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Revista Portuguesa de Historia

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PUBLICAÇÃO SUBSIDIADA PELA

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Os artigos assinados são da exclusiva responsabilidade dos seus autores

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FACULDADE DE LETRAS UNIVERSIDADE DE COIMBRA

INSTITUTO DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL

Revista Portuguesa de História

TOMO XXXVII

Coimbra 2005

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Revista Portuguesa de História

FUNDADOR

Torquato de Sousa Soares

COMISSÃO CIENTÍFICA

António de Oliveira José M. Amado Mendes Luís Ferrand de Almeida

Maria Helena da Cruz Coelho Rui de Ascensão Ferreira Cascão

COMISSÃO EXECUTIVA

João Paulo Avelãs Nunes Fernando Taveira da Fonseca

Maria Antonia Lopes Maria Manuel Almeida

CAPA

Rodrigo Fonseca

IMPRESSÃO • ACABAMENTO

G.C. - Gráfica de Coimbra, Lda. Palheira - Assafarge 3001-453 Coimbra

[email protected]

A colaboração é solicitada

Toda a correspondência deve ser dirigida a:Revista Portuguesa de História Instituto de História Económica e SocialFaculdade de Letras da Universidade de Coimbra • 3004-530 Coimbra Telef. 239 859 962 • Fax. 239 836 733 • Email: [email protected]

Depósito Legal n° 1409/82 ISSN 0870.4147

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Formas e contextos da violência

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Nota Introdutória

Da violência, como fenómeno, se pode afirmar a constante presença no seio das sociedades humanas e a extrema variedade das suas manifestações. Daqui resulta uma relação dialéctica entre a tentativa de definição ou delimitação conceptual - onde se conjugam elementos de origem etimológica, psicológica ou psicossocial - e a inclusão de actos ou situações concretas no dominio da violência, com a consequente dimensão valorativa que tal inclusão traz consigo. Não basta com efeito, considerar a materialidade ou a estrutura formal de um acto - injuriar, constranger, agredir ou matar, para apenas citar os mais correntemente associados a este conceito - mas importa atender ao(s) agente(s), ao contexto possibilitador (amplo e social ou imediatamente situacional) e ao fundo ideológico-cultural com o qual se prende o processo de legitimação ou de condenação.

É este último aspecto o que mais contribui para a complexidade da análise do fenómeno do uso excessivo da força: se é possível afirmar que a violência tem a sua própria racionalidade - enquanto acção ou conjunto de acções de carácter instrumental direccionadas à consecução de um resultado - a sua justifi­cação ou a compreensão da sua razoabilidade exige uma constante referência histórica à realidade social no seio da qual ela se produz e sobre a qual actua. E este cuidado crítico não se confina à análise do fenómeno em si: terá de estender-se - e com atenção redobrada - às narrativas e aos discursos que o tomam como objecto, também eles historicamente, socialmente e ideologicamente situados.

Assim é que a perspectiva adoptada no volume que agora se publica pretende atender à multiplicidade e à complexidade, centrando-se nas formas e nos contextos da violência: antes de mais, os contextos, em grande parte condicio­nadores das formas, transportando-nos das relações interpessoais aos conflitos grupais, institucionais e internacionais.

Por expresso convite dos organizadores, a tarefa de perspectivar os diversos contextos e formas da violência foi confiada a especialistas com créditos firmados

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8 Nota Introdutória

nos respectivos campos de análise. A eles o sincero agradecimento pelo contributo inestimável que quiseram prestar a este projecto comum. Ao leitor, a par de uma saudação amiga, o desejo de que a reflexão que agora lhe chega às mãos seja um contributo válido para a compreensão de um fenómeno inquietante - ao qual anda associado o sentimento de insegurança pessoal e social - inscrito no quotidiano hodierno.

Fernando Taveira da Fonseca

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Revista Portuguesa de Historia t. XXXVII (2005)

pp. 9-27

A Violência em Portugal na Idade Moderna: olhares historiográficos e perspectivas de análise

Margarida Sobral Neto* Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

«Do rio que tudo arrasta se diz que é violento; mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem»

Berthold Brecht

1. À procura da definição de um conceito

“A violência não é una mas múltipla. Movediça, muitas vezes inatingível, sempre a transformar-se, ela designa - conforme os lugares, as épocas, as circuns­tâncias, ou os lugares - realidades muito diferentes”1. Violência é, na sociedade actual, uma palavra de uso quotidiano, sendo o seu conteúdo semântico muito

Professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Membro do Centro de História da Sociedade e da Cultura. Cumpre-nos agradecer a leitura crítica que deste texto foi feita pela Doutora Maria Antonia Figueiredo Lopes e pela mestre Dina Alves.

1 CHESNAIS, Jean-Claude, Histoire de la violence en Occident de 1800 à nos jours, Paris, Robbert Laffont, 1981, p. 11.

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10 Margarida Sobral Neto

amplo. As utilizações do vocábulo reflectem a “reactividade aversiva” (Elias)2 a múltiplos usos da força, material ou simbólica, que se diversificam no contexto de uma sociedade globalizada3. Esta representação da violência gera sentimentos de medo e de desprotecção propícios à implantação de diversos mecanismos de segurança susceptíveis de envolverem em si mesmos formas de violência física e sobretudo simbólica4.

A violência não é um fenómeno específico da nossa sociedade. É uma compo­nente do viver social que tem assumido expressões diversas ao longo do tempo, sendo igualmente diversas as estratégias utilizadas pela sociedade para lidar com este fenómeno. Acreditamos que olhando a violência na espessura do tempo, na longa duração (Braudel), seremos capazes de analisar de forma mais adequada as suas expressões actuais, as visíveis e sobretudo as invisíveis, contribuindo para que se encontrem os meios mais consentâneos à construção da paz no seio das sociedades e no concerto das nações.

Propomo-nos abordar neste texto algumas das representações do fenómeno da violência na Idade Moderna que nos têm sido transmitidas pela recente historiografia. Cumpre-nos iniciar a abordagem desta problemática com algumas reflexões sobre o conceito de violência5. A palavra “violencia” era usada na Idade Moderna tendo Rafael Bluteau registado, no seu Vocabulario as seguintes ocorrências dos termos violência e violento: “vento violento”, “violencia do frio”, “violencia das doenças”, “violento, vehemente, impetuoso, fallando em vento, tormenta, torrente, ira, ou outra payxão furiosa”, “homem violento, arrebatado, que facilmente se deixa levar da ira”, “violento, não natural”, “morrer de morte violenta, he morrer não de doença, ou de velhice, mas de feridas, ou outras violências ou desgraças”, “por mãos violentas em alguém. He frase das censuras

2 Sobre este conceito ver ELIAS, Norbert, Processo civilizacional, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1999.

3 ENGELHARD, Philippe, La violence de l 'Histoire, Paris, Arléa, 2001.4 CASTEL, Robert, L ’insécurité sociale, Éditions du Seuil e La République des Idées, 2003.5 Sobre o conceito de violência ver: CHESNAIS, Jean-Claude, Histoire de la violence en

Occident de 1800 à nos jours; ARENDT, Hannah, Da violência, trad. de Maria Claudia Drummond Trindade, Brasília, Editora Universidade de Brasilia, 1985; MICHAUD, Yves La violence, Paris, Presses Universitaires de France, 1992; S. Giora Shoham e outros, Violence: an integrated multivariate study of human aggression, Aldershot, Dartmouth, 1995; GIRARD, René, La violence et le sacré, Paris, Hachette/Pluriel, 1994. A psicologia social prefere a utilização do conceito de agressão ao de violência. Sobre este conceito, bem como sobre as teorias explicativas da agressão Cf. FISCHER, Gustave-Nicholas, A dinâmica social. Violência, Poder e Mudança. Lisboa, Planeta Editora, 1994, pp. 31-68; LORENZ, Konrad, A agressão. Uma História Natural do Mal. Lisboa, Relógio d’Água, 1992.

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A Violência em Portugal na Idade Moderna 11

Ecclesiasticas, val o mesmo que ferir ou matar”, “eu fui violentado a fazer isto”6. De acordo com as definições de Bluteau o homem, ou a natureza, passavam do estado natural ao estado violento (“violento, não natural”), do equilíbrio ao desequilíbrio, quando eram movidos por uma força excessiva geradora de fenómenos naturais (vento, frio, tormenta) ou sentimentos (paixão furiosa, ira) fortes e excessivos. Os sentidos da palavra atrás enunciados comportam ainda os conceitos de agressão física “por mãos violentas em alguém” e de coacção psicológica “fui violentado a fazer isto”, sentidos que perduram no tempo.

Violência pode, assim, significar agressão física, contra alguém (sendo esta uma dimensão objectiva e mensurável) ou coacção psicológica. A violência contra o Outro pode expressar-se ainda de forma indirecta, através da agressão aos bens, percepcionados, simbolicamente, como uma extensão do próprio corpo7. Neste contexto consideramos operatória, para a análise da violência na Idade moderna, a definição de Yves Michaud: “Há violência quando numa situação de interacção, um ou vários actores agem de maneira directa ou indirecta, de forma concentrada ou repartida, atingindo uma ou várias pessoas, em graus variáveis, na sua integridade física ou na sua integridade moral, nos seus bens ou nas suas representações simbólicas e culturais”8.

A classificação de um acto como violento depende do contexto em que ele ocorre bem como da sua proveniência. Como afirma Gustave-Nicolas Fisher “os problemas da violência estão ligados a representações sociais que os codificam positiva ou negativamente, segundo o tipo admitido ou recusado pelas categorias em presença”, dependendo a diferente conotação e valoração da atitude violenta do facto de se considerar que ela promove a ordem ou a desordem9.

2. A violência como objecto historiográfico

Os historiadores sempre dedicaram uma particular atenção ao estudo da guerra, uma das formas mais brutais e organizadas da violência10. A perspectiva de análise deste fenómeno situou-se, no entanto, durante longo tempo, na área

6 Rafael Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino, Lisboa Ocidental, Na Officina de Pascoal da Sylva, 1721.

7 MUCHEMBLED, Robert, La violence au village. Sociabilité et comportements populaires en Artois du XVau XVIII siècle. Brepols, 1989, pp. 144-160.

8 Y. Michaud, Yves Michaud, La violence, Paris, PUF, 1986.9 FISCHER, Gustave-Nicholas, A dinâmica social..., p. 15.10 “A história dos homens e das mulheres regorgita de guerras: é mesmo (talvez), no longo

prazo, mais uma história das guerras e dos confrontos do que uma história das concórdias e dos tratados de paz” (Arlette Farge, “Da guerra”, in Lugares para a História, Teorema, 1999).

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Contestação do regime e tentação da luta armada sob o marcelismo

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Revista Portuguesa de Historia t. XXXVII (2005)

pp. 105-130

Estado Autoritário e Violencia no Brasil

Nilson Borges Filho' Fernando Filgueiras"

Cenário 1. Reconstruindo a História

Há diversas formas de se contar a história, sobretudo quando se trata do Brasil. Vários enfoques podem ser oferecidos sobre determinados períodos, principalmente quando deles resultaram muitas dores sob o efeito da repressão política e da violência estatal. Inúmeros são os trabalhos que tratam da escalada repressiva no Brasil República em dois momentos importantes da sua história, como no Estado Novo e durante o regime militar que se instalou a partir de 31 de março de 1964.

Todos esses trabalhos que versam sobre tais momentos foram tratados, em maior número e densidade, pela pesquisa acadêmica ou por alguns memorialistas e protagonistas de então. A busca por fontes primárias era difícil e o acesso a * **

* Doutor em direito do Estado pela UFSC, pós-doutor em direito público pela Universidade de Coimbra, ex-professor da UFSC e da UFMG, coordenador e professor de Ciência Política da Faculdade Metodista Granbery.

** Doutorando em Ciência Política no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor de Sociologia Jurídica da Faculdade Metodista Granbery.

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106 Nilson Borges Filho e Fernando Filgueiras

essas mesmas fontes estava direcionado a um público privilegiado, ou seja, aos brasilianistas. Mesmo assim, um certo número reduzido de acadêmicos conseguiu, com muito esforço, produzir um leque de obras determinantes para se conhecer os dois períodos mais agonizantes do autoritarismo brasileiro e da violência praticada pelo Estado.

Por outro lado, além da academia, a história também pode ser contada pela crónica política e pelo jornalismo crítico, investigativo e independente. No Brasil de hoje, alguns acontecimentos de ontem estão sendo reconstruídos por análises jornalísticas, resultantes de uma investigação documental promissora, recompondo a memória nacional. O resultado dessas, vamos dizer assim, “reportagens” investi- gativas da imprensa brasileira foi o de nos oferecer um quadro inédito dos acontecimentos ocorridos no regime estado-novista de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, e no período da República dos Generais, de 1964 a 1985.

A história que aqui está sendo contada evoca para si o direito de dar “ouvidos” aos protagonistas desses períodos, sejam eles sujeitos coletivos ou singulares. O pensamento autoritário dos intelectuais orgânicos brasileiros, o idealismo conservador e excludente das elites formadas na mística do poder em nome da Nação, a insensibilidade à democracia dos ideólogos dos regimes de exceção, a truculência da violência fardada, justamente com os protagonistas singulares, democratas ou não, fornecerão a “base de dados” para esse novo olhar sobre os fundamentos do autoritarismo implantado no Brasil desde sempre.

Nos últimos três anos têm surgido novos - porém antigos - documentos sobre o Estado Novo e sobre o Regime Militar pós-64. A origem é das mais diversas: das organizações que pensaram ou construíram esses períodos, das organizações que combateram esses regimes, dos órgãos de repressão, dos acervos particulares, dos arquivos públicos e até mesmo dos “espiões” arrependidos. Quando se pensava que tudo havia sido dito sobre o período fascista de Vargas, eis que surgem documentos públicos tratando sobre matéria que se dizia esgotada: as intenções e ações “germanófilas” de Getúlio. Já sobre o golpe militar e o regime dos generais, desde o início dos anos de 1980, com a publicação de memórias, biografias e autobiografías de militantes dos dois lados, até os dias de hoje, com a publicação de livros de jornalistas e teses acadêmicas, vez por outra aportam nas livrarias obras que nos dizem que muito ainda está para ser contado e que a história recente brasileira permanece em construção, ou, a bem dizer, em reconstrução. Assim, a memória recente do país vai sendo construída, ao mesmo tempo em que o Brasil vivia ou vive o desafio de construir a democracia (Rollemberg, 2003:45). Parece que a vocação brasileira é estar sempre enfrentando desafios para a construção e para a consolidação da democracia. Foi assim a partir de 1946, com o encerramento do Estado Novo e a promulgação de uma

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Estado Autoritário e Violência no Brasil 107

nova Constituição; está sendo assim, ainda agora, com a Constituição de 1988 e com um governo que, saído das bases sindicais, pretende ser democrático.

Na verdade, uma parcela significativa da história política brasileira é, ainda, nos tempos de agora, “um segredo bem guardado” (Figueiredo, 2005:13), sobretudo quando se trata dos militares, seus generais e seus apêndices organizacionais como, por exemplo, os órgãos de informação - o Conselho de Defesa Nacional e o Serviço Nacional de Informação - gestores da violência estatal nos momentos do autoritarismo explícito no país.

O presente artigo, que trata sobre autoritarismo e violência no Brasil, cobrirá os acontecimentos políticos e sócio-econômicos ocorridos em dois períodos da história brasileira. Primeiro, de 1937 a 1945, quando da vigência do Estado Novo, patrocinado pelo presidente da República Getúlio Vargas, e por seus generais de plantão, Dutra e Góes Monteiro, ministro da Guerra e chefe do Estado-Maior do Exército, respectivamente. Em segundo lugar, de 1964 a 1985, período conhecido como regime militar. A idéia inicial é demonstrar como se forma o pensamento autoritário brasileiro e, a partir desse pensamento, como a violência estatal se operacionaliza nestes períodos, sendo ela um mecanismo mediante o qual o Estado se coloca acima das classes sociais, construindo a Nação a partir do medo provocado por essa violência. Em um segundo momento procura-se demonstrar como o Estado brasileiro se utilizou desse pensamento autoritário e da violência institucionalizada derivada dele como mecanismos de reprodução ideológica, porém não atrelada a qualquer classe social presente na arena política, configurando uma peculiaridade histórica que atravessa a formação brasileira no século XX.

Cenário 2. Demarcando Conceitos

Antes de ingressar no mérito deste ensaio, a temática que dele se projeta para um melhor entendimento do conceito de autoritarismo pressupõe alguns esclarecimentos prévios, sobretudo para distingui-lo de outros conceitos, muitas vezes tidos como sinónimos, mas que encobrem diferenças processuais no âmbito da sociedade, como ditadura e totalitarismo. Tal análise não se restringe apenas ao campo doutrinário, focalizando-se, em especial, no caso concreto brasileiro. Embora alguns autores pequem pela generalização, o autoritarismo implantado no país carrega determinadas características que o distingue, inclusive, de outros regimes autoritários latino-americanos. Portanto, à medida que se vai tentando apurar o conceito de autoritarismo na esfera da concretude brasileira, mais próximo vai se chegar ao principal protagonista dos diversos momentos e períodos de estado de exceção vivenciados no decorrer da história política do país: os militares.

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108 Nilson Borges Filho e Fernando Filgueiras

Contudo, é importante assinalar que o poder civil sempre se negou a considerar o aparelho militar como ator principal no espectro político brasileiro. Entender que as Forças Armadas foram meros atores coadjuvantes ao longo da história é desconhecer o seu papel tutelar, quando, antes de 1964, estabeleceram os limites de até onde o poder civil poderia atuar. Já a partir de 1964, os militares passam a se atribuir uma capacidade decisória própria, que os transforma em principal ator político, com autonomia relativa perante o Estado (Ferreira, 2000:11-12). É claro que quando o estamento militar age politicamente, deve-se considerar que ele não fala apenas em seu nome, mas, sobretudo, em nome de grupos, tanto de grupos civis quanto de grupos militares, que se arrogam o papel de arautos da Nação. Em todos os momentos em que as Forças Armadas brasileiras tentaram agir por conta própria, sem uma aliança prévia com as elites civis, o pronunciamento militar transformou-se numa simples quartelada. Porém, quando essa aliança se faz de forma clara e objetiva, como aconteceu em 1937 e 1964, o sucesso para a implantação de um regime autoritário está plenamente garantido, sem muito esforço de ordem operacional. Tanto no golpe do Estado Novo quanto no golpe de 1964 as reações aos movimentos foram mínimas, sendo que, em nenhum momento, colocaram em risco as ações golpistas. Faz-se mister assinalar, a bem da verdade, que a tese que apresenta as Forças Armadas brasileiras como instrumento do poder civil (Coelho, 1976: 18-19), convocadas para dar apoio aos projetos da elite política, não tem a menor susten­tação empírica, principalmente porque se sabe que o aparelho militar tem características que o colocam em vantagem sobre quaisquer organizações civis: superioridade em organização, um sistema simbólico altamente eficiente e o monopólio das armas (Góes, 1984: 362).

Retomando ao início deste cenário, é preciso deixar bem clara a distinção entre regimes autoritários e regimes totalitários e ditatoriais, sejam eles de esquerda ou de direita. Em primeiro lugar deve-se traçar o conceito de autoritarismo, para, num segundo momento, caracterizar o autoritarismo brasileiro: seu pensa­mento e sua ação política. Convém salientar que estabelecer uma definição de autoritarismo envolve uma certa dificuldade conceituai (Aquino, 2004: 55), a começar pela crítica à sua excessiva amplitude. Essa excessiva amplitude pode ser vista, também, como um ponto favorável considerando os diversos tipos de regimes autoritários que existiram - e ainda existem - ao longo da história de uma parcela considerável de países ao redor do mundo.

Os regimes autoritários nasceram das condições políticas vigentes no século XX que, grosso modo, pode-se “caracterizar, negativamente, por menos investimentos em todas as esferas da vida social; pela inexistência de uma simbiose entre partido político e Estado, sendo o primeiro, quando existente, dependente do

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Estado Autoritario e Violência no Brasil 109

último; pela restrição à mobilização das massas” (Fausto, 2001a: 8). Se existe urna característica dos regimes autoritários que alcança quase que a unanimidade entre os doutrinadores e analistas políticos é a sua relativa autonomia, que preserva a sociedade em relação ao Estado, isto é, a existência de urna certa tolerancia de pensamento. No caso brasileiro, específicamente pós-64, o partido de oposição era tolerado pelo regime, desde que não levantasse a bandeira do seu desmonte - do regime. François Furet, citado por Boris Fausto, entende que, na prática, não é fácil distinguir regimes totalitários de regimes autoritários, isto porque lidamos, em ambos os casos, com tipos ideais, cujos traços não estão integral­mente presentes em várias situações do cotidiano (Fausto, 2001a: 8).

A rigor, não se pode abandonar a idéia da existência de alguma similitude entre totalitarismo e autoritarismo, mas acreditamos que prevaleça a tese de que o conceito de autoritarismo não se restringe por determinadas características presentes nos conceitos de totalitarismo - a necessidade de um partido de massa responsável por uma ampla mobilização na sociedade - e de ditadura - a premência de se utilizar de um ditador carismático ou de um partido que agregue em seu projeto político algumas demandas populistas. Essa análise distintiva (Aquino, 2004: 55), que abriga uma boa parte dos conceitos formuladores de regimes autoritários reflete, de certa maneira, algumas especificidades dos regimes autoritários de perfil militar, como no caso brasileiro (1937 e 1964).

Mas é em Juan Linz e O’Donnell que se vai encontrar uma tipología para os regimes autoritários. A tipología que aponta para um regime autoritário burocrá­tico-militar, no entender de Linz, reconhecia a presença de uma fusão de oficiais e burocratas e o baixo grau de participação política por parte da sociedade civil. Além disso, essa mesma tipología não via a necessidade da existência de uma ideologia oficial e de um partido de massa para dar sustentação ao regime (Aquino, 2004: 56). Na outra ponta da doutrina sobre regimes autoritários, O’Donnell vê o Brasil pós-64 como uma nova forma autoritária, denominada por ele de burocrático-autoritária. No seu entender, com essa denominação, procurava distinguir o regime brasileiro - e o argentino - de simplesmente regimes autoritários ou militares ou, ainda, fascistas. Para o autor, o regime burocrático autoritário “corta desde a raiz a ameaça de uma crescente ativação política a cujo compasso foram amolecendo os contrastes do Estado e das classes dominantes sobre o setor popular. O regime burocrático-autoritário impõe uma nova ordem social, mesmo que para atingir tal objetivo, se utilize da violência estatal e paraestatal” (O’Donnell, 1987:53).

Embora alguns autores pretendam caracterizar o Estado Novo de Vargas como um caudilhismo, há evidência, na verdade, de um autoritarismo centralizador e do fortalecimento do Executivo e de suas capacidades técnicas, ou seja, da sua

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110 Nilson Borges Filho e Fernando Filgueiras

racionalidade formal (Cardoso, 1982:48). Com o fortalecimento do Executivo, como no caso do Estado Novo, o Judiciário passa a ser controlado, na prática, por ele; além disso, ocorre a eliminação do Legislativo. A caracterização do Estado Novo no Brasil como um regime fascista, como outros pensam, revela um desconhecimento da principal característica do fascismo, qual seja, de produzir um povo emocionalizado. Ao contrário, o autoritarismo aspira introduzir no seu interior a apatia das massas. Assim, o autoritarismo brasileiro, seja aquele de 1937 a 1945, ou este de 1964 a 1985, dispensa o partido político como ligação organizacional entre a sociedade civil e o Estado, fazendo com que as Forças Armadas suijam como fiadoras da ordem autoritária - como tuteladora ou como dirigente -, sendo que o processo de tomada de decisões políticas preserva uma estrutura hierárquica rígida e centralizada nas mãos do Executivo. Ao Legislativo, quando existente -1964 a 1985 -, reserva-se o papel de ator político coadjuvante ou de membro homologador de decisões superiores (Cardoso, 1982: 44).

As Forças Armadas, faz mister assinalar, exerceram funções diferentes nos dois períodos autoritários: no Estado Novo, os militares tomam o poder para manter Vargas na direção do Estado, porém exercendo o seu papel tutelador do regime. Já no período pós-64, as Forças Armadas assumem a direção do Estado e se organizam nas bases da moderna doutrina militar. Apesar das tentativas, não logrou efeito a institucionalização de uma ideologia própria no autoritarismo brasileiro, onde se projetaria a crença nas virtudes da raça e no destino do povo - o fascismo. Em vez disso, os ideólogos do regime autoritário conseguiram apenas produzir um cimento doutrinário, favorecendo o surgimento de uma mentalidade conservadora, cuja visão de mundo assenta-se no fortalecimento do. aparelho de Estado, no controle social e na expansão económica, limitando o horizonte de expectativas e oportunidades dos atores políticos excluídos do processo.

O surgimento de um Executivo forte, quase ditatorial, levou Boris Fausto, sem cerimónia, a caracterizar o Estado Novo brasileiro como uma ditadura autoritária, ou seja, liberta da parafernália de partidos e eleições (Fausto, 2001 : 22). Da mesma forma, alguns analistas procuram ver uma ditadura militar no regime pós-64 no Brasil, principalmente no período de vigência do Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968.

Cenário 3. O Pensamento Autoritário no Brasil

Os tenentes de 1930 tomaram-se os generais de 1964. Os tenentes fizeram o movimento militar de 1930, que viria a desembocar no golpe de 1937. Anos mais tarde, já na patente de general, tomaram-se os golpistas de 1964. Os tenentes, legatários da plataforma de Benjamin Constant, que reservava aos militares

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Estado Autoritário e Violência no Brasil 111

uma participação poderosa na implantação de uma sociedade fraterna, altruística e positiva (Corrêa, 1997:190), tinham no positivismo o ceme do seu movimento -1937 - e na Doutrina de Segurança Nacional -1964 - os elementos necessários para a constituição de uma nova ordem, tempos depois. Assim, muito embora Auguste Comte apresentasse uma doutrina contrária à força militar, Benjamin Constant acreditava que o aparelho militar contribuiria em muito para a implan­tação do Estado positivo. Na verdade, o positivismo foi a doutrina mobilizadora dos tenentes, com uma visão moderna frente ao patrimonialismo brasileiro. Da mesma forma, um dos componentes presentes nos ideais “revolucionários” de 1964 seria a modernização do país.

Os antecedentes do pensamento autoritário no Brasil foram afirmados claramente nas obras de Azevedo de Amaral, Francisco Campos, Alberto Torres e Oliveira Vianna. Do primeiro autor citado, ao ressaltar as virtudes do autoritarismo, encontra-se a seguinte afirmativa: “O Estado autoritário baseia-se na demarcação nítida entre aquilo que a coletividade social tem o direito de impor ao indivíduo, pela pressão da maquinaria estatal, e o que forma a esfera intangível de prerroga­tivas inalienáveis de cada ser humano”. Na esteira do pensamento de Azevedo Amaral vai-se obter de Oliveira Vianna, no curso do Estado Novo, que o Brasil não precisa de um nacionalismo imperialista dos italianos de Mussolini ou do nacionalismo racista dos alemães de Hitler, mas sim de um presidente da República único, isto é, de um presidente que não divida com ninguém sua autoridade. Em síntese, de um presidente que exerça seu poder em nome da Nação, só a ela subordinado e só dela dependente (Fausto, 2001a: 11). Ressalte-se, ainda, o papel de uma das figuras mais importantes do autoritarismo brasileiro, pois a ele sempre cabia a função de dar forma jurídica e ares de legalidade aos regimes: Francisco Campos.

Há autores que afirmam, até com certa razão, que o golpe de 1964 retomou o fio condutor do pensamento de Oliveira Vianna (Corrêa, 1997: 194). Por outro lado, outros autores encontram na Doutrina de Segurança Nacional a evolução do nacionalismo de Alberto Torres e de Oliveira Vianna (Macedo, 1979: 516). Contudo, dos pensadores modernos, o mais enfático é Wanderley Guilherme dos Santos ( 1998:34), para quem o autoritarismo instrumental - regime militar de 1964 - tem seus antecedentes na década de 1920, justamente nas teses elaboradas por Oliveira Vianna que expressa, pela primeira vez, o dilema do liberalismo no Brasil. Segundo Vianna, o Brasil precisa de um sistema político autoritário, pois só se constrói uma sociedade liberal mediante a adoção de um regime autoritário. Dirá Oliveira Vianna que não existe um sistema político liberal sem uma sociedade liberal. E o Brasil não possui essa tal sociedade mas, ao contrário, uma sociedade parental, clâmica e autoritária (Corrêa, 1997,193).

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Tanto 1937 quanto 1964 representaram a vitória do ideário autoritário. As leituras dos textos de Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo de Amaral não deixam dúvidas sobre a formação do pensamento autoritário no Brasil. Torres participou, pós 1930, de revisões constitucionais e coube a ele a elaboração do arcabouço da legislação trabalhista e sindical de Getúlio Vargas. Azevedo de Amaral influenciou boa parte da intelectualidade da época, seja mediante sua participação na direção de vários jornais, seja pela sua produção científica. De todos, o jurista e político Francisco Campos foi o que teve maior atuação política. Deputado Federal e Ministro de Estado da Educação e Saúde - 1930 a 1932 -, reformou o ensino secundário e superior. De 1933 a 1937, exerceu o cargo comissionado de Consultor Geral da República, para, finalmente, se transformar numa das principais peças do autoritarismo do Estado Novo. Participou desde o início das articulações do golpe de 1937, redigiu a Carta Constitucional de 1937 e, na finalidade de Ministro da Justiça, conduziu com mão de ferro a repressão política. Em 1964, atendendo a pedido dos tenentes de 1930 e dos generais de 1964, deu forma jurídica aos primeiros Atos Institucionais (ATs), que implantaram e consolidaram o regime militar.

Para os pensadores autoritários, Torres, Vianna e Campos, principalmente, o Poder Executivo deveria assumir a primazia, opção que se tomou presente com a tomada de poder tout court por Getúlio Vargas em 1937. Nos discursos dos autoritários a ênfase voltou-se para a figura carismática do presidente da República, que passou a personificar o poder. Oliveira Vianna sustenta em muitos de seus textos que o ideal do Estado Novo é ter um chefe de Estado que não seja um chefe de partido, mas uma autoridade que se coloque acima das facções partidárias e grupos de qualquer natureza (Fausto, 2001a: 58-59). No meio dessa discussão, surgia a figura do general Góes Monteiro, figura central do Estado Novo, que defendia como missão especial das Forças Armadas brasileiras a função de poder moderador. A instituição militar deveria assumir a direção política e intervir na vida pública arbitrando a crise instalada na sociedade.

No entender de um dos principais historiadores brasileiros, o pensamento do general aproxima-se do formulado por Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos. As semelhanças, diz ainda Boris Fausto, são notórias: ataque, aliás em linguagem desabusada, ao liberalismo; horror ao federalismo; culto ao papel do Estado; insistência no tema da unidade com o objetivo de construir a Nação brasileira (Fausto, 2001a: 64). Por outro lado, o autoritarismo age de forma repressiva para, no dizer de seus ideólogos, garantir a segurança nacional diante dos inimigos externos e internos. A ameaça subversiva passa a ser o principal motivo, seja em 1937, seja em 1964, para que práticas antidemocráticas dêem sustentação ao regime autoritário.

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Repressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres

amizade escandalosa. Declara ainda a criada Concia que “prezume” haver amizade ilícita entre as duas Antonias, mas nunca viu fazer acção “menos composta”. Levantada a devassa, a Mesa decretou repreensão geral, proibição terminante de acenos e da retirada das rótulas das janelas, que as criadas tratassem com cortesia as “pessoas maiores” e que Ana Maria, Teresa de Jesus, Antonia Marcelina e D. Antónia fossem repreendidas pelo provedor e castigadas pela regente sob pena de expulsão. Ter-se-ão aquietado? Vejam-se os testemunhos recolhidos no inquérito seguinte, precisamente um ano depois, em Junho de 171433.

Nada foi apontado às criadas ou às directoras. Apenas uma órfã, Teresa Caetana, se queixou da regente porque a castigou com três dias fechada na cela “por cauza leve”. As órfãs e porcionistas são na generalidade acusadas de desres­peitosas, de adoptarem modos desabridos e de se comportarem mal no coro, e a regente depõe ainda que, tendo proibido Joana Teresa de falar na portaria com certa mulher, ela lhe falou publicamente da sua janela para a rua perguntando-lhe por determinado sujeito, se tinha ou não ido para Lisboa e se voltaria. Os principais alvos de acusação desta devassa são essa mesma porcionista e a órfã Francisca Josefa, tomadas de amores. A regente declara que as surpreendeu “metidas em hua sella as escuras abrasadas ambas”. As companheiras dividem-se: confirmam algumas haver murmuração a esse respeito mas nada ter sido testemunhado; outras são peremptórias, como D. Antónia Vilas Boas que as viu “duas vezes abracadas e em hua hicaziaõ junto a noute as achou inconstadas hua com a otra e por muitas e repetidas vezes as tem visto andar pello dito mosteiro com as maons dadas”; ou Apolinária Maria que “lhes viu fazer hua para a outra alguas acçoins tais que por peijo naõ declara”. D. Josefa Caetana de Vilas Boas confirma que tal relacionamento provoca “hum grave escandallo as pessoas do dito Recolhimento”, e que embora ela nada tenha visto, ouviu dizer à órfã Teresa Caetana “que as ditas faziaõ accoins descompostas hua com a otra” e que Joana Teresa dissera “que como se acabasse esta vezita avia proseder pior do que athe aqui fazia, so para fazer andar em hua roda viva a Regente do dito Convento”. Teresa Caetana declara que tal amizade ilícita causa

“excandallo e motivo a hua mermuraçaõ continua tanto assy que todas trazem as conssensias inquietas, o que por ivitar a Madre Regente fes vir dormir a sua sella a orfã Francisca Josepha a qual logo pella minham sedo se levantava e se hia meter na cama com a dita persionista Joanna Thereza aonde foraõ vistas estarem abracadas hua com a outra, o que hella testemunha sabe por lhe dizer hua prima que viu o que referido fica no tempo em que

)J AM C, Livro das Visitas do Recolhimento, fis. 42-52.

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206 Maria Antónia Lopes

assistia em o dito mosteiro, e que Joana Teresa tem dito varias vezes que se athe o tempo desta vezita conservava a dita amizade que hinda delia dahi por diante avia de continuar na mesma ainda com maior excesso”.

As duas Antonias acusadas na visita anterior já não se encontravam no recolhimento. Permaneciam Ana Maria e Teresa de Jesus, mas nada lhes foi apontado. E o que testemunham as visadas? Francisca Josefa não acusa ninguém. Joana Teresa, confrontada com as acusações, afirma que D. Josefa Caetana a denunciou porque lhe tem inimizade e, além disso, alega, a órfã Teresa Caetana tem a mesma amizade que ela tem pela órfã Francisca Josefa. Terá sido, pois, o ciúme, o que movera Teresa Caetana e não a sua consciência inquieta. Por resolução de 18 de Junho, foi determinado que todas fossem repreendidas pelo seu comportamento no coro e que o mudassem, sob pena de maiores medidas. Quanto a Francisca Josefa e Joana Teresa, seriam admoestadas pelo provedor e castigadas pela regente, o que cumpririam sob pena de expulsão.

Decerto porque os mesários estavam preocupados com o que se passava no recolhimento, realizaram novo inquérito quatro meses depois34. Da regente, só a porteira se queixou, declarando que certa ocasião lhe tirou da roda um cesto com mau modo. Sobre as “súbditas”, tanto a regente como algumas companheiras aludem às irregularidades já apontadas na visita de Janeiro: desinquietas no coro e restantes espaços e indiferentes às advertências da regente que afirma viver escandalizada porque lhe falam sem respeito. Segundo o testemunho da directora da instituição (mas só desta), existe agora escandalosa amizade particular entre Francisca Josefa e Teresa Caetana, já denunciado quatro meses antes por Joana Teresa que, entretanto, saíra para se casar. Não se registaram, no fim da devassa, as recomendações sugeridas pelos visitadores nem qualquer decisão da Mesa.

Um ano depois, em Novembro de 171535, o quotidiano do recolhimento crispara-se muito mais, para o que talvez contribuísse o facto de aí viver cada vez maior número de mulheres: doze em 1711, treze no ano seguinte, quinze e catorze, respectivamente, por ocasião das visitas de 1714 e vinte e uma agora em 1715. Quatro porcionistas acusam a regente de dar “largas a todas”, deixando-as estar no coro com perturbações, de só mandar escutar algumas quando falam na portaria, e de não fazer caso da amizade particular das porcio­nistas Apolinária Maria e Maria de Santo António. Apolinária, pois, também se tinha envolvido em sentimentos e acções que em Junho de 1714 tanto a

34 AMC, Livro das Visitas do Recolhimento, fis. 53-58.35 AMC, Livro das Visitas do Recolhimento, fis. 58v°-74.

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perturbavam que “por peijo” não declarava. Pela primeira vez na história do recolhimento, a porteira, que se mantinha em funções desde a abertura da instituição, é também alvo de denúncias. Fá-lo a própria regente que a acusa de ser negligente nas entradas e nas visitas que não escuta. Outras recolhidas sustentam a denúncia, mas encontram palavras de compreensão pelo facto de ser mulher muito idosa. Nada foi apontado às criadas. Quanto às órfãs e porcionistas, as acusações são bem reveladoras da ineficácia da repressão. Os anos passam, as mulheres permanecem ou renovam-se, mas os desvios são inelutavel- mente os mesmos. Neste final do ano de 1715, há “amizade ilícita”, não só entre Apolinária e Maria de Santo António, como entre Francisca Josefa e Teresa Caetana - relacionamento já revelado nas duas devassas anteriores. Era desta amizade que troçava o papel satírico anónimo, provocando a bulha e o episódio de violência física já mencionados.

Além deste “crime”, abundam as acusações de correspondência secreta, revelando que era impossível impor a estas mulheres a reclusão total. A órfã D. Margarida teria escrito ao estudante José da Cunha residente na rua Corpo de Deus. D. Josefa, porcionista, recebeu cartas de estudantes e acenou do coro a um outro. Segundo declarou uma testemunha, ela própria leu à porcionista D. Ana duas cartas de um estudante chamado Antão, mas “não achava nellas mais que huns comprimentos Lijeiros”. E corresponder-se-ia também com António Lopes, pai do Dr. António de Andrade Rego. A porcionista D. Teresa, sobrinha da regente, carteava-se, também, com um tal Veríssimo Cordeiro. Ou, nas palavras de outra recolhida, “assistia a Veríssimo cordeiro e vira que este lhe assanava por muitas vezes e que a dita lhe dissera que eram os assenos para ella D. Teresa”. Também D. Antonia Luisa escreve para fora e fala com um frade que ela diz ser seu parente, tendo dele recebido algumas coisas com que ela comprara um capote. Ou, ainda, no registo de outro interrogatório, fala sem licença com um frade bernardo, Bartolomeu Domingos, que diz ser parente, costumando este dar “sua caixa de tabaco a Porteira para se retirar”. O pai de D. Antonia teria mesmo escrito à regente ao saber que a filha falava a um frade que não é da sua família e pedindo que fosse proibida e repreendida.

Mais estrepitoso é o que a regente relata sobre o ocorrido a 13 de Novembro desse ano: estando as irmãs Josefa de S. José e Benta Maria, ambas porcionistas, a falar na grade com Bartolomeu da Silva sem licença da regente, esta enviou uma recolhida como escuta. Quando ela chegou, as duas irmãs insultaram-na dizendo “lhe aviaõ de dar com cousa que he indigno de diser nem escrever”. E acorrendo outras, a todas ofenderam declarando “que milhor porsedimento tinhaõ as recolhidas do Paso do Conde e que eraõ peores que as do Beco da Mostardeira” e tão alto o gritaram que se ouviu na rua e acorreu gente, o que gerou gravíssimo escândalo.

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208 Maria Antonia Lopes

Pensa a regente que as duas irmãs, por terem vindo contra sua vontade, “andaõ dando cauza a estas bulhas e ameassaõ a todas que delias se aõ de vingar sem pao nem pedra”. O episódio foi confirmado pela porteira: costumam vir à porta falar a quem as procura sem licença da regente, a quem não têm respeito algum e ainda menos a ela, porteira, que confessa ter medo das suas irmãs; não cumprem obrigação alguma do recolhimento; estando as duas na grade falando ao dito Bartolomeu na presença de uma órfã na qualidade de escuta, a mandaram embora e, como esta recusou, a descompuseram com nomes sinistros que não pode dizer e acorrendo outras, também as insultaram em grande gritaria com escândalo da vizinhança e pessoas que passavam. Outros pormenores são acrescentados pelo Irmão Manuel Cabral, ourives, chamado a depor:

“Ouvira em sua casa tal gritaria e allarido na dita Portaria em o dia asima declarado, e que a Regente o mandara chamar da janela, que acodisse como Irmaõ da Casa, e indo logo acudir lhe disseraõ todas estava a orfa Guimar com hum acsidente causado de a descomporem injuriozamente Benta Maria e sua irman e todos os visnhos se escandalisaraõ e elle testemunha morando defronte a annos naõ ovira nem vira similhante susseso”.

Além desta bulha do dia 13, houve ainda dois outros incidentes: Tomásia Maria, Joana Teresa, Josefa Caetana e a Correia, respectivamente antigas órfa, porcionistas e criada do recolhimento, entraram no edifício sem licença puxadas para dentro por cima da meia-porta ou postigo. E uma viúva desta cidade, D. Bernarda, entrou também sem autorização, achando a porta aberta por estar a regente com uma tecedeira medindo um pano. Esta devassa revela bem os níveis de incumprimento das regras e de agressividade que se atingiam, extrava­sando em violência verbal com recurso a gritos, ameaças, injúrias, obscenidades e escritos anónimos e culminando em violência física com “desconpusissoens e arranhadelas”: violência de mulheres, mais inaceitável do que as dos homens por invalidar flagrantemente o arquétipo feminino.

Pela resolução de 4 de Dezembro de 1715, a Mesa emite ordens de prisão para quatro recolhidas, as medidas mais severas até então tomadas. Regista-se que as porcionistas Benta Maria e irmã

“por naõ terem obediencia a madre Regente e naõ comprirem o Regimento da Caza se fazem escandallozas de todas as Pessoas do Recolhimento e por serem de condissoins bravas saõ perturbadoras e nosivas a Comonidade a qual com excesso emjuriaraõ ( . . . ) e com tanta demasia que naõ so foi participada mas estranhada pela visinhansa ( . . . ) . Porem usando com ellas de misericordia mandaõ que a Madre Regente as ponha em Prisaõ estreita

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Repressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres

donde as naõ soltara sem ordem da Mesa sendo primeiro severamente amoestadas pelo Sr. Provedor para que não tomem a cair em similhante culpa ( . . . ) a Pena de serem expulsas”.

Provada a correspondência que a porcionista D. Teresa tinha com um vizinho, acenando da janela e rótula, e que “intentara 1er hum pasquim a Teresa Caetana e se presume foi autora dele o que tudo provocou discussões de palavras que passaram a violencias de mãos”, terá prisão rigorosa donde não sairá até ordem da Mesa e admoestação severa do provedor, sob pena de expulsão. Provado também que D. Antonia fala e escreve a um frade sem licença que parece não ser seu parente, o que escandaliza a comunidade e desgosta o pai, não mais comunique com o frade e receba rigorosa admoestação do provedor e prisão apertada donde não sairá sem ordem da Mesa. Além disso, determina-se que a regente vigie Francisca Josefa e Teresa Caetana, de imediato seja aplicada a rótula em falta, e, mostrando-se a porteira incapaz, pela sua avançada idade, (“sendo toda a vigi llanda taõ importante asim ao credito do dito Recolhimento como ao decoro das Pessoas delle”), seja deposta e nomeada a porcionista Bárbara Maria.

Segundo os termos da visita de Dezembro de 171636, à excepção das amizades particulares, nenhum dos “delitos” revelados e castigados em 1715 se repetiu. Nesta altura só se denunciaram amizades, mas não as mesmas, pois surgira uma outra entre a órfã Teresa de Jesus e a porcionista Teresa Ferraz. A primeira era acusada de tais práticas, como vimos, desde 1713. A segunda era nova na casa. Francisca Josefa é mais uma vez acusada de amizade particular, agora com a órfã D. Ana, que sucedera a Joana Teresa e Teresa Caetana. Esta última ligara-se neste ano a Bárbara Maria, a recolhida que fora nomeada porteira no ano anterior, mas que não é assim designada nesta visita. E havia ainda um último par que se constituíra no ano transacto, as duas porcionistas Apolinária Maria e Maria de Santo António. Decerto que tantas amizades explicam a ausência de episódios de violência. Se é que tal profusão de revelações não é uma óbvia manifestação de violência pura. Note-se que Teresa Ferraz não se coíbe de denunciar o amor de Apolinária Maria e Maria de Santo António, assim como estas duas delatam Teresa de Jesus e Teresa Ferraz. Teresa Caetana revela estes dois pares. E Francisca Josefa e D. Ana acusam Teresa de Jesus e Teresa Ferraz. Abstiveram-se de denúncias Teresa de Jesus e Bárbara Maria. Na resolução tomada depois desta inquirição recomenda-se que o provedor e a regente corrijam essas mulheres porque “se trataõ com amizade taõ estreita, que motivaõ algum escandallo as mais pessoas”.

36 AMC, Livro das Visitas do Recolhimento, fis. 75-86.

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Treze meses depois, em Janeiro de 171837, a regente é censurada por várias recolhidas: por vezes dá licença a certas porcionistas para que falem com pessoas que dizem ser parentes; parece ter medo de Apolinária, Maria de Santo António e Isabel Maria; não estranha nem castiga alguns excessos e palavras desentoadas; é mais branda para umas do que para outras; recebe as queixas mas nada faz; é frouxa ao permitir as pelejas entre uma órfã e uma porcionista; consente que se usem polvilhos e enfeites e, finalmente, não mostrou desagrado (muito pelo contrário, porque até abreviou a oração) quando os parentes das recolhidas trouxeram descantes38. Queixas há também contra a porteira que era agora Maria de Santiago, tendo D. Joana Coelho permanecido no recolhimento na qualidade de porteira aposentada. É a própria regente que acusa Maria de Santiago de permitir à filha, Teresa Gertrudes, falar a sós na roda com um seu parente. Além disso, dizem as recolhidas, tem por vezes modos desabridos e permite mais “largas” a umas do que a outras e leviandades na portaria, nomeadamente à filha e a Teresa Ferraz. A criada Silva é acusada pela porteira de ser de muito má condição, responder com descompostura, recusar fazer coisas de sua obrigação e “andar com infeitos a que pode chegar a sua pouca pocibelidade trazendo sapatos de salto de pao e picaros nos coleyrinhos das camisas”.

Quanto às órfãs e porcionistas deste ano de 1718, são alvo de várias queixas. Comportam-se no coro com notável irreverência, donde falam para a igreja e onde jogam às cartas; uma menina que agora vive no recolhimento, sobrinha da órfã Luisa Antonia, causa alguma perturbação (principalmente na igreja); muitas são as que acenam das janelas e daí chamam moças para mandar a recados e pessoas que trazem coisas de venda ou até “outros bem escuzadamente”. Além disso, demonstram grande desenvoltura cantando cantigas indecentes de que a vizinhança murmura, D. Ana tem muito pouca prudência no falar, causando escândalo ao falar alto e com “palavras malsoantes” e, por causa da inimizade que mantém com D. Josefa, “falaõ ou pelejaõ dizendo hua a outra palavras indignas”. Algumas dormem juntas no mirante “com o perteisto de medo” e todas elas, com excepção das que entraram nesse ano, vêm à roda “nos dias de fazer” sem capelo e só com lenço, usam vestidos de cor, ouro, sedas, capotes encamados e polvilhos e com eles vão à grade. Luisa Antonia mantém amizade particular com Isabel Maria, sua prima. E o mesmo faz Francisca Josefa com Teresa Gertrudes, a filha da porteira e 4a amiga suspeita de Francisca. Teresa Ferraz faz leviandades na portaria, pois tem correspondência com o filho de Fradique

37 AMC, Livro das Visitas do Recolhimento, fis. 86v°-98v°.38 Terão vindo ao patim uns descantes em duas ocasiões, quando uma recolhida se foi para

fora e quando o irmão de uma outra tomou o capelo.

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Repressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres

Lopes, falando com ele na roda quando este vem visitar as irmãs. A filha da porteira conversa com o parente Bernardo Manuel Gomes e este é continuo em lhe assistir com demasia da rua da Calçada para a janela do mirante. E as irmãs D. Ana e D. Mariana falam longas horas com um estudante que vem com a mãe delas quando visita as filhas, o que é causa de escândalo porque se presume mal da tal mãe.

Confrontadas com estes factos, eis algumas justificações: afirma a regente que ela, a porteira e outras oito recolhidas dormem no mirante “por razaõ de haver no dito recolhimento grandes medos que ella também prezenseou e desde entaõ disimulou e desculpou o não dormir cada hua na sua cella”. Admitem algumas usar polvilhos e vestes menos sóbrias, mas, esclarecem, só esporadicamente e nunca na portaria. Uma das criadas refuta as acusações feitas à directora, referindo que muitas vezes, pela meia-noite, anda a regente pelo dormitório espreitando para evitar que as suas súbditas durmam duas a duas. O que parece é que, neste ano de 1718, das amizades intemas se passara à busca de afecto no exterior, procurando- -se dentro do recolhimento o descarregar de tensões tanto pela diversão como pela agressividade.

As determinações da Mesa foram duras: não se joguem cartas no coro nem nenhum outro jogo ou passatempo e as meninas, se as houver, nunca irão ao coro; se surgir desinquietação entre as recolhidas, logo a regente as separe e, finda a oração, as repreenda no mesmo local e em público, informando a Mesa de seguida; as que reincidirem terão oito dias de tronco39 irremissíveis; e se a regente esconder estas coisas será repreendida pela Mesa. Não mais passarão a noite no mirante; nunca duas recolhidas dormirão na mesma cela salvo se forem irmãs; só falarão na portaria com pais, irmãos e tios (só irmãos de pai ou mãe) e as que prevari­carem serão metidas no tronco por oito dias. A regente não consentirá que se tanja, cante ou dance com desenvoltura e nunca diante de pessoa de fora, pois deverão viver com todo o recato. Ficam proibidos trajes e enfeites profanos, sob pena de oito dias de tronco, sendo aplicada a mesma pena à que vier à portaria sem capelo cosido. As criadas trajarão com toda a honestidade e, não o fazendo, serão expulsas depois de oito dias de tronco. Também a regente se vestirá com toda a honestidade para servir de exemplo, sob pena de castigo ao arbítrio da Mesa. Os oito dias de prisão ficam, pois, instituídos como castigo corrente.

Ainda no mesmo ano de 1718, em Novembro/Dezembro, procede-se a outra devassa40. Nesta, só a porteira acusa a regente, declarando que permite à porcio- nista Isabel Maria falar com um estudante alegando ser seu primo. Já sobre a

19 O tronco era uma cela de isolamento para castigo usada nos recolhimentos e conventos.•” AMC, Livro das Visitas do Recolhimento, fis. 99-120v°.

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porteira, Maria de Santiago, as denúncias não faltam, girando na sua maioria à volta do relato de um episódio entretanto ocorrido que alvoroçara todo o recolhimento e revelando a conflitualidade crescente que grassava neste microcosmo.

Tudo começou quando se quis dispor de “hum tronco ou Caza piquena” ocupado por Angélica, criada de Maria de Santo António41. Esta não gostou e, reagindo intempestivamente, declarou que largaria tronco e cela, se necessário fosse, “porque não estava ao pão da Misericórdia”, pois tinha mãe em Ceira que a sustentava42. Tal réplica provocou grande ira da porteira que se sentiu afrontada. Seguiram-se gritos e insultos. A porteira terá afirmado que Maria de Santo António devia a admissão no recolhimento a Francisco de Morais (o que mais não era do que “lançar-lhe alguma cousa em rosto”, como se queixa a visada), “que se queriaõ saber o que ella era perguntassem a Antonio de Macedo” e que ela “era huma desavergonhada de Ceira”. Respondendo a insulto com insulto, Maria de Santo António terá então acusado a porteira de ter mantido amizade ilícita e de adultério, pois a sua filha não era do marido mas de um tal Tomé43. Há quem afirme, também, que a porteira “anda em odio” com Apolinária e Maria de Santo António e que dissera que esta não casava por causa de “huns pontinhos que ela sabia”, que a Mesa a vingaria dos insultos recebidos ou ela própria o faria nem que o inferno estivesse aberto para a receber, o que foi ouvido das pessoas de fora. Uma outra testemunha diz estar convicta de que a porteira está em ódio mortal com Maria de Santo António e “e se tem por certo que tras huma navalha na alj ibera dizendo que se a referida Maria de Santo António lhe disser alguma palavra pouco atenta, que com a dita navalha a havia de cortar”. Além disso, “como por queixa, ou galantaria” tudo contou a Fr. Estêvão, religioso de S. Francisco, o que escandalizou quem

41 Segundo alguns testemunhos, a criada Angélica que ocupava a casa do tronco não era realmente criada porque, tendo servido Apolinária, esta dispensara-a, ficando então como criada de Maria de Santo António, mas na verdade não servia a ninguém pois se sustentava do que lhe trazia a mãe.

42 Maria de Santo António declarou que Angélica não era sua criada, “mas só se acoitava a ella e que se em algua cousa a servia lhe pagava, mas que naõ duvidaria que a chave se entregasse mandandoo assim o Senhor Provedor, e naõ só essa mas taõbem a da sua celia e se hiria para Ceira, pois naõ estava ao tostaõ da Misericordia, e destas palavras se irou tanto a porteira, que lhe disse que ella taõbem naõ nessessitava do tostaõ da Caza e que se fosse para Ceira, que la apuraria o credito e que naõ andaria com tanto frio, e que ella Maria de Santiago naõ viera ao Recolhimento apurar o seu credito”.

43 Desculpou-se depois dizendo que o soubera por Clara que, por sua vez, o ouvira a Apolinária e que também o dizia a ex-porcionista Teresa Ferraz, que agora vive em Lisboa. Testemunho de Clara: Apolinária, zangada com a porteira por ter dito mal de Maria de Santo António, foi à cela dela, Clara Maria, e disse-lhe que se Maria de Santo António se quisesse despicar, poderia ter dito que a porteira se havia desonestado, pois tinha andado amancebada com certo homem casado e que a filha não era legítima. Clara, que era amiga da porteira e filha, foi de imediato à cela desta transmitir-lhe o que ouvira e pedindo segredo, mas ela foi logo contar à mãe.

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Repressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres

ouviu. Fez tal gritaria por a terem acusado de adultério, que parecia fazer gala disso porque o contou na portaria às pessoas de fora44. Respondeu, por exemplo, a uma mulher que lhe perguntava pela filha, que “andava cada ves mais bizarra, pois tinha ainda pay, quando ella cuydava estava fallecido, e que com tal pay, devia andar mais alegre e bizarra, mas que a desavergonhada, e porquinha de Ceira havia de ser castigada” pela Mesa; e se não fosse, havia paus, mãos e facas “porque se havia de vingar inda que visse o inferno aberto”.

Há quem denuncie a porteira por ser de “terrível condição”, “de aspera condição”, facilmente descompor a todas, falar mal de algumas, “dizendo para pessoas de fora que eraõ humas doidas” incapazes de tomar estado, “andando as pessoas deste Recolhimento em Ranchos”. E, explica uma recolhida, é porque favorece as que dormem no corredor de baixo (Teresa Gertrudes, Maria Gomes, Clara, Eufrásia e as três irmãs do Dr. Inácio do Vale), deixando-as falar livremente na roda e porta, que se formaram facções, sendo uma afecta à porteira e outra à regente. Também a acusam de revelar muitos descuidos na sua ocupação “pois para a Roda não vem Logo pella menhã, mas ao dipois de sete, e outo horas de maneira que Livremente podem hir fallar ao Rallo da porta, e ainda á grade e Roda, que muitas vezes tem esquecido fecharse”. Denunciam-na, também, por permitir às suas “parssiaes” Benta Maria, Josefa de S. Francisco e Eufrásia falar sem capelo, como se impôs na visita passada, e de ter ameaçado “tirar a lingoa” a quem na visita se referisse à filha. A porteira do recolhimento é, pois, neste ano de 1718, a mais contestada das recolhidas, mas também outras prevaricaram aos olhos de algumas companheiras, revelando-se um ambiente muito crispado. D. Ana Maria e Apolinária não se falam há mais de um ano porque tiveram uma zanga e trocaram palavras injuriosas. Já depois de se haver principiado a visita, travaram-se de razões no próprio coro D. Ana Maria, a órfã Francisca Josefa e a porcionista D. Antónia. E a esta foi necessário que a regente a trouxesse para a sua cela e se não aquietou “sem embargo de se lhe dizer por ella teste­munha, que visse o lugar em que estava diante de nossa senhora, ao que ella respondeu com braveza, mas que estivesse el Rey”. Apolinária é acusada por D. Ana Maria e irmã (D. Mariana Teresa) de ser “Larga e descomposta de sua Lingoa”, acusar a primeira de Ladra, propalar que a porteira se desonestava com certo homem e que a filha não era de legítimo matrimónio, intimidar a regente e declarar que, à excepção do provedor, todos membros da Mesa eram “savandisse”45.

44 Uma das inquiridas afirma que foi a própria porteira que inventou a história da ilegitimidade da filha.

45 Uma outra recolhida depõe que Apolinária chamara aos mesários “huma pedintaria ou piolharia, palavra de que naõ está muito certa, mas que foy huma assim semilhante como em desprezo”.

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Os inquiridores passam a perguntar a todas se houve alguém que aludisse desrespeitosamente aos mesários.

Mas as acusações continuam, demonstrando a contínua busca de diversão e de contactos com o exterior. D. Ana Maria mantém correspondência e troca de presentes com o estudante Manuel Ferreira que vai para frade, mas frequenta o recolhimento com o pretexto de ver a irmã. Teresa Gertrudes, a filha da porteira, cultiva amizade e correspondência com Manuel Gomes, beneficiado em S. Tiago, que, com a desculpa de serem primos, com ela conversa a partir do patim da igreja de S. Tiago e chegando ao cúmulo de a presentear com cinco côvados de baeta para um roupão. Francisca Maria mostra inclinação por José Vilas Boas que a vem ver com o pretexto de visitar as irmãs (e este mesmo sujeito já procedera de igual forma com a ex-porcionista Teresa Ferraz). E algumas outras, diz a porteira, com inquietação e desenvoltura, estiveram à janela que dá para a casa dos Coutinhos da Praça nos dias em que lá se fizeram umas comédias. Além disso, muitas delas usam polvilhos e pentes na cabeça, vão à portaria sem os capelos pregados, jogam cartas e comem no coro e não se confessam com a regularidade devida por não virem os confessores. Nenhuma amizade ilícita entre elas foi denunciada. Quanto às criadas, só cinco recolhidas as referem: duas pela forma como se apresentam - andam em cabelo em vez de trazerem coifas e quando trazem capelo usam fitas; e três por serem desobedientes e desrespeitosas. Um das recolhidas, mas só ela, acusa ainda o mesário Estêvão Ribeiro de frequentar a portaria.

Interrogadas com perguntas precisas dos inquiridores que já recolheram informes dos depoimentos anteriores, não faltam justificações ou mesmo negações. A porteira aposentada, por exemplo, confirma que vem à Roda um estudante filho do pintor João de Sousa falar com a prima, mas desta comunicação não presume mal nem resulta escândalo. E muitas são as que absolvem totalmente Maria de Santo António, atribuindo todas as culpas à porteira Maria de Santiago. Embora esta devassa revele uma atmosfera pesada, de grande violência explícita, só em 11 de Janeiro de 1719 foram tomadas decisões: que a porteira seja pelo provedor admoestada e advertida que a todas trate com amor e caridade; que na portaria cumpra o que foi determinado na visita passada (capelo, escuta e prévia licença da regente); que cesse o escândalo que resulta do ódio que mostra ter por Maria de Santo António e que lhe perdoe por amor de Deus toda e qualquer ofensa, dando-lhe os braços quando esta lhe pedir perdão como abaixo se ordena,

“advirtindo que se não prova nem mostra que a sobredita porcionista Maria de Santo António dissesse direitamente palavras injuriozas contra ella e que mais claramente se mostra que a mesma porteira com a ira com que rompia em queixas, e palavras injuriozas contra a porcionista fallando

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Contextos e Formas da Violência Escolar 307

2.1.1. Abordagem multidisciplinar da violência dos alunos

Vimos como a invocação dos constrangimentos do sistema e da escola, mormente a obrigatoriedade de presença e a imposição da disciplina, permite compreender, até certo ponto, a resistência dos alunos nas suas mais diversas formas de expressão. Perspectivaremos agora o problema nas vertentes psicológica, micro-sociológica e pedagógica.

- A perspectiva psicológica procura explicar o problema centrando-o em factores do indivíduo, na estrutura da personalidade e no efeito de aprendizagens sociais. Não é vítima nem agressor qualquer um; o estudo das relações entre vitimação/agressão e um amplo conjunto de variáveis dependentes/independentes tem contribuído para a constituição de perfis de agressores e de vítimas. Destaquem-se as investigações do Centro de Psicopedagogia da Universidade de Coimbra (Fonseca, 2000; Simões et al., 2000; Taborda, 2000), em tomo da correlação entre manifestações «anti-sociais» e perturbações da aprendizagem ou emocionais, distúrbios permanentes de comportamento, etc.. Inscreve-se, também, nesta linha o estudo de Martins (2003) junto de populações estudantis da zona de Portalegre. Considere-se, ainda, o trabalho de Veiga ( 1995), concluindo pela existência de forte relação entre autoconceito e estilo comportamental dos alunos. Beltrão (2003), numa análise psicanalítica de 4 adolescentes problemáticos, identifica neles um denominador comum, em que sublinha, reportando-se à sua primeira infância, a presença constante de depressões maternas, bem como perturbações específicas da personalidade borderline (dificuldade de aceder ao pensamento simbólico e sentimento de falha, de vazio).

A busca da relação entre a violência infantil e juvenil e as imagens violentas da TV, dos jogos de computador e da Internet, tem motivado estudos nacionais (Matos, 2004) e internacionais (Pahlavan, 2002) a cujo enquadramento teórico não é alheia a teoria da aprendizagem social (Bandura, 1973). Estes estudos alertam criticamente para o facto de a violência se ter tomando um fenómeno normal, aceitável e até necessário como resposta a conflitos (efeito de desensibili- zação cognitiva).

São estudadas também as dinâmicas familiares e sua influência no compor­tamento das crianças em meio escolar assinalando-se a importância das práticas educativas dos pais (presença ou ausência de vínculos, os valores que se transmitem, legitimação da autoridade, supervisão deficitária) para explicar o comportamento agressivo e delinquente dos filhos (Prados, 2004; Sani, 2002; Moffïtt e Caspi, 2002, McCord, 2002).

- A análise micro-sociológica do problema, com base no interaccionismo simbólico, estabelece uma íntima relação entre os comportamentos de alunos e

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professores com as interpretações que uns e outros fazem da situação em que estão envolvidos (gestos e palavras que se verificam ou se trocam no dia a dia escolar). Autores incontomáveis deste quadro teórico de referência são, entre outros, H. Becker (1985) e E.Goffman (1974, 1993). A chamada de atenção destes autores para fenómenos constituintes das interacções - a rotulação de um comportamento (e do seu autor) como desviante, a estigmatização (associável ao fenómeno do preconceito rácico ou outro), os rituais de interacção e os “dispositivos de mortificação” observáveis nas “instituições totais”, a natureza e o papel das representações, das expectativas mútuas e da profecia auto-realizada, e muitas outras, - foram essenciais para a compreensão do quotidiano na aula e na escola e permitiram o estabelecimento de uma espécie de causalidade microsociológica dos fenómenos da indisciplina e da violência. Assim, na base dos comportamentos diferenciados dos alunos está a avaliação que eles fazem do desempenho dos seus professores, logo a partir dos sinais revelados no “primeiro encontro”. Nessa avaliação o que está em causa é a sua competência, simpatia e humor, a «legitimidade» das sua exigências, e o modo como sabe dosear as bases do seu poder (tradição, legalidade, carisma). No confronto possível ficam em jogo dimensões como a identidade individual ou de grupo, a negociação e a rotura de acordos, a acomodação e sobrevivência estratégica e a resistência mais ou menos aparatosa, etc., (Mcclaren,1992; Jackson, 1991; Delamont, 1987; Willis, 1988; Werthman, 1984; Woods, 1979).

- A perspectiva pedagógica, combinando a análise de “práticas” e a multi- -referencialidade teórica (a que não são estranhos os referenciais anteriores), visa identificar factores, compreender a significação e função específicas dos comportamentos em contexto educativo e pedagógico, e fundamentar científica­mente projectos de intervenção preventiva, remediatíva e correctiva. O enfoque destes estudos é variável; destaquemos, para a investigação portuguesa, vertentes como: análise do ensino, da relação pedagógica, da dinâmica/gestão da turma, incluindo as representações dos actores (Cadima, 2004, Oliveira, 2002; Amado, 2001 ; Maya, 2000; Vaz da Silva, 1998; Oliveira 1998, Baginha, 1997, Afonso, 1991; Estrela, 1986); relação entre a problemática em causa com o clima de escola e políticas organizativas (Lespagnol, 2005; Freire, 2001 ), com a relação escola-família (Villas-Boas, 2001, Veiga, 2000) e com aspectos diversos da formação de professores ( Espírito-Santo, 2003; Caldeira, 2000, Santos, 1999).

O estudo de Estrela (1986), inspirando-se na fenomenología, mas sem deixar de ser sensível a diversas propostas teóricas (interaccionismo simbólico, «classroom management» de Kounin, 1977), procura colocar entre parêntesis ideias pré-concebidas e partir para a sala de aula simultaneamente atenta aos fenómenos, às situações e às representações dos sujeitos. Para além de erros de

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Contextos e Formas da Violência Escolar 309

organização e relacionais, a autora identifica e categoriza as «finalidades» pedagógicas da indisciplina dos alunos: proposição com vista à mudança de rumo da aula, evitamento da tarefa, obstrução do trabalho, contestação do professor e imposição de uma nova ordem.

Nós próprios (Amado, 2001) somos responsáveis por um estudo de “caracte­rísticas etnográficas”, junto de seis turmas e durante os três anos do terceiro ciclo. Tendo por horizonte teórico o interaccionismo simbólico, estivemos atentos à «voz dos alunos», captando as suas interpretações da situação, expectativas, etiquetagens do professor, estratégias para testar a “autoridade” docente (em especial no início do ano), bem como a relação por eles estabelecida entre as competências didácticas e de liderança do professor e o clima mais ou menos “pacífico” vivido na aula. Verificámos, entre outros aspectos, que as “condições” da indisciplina e de violência se verificariam desde que os alunos deparassem com professor permissivo ou autoritário, pouco credível (por exemplo nas ameaças), rotineiro nas estratégias de ensino, desorganizado nas tarefas, confuso na comunicação, com “preferências” nas interacções didácticas e de controlo. Enfim, concluímos que a expectativa dos alunos é a de encontrarem um professor que saiba ensinar e constranger com humanismo (ibid., p. 446).

Pelo seu carácter bastante complementar em relação aos estudos anteriores devemos referir, ainda, a investigação levada a cabo por Freire (2001), junto de duas escolas implantadas numa zona problemática da periferia de Lisboa. Inspirando-se em investigações sobre o clima de escolas e os indicadores da sua eficácia (Reynolds, 1976,1972; Rutter et al. 1979), o seu objectivo foi o de estabelecer a relação entre o clima relacional destas duas escolas e as problemáticas da indisciplina, da violência e do (in)sucesso escolar. Confirmou que os panoramas mais negros se associam a um clima institucional negativo traduzido, entre outros aspectos, num ambiente de concorrência, na falta de entendimento, comunicação e colaboração entre professores, na ausência de participação e de envolvimento do aluno a diversos níveis, na desorganização, falta de regras e de normas claras conhecidas e aceites por todos, na irregularidade do regime de punições e num sentimento de impunidade ou de injustiça, nos currículos desfasados dos interesses dos alunos.

Outras linhas de investigação têm sido implementadas no terreno, predomi­nantemente assentes na metodologia de inquérito por questionário. Referimos o estudo de Costa e Vale (1998) que, através de questionário aplicado a 4952 alunos do 8o e 1 Io anos, de 962 escolas distribuídas pelos diversos distritos do país, procura caracterizar o fenómeno da violência escolar e proceder ao levantamento dos seus factores (ibid., p. 47). Exclusivamente centrada nos problemas da violência entre pares, deve referir-se a investigação iniciada por uma equipa da Universidade

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do Minho (Almeida, Pereira e Valente, 1994). Este estudo (adaptação do questionário de Dan Olweus, 2000) e os que se lhe seguiram (Almeida, 2000; Pereira, 2002), evidenciaram a existência de características idênticas do fenómeno da violência entre pares em diferentes regiões do país, bem como em relação às populações estudantis de diferentes países europeus. A preocupação pelo tema da violência entre pares continua a ser pretexto para mais estudos, em ordem à sua caracterização e à avaliação de projectos de intervenção (Martins, 2003; Ribeiro, 2003; Veiga Simão et al., 2003; Grave e Caldeira, 2003).

2.1.2. Formas e expressão da violência dos alunos

Seguindo o esquema do quadro n° 1 teremos em conta as diferentes expressões da violência contra os pares e contra os professores.

A) A violência contra os paresComo já vimos no quadro anterior, as manifestações deste tipo de violência

“na” escola adquirem várias expressões; tentemos a sua caracterização.-Jogo rude. Consiste em comportamento agressivo e insultuoso, não persistente

e realizado com uma intenção lúdica, o que toma duvidosa a qualificação de «violência»; inquéritos nacionais e internacionais revelam que se trata de comportamento bastante frequente (Martins, 2003; Carra e Sicot, 1997).

- Comportamento a-social ou pequena violência. Verdadeiro acto agressivo (afrontoso, humilhante e ofensivo), verbal e não verbal; contudo, é um acto sem continuidade, em que os intervenientes (agressor e vítima) possuem a mesma força e poder. As estatísticas e os testemunhos apontam para a elevada frequência destes actos, geralmente qualificados de «grande crueldade» entre os alunos.

- Bullying. Expressão intraduzível mas que designa abuso de poder directo e vitimação (persistente e prolongada no tempo) de um aluno ou de um grupo de alunos sobre outro aluno, mais vulnerável (mais novo, mais fraco, menos autoconfiante) e que assume o papel de vítima. Verifica-se, portanto, numa relação de poder (física, psicológica ou socialmente considerada) assimétrica entre vítima e agressor (Olweus, 2000), podendo este último disso tirar proveito material ou gratificação psicológica. A presença de observadores (bystanders) é considerada por alguns autores (Coloroso, 2002) como fundamental para a compreensão do bullying, em especial pelo reforço (aplauso) que a sua atitude pode dar ao comportamento do agressor. Os estudos têm verificado que o bullying atinge sempre uma minoria de alunos (Glover et al., 2000), que são mais vitimados os das minorias étnicas (Connoly, 1995) e que os rapazes são mais vítimas dos ataques físicos, enquanto as raparigas são mais sujeitas à exclusão e aos rumores (Veiga Simão et al., 2003; Pereira, 2002; Olweus, 2000).

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Contextos e Formas da Violência Escolar 311

- Acto delinquente. Estes actos (previstos no Código Penal, mas praticados por menores) têm os seus piores exemplos em grandes tragédias como o horrífico assassinato em massa perpetrado por dois adolescentes na escola Colubine, dos U.S.A., em 1999. Mas a delinquência tem outras expressões mais frequentes embora menos aparatosas: vandalismo e ataques à propriedade, violações, assédio, abordagens impróprias, etc.

A gravidade destes diversos tipos de comportamento adquire muitas gradações e só é totalmente avaliável a partir da análise de cada caso. As conse­quências mais gravosas far-se-ão sentir a partir do nível do bullying-, o aluno vítima baixa a sua auto-estima e autoconfiança, perde o controlo sobre o meio, refugia-se no silêncio e na não-participação ou reage com a passagem a actos violentos contra si mesmo (suicídio) ou contra os colegas.

Estudos de follow up mostram como as consequências podem ter reflexos na vida adulta da vítima, estando na base de depressões e de dificuldades de inserção social futuras; mostram, ainda, existir uma maior incidência de problemas de delinquência nos jovens com um historial de comportamentos a-sociais e de bullying na escola (Smith e Sharp, 1998, Tattum e Tattum, 1997). Os jovens internados nos Centros Educativos (ou de algum modo enquadrados judicialmente) testemunham sempre que a escola (também) foi responsável pela sua situação actual (Pinheiro, 2004; Pereira, 2004; Goldstein, 1990 apud Fonseca, 2003).

Não é conveniente, porém, fazer insistência na comparação entre estudos, uma vez que a unanimidade na definição dos conceitos é fraca, havendo também grandes diferenças culturais na avaliação de certos comportamentos, para além da grande diversidade de instrumentos usados.

B) A violência dos alunos contra os professores e outros agentes.Consideramos aqui os comportamentos, de expressão muito heterogénea,

que além de porem em causa regras e condições de trabalho, abalam a dignidade dos agentes educativos como profissionais e como pessoas. Um dado importante é o facto de, nos estabelecimentos onde se verifica um maior número de agressões entre pares, se observarem, também, mais problemas entre alunos e agentes educativos (Martins, 2003; Debarbieux etal., 1997). Tal como fizemos na alínea anterior, passamos a caracterizar as diferentes manifestações que podem adquirir estes comportamentos.

- Incivilidade. Corresponde a comportamentos que não têm em conta nem a respeitabilidade do professor nem das situações (o contrário de um comporta­mento cívico), e caracterizam-se como «falta de boas-maneiras», «má educação», «grosseria», «obscenidade», «desobediência ostensiva», «humor destrutivo», «riso sarcástico».

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- Comportamento asocial ou pequena violência. Tal como acima, consiste em actos agressivos, sem continuidade, traduzidos em insulto, ameaça, violência física. Verifica-se que as incivilidades e os comportamentos a-sociais contra professores, embora frequentes, são da iniciativa de poucos alunos; certamente daqueles que, para além de sofrerem o efeito de diversos factores já invocados, possuem determinadas idiossincrasias (insucesso, perturbações de personali­dade, etc.) e experiendam vivências sócio-familiares de risco (Baldry et al., 2000, Amado, 1989).

- Acto delinquente. Os comportamentos contra professores e agentes educa­tivos assumem, por vezes, um carácter mais intensamente ofensivo e hostil; contudo só excepcionalmente alcançam o carácter mais grave e a exigir todo um enquadramento exterior à instituição escolar: polícia, tribunais, etc..

2.2. A violência dos professores

Quando se fala de violência escolar não podemos deixar de considerar que ela não é apenas exercida pelos alunos. Os estudos por questionário, como o de Costa e Vale ( 1998) são bem explícitos a esse propósito: 13% dos alunos inqui­ridos referem ter sido insultados e 8% ameaçados com palavras ou gestos por «outras pessoas da escola». Contudo, as entrevistas, a observação participante e a análise documental (Abrantes, 2003; Amado, 2001,1989; Polk, 1988; Marsh et al, 1980) dão conta de muitas outras situações em que os alunos se consideram vítimas da agressão verbal (e não só), da exclusão e marginalização por parte dos seus professores na economia das interacções na aula.

Considerando o estatuto de poder e de autoridade que tradicionalmente se tem conferido (e se quer ver conferido) ao professor, é fácil ignorar as situações em que os limites (estabelecidos a propósito dos direitos da criança, do estatuto do aluno e da ética profissional) são ultrapassados. A inconsciência do fenómeno prende-se, desse modo, a uma espécie de legitimação que é conferida à prática disciplinadora do professor, enquanto agente mediador da socialização exercida pela escola; pode-se dizer que através dessa legitimação, o professor é um instrumento da violência “da ” escola, acima caracterizada.

Tal como os actos de indisciplina e de violência dos alunos nem sempre foram os mesmos nem do mesmo modo foram valorizados ao longo da história, também a autoridade e a prepotência dos professores têm sido re-significadas de diversos modos, paralelamente à evolução das concepções da infância, da criança, do aluno, do papel da escola e da natureza da educação. Em nome do “bem da criança” e do seu futuro moral, desde sempre se “justificaram” as atitudes de grande severidade dos professores, traduzidas em castigos físicos e em muitas

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Contextos e Formas da Violência Escolar 313

outras formas mais subtis. Entre educar e punir parece ter havido sempre uma «inevitável e íntima complementaridade» como diz Prairat (1994,7). Antes de passarmos a algumas conclusões resultantes da investigação dos efeitos “educativos” dos castigos, detenhamo-nos um pouco na perspectiva histórica.

2.2.1. Os castigos escolares -perspectiva histórica

A questão dos castigos em geral (e particularmente dos que infringem dor física na criança) é, ainda, polémica e controversa; e se, tradicionalmente, todos eles eram justificados, na escola e na família, com os mais variados argumentos, em que não faltavam os de inspiração bíblica (António, 2004, Ferreira, 1998), nos nossos dias, ainda que se acentue a inconveniência da punição corporal, a defesa do castigo faz-se, sobretudo, em nome da reposição da ordem e segurança na escola e da autoridade do professor.

O trabalho de Prairat (1994), sobre a história dos castigos em França, desde o século XVI aos finais do século XIX, é exemplar pela construção teórica e pelas pistas que oferece. Partindo de um inventário de práticas e técnicas punitivas, dá-nos conta, em seguida, dos motivos de culpabilização, das formas e rituais de resistência dos que são punidos, e de todo um corpo de ideias legitimadoras do acto de punir na escola. Cada época tem os seus motivos de culpabilização; eles prendem-se com a visão dominante em tomo da criança, do aluno, da escola e do papel da educação, constituindo, assim, uma espécie de “razão educativa” generalizada.

A investigação aponta para o facto de, pelo menos a “escola primária” em Portugal, durante boa parte do século XX, ser ainda conotada com uma grande violência física e simbólica; isto, apesar de um largo movimento da opinião, encabeçado pelos pedagogos da Escola Nova, contra o castigo e a favor de uma pedagogia do «autogoverno», da justiça no trato, da «persuasão», da «responsa­bilização», do reconhecimento das «consequências» da própria infracção; e apesar de várias recomendações oficiais e de legislação (cf. Decreto n° 6137, de 29 de Setembro de 1919) no sentido de que o castigo fosse aplicado “paternalmente”; esta expressão permitia, no entanto, uma grande margem de interpretações (Marvão, 2004).

A impunidade dos professores só era posta em causa quando, perante casos graves, a inspecção ou a denúncia levavam a um processo disciplinar. A análise de 105 processos registados entre 1930 e 1960, em pleno Estado Novo, realizada por Ma. J. António (2004) é elucidativa. Os motivos mais comuns para os castigos eram a indisciplina geral, a desobediência, a falta de pontualidade e de assiduidade. A violência dos professores acabava por adquirir diversas formas

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com primazia para os castigos físicos (palmatoada, varada e tabefe). Num dos processos pode ler-se: «vem castigando, violentamente, todas as crianças que pertencem à sua classe, levando a malvadez ao ponto de as agredir com quarenta e cinquenta reguadas e até com uma vara, chegando ao cúmulo de meter nas bocas das desgraçadas, pimenta moída» (in António, 204,136). Entre as variadas consequências físicas e psicológicas desta brutalidade, pode encontrar-se, num dos processos, a denúncia do suicídio de uma criança!

Nos Liceus as práticas de disciplinação seriam mais subtis, ainda que não fosse de todo excluída a violência física. Com o objectivo de defender a boa ordem e a economia da instituição, desde a primeira hora, surgem os regulamentos que consagram os deveres dos alunos e as penalidades (Cruz, 203, 55; Adão, 2001,102). Estas vão, em geral, desde a repreensão dada na aula pelo professor, seguida da repreensão pública pelo reitor, passando pela expulsão temporária e podendo ir até expulsão perpétua. Os seus objectivos seriam os de atingir a sensibi­lidade moral do infractor provocando-lhe sentimentos de vergonha, ao mesmo tempo propiciar a reparação da falta infringida e exercer sobre os restantes elementos da turma uma acção dissuasora contra a prática de desvios similares. Contudo, a orientação disciplinar geral era a de apelar «ao carácter paternal da relação pedagógica e à formação moral e social do aluno, princípios que vão ser recorrentes em posteriores reformas, tanto do período republicano como do Estado Novo» (Cruz, 2003, 61).

2.2.2. Linhas actuais da discussão

Vemos, pois, que a polémica em tomo do problema disciplinar na escola, não é nova. Um dos aspectos interessantes da análise histórica é o de provar que nesta dimensão, as ideias e as práticas poucas mudanças tiveram ao longo de séculos. Pode falar-se de uma continuidade “estranha” e “problemática”, exigindo pmdência em relação a tudo quanto podemos considerar como inovação; por outro lado, encontra-se nesta análise uma boa argumentação contra o «discurso da saudade» dos que só vêem catástrofes na escola de hoje, como se nos «outros tempos» tudo tivesse sido ideal. É à luz desta «continuidade» que gostaríamos de desenvolver, ainda, algumas notas sobre três tópicos que se mantêm actuais: a autoridade do professor, a «eficácia educativa» do castigo e o «estatuto do aluno».

A questão da autoridade do professor tem alimentado polémicas estéreis dos que não querem ver que a escola, ao integrar todas as crianças, acabou por ter de se abrir «a todos os problemas sociais» (Nóvoa, 2001), o que não poderia deixar de provocar grande perturbação. A investigação (Amado, 2001 ; Freire, 2001 ; Maya, 2000) está longe, porém, de defender o facilitismo ingénuo ou o autorita-

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Contextos e Formas da Violência Escolar 315

rismo e a exclusão. O que se lhe depara é urna nova vocação da escola (Dubet, 1999), a exigir mudanças auriculares, organizativas, na formação de professores, etc. A respeito deste ultimo ponto, o que se conclui (Espirito Santo, 2003; Santos, 1999) é pela necessidade de formar no professor a capacidade para estabelecer e exigir o cumprimento de regras e normas de comportamento, sem deixar de ser capaz de “negociar” com os alunos (reconhecendo-lhes, por isso, trajectos e projectos, razão e sensibilidade, direitos e deveres) as situações indispensáveis para que todos se empenhem no trabalho escolar.

Quanto à eficácia educativa do castigo, apesar da investigação dispersa e em fimção de paradigmas bastante diferenciados, a grande tendência é para o considerar como um último recurso (Oliveira, 2002; Freire, 2001 ; Carita et al., 1998), a usar apenas depois do falhanço das medidas preventivas e da correcção. Nota-se no entanto, últimamente, um movimento internacional no sentido voltar a defender e a legitimar o castigo físico na escola. A investigação que neste domínio, como se calcula, não é fácil, tem demonstrado (cf. Damião, 2003) que o seu uso não é exclusivamente de último recurso (o que mesmo assim não a justificaria); além disso, verifica que os alvos privilegiados são os alunos desfavorecidos, das minorias e dos primeiros anos de escolaridade. A sua eficácia é momentânea, tal como a maioria dos actos punitivos, mas desencadeia outros problemas não menos graves (escalada de violência, fobia, ódios, revoltas). Note-se que muitas destas consequências se podem encontrar já em outros actos punitivos, mesmo que não os físicos e em outros contextos, como o familiar (McGord, 2003); sobretudo se os procedimentos usados (quaisquer que sejam) forem interpretados pelos alunos (e aqui votaríamos à necessária explicação interaccionista), como arbitrariedades, injustiças e prepotências por parte dos professores (Amado, 2001).

Finalmente, tem-se verificado, nos últimos anos, e nos mais diversos sistemas educativos, a necessidade de enquadrar legalmente o «estatuto do aluno», ao mesmo tempo que, por essa via, se procura uma «reabilitação» da autoridade do professor tida como «um pilar estruturante da vivência escolar e das boas aprendizagens». Em Portugal o estatuto foi aprovado pela Lei n°. 30/2002, de 20 de Dezembro, na sequência do que fora estabelecido na Lei de Bases do Sistema Educativo e em legislação anterior (Decreto-Lei n° 270/98, de 1 de Setembro). Os objectivos são: valorizar a responsabilidade dos diferentes parceiros, consagrar os direitos e os deveres dos alunos, «qualificar» o conteúdo das infracções disciplinares e distinguir as medidas sancionatórias, das medidas cautelares, preventivas e de integração. De um olhar retrospectivo sobre a legislação anterior, na sequência da análise de Cruz (2003) e Domingues (1995, para a legislação surgida entre 1926 e 1976), pode concluir-se pela existência de um efectivo «progresso na

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316 João Amado

concepção educativa do controlo disciplinan) e de uma «acentuação do carácter formativo das penas escolares».

A Violência contra a Escola - Violência do Meio

Definimos o conceito de violência contra a escola como os actos violentos praticados “do exterior” da escola, contra as instalações, contra as pessoas que lá trabalham e estudam. Temos em vista várias situações: a existência de agentes extemos que se infiltram na escola (às vezes com a cumplicidade de alunos) e aí exercem a sua acção violenta contra elementos da comunidade educativa; a acção, realizada nas imediações da escola, mas exercida por alunos, individualmente ou em grupo, contra colegas, professores ou outros agentes, e nessa qualidade; os dados e os testemunhos têm mostrado que nem sempre os próprios parentes (pais, irmãos...) e amigos dos alunos são ilibados de responsabilidades nestes actos (Connoly, 1995, Debarbieux, 1997). Embora haja actos praticados de forma isolada e individual, é frequente a organização de jovens em gangs para a prática de acções “contra “ a escola, no sentido que aqui lhe estamos a dar, sobretudo quando esta se situa em zonas com populações desintegradas e com graves carências sócio-económicas. A expressão desta violência assume formas semelhantes às já referidas e outras: agressões físicas e verbais, roubos e furtos, assédios, violações, vandalismo, tráfico de drogas, etc.

A incidência do fenómeno, e, sobretudo as motivações que lhe dão origem, constituem importante campo de análise e reflexão. Os indicadores (nacionais e internacionais) obtidos em investigações (Shaw, 2005) ou relatórios revelam uma crescente dimensão do fenómeno; na investigação de Carra e Sicot ( 1997), realizada em escolas urbanas de França, 20,5% das vitimações tiveram lugar fora da escola. Em Portugal a direcção das escolas tem vindo a ser estimulada, desde o ano lectivo de 1998-1999, a participar às forças de Segurança, no âmbito do programa “Escola Segura”, as ocorrências nesse domínio. Os dados estatís­ticos, gentilmente cedidos pelo Comando da PSP, apontam para um aumento anual destes registos (o que se pode ficar a dever a uma maior sensibilização para este tipo de participações); contudo, não temos indicadores sobre se foram praticados dentro ou fora da escola e por quem. Ainda quanto a estes dados há que ter conta a chamada de atenção de Mucchielli (2005): as estatísticas policiais não podem ser interpretadas como se fossem decorrentes de amostras representativas da delinquência manifesta (conhecida da polícia) ou real.

Considerando estas reservas, observam-se nos dados da Escola Segura variações no número de participações, na ordem dos 63,1% entre os anos lectivos

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502 Resumos

JOÃO AMADOContextos e Formas da Violência Escolar

O autor começa por explicitar o conceito de violência escolar e por estabelecer a sua relação com outros conceitos próximos (indisciplina, comportamento anti-social, delinquência juvenil), dando ao mesmo tempo conta de algumas linhas de investigação que em Portugal se têm desenvolvido nesta área. Seguidamente caracte­riza o que considera os três grandes contextos da violência escolar (a violência da escola, a violência na escola e a violência contra a escola), e termina tipificando algumas formas ou expressões da violência “na” escola, regis­tando o que a investigação tem apontado como os principais factores do fenómeno, e alguns dados sobre a sua prevalência no nosso país.

The author first approaches the concept of school violence and connects it with other closely related concepts (indiscipline, anti­social behaviour, juvenile delinquency), giving an accounting of some of the research lines in these area in Portugal. Then the text characte­rizes the three main contexts of school violence, namely the violence of the school, the violence in the school and the violence against the school. Finally some forms and expressions of violence “in the” school are typified and, according to research, the main factors of this phenomenon are pointed out as well as some data on its prevalence in our country.

D. Pedro Soares belonged to an illustrious family, probably from the Region of Coimbra, which was linked to the dignities of the cathedral’s Chapter of that city. Elected bishop in 1192, he ruled the diocese for forty years in a period when, in Europe and Portugal, significant political and cultural changes were occurring. D. Pedro Soares was a brave defender of the ecclesiastic liberties and of the patrimony of the wide diocese he had been entrusted with. Therefore he had to fight, not only with other clergy (both secular and regular), but also with the nobility and, in particular, with the King of Portugal. The violent conflicts and the endless litigations that he had to face during the forty years of his long episcopacy and the countless humiliations (prison being one of them) with which the Crown crushed him caused in this bishop of Coimbra unmistakable signs of mental disturbance, which would lead him to renounce his episcopalian position to the hands of the Holy Father.In this study, we will try to show, among other things, how the lenghty exercise of functions, particularly if its holder is exposed to great pressure, can reveal itself counter-productive.

MARIA TERESA NOBRE VELOSOConflitos violentos entre a Coroa e a M itra em Coimbra no século XIII

D. Pedro Soares pertencia a uma família ilustre, provavelmente natural da região de Coimbra, ligada às dignidades do Cabido da Igreja-Mãe desta cidade. Eleito bispo em 1192, governou a diocese durante quarenta anos num período em que ocorriam na Europa e em Portugal transformações políticas e culturais significativas. D. Pedro Soares foi um estrénuo defensor das liberdades eclesiásticas e do património da vasta diocese que lhe fora confiada. Por isso, teve que lutar, não só com outros clérigos (seculares e regulares), mas também com a nobreza e, em particular, com o rei de Portugal. Os violentos conflitos e os infindáveis litígios que teve que enfrentar durante os quarenta anos do seu longo episcopado, o sem número de humilhações (às quais não faltou a prisão) com que a Coroa o esmagou, provocaram no bispo conimbricense inequívocos sinais de perturbação mental que o levará a renunciar ao seu múnus episcopal, em 1232, nas mãos do Santo Padre. Neste estudo procuraremos demonstrar, entre outras coisas, como o dilatado tempo de exercício de funções, particularmente se o seu titular está exposto a grande pressão, se revela contrapro­ducente.

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Abstracts 503

MARIA ALEGRIA FERNANDES MARQUESCasos de violência em ambiente eclesiástico. Contributo do Bulário Português (sees, XII-XIII)

Embora a violência envolvendo clérigos seja, por norma, conotada na sua relação com o poder régio, a documentação portuguesa relativa à Idade Média deixa perpassar muitos outros casos protagonizados ou provocados por eclesiásticos, na sua condição individual ou institucional. Tendo por base o corpus documental constituído pelo Bulário Português de Inocêncio Hl, analisam- -se um conjunto de situações diversas que reflectem formas de violência muito variadas, acontecidas com uma frequência e intensidade muito maiores do que as esperadas pela condição dos seus agentes.

Though violence involving the clergy may be, normally, implied in its relation to the royal power, the Portuguese documentation regarding the Middle Ages unveils many other cases caused or played by ecclesiastics, in their indi­vidual or institutional condition. Based on the documental corpus constituted by the Portuguese Bulls of Pope Innocent III, a group of different situations that reflect several ways of violence, which happened with a frequency and intensity larger than expected due to the condition of its agents, are analysed.

HELENA CATARINOHistória da cultura material de época islâmica e o exemplo de uma cozinha do Castelo Velho de Alcoutim (Algarve)

A longa diacronia que correspondeu à ocupação islâmica da Península Ibérica foi acompanhada de uma vasta e diversificada cultura material, desde os objectos mais luxuosos e raros, como os de joalharia, aos recipientes mais comuns e abun­dantes, representados nos milhares de fragmentos de cerâmica que os arqueólogos recolhem durante o processo de escavação. Elegeram-se, portanto, estes últimos, por serem eles os fósseis directores por excelência, no momento de se aferirem periodizações e/ou cronologias relativas.Depois de uma breve alusão aos estudos da cerâ­mica islâmica e uma exposição, em quatro tópicos, sobre os principais fabricos e decorações das cerâ­micas de al-Andalus, a análise centrou-se num monu­mento particular: o Castelo Velho de Alcoutim. A investigação arqueológica desenvolvida nesta fortificação omíada do Algarve Oriental revelou um conjunto de edifícios, desde uma pequena mesquita aos compartimentos habita­cionais, dos quais se mostra o exemplo de uma cozinha dos séculos X/XI.O estudo da distribuição espacial dos vestígios arqueológicos aí deixados permitiu contextuali- zar um forno, lareiras e restos alimentares (ossos de animais e espinhas de peixe), assim como um grupo de cerâmicas (panelas, pratos, bilhas, alguidares, etc.) e relacioná-los com os hábitos alimentares dos muçulmanos que aí viveram.

The long span of time that corresponded to the Islamic occupation of the Iberian Peninsula was accompanied by a vast and diversified material culture, from the most luxurious and rare objects, such as jewellery, to the most common and abundant recipients, represented by the thousands of ceramic fragments which archaeologists recover during the excavation process. These last ones were, therefore, chosen because of being, par excellence, the directing fossils when the moment comes to standardize periodizations and/or relative chronologies. After a short allusion to the studies of Islamic ceramics and an the exposition, in four topics, of the main manufacturings and decorations of the ceramics of al-Andalus, the analysis focused on a specific monument: the Castelo Velho of Alcoutim.The archaeological research done in this omyad fortress in oriental Algarve unveiled a group ofbuildings, from the small mosque to the dwelling compartments, from which the example of a kitchen from the 10th/11th Century is shown. The study of the spatial distribution of archaeo­logical remains left, allowed to contextualize an oven, fireplaces and food leftovers (animal and fish bones), as well as a set of ceramics (pans, dishes, pots, bowls, etc...) and relate them with eating habits of the Muslims that lived there.

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504 Resumos

GONZALO FRANCISCO FERNÁNDEZ SUÁREZLa Primera Partición de los Bienes de Don Diego Pérez Sarmiento II, Conde de Santa Marta, y la Concesión del Título de Conde de Ribadavia (1476)

El presente artículo aborda la cuestión de la primera división realizada en el patrimonio de Don Diego Pérez Sarmiento II, I conde de Santa Marta de Ortigueira (1427-1466), en 1476. La investigación se centra en averiguar el origen de esta partición, su desencadenante, las cláusulas del acuerdo y sus consecuencias que pueden resumirse en la formación de un nuevo señorío: el condado de Ribadavia. En la elaboración de este trabajo, hemos empleado documentación del Fondo Medinaceli, Sección Ribadavia, conservada en el Arquivo Histórico Universitario de Santiago de Compostela. Hemos añadido un pequeño apéndice documental y dos mapas que pretenden facilitar la comprensión al lector.

The present article tackles the question of the first partition maked in the inheritance of Don Diego Pérez Sarmiento II, first count of Santa Marta de Ortigueira (1427-1466), in 1476. The investigation centres to discover the origin of this partition, their causes, the clauses of the accord and their consequences that can be summed in formation of a new domain: the earldom of Ribadavia. In the elaboration of this work, we have used documentation of the Fondo Medinaceli, Sección Ribadavia, that preserves in the Arquivo Histórico Universitario de Santiago de Compostela. We have added a little documentary appendix and two maps that try to make easy the comprehension to the reader.

The annexation of Portugal by Filipe II in 1580 was the consequence of the wedding politics consciously followed by the royal houses from Portugal and Castela. But the question we must consider here is: In «Cortes» de Tomar, besides the problem of the possible political autonomy, did the kingdom social groups worry about the preservation of the Portuguese identity? If we recuperate and compare the “Declarações” of D. Manuel in 1499, the named 25 chapters of Duke of Ossuna and the general chapters of «Cortes» de Tomar 1581, we can state that theoretically not only the autonomy of the kingdom was assured but also some of the formal aspects of identity of Portuguese nation were approved.

JOANA BRITESEntre o poder da arte e a arte do poder: M odernismo versus neoclassicismo monumentalista na arquitectura das décadas de 1920 a 1940?

O presente artigo pretende problematizar o «confronto» entre modernismo e neoclassicismo monumentalista travado no quadro arquitectó­nico internacional entre-guerras. Partindo da

This article intends to question the «battle» between modernism and monumental neoclassi­cism that was fought on the international architectural scenery between World Wars.

FRANCISCO RIBEIRO DA SILVAA Preservação da Identidade Portuguesa à luz das Cortes de 1581

A anexação de Portugal por Filipe II em 1580 foi consequência da política de casamentos conscientemente seguida pelas casas reais de Portugal e Castela. Mas a questão que aquí se levanta é se ñas Cortes de Tomar, para além do problema da autonomia política possível, os Estados do Reino se preocuparam com a preser­vação da identidade portuguesa. Recuperando e comparando as «declarações» de D. Manuel em 1499, os chamados 25 capítulos do Duque de Ossuna e os capítulos gerais das Cortes de Tomar de 1581, pode-se afirmar que teorica­mente não só se garantiu a autonomia do Reino como se tentou oficializar alguns dos traços formais da identidade da nação portuguesa.

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Abstracts 505

análise dos casos alemão, russo e italiano, procurar-se-á, por um lado, desmontar leituras redutoras acerca da «crise do Movimento Moderno» e, por outro, destacar os paralelos entre a linguagem estética adoptada nos regimes autoritários e totalitários e a escolhida pelos de matriz democrática. Seguidamente, examinar- -se-á o papel da arquitectura moderna na afirmação do Estado Novo, bem como a especi­ficidade que em Portugal assumiu o «conflito» entre o «fazer moderno» e o «fazer nacional». Concluiremos subscrevendo mais a complemen­taridade do que a oposição entre estes dois códigos linguísticos e simbólicos.

An analysis is made of the German, Russian and Italian cases, in order to decompose reductive explanations for the «crisis of Modern Movement» and, on the other hand, to outline parallels between the aesthetic language adopted by authoritarian and totalitarian regimes and the one chosen by those with a democratic matrix. Furthermore, the investiga­tion seeks to examine the role of modem architecture in the affirmation of the Portuguese ‘Estado Novo’, as well as the specific shape that the «conflict» between «national way» and «modem way» assumed in Portugal. In conclusion, these two symbolic architecture codes will be shown to be more complementary than opposite.

PEDRO REDOLPorque se fazem obras nos museus? Reflexões em torno de um caso

Interrogamo-nos sobre a missão dos museus, em particular a dos museus de arte, a propósito de uma experiência concreta: a ampliação e remodelação, em curso, do Museu Nacional de Machado de Castro, em Coimbra. O ponto de partida é o papel que um museu desta natureza pode assumir em relação ao conheci­mento. O ponto de chegada são as soluções de arquitectura e exposição encontradas pelos projectistas, em interacção com os programa­dores. Entre o ponto de partida e o de chegada medeiam reflexões sobre modos de apropriação do real e representação, tanto quanto sobre a autenticidade como aspecto indissociável de uma ideia de criação de raiz metafísica.

We wonder about the mission of museums, particularly art museums, with respect to a real experience: the still undergoing enlargement and remodelling of the National Museum Machado de Castro in Coimbra. The starting point is the role a museum like this can play in relation to knowledge. The finish point is the architectural and exhibition solutions found by planners, in interaction with programmers. Between the start and the finish points, there stand thoughts about the ways of reality appropriation and representation, and also about authenticity as a non dissociable aspect of an idea of creation rooted in metaphysics.

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ÍNDICE

Nota Introdutória...................................................................................................................... 7A Violência em Portugal na Idade Moderna: olhares historiográficose perspectivas de análise...........................................................................................................9

Margarida Sobral NetoViolência e Universo Rural no Império do Brasil: História e Historiografia...................... 29

Márcia Maria Menendes MottaViolência(s) e Guerra(s): Do Triângulo ao Continuum........................................................ 45

José Manuel Pureza e Tatiana MouraContestação do regime e tentação da luta armada sob o marcelismo...................................65

Rui BebianoEstado Autoritário e Violência no Brasil.............................................................................105

Nilson Borges Filho e Fernando FilgueirasO Despotismo Fabril: violência e poder numa empresa industrial do calçado..................131

Elisio EstanqueA Igreja, o Estado e a questão da violência sobre os escravos.Reflexões a partir do Bispado do Rio de Janeiro (1676-1785)............................................ 153

Ana Margarida Santos PereiraRepressão de comportamentos femininos numa comunidade de mulheres- uma luta perdida no Recolhimento da Misericórdia de Coimbra (1702-1743)................ 189

Maria Antonia LopesCrianças e maus tratos na família - uma abordagem sociológica......................................231

Ana Nunes de AlmeidaO espelho que sangra: representações ficcionais da história............................................. 255

Adriana BebianoHeteronormatividades: formas de violência simbólica e factualcom base na orientação sexual e identidade de género.......................................................281

Ana Cristina SantosContextos e Formas da Violência Escolar...........................................................................299

João AmadoConflitos violentos entre a Coroa e a Mitra em Coimbra no século XIII...........................327

Maria Teresa Nobre VelosoCasos de violência em ambiente eclesiástico.Contributo do Bulário Português (sécs. XII-XIII).............................................................. 343

Maria Alegria Femandes MarquesHistória da cultura material de época islâmicae o exemplo de uma cozinha do Castelo Velho de Alcoutim (Algarve)...............................363

Helena Catarino

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508 índice

La Primera Partición de los Bienes de Don Diego Pérez Sarmiento II,Conde de Santa Marta, y la Concesión del Título de Conde de Ribadavia (1476).............377

Gonzalo Francisco Fernández SuárezA Preservação da Identidade Portuguesa à luz das Cortes de 1581.................................... 393

Francisco Ribeiro da SilvaEntre o poder da arte e a arte do poder: Modernismo versus neoclassicismomonumentalista na arquitectura das décadas de 1920 a 1940?...........................................411

Joana BritesPorque se fazem obras nos museus? Reflexões em tomo de um caso................................... 437

Pedro Redol

Recensões...............................................................................................................................449

Notícia................................................................................................................................... 481

Vida do Instituto................................................................................................................... 483

Publicações Recebidas (Ofertas e Permutas).......................................................................485

Resumos / Abstracts.............................................................................................................. 495

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PUBLICAÇÕES DISPONÍVEIS PARA VENDA

Revista Portuguesa de HistóriaFundada em 1941, a primeira das revistas de História publicada em Portugal

Tomos: I ao XIII esgotadosXIV (1974), 535 pp.XV (1975), 575 pp.XVI (1976) a XX (1983)XXI (1984), 232 pp.XXII (1985), 216 pp.XXIII (1987), 367 pp.

XXIV (1988), 332 pp.XXV (1989-1990), 328 pp.XXVI (1991), 222 pp.XXVII (1992), 250 pp.XXVIII (1993), 228 pp.XXIX e índices (1994), 254 pp. e 45pp.XXX (1995), 254 pp.

XXXI (1996), vol.I - 644 pp., vol. II - 484 pp. (Homenagem ao Prof. Doutor Salvador Dias Amaut)

XXXII (1997-1998), 626 pp.XXXIII (1999), vol. I - 414 pp., vol. II - 447 pp. (Portugal e Brasil Rotas de Cultura

- volume comemorativo dos 500 anos do achamento do Brasil)XXXIV (2000), 715 pp.XXXV (2001-2002), 671 pp. (Homenagem ao Prof. Doutor Sérgio Soares)XXXVI (2003-2004), vol. I - 592 pp., vol. II - 558 pp. (Homenagem os Professores

Luís Ferrand de Almeida e António de Oliveira)XXXVII (2005)

Preço de cada tomo: 25 euros + 3 euros (custos de envio) Desconto de 20% para assinantes e livreiros; 10% para estudantes

índices actualizados no seguinte endereço: http://www.fl.uc.pt/INSTITU/IHES/REVISTA.HTM

A mulher na sociedade portuguesa. Visão histórica e perspectivas actuáis. Actas do Coloquio. Coimbra, 20 a 22 de Março de 1985. 2 vols 25 euros

Luis Ferrand de Almeida - A colónia do Sacramento na época da Sucessão de Espanha. Coimbra, 1973 25 euros

Luís Ferrand de Almeida - Páginas dispersas. Estudos de História Moderna de Portugal. Coimbra, 1995 20 euros

António de Oliveira - Movimentos Sociais e Poder em Portugal no Século XVIL Coimbra, 2002 30 euros

Minorias étnicas e religiosas em Portugal. História e actualidade. Actas do Curso deInverno, 9-11 de Janeiro de 2002, Coimbra, 2003 25 euros

Condições de venda: 20% de desconto para assinantes e livreiros; 10% para estudantes o preço não inclui os portes de correio

Contactos/pedidos:Instituto de História Económica e Social / Faculdade de Letras de Coimbra / 3004 -530 Coimbra

telef. 239859962 / fax 239836733 / email [email protected]

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