ver e usar_arte e artesanato_otÁvio_paz.pdf

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    /-vER E USAR:AitT E E A RT ES AN AT O

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    Rem plantada. No cada de cima: surgida de baixo. Ocre, corck mel queimado. Cor de sol enterrado h mil anos e desenter-lado ontem. Frescas listras verdes e alaranjadas cruzam seucorpo ainda quente. Crculos, gregas: restos de um alfabetodispersado? Barr iga de mulher grvida, pescoo de pssaro. Selhe tapas e destapas a boca com a palma da mo, ela te res-pondeC0111 um murmrio profundo, borboto de gua brotando;.se lhe .golpeias a pana com os ns dos dedos, solta um risode moedinhas de prata caindo sobre as pedras. Tem muitaslnguas, fala o idioma do barro e do mineral, o do ar correndoentre as muralhas do vale, o das lavadeiras a lavar, o do cuquando se zanga, o da chuva. Vasilha de barro cozido: no\ 31 ponhas na vitrina dos objetos raros. Faria mau papel. Sua" ; ,; beleza est aliada ao liquido que contm e s~de que sacia.

    -.!. Sua beleza corporal: vejo-a, toco-a, cheiro-a, ouo-a. Se est~..:vazia, preciso ench-Ia; se est cheia, preciso esvazi-Ia.Tomo-a pela' .asa torneada, como a uma mulher pelo brao;--levanto-q-, Inclino-a sobre um jarro em que derramo leite oupulque -: lquidos lunares que abrem e fecham as portas do,mlanhecer e do anoitecer,' do despertar e do dormir. No um objeto para' contemplar, mas para dar de beber.Jarra de vidro, cesta' de vime, huipil de algodo barato,caarola de madeira : 'coisas bonitas, no a despeito de, mas

    1graas a sua utilidade, A beleza lhes vem por acrscimo, como(: o perfume e a cor das flores. Sua beleza inseparvel de sua

    ~I funo: so bonitas porque so teis .. Os objetos de artesanatopertencem a um mundo anterior separao entre o til e op ~ r 9 . : -E s s , sepr-ae. mais recente. a que se pensa: muitas')? das peas que se acumulam em nossos museus-e colees par-

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    ti cula res pertenceram a esse mundo onde a beleza no era umvalor isolado e auto-suficiente, A sociedade se dividia em dois\grandes territrios, o profano e o sagrado. Em ambos a beleza estava subordinada, num caso, utilidade e, no outro, efi-ccia mgica. Utenslio, talisrn, smbolo: a beleza era a aurado objeto, a conseqncia - quase sempre involuntria - da.relao secreta entre sua feitura e seu sentido. A feitura: comoest fei ta uma coisa.. o sentido: para que est feita. Agora todosesses obje tos, arrancados a seu contexto histrico, a sua funoespecfica e' a seu significado original, se oferecem a nossosolhos como divindades enigmticas e .nos exigem ado rao. Otrnsito da catedral, do palcio, da tenda do nmade, do bou -do ir da cortes e da caverna do feiticeir _Ilara o museu foiuma' transmuta o mgico-religiosa: os objet~~~~~ej}Essa idolatria comeou na Renascena e desde o sculo XVIII uma das religies do Ocidente (a outra ' a poltica). J SOl'Iuana In s de Ia Cruz zombava com graa, em plena idadebarroca, da superstio esttica: "A mo de uma mulher", dizela, " branca e formosa por ser de carne e osso, no de mar-I ' fim ou prata; eu a estimo no porque brilha, mas porque\ agarra." .

    A religio da arte, como a religio da poltica, nasceu das\ 1 runas do cl istianism'.--arte herdou d a antiga religioo podgr1\ ~: ~ c~~s:~::~:s ~~~s~sose~~~~~:~lf~l~;'~~~o~f~~~i~~~ ~~~~~~I ) . . ex~b,~1E-"es!oal~~_ ~~.Jlistri~: A poltica - mais exatamente:

    ~ , fi ' Revoluo - confiscou a outra funo da religio: mudar o':':-ilomem e a sociedade. A arte foi um asceti smo, um hero sm o__ espiritual; ,a, Revoluo foi a construo de uma igreja uni-versal. A nlisso do artista consistiu na transmut~o do objet;a do lder revolucionrb, .na transformao da natureza-bu-mana. Picasse e Stalin. O processo foi duplo: na esfera d pol-tica as i-dias se converteram em ideologias, e as ideologias emidolatrias, os objetos de arte, por sua vez, se tornaram dolos,e os dolos se transformaram em idias. Vemos as obras dearte com o mesmo recolhimento - embora com menos pro-veito - com que o sbio da antiguidade contemplava o cuestrelado; esses quadros e essas esculturas so, como os corposcelestes, idias puras. A religio artstica um neoplatonismo

    que no ousa confessar seu nome - quando no uma guerrasanta contra os infiis e os hereges. A histria da arte mo-derna Rode se dividir em duas .~~!1es: _,a contemplativa ea combativa. A primeira pertencem. tendncias como o c~bism.9e a arte abstrata; segunda, movimentos como o futurismo, o.dada:~~~~ - 7u"freal~mo. Misticismo; cruzad:-- .'--'-::;;:- Para os antigos, o movimento dos astros e dos planetasera a imagem da perfeio: ver a harmonia celeste era ouvi-Ia,e ouvi-Ia era compreend-Ia. Essa viso religiosa e filosficaI reaparece em nossa concepo da arte. Quadros e esculturasno so, para ns" coisas bonitas ou feias, mas entes intelec-tuais e sensveis, realidades espirituais, formas em que se ex-pressam as Idias. Antes da revoluo esttica, o valor da obrde arte tinha como referncia outro valor. Esse valor repre-sentava o nexo entre a beleza e o sentido: os objetos de arteeram coisas que eram formas sensveis que eram signos. Osentido de uma obra era plural, mas todos os seus sentidosse referiam a um significante ltimo, no qual o sentido' e oser se confundiam num n indis so lvel: a divindade. Trans-posio m~d~r1!-~-=-~~.!lS t? objeto artstico uma r~~autnoma e auto-suficiente, e seu sentido ltimo no est almda obra, masncl-mesma. l.tni"senticlo alm--=qum-=do sentido; quero dizer: j no tem mais referncia alguma.Como a divindade crist, os quadros de Iackson Pollock nosTgiUhcam: so.

    Nas obras de arte modernas o sentido se. dissipa na irra-dia'o d sel:~-6-t--de v'er's'- h:'~;f;ma numa operao inte-,\ lectual que tambm um rito mgico: ver compreender e\ compreender comungai. Ao lado da divindade e seus crentes,os telogos: os crticos de arte. Suas elu cub rae s no so me-nos abst ru ss que as dos escolsticos medievais e dos doutoresbizantin-;-s,'-;;-onquanto menos rigorosas. As questes que apai-xonaram Orgenes, Alberto Magno, Abelardo e Santo Toms deAquino reaparecem nas disputas dos nossos crticos de arte;s que travestidas e banal izadas. A semelhana no pra a:s divindades e aos telogos que as explicam preciso acres- .. centar os mrt ires. No sculo XX vimos o Estado soviticoperseguir poetas e artistas com a mesma ferocidade com que.os dominicanos extirparam a heresia albigense.46 47

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    natural que a ascenso e a santificao da obra de artehajam provocado rebelies e profanaes peridicas. Arrancaro fetiche de. seu nicho, .bor r-Io de tinta, passe-Ia pelas ruascom orelhas de burro, arrast-Ia' pelo cho, fu r-lo e mostrarque est cheio de serralha, que no nada nem ningum e queno significa nada - e depois voltar a en troniz- lo. O dadastaHuelsenbeck disse num momento de exasperao: "A arte pre-.,:'cisa de uma boa surra." Tinha razo, s que as equimoses dei-I, xadaspela surra no corpo do objeto dadasta foram como as- (~ condecoraes no peito dos generais: deram-lhe mais r espeita-'~ bilidade. Nossos, museus esto repletos de antiobras de arte e(V de obras de antiarte. Mais hbil que Roma, a religio artstica

    assimi lou todos os ci smas.No nego que a contemplao de trs sa rdinhas num pratoou de uni tringulo e, um retngulo pode enriquecer-nos espi-ritualmente: afirmo que a repetio desse at o degenera dentrode pouco tempo num rito tedioso, Por isso os futuri st as, con trao 11..eoplatonismo cubista, puderam voltar ao tema. A reaoera'soojae' ao mesmo tempo ingnua. Com maior perspiccia, r-os surrealistas insistiram em que a obra de arte devia querer , ' - I.

    dizer alguma coisa. Como reduzir a obra ao seu contedo ou sua mensagem teria sido uma bobagem, apelaram para umanoo ntroduzida por Freud: o contedo latente. O que a obraI~dearte diz no o seu contedo manifesto, e sim o que dizV sem dizer : 'aquilo que est por trs das formas, das' cores edas palavras. Foi uma maneira de. afrouxar, sem desat-Ia detodo o n teolgico entre o ser e o sent ido, para preservar,at onde foss~ possvel, a relaoanbgua entre os dois termos.

    .__ O 'mais radical foi Marcel Duchamp: a obra passa pelos- I ' } f 'sentidas: mas no' se detm neles. A obra no uma coisa:v um leque de signos que, ao se abrir e fechar, nos deixa vere nos oculta, .alternarlvamente, seu significado. A obra de arte[ 1 \ um sinal de inteligncia que o sentido e o sem-sentido trocam

    entre si. O perigo dessa atitude - perigo a que (quase) sem-I ~ + \pre Duchamp escapou '- cair do o~tro lado e fic~l' com o(ticonceito e sem a arte, com a trouvaille e sem a coisa. Valei:epetir que a arte no o conceito: a arte coisa dos senti-dos. Mais tediosa que a contemplao da natureza-morta a especulao do; pseudoconcei to. A rel igio art sti ca moderna

    __ _ _/< gira sobre si mesma sem encontrar o caminho da salvao: vaida negao do sentido pelo objeto negao do objeto pelo, sentido. I /1,/

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    A revoluo industrial foi a' outra face da revoluo ar-tstica. A produo cada vez, maior de utenslios idnticos ecada vez mais perfeitos cor r espondeu consagrao da obra dearte como objeto nico.' Como os museus, nossas casas se en-cheram de engenhosos artefatos. No comeo foi mnimo o pa-pel das preocupaes estticas na produo de objetos teis.Ou melhor, essas .preocupaes produziram resultados dife-rentes dos' imaginados pelos fabricantes. A fealdade de muitosobjetos da pr -h is t r ia do desenho industrial - uma fealdadeno sem encanto - se deve superposio: o elemento" arts-tico", geralmente tomado da arte acadmica da poca, se justa-pe ao objeto propriamente dito. O resultado nem sempre foinegativo, e muitos desses objetos - os da era vitoriana comotambm osdo modern style - pertencem mesma famlia dassereias e das esfinges. Uma famlia regi d a pelo que se poderia\,. chamar a esttica da, incongruncia. Em geral a evoluo do

    -~ ',-objeto industrial de uso dirio. seguiu a dos estilos artsticos.Foi quase sempre uma derivao .:.... s vezes car icatura, outras,cpia feliz - da tendncia artstica em voga. O desenho indus-trial se atrasou em relao arte contempornea e imitou os.estilos quando estes j t inham perdido sua, novidade inicial e. estavam a' pique de se converter em Iugares-comuns estticos.

    O desenho industr ial contemporneo tentou encontrar poroutros caminhos- os seus prprios- um compromisso entrea .utilidade .e. a. es t tica. s vezes o conseguiu--:m~'-;"esi.iltdorfoi paradoxal. O ideal esttico da arte funcional consiste emG : L / . a~mentar a ut il id.ad~ .do objet? e~ ?ro~oro direta diminui-_ ao de sua matenahdade. A simplificao das formas se traduznesta frmula: ao mximo de rendimento corresponde o m-nimo de presena. Esttica sobretudo de ordem matemtica: aelegncia de uma equao consiste na simplicidade e na neces-sidade de sua soluco. O ideal do desenho industrial a invisi-biiidade: os objet~s funcioni~--'s~ 'tal~t~ mais bonitos quantomenos visveis. Curiosa transposio dos contos de fadas e das

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    lendas rabes para um mundo governado pela ci nc ia e pelas(;' noes de utilidade e rendimento mximo: o designer sonha'':'', com objetos que, como os gnios, sejam servidores intangveis.\ , ' r Ao contrrio do artesanato, cuja presena fsica nos entra pelos,i sentidos e no qual o princpio da continuidade {constantemente"j violado em benefcio da tradio, da fantasia e mesmo do ca-::...0rprichO. A beleza do desenho industri al de ordem conce itual:- ~e' alguma coisa expressa, a justeza de uma frmula. E o signo

    de uma funo. Sua racionalidade o encerra numa alternativa:serve ou no serve. No segundo caso, h que jog-lo no lixo.O artesanato no nos conquista somente por sua utilidade. Viveem cumplicidade com os nossos sentidos, e da ser to difcildesprender-nos, dele.~. C 1 1 1C ? ' jogar um amigo na ' r y i ! .

    H um momento em que o objeto industrial se converte, I afinal numa presena com um valor esttico: quando se torna'o /i ,I . imprestvel. Ento se transforma num smbolo ou num emble-

    o ma. A .loccmotiva que Walt Whitman canta uma mquinaque parou e j no transporta em seus vages nem passageirosnem mercadorias: um monumento imvel velocidade. Osdiscpulos de Whitman - Valry Larbaud e os futuristas ita-lianos - exaltaram a beleza das locomotivas e das estradasde ferro justamente quando os outros meios de comunicao- o avio, o automvel - comeavam a desloc-Ias. As loco-motivas desses poe tas equiva lem s runas artificiais do sculo

    _.-, XVIII: so um complemento da paisagem. O culto da mquina um naturlismo rebours: utilidade que se torna beleza in-.-- 'til, rg o sem funo. Por intermdio das runas, a histria se

    reintegra' na natureza, tanto se estivermos diante davpedrasdesmoronadas de Nni ve quanto diante de um cemitrio de loco-motivas na Pensilvnia, O gosto pelas mquinas e ~pielhos emdesuso no apenas uma prova a mais da incurvel nostalgiado homem moderno pelo passado, como' revela uma fissurana' sensibilidade moderna: nossa incapacidade de associar bele-za e utilidade. Dupla condenao: a religio artstica nos probeconsiderar belo o til; o culto . utilidade nos leva a concebera beleza no como presena, mas como funo. Talvez a issose deva a extraordinria pobreza da tcnica como fornecedora50

    de mitos: a aviaao realiza um velho sonho que aparece emtodas as sociedades, mas no criou figuras comparveis a Icaroe Faetonte.r O objeto industrial tende a desaparecer como forma e aL confundir-se com sua funo. Seu ser seu s ignificado, e seusignificado ser til. Est no outro extremo da obra de arte.O artesanato uma mediao: suas formas no se regem pelaeconomia da funo, mas pelo [praziJ que sempre um gasto,,~ no tem regras. O objeto industrial no tolera o suprfluo:Io artesanato se cornpraz nos enfeites. Sua preferncia pela de--corao uma transgresso da utilidade. Os enfeites do objetoartesanal geralmente no tm qualquer funo, e por isso; obe-diente sua esttica implacvel, o desenhista industrial o su-prime. A persistncia e a proliferao do enfeite no artesanatorevelam uma zona intermediria entre a utilidade e a contem-plao esttica. No artesanato h um contnuo vaivm entreu til idade e beleza; esse vaivm tem um nome: prazer. As coisasdo prazer porque so teis e belas. A conjuno ,aditiva (e)define o artesanato como a conjuno alternativa' define artee a tcnica: utilidade ou , beleza. O objeto artesanal satisfazuma necessidade menos imperiosa que a sede e a fome: a ne-cessidade de recrear-nos com as coisas que vemos e tocamos,quaisquer-que sejam seus usos dirios. Essa necessidade no redutvel ao ideal matemtico que rege o desenho Industrial,nem tampouc ao rigor da religio artstica. o prazer que nos dado pelo, artesanato brota de urna dupla transgresso: aoculto da utilidade e religio da arte.

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    pessoal do artesanato se expressa direta e imediatamente nasensao: o corpo participao. Sentir antes de tudo sentiralguma coisa ou algum que no somos ns. Sobretudo: sentircom algum. At para se sentir a si mesmo, o corpo, busca outrocorpo. Sentimos atravs dos outros. Os laos fsicos e corpo-rais ,que nos urem com os demais no so menos fortes queos laos jur dicos, econmicos e religiosos. O artesanato um signo que expressa a sociedade no como trabalho (tcnica): nem como smbolo '(arte, religio) mas como vida fsica com-l partilhada..-~ A jarra de gua' ou de vinho no centro da mesa umponto de conflrncia, um pequeno sol que une os comensais.Mas es~a jarra que nos serve a todos para beber, minha mulherpode transform-Ia num vaso de flores, A sensibil idade pessoale a fantasia desviam o objeto. de sua funo e interrompemseu signi fi cado: j no um recipiente 'que' serve pata guar-dar um lquido, mas para mostrar um cravo. Desvio e inter-'~o que ligam: o objeto a outra regio, da ~ensibi1idae': imaginao. Essa imaginao social: o cravo na jarra tam-bm um sol metafrico compartilhado por todos, Em sua per-ptua oscilao entre beleza e utilidade, prazer e servio, oobjeto artesanal nos d lies de sociabilidade, Nas festas ecerimnias, sua irradiao ainda mais intensa e total. Nafesta, a coletividade comunga consigo mesma e essa comunhose realiza atravs dos objetos rituais que so quase sempreobras de artesanato. Se a festa participao no tempo original, _ a coletividade literalmente repar te entre seus membros, como

    \ UIl1 po sagrado, a data que se comemora -, o ..a!.~sal~~_ \ una ~spcir::_.q~.fe~ta..do_oJ:?j~t9: transforma o utenslio ems g n o -clparticipao.

    novidade. A estt ica da mudana exige que cada obra seja novaecITferi1te das que a precedem; e a novidade implica a nega-o da tradio imediata. A tradio se converte numa suces-so de rupturas. O frenesi da mudana rege tambm a pro~duo industrial, embora por razes diferentes: cada obje tonovo, resultado de um novo procedimento, desaloja' o objetoI que o precede. A histria do artesanato no uma sucesso!de invenes nem de obras nicas (ou supostamente nicas).Na realidade, o artesanato no tem histria, se concebemos ahistria como uma sucesso ininterrupta de mudanas. Entreseu passado e seu presente no h ruptura nem continuidade.9 artista moderno lana-se conquista __~ eternidade, e o de -signe r do futuro; o arteso se deixa conquistar pelo tempo.

    ' 0 _ _ _ . ~ .~ - _ -JTradicional mas no histrico, reso ao assado mas livre deatas, o o jeto _artesanaLnos ensina a desconfiar das miragens

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    \.:da histria e das iluses do futur'?;. arteso no busca vencerotempo, mas juntar-se ao seu fluxo. Por meio de repeties queso imperceptveis, mas variaes reais, 'suas obras persistem.Assim sobrevivem ao objeto up-io-date.

    O desenho industrial tende impessoalidade, Est subme-tido tirania da funo, e sua beleza decorre dessa submisso.G ; Mas a beleza funcional s serealza plenamente na geometria,-' e somente nela a verdade e a beleza so uma e a mesma coisa;nas artes propriamente ditas, a beleza nasce de uma necessriavfl~5o de normas. A beleza -'ou antes: a arte - umatransgresso da funcionalidade. O conjunto dessas transgres-ses consti tui o que chamamos um estilo, O ideal do designer,para ser lgico consigo mesmo, deve ser a ausncia de estilo- as formas reduzidas a sua funo - e o do artista, umestilo que comece e termine em cada obra de arte. (Talvezseja isto o que se propuseram Mallarrn e J oyce.) Mas acon-tece que nenhuma obra de arte comea e acab nela mesma.Cada qual uma linguagem a um tempo pessoal e coletiva: umestilo, uma maneira. Os estilos so comunais. Cada obra de arte um desvio e uma confirmao do estilo de seu tempo e lugar:ao viol-lo , cumpre-o. O artesanato, mais uma vez, f ica numaposio eqidistante: como o desenho, annimo; como a obrade arte, um estilo. Em face do desenho, o objeto artesanal annimo, mas no impessoal; em face da obra de arte, acen-

    o artista antigo queria parecer-se com seus maiores, ser)) I digno deles por meio da imitao. O artista moderno quer serdiferente e sua homenagem tradio consiste em neg-Ia.Quando busca uma tradio, busca-a fora do Ocidente, na arte'\ dos primitivos ou na de outras civilizaes, O arcasmo do pri-'J . mitivo e a antiguidade do objeto sumrio ou maia, por seremnegaes da tr adi o do Ocidente, so formas paradox~~._d.a--_._--------

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    tua o carter coletivo do estilo e nos revela que o vaidoso eudo artista um ns.A tcnica internacional. Suas construes, seus proce-dimentos e seus produtos so os mesmos em toda parte. Aosuprimir as particularidades e peculiaridades nacionais e re-gionais, empobrece o mundo. Graas a sua difuso mundial,a tcnica se transformou no agente mais poderoso da entropiahistrica. O carter nativo de sua ao pode ser condensado

    nesta frase: uniformiza sem unir. O perigo d_~J.s:pica noreside apenas na ndole mortfera -muIta;--de suas inven-es, mas em que ameaa at a essncia do processo hist-rico. Ao acabar com a diversidade das sociedades e culturas,acaba com a prpria histria. A assombrosa variedade das.~.\ sociedades produz a histria: encontros e conjunes de gru-! ' J } pos e culturas diferentes e de tcnicas e idias estranhas: Oprocesso histrico tem uma indubitvel analogia com o duplofenmeno que os bilogos chamam inbreeding e outbreedinge os antroplogos endogamia e exogamia. As grandes civili-zaes foram snteses de culturas diferentes e contraditrias.Ali onde uma civilizao no teve que enfrentar a ameaa

    e o estmulo de outra civilizao - como aconteceu na Am-rica pr-colombiana at o sculo XVI -, seu destino marcarpasso e caminhar em crculos. A experincia do ou tr o o se-gredo da mudana. Tambm da vida.L A tcnica moderna operou transformaes numerosas e() profundas, mas todas na mesma direo e com o mesmo sen--, tido: a extirpao do ou tro. Ao deixar intacta a agressividadedos homens e ao uniformiz-Ios, fortaleceu as causas que ten-dem sua extino. Em troca, o artesanato sequer nacional:/-. local. Indiferente s fronteiras e aos sistemas de governo,sobrevive a repblicas e imprios: a olaria, a cest~ria e osinstrumentos musicais que aparecem nos afrescos de Bonampaksobreviveram aos sacerdotes maias, aos guerreiro,s astecas, aospadres coloniais e aos presidentes mexicanos. 9~~rtesos n

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    tudo nos pases industrializados, e afeta tanto o consumidorcomo o produtor. Onde a concentrao maior, assistimos ressurreio dos velhos ofcios de oleiro, carpinteiro, vidreiro;muitos jovens, homens e mulheres, enfastiados e enojados dasociedade moderna, retomaram ao trabalho artesanal, Nos pa-ses dominados (em m hora) pelo fanatismo da industriali-zao, tambm se operou uma revitalzao do artesanato.Frequentemente os prprios governos estimulam a produoartesanal, O fenmeno perturbador, porque a solicitude go-vernamental se inspira geralmente em razes comerciais. Osartesos que so hoje objeto do paternalismo dos planifica-dores oficiais ainda ontem se viam ameaados pelos projetosde modernizao desses mesmos burocratas intoxicados pelasteorias econmicas aprendidas em Moscou, Londres ou NovaYork, As burocracias so as inimigas naturais do arteso, ecada vez que pretendem "orient-h)" deformam sua sensibili-dade, mutilam sua imaginao e degradam suas obras. , ,A volta do artesanato nos Estados Unidos ~ na Europa, Ocidental um dos sintomas da grande mudana da sensibi-lidade contempornea. Estamos diante de outra expresso da

    crtica religio abstrata do progresso. Certo, para se desi-ludir do progresso, preciso antes passar pela experinciado progresso. No fcil que os pases subdesenvolvidos par-ti lhem essa desi luso, embora seja cada vez mais patente ocarter ruinoso da superprodutivdade industria l. Ningumaprende em cabea alheia. No obstante, como deixar de verem que deu a crena no progresso infinito? Se toda civili-zao termina num acmulo de runas - um amontoado de.esttuas