apresentado no transcurso do XXVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imveis do Brasil, realizado em Foz de Iguau, Paran entre os dias 19 a 23 de setembro de 2001. As pesquisas foram facilitadas pelo empenho pessoal da querida amiga FTIMA RODRIGO, amante da cultura portuguesa. Agradeo ao Sr. Dr. ANTNIO MANUEL HESPANHA pelas sugestes e amvel disponibilidade. De sua excelente obra As Vsperas do Leviathan (Coimbra: Almedina, 1994, 682p.) o estmulo e a inspirao para o ttulo deste opsculo. Trata-se de um trabalho em curso. Disponibilizado para crticas, adendos, corrigindas e consertos. Agradeo sugestes [sergiojacomino@gmail]. Atualizado em 14.9.2014.

    1

  • Introduo O texto que adiante se segue serviu de base para a apresentao de udio-visual, sucedido de produtivo debate com a platia presente nos trabalhos plenrios do Encontro dos Registradores de Imveis do Brasil, realizado em Foz de Iguau, Paran.

    O mote para esta aventura, considerada a especializao do autor e seus parcos recursos, temerria por embrenhar-se na espinhosa seara da pesquisa histrica, foi dado por uma crtica apressada, publicada no jornal paulista O Estado de So Paulo, na sua edio de 21 de abril de 1997, em que importante autoridade sustentava, com ares olmpicos, que a atividade notarial no Brasil teria sido concebida no bojo das discusses que redundaram no Cdigo Civil de 1916.

    A crtica que exsurge do inusitado artigo eventualmente ser procedente. No

    tanto no aspecto que parece sugerir uma desconcertante falta de conhecimento histrico ao apontar, singelamente, o surgimento das atividades notariais e registrais parelhamente ao advento do Cdigo Civil brasileiro. Tampouco se deve levar em conta o tom invectivador, prprio do discurso poltico, de indisfarvel vis ideolgico, que parece ser a matriz furtada alhures para a manifestao tacanha. Quem sabe, com melhor proveito, a invectiva acrimoniosa devesse ser entendida como censura ao estado atual das atividades, seja pela subalternao que lhe imposta contra a sua prpria natureza, exaurindo-lhes as possibilidades de transformao e condenando-as s cadeias de um estatismo burocrtico, seja pela atomizao normativa, que torna o seu exerccio disfuncional em tempos de integrao e conexo, seja ainda pela sinecura normativa institucional, que acaba marginalizando-as no contexto das polticas pblicas que devem ser encetadas com o fim de se consagrar a segurana jurdica.

    Enfim, somente se pode conceber, na pureza da instituio que se consolidou no

    seu longo percurso multissecular, a atividade tabelioa como uma funo pblica exercida de maneira independente, sem relao hierrquica seja em relao aos funcionrios a servio da administrao do Estado, seja em relao a outros rgos pblicos.

    O que se ver a seguir que desde os alvores da instituio, e ao cabo da larga

    tradio do direito portugus, pouca coisa mudou, remanescendo, admiravelmente inclume, o perfil bsico do tabelio medieval portugus at os dias de hoje. Se pode dizer, seguramente, que poucas instituies sero to radicalmente tradicionais quanto a do tabeliado brasileiro.

    Sem que se intentasse manejar um cotejo das prticas atuais com as matrizes do

    tabeliado de antanho o que se afasta dos objetivos deste opsculo o leitor no deixar, contudo, de divis-las claramente.

    Busquei reproduzir os textos originais que minguam nas bibliotecas

    especializadas, propiciando ao pesquisador de hoje o acesso a documentos a que dificilmente ter acesso em virtude do escasso interesse que o tema desperta nos meios acadmicos.

    Aventurei-me a trazer alguns elementos reflexo dos cartorrios brasileiros a

    respeito dos nomes com os quais mantm, logo se ver, estranha relao de atrao e repulsa. Runas lingusticas para alguns, por outros, expresses consideradas verdadeiras

    2

  • antiqualhas vocabulares. As palavras cartrio e tabelio ainda resistem bravamente investida saneadora que a autoridade higienicamente tem intentado, debalde, expurgar do corpo legal. Mas de onde vem a fora da palavra cartrio, que apesar de proibida no cala? Quando se formou o vocbulo tabelio? Qual a diferena entre o notrio e o tabelio?

    Enfim, a pesquisa trouxe baila elementos que nos levam a concluir, algo

    perplexos, que as transformaes que a atividade tabelioa e a prpria sociedade brasileira reclamam, tardam j uns bons sculos para se concretizar. Veremos que os laivos de procedimentos notariais medievais ainda resistem bravamente incrustados na praxe cartorria, mantidos num ambiente ocluso e de certo modo refratrio a toda mudana estrutural e institucional.

    Seja como for, a manifestao daquela autoridade foi o ponto de partida para estas ligeiras reflexes, que se no devem iniciar sem antes proferir o nome cartrio que hoje suporta o peso da incompreenso e do preconceito. Vamos passar rapidamente pelas Novellae Constituciones de Justiniano, para justificar o ntido enlace do tabeliado portugus com o notariado latino. Em seguida, vamos nos deter mais amide nos primeiros regulamentos conhecidos dos tabelies portugueses ambos os regimentos de janeiro de 1305, de D. Dinis. Este o objetivo singelo deste trabalho: trazer aos estudiosos os primeiros regulamentos portugueses disciplinando a atividade dos tabelies.

    O (belo) nome do cartrio A conhecida palavra portuguesa finca razes em boa fonte latina. Na idade mdia, os importantes documentos notariais, alguns apgrafos, outros originais, eram conglomerados em colees denominadas cartulrios donde cartrios, do baixo latim chartulatium, de chartula, que vem de nos dar a belssima palavra cartrio1. De pequenas colees depositadas em igrejas, mitras, mosteiros, arquivos reais etc., muitas vezes em pequenos arquivos ou escritrios, a palavra sofre mutaes e chega, em plena maturidade, complexa instituio encarregada do registro pblico, garantindo a publicidade, eficcia, autenticidade, segurana dos atos e negcios jurdicos. Essas colees serviram para conservar os documentos lavrados pelos notrios medievais, evitando-se, assim, a disperso e tm permitido, ao longo dos sculos, que se recompusessem os originais que se perderam. Outra acepo nos d JOO PEDRO RIBEIRO, que registra em suas clssicas Dissertaes que se d o nome de Chartularios, ou Cartularios (em vulgar Cartairos,

    1 O timo da palavra charta. O nosso AUGUSTO MAGNO perfilha a palavra no seu Dicionrio Etimolgico da lngua latina ligando-a, nos desdobramentos, a chartarium (arquivo), chartula (breve escrito) etc. Alm desses, diz ele, a latinidade medieval usou chartarium e, diretamente, daquele diminutivo, chartularium, arquivo, fonte do port. [ugus]cartrio e carturlrio. Em portugus, derivou em cartrio, cartorrio, cartorista etc. MAGNE. Augusto. Dicionrio etimolgico da lngua latina. Vol. III, Rio de Janeiro: Ministrio da Educao e Cultura INL, 1953, p. 337, passim. Em DU CANJE: 1. Charta, Carta, Chartula, Instrumentum, contractus, conventio, quibus prdiorum cterarumque rerum cessiones et venditiones confirmantur et rat habentur, et emptores, aut qui quovis modo rem quampiam compararunt, jus suum in proprietate demonstrare possunt, quod ostensio chartarum dicitur in Legib. Baronum Scoti seu Quoniam Attach. cap. 3. 4. cap. 25. . 2. Lex Aleman. Etc. DU CANGE, et al., Glossarium mediae et infimae latinitatis, d. augm., Niort: L. Favre, 18831887, t. 2, col. 292a. 3

  • ou Cartarios, que s vezes sinnimo de Cartrios) aos Cdices em que se acham transcritos os ttulos e documentos de algumas Corporaes.2 Os cartrios serviram desde sempre para o robustecimento da prova. Diz MARCELLO CAETANO que a razo de se terem salvado tantos documentos notariais repousa na necessidade que tinham os proprietrios de conservar os ttulos justificativos de seu domnio. Diz que os cartulrios, cartrios ou cartrios (de Charta) pertencem sobretudo s grandes corporaes monsticas ou s mitras, que possuam avultados patrimnios, constitudos s vezes por centenas de prdios, fosse em plena propriedade, fosse em senhorio direto (prdios foreiros).3 V-se que, ao lado do registro notarial e veremos logo abaixo que os tabelies estavam obrigados a zelar e conservar diligentemente as notas em seus livros de registro sempre houve uma tendncia natural de constituio de flios que serviam para se evitar o extravio de documentos volantes e principalmente perpetuao dos ttulos para a prova e justificao de direitos. Os cartrios que ento se constituam nessas corporaes monsticas tambm nos arquivos reais, tribunais ou relaes, at na Universidade de Coimbra prefiguravam j, nitidamente, a feio que os cartrios de registro teriam no futuro: territorialidade, concentrao, segurana, perpetuidade, indelebilidade, autenticidade, eficcia probatria etc. Eram inmeros os cartrios que se foram constituindo nessas instituies. So bastante conhecidos dos diplomatistas e palegrafos portugueses, fonte preciosa de pesquisas. Citam-se, amide, Cartrio de Santo Thyrso, Cartrio do Mosteiro de So Joo de Tarouca, Cartrio de Pombeiro, Cartrio da S de Viseu, Cartrio de Lorvo, Cartrio da Cmara da Torre de Moncorvo, Cartrio do Convento de Tomar, Cartrio de Alcobaa, Cartrio de Pendorada, Cartrio de S. Simo da Junqueira, etc. Lstima que a bela palavra cartrio venha experimentando nos dias que correm um obtuso desprestgio, a tal ponto de ter sofrido violento expurgo, com ares de saneamento, da prpria Lei 8.935/91, onde a ela j no se acha qualquer referncia.

    Tabelliones, tabularii ou notarius? Na origem das atividades, tendo como referncia as fontes romanas do perodo imperial (sc. III), havia um tipo muito especial de escriba profissional, dedicado escriturao dos negcios jurdicos dos particulares: os tabelliones. A fonte amide citada como referncia para se conhecer certos detalhes da atividade do tabellio so as Novellae ou novellae constitutiones, parte do Corpus Iuris Civile, de Justiniano. Publicadas entre os anos de 535 e 539, essas constituies vieram a lume depois de completados os trabalhos da codificao justiniania e visaram suprir o cdice de deficincias que logo se sentiram.4

    2 RIBEIRO, Joo Pedro. Dissertaes chronologicas e criticas. 2a ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1896, t. V, dissertao XIX, p. 3. 3 CAETANO, Marcelo. Histria do direito portugus. 4a ed. Lisboa: Verbo, 2000, p. 243. 4 SMITH, William, D.C.L., LL.D. A Dictionary of Greek and Roman Antiquities. London: John Murray, 1875, voce Novellae.

    4

  • bem sabido que o direito justinianeu espraiou-se pela Europa no bojo da reconquista empreendida pelo Imperador Justiniano, apoiado pelos generais Belisrio e Narss. Chegando ao imprio romano-germnico e informando o direito peninsular, serviu de base para a lenta gestao das instituies notariais. Da a denominao consagrada de notariado do tipo latino. Interessa-nos revelar para os estudiosos brasileiros o contedo das novelas, especificamente no que se referem atividade tabelioa. Vamos destacar a Novela XLIV, em seu prefcio, captulos I e II, bem como o seu eplogo. De igual modo vamos comentar a XLVII (prefcio, I, II e eplogo) e a LXXIII (prefcio, captulos I a IX e eplogo). Publicamos a ntegra do texto latino no apndice (docs. VI, VII e VIII) com traduo e comentrios abaixo. Novela XLIV

    Praefatio. Litem paulo ante audivimus praesenti legi praebentem occasionem. Ex persona quidem mulieris cuiusdam ferebatur documentum, litteras quidem eius non habens (erat enim harum ignara), completum autem a tabellione et tabulario, subscriptionem habens eius, et testium ostendens praesentiam. Deinde dum quaedam dubitatio super eo fieret, muliere dicente, non esse a se delegata, quae charta loquebatur, qui litem audiebat quaerebat a tabellione cognoscere negotii veritatem, denique tabellionem deduxit. At ille litteras recognoscere dixit completionis tabellionis, non tamen nosse aliquid horum, quae secuta sunt; nec enim sibi ab initio penitus delegata, sed commisisse cuidam suorum hoc facere, neque postea venisse ad completionem, sed rursus ahi hoc commisisse. Et is quidem, qui adfuit completioni, venit, nihil nec ipse dicens se nosse (etenim neque scriptor fuit documenti), sed solum docuit, quia praesente se hoc dimissum sit. Nec cui ab initio delegatum est inventus est, unde, nisi per testes iudex valuisset agnoscere causam, pure periculum patiebatur, undique cadendi negotii notitia. Et illud quidem competentem meruit examinationem atque decretum. O prefcio registra os motivos que deram ocasio lei. Tem-se conhecimento de

    um litgio. Por parte de uma pessoa de certa mulher, se apresentava um documento que certamente no trazia a sua letra, posto que analfabeta (erat enim harum ignara). O documento havia sido lavrado por um tabelio e por um escrevente, trazendo a firma daquela e registrando a presena de testemunhas.

    Pois, tendo sido suscitada certa dvida acerca do documento por afirmar a

    mulher que no havia sido por ela disposto o que registrava o instrumento , o juiz que estava encarregado de colher as declaraes litigiosas, buscando chegar verdade, chamou o tabelio para confirmar a veracidade e autenticidade do documento.

    Mas o tabelio afirmou que reconhecia unicamente a letra do complemento, mas

    nada sabia a respeito da lavra manuscrita que se seguia. Disse que no estava encarregado, desde o princpio, de manuscrever o documento, tendo encarregado a um dos seus para que aperfeioasse o escrito, no acudindo pessoalmente concluso, tendo-a encomendado a outro para o fecho do instrumento.

    5

  • E para complicar ainda mais a situao, surge aquele que estava presente

    concluso do negcio e do documento, tendo dito que tampouco sabia coisa alguma, pois no tinha sido ele o escrevente do documento. Disse que estava presente unicamente ao trmino, no se tendo encontrado aquele a quem se encomendou a lavratura do instrumento.

    O juiz afinal pde conhecer o caso por meio das testemunhas. Mas o fato poderia

    ter comprometido o conhecimento do negcio. Essa a razo que inspirou a decretao da constituio.

    Cap. I. Nos autem credimus oportere universis auxiliari, et communem in omnibus facere legem, quatenus praepositis operi tabellionum ipsis per se omnibus modis iniungatur documentum, et, dum dimittitur, intersit, et non aliter imponatur chartae completio, nisi haec gerantur, ut habeant, unde sciant negotium, et interrogati a iudicibus possint quae subsecuta sunt cognoscere, et respondere, maxime quando litteras sunt ignorantes, qui haec iniungunt, quibus facilis est et inconvincibilis denegatio horum, quae pro veritate secuta sunt.

    Tendo em vista a situao criada pela lavratura irregular e incerta da escritura, colocando em risco o conhecimento do negcio instrumentalizado por meio de tabelies, baixado o decreto para auxilio a todos os que atuam na atividade notarial.

    O Captulo I estabelece que os tabelies deveriam redigir os instrumentos por si mesmos, de prprio punho, por uma nica pessoa, devendo estar presentes durante toda a cerimnia negocial, encerrando formalmente o escrito lavrado. Deveriam manuscrever o texto, pois a grafia era elemento de identificao que compunha o arco probatrio que se formava com a atuao notarial.

    Esses eram requisitos de segurana e autenticidade. O cotejamento das letras e as

    declaraes das testemunhas robusteciam o sentido de segurana que o decreto visava colimar. O tabelio poderia ser chamado a testemunhar em juzo acerca do negcio cuja instrumentalizao e manuscrio estava a seu cargo. Com o preenchimento dessas formalidades, ter-se-iam meios para conhecer com relativa segurana do negcio e, interrogados pelos juzes, poderiam ter cincia e conhecimento dos fatos.

    1. Ut ergo omnia haec prohibeamus, propterea praesentem conscripsimus legem, et haec custodiri modis omnibus volumus a tabellionibus, sive in ipsa felicissima civitate, sive in provinciis sint; scientibus, quia, si praeter haec aliquid egerint, cadent omnino iis, quae vocantur stationibus, et qui ab eis dirigitur ad iniungendum documentum et interest, ipse dominus super stationis auctoritate erit, et mutabitur causa; et ille quidem de cetero hoc obtinebit officium in statione, quale qui in ea primatum tenebat, ille vero cadet ea, aut unus erit ministrantium illi. Quoniam ille quidem dedignatus est hoc agere, quod erat concessum ei, ille vero secundum illius voluntatem hoc egerit, propterea nos hanc intulimus eis poenam, ut optimi fiant circa documenta, et iusti, et cautiores, et non propter suam requiem et delicias corrumpant alienas vitas.

    6

  • Como a regra consagrava a obrigao de lavrar, de prprio punho, o instrumento encomendado, o tabelio que subdelegasse a atividade a outrem perderia, em favor desse, o posto e a condio. Diz o decreto que havendo esse tabelio desdenhado de fazer o que a ele se lhe havia concedido, e outro, por vontade deste, se encarregasse de seus encargos, impor-se-lhe-ia a pena de perda da delegao, a fim de que os documentos se fizessem excelentes, e justos, e mais seguros (ut optimi fiant circa documenta, et iusti, et cautiores), e no prejudicassem interesses de terceiros em razo de seu regalo pessoal. Trata-se de uma sano disciplinar. Alguns entendem que a sano seria pecuniria.5

    2. Si vero indignus sit forte potestatem in stationibus suscipere is, cui documentum extra ea, quae a nobis disposita sunt per praesentem legem, iniungitur, tabellio quidem cadat omnibus modis hac causa, alter vero pro eo constituatur; nihil omnino damnificando ex hoc stationis domino, quicunque fuerit extraneorum, et non ipse tabellio, neque cadente lucris exinde venientibus, sed illo solo, qui talia perpetravit, et dedignatus est suum complere opus, primatu cadente, omnibus quidem aliis super stationis iure integris dominis eius ab ipsis tabellionibus, qui talia peccaverunt, servandis.

    Mas, acaso seja indigno quem confecciona o instrumento, 3. Et non fingant tabelliones occasiones, per aegritudinem forte discedentes, aut occupationes huiusmodi; licebit enim eis, si quid tale fuerit, evocare eos, qui contrahunt, et per se causam complere; proinde haec, quae contingunt raro, non impedimentum facient universis, eo quod nihil inter homines sic est indubitatum, ut non possit, licet aliquid sit valde iustissimum, tamen suscipere quandam sollicitam dubitationem; sed nec quaestus eorum minores fieri per hoc, propter contrahentium frequentiam occasionem habentes, quum melius sit pauca agere caute, quam multis interesse periculose.

    4. Ut tamen non vehementer eis dura lex esse videatur, nos coniicientes humanan naturam, mediocres etiam eis leges nostras ponimus. Propter tales enim eorum forte dubitationes damus eis licentiam singulis unum ad hoc constituere, gestis apud clarissimum magistrum census felicissimae civitatis solenniter celebratis, et licentiam eis dare, ut delegentur ei ab iis, qui veniunt ad eius stationem documenta, et dimissis eis interesse, et nulli omnino alteri in statione exsistenti licentiam esse, ut aut delegetur ei initium, aut quum dimittuntur, intersit, nisi tabellioni, qui auctoritatem habet, aut qui ab eo ad hoc statutus est. Si vero praeter hoc fiat, et alter delegetur, tunc subiacebit poenae tabellio, qui auctoritatem habet a nobis dudum definitam, ipsis tamen documentis propter utilitatem contrahentium non infirmandis. Novimus enim, quia legis metu de cetero et ipsi custodient, quae a nobis decreta sunt, et documenta sub cautela facient. Os tabelliones romanos sobreviveriam queda do Imprio no Ocidente e comeam a utilizar na prtica o ttulo de notarius, conservando, contudo, no decorrer dos

    5 CUBIDES ROMERO, Manuel. Derecho notarial colombiano. Bogot: Universidad Externado de Colombia. 2a ed., 1992, p. 28.

    7

  • sculos de transio alta idade mdia (tardia antiguidade) as tradies profissionais e documentrias antigas. A denominao de notarius, segundo BONO6, provm da chacelaria imperial, como se v no Codex Theodosianus:

    CTh.6.10.0. De primicerio et notariis. CTh.6.10.1 Imppp. Gratianus, Valentinianus et Theodosius aaa. Eutropio praefecto praetorio. Praecipua est nostrae pietatis intentio circa notariorum nomen, atque ideo, si umquam huius ordinis viri laborem quiete mutaverint vel senectute posuerint seu cum alia dignitate post hanc qualibet usi sunt, non omittant prioris vocabulum militiae, sed compendium sequentis honoris adsumant. Et si quis ex officio vel praecipue sublimitatis tuae temerarius ad census discussiones peraequationes, aliam denique ullam rem inquietator extiterit, officium suum norit vel levis culpae offensione detecta gravis multae discrimine fatigandum et numerariorum corpus extincto iniuriae auctore minuendum. Dat. xvii kal. iul. Thessalonica Gratiano v et Theodosio i aa. conss. (380 iun. 16 [?]). CTh.6.10.2 Idem aaa. ad Valerianum praefectum Urbi. Notariorum primicerios, si, prout eorum voluntas fuerit, de consistorio nostro sine administratione discesserint, non solum vicariis anteponi, sed etiam proconsulibus aequari sancimus, ita ut nihil nisi tempus intersit. Eodem honore atque eodem ordine sequens primicerium tribunus ac notarius perfruetur. Alios porro notarios et tribunos vicariis iubemus aequari ac, si priores id vocari coeperint, anteferri. At vero domesticos et notarios consularibus simili ratione componimus. Et cetera. Dat. iiii kal. april., acc. xii kal. maii Syagrio et Eucherio viris clarissimis conss. (381 mart. 29). CTh.6.10.3 Idem aaa. Floro praefecto praetorio. Notariorum primicerium in numero proconsulum habemus, tamquam comitis ei semper fasces cum curulibus dederimus. Praetorianos non longe ab hoc abducimus, ut qui ad tribunatum nominis huius accesserint, Orientis sive Aegypti comitivae videantur infulas consecuti. Tribunos residui nominis nemo dubitet vicariis exaequandos et praeferendos his, quos adepti honoris praecesserint; reliquos vero, quos domesticum inter notarios et familiares nobis nomen insinuat, parem gradum cum consularibus obtinere sancimus. Et cetera. Dat. id. dec. Constantinopoli Syagrio et Eucherio conss. (381 dec. 13). CTh.6.10.4 Impp. Theodosius a. et Valentinianus caes. Hierio praefecto praetorio Orientis. Post alia: qui ex primiceriis notariorum ad illustrem meruerint magistri a vigiliis atque laboribus procedere summitatem, minime redigendi sunt in ordinem ceterorum, quo honorarios meruerint codicillos, quoniam et res ipsa, quod primum locum sint militiae nobilis adsecuti, et publica saepe impleta commoditas

    6 Loc. cit. Op. cit.

    8

  • numquam otiosos fuisse testatur. Et cetera. Dat. x kal. oct. Topiso Theodosio a. xi et Valentiniano caes. conss. (425 set. 22).

    parte dos quatro scrinia figuravam os tribuni et notarii integrando uma schola notariorum, encarregados da formao dos expedientes no consilium imperial. sua frente estaria o primicerius notariorum.7 Observa o mesmo BONO que erroneamente se tem identificado, desde a poca dos glosadores, a figura dos tabelliones com a dos tabularii. A possvel razo desta confuso estaria em que, de certo modo, os tabularii eram funcionrios subalternos, cooperavam na atividade de redao de documentos, integrados que estavam na cria municipal. Eram responsveis por atividades que compreendiam as de contabilidade, cobrana de impostos, responsveis pelos arquivos municipais etc8. Mais tarde, na poca justiniania, as funes de tabularii e de tabelliones se confundem. No Oriente, a denominao notarius era equivalente a de tabularius. Cita-se uma constituio de Imp. Leo, de 472 (C. 8.17.11): notarii = condicionales = tabularii:

    Imperator Leo . Scripturas, quae saepe adsolent a quibusdam secrete fieri, intervenientibus amicis nec ne, transigendi vel paciscendi seu fenerandi vel societatis coeundae gratia seu de aliis quibuscumque causis vel contractibus conficiuntur, quae idiochira graece appellantur, sive tota series eorum manu contrahentium vel notarii aut alterius cuiuslibet scripta fuerit, ipsorum tamen habeant subscriptiones, sive testibus adhibitis sive non, licet condicionales sint, quos vulgo tabularios appellant, sive non, quasi publice scriptas, si personalis actio exerceatur, suum robur habere decernimus. 1 . Sin autem ius pignoris vel hypothecae ex huiusmodi instrumentis vindicare quis sibi contenderit, eum qui instrumentis publice confectis nititur praeponi, etiamsi posterior dies his contineatur, nisi forte probatae atque integrae opinionis trium vel amplius virorum subscriptiones isdem idiochiris contineantur: tunc enim quasi publice confecta accipiuntur. * LEO A. ERYTHRIO PP. *.

    Notrio, desde 1994. Tabelio desde sempre? Os notrios portugueses e brasileiros tardaram alguns bons e longos sculos para consagrar definitivamente essa denominao profissional notrio , ao lado do consagrado tabelio, que desde sempre, ao menos em nossa tradio portuguesa, identifica e singulariza esse profissional to importante. No sculo XIII, nos pases de influncia do direito romano, os termos notrio e tabelio eram considerados sinnimos, designando o antigo tabelio do Imprio Romano. A divulgao do Direito de Justiniano na pennsula favoreceu a circulao e difuso de ambos os termos, como se viu, mas em Portugal, especificamente, o de tabelio

    7 Op. cit. Loc. cit. 8 Op. cit. Loc. cit.

    9

  • erradicou-se de tal modo que acabou por singularizar a prpria atividade, quedando o de notrio reservado quase que exclusivamente aos notrios apostlicos. E como essa denominao era anelada pelos nossos antecessores!

    Vamos dar voz a um deles, no pleito dirigido nas Cortes de Lisboa de 1439:

    Senhor: geralmente, em todos os reinos e senhorios os escrives das notas chamam-se notarios, salvo nos vossos reinos que lhes chamam tabellies, nome no conveniente ao poder e f que lhes por vs dada, e segundo se mostra por uma carta del-rei D. Joo, vosso av, que proveu isto e mandou que para fra dos vossos reinos que se chamassem notayros. Pedem-vos, senhor, os ditos tabellies por merc, porque nome fremoso e apropriado a seus officios que so de notas, e ainda por todos os ditos senhorios fazem festa com tal nome porque no convem a tal officio, porm, senhor, os ditos tabellies de notas vos pedem merc que mandeis que daqui em deante geralmente, em todas as escripturas que fizerem, se chamem notayros. Resposta do rei: Mandamos que se guarde a carta de meu av; que quando fizerem escripturas para fra se chamem notayros; e de outra guisa, no.9 O nome fremoso (popular de formoso, segundo CNDIDO DE FIGUEIREDO) de

    notrio se encontrou em documento lavrado em 1361, ao lado do consagrado tabelio pblico. JOO PEDRO RIBEIRO, em cuja senda caminhamos seguros, refere tal escritura lavrada por um tabelio pblico e notrio apostlico, sugerindo que as duas figuras coexistiram, embora com atribuies distintas10.

    A histria do tabeliado portugus ainda resta por ser contada. JOS MATTOSO

    afirma que a histria medieval dos tabelies e notrios pblicos portugueses, no s institucional como sobretudo social e poltica, aguarda o seu historiador. Advinha-se fascinante.11

    Os antecedentes dos Regimentos de 1305

    GAMA BARROS, em cujas lies nos fiamos a seguir, registra que desde o reinado de D. Afonso II (1211-1223) se encontram em Portugal oficiais pblicos que levam o ttulo de tabelies, cujos escritos e instrumentos de direito privado so reputados como atos e escritos autnticos.12

    9 Chancelaria de D. Afonso V, Livro XX, fol. 151; Liv. X da Estremadura, fol. 108v. apud BARROS, Henrique da Gama. Histria da administrao pblica em Portugal sculos XII a XV. Lisboa: S da Costa, 2 ed., 1950, p. 365. 10 RIBEIRO, Joo Pedro. Dissertaes chronologicas e criticas. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1857, t. II, dissertao VI, p. 16. 11 MATTOSO, Jos, org.. Histria de Portugal. Lisboa: Cculo de Leitores, II vol. p. 521. 12 BARROS, Henrique da Gama. Op. cit. p. 368 et seq.

    10

  • O grande estudioso da administrao pblica em Portugal oferece-nos alguns exemplos que vm de confirmar, justamente, que os primeiros diplomas legais de que se tem notcia acerca de tabelies os regimentos de 12 e 15 de janeiro de 1305 apiam-se em disposies legais anteriores, s quais seguramente j estariam sujeitos os tabelies. D-nos testemunho, a propsito, o fato de que o regimento de 12 de janeiro de 1305 j fazia referncia a uma tabela de emolumentos, publicada com anterioridade na chancelaria da corte.

    A tradio que remonta poca do Reino Asturiano (718-910) os encarregados da

    lavratura dos escritos tiveram um desenvolvimento muito prprio. Registra BONO que o scriptor nas Astrias, Galcia e Leo, geralmente um clrigo, lavrava os documentos como um especialista nas tarefas de redao, considerando-se que nos ambientes monsticos era mais comum o conhecimento do alfabeto. Tm, ainda, uma atuao annima, no subscrevendo o documento, ou quando o faz, f-lo como simples testemunha. Mas no deixam de ocorrer documentos que contm uma subscrio explcita. So vrios os documentos e veremos que os portugueses levam tambm esta caracterstica em que firmam-nos N presbiter (diaconus) scripsit ou scripsi, ou ainda notuit, titulavit.

    J ento se nota uma certa profissionalidade quando um mesmo scriptor

    comparece numa srie de documentos de sucessivas datas, passados em uma determinada regio.13

    GAMA BARROS confirma que durante o perodo da reconquista crist, anterior ao

    sculo XIII, nem aparece nos documentos, relativos a territrios que nesse sculo j eram de Portugal, a interveno de tabellio, nem ainda, por forma bastante clara, a de notarius publicus. A prtica vulgar, mas no predominante, nos documentos de transmisso de propriedade, ou fosse entre particulares, ou a favor da igreja ou de congregao monstica, era juntar ao nome, que o documento mencionava no fim o vocbulo notuit, ou, principalmente desde o sculo XI, mas sempre em menos casos, scripsi ou scripsit.14

    Os exemplos so encontrados numa srie que figura nos Portugaliae Monumenta

    Historica. Assim, podemos encontrar a atuao de um certo Pedro que lavrando um pacto de venda de frao ideal ora registra Petro scripsi (Doc. DCCCLVIII, de 1097) ora Petro notuit. (Doc. DCCCLIX, tambm de 1097), ora Petro Scripsi. E os exemplos se seguem.15

    Por ora nos limitaremos a registrar que o primeiro documento em que encontramos

    o ttulo de notarius dado ao redator um instrumento de 1034, celebrado entre particulares, em que Vitemiro Donizi e sua mulher entregam a Suario Pelagizi e sua mulher bens imveis para pagamento de certo compromisso com garantia fidejussria.

    Pela importncia que pode merecer o primeiro documento apontado como sendo

    lavrado por um tabelio portugus publicamos a escritura pblica na ntegra, que se achava no Cartrio de S. Simo da Junqueira (Tombo, livro IV).

    13 Op. cit. p. 110. 14 Op. cit., p. 358. 15 PMH, p. 509.

    11

  • In Dei nomine. Ego Vitemiro Donizi, et uxori mea Vistregia conomento Madre, plaguit nobis bone pazis, et voluntas,

    No foral de Canedo (1212) figura como testemunha um tabelio pblico e no de Campo (1213) encontramos a intervenincia de um notrio, ao lado do governador do distrito, do juiz e do mordomo. Relata-nos o mesmo GAMA que a proviso de D. Afonso II contra os decretos civis do prior dos dominicanos foi dirigida ao alcaide, alvazis e outros oficiais pblicos e ao tabelio especificamente.16

    Do reinado de Afonso III (1245-1279) restam traslados, escrituras e disposies legais que mostram, claramente, estar sujeito o tabeliado a uma certa organizao oficial. Assim, a pblica-forma lavrada pelo tabelio de Braga, STEPHANUS PETRI, registrando em suas notas os agravos apresentados pelo clero a D. Afonso III, nas cortes de Guimares, datada de junho de 1250:

    Notum sit omnibus tam presentibus quam futuris quod sub era M. CC. LXXX. VIII. IIIo idus junii (...) ego Stephanus Petri tabellio bracarensis recepi de mandatu archiepiscopi bracarensis et episcoporum vlixbonensis et colimbriensis articulos cumquestionum archiepiscopi et episcoporum regni Portugalie et responsiones Regis factas Vimarane (...) quos fideliter rogatus de uerbo ad uerbum transcripsi et in publicam formam redegi et signum meum apposui.17

    Nota-se que o formulrio notarial trazia j a epgrafe que fez fortuna em nossos cartrios. O saibam quantos virem a presente escritura ou dela conhecimento tiverem etc. ou o notum sit omnibus hoc publicum instrumentum visuris etc. dos antigos, atravessaram os tempos e ainda figuram nas escrituras que ainda hoje so lavradas pelos tabelies brasileiros. O mesmo se dir do texto que figurava em formulrios consagrados pelos tabeliados brasileiros com a indicao da era crist para se registrar a data: Saibam quantos etc., que perante mim tabelio (...) aos (...) da Era do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo etc. para marcar a mudana de referncia para contagem de tempo, tendo em vista que os documentos medievais referiam a era de Csar, como se ver logo abaixo e exemplo, justamente, a pblica-forma acima extratada que de 1258, Era de Csar.

    Inscreve-se como outro exemplo do perodo o instrumento pblico pelo qual o municpio de vora doou um imvel, em 1257, a um certo ESTEVAM ANNES, chanceler do rei:

    Et ut hoc sit magis credibile et quod nunquam possit uenire ad negacionem nec ad destrucionem et magis robur obtineat firmitatis, fecimus inde fieri hanc kartam per manum publicam et eam nostro sigillo communiri. Et ego petrus laurencii publicus tabellio Ebborn interfui et hanc cartam propria manu scribsi (sic) et hoc signum in ea apposui. Facta karta in Ciuitate Ebbore mense Frebruarii v.o Kalendis Marcii sub Era M. CC. LXL. V..18

    16 Id. ib. p. 369 17 Portvgaliae Monvmenta Historica, Leges et Consvetvdines, Vol. I, f. I, p. 185. 18 Torre do Tombo, Coleo especial, caixa 83

    12

  • Outros exemplos mais encontramos, mas digno de registro o fato de que os tabelies intervieram em negcios jurdicos privados celebrados entre indivduos da mais alta hierarquia, como a doao esponsalcia que, no ano de 1265, em Lisboa, Pedro Annes fez a Urraca Affonso, filha de D. Afonso III. Ao ato assistiram no um, mas dois tabelies de Lisboa.

    Concluindo, se depreende que o ofcio do tabelio, at o terceiro quartel do sculo

    XIII, estava sujeito a uma ntida organizao regular. Diz GAMA BARROS que so tantos os vestgios de se ter legislado sobre a administrao judicial no terceiro quartel do sculo XIII, que no seria de suppor que no se houvesse attendido tambm instituio do tabelliado19.

    Regimento de 12 de janeiro de 1305 Esse Regimento acha-se transcrito no Captulo II do Ttulo IX da conhecida obra de GAMA BARROS, aqui tantas vezes citado e que , certamente, a mais preciosa referncia para o exame dos documentos administrativos do perodo e da histria do tabeliado portugus.

    O texto est datado de 12 de janeiro da Era de 1343, isto , da era de Csar.

    A datao dos documentos e monumentos aqui referidos deve levar em conta alguns critrios. A datao ordinria dos documentos lavrados desde os tempos dos reis de Leo tem como referncia a Era de Augusto Csar, i.e, poca da conquista da Hispania por Csar. De fato, antes do sculo XII so raros os documentos datados pela era de Jesus Cristo.

    por uma lei de D. Joo I, de 15 de agosto de 1422, que se mandou substituir a datao da Era de Csar pelo ano de nascimento de N. S. J. Cristo20. V-se a mesma lei reproduzida nas Ordenaes Afonsinas (Liv. IV, Tit. LXVI).

    Vale a transcrio da lei: Da mudana, que fe fez da Era de Cefar aa do Nacimento de Noffo Senhor Jefu Chrifto. ElRey Dom Joham da famofa e excellente memria em feu tempo fez Ley em efta forma que fe fegue. I MANDA ElRey a todolos Taballiaes e Efcripvaes do feu Regno e Senhorio, que daqui em diante em todolos contrautos e efcripturas, que fezerem, ponham Anno do Nacimento de Noffo Senhor JESU CHRISTO, affi como ante foyam a poer Era de Cefar: e efto lhes manda que faam affi, sob pena de privaom dos Officios.

    19 Id. ib., p. 375. 20 Chancelaria de D. Joo I, Liv. V. Nota RIBEIRO que nesse livro, s fls. 133, acha-se lanado um Alvar do Peral a 15 de Agosto do anno do Nascimento de N. Senhor J. C. de 1422. Dissertaes chronologicas e criticas. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1857, t. II, dissertao VI, p. 25. Cfr. Tb. ALMEIDA JR., Joo Mendes. rgams da f publica. RDI 40-68.

    13

  • 2 POBLICADO foi affi o dito Mandado do dito Senhor na Cidade de Lixboa per mim Philipe Affonto Loguo-Teente do Efcrivam da Chancellaria nos Paaos dElRey perante Diego Affonfo do Pao (a), Ouvidor na fua Corte, que fia em audincia, aos vinte e dous dias dAgofto Anno do Nacimento de Noffo Senhor JESU CHRISTO de mil e quatrocentos vinte e dous annos. 3 E VISTA per ns a dita Ley, mandamos que fe guarde, como em ella he contheudo.

    O texto do Regimento de 12 de janeiro de 1305 acha-se integralmente reproduzido no apndice (Doc. I). Vamos to-somente comentar alguns aspectos dos artigos que possam apresentar alguma dificuldade ou mesmo interesse especial para os efeitos desta exposio. deveras importante advertir que os regimentos abaixo transcritos colhem a incipiente formao das atividades tabelioas, fixando, pelos comandos regimentais, o comportamento profissional dos encarregados do nobile officium. Chega-se regra pela explicitao da falta, como elemento justificador da regra e de sua sano. Uma leitura aligeirada dos preceitos poder levar ao equvoco absurdo de supor que as regras existiam unicamente porque no as cumpriam. Emolumentos tabela oficial Como j apontado supra, este regimento j indicava certa organizao oficial do tabeliado, o que se constata pela existncia de uma tabela de emolumentos publicada na chancelaria real:

    Dom Denys pela graa de deus rey de Port. E do algarue. a todolos tabellies dos meus reynos sade. Vos bem sabedes na mha chanelaria cmo he traussado (sic) de quanto deuedes a leuar das screturas que fazedes.

    A taussa aqui grafada traussa ou tausaom, ou ainda tousaom, segundo

    o Elucidrio de Viterbo, taxa, que se pe e determina sobre o preo ou valor de alguma coisa.

    E segue o diploma:

    E outrossy cmo hy fezestes iuramento que n leuassedes mais do que he taussado. e a m he dito que uos leuades muyto mais. e esto n tenho eu por b. E porem mandouos a traussa (sic) da mha chanelaria. e as screturas que n som traussadas traussoas assy cmo uos mando dizer.

    Os tabelies haviam jurado perante a chancelaria o cumprimento das regras e a sujeio s tabelas que haviam sido fixadas para remunerao de seus servios. Mas no a cumpriam, existindo, ainda, servios que nela no estavam previstos, sendo omissa em relao a alguns atos. O rei determina, ento, o envio de novas tabelas, estabelecendo o quanto deveriam receber pelos atos e diligncias que praticavam, cerceando-os da cobrana arbitrria pelos servios prestados.

    14

  • Aqui se mostra nitidamente que os tabelies estavam sujeitos a uma regulativa anterior, pois o juramento que prestavam na chancelaria certamente estaria regulado em disposies que no chegaram at ns.

    Tenho por bem e mando que por carta de uenda ou de compra ou de emprazamento ou de doa ou de procura ou de escambho ou de apela de creligo ou de estromento dalga fermide que aiades ende. iiij. soldos e n mais. E por carta mandadeira e por prazo n posto registro. ij. soldos. E por carta dalforria ou por prazo posto registro. v. soldos. E se per uentuira alga scretura mais recreer per raz de procura ou doutras cousas que elas ponhades leuade cme de prazo ou de procura e assy das outras cousas que mais escreuerdes nos ditos prazos ou cartas se som taussados. E todalas outras cousas que n som taussadas eu taussoas esta maneira.

    O diploma regula o quanto deveria ser cobrado pelos atos praticados instrumentos de compra-e-venda, enfiteuse (emprazamento), doaes, procuraes, permutas, apelaes, mandados, instrumentos ou fermides. Prazos, emprazamento, placitas, fermides

    O regulamento se refere aqui a prazo e emprazamento, palavras recorrentes por todo o texto. Emprazamento todo e qualquer contrato. Elucida Viterbo que a expresso vem de prazo, que significa contrato e emprazamento na mesma significao. Mas observa que, segundo o esprito de nossas leis antigas, ento se dizia emprazamento quando o senhor do terreno dava uma parte dele a quem o cultivasse, recebendo certo prmio ou renda anual, transferindo, porm, o domnio directo desta poro assim emprazada para o cultivador ou enfiteuta, que pelo tal contrato, prazo ou emprazamento a fazia inteiramente sua. a enfiteuse ou aforamento21. O nosso JOO MENDES DE ALMEIDA JR. comenta que a expresso prazos derivou da palavra placitas que figura nos monumentos da primeira idade da monarquia portuguesa com a mesma significao de conveno, ajuste, doao etc.22

    J a expresso fermide j no figura nas escrituras tabelioas, mas no deixa de ser uma expresso feliz, cujo sentido, tributrio do latim firmitudo (CNDIDO DE FIGUEIREDO) firmeza, constncia, fixidez, estabilidade, solidez. Segundo o Elucidrio, firmeza, valor, permanncia: em os nossos antigos documentos, se acha, a cada passo: facta firmitudinis Carta, para nos dizerem que aquele instrumento por nenhum princpio

    21 Elucidrio das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram e que hoje regularmente se ignoram de Fr. Joaquim de Santa Rosa do Viterbo. A edio utilizada aqui a crtica de MRIO FIZA, Porto: Livraria Civilizao, 1962. verbete emprazamento. 22 ALMEIDA JR., Joo Mendes. rgamns da f publica. RDI 40-66, jan./abr. de 1997.

    15

  • seria quebrantado mas antes permaneceria para todo tempo firme e valioso. A expresso ficou pelo caminho da lngua, mas a idia remanesce perfeitamente ntida nos formulrios notariais at nossos dias. Fala, ainda, o regulamento, em soldo, que era moeda corrente em Portugal nessa poca. Vem do latim solidus, moeda de ouro dos romanos. Um soldo de ouro valeria, segundo o Elucidrio, 320 ris. Prescries formais, diligncias, inquiries

    Mando e tenho por b que. iij. regras leuedes. ij. dinheiros. e seia o pulgamyo ancho du couto. e as regras sei en tal guisa que se n arrede tanto ha letera da outra que semelhe hy engano.

    Aqui vemos uma regra muito interessante. O pergaminho (pulgamyo) deveria ser da largura (ancho = largo, amplo) de um couto (couto o mesmo que cvado, do latim cubitus, que antiga medida de cumprimento, equivalente a 66 centmetros). Chega o diploma a regular o espao que deveria mediar as letras lavradas, no se arredando tanto uma da outra que semelhe hy engano.

    Outrossy mando que quando fezerdes cartas ou screturas per raz de emquiri de cada artigoo leuade. iiij.o dinheiros. e de cada testemunha. ij. dinheiros.

    Os tabelies estavam encarregados de inquiries, e cobravam para tantoo que

    estava estabelecido no regimento. Outrossy tenho por b que quando fordes algur a fora parte que por afam do camo uos dem. iiij.soldos por cada legua. ij. soldos y pola yda. ij. soldos. E pola uijnda d uos a besta. e n uos d outro gouernho ergo o da besta. E sse per uentuira algu tabeli de uos morar fora do seu tabellionado e for chamado pera algu do julgado que el he tabelli n lho pague o que o chamar per esta taussa do camo. se n des que emtrar no Julgado hu lhy deue dar o testemunho. E outrossy quando fordes pela uila d uos polo trabalho da ida e uijnda. ij. soldos.

    Para a realizao de atos do ofcio, os tabelies poderiam ter que se deslocar para fora das vilas, pelo que receberiam quatro soldos por cada lgua (do latim leuca, medida itinerria. Uma lgua equivaleria a cinco quilmetros no sistema mtrico); dois soldos pela fadiga de viagem (afam do camo) e mais dois pela ida. Para o seu regresso, o interessado proveria a cavalgadura. Quando atendessem na vila, receberiam dois soldos pela ida e volta.

    E outrossi por que a m (he) dito que muytos homeens and deps uos desacandosse do que am. per raz das escreturas (sic) que n pod auer de uos. pero uos pag os dinheiros delas. per raz das screturas deles tenho por

    16

  • b que daquele dia que reeberdes os dinheiros deles per raz das screturas deles. que lhas dedes ata. iiij. dias e (se) lhas a esse tempo n derdes mando que lhy paguedes as custas. e mando aas Justias so pa dos corpos que uolas fa pagar de cada dya.

    Estava informado el-rei que os tabelies no cumpriam, no aprazado, com suas obrigaes na lavratura das escrituras encomendadas, tendo j embolsado os valores relativos s taxas emolumentares. Determina, assim, que dentro de trs dias fossem os trabalhos de lavratura ultimados, sob pena de satisfazer o tabelio as custas devidas. Essa regra ser especializada no Regulamento de 15 de janeiro desse mesmo ano (cfr. seu art. 5o, infra).

    Outrossy notas que filhardes que as filhedes logo nos liuros. e n edulas de guisa que as possam auer seus donos quando as demandarem. e sse o assy n fezerdes. e os donos dessas caerem perda per esta raz. mando que todolos danos e perdas que xi lhy ende seguir que lhas paguedes de uossas casas. E mando aas Justias so pa dos corpos que uolas faam pagar.

    Outra interessante prescrio esta, de que as notas devessem ser desde logo lanadas nos livros respectivos e no remanescessem em cdulas para ulterior lavratura, sob pena de que devessem pessoalmente suportar as perdas e danos que os interessados experimentassem em decorrncia de sua falta - que lhas paguedes de uossas casas...

    Outrossy uos mando que aqueles logares hu for dous tabellies ou mais que uaades dous e dous a fazer as notas da firmide. e das escreturas que fordes fazer pela uila. e aia cada hu por seu trabalho ij. soldos. assy cmo eu taussei.

    Nas vilas em que atuassem dois tabelies (ou mais) que pudessem ir, dois a dois, a tabeliar, recebendo, cada um, por seu trabalho, dois soldos.

    Essa disposio, contudo, foi expressamente revogada por D. Afonso IV, filho de D. Dinis, a pedido dos povos que assistem s Cortes de Santarm (1331). Relatam a el-rei que os tabelies abusavam, exigindo salrios ilegtimos e serviam pior quando, aos pares, saam s vilas: e isso, senhor, representa grande dano e agravamento do povo. Servem pior e so negligentes em seu ofcio, retardando as escrituras e por elas cobrando mais caro do que deveriam.

    O rei, reconhecendo que a regra que assim dispunha sobre a sada dos tabelies aos pares era vlida e havia sido baixada por seu pai, avaliou, contudo, que da aplicao da norma estava e decorrer dano e custa, e ainda que os tabelies estavam desempenhando sofrivelmente seu mister. Houve, ento, por bem, dali em diante, determinar no se guardasse aquele ordenamento, e que cada um dos tabelies pudesse ir pela vila desempenhando solitariamente seu ofcio pblico. Para o consultar o teor do ordenamento baixado por D. Afonso IV, consulte o apndice (doc. II).

    Contratos entre cristos e judeus

    17

  • Outrossy uos mando que quando fordes fazer prazos antre christaos e Judeus per razom de diuidas que ponhades o cabo e a onzena per ssi. e aconhesca o deuedor per iuramento quanto reebe da diuida dinheiro e quanto panos. e quanto outras cousas. Na lavratura de escrituras em que so partes cristos e judeus, tendo por objeto a

    assuno de dvidas e seu pagamento, o regulamento estabelece um procedimento especial. Veremos que o Regimento de 15 de janeiro voltar ao tema em seu artigo 9o, com disposies similares.

    Este dispositivo reza que, em primeiro lugar, devem ser declarados, separadamente, a dvida principal e o juro devido cabo e onzena. Cabo, segundo nos ensina o Elucidrio, fazenda, riquezas, cabedal. Portanto, capital, haveres. E onzena literalmente juros de onze por cento, e no sentido figurado, juro excessivo. J prazos, conforme registra o mesmo Elucidrio, obrigao, qualquer escritura, concerto, ajuste. tambm qualquer escritura entre partes, principalmente de avena, composio e vizinhana, da emprazamento, que originalmente todo e qualquer contrato. Tambm se diz postura:

    conoscam quantos este Estrumento virem (...) que eu vii, e lii huma Postura (...) que o teor della tal he: Conoscam quantos este prazo virem (...) E eu Estevam Martiiz (...) este prazo escrevi (...) Feito o prazo dezoito dias andados dAgosto etc.23. Deve a dvida ser especializada, isto , devem ser perfeitamente conhecidos, pelo

    devedor, o que recebe, com discriminao minuciosa do que seja dinheiro ou outras espcies.

    Sobre os onzeneiros, h uma vasta literatura medieval. A figura cantada no Auto

    da Barca do Inferno, de Gil Vicente. O Diabo lhe d as boas-vindas:

    Oh! que m-hora venhais, onzeneiro meu parente! Como tardastes vs tanto? O Onzeneiro, j advertido da triste sina, suspira ao Anjo: L me fica de rodo minha fazenda e alheia. Diz o Anjo: onzena, como s feia e filha de maldio!. Tornando o Onzeneiro barca infernal diz: Houl! Hou, demo barqueiro!

    23 Elucidrio, verbete prazo.

    18

  • Sabs vs no me que fundo? Quero l tornar ao mundo e trarei o meu dinheiro (...). As restries que encontramos nos dispositivo sob comento devem ser

    compreendidas tendo como pano de fundo o contexto cultural em que as relaes entre cristos e judeus se estabeleciam na idade mdia.

    Sabemos que, desde muito cedo, na Pennsula, existiram judeus, tenham vindo

    como mercadores, desde o tempo do Rei Salomo, ou mesmo depois, como fugitivos no tempo de Nabucondonosor, ou mesmo nos tempos do imprio romano.24

    LEITE DE VASCONCELOS registra que do sculo VI o mais antigo vestgio que se

    refere expressamente aos hebreus em solo portugus - uma lpide funerria encontrada em Espiche, perto de Lagos.25

    Desde muito cedo os judeus eram ora protegidos pelos reis - especialmente na

    aurora da cristandade portuguesa - ora perseguidos por eles e pela populao, consoante a necessidade do seu dinheiro era mais premente ou o fanatismo religioso mais acrrimo, registra PIMENTA FERRO.26

    do reinado de D. Afonso II (1185-1211) que se conhece uma srie de leis que

    regulam as relaes dos judeus com os cristos. Esse soberano probe que os judeus ocupem qualquer cargo oficial e ser o Bolonhs (1248-1279) que baixar uma srie de ordenaes visando ao esprito usurrio dos judeus, como a que probe que os juros excedam a importncia do capital emprestado. No Livro das Leis e Posturas (Fol. 6, 1a col.)27 encontramos uma lei de 1266 dispondo sobre o Estabelejmento da husura em como nom cresca (sic) mais que o cabo. No corpo do diploma se l:

    que husura nem creena. nem pea nom cresca (sic) mais que outro tanto. conuem a ssaber quanto for o cabo como quer que per gram tenpo nom sseia pagada a deujda. e assy antre iudeu e christo.

    No mesmo flio - Livro das Leis e Posturas:

    Stabelejmento da maliia dos Judeus contra os christaos. He estabeleudo pola maliia dos Judeus que como alguem deles tirar enprestado nunca cresca (sic) mais do cabo como quer que muytos estes sseiam fectos auendo comeo do primeiro stromento. E esto fazemos pola maliia dos iudeus28.

    24 COUTINHO, Ismael de Lima. Gramtica histrica. 4a ed. Rio de Janeiro: Acadmica, 1958, p. 50. 25 VASCONCELLOS, J. Leite de. Etnografia portuguesa. Vol. IV. Lisboa, 1958, p. 65-6 26 FERRO, Maria Jos Pimenta. Os judeus em Portugal no sculo XIV. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1970, p. 11. 27 Nestes comentrios ser utilizada a edio de 1971, da Universidade de Lisboa, com leitura paleogrfica e transcrio de Maria Teresa Campos Rodrigues, daqui para diante LLP, p. 26. 28 LLP, p. 26

    19

  • Leis prevendo requisitos especiais para a lavratura de atas tabelioas, quando fossem partes cristos e judeus, podem ser encontradas amide: Lei de 18 de maro de 1274, dirigida s autoridades de Santarm pela qual se probe a alienao ou emprazamento de bens que servem de garantia a emprstimos contrados com judeus; Lei de 2 de setembro de 1314 pela qual se determina que se no julguem as dvidas at que chegue o momento do seu vencimento e outrossim sobre o modo de pagar dvidas a judeus; Lei de 3 de novembro de 1314 pela qual se determina que as justias do reino cumpram outra lei de 1314 sobre a forma porque seriam celebrados os contratos entre os cristos e os judeus, mandando aos tabelies que registrem em seus livros uma e outra. A lei a que se refere a de 2 de setembro de 1314, pela qual se estabelece que os contratos entre cristos e judeus sejam feitos perante os juzes ou alcaides e por tabelies, com testemunhas crists, determinando outrossim vrias outras providncias para evitar abusos dos judeus relativamente aos outros contraentes; Lei de 14 de janeiro de 1315, pela qual se estabelece que na vila de Santarm estejam sempre em lugar certo, todos os dias, no feriados, um alvazil e um tabelio para que os judeus pudessem perante eles fazer os seus contratos na conformidade da lei que lhes proibia fazerem-nos sem essa formalidade. Lei de 2 de abril de 1321, pela qual se determina a invalidade dos instrumentos de dvidas de cristos a judeus, depois de decorridos vinte anos sobre a data de sua celebrao, alm de vrias disposies gerais sobre usura. (Todos os diplomas legais citadas acham-se no citado LLP, passim).

    Tabelies e escrives judeus

    Os judeus se organizavam em comunas que eram dirigidas por oficiais judeus,

    tendo como superintendente um rabi-mor. A respeito dos escrives e tabelies judeus, merece registro que, por ordenao de

    D. Fernando (1367-1383), o rabi-mor deveria trazer um escrivo jurado (cristo ou judeu) que soubesse do seu ofcio e que fosse de boa fama e capaz de guardar sigilo sobre os feitos e cartas, sendo regido pelas ordenaes dos escrives da corte:

    "Jurdiam dada a dom Yhuda, arrabi moor em Portugal, sobre os judeus e como deve husar della. (...) E por estas escripturas fazer, possa trager hu scripvam jurado christao ou judeu que seja de boa fama e tal que direitamente obre do dicto officio e guarde os segredos dos feitos e cartas, e seja tal que saiba bem leer e ecrepver e pertencente pera o dicto officio, ao qual Ns mandamos que elle em seu officio guarde as ordenaes que Ns mandamos guardar os escripvaes da nossa corte".29 At o reinado de D. Joo I (1385-1433) os documentos (cartas, acrdos, posturas

    etc.) podiam ser lavrados em caracteres hebraicos, tendo ditas comunas, entre seus oficiais (alm do rabi-menor, vereadores, procuradores, almotacs) justamente tabelies e escrives, encarregados de redigir toda a espcie de documentos exarados pelos magistrados comunais.30

    29 Lei de 25 de julho de 1373. Chancelaria de D. Fernando, liv. I, fls. 132-132v., transcrito por FERRO, Maria Jos Pimenta. Op. cit., p. 217. 30 FERRO, Maria Jos Pimenta. Op. cit., p. 35.

    20

  • PIMENTA FERRO elenca, em tabela das profisses, os judeus que figuraram nos documentos medievais como escrives ou tabelies: Rabi Joseph, escrivo dos judeus, Moiss Nafum e Isaaque Crespim, tabelies da comuna de Lisboa (1362), Isaque Ruivo, tabelio em Elvas (1382).31

    Confirma-nos MARCELLO CAETANO que as comunas tinham os seus tabelies

    privativos que foram proibidos de redigir as escrituras em hebraico sob pena de morte - que as Ordenaes referidas (Af. II, 93, 2o) substituram por aoites e perda do ofcio, salvo se o emprego do hebraico e no da linguagem ladinha portugus tivesse por objectivo esconder alguma falsidade.32 Pelo interesse que a matria pode trazer, merece ser transcrita lei que figura nas Ordenaes Afonsinas (II, 93):

    De como os Tabelliaas dos Judeos ho de fazer fuas Efcripturas. ELRey Dom Joham meu Avoo de gloriofa memria em feu tempo fez Ley em efta forma, que fe fegue. I DOM Joham pela graa de DEOS Rey de Purtugal, e do Algarve. A quantos efta Carta virem fazemos faber, que a ns he dito, que os Tabelliaas das Comunas dos Judeos dos ditos noffos Regnos fazem todalas Cartas, e Efcripturas, e Eftormentos per Abraico. E vendo nos em como fe dello feguia, e fegue perda, e dapno a nos, e ao noffo Povoo: Porem ns com acordo dos do noffo Confelho Ordenamos, e mandamos que qualquer Judeo, que for Tabellia deffas Comunas dos Judeos, nom faca Carta, nem Eftormento, nem Efcriptura per Abraico, fenom per linguagem ladinha portuguez; e fazendo elles, ou cada hu delles o contrario defto, mandamos que morra por ello. E porem mandamos que affy fe guarde em todo noffo Senhorio. 2 A QUAL Ley vifta per ns, achamos que era muito odiofa na parte da pena, porque fegundo direito, e cumunal razom, a pena deve fempre correfponder ao meleficio, e nom parece feer coufa razoada, que por ta leve crime algu homem aja de morrer. E porem limitando a dita pena, mandamos que dita Ley aja lugar no Tabelliam, que fezes a dita Efcriptura em letera Abraica por fazer falfidade, e de feito a fez; e no cafo, honde o dito Tabelliam fezeffe a dita Efcriptura verdadeiramente fem fazendo outra falfidade, ainda que a fezeffe em Abraico, tal como efete mandamos que feja aoutado publicamente, e perca o Officio, e nunca mais poffa aver em algu tempo. 3 E COM efta limitaom, e declaraom mandamos que fe guarde a dita Ley, affy como em ella he contheudo, e per ns aqui declarado, como dito he.

    Lavratura de escrituras outros requisitos

    E outrossy por que algus estromentos falam nome doutros que n mandar fazer. mandamos que quando fezerdes algus estromentos ou

    31 Op. cit., p. 131. 32 CAETANO, Marcello. Op. cit., p. 507.

    21

  • estromentos (sic). e n conhecerdes as partes antre que as (sic) fezerdes ou algu deles que chamades (sic) as testemunhas que as conhecer. e assy fazede os estromentos e outra guisa n. Os tabelies no poderiam lavrar escrituras cujos outorgantes eram por eles

    desconhecidos, salvo se comparecentes ao ato testemunhas que declarassem conhec-los. Outrossy uos mando que as cartas ou estromentos que fezerdes que faades ende as notas nos liuros. e as leades per dante as partes. e sse sse hy outorgar as partes. ent fazede os estromentos. e outra guisa n.

    Os instrumentos pelos tabelies lavrados deveriam ser feitos pelas notas lanadas nos livros, devendo ser lidos em voz alta para as partes e por elas confirmadas.

    Outrossy uos mando que quando algus uos pedir testemunho das contendas que ouuver per dante uos que lho dedes cna resposta da outra parte. do que ent disser e doutra guisa n.

    Outrossy uos mando que dedes testemunho das cousas que uos pedir. e passar per dante uos. se uolo pedir logo e outra guisa n.

    Sendo-lhes rogado testemunho das contendas que se tenham passado diante de si, os tabelies d-lo-o com a resposta da parte contrria. O testemunho deve ser pedido em ato contnuo.

    Por que uos mando so pa dos corpos e dos aueres. que esto n passedes de n ha guisa. Ca ertos seede que todos aqueles que esto passardes. ou mais leuardes. que uos matarey por ende. e fareyuos cme a falssayros. Dante Santar. xij. dias de Janeyro. El rey o mandou. Joh martinz a fes. Era 1343 anos.

    Para a transgresso de qualquer dispositivo do regimento a pena por ele estabelecida era a de morte, como aplicada a falsrios.

    Regimento de 15 de janeiro de 1305 Este regimento mais desenvolvido que o de 12 de janeiro. Contm vinte e nove artigos (que o prprio diploma enumera) e so a consagrao de preceitos baixados por el-rei em face das inmeras reclamaes feitas por no guardarem, os tabelies, obedincia s regras que disciplinavam a sua atividade. O texto denuncia transparentemente que o regulamento visava a dar uma resposta efetiva aos agravos cometidos pelos tabelies no desempenho de seu mister. Ao lado do preceito imperativo, junge-se a causa imediata respostas a pleitos oferecidos ao rei. Nesse sentido, o texto parece retomar preceitos j fixados anteriormente, provavelmente com maior generalidade e abrangncia, j que, aqui, o mote dar efetiva resposta s demandas que a el-rei chegavam, eventualmente em cortes ou agravamentos.

    22

  • Patenteia-se, portanto - aqui tambm, como de resto no regulamento anterior e nos posteriores -, que este diploma legal coligiu, conglomerou e consagrou disposies antigas e de uso correntio, preceitos que eram recolhidos e fixados em documentos do ltimo quartel do sculo XIII. Por essa razo, estima-se que pelos escritos dos tabelies seja possvel reconstituir, desde os tempos mais remotos da Portugal, o direito em ao, regrando os negcios jurdicos privados, conformando os direitos das pessoas. Nesse sentido, os acervos notariais devem ser vistos como um testemunho importante para se conhecer o direito vivido pela maior parte da populao e praticado, poca, na esmagadora maioria dos casos, por juizes eleitos e analfabetos (ou iletrados) que as fontes descrevem amide. Os prprios tabelies elegiam-se, como se ver logo abaixo, para desempenhar as funes de juzes, o que o rei visa a obstar.

    Os tabelies, detentores de uma cultura jurdica vulgar, transmitida por formulrios e mesmo por tradies familiares, so uma pea chave para se conhecer, em profundidade, o direito dos coevos. A propsito dos tabelies, ANTNIO MANUEL HESPANHA registra que o contnuo progresso de uma vida poltica e administrativa baseada no documento escrito e no processo dos autos os constitua em intermedirios forosos de toda a actividade poltica, jurdica e administrativa. Redactores de documentos, eram eles que davam, no plano jurdico, voz s pessoas. Redactores de autos, dominavam os processos, perante a ignorncia e o analfabetismo das partes e dos prprios juzes. Guardies dos cartrios, eram a memria da ordem estabelecida - da titularidade da terra, da genealogia das famlias, dos direitos do rei e das liberdades das terras.33 Embora se possa considerar incerta a data de 15 de janeiro de 1305 para o regimento em comento, os estudiosos inclinam-se, entretanto, a consider-la a verdadeira, ou muito perto disso. Se no era essa, afirma GAMA BARROS, ser-lhe-ia prxima, porquanto os exemplos de Castella e de Frana haviam de influir no nimo de D. Dinis, que desde o princpio do seu reinado revela em tantos atos o propsito de fortalecer o poder da coroa.34 Vamos, mais um vez, comentar os seus artigos, procurando atingir o sentido que se aninha na lngua, que ainda em formao, broto vistoso que vai dar a ltima flor do lcio. Os livros das notas e a advocacia em causa prpria dos tabelies

    Estes ssom os artigos que ElRey manda que guardem os tabellies todos dos seus Reynos. i. artigo Primeiramente iurem que escreuam as notas das cartas ou dos stromentos que ham de fazer. primeiramente en liuro de papel e nom no fazem assy e filham nas en edulas e em Rooes / e perdem nas e quando lhas

    33 HESPANHA. Antnio Manuel. As vsperas do Leviathan - instituies e poder poltico - Portugal - sc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994, p. 522. Sobre o analfabetismo de juzes, cfr. ALMEIDA JR. Joo Mendes. Op. Cit. P. 68-9. 34 Id. Ib.

    23

  • demandam dizem que nom ssabem que he pois as nom acham en seus liuros e som pagados dos dinheiros. e per esta Razom Reebem as gentes gram perda.

    O regulamento obriga os tabelies a lavrarem os instrumentos nas notas de seu ofcio proibindo expressamente que apontassem em cdulas e ris. A acusao de que perfilavam as notas em suporte avulso e assim se perdiam. Quando instados a relatar os instrumentos por certido e extrair traslados de suas notas, no nos podiam restituir, pois j no figuravam em seus livros. Respondiam, assim, que no sabiam do que se tratava o pedido, mesmo quando j tivessem recebido os emolumentos pela prtica do ato.

    Segundo artigoo Dizem que uogam perdante os Jujzes por quem sse pagam e nom no leyxam de fazer por defesa dos Jujzes. ElRey lhis defende que nom voguem saluo se lhis alguem fezer mal ou desaguisado ou a algus de ssa casa que comerem sseu pam e uestirem seu pano que os defendam com seu dereyto e nom sseiam porende theudos aa dicta pena.

    Este artigo trata da advocacia. Deles se reclamava que advogavam perante o juzo, mesmo com a proibio dos juzes. O regulamento conhece a exceo da advocacia em causa prpria ou de seus familiares. Os pergaminhos de couro

    .iij. artjgoo En outra parte iurem que Registem e ponham en liuro boom de coyro as cartas que fezerem das fermides e nom nas pooem hj e esto he gram perdas das gentes

    A preocupao com a perenidade das notas recomenda, aqui, que se registrem as cartas em um bom livro de couro. A reclamao, que exsurge na parte final do artigo, diz que desse modo no procediam, acarretando grande prejuzo das partes. Os escritos eram lavrados em pergaminhos de couro ou de papel (pannos). Na Pennsula se conhecia, por essa poca, o papel de pannos, tendo JOO MENDES DE ALMEIDA JR. relatado que D. Dinis, inspirado na Lei das Sete Partidas, havia ordenado "quaes cartas dev seer fectas pergaminho de coyro e quaes em papel".35 Afiana-nos VITERBO que a traduo das Partidas consagrou a expresso pulgaminho de papel, do original pergaminho de pannos. E j poca de D. Afonso X, o Sbio, (1221-1284), que foi rei de Leo e Castela e era av do prprio D. Dinis, se usava a expresso pergaminho de pannos: das escripturas, humas se fazio em pergaminho de couro, e outras em pergaminho de panno.36 Eram conhecidos os pannos de linho, algodo, seda, farrapos,

    35 ALMEIDA JR., Joo Mendes.Op. cit., p. 67. 36 Elucidrio, verbete papel.

    24

  • folhas, cascas, cortias, entrecascos de algumas rvores e tambm alga marinha (seba ou butilho).37 A excelncia do suporte de couro levar D. Dinis a dispor, no artigo 17, infra, que os instrumentos lavrados por tabelies, quando devessem operar seus efeitos para alm do reino, devessem ser lavrados em pergaminhos de couro. Norma de boas prticas na lavratura do ato: data, leitura, testemunhas etc.

    .Quarto artigoo. Item iurem que leam e escreuam perdante as testemunhas as notas que filharem e nom nas leem e deles nom tragem purgamjnho nem tjnta e dizem que as faram depois e nom lhas fazem. E sse as fazem nom som fectas assy como foy deuisado e naem grandes contendas e grandes perdas antre as partes e perigoo das testemunhas

    Mais uma vez o regimento enfatiza a necessidade de se reduzir s notas a vontade das partes com preciso e fidelidade, lendo-as perante as testemunhas.

    Assim, contudo, no procediam os tabelies. No levavam o pergaminho, nem tinta, nem escreviam e liam as notas perante as testemunhas, assegurando que as lavrariam oportunamente, o que acabava no acontecendo. E o que pior: se depois as escreviam, as notas no guardavam correspondncia com a vontade das partes, nem reproduziam fidedignamente o que se tinha convencionado.

    Quinto artigoo Ham mandado dElRey que todos stromentos e scripturas que ouuerem de fazer que as dem a seus donos do dia que as filharem ata. tres dias ao moor tardar E nom as screuem nem lhas querem dar passa per hu ano e per dous e per tres e per [quatro] e mais e ssom pagados delas. Manda ElRey que as dem ata o dicto tempo. E os stromentos das deujdas do dia que lhos as partes pedirem ata. iij. dias. e sse lhos nom pedirem nom sseiam culpados E quanto he as outras scripturas porque as nom poderam en tam pequeno tempo dar Manda ElRey que lhas dem do dia que / lhas as partes pedirem ata. viij. dias E sse lhas nom ueerem demandar ao dicto tempo e lhas depoys ueerem demandar E ao tempo que lhas demandam arderem nom sseiam culpados

    Aqui se prev a fixao de prazos para a lavratura dos atos notariais. O Regulamento de 12 de janeiro desse mesmo ano (vide comentrios supra e Anexo - doc. I) previa o prazo para a feitura de todos os atos em at trs dias. Aqui se conhecem excees. Todos os instrumentos e escrituras que houverem de fazer, as dem, os tabelies, s partes, em at trs dias, no mais tardar. Os instrumentos de dvida devem ser lavrados em at trs dias, desde que haja instncia expressa dos interessados. As demais escrituras sero lavradas em at oito dias.

    37 Idem, ib.

    25

  • Os tabelies eram acusados de deixar correr muito tempo s vezes anos sem que se incumbissem de lavrar no aprazado os instrumentos rogados, apesar de j terem sido embolsados dos valores emolumentares devidos. Emolumentos e testemunhas

    Sexto artigoo. Item quando uam pedir as scripturas de que som pagados leuam das gentes algo por lhas catarem quanto eles querem E muytos pero lhis peytam nom lhas dam quando lhas pedem. e doestam nos porem os donos das scripturas E perdem seus donos os herdamentos e as demandas que lhis sobre eles fazem porque nom ham sas scripturas e as cartas com que as defendam ElRey defende que nom leuem deles mais que a toussaom so a pena que adeante he scripta Septjmo artjgoo. En outra parte quando os demandam as gentes ssobre esto tragem nos en demandas e en vogarias que nunca com eles ham dereyto.

    Cobrana indevida de emolumentos e extrapolao dos valores tabelados o reclamo a que el-rei atende e dispe. Os tabelies eram acusados de exigir gratificaes, arbitrariamente fixadas, quando j estavam pagos de seus servios. Insultavam as partes e se, eventualmente, fossem demandados, ilaqueavam-nas com pleitos e rabulices, como diria GAMA BARROS, de forma que os prejudicados nunca alcanavam justia.

    viij. artjgoo Ham mandado dElRey que quando filharem as notas dos stromentos que ouuerem de fazer que se eles nom conhoerem as partes que chamem hi taaes testemunhas que as conhoscam e nom no fazem assy

    Mais uma vez volta a questo de lavratura de escrituras em que as partes no eram conhecidas do tabelio. Eram recalcitrantes em chamar para participao no ato as testemunhas que as conhecessem e delas pudessem dar notcia, certificando sua identidade. No Regulamento de 12 de janeiro desse mesmo ano, o mesmo tema foi demandado. Contratao entre cristos e judeus

    .ix. artigo. Item lhis he mandado que quando fezerem os prazos entre christaos e Judeus das deujdas que ponham o o (sic) cabo do que o homem Reeber per ssy. e a creena per sy E quanto Reebem en panos e en dinheiros ou em outras cousas

    Essas prescries visavam forjar maior segurana nas avenas que envolviam

    cristos e judeus. A regra dispunha que os valores fossem discriminados em suas espcies.

    26

  • A expresso prazos que novamente encontramos aqui, e como j referido anteriormente, significava qualquer concerto, ajuste, obrigao. E cabo fazenda, riquezas, cabedal. Portanto, capital, haveres. J nos referimos quela regra parelha que encontramos no Regulamento de 12 de janeiro desse mesmo ano, visando explicitar o principal e os juros onzeneiros. Emolumentos e rogao .x. artjgoo.

    Leuam mais das scripturas que fazem ca o que lhis he toussado per ElRey.

    Mais um agravo dos tabelies: cobram taxas extraordinrias, alm dos preos fixados por el-rei.

    xi. artigo. Quando os chamam pera hirem dar testemunho escusan sse hus per outros de guisa que os nom podem ala auer os homeens E dizem que nom querem ala hir en esto Reebem as gentes gram perda e gram deteena.

    Os tabelies eram chamados para irem dar testemunho e diziam expressamente

    que no queriam ir, acarretando prejuzos e perdas. Pela descrio da atuao negativa, de absteno de testemunho devido, infere-se a regra de que deviam dar testemunho sempre que rogados. o que se conclui com a conjugao do disposto no artigo 15o, infra.

    Duodecjmo. artigo / E fazem sse eleger por Jujzes e som Jujzes hu ano e tornam sse ao tabelljonado. ElRey manda que o nom faam assy sso a dicta pena.

    Os tabelies se faziam eleger para o cargo de juzes e depois voltavam ao tabeliado. O rei ento manda que assim no procedam. Arremataes e mordomados

    xiij. Artjgoo ARendam os moordomados e as outras Rendas por sse apoderarem da terra dElRey a que tange a ssa Juridiom de que el deue a fazer dereyto.

    A disposio no nos parece muito clara. No deveriam, os tabelies, tomar de renda os mordomados. GAMA BARROS registra que o motivo da queixa, um tanto obscura, parece ser que elles commettiam vexames na terra onde eram arrematantes, porque exorbitavam do poder que lhes dava essa qualidade38. Baseia essa sua concluso no disposto nas Ordenaes Afonsinas (I, 47). E continua: contra o facto de serem arrematados por tabellies os direitos do mordomado e outros, expressava-se nos

    38 Op. cit., , p. 385.

    27

  • seguintes termos um dos captulos especiais que a vila de Torres Novas apresentou a D. Afonso V, no se sabe ao certo quando - porque a resoluo deles nem est datada, nem declara onde foram offerecidos. Diz o captulo: Outrossim em este concelho alguns tabellies (h) que se trabalham de rendarem e serem rendeiros de algumas rendas de sayoarias [despotismo?] assim como do mordomado e de outras semelhantes; e porque elles so dos avisados, subtis (sotys), entendidos que ha na terra, por a qual razo so temidos; e alm dos direitos das ditas rendas, levam das pessoas simples o que lhes apraz; a qual cousa prejuizo ao povo, e ainda vo contra a lei do reino que manda que nenhum tabellio no seja rendeiro, nem haja outro nenhum officio. Praza vossa merc que mandeis que os tabellies no hajam outros nenhuns officios, nem arrendem nenhuma renda, salvo que usem de seus officios e vivam per elles e per seus bens. Mandamos que se guarde a ordenao que sobre isto feita, a qual mandamos que se cumpra como vs requereis".39 Prescries formais

    xiiij. artigo. Fazem os prazos das deujdas e das outras cousas antrelinhadas e Rapadas e pooem as eras e os anos e os meses e os dias e as deujdas e os nomes dos homens per conto breue E e lhis defeso per ElRey que o nom faam se nom per letra

    A leitura deste dispostivo se deve fazer conjugadamente com o artigo 16o, infra.

    A advertncia e a prescrio se destinam a regularizar a lavratura dos atos dos tabelies. Deveriam indicar precisamente em suas notas a data (era, ano, ms, dia), o lugar, o nome das pessoas que nelas figuravam, a perfeita prescrio do objeto dos contratos, tudo por extenso (per letra) e no por registro resumido (per conto breue). Era tambm reprimida a interpolao de texto por estrelinhas, bem como praticar rasuras (cousas antrelinhadas e Rapadas). A prescrio clara e visava regularizar materialmente a lavratura dos atos notariais.

    .xb. artjgoo Os tabellies nom deuem a dar os testemunhos ssem Rogo das partes e perdante testemunhas Rogadas e chamadas danbas as partes ou de cada ha delas.

    Os tabelies deveriam dar seu testemunho s a rogo das partes e na presena de testemunhas rogadas e chamadas por ambas ou por cada uma delas. Prescries formais data e local assinatura em cruz

    .xbj. artigo.

    39 Chancelaria de D. Afonso V, liv. II, folha 21 verso, Liv. X da Estremadura, fol. 42 apud BARROS, Henrique da Gama. Op. cit., p. 385.

    28

  • Item deue a per senpre no stromento o dia e a era en que forom feytos antre as partes e os logares en que forom fectos.

    Nos reportamos aos comentrios feitos ao artigo 14, supra. A necessidade de aposio precisa de data e local nas escrituras juntamente com as firmas e/ou signo dos contraentes e testemunhas, como se ver abaixo muita antiga. Encontramos uma disposio contida na Lex Visigothorum (2,5,1), verbis:

    Quales debeant scripture valere. Scripture, que diem et annum habuerint evidenter expressum adque secundum legis ordinem conscripte noscuntur, seu conditoris vel testium fuerint signis aut suscriptionibus roborate, omni habeantur stabiles firmitate.40

    Esta lei de FLAVIUS CHINDASVINTO (642-653) j exigia a datao dos instrumentos

    para sua validade, bem como a subscrio confirmatria do outorgante e das testemunhas. Em relao subscrio, merece nota a distino que se deve fazer entre subscriptio e signum. Quanto primeira, pressupe-se alfabetismo; j a segunda seria o substitutivo da subscriptio para analfabetos.

    Ainda sobre o signo, merece registrar que esses documentos escritos traziam

    normalmente uma cruz, aposta ao lado dos firmantes. Vem desde ento a expresso, que penetrou em nossa cultura, de dizer-se assino em cruz.

    A prtica indicava, segundo registrou RIBEIRO, que naquele tempo era vulgar a

    falta de percia de escrever41. Mais curioso ainda e o nota com acurcia o mesmo RIBEIRO que sendo diversas as pessoas que figuravam nos instrumentos, so aquelas riscas to uniformes, e at identicas com o rasgo do Notario, que ou havemos de suppor que a maior parte dos Documentos mais antigos que nos resto so meras copias, ou abraar o sentimento dos Novos Diplomaticos, de que os signaes mesmos ero tambm muitas vezes feitos pelo Notario e que as partes se contentavo de roborar, pondo a mo no Documento, ou na cruz, feita pelo Notario.42

    Outras prescries formais

    xbij. artjgoo Todos os tabellies quando acaeer que ouuerem de fazer algas scripturas grandes antre as partes assy come apelaes e protestaes come outras scripturas grandes assy come Razes antre as partes assy como sse sse aueem a Razar nouamente ou algus fectos grandes de que deuem a dar

    40 O texto do qual nos servimos figura na excelente Coleo de textos de direito peninsular e portugus Textos de Direito Visigtico, Codex Euricianos, Lex Visigothorum a cargo de MERA, Paulo. Coimbra Imprensa da Universidade, 1923, tomos I e II. 41 RIBEIRO, Joo Pedro. Dissertaes chronologicas e criticas. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1857, t. III, p. II, dissertao IX, p. 16. 42 Idem, ibidem. Cfr. tb. CAETANO, Marcello. Histria do direito portugus. Lisboa: Verbo, 4a ed., 2000, p. 244.

    29

  • testemunho a cada ha das partes que aiam a ssayr pera fora do Reyno. as partes dem lhi cada hu as ssas Razes per scripto. E sseiam ante as partes auijndas nas scripturas. que lhis por esta Razom derom. e sseiam notadas ante as Razes e Registadas en porgamjnho de coyro E as que forem no Reyno Registem nas en papel e leam sse ante perdante as testemunhas ante que essas scripturas seiam fectas e assjnaadas em guisa que sabham hi a uerdade as testemunhas quando comprir ou as / faam logo perdante as testemunhas quando as Razarem perdante eles en guisa que as partes aiam o seu dereyto cada ha. E que sseiam per hi os tabellies e as testemunhas guardadas de prigoo

    Este artigo prescreve procedimentos e formalidades para lavratura de escrituras que qualifica de grandes, exemplificando. Parece dispor sobre a maior formalidade na lavratura dos atos quando as partes devam sair fora do reino, ou quando os seus efeitos se faam no exterior. Nesses casos, o registro se daria em pergaminho de couro. Dispe, tambm, sobre a redao daquelas que devam ser cumpridas no prprio reino, podendo-as registr-las em papel. Os curiosos instrumentos partidos e os selos de autenticidade

    .xbiij artigo Item todolos tabellies quando fezerem algus stromentos partidos per. a.b.c. ou ssemelhaujl hu ao outro que aiam de dar a cada ha das partes o seu testemunho como quer que sseia theudo a dar a cada ha das partes o seu E a parte quiser tirar o seu testemunho dem lho sse o pagar como quer que a outra parte nom quer tirar o seu testemunho per alga Razom de sse nom entender a aJudar dele ou peruentuyra o nom quer pagar.

    Os instrumentos partidos deveriam ser lavrados em colunas que eram ento estremadas por espaos preenchidos por letras (geralmente A, B, C) ou com os nomes dos contraentes, ou com expresses ou sentenas como fiat pax et veritas. Amen. Eram ento cindidos e devolvidos a cada uma das partes contratantes. Relata-nos RIBEIRO que desde o sculo IX se faz meno s chartas pariclas, significando aqueles documentos de que se lavram dois ou mais instrumentos, restituindo-se a cada contraente o seu exemplar43. Tal procedimento foi conhecido tambm como indentadur, chart indentat, indentat liter, scripta indentat etc. Em Portugal se dava o nome de chart per alphabetum divis, ou dividida por A. B. C. Instrumentos semelhveis, na dico do regimento, eram assim lavrados para garantia de sua autenticidade antes da autenticao por aposio de selos. Alis, cabe fazer referncia, aqui, lei de 1 de julho de 1305, que figura na coleo de Leis e Posturas (LLP, folio 66, publicada aqui, Doc. IV), pela qual se determina que os tabelies no faam certos instrumentos sem a comparecncia de cinco testemunhas e sem aporem, nos ditos instrumentos, pela forma que menciona, um novo selo que o rei cria para esse fim.

    43 RIBEIRO, Joo Pedro. Dissertaes chronologicas e criticas. 2a ed. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1857, t. III, p. II, dissertao VIII, p. 5

    30

  • Essa lei dispunha que nos instrumentos de dvida, moratria, emprstimo, renovao ou quitao, em que atuassem os tabelies, interviessem cinco testemunhas conhecidas. Desses instrumentos partidos, pode-se afirmar que, de ordinrio, procedia-se da seguinte maneira: os instrumentos eram lavrados na mesma pele de pergaminho, que era ento cindida e entregue aos contratantes para que, a todo tempo, unidos ambos (ou mais), se pudesse, assim, confirmar a sua autenticidade pela imbricao perfeita dos retalhos. RIBEIRO nos relata a existncia de um escambo inserto no instrumento datado de 5 de junho do mesmo ano de 1305 (Era 1343) em que se diz por tres cartas semelhantes bolladas de minha bolla, partidas por A B C...44 Cartas bolladas so cartas seladas. Os selos eram conhecidos desde o incio na Pennsula com nomes como dactulios, sfragis, signum, signaculum, bulla, anulus, sigillum, signetum etc. Entre os portugueses foi dado o nome de sigillum, em vulgar sello ou bolla, dizendo-se cartas bolladas ou chumbadas, que eram as munidas de selo, especialmente de chumbo. Curiosamente, essa prtica de cindir os documentos para autenticidade atravessou a noite dos tempos e at h pouco tempo os bilhetes da loteria federal traavam linhas senoidais permitindo-se que, com o destaque, se pudesse posteriormente verificar a perfeita congruncia, evitando-se falsificaes. MARCELO CAETANO relembrar a instituio do selo de autenticidade por ordenao de D. Dinis (cfr. Doc. IV, anexo): Foi D. Dinis, por lei de 1305, que determinou a presena de cinco testemunhas (em vez das trs habituais) como condio de validade das escrituras celebradas pelos tabelies para constituio ou quitao de dvidas, emprstimos ou avenas, e mandou selar essas escrituras com o selo que deveria, da em diante, existir em cada cidade, vila ou julgado, contendo os meus sinais e letras que contam o meu nome e o nome da cidade, ou da vila ou do julgado. O selo ficaria confiado a um homem-bom, de nomeao rgia, jurado sobre os Santos Evangelhos, e seria aposto em cera na escritura ou carta, perante o devedor ou interessado nela.45 Um exemplo de ata notarial?

    Decjmo nono artigoo Se algu pedir testemunho ao tabelliom por alga Razom perdante os Jujzes que lhi nom querem fazer comprimento de dereyto. Se o Jujz diz dade lho com a mha Resposta djga logo o Jujz a Resposta que lhi quiser dar. E sse peruentura a nom quiser dar logo o tabelliom nom leyxe porem a dar o testemunho aaquel que lho pedir Esso meesmo faa antre as outras partes que pedirem testemunho e lhi alga das partes quiser dar Resposta sse lha logo nom der. Ca he erto que se lhi logo o Jujz ou a outra parte com que ha demanda nom dam a Resposta que lho nom queyram dar ata gram tempo E andam per hi os homeens en perlonga. en guisa que sse estragam do que ham e nom podem auer comprimento de dereyto.

    44 RIBEIRO, Joo Pedro. Dissertaes chronologicas e criticas. Lisboa: Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1860, t. I, dissertao III, p. 84, I. 45 Op. cit. p. 357.

    31

  • Aqui encontramos uma disposio muito curiosa. Se algum interessado pedisse testemunho ao tabelio perante juzes que se negassem a satisfazer ao que a parte entendesse ser de direito, deveria o tabelio d-lo, quer o juiz respondesse logo reclamao sobre o qual recaia o testemunho, a fim de ser a resposta inscrita igualmente no instrumento, quer o juiz se recusasse a responder desde logo. Dava-se o mesmo sempre que o testemunho do tabelio fosse pedido por uma das partes a respeito das outras. Essa ltima disposio inova o que consta do Regimento anterior (vide infra). Essa mesma disposio servir de remate a este Regulamento ora sob comento (vide parte final).

    O registro do tabelio poder ser aproveitado em favor daqueles que lhe pediram

    o testemunho. uma forma interessante de registro, robustecido com a fora probante da f pblica, uma ata notarial.

    Tais casos aconteciam em Santarm com os corregedores. Em 1406, nas cortes ali

    reunidas no ano de 1406, conta-se que nos captulos especiais os corregedores e ouvidores no admittiam que as partes levassem comsigo tabellio perante elles, a fim de terem, em defesa dos seus direitos, quem lavrasse instrumento do que ahi se passasse, e diziam-lhes que tirassem carta testemunhvel; a carta era-lhes requerida, mas nunca as partes a chegavam a obter. Responde D. Joo I a este artigo que os tabellies no ho de dar instrumento nem escrever perante os corregedores (no fala em ouvidores); e quando aos corregedores se requerer alguma cousa ou se lhes fizer fronta, de que as partes hajam de haver carta testemunhavel, devem elles dal-a com a sua resposta at trs dias; e se at esse tempo no a derem, pea-se ento instrumento aos tabellies, aos quais el-rei manda, sob pena dos officios, que no deixem de os dar.46

    Corregedoria dos tabelies (mas tambm dos juzes)

    xx. artigo E sse algu tabelliom fezer cousa que sseia theudo a coReger. sse lho o Jujz fezer coReger nom no ameae porem. ca sseia erto sse lho o Jujz manda coReger aquelo que fez que o ameaa. E que diz que sse calem ca ele sabe o que tem ssobre eles scripto E per esta Razom nom ousam os Jujzes a fazer deles comprimento de dereyto e de Justia. porque nom ousam os Jujzes deles a fazer E nom faam assy daqui adeante sso pena do que ElRey pos que adeante he scripto.

    Os tabelies estavam sujeitos corregedoria dos juzes. Mas igualmente os juzes de certo modo estavam sujeitos a uma espcie de