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010 pós- José Teixeira Neto Formado em filosofia pela FFLCHUSP, cursou (sem se diplomar) a FAUUSP nos anos 70, compondo a diretoria do GFAU em 1976. Ex- associado da Sociedade Amigos da Cinemateca, foi um dos fundadores do Cineclubefau, do qual participou entre 1975 e 1978. Nessa qualidade, esteve presente à fundação da Federação Paulista de Cineclubes, em 23 de março de 1975, tendo tomado parte das Jornadas Nacionais de Cineclubes de Campinas (SP), em 1975, e Juiz de Fora (MG), em 1976. Como jornalista, trabalhou durante 12 anos na Editora Abril, passando pelas revistas Veja, Placar, Claudia e Superinteressante. Trabalhou também na Editora Globo e foi editor de Opinião do jornal Diário do Grande ABC, de Santo André. Atualmente, cursa pós-graduação na área de Estética, no Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, trabalhando a questão de como se constitui a estética enquanto disciplina na obra de G.W. F. Hegel. Rubens Machado Jr. Nasceu em Campinas, 1952. É professor de teoria e história do cinema no Ctr/Eca-USP. Lecionou Estética, História da Arte e da Arquitetura na FAU-Febasp (1982-86). Foi pesquisador no Idart, Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo. Colaborador e editor das revistas Cine Olho (RJ-SP, 1975-1980), Infos Brésil (Paris, 1992-; co-editor da rubrica “Urbanités”, 2003-), Praga (SP, 1997-2000) e Sinopses (SP, 1999-). Participou, nos anos 70, da fundação da Federação Paulista de Cineclubes, do Cineclubefau e do Cinusp. Realizou com o Grupo Alegria o filme O apito da panela de pressão (DCE-USP, DCE-PUC, 1977). Desenvolve, atualmente, pesquisa sobre a história do cinema independente e experimental no Brasil. Foi o curador da mostra Marginália 70: O experimentalismo no Super-8 brasileiro (Itaú Cultural, 2001). Participa pela Eca do CEM-Cebrap (Centro de Estudos da Metrópole). Crédito: Candida Maria Vuolo

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José Teixeira NetoFormado em filosofia pela FFLCHUSP, cursou(sem se diplomar) a FAUUSP nos anos 70,compondo a diretoria do GFAU em 1976. Ex-associado da Sociedade Amigos da Cinemateca,foi um dos fundadores do Cineclubefau, do qualparticipou entre 1975 e 1978. Nessa qualidade,esteve presente à fundação da FederaçãoPaulista de Cineclubes, em 23 de março de 1975,tendo tomado parte das Jornadas Nacionais deCineclubes de Campinas (SP), em 1975, e Juiz deFora (MG), em 1976. Como jornalista, trabalhoudurante 12 anos na Editora Abril, passando pelasrevistas Veja, Placar, Claudia e Superinteressante.Trabalhou também na Editora Globo e foi editor deOpinião do jornal Diário do Grande ABC, de SantoAndré. Atualmente, cursa pós-graduação na áreade Estética, no Departamento de Filosofia daFFLCH-USP, trabalhando a questão de como seconstitui a estética enquanto disciplina na obra deG.W. F. Hegel.

Rubens Machado Jr.Nasceu em Campinas, 1952. É professor deteoria e história do cinema no Ctr/Eca-USP.Lecionou Estética, História da Arte e daArquitetura na FAU-Febasp (1982-86). Foipesquisador no Idart, Divisão de Pesquisas doCentro Cultural São Paulo. Colaborador e editordas revistas Cine Olho (RJ-SP, 1975-1980),Infos Brésil (Paris, 1992-; co-editor da rubrica“Urbanités”, 2003-), Praga (SP, 1997-2000) eSinopses (SP, 1999-). Participou, nos anos 70,da fundação da Federação Paulista deCineclubes, do Cineclubefau e do Cinusp.Realizou com o Grupo Alegria o filme O apito dapanela de pressão (DCE-USP, DCE-PUC, 1977).Desenvolve, atualmente, pesquisa sobre ahistória do cinema independente e experimentalno Brasil. Foi o curador da mostra Marginália70: O experimentalismo no Super-8 brasileiro(Itaú Cultural, 2001). Participa pela Eca doCEM-Cebrap (Centro de Estudos da Metrópole).

Crédito: Candida Maria Vuolo

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CINeMA e MeTRÓPOLe

vera pallamincoordenação dos depoimentos

Vera Pallamin: Saiu, no ano passado, um longo capítulo seu no livro coletivoHistória da cidade de São Paulo (Paz e Terra), sobre a cidade do ponto devista de seu cinema. Está sendo lançado o trabalho anterior, um livro de suapesquisa de mestrado, intitulado São Paulo em movimento – A representaçãocinematográfica da metrópole nos anos 20 (Editora da Unicamp).Gostaria que você começasse a entrevista comentando esse seu trabalho.Como ele surgiu?Rubens Machado Jr.: Surgiu há muito tempo. É um projeto de lentamaturação. Fiz a FAU. E fiz o Cineclubefau...José Teixeira Neto: Mas no cineclube, pelo que me lembro, ninguém tinhauma preocupação mais definida sobre temáticas do espaço ou do urbano nocinema.RMJ: É verdade. Eu falo de uma experiência mais pessoal, partilhada àmargem das atividades, às vezes em conversas, de misturar os registros e dever o filme “arquitetonicamente”, como uma sucessão ou experiência deespaços. Sei lá, lembro-me, por exemplo, do Paulo Morelli (hoje o conhecidocineasta de Viva voz), então um calouro, falando impressionado da coerênciade um filme como Esposa amante, com a Laura Antonelli, que lhe soavacomo uma espécie de túnel espacial constante do início ao fim, comonecessário para nos concentrarmos no trajeto “impávido” da personagem aolongo da fita. Tinha a fixação do Pinedo (hoje professor na FAU-Febasp), e,no fundo, de todos nós, pelo cinema italiano. Lembro-me da Clara Ant(depois deputada e administradora da regional da Sé), uma veterana quandocomeçamos o cineclube, relatando-nos um filme do Antonioni, aquiinacessível na época – tempos de ditadura –, que ela teria visto no exterior, eera justamente o Zabriskie point, como uma sensação orgástica de doisestudantes vendo ir pelos ares tudo o que a sociedade queria construir... e ofascínio com o deserto, o não-construído...JTN: Nada mais típico. O cineclube desembocou na segunda metade dosanos 70 em uma série de atividades, com o movimento estudantil crescendoe um fervilhar de atividades culturais na universidade.

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RMJ: Nós criamos a Federação Paulista deCineclubes, depois o Cinusp, que era um poolde cineclubes universitários, participamos demovimentos nacionais, e isso inclui a revista CineOlho, que era editada no Rio por cineclubistas daPUC-RJ, da qual começamos a participar combase em nossa vivência do cineclubismo. E a CineOlho – cujo nome, fique claro, inspira-se nocinema de Dziga Vertov, dos anos 20, na UniãoSoviética (o professor Katinsky um dia nos parouem frente à biblioteca apontando nossa pilha eperguntou, com ar desconfiado, assim fechandoum olho: “Vocês por acaso estão sabendo o quequer dizer Kino Glaz?.” Nossa contracapa pop eraversão russa da capa) – acabou virando umarevista importante no Brasil, nesse período. Foiisso tudo que me encorajou a fazer uma pós-graduação em cinema. Fiz esse trabalho sobre SãoPaulo, que foi o meu mestrado, durante os anos80 – e na época o mestrado durava oito anos, oque era bom... Mas, já antes, o meu TGI (orientadopelo professor Haron Cohen) era uma análise daorganização do espaço em Terra em transe, queacabei retomando nos anos 90, em meudoutorado. Mas no mestrado propus ao IsmailXavier, meu orientador, esse tema darepresentação da cidade nos anos 20. Embora,enfim, como todo mestrando, a minha idéia erafalar do século todo, não é? E esse projeto acabou,como também em uma série de mestrados ocorre,concentrando-se no primeiro capítulo, que virou otrabalho todo.JTN: E esse período histórico abrange o períodosilencioso, que é, de fato, o período entre-guerras.RMJ: Isso, de todo modo, apesar de filmar-se aquidesde 1899, na verdade, só começa a ter algummaterial “projetável” para se analisar, algumascópias remanescentes, a partir de 1919, 1920.Então, pensei em fazer uma análise dessematerial, tentando pensar a ótica pela qual ocinema, em um certo período, tratou a cidade.VP: Você levou em conta a existência, já nessaépoca, de outras formas de representação, como afotografia, ou mesmo a pintura?RMJ: Para ter uma referência, fui atraído a pensar,em um enfoque paralelo, em como a literatura,principalmente, mas também a pintura e afotografia – às quais tive menos acesso – fizeram,por assim dizer, o mesmo trabalho.VP: Em literatura seria mais fácil traçar umparalelo do que em fotografia e em pintura, nosanos 80, quando haveria muito pouco estudosobre a pintura.RMJ: Na história da pintura em São Paulo, todo oestudo da Ruth Tarasantchi só foi publicado nos

anos 90. Existia o trabalho de Miguel Chaia,também sobre a pintura em São Paulo, que, noentanto, ainda é pequeno, não foi tão longe napesquisa... Somente começou a levantar asquestões, de modo instigante, anunciando anecessidade de ser feita uma pesquisa de maiorfôlego.VP: E aí é dada ênfase à questão do espaço, àquestão da representação, ou ele estaria maisinteressado na linguagem?RMJ: É mais um levantamento do que aconteceuna pintura paulistana em termos da presença dacidade... elementar, mas muito curioso ao proporconceitos. Uma das coisas que utilizo comocontraponto, algo que fui encontrar também naliteratura, é o fato que ele não encontra umapresença maior do centro e do equipamentourbano mais recente. Isso é algo que osmodernistas não trouxeram muito. Neles não égrande a presença da São Paulo que encontreinos filmes, que era a São Paulo recentementeconstruída, a São Paulo dos novos melhoramentos,dos arranha-céus, os quais estavam começando aser construídos, dos prédios começando a ficarum pouco mais altos, dos viadutos. Quer dizer,todas as imagens mais cosmopolitas e maisrecentes é que eram o grande objeto dos filmes e,quase exclusivamente, a paisagem paulistanaencontrada no cinema. Enquanto isso, segundoChaia, a pintura que era feita na época estariapreferencialmente interessada na paisagembucólica dos arrabaldes da cidade... Então, asexceções, poucas exceções, partem de umcontingente de pintores que não tinham sidoinventariados e pesquisados na época. E que,posteriormente, a Ruth Tarasantchi passou acontemplar. Era o contingente vindo da imigração,os pintores imigrantes, e aí há uma identidadeentre quem faz cinema e quem faz pintura.Porque o cinema era sempre de imigrantes ou defilhos de imigrantes chegados há poucos anos emSão Paulo. Então, existia, nos dois casos, um olharestrangeiro sobre a cidade.VP: Estrangeiro por conta da chegada recente, ouda origem familiar...RMJ: Esses pintores de origem estrangeira,curiosamente, olharam com especial interessepara essa São Paulo. Surge aí uma primeirahipótese, que é óbvia (ainda que questionável), aque a São Paulo apresentada nessa produçãoassemelha-se mais às cidades européias,enquanto a cidade mais bucólica, como diz oChaia, é a que predomina nas três primeirasdécadas do século, entre aqueles pintores jáestabelecidos nos estudos dos anos 80, de

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extração mais local. Creio que esses pintoresimigrantes só entrariam no mercado por volta dosanos 80. Então, há o problema da amostragemtambém.JTN: Quer dizer que o Miguel Chaia faz umareflexão sobre pintores já consagrados, e nãosobre essa leva de pintores amadores, que são osdo Grupo Santa Helena, ou anteriores...RMJ: Na verdade, fui apoiar-me mais na literaturaque havia, que não é uma arte jovem, como é ocinema, é uma arte em que existe menosingenuidade, mais tradição, mais maturidade notrato dos estilos. Aí existe uma São Paulo em quese conjuga o progresso com o atraso, o arcaicocom o moderno, evidenciando-se essa aspiraçãode ser uma metrópole cosmopolita, tendo deconviver com a herança caipira, com a herança dosubdesenvolvimento. Então, digamos que oresultado da representação que a literatura traz dapresença da cidade é muito mais complexo, chegaa interessar-se mais por essas contradições,justamente as que no cinema faziam o olharpender completamente para o pólo do progresso.Isso vai levar a uma caracterização da época comoum período que configura apenas uma óticadominante da representação do espaço urbano,uma ótica do progresso. É uma cidade ordenadapara o trabalho, aliás, completamenteordenada para o trabalho, e está no São Paulo, ASinfonia da metrópole, de Adalberto Kemeny eRodolfo Rex Lustig, e em Fragmentos da vida, deJosé Medina, ambos de 1929. Ao contrário dasépocas subseqüentes, pelos filmes é difícilconfigurar contrafações à ótica dominante: é umasó ideologia, uma só proposta, uma só visão dacidade.JTN: Isso vai nos levar para uma discussãopolítica, a respeito do impacto da Revolução de 30sobre São Paulo cidade e São Paulo estado, maspodemos deixar mais para a frente.VP: Depois voltamos ao tema?RMJ: Lembro-me que em Campinas fizeram, nosanos 20, um filme de bangue-bangue, umatentativa de produzir filme de gênero... Parto dopressuposto que a produção cinematográfica sóconsegue dar uma contribuição efetiva para umadeterminada cultura e seus costumes quando sãorealizadas dezenas de fitas em um determinadogênero, ou em vários gêneros, tais como o filmeromântico, o filme de aventura, os filmeshistóricos, os bangue-bangues. Esse era o exemploque nos chegava, abundantemente, no cinemaestrangeiro. Embora seja preciso lembrar que aprodução brasileira até os anos 10 foi grande,tanto que ela foi chamada de “a Belle Époque do

cinema brasileiro”. Mas, enfim, a produção defilmes dentro de determinados gêneros foi a viaseguida pelo cinema americano, pelo cinemaeuropeu, e também pelo cinema mexicano, parasair das cinematografias centrais. O problema éque aqui não existem mais os filmes para se ver,apenas relatos a respeito deles ou algumas fotosque sobraram. Imagino que, de alguma forma,esses gêneros iriam dirigir o olhar para o espaço.Um gênero, por exemplo, o filme romântico,poderia resolver-se no espaço interno, masoutros talvez até exigissem o espaço aberto... Vocêacha que, se de fato esses filmes tivessem sidofeitos, mudaria muita coisa?RMJ: Mudaria tudo, creio que o país seria outro,teríamos tido algo mais semelhante a umaindústria cinematográfica. Nesse caso, até o Barãode Mauá não teria esse perfil quixotesco que ficou.Isto não impediu o cinema brasileiro de tertentado fazer filmes de “vocação” industrial até ofinal do século 20. O filme pseudo-industrial é atéuma constante inevitável, indefectível no país;ainda mais em São Paulo. Lidar com o cinemanacional é lidar com isso, e, nesse sentido, boaparte dos filmes que temos vai inclinar-se nestadireção, com as performances instáveis queconhecemos. Daí não termos chegado lá, e ocinema pseudo-industrial ser uma espécieteimosa de comédia do cinema nacional. Apesarde apontarem aqui e ali o vigor da chanchadacarioca, depois a era Embrafilme, apornochanchada, etc., não houve um cinemapropriamente industrial, e parte importante denosso cinema nem sequer sobrou. É difícil fazeressa reflexão sem ter os filmes presentes.JTN: Perdeu-se a grande maioria dos filmes daprimeira metade do século. E com isso todo umtestemunho possível do espaço.RMJ: É que, de fato, a linguagem do cinematrabalha com essa reconstituição do espaço físico,e, contando com as raras fitas que sobraram, alémde fragmentos e outros materiais remanescentes,depoimentos, dificilmente se consegue essarestituição. Veja-se o caso do precioso livro deMaria Rita Galvão, Crônica do cinema paulistano:os relatos que dão conta dessas obrasdesaparecidas se apóiam bem mais emreproduções de enredos e temas, e não se ficasabendo muito bem como foram filmados essesenredos e temas. Por exemplo, em vários doscinejornais que se faziam nos anos 20, eu vi todoo material projetável, não aparece muito apaisagem da cidade. Eram postos intertítulos,dizendo “na rua tal”, “na praça tal”. Filmava-se sóa paisagem humana, e a paisagem física era

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esquecida. Isso predomina na imagem que erafeita, sem muito de critério artístico oucinematográfico. Era meio acidental queaparecesse ali uma fachada ou que secaracterizassem os espaços os quais sedesenvolvem os eventos filmados. Mesmo no Caçaà raposa, filme feito para a família de dona OlíviaGuedes Penteado, mostrando, em 1913, overdadeiro ritual em que se daria a caça à raposa,embora não apareça raposa nenhuma, nem outrapresa... Mas tem toda uma ambientaçãomundana, no sentido inverso, ainda que o maisconvencional, isto é, registram-se as pessoas, nãoseu mundo. É um passeio a cavalo feito pelacidade, proximidades do centro, na época,arrabaldes, em trajes ingleses, trombetas, jalecos,quepes... Filmaram-se as pessoas engalanadassaindo de um casarão, elas cavalgam pela cidadeainda campo, mas é preciso pôr legendas,intertítulos, com os nomes dos locais atravessados,porque os próprios não são filmados por detrás docortejo de cavaleiros. Há toda a circunstância daparada para o café, para uma merenda, aliás, bemaristocrática, uma sucessão de eventos, mas oespaço circunstante não é objeto de interesse. Eraessa a regra dominante nas filmagens deencomenda que encontramos, o homem vir bemantes do meio, tão antes que o obscurece. Fuiobservar, por exemplo, nas ilustrações de JoséWasth Rodrigues para livros didáticos, de ficção,como os de Paulo Setúbal, mostrandobandeirantes, representando temas históricos.Essas gravuras, seja quando ambientavampersonagens na selva, no mato, na fazenda ou nacidade também, em geral nesse períodoprivilegiam a figura do corpo humano, e apaisagem não é detalhada. Desenha-se umpersonagem, e ocorre uma espécie de evaporaçãoda circunstância... Então, fico perguntando-me senão é uma maneira de não legitimar a presençada paisagem urbana como espaço público, que jáera um dado latente. O que faz o lugar são certoshomens, não seus espaços comuns.VP: E quando a cidade começa a aparecer mais?RMJ: Na segunda metade dos anos 20.JTN: Acho que dá para fazer uma ligação com asintervenções de Ramos de Azevedo, que já vêm dofinal do século 19. Porque São Paulo precisavaaparelhar-se para ter uma aparência de capital,não é? Construir novos palácios para assecretarias, um novo teatro, foram encomendadosplanos, como o Plano Bouvard, e, anos mais tarde,com Prestes Maia, o Plano de Avenidas. Querdizer, havia uma idéia que São Paulo precisavaprimeiro poder ser apresentada, inauguraram-se

construções embelezadoras, para a cidade ter oque fosse digno de ser mostrado.RMJ: É isso. Provisoriamente, poderíamos pensara hipótese que São Paulo ainda não funcionavacomo cenografia confiável. Então, sair com acâmera espontaneamente e começar a filmar acidade era algo temerário, de repente podiam-secaptar coisas, sei lá, cabras, casebres, locaisinsalubres... Tudo isso podemos pensar sobre omaterial remanescente.VP: Mas como fica a questão dos gêneroscinematográficos?RMJ: Retomando o tema dos gêneros, elesexistiram, sim, mas como não chegaram muitos deseus exemplares até nós, é difícil ficarelucubrando sobre o que de fato aparecia. Umgênero podia ser hipoteticamente bastante urbano,mas isso não garantia que a paisagem urbana ouque algum tipo de espacialidade urbana ficassenele bem caracterizada. Era o caso do gênero dosfilmes sobre crimes, no qual se pegava um grandeevento recente, que tomasse espaço na imprensa,uma morte, uma série de assassinatos, umacaptura de assaltante, e fazia-se uma encenaçãodisso. E esse filme, em certos momentos, obtinhagrande sucesso de bilheteria. Isso faz parte docinema feito na chamada Belle Époque, na viradado século, como é retratado em dois livros deVicente de Paula Araújo (A bela época do cinemabrasileiro e Salões, circos e cinemas em SãoPaulo, publicados pela Editora Perspectiva).Então, um gênero como esse, mostrando, porexemplo, criminosos em ação, seria algo quepoderia trazer a experiência do urbano. Mas é umgrande mistério imaginar como seriam essesfilmes, porque não sobrou nada deles, hápouquíssimas fotos para serem analisadas...O que existe mais são relatos. Depois, em seguida,há em São Paulo, nos anos 10, uma vaganacionalista, uma onda de filmes de temaspatrióticos, como A retirada da Laguna, do qualtambém não sobrou nada. Falar sobre essematerial seria uma segunda especulação. Então,nesses temas patrióticos, produziram-secenografias de um Brasil histórico, em geral,baseadas em literatura: Inocência, de Taunay, Oguarani, de Alencar, Caçadores de diamantes, deBilac. Nesses temas históricos, porém, por falta derecursos, com a pobreza de nosso cine-amadorismo, deduz-se que não havia muitacenografia, ou quase nenhuma. Improvisava-secom filmagens a céu aberto, e, pela facilidade,com o predomínio de uma paisagem natural, nãouma paisagem urbana... Depois, o cinema urbanoo qual passa a trazer tal paisagem vai ocorrer só na

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elogio da cidade, que começa a erguer-se comgrande velocidade, esse é o sentido de haver aíuma cena de construção civil, com os andaimes ea obra sendo levantada. Mas há um contrasteentre a loquacidade dos letreiros entusiásticos, e aimagem mostrada. Mas isso é talvez um poucosutil, porque o modo de filmar é tão eloqüente,que mal se percebe tratar-se apenas de umsobrado, um sobradinho sendo construído. E oespectador já fica impressionado com os letreiros,os quais são muito enfáticos. Tem-se, realmente,uma sensação de pujança, trazida pela dinâmicadessa construção toda. Enfim, a história começacom um pedreiro que cai do andaime, em umacidente de trabalho. Ele ainda tem tempo derecobrar os sentidos, e, antes de morrer, dá umconselho ao filho que tinha lhe trazido a marmita.Ele aconselha o garoto a tomar o caminho do beme a ser um homem de bem, devotado ao trabalho.Então, já surge daí o desígnio de uma cidadevoltada para o trabalho. E no filme todo éapresentada uma cidade extremamente ordenada,bem disciplinada como paisagem, como ritmo,como dinâmica espacio-temporal, servindo depano de fundo muito eficaz para a trajetória dospersonagens.JTN: E o curioso é que esses, justamente, não vãoser trabalhadores, homens do mundo do trabalho,e sim marginais.RMJ: Ocorre que os conselhos do pai nãofrutificaram, e aquele garoto surge, anos depois,como um vagabundo. Mas é importante ressaltarque essa história é uma adaptação de um contonova-iorquino da virada do século, escrito por O.Henry, sobre um vagabundo o qual, depois demuitos anos nessa vida, decide mudar e procurarum emprego. Com a chegada do inverno, elesempre tentava ser preso, para ter comida e roupalavada. Esse plano sempre dera certo. Agora, noentanto, ele não consegue, mesmo tendo feito umasérie de peripécias de contravenção em público.Por coincidências sucessivas, ele acaba nãoconseguindo ser preso. Ele chega a um pontopatético de frustração total, e decide, então, mudarde vida. Pois bem, o Medina adapta esse contotrês décadas depois no Brasil, em São Paulo,assumindo o ponto de vista que São Paulo já tinhauma ordem institucional a qual realmentefuncionava, com justiça ágil, presídio acolhedor...E tanto é verdade, que São Paulo aspirava aoestatuto de uma cidade moderna, e, sem dúvida,Nova York estava entre os melhores modelosexistentes para seu desenvolvimento. Isso já estáem crônicas de Monteiro Lobato dos anos 10, quejá falava no modelo nova-iorquino a ser seguido.

segunda metade dos anos 20, a partir de quando,praticamente, temos cópias disponíveis para ver,discutir. O primeiro filme de ficção brasileiro, oexemplar mais antigo que se pode ver completo, éum filme paulistano, com cenas na avenidaPaulista, o Exemplo regenerador, de José Medina.VP: Fale um pouco sobre esse filme.RMJ: O Exemplo regenerador, filme curto de1919, também ilustra um pouco esse problema darepresentação da cidade. Talvez porque a Paulistaainda não fosse vista, nesse momento, como umfato urbano suficientemente eloqüente, não háplanos de conjunto, não são mostradasperspectivas da avenida. É com frustração quevemos o predomínio de alguns muros, quepoderiam muito bem ter sido filmados emqualquer outro bairro, e não na Paulista; vemos aliapenas a entrada do Clube do Trianon e a fachadade um palacete, onde morava o personagem.Neste, praticamente, só é mostrada a sala, é a salaburguesa que vai aparecer um tanto. Espaçoprivado, sim; o público vem devagar. Não existe,então, e até o final dos anos 20, um discursoaudiovisual claro de nosso cinema sobre a cidade.A única exceção quanto a isso são osdocumentários e os cinejornais que seguiam asefemérides, as inaugurações, as chegadas àcapital de personalidades, as chegadas deaviadores. E aí nesses cortejos havia aqueleproblema a que já me referi, a não ser quando setratava de inaugurações de obras, quase sempre ainformação quanto ao local em que o fato ocorreravinha nos letreiros, e não se mostrava bem o lugar.Mas um material muito interessante foi registradopela Rossi Film, contratada pelo governo doestado, que filmou todas as obras as quais podemser vistas nos documentários restantes dessaépoca. Lá está uma parte considerável das obrasda prefeitura nos anos 20.JTN: Diante disso, é surpreendente o surgimentodos filmes de José Medina.RMJ: Mas acho necessário falar de um dos filmesdo Medina, com um outro filme também dos anos20, pois estes são duas pérolas, filmes raros dentroda cinematografia brasileira, dá até paraconsiderar como filmes muito felizes do cinemabrasileiro do período, o Fragmentos da vida, doMedina, na ficção, e o documentário São Paulo, asinfonia da metrópole. No Fragmentos da vida oque é mais interessante...VP: Você viu esse filme?JTN: Vi, mas não me lembro direito dele. É o quetem operários trabalhando em uma construção.RMJ: É, ele começa com operários em umaconstrução. Os letreiros fazem uma espécie de

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Na realidade, para São Paulo aproximar-se deNova York, faltavam, para começar, os arranha-céus. Era mais aspiração que realidade. E asinstituições também estavam distantes do padrãonova-iorquino. Essa aspiração também estavapresente no filme São Paulo, a sinfonia dametrópole, no qual a maior seqüência é,justamente, a que mostra a penitenciária doCarandiru como uma colossal instituição exemplarque recuperava presos. Por isso são mostrados osprocessos de educação, de treinamento, nos quaiscriminosos eram recuperados para a sociedade,etc... Nesse filme pode-se ver uma série deinstituições, trabalhos sendo feitos, a Faculdadede Medicina, o Instituto de Educação Caetano deCampos. Na verdade, o filme São Paulo, a sinfoniada metrópole, de Adalberto Kemeny e Rodolfo RexLustig, pretendeu ter como base o modelocinematográfico de vanguarda do Berlim, sinfoniade uma cidade, de Walter Ruttmann, de 1927, eexibido na capital paulista no ano seguinte. Ele sepropunha a trabalhar só com imagens, semnenhum letreiro, quer dizer, partindo dopressuposto que as imagens falam por si, mais doque isso, como se elas fossem tão expressivas, quenão precisassem encadear nenhum enredotemático. Nesse filme cada plano pretende valercomo uma nota musical, e vão sendo combinadosos diversos planos da cidade, como uma sinfonia.Ele tem a articulação de uma máquinafuncionando. Seu único vetor geral deencadeamento é um dia na vida da grandecidade. Suas imagens assumem essa cronologia,desde a manhã, com a dinâmica do despertar,depois vindo o trabalho, a hora do almoço, e assimsucessivamente, até o término, à noite, com a vidanoturna frenética. Já em São Paulo, a sinfonia dametrópole, disso se imita o arcabouçoesquemático, só que esse arcabouço é recheadocom uma série de bolsões, em que se introduzem10 minutos só para falar do Carandiru, recém-inaugurado, da Faculdade de Medicina, doInstituto Butantã. Nesses bolsões foram enxertadosfilmes institucionais extremamente convencionaiscomo forma, conservadores também comoconteúdo. Emolduravam-se um pouco essaspassagens institucionais com alguns trechosrápidos, mais trabalhados e ritmados. O filmeacaba sendo muito interessante, mas ele deturpacompletamente o modelo estético do qual seoriginou, ele diz praticamente o oposto da sinfoniaberlinense, pois o filme alemão está entranhadode uma visão spengleriana do movimento dametrópole, vista como algo trágico, quer dizer, algoque tem sua beleza, que tem uma dinâmica

interessante, atraente, mas acarreta um eclipse dadimensão humana, do indivíduo e da civilização.Existe um vetor trágico nessa dinâmica berlinense,de acordo com a filosofia transpirada poresse filme, vetor que aqui, na sinfonia paulistana,revela-se simples aspiração de progresso.A metrópole é uma conquista do progresso. A óticado progresso, da cidade ordenada para oprogresso, da cidade que funciona, trabalha emovimenta-se, assistida por instituiçõescapacitadas, é assumida completamente nessaobra. Mostra-se aí só o que há de mais modernona cidade, e esses cineastas, Kemeny e Lustig,montam isso com grande habilidade,considerando também que são bons fotógrafosesses húngaros recentemente chegados. E elestêm um olhar também...JTN: Aliás, a Hungria também dá fôlego aHollywood. Basta lembrar o produtor William Fox(fundador da 20th Century Fox), os diretoresAlexander Korda e Michael Curtiz e os atores BélaLugosi, Peter Lorre, Leslie Howard e Tony Curtis.Chegou-se ao ponto de existir, em Hollywood, umditado popular mais ou menos nestes termos:“Não basta ser húngaro, é preciso ter talento”.Enfim, a enorme importância da Hungria para ocinema é completamente desproporcional aotamanho diminuto do país.RMJ: Sim, esses húngaros tiveram suaimportância, assim como, é claro, os italianos...Aqui, de fato, houve esse predomínio de umcinema feito por imigrantes, tanto entre os atores,cinegrafistas, roteiristas, eram quase todos elesestrangeiros... O Medina era de famíliaespanhola... Podemos imaginar o que seriam essetemas nacionais, nos anos 10, filmados por genteque tinha acabado de chegar, os atorescontratados, em geral, no teatro amador, os quaistinham suas peças representadas nos sindicatos,nas associações mutualistas, muito maisfreqüentadas por operários estrangeiros do quepor brasileiros. Então vocês imaginem o que é umator há poucos anos no Brasil representandopersonagens de José de Alencar ou determinadosacontecimentos históricos, quer dizer, trazendo desuas origens variadas toda a gestualidade, toda acomposição do enredo, etc. Ele segue os modelosde sua cultura, que quase sempre é européia. Oúnico remanescente desse período nacionalista éo ultratemporão – pois é de 1934 – O caçador dediamantes, de Vitório Capellaro (em que Kemeny eLustig também foram cinegrafistas), que, aliás, éum dos últimos filmes do Capellaro. Este cineastafoi um dos mais ativos nos anos 10, mas esse foi oúnico filme dele que sobrou. Pois bem,

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considerem que ele teve ao menos uns 20 anospara aclimatar a cultura brasileira em seutrabalho, mas ainda assim ele filma ali osbandeirantes como se filmasse uma fita do gênerocapa e espada das duas primeiras décadas docinema europeu. Nesse filme os bandeirantes sãofidalgos estandardizados que se digladiam. JáJosé Medina é alguém que aprendeu muito.Embora isso não seja um fenômeno tão específico,é preciso considerar o mito do brasileiro que gostade imitar tudo o que vem de fora, e o cinema nãopodia ficar fora disso... Mário de Andrade escreveuum artigo em 1922 sobre um filme, hoje perdido,do Medina em que se mostra entusiasmado, mas,ao mesmo tempo, reage a um aspecto da obra.Reconhece que há nela uma capacidadeartesanal de lidar com a narrativa, que ésurpreendente, mas vai observar que acender ofósforo na sola do sapato “não é brasileiro”.“Apresentar-se em mangas de camisa” para afamília da noiva no primeiro contato também é umhábito esportivo comum nos EUA, mas aquijamais, em qualquer classe, não aconteceria.JTN: Ele encarou o filme sob o ponto de vista doverismo.RMJ: Ele fez uma reprimenda segundo a qualprecisaríamos imitar a técnica dos americanos, enão seus hábitos. Observando o Fragmentos davida, a gente vê que, de fato, isso o Medinaaprendeu. Ele põe em cena dois tipos demarginais, talvez sem grande desenvoltura, mastenta dar um toque mais verossímil. Um dessespersonagens quer ser preso e não consegue, já oamigo dele não quer saber de prisão. É gozadoque José Medina dividiu o personagem em dois,enquanto no original, no livro de O. Henry, é sóum. Mas, no filme brasileiro, um é o vagabundo eo outro, o malandro, que não quer ser preso, é uminfrator contumaz, o qual realmente vive deexpedientes, de pequenas falcatruas. Mas o outronão, ele é um vagabundo, porém tem uma posturamais reta. Na verdade, ele tem um plano ao quererser preso, mas isso não acontece. E o outro caçoao tempo todo dele. É um filme que funcionacenicamente, é engraçado, tem uma narrativabem resolvida, coisa rara no Brasil. Tem,principalmente, uma composição do espaçourbano extremamente hábil, feita com uma boaintuição da composição plástica da imagem,também raríssima no cinema brasileiro. Elecompõe justamente para buscar um equilíbrio, afim de contracenar espacialmente com essastentativas de contravenção da ordem pública.Medina constrói um cenário completamenteordenado, e, mais do que isso, ele é sofisticado o

suficiente para compor uma paisagem que sedisciplina crescentemente, exatamente nosmomentos em que ocorre a contravenção. Criaassim uma paisagem que, quanto maisdisciplinada, mais é marcada por ritmos verticais,justamente no momento em que os personagensse aproximam de uma contravenção da ordempública. Esse é um modo de narrarcinematográfico muito sofisticado, contudo,consoante com essa São Paulo que não só aspira aombrear-se com as grandes capitais ocidentais,como já está se assemelhando a elas no modopelo qual aparece aqui e no São Paulo, a sinfoniada metrópole. Não falo só no Sinfonia, mas emtodos os filmes da época, quando pegam a cidade,pegam São Paulo dentro das indústrias, mostramas chaminés, os bairros bem-equipados do centro,recém-construídos. É uma verdadeira maniainstalada naquele momento, não sei seinaugurada pela tendência de fazer filme de“cavação”, a soldo dos governantes. Então,filmavam-se as inaugurações, as obras. Filmar orecém-inaugurado virou mania, que se manifestatambém até os dias de hoje. Pergunto-me sobre omotivo disso, e talvez a resposta esteja em GilbertoFreyre, que, em suas fórmulas lapidares, diz queSão Paulo é uma cidade voltada para o futuro. Poraí se pode explicar a pouca atratividade dosespaços tradicionais, ou, em outros termos, essatradição de não freqüentar o tradicional é umatendência que persiste ao longo do século narepresentação cinematográfica de São Paulo. Umexemplo mais próximo disso é o filme Vera,lançado em 1986, de Sérgio Toledo, no qual oCentro Cultural São Paulo, recém-construído, écenário.JTN: Como o prédio da FAU, não é? Ele apareceno Compasso de espera, do Antunes Filho. Foilançado em 1973, mas filmado em sua maiorparte em 1969, ano de inauguração do prédionovo da FAU na Cidade Universitária.RMJ: É muito exemplo: o Shopping Iguatemi,aberto em 1966, está na seqüência inicial do Amulher de todos, segundo filme de RogérioSganzerla, exibido em 1969... O Parque DomPedro ainda novo no Fragmentos da vida. Achoque o Aeroporto de Congonhas deve ter aparecidologo depois que foi inaugurado em mais de umfilme da Vera Cruz. Sem dúvida, é uma regra.JTN: Um filme mais recente a ilustrar sua tese é Opríncipe, de Ugo Giorgetti, no qual aparece oCredicard Hall, em uma cena com o maestro JúlioMedaglia fazendo um tipo cínico, apologista dos“eventos culturais”, que se transformaram emmoda. Alguém poderia questionar dizendo que...

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bem, São Paulo não tem mesmo muitos espaçostradicionais, porque eles simplesmente foramdestruídos. Isso é próprio da história da cidade. Oprofessor Benedito Lima Toledo escreveu um livro(São Paulo: Três cidades em um século, LivrariaDuas Cidades, 1981) tematizando exatamenteessa autofagia...RMJ: É, a cidade dobra de tamanho, grosso modo,a cada 15 anos durante todo o século. Então, umapesquisa interessante seria comparar uma coleçãode postais, daqueles mais vendidos em cadadécada, para saber quantos sobrevivem deuma década para outra. Nesse sentido, acho queSão Paulo é uma cidade atípica. Talvez qualqueroutra cidade tenha uma série de cartões-postais,os quais, embora apresentem mudançassubstanciais, conservam suas landmarks. Aqui emSão Paulo temos o Anhangabaú, o TeatroMunicipal, o Obelisco do Ibirapuera, porématravessando o século, serão muito poucos. Nãohá freqüentação de espaços tradicionais, nãoporque eles não sejam parte de uma experiênciade setores da sociedade, mas porque isso, naverdade, curiosamente não interessa aoscineastas. E aí entra um tema que seria, naverdade, um repertório de idéias: o que anima ocineasta ao pensar na possibilidade de uma obra?Poderia ser o desejo, naquela época, desentir mais a pulsação da vida paulistana, criarpersonagens que sejam paulistanos, interagindocom uma paisagem novinha em folha. Por issoinsisto, mais uma vez, no modo pelo qual osmodernistas representavam a cidade. Imaginandoos contos de Mário de Andrade, os poemasdele, e também do Oswald de Andrade, emboramenos, há ali uma freqüentação de locais comuma certa tradição de anos na vida cultural dacidade, com aquelas características de então.Alma e as personagens d’Os condenados circulampor ruas que seriam tradicionalmente verossímeispara aquela freqüentação. Enfim, os Andrades,mais Alcântara Machado, Guilherme de Almeida,e mesmo, em uma geração um pouco posterior,Alfredo Mesquita, Luís Martins, todos eles tinhamum interesse grande por aquilo que eracaracteristicamente paulistano, de modo maissedimentado. Veja que diferença: na literatura, aambientação se concentra em um espaçotradicional, consolidado na vida cultural de cadapersonagem. No cinema parece que aconteceu ocontrário... Acho que seria interessante a gentetentar pensar essas questões, tendo em vista umpanorama brasileiro das várias regiões e dos váriostipos de espaço que acontecem nas outrascidades e as quais também foram locais de

filmagens para o cinema. Valeria a pena tentarcomparar, fazer esse paralelismo, para ver asdiferenças nos anos 30. Pois o que ocorre em todoo período silencioso, que vai até o início dos anos30 no Brasil, é uma proliferação de ciclosregionais, em cidades às vezes pequenas ou demédio porte, que tiveram surtos de produção defilmes; em alguns casos, duraram alguns anos, àsvezes envolvendo vários filmes ficcionais. É o quese deu em Recife, Campinas, Cataguases, Pelotas,Porto Alegre, Curitiba. Em termos quantitativos, aolongo dos anos 10 e 20 esses lugares perdem parao Rio de Janeiro ou São Paulo, os quais têm umaprodução muito maior. São Paulo chega a liderar,nos anos 20, o número de produções, ficções edocumentários, mas infelizmente o pouco que noschega até os dias de hoje, para podermos dizeralgo dos espaços urbanos, é pouco expressivo,mesmo porque, além de tudo, predominam emcertos momentos as temáticas rurais ou histórico-nacionais, de pouca presença urbana. Porexemplo, Humberto Mauro começou filmando emCataguases, seu cinema é eminentemente rural.Em filmes como Limite, de Mário Peixoto, o poucode urbano existente não impõe uma ambiênciacenográfica. A presença do espaço urbano nocinema brasileiro ao longo de toda a primeirametade do século, pode se dizer, não é muitoexpressiva... Mas, nesse contexto, São Paulocontrasta muito. Pelo menos um desses filmes queestávamos comentando, do final dos anos 20, éabsolutamente uma contraposição ao que se faziaem termos de espaço brasileiro. De resto, issoperdura porque, tanto no cinema de maiorsucesso comercial quanto nos de sucesso decrítica, até os anos 60, o espaço urbano não seimpôs muito. Pensemos nos filmes de Mazzaropi,com seu personagem caipira. Quando este chegana cidade, é um pouco para trabalhar esseconflito, esse contraste de uma cultura urbanaque entra em choque com o universo rural,tradicional. Existe o ciclo do cangaço, e depoistodo o diagnóstico do país e da sociedadebrasileira que o Cinema Novo faz ao focalizar osertão e o universo do latifúndio. Até os anos 80 oBrasil é muito mais facilmente figurado napaisagem rural, e sobretudo na primeira metadedo século. É na cidade pequena, mais do que nosgrandes centros, que se pensa o Brasil comocenário. Embora os grandes centros apareçamtambém, porém isso acontece de um modo nãotão desenvolvido como se supõe. A chanchada,por exemplo, um gênero que se desenrola porexcelência na cidade, é um gênero urbano, masprivilegia os ambientes internos, o espaço privado,

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doméstico, e o espaço também fechado dosclubes, dos grandes escritórios. Predomina ali umcinema de estúdio. Ou seja, também nachanchada a vida urbana, pelo menos em suadimensão de espaço público, é pouco trabalhada.Isso nos permite retomar aquela questãotradicional da visada mundana: o primado dohomem sobre o meio, a figura humana que ofuscao espaço circunstante. E aí voltamos ao pecadocapital da representação do espaço no cinema,que é a ausência de uma boa memóriacinematográfica preservada. Porque, mesmo nachanchada, hoje temos mais acesso aos filmes daAtlântida, predominantemente rodados emestúdio, enquanto dos da Cinédia, os quais iammais para as ruas, temos menos sobreviventes.Parece que a Cinédia alternava mais as filmagensde estúdio com as filmagens em locações. Porexemplo, Berlim na batucada, um filme rodadoem 1944, tinha Procópio Ferreira no papel de ummalandro carioca. E ele vai à favela, ele conduzum gringo que chegou ao Brasil para conhecernossa música, ele o leva para uma roda de sambano morro e tal... Mas desconfio que, no cômputogeral, os filmes cariocas possam ter trazido umuniverso urbano muito mais importante do queaquele representado na produção feita em SãoPaulo. Aqui temos de constatar a ausência defilmes paulistas nos anos 30 e 40, especialmenteos de ficção. Com isso, somos obrigados a falarpraticamente em uma espécie de renascimento docinema paulista, no fim dos anos 40, com acriação dos grandes estúdios, em grande estilo,como foi o caso da Vera Cruz, da MultiFilmes, daMaristela. Contudo, eles não dão muito certo, nosentido que tiveram curta duração, mas de algummodo eles foram muito representativos do espíritopaulista de fazer cinema, com a pretensão depensar o cinema como uma empreitada industrial.JTN: Acho importante chamar a atenção para ocaso do Alberto Cavalcanti, que, aliás, estudouarquitetura em Genebra, e teve importantecarreira, primeiro na França, como cenógrafo,produtor e cineasta, na vanguarda (MarcelL’Herbier, Jean Renoir, Louis Delluc), e depois naInglaterra, onde se tornou um dos maisimportantes documentaristas, além de ter feitotambém ficção. Tudo isso entre 1922 e o final dosanos 40. Pois bem, em 1949 ele vem ao Brasil e éconvidado para dirigir a Vera Cruz. E em 1952 fazo filme Simão, o caolho, já pela Maristela, a qualtambém teve boa incorporação de elementosurbanos.RMJ: Mas gostaria que a Vera Cruz tivesse usadomenos o mito do Cavalcanti e mais suas diretrizes.

Ela pretendeu ser mais industrial, maisprogramada, e, no entanto, não conseguiuproduzir as características necessárias para seimplementar, ou seja, para conquistar um público.Para isso teria de desenvolver gêneros mais emcontato com essa demanda de público, coisa queos cariocas, com mais improviso e menos projeto,menos ambição industrial, foram desenvolvendo.Eles criaram um filão no mercado, criaram umgênero em função dessa dinâmica. Mas a VeraCruz tenta histórias locais e brasileiras a partir deuma experiência do imigrante recém-chegado –esta é uma característica do cinema paulista, umcinema até ali feito por imigrantes. E isso nãoocorria no cinema carioca, é mais característico daprodução no Sul-Sudeste até o advento do cinemafalado. Nesse ponto a Vera Cruz reincide naprópria essência da composição do olharimportado, agora como artifício, estratégia,planejamento industrial. Em vez de buscarincorporação dos velhos quadros de migranteslocais, já climatizados, ou a “mão-de-obracarioca”, valorizou-se a importação dos técnicos,fotógrafos, boa parte dos diretores empregados,como no caso de Tom Payne, Adolfo Celi, UgoLombardi, importados da Europa. Mesmo algunsatores imigrantes atuaram nos filmes do estúdio...Fez parte do desempenho da Vera Cruz essedescompasso entre a cultura estrangeira a qualnão teve tempo de aclimatar-se ao Brasil, e apossibilidade de criar um modo de representaçãolocal. Por mais que tivesse sido, de fato, umcampo de provas promissor, o estúdio não tevefôlego para desenvolver suas propostas e superar oengessamento estético do academicismoempostado daquele seu projeto, repleto deincrementos maltranspostos ou importados comum tanto de seriedade afetada. Não deixa de seruma faceta típica do estilo paulista de ser. Emquatros anos a Vera Cruz pediu falência, e com osoutros estúdios paulistanos aconteceu o mesmo,porque eles tinham projetos industriais deprodução, mas não tinham um verdadeirodesempenho industrial em geral, e em particularna hora de distribuir os filmes... Na hora de exibir,eles não fecharam o ciclo todo, eles ficaram nasmãos de interesses que não eram os mesmos,permanecendo dependentes de distribuidoresestrangeiros. Foi o que estrangulou o retorno, e,com o tempo, as dívidas inviabilizaram acontinuidade dessa produção.JTN: Fizeram gastos muito exagerados, os gastoseram superdimensionados, não é?RMJ: É, não houve, também, uma equaçãopropriamente industrial da política de gastos, em

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função dos retornos e coisas do gênero. O preçoque se pagou foi a derrocada desse cinema. Noentanto, a tecnologia ficou aí, o espírito ficou aí, econtinua presente até hoje, praticamente. É ummodus faciendi residual que até antecede a VeraCruz, mas foi, principalmente, ela quemconsolidou. Basta ver a obra de Walter HugoKhouri, que vem dos anos 50 e atravessa quatrodécadas; basta ver o que fez Anselmo Duarte, naseqüência sendo premiado, internacionalmente,com O pagador de promessas (1962); basta ver osucesso dos filmes da Vera Cruz, como Ocangaceiro (1952), de Lima Barreto, premiado emCannes. Quer dizer, chegou-se a bons resultados,sim, apesar de todos os diagnósticos negativos quese façam, e de uma estratégia como estoupintando aqui, completamente inadequada.Inadequada, mas que se incorpora em nossacultura cinematográfica dialeticamente. Vem, aseguir, um cinema que se pretendia e, realmente,era mais politizado, mais ligado a tendênciasmodernas. Esse cinema foi modernizador epreparou o terreno para o cinema novo. Em SãoPaulo surgem a produção renovadora de RobertoSantos, Nelson Pereira dos Santos, TrigueirinhoNeto. Provavelmente, já com esboços presentes naVera Cruz, com a presença de Alberto Cavalcanti,havia um tatear de caminhos que o cinema novosoube trilhar muito bem, com uma proposta quegalvanizou as atenções nacionais. O cinema novose propôs a resolver o dilema que durante 50 anosnão se tentou solucionar de verdade no cinemabrasileiro e cuja chave estava em filmar-sedispensando o projeto industrial, fazendo-se umcinema mais simples tecnologicamente, maisafinado com os recursos humanos e tecnológicosdisponíveis. O grande mote da Estética da Fome,de Glauber Rocha, a qual ele vai enunciar em1965, tem o pressuposto dessa lição histórica dosestúdios paulistas, a configurar-se de modocontundente no caso da Vera Cruz. Desistiu-se deimitar o método do Primeiro Mundo, deHollywood, e tentou-se trabalhar a partir dascondições mais reais da cultura técnica e artísticadisponível. A Estética da Fome era isso, eratrabalhar com essa pobreza de recursos, trazendoresultados esteticamente ricos, poeticamenterevolucionários.JTN: Se bem que precisamos tomar cuidado paranão generalizar, a partir do Glauber, realmente umcara brilhante, dentro dessa proposta. Quer dizer,ele tinha uma proposta e realiza obras, algumasdelas geniais, assim como realizaram uns poucoscompanheiros de movimento, e isso é importante emerece o estudo e a apreciação. Mas a proposta,

em si, era limitadora e teve conseqüênciasnegativas. Além de tudo, ela se rebate em outrasáreas, na música principalmente, creio que noteatro também. Politicamente essa forma deencarar a produção artística é altamentequestionável, porque ela não prega somente umaoposição ao modelo industrial, é uma oposiçãotambém ao popular, chamado de popularesco,considerado alienado, à luz dos pressupostosesquerdistas que, mais do que a nortearam,estavam nas mentes dos que a leram einterpretaram, no contexto de radicalização sociale política produzido a partir do governo JoãoGoulart e aprofundado com o Golpe de 1964.Entendia-se, então, que se devia combater achanchada, o teatro em palco italiano, a músicador-de-cotovelo, a música tradicional, o samba-canção, e até mesmo músicas da bossa nova,como as cantadas por João Gilberto, que falassemde barquinho, banquinho, violão, amor, sorriso eflor, por exemplo. Tudo isso deveria ser rejeitado,em nome da música de protesto, assim comomuito no cinema novo, os teatros de arena, asfusões de palco e platéia. E isso não foi feitoapenas como reação à ditadura militar que haviase instalado. Havia um componente antiburguêsmuito forte em toda essa produção, mas queconfundia, no mesmo saco do que deveria sercombatido, tudo o que fosse tradicional, o que nãofosse de teor ideológico, o que fosse comercial. Emgrande parte com esse intuito, todo objetivopolítico justificava o que quer que se fizesse,mesmo contendo vícios de linguagem, oujustamente pelo fato de buscar uma linguagemdireta, com recursos mais simples, não tãograndiosos, não-industriais. Aparentemente, emmuitos casos, a preocupação era com asimplicidade, mas, na verdade, o motor era ummotor político, e era, de certa forma, reacionário.Tanto que vai exigir, depois, o resgate de muitasdaquelas experiências abandonadas, o que gerouem grande parte o caráter da volta do tropicalismo,que vai tentar retomar uma produção que se fazia,seja industrial, tradicional ou artesanalmente.Redescobriram-se então, graças a Caetano Veloso,Gilberto Gil, Torquato Neto, Tomzé, a músicabrega, a sertaneja, a Jovem Guarda, amúsica hispano-americana, e também Cole Porter,o tango, o folclore, Vicente Celestino... Na músicafoi feito o resgate. Já no cinema, no qual oestrago feito é constatável, não, necessariamente,chegou-se a uma solução.RMJ: Em parte foi o que o cinema marginal fez deinteressante e de novo, contrapondo-se ao cinemanovo.

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JTN: Mas se pode pensar em uma retomada doque é industrial, do tradicional. Aí voltamos paraaquilo que você falou, dos desdobramentos daVera Cruz, que não é somente um cinemapomposo, superdimensionado, inadequado, masque gerou Anselmo Duarte, Mazzaropi, os gêneroschamados de “popularescos”. O que vale a penareter de tudo isso é a superação das oposiçõesexcludentes entre vanguarda e tradição. É ter bemconsciente como pode ser ruim uma visão a qualpossa absolutizar uma defesa da vanguardaartística, e ainda mais se ela estiver associada auma pretensa vanguarda política.RMJ: Mas acredito que essa discussão levaria aconstatar-se, diante de casos concretos, ou seja,no estudo direto dos filmes, que, na verdade,fizeram-se muito poucos neste figurino sectário. Oque há de produção dos Centros Populares deCultura (CPCs criados, antes de 1964, pela UNE)no cinema novo talvez não seja tão importante. OCPC, de fato, só vai acontecer no campoaudiovisual quando ele aceita as regras daprodução industrial. É importante chamar aatenção para o fato que, basicamente, são pessoasoriundas dos CPCs que constroem a dramaturgiatelevisiva brasileira. Visto a distância é um tantoridículo, não é? Mas o que foram, para a TV Globo,Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Dias Gomes?JTN: É engraçado, paradoxal.RMJ: É paradoxal, mas é um momento concretode quem fez parte do CPC e que passou a fazernovela depois. Existe essa virada, nos anos 60 e70, quando o Vianinha está na Globo, o DiasGomes contribuiu para os altos índices deaudiência da Globo, quer dizer, o que se fez demelhor na dramaturgia televisiva brasileira provémdo CPC. Mas acho que o cinema novo fica umpouco à margem dessa história em torno do CPC,dessa coisa pobre, no sentido mais reacionário,conservador, apesar de ser preciso reconhecerque esses autores citados têm seus méritos.Mesmo com a exceção glauberiana, creio que ocinema novo caminhou um pouco mais para olado do Glauber do que para o lado do CPC, pelomenos os cinema-novistas do primeiro time, se éque dá para falar assim.JTN: Paulo César Saraceni, sim; o Arnaldo Jabor...RMJ: É, mas normalmente esses cineastas farãoum cinema que não vai se aclimatar muito noambiente urbano. E quando entra no ambiente dacidade, é muito direcionado para uma espécie detemática de classe média alienada ou de vida fácil;Opinião pública (1967), de Arnaldo Jabor, entraaí, coisas que são uma espécie de lado caricato dacidade, mais abstrato, não a vida urbana enquanto

pulsação central da sociedade. Com essa classemédia desenvolveu-se uma experiência dasociedade brasileira que estava se tornando cadavez mais importante nessa época, na qual apopulação urbana se iguala e logo ultrapassaa população rural no Brasil. Foi a época docinema novo, mas o cinema novo não conseguiuou não teve tempo de penetrar muito nessamatéria para trabalhá-la dramaturgicamente. Naverdade, ele diagnosticou a vida nacional a partirde coordenadas da tradição social, ou seja,enfocou, antes de mais nada, o coronelismo, oarcaico contra o moderno. E aí se ia para o campo,praticamente, e, quando se vinha para a cidade,era para explorar justamente as contradiçõessociais já polarizadas pelo quadro anterior. Assim,a matéria da experiência urbana propriamentedita, a vivência do espaço urbano foi proteladapara o final dos anos 60.JTN: Acredito que isso permitiria pensar umpouco aquela tentativa de síntese, quer dizer, datradição cultural, do cinema industrial, do cinemaeuropeizado, do kitsch e, depois, do cinema novo,independentemente do resultado. Mas aconteceu,ao final desse período, um cinema que, de algumamaneira, resgata um pouco tudo isso. Estoulembrando-me vagamente do personagem vividopelo comediante Pagano Sobrinho em O bandidoda luz vermelha, o qual resgata coisas comocomunicação de massa, chanchada. Talvez dessepara pensar, aí, em uma síntese com o cinemaanterior.RMJ: Sim, aquela cultura de massa, tradicional,foi recalcada justamente nos anos 60. Foirealizada uma campanha contra o popularesco,contra o que a indústria cultural já vinhafabricando desde quando o rádio imperava, nosanos 30. E é curioso ter havido isso porque, com achanchada, manifestou-se também umaresistência contra a indústria cultural, de maneirageral, e com a fabricação de uma modernidadecosmopolita que seria, na verdade, americanizada,alienante. Forjava-se, desde o início do século 20,uma maneira brasileira de fazer cultura de massa,que passou a não mais interessar, no seio daquelaefervescência, algo purista ou idealista daesquerda engajada. Essa produção foi, então,recalcada ao longo dos anos 60 como meracelebração ingênua do status quo – e não era sóisso, depois se viu. Quando ela volta, é com umagrande explosão, da qual é manifestação central otropicalismo, mas que teve, no cinema marginal,uma expressão à mesma altura do que ocorreu namúsica. Tivemos, em 1968, O bandido da luzvermelha, de Rogério Sganzerla, o cinema do Júlio

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Bressane, especialmente O anjo nasceu e Matou afamília e foi ao cinema, ambos de 1969.VP: E como fica o cinema paulista em relação atudo isso?RMJ: Nota-se que persistiu ao longo dessadécada, como das anteriores, essa linha evolutivado cinema paulista, sempre urbana, por mais quese possa considerar essa produção meiodesajeitada, meio “politicamente suspeita”, ouseja, alienada no modo de não sintonizar tanto nosmovimentos estéticos e sociais, ondas em buscada chamada consciência da vida nacional. Há,entre os que faziam cinema em São Paulo, umasérie de desprezos dessas sucessivas vagasestéticas cinematográficas de vigência nacional.Parece que há um desenvolvimento autônomo poraqui, e mantendo características próprias. WalterHugo Khoury talvez seja o exemplo mais notável. Ea grande exceção nesse contexto todo seria o filmeSão Paulo S/A, de Luís Sérgio Person, lançado em1964. Essa é uma obra extremamente madura, doponto de vista de trabalhar-se essa matéria daexperiência urbana. Mesmo quem insere o SãoPaulo S/A no seio do cinema novo reconhecetratar-se de algo muito diferente do que se fazia.Se bem que nele há ainda aquele mote da cidadegrande como produtora de uma vida alienada.Mas, enfim, dentro dessa plataforma, o filmeconstitui uma obra-prima, a experiência foitrabalhada aí de um modo bastante penetrante.Esse talvez seja, entre os filmes paulistanos, a obraa merecer destaque entre as maiores no panoramado cinema urbano brasileiro.JTN: Mas estava pensando que, em parte, ocinema se beneficiou do caldo de cultura geradopelo teatro, desde o TBC... Claro que o mais óbvio,em uma produção, é ver os atores. Então, no SãoPaulo S/A estão o Walmor Chagas, a Eva Wilma, oZelone, não lembro de mais alguém. Enfim, apresença de um teatro rico, com várias linhas deatuação, como as representadas pelo Arena, TeatroBrasileiro de Comédia, Oficina, facilitou a vida e osucesso de certos filmes.RMJ: Bom, tudo isso leva a uma conclusão umpouco pessimista: a experiência da vida urbananão ganha um contorno importante nadramaturgia cinematográfica brasileira, até, pelomenos, os anos 60. Afinal, há muito poucosexemplos, e isolados, de filmes de ficção, algunsdocumentários um pouco mais interessantes,como material para pensarmos o que é aexperiência do espaço urbano no Brasil. Essesfilmes são pequenas ilhas, assim, em um oceanode cosmopolitismo de estúdio, em meio a muitasobras que acabam não trazendo um material

muito expressivo e significativo. Gostaria de trazeraqui a lembrança daquela preocupaçãoformulada pelo historiador da arte, Giulio CarloArgan, o qual, em um colóquio sobre o urbanismoe cinema nos anos 60, afirmou que oshistoriadores da cidade, para pensar o queaconteceu no século 20 no espaço urbano, teriamde recorrer para consulta, principalmente, aocinema, porque a experiência da cidade ésondada de modo estratégico pelo cinema, devidoa contingências próprias da linguagemcinematográfica. Esta trabalha com uma matriz decaptação mais direta da realidade e com umaespécie de reconstrução do espaço, que trariamais elementos que a literatura, a música ou apintura. Nela estaria representada uma vivênciaconcreta desenvolvida nas cidades, ancorada emdramas de personagens de tal ou qual tipo. Então,a história da cidade poderia servir-se dessematerial, a ser estudado não tanto remetendo-se àexistência de um espaço físico, que, afinal, está nafotografia, no desenho e na cartografia, se vocêquiser. Mas o uso desse espaço, a vivência dessesespaços, talvez mais do que em qualquer outrosuporte, teriam, no cinema, o material maisinformativo a ser consultado com vista à suacompreensão. E Argan parte de uma posiçãocômoda para fazer essa observação, porque eleestá na Itália dos anos 60, depois de uma vaga defilmes neo-realistas que passaram a limpo aspráticas cinematográficas em geral, e àquelaaltura tinham acumulado duas décadas de umaprodução extremamente rica, do ponto de vista decaptação mais direta da vida das ruas. Aliás, nosprimeiros vinte anos do pós-guerra, isso se tornouo grande mote do cinema europeu: captar a vidadas ruas. Essa fórmula reverberou e foi apropriadaem definitivo pelos franceses da nouvelle vague.Os novos realismos posteriores, e entre os atuaiscabe destaque à produção iraniana, desdobram-se a partir do neo-realismo italiano. Então, pode-sedizer que todo cinema moderno por excelência,esse cinema que improvisa no corpo a corpo coma imagem captada diretamente – não aquelaconcebida artificialmente, em um roteiro a serfilmado idealmente em um estúdio –, ele acontecemais nas estéticas realistas que se desenvolvemcom uma dinâmica especialmente fértil do pós-guerra para cá. As teorias de Siegfried Kracauer ede André Bazin parecem antever essa perspectiva.JTN: Isso já dá para relacionar com o cinemapaulista, principalmente O grande momento(1957), de Roberto Santos.RMJ: É, mas isso demora para acontecer, porquea Vera Cruz resiste muito com sua proposta de

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cinema de estúdio – um anteparo à penetraçãodessas estéticas. Não houve, aqui, conciliaçãoentre essas estéticas realistas e as fórmulas deprodução industrial. Isso só pôde ocorrer nocinema novo. Foi preciso radicalizar um pouco,quebrar, romper com esses estilos de pensar oumesmo de fazer cinema. Teve de fazer-se umcinema mais ligado à pragmática amadorística,buscando-se financiamentos para daracabamentos mais profissionais. Era o recursopossível para levar adiante esse método “amador”de pensar e fazer cinema. O cinema novo faz umcinema de vanguarda, fadado também a terproblemas com a aceitação do público, porque elenão partia de uma dinâmica própria do cinema,podia dizer-se, mais própria do mercado restrito,ainda incipiente, dos festivais, salas especiais,cinemas de arte. Seria um campo de testes dealguns modelos dramatúrgicos, que vão sendoaprimorados à medida que dão respostas.JTN: Queria fazer um comentário talvez um poucomaldoso, para dizer que pelo menos uma partedos cinema-novistas não se preocupava emconquistar o público, na medida em que eramguiados por um modelo de sociedade autoritária.Se o projeto político deles fosse concretizado, seriaimplantada uma sociedade totalmente planejada,de comando central, nas quais as pessoas sópoderiam assistir aos filmes que os iluminados doMinistério do Cinema iriam produzir. Então, creioque eles não tinham problemas com o público. Derepente, podiam fazer-se as maiores experiênciassem medo que isso depois simplesmente nãofosse veiculado. Acho que estava no horizonte,para alguns, o modelo soviético, de produçãoindustrial e distribuída pelo estado autoritário...RMJ: É, o poeta Torquato Neto lhe daria razão,porque ele veio fazer parte desse cisma, da críticaque o cinema novo sofre na virada dos anos 60-70. Foi uma ruptura protagonizada pelos cineastasmarginais (Sganzerla, Bressane, Candeias,Tonacci), os quais tinham talvez um espírito maiscinema-novista, alguns deles, do que ospróprios cinema-novistas. Eles foram fazer aEstética da Fome de fato, com a chegada dos anos70. E no plano poético, pelo menos, eles viriam arealizar muito mais os desígnios e possibilidadesda forma cinematográfica. Por isso Torquato Neto,que também fez filmes, chegou a alcunhar ocinema novo, em sua coluna no Diário de Notícias,de “cinema zdanovo”, em referência a AlexeiZdanov (1896-1948), secretário do Comitê Centraldo Partido Comunista da antiga URSS, formuladorda política dirigista de Stalin para as artes. Não éengraçado, isso?

JTN: Não me lembrava mais dessa expressão,coisa de poeta, mas fui leitor de Torquato Neto, desuas poesias, de suas crônicas, publicadas,postumamente, em Os últimos dias de Paupéria.RMJ: Mas foi esse cinema experimental,independente, pejorativamente chamado deudigrudi, com inclinação niilista do ponto de vistapolítico, no momento mais rígido da ditaduramilitar, o período Médici, que se retoma, e commuita força, a vivência do espaço urbano, otrabalho dos cineastas marginais... Pode-se dizer,até, sobre o impacto dos cineastas marginais, queos próprios cinema-novistas, alguns deles,começaram, lentamente, a migrar para esse filão,procurando apropriar-se do material daexperiência urbana a seu modo. Os filmes deArnaldo Jabor e Walter Lima Jr., nos anos 70, sãoum exemplo disso.JTN: Creio que já existe aí até um pouco daretomada da chanchada, não é?RMJ: Até a chanchada. Lentamente, o HugoCarvana fez seus filmes. Antes dele, é feito oQuando o carnaval chegar, do Cacá Diegues, de1972. Claro que a retomada, a verdadeiraretomada da chanchada já havia se dado aindanos anos 60, com Sganzerla e Bressane. Apremonição forte disso, decisiva, já vinha emaspectos do Terra em transe (1967), de Glauber, eno Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro deAndrade.VP: Mas retomemos ao nosso tópico do cinema e acidade.RMJ: Bom, a gente veio descrevendo uma certatrajetória, na qual ficou patente que a claraapresentação da imagem urbana pelo cinema ounão se dá, ou se dá muito tardiamente no Brasil,ao contrário das outras artes e também aocontrário do que aconteceu em outros países. Foiapontado esse exemplo, o filme São Paulo S/Acomo obra-prima, mas tardia em relação a tudo oque já tinha sido feito. Nessa trajetória dá-se maiorênfase ao espaço ou produzido em estúdio, oumais interno, ou mais rural. Pois é, mas, nessesentido, São Paulo poderia ter um material maisrico que o das outras cinematografias, porqueaqui a vida urbana foi um tema recorrente, e não éà toa que o cinema marginal eclode aqui, comOzualdo Candeias, Rogério Sganzerla, CarlosReichenbach, mesmo com José Mojica Marins (oZé do Caixão), os quais já vinham fazendo filmeshavia um bom tempo. Quer dizer, há, desde antes,uma espécie de constância que só se enriquecenesse período. E o niilismo político faz com quecerta inteligência dramatúrgica, disseminadaentre os cineastas, desiniba-se para entrar nesse

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universo de experiência sensível, na incorporaçãodessa experiência de vida, dando corpo a umacriação de tramas, focalizando questões, propostasdesses filmes. E aí, nesse meio, a apreensão dourbano enquanto vivência visual, em ato, começaa ser incorporada de uma maneira um pouco maisclara, com o cinema marginal e com suasvariantes mais radicais. Os anos 80 e 90incorporaram isso, mesmo quando negavamaquela radicalidade estética. Pois é preciso dizerque havia também os filmes não-comerciais, jáque, como se sabe, os filmes marginais acabaramnão chegando ao mercado, e assim não seconstituem nessa dialética com o público; e, nessesentido, é até mais significativa nos tempos daditadura sua produção fílmica em cima daexperiência da vida urbana. Mais do que o cinemamarginal, o cinema experimental em super-8passa a existir em função de microcircuitoscaseiros e amadores, depois os festivais, nos anos70. A presença fílmica da cidade no super-8 estámuito mais próxima da vivência desse espaço, elaé menos mediada por fórmulas dramatúrgicasrígidas. Fórmulas que retardam ou mal deixamperceber, gradualmente, parcialmente apenas, oque é a possibilidade expressiva da paisagemurbana, dos espaços urbanos. Nesse sentido, émuito importante ver como as matrizes realistasdão conta desse resgate da vivência do urbano,porque, por mais que se possa dizer que não, oimaginário cinematográfico não precisariatrabalhar, necessariamente, a partir da experiênciaconcreta e do registro direto dessa experiência.Por exemplo, ele vai trabalhar, entre outraspossibilidades, a partir de maquinaçõesimaginárias do desenho animado. O cinema deestúdio é tão pertinente à cultura urbana quantoaquele captado diretamente. Então, nesse sentido,posso dizer que é paulistano mesmo o filme maiscosmopolita que se possa sonhar, feito em estúdio,porque ele representa uma dimensão primordialdo imaginário paulistano. Nós temos uma vidacultural que prefere se imaginar em outro territórioque não o concreto, como em Matrix, mas isso éparte de uma espontaneidade presente na cultura,não é uma maquinação de usurpadores da vidasocial, como no filme americano. É uma tendêncianatural dos cineastas brasileiros imaginarem-se nomundo da fantasia. Pode-se imaginar que oespírito cosmopolita do paulistano, não só doscineastas, levaria a uma espécie de produção“matrixiana” ao longo do século 20. Isso parecebrincadeira, mas, se olhamos para o cinema dosanos 70, às vezes, temos a impressão de que não étão brincadeira assim. Porque, no início dos anos

80, quando surgiu a leva (não tão grande assim)de filmes chamada pelo jornalista Matinas Suzuki,na Folha de S. Paulo, de “néon-realismo”, essaimpressão ganha até o status de um gênero. Issoreverbera na USP, em que alguns estudiosos decinema até falam de cinema “pós-moderno” emSão Paulo ou no Brasil. Mas é verdade que oartificialismo da vida urbana passa a ser o quefascina nessa filmografia, e o tema acaba porbanalizar-se de vez no cinema brasileiro. Faz partedisso o “filme cultural paulista”, importanteprodução de filmes curtos. São Paulo exporta,praticamente, essa urbanização, e o cinemabrasileiro nunca mais voltou a ser tão resistenteem relação ao ambiente urbano após essaprodução ganhar destaque. Um exemplo notávelnessa onda foi o longa de Wilson Barros, Anjos danoite, e o de Chico Botelho, Cidade oculta, ambosde 1986. Há em Cidade oculta um universo dehistória em quadrinhos. Sabemos tratar-se de SãoPaulo, mas é história em quadrinhos, é um mundoimaginário que está ali, reproduzido em cores.Fica até estranho quando se descobre que aquelacidade é São Paulo, pois a princípio se vê aliuma cidade genérica de quadrinhos. Sãoambientes existentes em uma grande cidadeamericana em geral, é o universo do filme pós-moderno. Enfim, foi toda uma produção“cosmopolita” feita a partir dos anos 80, mas queentra pelos anos 90. Só que nos anos 90 houveuma retomada, mundialmente, do realismo. Háum retorno ao real nos anos 90; não só oscineastas iranianos e do Extremo Oriente fazemum cinema bem realista, é o cinema francês, é ocinema americano independente. Trata-se de umatendência mundial, com a volta dos fatoresestéticos realistas radicalizados em certo sentido,porque é um realismo que enfatiza a linguagem,mantendo-se consciente que se está fazendo umfilme, quer dizer, não é, em geral, um realismocru. Como diz o Ismail Xavier, Kiarostami não éuma simples retomada de Rossellini, entre os doisexiste Godard, que veio junto.JTN: Mas é por isso mesmo, Rubens, acredito quevaleria a pena voltar um pouco: você falou docinema italiano feito na esteira do neo-realismo,desde os anos 40, o qual, de certa forma, alimentaa reflexão de Argan sobre a cidade contemporânea.Contudo, poderíamos abranger, nesse caso, todasas abordagens que esquadrinham o espaço,penetram, detalham a vivência do espaço,refletindo sobre ela, analisando-a, historiando-a,estabelecendo relações entre ela e todos os outroscampos do pensamento. Digamos que isso seaplica ao conjunto de teóricos, ao conjunto de

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pessoas a pensarem o espaço, até para incluir osatuais arquitetos, pesquisadores, estudantes,simples interessados em arquitetura, nourbanismo, nas cidades, no espaço, de qualquerlugar do mundo, mas, especialmente, os que estãoem São Paulo, ou se referem a São Paulo. O quereverbera sobre uma produção cinematográfica atematizar a cidade, o espaço urbano? Qual é acidade que forma e informa o cineasta? Qual é aqualidade da arquitetura sobre a qual as pessoasde cinema debruçam-se para fazer filmes urbanos?No caso do grande cinema italiano, no qual o neo-realismo tem lugar de destaque, os cineastasdispõem da grande arquitetura, das belas cidadese da esplêndida cultura histórica italiana, para nãofalar no próprio modo de viver italiano. Então,poderíamos aliviar um pouco da responsabilidadedos cineastas atuando em São Paulo, se,porventura, sua produção, no que diz respeito àcidade, tiver pontos fracos, ou carecer deprofundidade. A própria qualidade da arquiteturasendo feita por aqui, das reflexões que formoscapazes de produzir sobre a cidade, e aintensidade e riqueza de nossas vivências urbanaspodem, indiretamente, ajudar na realização defilmes com enfoques importantes do espaço e davida.VP: Tente ilustrar essa idéia.JTN: Lembro-me de um filme italiano, Meu carodiário, do cineasta e ator Nani Moretti, passadoaqui, creio, em 1993, com um personagem quepercorre as ruas da cidade de Roma de lambreta.Ele é mostrado, vamos dizer, “consumindo” oespaço urbano, ali ele simplesmente tem depassar em uma determinada ponte pelo menosduas vezes por dia. Ele sente necessidade de ir,pois isso faz parte de seu cotidiano, de sua buscade qualidade de vida. A cidade se tornou paraesse personagem um bem do qual se precisacomo do ar para respirar. Mas essa consciência daimportância espiritual do urbano, é claro, umurbano cuja forma é artística, é impregnada debeleza no mais alto sentido, tem entre suas origensa poderosa reflexão, a teoria, a literatura, opensamento italiano sobre suas cidades. Comopoderíamos imaginar isso em São Paulo? Ocinema produzir aqui um personagem que tivesseesse interesse pelo espaço da cidade é muitodifícil. Nossa arquitetura de qualidade teria de sermais generalizada, nossa teoria deveria ser maisabrangente e mais aprofundada e nossa vivênciado urbano precisaria ser mais intensa e maiscriativa. Agora, não acho que o Moretti está sendoapenas herdeiro de um cinema mais rico, ele estásendo também herdeiro de pensadores mais ricos,

de pessoas as quais valorizam a história demaneira mais intensa.RMJ: Exato. A gente luta muito por isso na ECA, noensino de cinema e audiovisual. A gente brigamuito com as novas gerações, porque a tendênciaque os alunos trazem dos Blockbusters e salas deshopping é escrever as histórias, conceber osfilmes e realizar, a partir de uma experiênciaextremamente restrita, nessa faixa de idade, decertos espaços da cidade. Quer dizer, esseaprendiz de cineasta escreve em seu quarto, compersonagens que só ele e seu grupo conhecem,cuja fonte é praticamente apenas a televisão, avideolocadora e a Internet. É bem legítimo por umlado, mas por outro lado, como horizonte, é maisque limitado. É um imaginário mobilizado, e nãohá uma experiência mais direta dos espaços e dainteração social. A gente percebe ser umatendência muito forte, e podemos até dizer que ocinema paulista tem isso como característicabásica. Muitos vão até o fim da vida filmando só apartir de um mundo imaginário. De certo modo,toda a produção filmográfica de que elesparticipam acaba repercutindo e reciclando essemundo, que seria pautado à falta de um eixo real,de vida, ora pela história do cinema, ora pelahistória da literatura, porém “ambientadas” emSão Paulo. Sem ter, enfim, como matrizinspiradora da concepção dos filmes algum tipode experiência mais direta do espaço urbano. Háessa mediação toda, a cultura audiovisual, quecomeça a auto-reproduzir-se indefinidamente.Desse modo, passa batido o fato de não seconhecerem as pessoas em sua realidadeconcreta, específica, com seus gestos próprios, osquais se exprimem de certa maneira, possuem atéuma anatomia particular e digna de registro eescapa totalmente ao mundo audiovisual. Daífomentarmos muito, em nosso currículo, odocumentário ultimamente, e ancorarmosexercícios de roteiro ficcional em fatos por elesvividos, dados do cotidiano. O que é o paulistanotípico? Eu sei, mas sei de minha experiênciaempírica, as pessoas podem conversar sobre isso,mas houve tipos notáveis no cinema, nas novelas,e isso deveria ser mais explorado. A novela, apesarde tudo, tem feito muito progresso nesse campo,tem penetrado no estudo da morfologia dos tipossociais; ou fisionomia, no sentido até de Merleau-Ponty, se quisermos. Como fruto desse trabalhotelevisivo, tem-se uma capa da Playboy, agora coma atriz Juliana Paes nua – é a “preferêncianacional”! Chama a atenção, ela é “a brasileira”,com traseiro grande, é espontânea. Olhe osatributos: espontânea e bunduda (risos). Esse é,

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também, um resultado do trabalho das câmarasda TV. É claro que não é a primeira, nem a única.Muito pelo contrário, se pensarmos no sex-appealempírico das ruas, das praias. Mas uma pesquisahistórica séria mostraria uma assombrosaausência, um eclipse duradouro do biotipoempírico na indústria cultural brasileira atérecentemente.VP: Podemos pensar uma história dos tipos físico-sociais?RMJ: Sim. Seria curioso cotejar esse descompassofisionômico de nossa paisagem humana comaquele da paisagem física, natural, urbana, a qualvínhamos comentando. Seria especular semanalogias mecânicas, o rebater recíproco,dialético, entre as questões da paisagem humanae da paisagem em geral, questões como a doexotismo, meio século de eclipse da favela na TV,o brega, etc. No começo dos anos 80 o professorPaulo Mendes da Rocha usava muito para falar damá arquitetura uma expressão que me encantava,a “arquitetura cafajeste”... Referia-se às soluçõestipo motel, ou pseudo high-tech, de imponênciatruculenta, todo um novo-riquismo recenteherdado da ditadura. O professor Carlos Lemospodia pedir para ele escrever um verbete em seudicionário! Podia ter um sentido primeiro,moralista, do sedutor arrogante e ostentatório, mastambém um segundo, mais tradicional, sobre oqual o cinema poderia dizer muito. É só lembrardo clássico, com Jece Valadão e Norma Bengell,Os cafajestes (1962), do Ruy Guerra. Se voltarmosà Juliana Paes, por exemplo, ela é morena, e vemna esteira de personagens urbanos, cuja históriafoi construída muito lenta, tardiamente. Veioganhando o espaço audiovisual aos poucos.Alguém lembraria a existência da Elisângela umpouco antes, que foi, em algumas novelas e atéfilmes, a gostosona do bairro. Havia a Sônia Braga,é claro, uma morena marcante. Mas, às vezes,parece-me que são casos isolados. Enfim, é umafisionomia e uma tipologia de personagensfemininas sensuais, que seria, empiricamente, abrasileira cobiçada, comentada e discutida nasesquinas, quer dizer, a chamada “preferêncianacional”. Sim, ela existe, mas está muito poucopresente na mídia, penetra muito pouco nomundo audiovisual. Lá predominam os modelosaceitos do ponto de vista “cosmopolita”. Então, é aVera Fischer o ídolo maior nessa área. Enfim, étoda uma galeria de atrizes brasileiras que nãocorrespondem necessariamente ao que, vamosdizer, a cultura do cotidiano mais empíricoconcebe, mas sim àquilo que determinadascamadas atuantes têm como padrão. A música

popular deu mais atenção a essatipologia popular. Mas no cinema também hátrabalhos que se contrapõem a essa tendênciadominante. E, quando isso acontece, é umchoque violento, como no cinema de OzualdoCandeias. Exatamente por esse motivo, os tiposfemininos de seus filmes, por exemplo, A margem(1967), Zezero (1974), A opção ou Rosas daestrada (1979-81), aliás, toda a filmografia deletem exatamente as características as quais não aslevam a aparecer na forma audiovisual, na formade personagens televisivos ou cinematográficos.São morenas, obscuras, um tipo selvagem, que, noentanto, faziam parte de nosso universo cotidiano.Mas não ganharam forma dramatúrgica jamais.Então, isso, pode-se dizer, é uma alegoria daquiloque você está querendo dizer a respeito dacidade. Também a cidade de nosso dia-a-dia, denossa experiência não se plasma em nossouniverso audiovisual, não ganha as instânciasdramatúrgicas do cinema e da TV, e acredito queo contrário disso tem começado a acontecer muitorecentemente.JTN: Se bem que, Rubens, tem de se tomarcuidado com essa idéia de plasmar tipos epersonagens, assim quase de maneiraespontânea. Por mais interessante que isso seja, épreciso defender, por inspiração de Platão, anecessidade de formas a priori, modelos, estilosde figurar. Tudo isso é necessário, está presente,mesmo que inconscientemente, na mente doartista, do observador. Entendo seu raciocíniocomo uma reivindicação das vivências, areivindicação do olhar atento na interpretação, oque é verdade, é necessário e faz falta, mastambém é preciso chamar a atenção para aimportância da criação de modelos. E essa criaçãopode basear-se em formas ou importadas, ou,digamos, atemporais. Essas formas fazem parte doque chamamos de cultura. É necessário terrepertório de idéias. Digamos que alguém pode tercriado, plasmado, na Itália, mas com os olhos naGrécia. Ele estava, de certa maneira, reproduzindoum mero sentimento local, mas isso não o impediude ser extremamente criativo. Mas, é verdade, oBrasil, ele é tão receptivo a modelos, que issovirou um jeito brasileiro de ser, e aí... o modeloacaba vingando e substituindo a realidade.RMJ: Por exemplo, qualquer um vai lembrar queo Pelé prefere as loiras...JTN: Nos haréns do Oriente Médio também eraassim. Só que a Globo, hoje, descobre que existe avida nacional, a experiência popular... e estátrabalhando sobre isso. Temos, então, de tomarcuidado.

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RMJ: Agora, aquilo que era corpo estranho nouniverso audiovisual e que pode ser mencionado,como a figura feminina no cinema de Candeias,pode ser trabalhado enquanto modelo, a partir deum interesse – voltado para a investigação dosocial – de fazer-se isso. O corpo estranho éestranho porque não se enxerga essa realidade,não se procura por aí, não se busca. E, quandoacontece, dá-se o impacto, um verdadeirochoque.JTN: Mas só gostaria de lembrar que o Candeiastambém filmou Bibi Vogel, recentemente falecida.Bem, a Bibi Vogel fez aquela irmã do personagemprincipal do filme Meu nome é Tonho (1969). Aliera uma prostituta. Essa atriz era brasileira, masfilha de austríacos, tinha olhos claros. O Candeiastambém valorizou os olhos claros... Enfim, isso ésó uma brincadeira.RMJ: Mas a Bibi, lá, ela está despojada, é caipiraverossímil e verista. O Candeias também temloiras, se bem que, em geral, elas se inclinampara as oxigenadas mais populares. É um mundocoerente e singular. A esperança que o PauloEmílio tinha em nossa incapacidade criativa emcopiar, parece valer para todo o cinema nacional,menos para o realismo do Candeias.VP: Zeca, você disse que queria voltar à questãopolítica...JTN: É, a gente não tocou na questão políticamais ampla, que envolve a Revolução de 30, eestá por trás dos projetos ideológicos atuaispresentes, tanto na visão da metrópole paulistanaquanto naquilo que a Globo formula para nós.Mas, sem querer alongar-me nisso, é precisotomar um certo cuidado com tudo o que vem dosmeios de comunicação de massa. Não no sentidode alimentar uma paranóia, mas de hesitar emapropriar-se dos produtos televisivos comoconquistas. Embora algo que acontece na novelapossa ser um grande ganho dramatúrgico, umganho de olhar, porque valoriza determinadospersonagens, que incorporem uma proximidade.Vou até trazer à lembrança a atriz Dira Paes, quenão sei se está fazendo parte de alguma novela. Éaquela atriz que faz a gerente canalha dorestaurante de Cronicamente inviável (2000, deSérgio Bianchi). Quer dizer, o fato de criar-se maispersonagens que possam ser feitos pela DiraPaes, por si só, é um progresso efetivo,antropológico, psicológico, artístico, afetivo, tudo.Mas é preciso distinguir isso daquela propostaque vem do getulismo, do qual a Rede Globo étambém herdeira, que vem desse populismo decriar-se um protótipo, talvez com base até em umaleitura distorcida no Gilberto Freyre, do brasileiro,

base na figura do mestiço, alimentando a idéia deum Brasil antieuropeu. Aqui devemos ter, deacordo com essa ideologia, o mestiço, quer dizer,a mistura de raças, não loiros, não negros, massim a mistura de raças. Cria-se, assim, um projetode dominação feito e implementado para criaruma união nacional, com rebatimento contrário aSão Paulo. Porque São Paulo, pelo fato de termuito imigrante, de ter, mesmo na arquitetura,esses modelos de neoclassicismo da RepúblicaVelha, frutos da economia do café, São Paulo évisto, nessa ideologia, como a antinação. Nãopodemos esquecer que se pretendeu, e continuase pretendendo construir o país em cima doprotótipo da mistura, e também isso é algoautoritário, e tem de ser denunciado. E a RedeGlobo, assim como a televisão de uma formageral, é instrumentalizada para isso. O sotaquedos habitantes do interior, mesmo representadopor alguém do Sul ou do Sudeste, terá de ser umamistura do nordestino com a fala mineira. A viúvaPorcina, vivida por Regina Duarte, vai falar igual aessa pessoa do interior que eles imaginam. E omesmo ocorre na publicidade e no restante dosmeios de comunicação de massa.RMJ: Eu não sei se entendi... Mas queria destacarsó uma coisa, achei ótimo você lembrar agora,justamente não da Juliana Paes, que remete aoque já dissemos da Globo e da Playboy, mas daDira Paes, que remete mais ao cinema. Talvez nãotenhamos figura mais paradigmática no cinemabrasileiro contemporâneo, mais sintomática dasagruras e do mal-estar de termos ou não um starsystem específico do que de melhor se fez no paísem cinema. Pela galeria de personagens que fez,na minha opinião, ela é merecedora, deveria sersaudada como diva (Diva Paes...). Se ela nãoadquiriu o brilho suficiente para tanto, não éproblema só dela, e sim do alcance do cinemanacional. Desde seu primeiro filme como um tipode princesinha índia charmosíssima no belo filmedo John Boorman rodado na Amazônia, A florestade esmeraldas (1985), passando pelapersonagem-título de Corisco e Dadá (1996), deRosemberg Cariry, até a esposa crente de Amarelomanga (2003), ela fez papéis decisivos em quasetodo filme importante da dita retomada. Paraense,tipo mais para o índio que para o mulato, semmuito resquício claro, como, sei lá, o lado alemãoda Norma Bengell, ou o holandês da CacildaLanuza.JTN: Está por ser estudado ainda esse lado maisrico de um star system e dos modelos de beleza...RMJ: Vera, licença para um comentário, nós aquiestamos, com este desvio para as atrizes, fazendo

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jus às nossas conversas de estudantecompletamente museológicas, no sentido do cultode “musas”, que, aliás, rendia-nos caçoadashoméricas dos colegas, como se ressuscitássemoso Parnaso Contemporâneo.JTN: Isso somado à mania tenaz de brincar defalar difícil...RMJ: O Zeca até hoje ainda é chamado de“poeta”. O pessoal da Libelu me chamava de“Haroldo”, por minhas leituras concretistas, e unspoemas que publiquei na revista da FAU,organizada pela Tânia Parma e pelo Manaus (oconhecido escritor Milton Hatoun), a Poetação(que, diga-se, a turma do Mural e dos grafites debanheiro chamavam sem dó de “Punhetação”).Fechemos os parênteses. Acho que interrompi,não sei se tinha entendido agora há pouco suaadvertência sobre um lado nacionalista damídia...JTN: Sim. Quero simplesmente fazer um alertasobre o fato de pretender-se conceber um tiponacional a priori, não o nacional democrático dacontribuição concreta de todos, mas sim é aqueledo terceiro-mundismo, o antieuropeu, criado embusca de certa revanche...RMJ: Tá, tá, entendi. Mas, por outro lado, esseprojeto não vingou, em sua integralidade, nouniverso audiovisual. E, mais do que isso, eleficou recalcado, porque recalcado vis-à-vis o queestaria no mundo empírico, essa é a hipótese queestou levantando... Acho importante insistir emque a importação de modelos imaginários étambém interna, entre as camadas sociais dopaís, e ela exclui e recalca o que é empírico, oque é vivido. Não dá para falar em fisionomiaempírica excluindo japonês, turco, índio, negro etoda a variedade européia mais encontrada.JTN: Por isso a Vera Fischer é a unanimidadenacional, mais do que...RMJ: Claro! Nada do que falei depõe contra alegitimidade nacional, local ou universal da VeraFischer. Só acho que o processo cultural que levaa isso não devia ser tão excludente comohistoricamente foi. Ao menos, foi no campoaudiovisual. Na música temos o Caetano Veloso,que chama a atenção para a negritude. MoraisMoreira cantando “Lá vem o Brasil descendo aladeira”...JTN: No Brasil, está presente mais na músicapopular, na literatura, e acho que também napintura, com Di Cavalcanti, Portinari.RMJ: Acho que acontece esse projeto “freyriano”,se você quiser, mas não no universo audiovisualda indústria cultural. A dinâmica que prevalece,pelo contrário, parece atender a exigências de

outra ordem. Então, é bom ter essa hipótese, quehá um universo recalcado, e isso até nos indica anecessidade de a gente pensar um processocultural ou uma psicologia social a explicar essatendência brasileira que um dia Paulo EmílioSalles Gomes caracterizou com uma espécie demedo de ver-se no espelho. Seria um dos motivospelos quais o cinema brasileiro nunca vinga, oque de certo modo continua ocorrendo, mas, poroutro lado, o próprio Paulo Emílio formula outrafrase que diz: “No Brasil nada nos é estrangeiro,porque tudo o é”. Então, aquilo que é recalcadode um modo, é aquilo que, nessa dinâmica,contrasta com o mundo que a gente habita, comnossa experiência e fazendo com que, por algummotivo, a experiência audiovisual na TV e nocinema não fique fadada a ser uma mera evasãodo mundo vivido e que, enfim, dialogue mais comessas dificuldades com as quais a gente estátrabalhando, com essas experiências que a gentetraz, esse álbum de família que a gente fotografa,essa... alguma coisa tem a ver com nossocotidiano. Talvez esse algo que se quer esquecerseja algo muito presente em nosso cotidiano.Talvez isso esteja recalcado, mas pode de algummodo ressurgir. Como explicar o interesse recenteda teledramaturgia e também de nosso cinemapor aquilo que até agora não era muitorepresentado, as prisões? A gente pode lembrarde Carandiru (Hector Babenco), do Prisioneiro dagrade de ferro (Paulo Sacramento), quer dizer,aquilo que é literalmente reprimido, quando vemà tona, é o que se torna interessante, mas, comisso, há o universo dos excluídos ou da violência,que vem conquistando cada vez mais espaço nasproduções independentes, nos curtas-metragensdos últimos dez anos. O universo da favela, porexemplo, é uma realidade muito forte. E temcrescido muito o interesse pela favela e aperiferia. E isso vem ganhando uma importânciacada vez maior, chega ao longa-metragem. Antesde chegar ao longa, é curioso observar o seguinte:antes de nosso ex-colega (turma de 1976) de FAU– e de Cineclubefau –, o Fernando Meirelles,fazer o Cidade de Deus, ele fez o primeiro produtotelevisivo, em 2001 na Globo, trazendo o universoda favela para a ficção audiovisual, o Palace II,uma espécie de exercício preparatório para oCidade de Deus, e depois foi retomado com umnovo formato, do qual saiu a série Cidade doshomens, uma repetição do Palace II. Esse foi umpequeno especial de meia hora, no qual se contaa história de uma favela, uma favela extraídatambém de um texto de Paulo Lins. Mas éimportante lembrar: foi a primeira vez que a ficção

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televisiva no Brasil enraíza uma história nouniverso da periferia ou da favela. Não éespantoso constatar isso? Até então, quandoaparece o núcleo dos pobres em uma novela, ouem um especial, não é bem uma favela, não ébem a periferia. É uma ruazinha em um bairro declasse média baixa, onde as pessoas podem estardesempregadas em um determinado momento,mas alguns capítulos depois elas vão arrumaremprego, elas vão se colocar, existe sempre umalpinista social, que vai ascender. E então, não éexatamente esse universo dos excluídos. Este nãotinha propriamente lugar no imaginário televisivo.Ele já teve um pouco mais espaço no cinema,pelo menos desde a chanchada. E algumaschanchadas penetram no universo da favela,embora, é claro, a favela fosse outra coisa naépoca, embora houvesse toda uma visão bemadocicada do que era a cultura popular da favela.Não se pega, nesses casos, realmente umambiente de violência e exclusão, e miséria, comnecessidades, carências reais, pega-se mais aexpressão musical, a expressão de umapersonalidade malandra. Espontânea. É toda umarepresentação muito superficial que se faz desdeos anos 40 no Brasil. O espaço da violência, dacarência, da miséria vai entrando devagar com ocinema novo. É importante essa leva de filmescoroados pelo Cidade de Deus os quais,finalmente, entraram nesse universo... Até existeuma série na Record, A turma do gueto, toda assegundas-feiras, passada na periferia, se bem queali se enrolou um pouco, porque no começo ocentro das atenções era uma escola, eramprofessores que trabalhavam com alunosenvolvidos com o tráfico e toda essa barra-pesada,mas se respira uma escola. Só que a escola agorase foi, ela não é mais o centro das relações, ela éapenas um dos espaços que foram degringolados,como em filmes de ação e violência, comperseguição de traficantes, com tramas policiais etal... Mas um pouco a trajetória dessa minissériediz respeito ao debate sobre Cidade de Deus, oromance de Paulo Lins: existiria uma vida muitomais motivada dos habitantes do bairro, não erasó o tráfico, não era só o engajamento nasgangues, não era só esse enredo que ganhava oprimeiro plano e, praticamente, obscurecia a vidana favela, o dia-a-dia, os dramas, osenvolvimentos amorosos e outros tipos devivências desse espaço. Então, o que aconteceuno Turma do gueto é um pouco o que se podeacusar de empobrecedor no filme do Meirelles.Ele transformou aquilo tudo em um filme de ação,capaz de lidar com o grande público. Isso não

deixa de ser um grande mérito, a experiência dafavela não dá para dizer que não apareça, ela estáali, sem dúvida, presente, mas no Cidade doshomens acho que tem mais, e em uma série deoutros filmes que também têm trabalhado comisso. Creio que existe um engatinhar nesseuniverso.JTN: Você não acha que é um mérito maiorconseguir, claro que graças a uma depuração,chegar a uma linguagem de ação, a mostrar-nosque estamos realmente no plano ficcional, e deuma forma que consiga interessar a um grandepúblico? Você não acha que isso é o mais difícil,até considerando assim, o universo do cinemabrasileiro como um todo, no qual não seconseguiu tantas vezes esse resultado, e por queisso? Quer dizer, a comparação entre isso,depurar uma linguagem, e depurar uma captaçãoda realidade, porque a captação da realidade,com a incorporação de personagens, aincorporação de novas áreas as quais não eramconsideradas, é claro que isso é um ganho, umavanço. Mas de certa maneira há uma fórmulaampla, extra-artística, que vai levar isso àsociologia, ao urbanismo, à própria política, àincorporação política de outros contingentessociais. Talvez seja mais previsível avançar nessadireção, de ter um olhar mais atento, quase dápara esperar isso, agora, ter alguém que consigadepurar uma ficção, isso, acho que é mais difícil,creio que a gente teria de, talvez, valorizar quemconseguiu esse mérito, caso do Meirelles. Nãoque seja a única fórmula possível, mas isso queele conseguiu é notável, não é pouca coisa.Mesmo que você diga: mas o que me interessa é acaptação da realidade. Ele fez isso melhor queoutros filmes. Se outros atores fizeram melhor, eele não fez pouco nesse ponto, tudo bem, mas elefez algo que outros não fizeram: dar conta daquestão do enredo, do tipo de ficção, de açãoaté... Que acho que também faz falta.RMJ: Acho superbem-vindo também esse aspectoser alcançado, a narração para o grande público,ainda que me entorpeça um tanto em minhacapacidade de refletir com uma engrenagem tãoveloz da ação. Mas o que acho mais grandioso étambém assim, quase “sub-reptício” no filme, éseu afresco de gestos e expressões inauditos emdramaturgia audiovisual. Isso compõe e dá forçaao impacto cívico que o filme teve. É umaconquista do método mobilizado pelo Meirelles,com o projeto de incorporar não-atores locaisdespojados das técnicas de atuaçãoconvencionais, mantendo uma certaespontaneidade das expressões verbais e

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corporais vigentes, correntes. Para tanto, veja oparadoxo, foi preciso “prepará-los” comantecedência em escolinha de atores, a qual oprojeto do filme criou ad hoc na comunidade. O“improviso” das expressões verbais em grandemedida veio do trabalho de Paulo Lins, mantidono projeto, mas o mais inovador como criaçãocênica, como dado da linguagemcinematográfica, parece-me ligado ao registro dasexpressões corporais, faciais, a incursão vigorosado metteur-en-scène na percepção dos gestos.Entrando nessa discussão a gente pode atédiscutir melhor a tal espetacularização, alegada aesmo pela crítica. O diretor brasileiro é, em geral,muito tapado nesse ponto, ele engessa a livregestualidade que possa brotar, só mesmo oespírito carnavalesco da chanchada carioca e odesbunde dos marginais deu trégua nesta direçãobitolada.JTN: Mas, voltando um pouco para a discussãona imprensa quando do surgimento do filme –lembro-me de uma ocasião, até conversamos, eue a Vera, sobre isso na FAU –, havia pessoas quediziam “não”, sem se deterem diante da obra. Ofilme pôs em evidência universos ideológicos quese entrechocam. Uns diziam: “É isso mesmo oBrasil de Fernando Henrique Cardoso,deteriorou-se o espaço da convivência a esseponto, é só violência, só gangues que seguerreiam”. Então, o filme para uns é o retrato doreal. Enquanto outros diziam: “Nada a ver, arealidade é muito mais rica, esse filme não temnada a ver com a realidade, porque tem muitomais coisa em jogo no real, tem mais ação, não ésó a violência”. Então faltou, para a maioria dosque debateram Cidade de Deus, responder aestas perguntas simples: o que é a obra? O que éa linguagem? O que é a imagem? O que é anarração? Isso ainda está por ser discutido,incorporado como algo interessante também, ouseja, o objeto, a obra.RMJ: Acho que sim, mas, depois da recepçãoideologizante contra e a favor, só um ensaísmomais cuidadoso começa a dar conta disso.Também acho que até mesmo esse aspecto dodesvio da trama para a engrenagem da guerra édefensável: se nós fabricamos esta violência, porque não podemos fabricar uma discursividade,uma narrativa dessa violência com igualdesenvoltura?JTN: Da mesma forma que os EUA tinham feitofilmes de gângsteres, mas antes conviverambastante com as gangues reais, tal comotematizado pela sociologia da Escola de Chicago.

Algumas publicações de Rubens Machado Jr.ligadas aos temas da entrevista

MACHADO Jr., Rubens. A pólis ironizada: sobre a dimensãopolítica do experimentalismo superoitista. In: CARDENUTOFILHO, Reinaldo (Org.). Golpe de 64: Amarga memória(catálogo). São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2004.

Cinema e Populismo. Cinusp – Cinema e populismo. FAUUSP:Cineclubefau, 1977.

Cine-Olho 4 – Editorial. Cultural do DCE-USP: Caderno de textos.São Paulo, 1978.

Consciência cineclubista. Cine-Olho, n. 3, Rio, 1977.

Filmografia sobre a cidade de São Paulo. In: MARCHETTI, Roseli(Org.). Projeto. Fotografia e cidade: Um resgate do cotidiano deSão Paulo (Textos selecionados). São Paulo: SMC-DPH, Divisãode Iconografia e Museus, Serviço Educativo, 1999.

Imagens da metrópole na França e no Brasil: Representaçõesmodernas e contemporâneas. Mostra e ColóquioRepresentações da Metrópole Brasil / França, catálogo. SãoPaulo: Cinusp, CEM-Cebrap, CTR/ECA-USP, 16/8, p. 2, 3/9/2004.

PEIXOTO, Mário. In: MIRANDA, L. F. R.; RAMOS, F. P. (Org.)Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: SENAC, 2000.

Notas para pensar o espaço de Terra em transe. In:BERNARDET, Jean-Claude; COELHO NETTO, José Teixeira(Orgs.). Terra em transe, Os herdeiros: Espaços e poderes. SãoPaulo: Com-Arte, 1982.

O cinema paulistano e os ciclos regionais Sul-Sudeste (1912-1933). In: RAMOS, Fernão (Org.). História do cinema brasileiro.São Paulo: Art, 1987, 1990; Círculo do Livro, 1988.

O espaço de Terra em transe. Folha de S. Paulo. São Paulo, 22ago. 1982.

Observação sobre O anjo nasceu. Cine-Olho. 1979, São Paulo,n. 5/6.

Os filmes que não vimos. In: AUMONT, Jacques. O olhointerminável: Cinema e pintura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

Passos e descompassos à margem. In: PUPPO, Eugênio;HADDAD, Vera (Org.). Cinema marginal e suas fronteiras: Filmesproduzidos nas décadas de 60 e 70. São Paulo: CCBB, 2001.

Poetas, artistas, anarco-superoitistas: A marginália 70 e ocinema experimental. Sinopse, São Paulo: Cinusp, n. 10, ano VI,p. 97-102, dez. 2004.

SGANZERLA, Rogério; MIRANDA, Luiz Felipe; RAMOS, Fernão P.(Orgs.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: SENAC,2000.

São Paulo e o seu cinema: Para uma história das manifestaçõescinematográficas paulistanas (1899-1954). In: PORTA, Paula.(Org.) História da cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra,2004.

São Paulo, uma imagem que não pára. Revista D’Art, n. 9/10:Arte e Cultura: a Cidade como Lugar. São Paulo: Divisão dePesquisas do Centro Cultural São Paulo, p. 59-66, nov. 2002.

Tempos de cinema no Brasil. Cinemais. Rio. n. 15, p. 43-60,Rio, jan.-fev. 1999.

Marginália 70: O experimentalismo no super-8 brasileiro. SãoPaulo: Itaú Cultural, 2001. (catálogo)

São Paulo em movimento: A representação cinematográfica dametrópole nos anos 20. São Paulo: Ed. Unicamp. (no prelo)

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CONTRIBUIÇÃO À HISTÓRIA DO CINECLUBEFAU

Talvez para falar algo sobre a história do Cineclubefau tenhamos de remeter-nos ao personagem vividopor Geraldo Del Rei no filme Bebel, garota-propaganda, de Maurice Capovilla, lançado em 1967: ele era umaluno da FAU, na época na rua Maranhão. Outro ponto de alusão à discussão de cinema, nos anos 60, em nossafaculdade deve ter sido a participação nas atividades promovidas pelo Grêmio da FFCL (atual FFLCH) no prédioda Maria Antônia, por ser próxima da Maranhão e ter mais alunos que a FAU. Mas a pré-história imediata doCineclubefau está na atividade do hoje professor Roberto Righi como encarregado das exibições de filmes entreos membros da diretoria do GFAU, eleita no final de 1971 e que recebeu os calouros de 1972, nossa turma.Foi uma semente que germinou, bem depois, na primeira vez que falamos em criar um cineclube na FAU, emuma conversa em pleno almoço no “bandejão”, no primeiro semestre de 1974. Formulada a idéia, a primeira“realização” prática decidida em nome do embrionário Cineclubefau foi participarmos, ainda apenas os dois,da Jornada Nacional de Cineclubes realizada em Campinas, no segundo semestre de 1974. Mas já havia umprimeiro núcleo de organizadores informais: Luiz de Pinedo Quinto Jr. (turma de 1973), Alfredo de MedeirosAires (1973), André Vainer (1974), Alfredo Buzo (1973), Antônio Arnot Crespo (1973), Victor Nosek (1971).A apresentação oficial do Cineclubefau perante a faculdade deu-se com um manifesto-convocação e comuma mostra de filmes programada para a recepção de calouros de 1975, em que trouxemos – para falar aumas cinco ou seis pessoas... – o grande teórico e mentor do cinema brasileiro, professor da ECA falecidodois anos depois: Paulo Emílio Salles Gomes. Um novo membro aparece nesse ano: Joaquim Marsicano Guedes.No decorrer das atividades daí em diante, exibição de filmes seguida de debates, a sessão sendo anunciadapara a comunidade da FAU por meio do megafone do GFAU. Tomamos posse do “chiqueirinho” entre osestúdios 2 e 3 como sede. Aí eram realizadas nossas reuniões deliberativas e também para discutir algunstextos teóricos, e o mais famoso de todos, o qual gerou mais reflexão, foi o “Manifesto por uma ArteRevolucionária Independente”, assinado pelo poeta surrealista André Breton e pelo pintor muralista mexicanoDiego Rivera, mas na verdade co-escrito por Leon Trotski. Esse escrito tinha uma proclamação final, aindahoje, digna de ser divulgada: “Toda sorte de liberdades para a arte!” Era o clima de mobilização política dosestudantes contra a ditadura militar, que nos impedia, além da organização política, de ver alguns dos melhoresfilmes feitos no mundo. Mas nossas atividades foram incorporando mais colegas, e também professores (umdos quais nos apoiaram foi Lúcio Gomes Machado) e funcionários, especialmente entre os assistentes ocasionaisdas sessões no Auditório. Destaque deve ser dado à incorporação ao grupo cineclubista da presençafundamental do funcionário Toninho, que a par de ser quem institucionalmente nos respaldava as exibições,era o técnico encarregado da operação do projetor. Embora, com o tempo, alguns colegas tenham tambémse tornado projecionistas eficientes, a ponto de ajudarmos, ensinando, a formar outros cineclubes em São Paulo,mas também em outras cidades. Porque fomos co-fundadores da Federação Paulista de Cineclubes, criadana cidade de Avaré ainda em 1975. Depois participamos das Jornadas Nacionais de Cineclubes de Juiz de Fora(1976), Campina Grande (1977) e Caxias do Sul (1978), quando fizemos parte de uma primeira chapa deoposição, da qual fomos organizadores, perdendo por 54 a 52 a direção do Conselho Nacional de Cineclubes.No entanto, o grande momento do cineclube no âmbito da FAU deu-se em 1976, quando a maior leva decalouros, entre todas as turmas, interessou-se por juntar-se às nossas atividades: entre eles, Ari Veloso, MiguelBuzzar, Dimas Bertolotti, Fernando Meirelles, o cineasta de Cidade de Deus, Rui Moreira Leite, Paulo Morelli,Dario Vizeu, Caíto Marcondes. É importante ressaltar no estilo de atuação do Cineclubefau, com as atividadespráticas, de projeção, mas também de realização, a ênfase nos debates (“É preciso quebrar a relação depassividade entre o espectador e os filmes”: um dos slogans que nos orientavam então), e no lançamento detextos, menos escritos por nós, e mais copiados dos livros de nossos autores favoritos. Nosso cineclubeprosseguiu com um trabalho mais intenso até 1978, que já em 1979 foi se rarefazendo até que, em 1980,encerrou-se, sem brigas ou rupturas. Mantivemos como nossa principal contribuição para a práticacineclubística – que nos diferenciava da esmagadora maioria dos grupos de cinema – a insistência em queprogramar filmes para exibição era fazer uma combinação, marca da democracia, de critérios que poderiamlevar uma película a ser escolhida: seja por ser de denúncia, seja “de arte”, seja histórico, seja experimental,seja cômico, seja devido a algum tema presente no enredo a permitir uma discussão, seja mesmo por puroentretenimento. Muitos setores do movimento político julgavam (alguns ainda julgam) que não se pode ir ao

cinema para se distrair, alegrar-se. (JTN)