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VELHAS E NOVAS QUESTÕES SOBRE A CULTURA E A IDENTIDADE 1 José Márcio Barros 2 I "Bolor. Este parece ser o aspecto de certos conceitos há muito banidos do proscênio consagrador em que sucede o debate intelectual." Com estas palavras, Luiz Eduardo Soares inicia seu ensaio intitulado "Os impasses da Teoria da Cultura e a Precariedade da ordem Social", que tem como objetivo refazer um velho debate dentro das Ciências Sociais : como pensar a Cultura, enquanto universo de símbolos, um espaço em "que se trama a rede intersubjetiva do sentido." (SOARES,1984) Como que justificando este contínuo retorno à questões e problemas que estiveram presentes na própria gênese da Antropologia enquanto área de conhecimento, Soares compara o fazer científico a um moinho, que em seu movimento de aparente repetição, reintroduz em cena aquilo que parecia ter sido atirado fora. O retorno, nesta analogia não se constitui uma repetição, mas uma "forma particular de geração do novo", uma possibilidade de novos diálogos com a tradição. No caso específico da Antropologia, retornar, ainda que rapidamente ao conceito de Cultura, representa sempre a possibilidade de um olhar sobre seu processo de consolidação de idéias e concepções, em torno dos quais constituiu sua própria identidade, ou seja, a construção de seu objeto, a elaboração de conceitos e a definição das estratégias de trabalho de forma autônoma. Tomada como uma disciplina jovem no campo das Ciências Sociais, pois somente no início do Sec.XX, realiza seus imperativos de autonomização, a Antropologia vem sendo lida diacrônicamente, como tendo sua constituição associada 1 Parte deste texto foi publicado nos Cadernos de Ciências Sociais n° 3, 1993 2 Mestre em Antropologia Social pela UNICAMP e Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Professor da PUC Minas e da Escola Guignard/UEMG ([email protected] )

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VELHAS E NOVAS QUESTÕES SOBRE A CULTURA E AIDENTIDADE 1

José Márcio Barros2

I

"Bolor. Este parece ser o aspecto de certos conceitos há muito banidos do proscênio consagrador em que sucede o debate intelectual." Com estas palavras, Luiz Eduardo Soares inicia seu ensaio intitulado "Os impasses da Teoria da Cultura e a Precariedade da ordem Social", que tem como objetivo refazer um velho debate dentro das Ciências Sociais : como pensar a Cultura, enquanto universo de símbolos, um espaço em "que se trama a rede intersubjetiva do sentido." (SOARES,1984)

Como que justificando este contínuo retorno à questões e problemas que estiveram presentes na própria gênese da Antropologia enquanto área de conhecimento, Soares compara o fazer científico a um moinho, que em seu movimento de aparente repetição, reintroduz em cena aquilo que parecia ter sido atirado fora. O retorno, nesta analogia não se constitui uma repetição, mas uma "forma particular de geração do novo", uma possibilidade de novos diálogos com a tradição.

No caso específico da Antropologia, retornar, ainda que rapidamente ao conceito de Cultura, representa sempre a possibilidade de um olhar sobre seu processo de consolidação de idéias e concepções, em torno dos quais constituiu sua própria identidade, ou seja, a construção de seu objeto, a elaboração de conceitos e a definição das estratégias de trabalho de forma autônoma.

Tomada como uma disciplina jovem no campo das Ciências Sociais, pois somente no início do Sec.XX, realiza seus imperativos de autonomização, a Antropologia vem sendo lida diacrônicamente, como tendo sua constituição associada profundamente à própria construção de um conceito moderno de Cultura.

Segundo Velho & Viveiros de Castro (1977), a Antropologia, "desde seu início, em fins do Século XIX, se apropria do termo "cultura" e o erige em conceito totêmico, símbolo distintivo." Gradativamente, mobilizada pela busca e em alguns casos, pela captura do outro, do diferente, a Antropologia foi construindo e reconstruindo o conceito de Cultura de formas diversas, mas sempre revelando, a cada versão, um traço distintivo, o de se caracterizar como um "discurso ocidental sobre a alteridade."

Se a diversidade cultural vem sendo objeto de atenções e preocupações há séculos ( mesmo antes da própriaconstrução do conceito ) coube à Antropologia tomar para si a tarefa de reconhecer e interpretar as diferentes e divergentes formas com que o ser humano vive. Tais formas, relacionadas a uma mesma base biológica, passam a ser compreendidas como alternativas, soluções e escolhas histórica e simbolicamente singulares.

1 Parte deste texto foi publicado nos Cadernos de Ciências Sociais n° 3, 19932 Mestre em Antropologia Social pela UNICAMP e Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Professor da PUC Minas e da Escola Guignard/UEMG ([email protected])

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Contemporânea e por vezes colaboradora dos empreendimentos colonizadores do mundo ocidental, a Antropologia operou constantes e profundas transformações na sua perspectiva de compreender o Outro, até chegar, modernamente, e por caminhos também diversos, à compreensão da diferença como um dado positivo, constituinte da realidade, "uma outra alternativa , uma outra possibilidade da que nos é dada"(PEIRANO,1988:3) .

Os pressupostos utilizados pelas várias escolas antropológicas, para a compreensão das sociedades distantes e diferentes de seus contextos de origem, irão constituir o núcleo do conceito de cultura, em suas várias versões.

Tradicionalmente, os historiadores da ciência, localizam em E.B.Tylor, a primeira formulação propriamente antropológica do conceito de Cultura :" este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis,costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade." (TYLOR,1871:1) Sua maior contribuição foi a de inaugurar uma nova equação entre os conceitos de civilização e cultura. Enquanto o primeiro, se desenvolveu no interior de reflexões sobre "as descontinuidades sociais e nacionais dentro da Europa" (VELHO & VIVEIROS DE CASTRO,1977), operadas principalmente na Alemanha, França e Inglaterra, ressaltando sempre, ora realizações materiais e tecnológicas de um determinado povo, ora designando hábitos de determinadas classes sociais, tomadas como superiores justamente por esse grau de civilização, o conceito de cultura apontou para outro caminho, distinto da idéia de progresso, tão cara ao expansionismo colonialista: a possibilidade de compreensão da singularidade dos povos não-ocidentais através do estudo de suas tradições.

Rompendo com a perspectiva de materialidade e continuidade espacial presentes no conceito de civilização, a nascente Antropologia introduziu a possibilidade de se ver a Cultura através de valores que ligam "espiritualmente" os membros de uma sociedade, e que são aprendidos e transmitidos.

Entretanto, sendo a própria Antropologia uma ciência que se constituiu durante a formação da sociedade moderna, suas construções teóricas irão refletir as transformações e os questionamentos centrais da sociedade européia. A mudança nas relações entre colonizadores e colônias, objetivando transformá-las de simples mananciais de matéria-prima e mão-de-obra em mercados consumidores, e o impacto da obra de Charles Darwin, "A Origem das Espécies", que defendia a idéia de uma unidade fundamental da espécie humana, acabaram por compor um contexto propício para a consolidação da primeira escola propriamente dita dentro da Antropologia. Trata-se do Evolucionismo.

Entretanto, se por um lado, superava-se as teorias racistas com a perspectiva do homogenismo da espécie, as diferenças permaneciam, para o Evolucionismo, concebidas como resultantes de diferentes estágios de evolução presentes na sociedade humana. O termo civilização passava a definir um estágio já alcançado pela sociedade ocidental e que, poderia e deveria ser atingido pelas demais sociedades, tidas como não-civilizadas.

A busca da compreensão das diferenças, nesta perspectiva, partia do pressuposto de uma trajetória única a que todos os povos e todas as culturas teriam passado ou que viriam a passar. A pretensão era a de reconstituir uma história das origens das formas sócio-culturais até às sociedades modernas, tomadas como ponto

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de chegada à civilização. A Cultura é definida como um rol de práticas e costumes que, analisados, poderiam indicar a posição de seus portadores na escala evolutiva.

Mas, como afirmam Velho & Viveiros de Castro, "o destino da Antropologia não era o de ser serva demasiado fiel do colonialismo; seu movimento histórico pode ser resumido na idéia de uma crescente percepção da especificidade das diferenças culturais em si..." (VELHO & VIVEIROS DE CASTRO,1977) Superando esquemas evolucionistas absolutamente fáceis, ingênuos e radicalmente etnocêntricos, a Antropologia da virada do século opera avanços significativos na apreensão do fenômeno cultural. Já no Difusionismo, apesar da perspectiva diacrônica continuar dominante, as diferenças culturais deixam de ser explicadas enquanto resultado da convergência de experiências históricas e são tomadas como resultante de processos de contato e difusão.

Do Difusionismo ao Funcionalismo, e daí ao Estruturalismo, a Antropologia incorpora a perspectiva sincrônica de análise da organização social, presente de forma singular em cada cultura. Esta incorporação se dá graças ao aprimoramento metodológico conseguido após a adoção do trabalho de campo como marca da ação antropológica e devido às influências teóricas de outras disciplinas, como a sociologia francesa, a lingüistica e a psicanálise.

"A partir delas, pôde o cientista social de nosso tempo descobrir e difundir o conhecimento de que as crenças e práticas,os hábitos e costumes, significavam mais que a si próprios e eram mais que sub-produtos do relacionamento das instituições econômicas e políticas; pôde descobrir serem estas práticas elementos significacionais capazes de encaminhar o espírito para domínios não freqüentados habitualmente pela consciência e que estes eram os únicos por meio dos quais se tornava possível o entendimento do pensamento e do sentimento dos homens, e pôde descobrir, finalmente, que muito do sentido da vida social residia exatamente onde não existia sentido algum aparente." (RODRIGUES,1983:1)

A Antropologia consolida-se enquanto disciplina especializada no desenvolvimento de micro-análises dos fenômenos culturais. Fundadas suas principais e mais sólidas bases teóricas e metodológicas, ela continuará forjando no seu interior novas escolas, novas tendências, que retomarão questões ou proporão novos desafios. Mas em todas as perspectivas, o esforço parece se dirigir para a reconstrução dos "critérios internos que cada cultura utiliza para a sua auto-reflexão..." (VELHO & VIVEIROS DE CASTRO,1977)

O trabalho do antropólogo passa a se definir como a busca de resolução para alguns desafios :

- como pensar a questão da unidade biológica em confronto com a diversidade cultural;

- como apreender o significado de costumes e práticas, aparentemente incompreensíveis, originárias de sociedades com experiências históricas e conformações sociais diferentes;

- como compreender as relações entre sistemas de pensamento e a experiência social concretamente vivida.

Superando a influência que as ciências físicas e biológicas mantinham sobre as ciências sociais, o que acabava por resultar na adoção de conceitos que tomavam

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a sociedade como um organismo detentor de necessidades, orgãos, forças etc, a Antropologia contemporânea pôde adotar uma perspectiva significacional de análise das sociedades.

A cultura passa a ser pensada como um " processo pelo qual os homens orientam e dão significado às suas ações através de uma manipulação simbólica que é atributo fundamental de toda a prática humana." (DURHAN,1977:34)"

Nesta perspectiva, o conceito de Cultura passa a designar :- um universo de símbolos que dá estabilidade às relações sociais,

constituindo-se numa espécie de rede intersubjetiva de produção de sentidos;- esse universo, mais que integrado ao conjunto de práticas sociais, se

apresenta como parte constitutiva das mesmas, instaurando ordem no aparente caos da vida social;

- desta forma, consolida-se como uma espécie de mapa da vida social, "conjunto de mecanismos de controle", ou melhor, "sistemas entrelaçados de signos", eminentemente convencionais e que formam teias de significação, resultado sintético de múltiplas determinações;

- como tal, é um mapa e não um território; um programa de codificações e não os comportamentos concretos; um contexto e não o próprio texto que imprime lógicas próprias; não um molde de extensão generalizada, mas um conjunto de regras, nem sempre conscientes aos indivíduos e, por outro lado, em constante transformação, que permite a atribuição dos sentidos.

Tais "programas", atualizados a cada situação social, ou como diz Durhan, a cada partida do jogo social, são apreendidos pelos indivíduos no interior da sociedade, mas também são passiveis de elaborações particulares. Sem se confundir com um ornamento, a cultura se constitui como a própria condição para a vida coletiva, à medida que instala um território de inteligibilidades, cujas determinações não são universais mas referentes a contextos de articulação específicos.

O conceito de sociedade, e, por extensão, o de realidade, sofrem, tal e qual o de identidade, como veremos mais à frente, um processo de dessubstancialização, passando a indicar um processo que, como indica Durkheim em "As Formas Elementares da Vida Religiosa", constrói modelos dos quais os indivíduos devem se constituir. Estes modelos se estruturam a partir de lógicas específicas e possuem certa estabilidade, tanto sincrônica, quanto diacrônica, em função de se constituirem em fatos que exercem uma substantiva, mas não total, coerção sobre os sujeitos. São como conjuntos de "relações que simultâneamente ultrapassam as consciências individuais (mas) são-lhes imanentes." (RODRIGUES,1983:32)

A sociedade passa a ser tomada como um território onde as interações coletivas são vivenciadas a partir de diferentes perspectivas, advindas de múltiplas e diferentes matrizes de produção de sentidos. A realidade passa a ser compreendida como uma montagem, um empreendimento da própria sociedade, que repousa e resulta do constante conflito que constitui a produção dos sentidos: "Toda ordem que emerge do duelo é precária porque repousa na arquitetura diáfama do sentido. E o sentido, além de dialógico, oscila entre as estruturas semióticas e o desdobramento criador dos sujeitos na linguagem". (SOARES,1984:58)

Abandona-se, com isto, uma perspectiva de abordagem dos sujeitos abstratos e universais, tomando-os agora como sujeitos radicados "na sociedade, que

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convivem, norteados por referências conceituais comuns, indissociáveis de suas interligações sociais." Os fatos tornam-se sociais porque além de compartilhados coletivamente, transcendem à consciência do indivíduo, assumindo um caráter de anterioridade e exterioridade em relação a este.

Como tal, a sociedade se constitui como uma fonte, um conjunto de eixos, sobre os quais, e a partir deles, se constroém os sistemas de representação, de produção de significado.

"Mais que apreendido, o real é construído, porque sua apropriação decorre de investimentos semânticos, projeções valorativas ou interpretações. Trata-se de um empreendimento coletivo, ao qual se adere pela via do engajamento interacional, mas seu produto não é uniforme nem homogêneo, justamente em razão de sua gênese dialógica." (SOARES,1984:10)

Sua constituição se dá, pois, marcada pela fragmentação, pela contradição e pela multiplicidade, resultante das diversas mediações, que, como filtros e lentes, se interpõem entre os sujeitos e seus objetos de significação.

Tomado como um código que acessa sentidos, através de um conjunto de regras de criação e interpretação da realidade, o conceito significacional de cultura se integra à idéia de sistema, totalidade que sempre possui um princípio lógico ordenador, uma racionalidade que lhe é própria, além de ser uma espécie de campo semântico onde se é possível a reprodução da vida coletiva. Tais princípios, ou conjuntos de princípios, como já se disse antes, estão submetidos a regras, que não se originando do equipamento neuro-psíquico de cada indivíduo,nele podem ter uma localização inconsciente.

Pensada enquanto sistema de representação, suas manifestações empíricas são relegadas a um segundo plano enquanto objeto de análise, assumindo-se uma nova perspectiva que a toma como uma grade, uma rede que se estende sobre a vida social, classificando, codificando e transformando "suas dimensões sensíveis em dimensões inteligíveis." (RODRIGUES,1983:12)

Como código socialmente constituído e instituído, os sistemas de representação determinam cortes e contrastes responsáveis pela constituição das diferenças, condição essencial para a produção dos sentidos. As diferenças aqui constituem um dado positivo, que não deve ser dissipado, pois é constitutivo das relações entre os sujeitos e das relações entre as culturas. As diferenças deixam de sugerir, como em outras perspectivas teóricas, os limites de uma determinada cultura quando defrontada a outra e passam a indicar, por um lado a multiplicidade de contextos e por outro a diversidade de percepções e concepções no interior e na relação entre estes diferentes contextos. Trata-se, como alguns autores apontam, da busca da superação, no interior da própria Antropologia, de perspectivas etnocêntricas, tão presentes e necessárias para a fixação de similitudes essenciais para a constituição de cada sujeito, de cada grupo, de cada cultura, mas tão obscurecedoras quando transformadas em mecanismos de análise científica.

Tais sistemas de representação se conformam como sistemas de classificação. Ao produzirem os significados, postulam ordens, definem valores, estabelecem lugares, a partir de contrastes e semelhanças definidas menos empíricamente que simbólicamente. "Estes códigos que vão constituir a cultura,

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consistem essencialmente em aparelhos simbólicos. ... A cultura pode ser concebida como um sistema de símbolos, organizados em diversos subsistemas. Neste sentido, o comportamento humano é percebido como apresentando, para além dos aspectos puramente técnicos ou pragmáticos, um componente simbólico, i.e, expressivo." (VELHO & VIVEIROS DE CASTRO,1977)

Esses sistemas de representação ou classificação possuem, por um lado, uma característica comum, como aponta Durkheim: resultam de uma mesma capacidade mental do ser humano, e de certos invariantes da vida coletiva, objetivando sua garantia de estabilidade e continuidade . Desta maneira, e a partir desta base comum, refletem as modalidades particulares de estrutura social de onde emergem e da qual são partes constitutivas, demarcando uma identidade própria, em contraste com outros sistemas. A estrutura social, bem como estes sistemas, são fenômenos, antes lógicos e abstratos, do que propriamente materializáveis. Construída sobre dados empíricos, a estrutura social não se confundiria e nem se limitaria a eles.

Resulta daí a possibilidade de se definir a cultura como um Sistema de Comunicação, um sistema de trocas de informações e mensagens, constituído de universos informacionais singulares.

"Os homens trocam signos ou valores - sejam eles instrumentos de trabalho, produtos econômicos, mulheres ou palavras - cumprindo um programa de intercâmbio, vivido e implementado, mas não necessariamente conhecido, cujos sentidos e função resumem-se no equilíbrio tenso, correspondente à afirmação de determinados padrões de sociabilidade." (SOARES,1984:31)

Comunicar, como nos diz Soares, citando os interacionistas, é uma modalidade do interagir humano : "além de veicular informações de quaisquer espécies, a linguagem, em ação, faz." Nesta perspectiva, a comunicação humana se realiza por meio de símbolos que, socialmente programados, são apreendidos pelos indivíduos a partir de convenções estabelecidas por seu grupo e plasmadas na estrutura social envolvente. As convenções e os símbolos, eminentemente transformáveis, se interpõem como uma lente entre os elos do processo comunicacional, figurando originariamente no coletivo e só posteriormente no indivíduo, através de inúmeras estratégias de socialização, que cada cultura define para seus sujeitos. (RODRIGUES,1989)

Entretanto, Durkheim e Lévi-Strauss levantam questões relativas à concepção do indivíduo enquanto um manipulador de possíveis combinações semióticas dentro de limites estabelecidos pela estrutura social, ou seja, um número finito de possibilidades já dadas pelo "jogo cultural".

A partir da crítica a essas questões, a Antropologia contemporânea vem procurando resgatar na análise da cultura, o espaço da história, do sujeito, do indivíduo e da ação, recalcados, em nome de uma gramática do funcionamento do espírito humano, construída pela perspectiva estruturalista. Segundo esta perspectiva, restaria aos sujeitos acionarem códigos já previamente definidos, que possibilitariam certas comutações e trânsito entre as redes de linguagens que compôem as culturas.

Em uma outra perspectiva, aqui chamada de significacional, as variações ou diferenças, definidas pelo uso, pela ação, não se limitam a ser uma "contingência

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irrelevante ou resultado de meras execuções de códigos pré-fixados." O sujeito tomado como "agente de enunciação" e não como "mediador reificado da mecânica semiótica", abre a possibilidade de descentramento das atenções, na análise antropológica, do sistema para o processo cultural, entendido não como ato passivo de recorrência a estruturas de significados já definidos e a espera de uso, mas como ato de designação, e portanto de criação, dos sentidos. Trata-se de homogeneizar menos, o que faz com que tudo conflua para a estrutura, e buscar mais os processos de descontinuidade e ruptura, inauguradores de diferenças irredutíveis.

A partir dessas questões é possível avançar na direção proposta por Durhan, e já apresentada anteriormente, de que a análise da Cultura é "necessariamente (uma) análise da dinâmica cultural, isto é, do processo permanente de reorganização das representações na prática social, representações estas que são simultâneamente condição e produto desta prática." (DURHAN,1977:34)

Contextualizando estas questões nas sociedades ditas complexas, resta assinalar os desafios que esta análise enfrenta quando colocada defronte à contextos estruturados a partir de sistemas de representação e classificação expressivamente diversificados.

Esta diversificação, resultado de uma profunda complexificação da estrutura produtiva, advém, como mostram os autores citados, de uma divisão de trabalho mais segmentadora, da formação de uma rede de instituições (entre elas as responsáveis pela socialização dos indivíduos) cada vez mais diversificada, e da complexa rede de interações e comunicação intra e inter - sociedades.

Conforme Ribeiro (1990)

"a tensão heterogêneo/homogêneo situa-se, assim, no campo de contradições criado por forças globalistas versus localistas. Como entender,então,um mundo cada vez menor (homogeneidade ?), mais globalizado,mas onde,no entanto,os movimentos locais,de diferenciação (heterogeneidade ?) persistem? (...) A proximidade e interdependência das diferenças, que se dão de maneira cada vez mais complexa e crescente, são fatores que contribuem tanto para a percepção do `encolhimento' do mundo contemporâneo,quanto para a fragmentação das percepções individuais,num movimento duplo de homogeneização e de heterogeneização que se dá pela exposição simultânea a uma `mesma' realidade compartilhada por olhares claramente diferenciados." .

O conceito de heterogeneidade remete a análise da cultura em sociedades complexas, para a busca da compreensão das experiências sociais, não só em termos de complexificação e diversificação (e conseqüentemente dos sistemas de representação) mas também para o fato de coexistirem em situação de contato, cada vez mais recorrentes, num processo contínuo de negociação de suas especificidades.

A análise da cultura em sociedades complexas deve, portanto, considerar:

- a existência, ou coexistência, de diferentes sistemas simbólicos, procurando compreender suas fronteiras e suas ambiguidades;

- que a compreensão das relações sociais concretamente vividas só podem ser compreendidas se referidas aos sistemas de representação,tomados como conjuntos de concepções que atribuem sentido àquelas;

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- estas concepções, apesar de figurarem de forma explícita no comportamento e no discurso dos indivíduos, pressupõem sempre a existência de outras, que informando-as, figuram fora da consciência momentânea do comportamento expressivo;

- a busca de compreensão deste território de referências, não deve contudo, como diz Geertz, representar a construção de um "Continente dos Significados", onde o antropólogo mapeia "sua paisagem incorpórea". (GEERTZ,1978:30) A busca é de acesso ao mundo conceitual do outro na tentativa de compreender as respostas que estes deram aos seus desafios, e assim fazendo possibilitar a emergência de um diálogo inter-subjetivo, entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados;

- este diálogo, condição para uma análise antropológica, não se concretiza como resultado de processos psicológicos introspectivos, relações de empatia, mas como um " processo de justaposição de esquemas de referências nativos com aqueles do analista, o que é, também, um processo de comunicação." (FISCHER,1985:59)

- se o processo de comunicação que a pesquisa antropológica inaugura deve evitar a satisfação com o aparente, com o explicitável no discurso e na ação do outro, deve evitar também, o divórcio com os acontecimentos. Se a sociedade e a cultura estão sempre se refazendo, tal processo não limita aos sujeitos concretamente existentes o papel de marionetes de forças impessoais." Os indivíduos concretos, em suas biografias, interpretam, mudam e criam símbolos e significados, evidentemente vinculados a uma herança, a um sistema de crenças." (VELHO & VIVEIROS DE CASTRO,1977) Estes sistemas simbólicos são constantemente atualizados através de biografias individuais. Compreender como estes indivíduos concretos analisam, internalizam e fazem uso dos sistemas de representações que colocam à sua volta símbolos e sígnos, seja no cotidiano seja nas situações extraordinárias, se constitui num dos desafios atuais da Antropologia .

Tomar, em suma, a cultura como um código, implica na observância de duas consequências que podem dirigir sua análise em direção à questão da identidade.

1 - Enquanto código, a cultura constrói e se estrutura em normas e regras sociais que, simétricas ou assimétricas, tanto podem ser produzidas e "zeladas" pela força de instituições formais, como a escola, a policia e o Estado, quanto pelas próprias tradições e costumes cotidianos. Desta forma, o código realiza uma ação de impacto sobre os indivíduos, definindo sanções e penalidades para as transgressões. Mas atua também sobre o indivíduo, apresentando uma espécie de modelo dentro do qual ele próprio pode se localizar e portanto se realizar. Trata-se como esclarece Rodrigues (1983:34), "da transformação do obrigatório em desejável, cuja efetivação é a função de muitos ritos e mitos realizar." Negar a sociedade, neste sentido, é negar a si próprio como sujeito num dado contexto cultural. Em outras palavras, seria o mesmo que renunciar á identidade, como veremos adiante.

2 - A concepção da cultura como código, implica também na sua percepção como um sistema de comunicação, que rege o encontro e as trocas entre indivíduos, grupos e instituições, sejam eles iguais ou diferentes, homogêneos ou não. Como tal, "plasmada na trama interacional, a comunicação é vulnerável a movimentos de

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origem diversos, voltados para fins distintos. Movimentos inerentes à existência social, fundadores do próprio encontro interacional."

Resulta daí sua indissociável existência no processo de construção das identidades : é através desta rede comunicacional, que dá a forma, o conteúdo e dinâmica às relações sociais, que seus sujeitos definem posições de forma recíproca, identificando-se e atribuindo identidades.(SOARES,1984:64)

Nesta perspectiva, retoma-se a questão das diferenças não mais como sobrevivências ou particularidades isoladas, mas como processos explicitos de "oposições ou aceitações que implicam num constante reposicionamento dos grupos sociais na dinâmica das relações de classe."(DURHAN,1977:9)

Trata-se, pois, da compreensão da identidade enquanto um processo onde as diferenças se comunicam.

II

Luiz Fernando Dias Duarte, em um de seus trabalhos sobre a questão da identidade, diz que este conceito, "aplicado à análise sociológica, ou seja, portanto - o conceito de identidade social - tem percorrido a literatura antropológica de maneira excessivamente discreta." Essa situação, talvez fruto das influências ainda marcantes do racionalismo aristotélico, que imprime à ciência princípios de identidade e não-contradição, traria um desprivilegiamento da construção da identidade social como objeto de discussão, como afirma o autor, acabando por transformá-la numa espécie de contraponto da questão da identidade pessoal.

Mais estudada por psicólogos e filósofos enquanto "consciência do eu" ou "reconhecimento individual" de uma exclusividade, o conceito de identidade vem gradativamente sendo trabalhado por sociólogos e antropólogos, na perspectiva de se compreender " conflitos, relações desiguais entre grupos, classes e culturas, surtos de revolta de minorias sociais, de grupos étnicos, de povos colonizados, de classes oprimidas." (BRANDÃO,1986:47)

No interior das Ciências Sociais, e mais específicamente, dentro da Antropologia, a questão da identidade é trabalhada, especialmente, aliada a três questões específicas: a identidade étnica, a identidade nacional e a identidade de gênero, sendo que, especialmente no Brasil, a primeira foi a que mais se desenvolveu. (DUARTE,1986A:70)

Para Ruben (1986), é possível assinalar algumas circunstâncias em que a questão da identidade assumiu papel crucial, dentro das Ciências Sociais.

Na Alemanha da passagem do Século XVIII para o Século XIX, a carência de unidade dos povos germânicos, constituía um motivo de preocupação tanto para intelectuais quanto para políticos, pois sinalizava um atraso, uma insuficiência na vida social e política do país.

Hegel, tomado pelo autor como o primeiro a sistematizar uma teoria sobre a identidade, afirmava uma ausência de vínculos suficientemente solidários, capazes de propiciar a agregação e a consolidação de um Estado Nacional. Para ele, somente um Estado moderno asseguraria esta identidade, apesar das diferenças e desigualdades entre os povos germânicos, entre o Eu e a Sociedade. A formação de um Estado forte minimizaria as diferenças e racionalizaria uma unidade que

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pudesse conter a multiplicidade.Outra situação paradigmática levantada por Ruben, se refere aos Estados

Unidos no início do Século XX. No contexto de um Estado já constituído de forma homogênea, sob uma base territorial única, George Herbert Mead, analisou a questão da identidade numa outra perspectiva, a partir das correntes migratórias de diferentes grupos étnicos para uma sociedade já organizada e unificada. A cisão entre o Eu e a Sociedade seria resolvida dentro de uma sociedade organizada, e não pelo Estado como queria Hegel,onde todos os indivíduos que a ela pertencem se reconheçam pela presença de um outro generalizado.

Em ambos, entretanto, a teoria da identidade apresenta-se como a teoria da não-contradição, da não-diferença, uma teoria da unidade.

Contemporâneamente, principalmente a partir do desenvolvimento da Antropologia, a questão da identidade social passou a ser discutida através do privilegiamento da multiplicidade, da diferença e do contraste. A categoria do Outro, aparece como formulação essencial para sua discussão, tanto quanto o foi na perspectiva clássica. Entretanto,a concepção do "diferente", agora associada às práticas sociais do expansionismo colonial e às suas decorrências (os movimentos de independência e formação de nacionalidades modernas) introduz uma nova perspectiva. "O `outro' parece adquirir um status de sujeito histórico legítimo", e sua identidade passa a constituir uma certa dimensão irredutível da qual toda sociedade ou grupo humano seria portador.(RUBEN,1986:34)

O conceito de identidade social experimenta a partir de então, no interior da Antropologia, uma significativa transformação: deixa de se constituir como uma espécie de categoria de unificação, consolidando-se como referente de uma realidade relacional e dinâmica. Identidade, como veremos mais à frente, passa a denominar processos de identificação.

Nos anos 70, Claude Lévi-Strauss e Jean-Marie Benoist, organizaram um célebre seminário inter-disciplinar para colocar em discussão a questão da identidade. Desse Seminário, participaram antropólogos, biólogos, linguistas, psicanalistas e filósofos, que segundo seus organizadores adotaram um duplo objetivo :

"... d'une part,s'interroger sur la façon dont,au sein de notre propre civilisation, des disciplines diverses formulent et tetent de résoudre chacune pour son compte le problème de l'identité,en leur demandant de définir ce que chacune entend par là de son point de vue particulier... . D'autre part,à ces conceptions de l'identité,peut-être très différentes (on n'en savait rien au début),des anthropologues reçurent pour mission de confronter celles que des sociétés exotiques s'en font."(LEVI-STRAUSS & BENOIST,1977:10)

Partia-se, contudo, de uma perspectiva : "on a constaté que le contenu de la notion d'identité est mis en doute, et fait même parfois l'objet d'une très sévère critique." No início do Seminário, seus organizadores adiantavam suas críticas: 1) a crise de identidade é um produto de um processo característico da sociedade moderna, uma super abundância de comunicação que gera a busca de isolamento e diferenciação; 2) o conceito de identidade tem um conteúdo espúrio e um significado hiperbólico, produzindo antes uma lógica nominalista que científica; 3) tal conceito leva a pensar o mundo, ora de forma ultraglobalizante, ora num exclusivismo diferenciador; 4) "Ideológicamente falando, o conceito de identidade

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constitui um solo fértil para o etnocentrismo, o racismo, o classe centrismo e o Estado-centrismo." (BARBU,1980)

Entretanto, o resultado do seminário parece ter apontado para algumas divergências, que continuam informando os trabalhos acerca da identidade. Se para Lévi-Strauss, a questão da identidade necessitaria ser estudada numa via oposta à perspectiva de um substancialismo dinâmico, compreendendo-a como "une sorte de foyer virtuel auquel il nous est indispensable de nous référer pour expliquer un certain nombre de choses, mais sans qu'il ait jamais d'existence réelle... son existence est purement théorique : celle d'une limite à quoi ne correspond en realité aucune expérience"(LÉVI-STRAUSS,1983:332), para Barbu, ao contrário, as intervenções dos participantes do seminário, sugeriram que a questão da identidade "conota, sempre, diferença, auto-confinamento, auto-definição, isolamento, em suma, qualquer coisa de completamente alheio e exterior à lógica da estrutura." (BARBU,1980:299)

Para Duarte (1986A), as Ciências Sociais elegeram três grandes focos de estudos no campo da identidade:

1) a relação entre identidade pessoal e identidade social; 2) a questão filósofica do princípio de identidade; 3) a questão propriamente antropológica, dos sistemas de classificação e

valor. Segundo o autor, Emile Durkheim e Marcel Mauss demonstraram o verdadeiro sentido do sistema classificatório, enquanto sistema que distingue, diferencia, hierarquiza e que pressupõe sempre uma totalidade. Entretanto, apesar da grande contribuição dada em duas obras clássicas, "As Formas Primitivas de Classificação" e "Formas Elementares da Vida Religiosa", a visão adotada por estes autores, reforçava a perspectiva da identidade enquanto princípio de não-contradição.

Como se assinalou atrás, foram os trabalhos produzidos em torno da questão da identidade étnica os que mais contribuições trouxeram para a reformulação da questão da identidade social.

"O que se ganhou com os estudos de etnicidade foi a noção clara de que a identidade é construída de forma situacional e contrastiva,ou seja, que ela constitui resposta política a uma conjuntura, resposta articulada com outras identidades em jogo,com as quais forma um sistema.É uma estratégia de diferenças."

Em primeiro lugar, estes estudos sublinharam a importância de se conceber a relação que pesquisadores de sociedades e grupos diferentes e distantes ao seu, estabeleciam com seus "objetos" de trabalho, como relações, elas próprias, inter-étnicas:

"...não se trata apenas da relação clássica entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível ( relação esta que é crítica em toda e qualquer disciplina), trata-se antes da peculiaridade da relação sujeito/objeto ,que envolve indivíduos pertencentes a mundos radicalmente diversos;radicalmente porque diferentes pela raiz,pela origem,por histórias que,mitificadas ou não,articulam esses indivíduos em campos semânticos próprios..." (OLIVEIRA,1980:244)

Através das contribuições originais de Roberto da Matta (1978) e Gilberto Velho (1978), pôde-se perceber que, o interesse contemporâneo da Antropologia em

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voltar-se para o estudo da própria sociedade do pesquisador encerrava desafios metodológicos no mínimo próximos daqueles vividos no clássico encontro do antropólogo com o diferente no interior da cultura do "outro". Ambos apresentam características de um verdadeiro diálogo inter-étnico: são marcados pelo estranhamento, pela descontinuidade, pela negociação de sentidos.

Em segundo lugar, os estudos sobre a identidade étnica trouxeram algumas contribuições teóricas não só aplicáveis ao estudo das sociedades indígenas, mas também extremamente úteis para a compreensão das relações que se estabelecem entre os diversos grupos étnicos :

* - sendo um elemento fundamental na constituição e organização de uma cultura, a identidade não pode ser com ela confundida. Para que o conceito mantenha sua operatividade, a identidade, seja ela étnica ou não, deve ser compreendida enquanto algo mais dinâmico, porém mais situacional, que revela a utilização de elementos culturais por sujeitos singulares;

* enquanto tal, a identidade tem sua força motriz, ou como diz Oliveira, sua própria essência nas relações que se travam entre os diferentes sistemas de classificação existentes numa mesma sociedade, ou entre sociedades diferentes mas colocadas em contato, e nas relações em que diferentes sujeitos participam em uma mesma cultura,;

* como fenômeno essencialmente relacional, e não-substantivo, a identidade está sempre em processo, gerando confrontos, enfrentamentos, novas configurações e simbioses originais;

* decorre daí a perspectiva de compreendê-la não como continuidade de um passado vivido, reminiscências atualizadas, mas como processo contínuo de construção de um consenso capaz de, em situações específicas, fornecer elementos para que os iguais se reconheçam como iguais, e os diferentes se localizem como diferentes;

* este processo consolida-se como prática de construção e seleção de traços e marcas, que definem o olhar com que cada sujeito, grupo ou sociedade concebe a si próprio, e ao "outro", mas também a maneira como idealiza ser concebido e compreendido;

* em suma, trata-se de sublinhar seu caráter processual, contrastivo e não substantivo.

Gustavo Lins Ribeiro (1990), em um interessante estudo sobre a Identidade de trabalhadores de empresas transnacionais, e George E.Marcus (1990) em artigo sobre a questão da identidade e modernidade, levantam novas questões relativas aos desafios que a contemporaneidade coloca para os estudos da área.

Para Marcus, uma das marcas dos trabalhos etnográficos mais ousados da atualidade, é a tentativa de se investigar os processos de formação de identidades sociais no contexto da modernidade, ou seja , em sociedades fragmentadas e heterogêneas. Tais estudos contemporâneos, representam uma superação dos paradígmas de desenvolvimento e modernização, dominantes nas décadas de 50 e 60.

Enquanto estes últimos tratavam de recompor ou reinventar tradições que pudessem neutralizar os efeitos do progresso, procurando a restauração da coerência e estabilidade da identidade, os trabalhos mais recentes tratam de estudar os "múltiplos e sobrepostos fragmentos de identidade."

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Para Marcus, "as conotações de solidez e homogeneidade ligadas à noção de comunidade, seja esta concentrada num local ou dispersa, tem sido substituídas no enquadramento da modernidade pela idéia de que a produção localizada de identidade - de uma pessoa, de um grupo, ou até de uma sociedade inteira - não depende apenas e nem principalmente das atividades observáveis, concentradas dentro de uma localidade específica, ou de uma diáspora. A identidade de alguém, ou de algum grupo, se produz simultaneamente em muitos locais de atividades diferentes... Para uma abordagem modernista quanto à identidade numa etnografia, é o processo de uma identidade distribuída em muitos lugares de caráter diferente que precisa ser entendido."(MARCUS,1990:10)

Tal processo inaugura, dentro da Antropologia, uma busca de compreensão da "maneira como as identidades coletivas e individuais se negociam" em contextos novos, onde tradicionalmente os pesquisadores não realizavam seus estudos. Um destes contextos, privilegiado para a análise da identidade na modernidade, são os circuitos migratórios em escalas transnacionais, que fazem surgir sujeitos sociais marcados pela desterritorialização " no sentido da perda de possibilidade de realizar uma identificação unívoca entre território/ cultura/ identidade."

Em suma,estes autores sugerem que :* a identidade longe de revelar uma "essência irredutível ", se consolida como

um "fluxo multifacetado sujeito a negociações e rigidez" variáveis de acordo com o contexto interativo;

* a fragmentação decorrente destes novos padrões de organização social, é "vivida, de um lado, como um dado ou uma realidade estruturadora do sujeito, e de outro, como um conjunto característico do próprio sujeito." Neste processo, uma das faces desta "identidade caleidoscópica", pode se estruturar provisoriamente como mais hegemônica do que outras;

* mais do que uma herança de agentes sociais particulares, a identidade se constitui, neste contexto de sociedades modernas e pós-modernas, num "fenômeno de disseminação", imerso num processo de reconstrução contínua, cabendo ao pesquisador a tarefa de compreendê-la em suas múltiplas migrações e dispersões.

Já Maria Célia Paoli (1987), em trabalho apresentado no Seminário "Questões sobre a Cultura Operária ", realizado em 1982 pela Associação Brasileira de Antropologia, afirma que, as Ciências Sociais no Brasil, realizaram nos últimos anos um significativo rompimento com certos categorias de análise das classes trabalhadoras. Este rompimento revela a incorporação de certos avanços teóricos na abordagem da cultura e da identidade :

* "...descobriu-se, por exemplo, (...) que existem grupos sociais, com identidades definidas, que atravessam as classes sociais...";

* introduziu-se como elemento importante a compreensão da heterogeneidade, enquanto dimensão constitutiva da sociedade brasileira, que necessitaria ser analisada através "das diferenças inter e intraclasses sociais (...) diferenças estas que não são mais pensadas a partir de um paradigma unitário";

* a própria concepção do "social", assume uma nova conotação, priorizando a dimensão da diversidade de experiências vividas por "grupos sociais diferenciados por distintas formas de representação e ação";(PAOLI,1987:56)

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* nesta perspectiva, a compreensão dos processos sociais de dominação passa a requerer não mais uma referência exclusiva ao campo do poder, mas a "critérios de inteligibilidade dados pelas condições e pelo trajeto da própria vida dos dominados". Reintroduz-se, assim, o simbólico como centro do trabalho nas ciências sociais, incorporando a questão da cultura como condição para a compreensão das relações sociais entre diferentes e desiguais; * nesta perspectiva, supera-se a divisão instituída pela Antropologia e pelas Ciências Políticas, projetada sobre a realidade, entre a heterogeneidade dos universos culturais e os processos de dominação e poder, ao mesmo tempo em que recupera-se, nas análises, o lugar dos sujeitos interlocutores em seus processos de interação social.

III

Considerando este leque de questões teóricas aqui apontadas, resta sistematizar os componentes básicos para uma análise da identidade social em situação de contato.

Em primeiro lugar, no que se refere à sua conceituação, a identidade social, seja em sua dimensão étnica, nacional ou de gênero, expressa a organização social de um grupo ou de uma sociedade, constituindo-se como um processo de representação coletiva, resultado do próprio reconhecimento social das diferenças. Como tal, a identidade se produz, enquanto algo dinâmico e processual, nas intersecções entre os indivíduos e seus grupos e entre estes e outros grupos considerados diferentes.

A identidade expressa além das formas de produção de bens e das formas de organização da vida coletiva, as concepções e idéias fundamentais para a conduta dos sujeitos: a visão de mundo, o sentido da vida, os projetos, construídos a partir dos saberes, dos valores, das emoções que qualificam a tudo e a todos.

Trata-se, pois, de um fenômeno dinâmico, que estabelece as possibilidades de reconhecimento e localização social, tendo como limites extremos a igualdade e a alteridade. Neste trânsito contínuo, afirma-se como um processo expressivo, que lança mão dos mais variados valores e estratégias na construção de suas configurações.

Em segundo lugar, como já foi afirmado, apesar da concretude de suas configurações, a identidade apresenta-se como uma realidade de não-substancialidade, ou seja, uma realidade que para ser analisada, deve ser tomada como um fenômeno essencialmente simbólico : " ... são construções, são realizações coletivas motivadas, impostas por alguma ou algumas razões externas ou internas ao grupo, mas sempre e inequivocamente realizadas como um trabalho simbólico ..." Embora construída a partir de experiências concretas, originais e específicas, o que caracteriza a identidade é "o perecimento de sua definição que está sempre em processo".(MONTEIRO,1987:15)

Decorre desta característica de não-substancialidade, um terceiro ponto importante : a identidade é construída de forma situacional e contrastiva, isto é, através de uma manipulação simbólica estratégica no interior das relações. A identidade não se afirma isoladamente, surge da oposição de um nós diante dos outros .

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Enquanto tal, pressupõe sempre relações sociais regidas por categorias que disciplinam o "jogo dialético entre semelhanças e diferenças", seja no interior de um mesmo grupo, seja nas relações com outros. Esta contrastividade, decorrência imediata das situações de contato, sejam estas através de processos de interação expoliativa ou não, de processos de comunicação, de interação à distância ou de transposição de fronteiras culturais, desenha um quadro de rica complexidade :

* o processo de identificação se dá através de limites inclusivos, quando o grupo define para si próprio a pertinência ao seu grupo e, limites exclusivos, originados na percepção do outro sobre sí;

* neste processo, tanto elementos positivos quanto elementos negativos, ou estereotipados, são utilizados como mecanismos de identificação. São limites e marcas que pretendem "assinalar a dimensão construída pelos homens e escolhida como privilegiada para individualizar o grupo no concerto da diversidade social." (RUBEN,1986:88)

* esta contrastividade, decorrente de relações entre diferentes que ou se confrontam como desiguais, ou se integram simetricamente ou se evitam radicalmente, comporta sempre um componente especular, resultado do processo de atribuição de significados que definem iguais e diferentes. Além de ser resultado de uma auto e hetero atribuição de sinais e traços distintivos,a Identidade manipula elementos encontrados nos sujeitos e grupos colocados em contato ou em questão,fazendo com que cada um seja,num certo sentido, uma reconstrução,negativa ou positiva, do outro;

* mesmo quando não decorrente ou inauguradora de conflitos, a contrastividade pode gerar relações de hostilidade, pois como afirma Cunha (1978), é típico das relações inter-étnicas a recorrência à hostilidade para a construção do Outro como um diferente.

Uma quarta característica básica da Identidade Social, diz respeito à sua operatividade ou funcionalidade. Além de decorrer das condições materiais, sociais e simbólicas em que se localizam, gerando aí processos de transformação, extermínio ou mesmo de resistência e preservação, a Identidade é também objeto de uma manipulação estratégica ou conjuntural, o que revela, mais uma vez, seu caráter relacional e não-substancial." Além de eminentemente dinâmica, fazendo-se e refazendo-se, de acordo com as necessidades de diferenciação e /ou demandas de legitimação ",a identidade, ou melhor, sua manutenção ou transformação atende a conveniências, vividas por sujeitos que colocados em contato, vivem a experiência social de serem minorias e/ou "estrangeiros", tanto em situações de transferência de um grupo a outro, em trânsito contínuo de seu grupo para outros grupos ou mesmo de convivência e integração com grupos diferentes.

A identidade possui, da mesma forma como a cultura que a engloba, além de seu caráter compulsório, um espaço de manipulação, de operatividade, que permite a abertura de espaços concretos para que os sujeitos continuem se reconhecendo distintivamente, mesmo que assumindo, concomitantemente "múltiplas possibilidades de classificação/ identificação ao longo de um mesmo eixo de significação..."

Uma quinta característica a ser destacada nos remete à percepção do lugar do indivíduo no processo de identificação. A identidade, tomada como um

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repertório articulado e dinâmico de concepções, conceitos e valores, que possui uma existência anterior e exterior ao indivíduo (ou seja, se origina no grupo social), se consolida como uma experiência pessoal através de processos inter-subjetivos de incorporação e aprendizagem. Isto quer dizer que, apesar de seu caráter de anterioridade ao indivíduo, a identidade só se reproduz enquanto fenômeno cultural se objeto de participação subjetiva. Diferentes sujeitos, pertencentes a uma mesma etnia, ou a um mesmo grupo social, vivem de maneira também diferente o "problema" da identidade: recortam, reconstroem, reforçam elementos diferentes destes repertórios. Introduz-se assim a questão da diversidade no interior de uma mesma configuração identificatória.

Por fim, decorre desta perspectiva, que a análise da identidade deve se dirigir sempre á compreensão dos referenciais utilizados para a sua construção, sua diversidade e manipulação no interior do próprio grupo social a que se refere, e ao processo de comunicação que estabelece com o que lhe é exterior.

Neste sentido, algumas configurações parecem se erigir como recorrentes, apesar de não dominantes e nem homogêneas, nos diversos grupos sociais, como se fossem variáveis recorrentes de uma equação algébrica, que alteram seus valores e seu próprio sentido em função das demais variáveis em questão. Trata-se de estudar a Identidade através da pesquisa sobre os princípios de identificação e os vários processos e níveis de inclusão e exclusão em que estes princípios operam. (SEEGER,1984)

Dentre um espectro variável de princípios e configurações que os estudos de identidade revistos para a construção do marco teórico deste trabalho, podem ser destacados:

* A DIMENSÃO DO TEMPO, DA HISTÓRIA E DA MEMÓRIA onde a Identidade constrói uma espécie de continuidade temporal designando semelhanças, definindo tradições, identificando continuidades e rupturas, tomadas como fundamentais. Nesta dimensão, como mostram Cunha (1985) e Duarte (1986B), as tradições, o passado, são sempre objeto de uma reinvenção operada pelas condições do presente : " Mais do que podermos dizer que o presente é reflexo ampliado do passado,deveríamos poder perceber que é este que se ilumina dos reflexos ativos do presente." (DUARTE:1987:38) Nesta dimensão o passado é tomado como um "ator ideológico" que é problematizado e legitimado na atualidade, tendo como referência a conceituação e a experiência de organização do tempo vivido no presente. A lembrança de um outro tempo, não se constrói em dissociação com a experiência do tempo vivido no presente.

* A DIMENSÃO DA TERRITORIALIDADE tomada, juntamente com a questão da historicidade, como um dos elementos cruciais no engendramento da Identidade, em cujo cruzamento, a memória se exercita (SILVA,1984). O fato de se pertencer a um determinado espaço geográfico, histórico, econômico e afetivo, ou mesmo a incapacidade de recuperar a ligação do indivíduo ou grupo com um respectivo território, são elementos importantes na construção da identidade. E.E.Evans-Pritchard, em seu clássico estudo etnográfico sobre os Nuer, afirma que a identidade Nuer passa pela construção de um sentimento e compartilhamento de uma mesma região. "O sentimento tribal baseia-se tanto na oposição às outras tribos, como

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no nome comum, no território comum, na ação conjunta na guerra, e na estrutura comum de linhagem de um clã dominante."

* CONFIGURAÇÕES DIVERSAS Segundo Velho (VELHO,1986:51), "todos os processos internos de diferenciação de uma sociedade são relevantes." Nesta perspectiva, são várias as configurações de valores, que transformados em "símbolos identificatórios", são chamados à cena dos processos de identificação. Se não tão inclusivos como a dimensão da história e da territorialidade, suficientemente recorrentes e operantes ao nível de agenciamentos, enunciações e organização social do cotidiano.

Nessa medida, a visão que cada um tem de sí e do Outro, opera de forma contrastiva e relacional através das concepções e práticas de religiosidade e fé, ideologias de superioridade e inferioridade, associadas à capacidade de trabalho e propriedade de terra, regionalismos impressos no idioma/dialeto, em rivalidades ritualizadas ou lúdicas, no casamento, no compadrio, nas relações de parentesco em geral, nos rituais e festas coletivas, e nas apropriações e utilizações de categorias de classificação, próprias de sujeitos e grupos que se interpõem entre diferentes ou que agenciam seus contatos.

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A MUDANÇA DA CULTURA E A CULTURA DA MUDANÇA3

José Márcio Barros4

-"...yo he preferido hablar de cosas imposibles porque de lo posible se sabe demasiado..."(Silvio Rodriguez, poeta cubano)

Sempre gostei de brincar com a ordem das coisas. Melhor ainda, sempre gostei de re-inventar a ordem prevista das coisas. Comer o frio depois do quente, o doce junto ao salgado. Escrever com a mão esquerda quando se é destro, priorizar o periférico ao cêntrico, ler jornais de trás para frente, preferir ouvir a ter que falar. Lá se vão décadas de inversões. Inverter as coisas, as palavras, as pessoas, foi se transformando em mecanismo de busca de sentidos. Modo através do qual fui procurando construir meu lugar no mundo, e o lugar do mundo em mim. De tanto brincar, inverter virou mania, e de mania, inverter as coisas virou identidade.Na verdade, fui compreendendo que inverter as coisas é um modo de se ter acesso à realidade. Um modo de realizar o conhecimento da realidade pela negação de sua atraente e sedutora aparência de permanência e essencialidade. O jogo de inversões foi se transformando em estratégia de desdobramento, ampliação e abertura para os sentidos. Fui reconhecendo na inversão, recusa. Mas não uma recusa que se ausenta da coisa invertida. Mas a inversão como forma de habita-la. Inversão como forma de dobrar e desdobrar a realidade. Como forma de deixar verter o sentido da realidade como resultado de relações que estabelecemos e não como qualidade preexistente. Não se trata, pois, de simples estilo discursivo, mas de estratégia de busca de sentidos. Pensar em várias direções, pelo verso e pelo re-verso. Por tudo isso, é que aqui também vou fazer uso dessa séria brincadeira.

I

Começo, então, por diferenciar a mudança da cultura de uma cultura da mudança. Por cultura penso, como a Antropologia o faz, um processo através do qual o homem atribui sentidos ao mundo. Códigos através dos quais pessoas, grupos e sociedades classificam e ordenam a realidade. A cultura é a instância onde o homem realiza sua humanidade.Como fenômeno anterior e exterior ao indivíduo, a cultura realiza-se quando incorporada e tornada identidade. A cultura muda quando tornada esquecimento.Não existem culturas estáticas, existem sim, sociedades que vivem de lembrar e outras que vivem de esquecer. Lembrar e esquecer são dois momentos de toda e qualquer cultura. Quando o lembrar é que define a organização social, a memória e a identidade

3 Conferência de Abertura do 5° Congresso Brasileiro de Ação Pedagógica, promovido pelo Centro de Pesquisa e Formação de Educadores Balão Vermelho ( [email protected] ) em julho de 2001 4 Antropólogo, Professor da PUC Minas e da Escola Guignard. Consultor, Diretor da OUTRO – Consultoria e Projetos ( [email protected] )

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das pessoas e seus grupos, estamos diante de uma sociedade tradicional. Uma sociedade que elege, de forma exclusiva, o passado como centro configurador de sentidos, é uma sociedade que se recusa a mudar. Uma sociedade ancorada em permanências. No sentido oposto, uma sociedade que não valoriza o passado, é uma sociedade que faz da superfície do presente e da imagem do futuro, seu centro configurador de identidades e sentidos. É, portanto, uma sociedade que faz da mudança seu modo de existir.Estamos falando de extremos, aquelas que se recusam a mudar e outras que se recusam a permanecer, para deixar claro que não existem culturas estáticas. Toda cultura muda. Mais ou menos lentamente, de forma mais ou menos visível. Motivadas por trocas culturais desastrosas, ou por sincretismos singulares. Por sutis processos históricos, ou por avassaladores acontecimentos.É como se a mudança fizesse parte da “natureza” da cultura. O que é diferente de cultura para cultura e também de instituição para instituição, é o tipo de movimento que resulta na mudança e os resultados da mudança.Passo agora a estabelecer algumas analogias.Quando uma sociedade ou uma instituição faz das diferenças uma ameaça, protege-se através de “biombos da tradição”, estamos diante de uma sociedade ou instituição que se recusa à história, ou melhor, que faz de sua história a única história. São as sociedades e instituições tribais, ortodoxas, e totalitárias.Por outro lado, sociedades e instituições que vivem do culto à mudança, são sociedades e instituições aprisionadas à incompetência de lidar com a memória. São sociedades de mercado, onde o consumo é que define a produção e o mercado configura-se como a principal instituição.Como é possível perceber, possibilidades e limites estão presentes em ambos os modelos.No modelo da tradição, encontramos sujeitos, grupos, instituições e sociedades que sabem de onde vieram e o que devem fazer para manter suas pegadas, seus rastros. Organizam sua vida de tal forma a preservar sentidos originais e manter as raízes que lhes dão sustentação. Oferecem a seus integrantes o sentido necessário de pertencimento.Mas tais realidades sociais são também, expressões de posturas exclusivas, que transformam diferenças em desigualdades. Transformam-se em sociedades e instituições incapazes de compreender o diferente, ou sociedades intolerantes com a diferença. Daí a proximidade com o poder. Ora a tradição revela incapacidade cultural de conceber o Outro, ora a vontade de domina-lo.

Por outro lado, contemporaneamente, emerge um novo modelo cultural, fruto de uma radical transformação na experiência com o tempo e com o espaço, motivada pelo que os especialistas chamam da globalização ou da mundialização.Emergem sociedades, e por conseqüência instituições, marcadas pela descontinuidade, pela fragmentação, pela pluralidade, pela simultaneidade. Um mundo que, gradativamente, comprime o tempo e dissolve fronteiras, é um mundo que inaugura o fenômeno das identidades múltiplas. Um mundo que produz em parte de

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seus integrantes uma outra experiência identitária, não mais ancorada no fechamento e acabamento iluminista, mas na abertura e inacabamento da pós-modernidade. Cultura, sociedades, instituições, grupos e indivíduos contemporâneos caracterizam-se pela abertura. Entretanto, grande parte dessa abertura é definida pelo mercado de consumo, e não mais pelas instituições tradicionalmente responsáveis pela formação de sujeitos nas sociedades. Tal predominância da instituição mercado vem instituindo o que Nestor Garcia Canclini chama da experiência da CULTURA DO EFÊMERO: o consumo incessante, a “ditadura” da renovação, a transformação da experiência cultural em experiência do lazer e entretenimento. Sociedades contemporâneas são sociedades onde grande parte de nossa experiência identitária e de cidadania foi deslocada para as relações de consumo. Nestas sociedades, e em suas instituições, as mudanças não geram transformações. São mudanças conservadoras, motivadas por circunstâncias e não por conceitos. Tudo isso nos sugere que, se todas as culturas mudam, é preciso ter a capacidade de compreender seus sentidos, seja quando relacionada à sociedade como um todo, seja quando relativa aos sujeitos e instituições. Não é difícil perceber que entre estes dois extremos aqui explorados, a recusa e a adesão total à mudança, um outro caminho que equilibre tradição e tradução constitui-se no que há de mais rico na experiência cultural hoje.

II

Neste ponto podemos introduzir a questão da cultura da mudança. A partir das questões aqui levantadas, pensar numa cultura da mudança, significa pensar na maneira como sociedades, instituições e sujeitos constróem sentidos para o mudar. Ou melhor, como a mudança pode assumir o sentido de uma busca, algo intencionado, uma disponibilidade para a transformação, ou apenas, um discurso evasivo, atualizado por uma espécie de “literatura de auto-ajuda organizacional”. A cultura da mudança que aqui nos interessa, imagino ser da primeira categoria, aquela que se interessa em forjar futuros e não apenas em reproduzir modismos. A cultura da mudança na qual acredito e me engajo, enquanto antropólogo e educador, é aquela resultado de trabalho e inquietações, e não de acomodações sejam elas tradicionais ou contemporâneas. Mudança no sentido aqui proposto é menos uma questão técnica e mais um regime de sensibilidade que se desdobra em fazeres, um modelo de ação e representação.A cultura da mudança é, portanto, resultado de uma disponibilidade para o futuro, para o novo, para o desconhecido. Resulta da capacidade de abertura para o mundo. Não se trata da afirmação da ditadura da mudança, do equívoco de se tomar a mudança como sinônimo de excelência. Trata-se sim, de se reconhecer que sociedades e instituições são desafiadas continuamente pela história. Arthur da Távola em uma de suas inúmeras crônicas, chama a atenção para o fato de que no processo de construção de nossas identidades, costumamos transformar nossas verdades em dogmas. E nesse processo, quanto mais temos a sensação de liberdade, de domínio sobre o mundo, mais nos escravizamos a nós mesmos. Quanto mais experimentamos a liberdade de sabermos quem somos, mais nos aprisionamos a nós mesmos.

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Portanto, há mudanças e mudanças. Mudanças que produzem movimento e mudanças que paralisam.

III

É hora de pensarmos o segundo termo de nossa equação, a escola e a cultura escolar. É hora de investigar o pressuposto deste Congresso: é através da transformação da Cultura escolar que as inovações pedagógicas podem ocorrer e gerar transformações. Mas é preciso indagar sobre a possibilidade e a capacidade da instituição escolar em transformar sua cultura. Por Cultura Escolar entendo um conjunto de valores e regras que compartilhados coletivamente, permitem a produção de sentidos e a construção de identidades individuais e coletivas e, assim fazendo, assegurar a vida coletiva no interior das escolas. A cultura escolar diz respeito à maneira como sujeitos, praticas e representações são construídas e instituem a singularidade da educação no interior da escola. Ou seja, é simultaneamente ação e representação, é simultaneamente individual e coletiva, objetiva e subjetiva.Entender a Cultura Escolar significa, portanto, toma-la como processo através do qual a instituição escolar e seus sujeitos atribuem significados às suas ações, através de um atributo eminentemente humano, o processamento simbólico. Isso quer dizer que, como tal, a Cultura Escolar constitui-se como um conjunto de símbolos, de ritos e de mitos que buscam oferecer de forma estável o necessário reconhecimento da singularidade da escola, da educação, do aluno, do professor, etc. Ou seja, é através da Cultura Escolar que podemos reconhecer dentre uma diversidade de práticas sociais, aquelas que chamamos de educação escolar, posto que, atendem a princípios e atributos que todos nós compartilhamos. A Cultura Escolar instaura, através das ações e representações de seus sujeitos, um território de inteligibilidades próprias, permitindo que se saiba definir o que é escola, o que é educação, o que e quem é o aluno, o professor, e conseqüentemente, o que é e o que não é próprio do ambiente escolar. A Cultura Escolar, ao substituir o caos aparente das coisas, pelos sentidos previsíveis e esperados, constitui-se como um princípio ordenador, um mecanismo de controle que visa tornar possível a adequação do sujeito à instituição. A estabilidade da Cultura Escolar encontra-se justamente na capacidade de fornecer a todos, argumentos, práticas e símbolos suficientemente coesos, modelares e compartilhados coletivamente. A Cultura Escolar constitui-se como um patrimônio que possui simultaneamente anterioridade e exterioridade aos sujeitos, mas que só se consolida quando introjetada por cada um. Pode ser afirmada como um sistema de representações, ou seja, como um conjunto de regras de criação e interpretação da realidade que revela sempre princípios lógicos ordenadores. Ou seja, a Cultura Escolar ao ordenar a realidade a partir de uma racionalidade própria, cria um campo semântico também próprio. Isso quer dizer, que a Cultura Escolar é uma espécie de sistema de classificação, e como tal um sistema de comunicação, ou seja, um sistema de trocas de informações e mensagens que possibilita o coletivo.Estamos trabalhando com uma perspectiva dessubstancializada da Cultura Escolar. Ou seja, uma visão que prioriza sua dimensão processual e simbólica, enquadrando o

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objetivo e material como expressões dessas representações. O cotidiano da escola, suas práticas, seus fazeres, seus acontecimentos ordinários e extra-ordinários, são aqui tomados como expressões de algo que lhes é maior e estruturante, a própria Cultura Escolar. O que isso quer dizer ?

Em primeiro lugar, uma recusa à fetichização da prática. Tudo que se faz no interior da escola é sempre melhor compreendido enquanto representação de uma outra coisa. Ou seja, é a troca da visão iluminista e essencialista de que a realidade existe enquanto unidade, pela perspectiva significacional de tomar a realidade, como um empreendimento de sentidos.

Em segundo lugar, uma recusa à centralidade única. A afirmação do necessário cuidado não só com aquilo que é visível, dito e oficial, mas também com aquilo que de forma periférica, intersticial, e não dita, expressa tanto a instituição, suas regras e suas leis.

Em terceiro lugar, uma recusa ao exclusivismo escolar. O reconhecimento de que a educação não cabe dentro da escola. Que escola é menos um lugar e mais um espaço, é menos uma organização e mais uma instituição.

Por fim, uma recusa ao raciocínio singular. Falar de Cultura Escolar é, necessariamente, falar de Culturas Escolares. Falar das diferentes, e divergentes, formas como no interior da instituição escolar, construímos nossas praticas pedagógicas, como expressões de nossas representações.

O que é curioso e perigoso nisso tudo, é o fato de que, na fundamental tarefa de atribuir sentidos à educação escolar, pois caso contrário não construímos nossa identidade e não saberemos o que nos diferencia de outras práticas e instituições sociais, a escola e seus especialistas, costumam assumir um comportamento autista e prepotente. Priorizamos a escola ora como lugar exclusivo do saber, ora como lugar de um saber exclusivo. Esquecemos de outros processos, de outros lugares e de outros sujeitos que também ensinam e aprendem, mas que não estão no interior da instituição escolar. Pode parecer antigo, mas me arrisco a dizer que a escola ainda não sabe dialogar com outras centralidades do saber presentes na sociedade. Não quero parecer antigo acusando a escola de exclusão, quero apenas lembrar um paradoxo: a escola expressa a sociedade na mesma intensidade que se recusa a ela. A questão é mais complexa. A Cultura Escolar sofre de um perigoso processo de afirmar a presença do coletivo, do social, do cultural pela sua negação. Quanto mais auto-referente, quanto mais auto-suficiente, quanto mais onipresente, mais a escola se enfraquece como lugar de saberes e trocas. Quanto mais ela se traveste de certezas e especialidades, mais ela oferece soluções mesmo que todos desconfiem de sua inutilidade e insuficiência.

É hora de tentar colocar uma ordem final em minhas reflexões.

Tenho boas razões para afirmar que este Congresso parece se inserir nesta perspectiva que aqui afirmei, ou seja, ao optar por pensar a escola através da Cultura

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Escolar há uma deliberada opção por reconhecer a característica complexa, orgânica e simbólica de sua realidade. Resta saber como estabeleceremos essas relações entre a Cultura, a mudança e as inovações pedagógicas. Segundo Clarice Lispector – “Mude, mas comece devagar. Porque a direção é mais importante que a velocidade. “

Arrisco aqui algumas afirmações.

Mudanças e permanências são próprias de toda e qualquer cultura; Como afirmei mais atrás, a recusa à mudança, tanto quanto o modismo

da mudança, revelam mais o traço conservador que transformador da cultura; Na grande maioria das vezes as buscas por transformações na educação

escolar, esbarraram nesse traço conservador travestido de modernidade. Sempre foram mais a expressão de modismos e discursos de auto-ajuda, invencionismos tecnocráticos que propriamente resultado do processo de mudança cultural;

Mudança cultural significa mudança de paradigmas, de conceitos, de formas de se conceber a realidade e, portanto, de agir na realidade. Inovações pedagógicas desprovidas de mudanças conceituais limitam-se a oferecer receituários “pedagocêntricos e magistéricos”;

O lugar da mudança na escola é a cultura. Tais mudanças instauram transformações sociais quando não se limitam a técnicas e estratégias, quando expressam olhares, valores, conceitos.

Reconhecer que vivemos no mundo contemporâneo, não pode significar para as escolas, a adoção alienada dos modismos de mudança, tão propagadas pelo mercado de bens simbólicos. Significa sim, revigorar a capacidade de abrir a instituição às trocas cada vez mais intensas e múltiplas. Significa reconhecer de forma crítica o sentido das mudanças. Saber distinguir aquelas mudanças que nos tornam menos humanos, daquelas que nos fazem superar nossos limites históricos.

É assim que penso a MUDANÇA NA CULTURA E A CULTURA DA MUDANÇA. É assim que penso a possibilidade de que a Cultura Escolar possa ser o lugar de transformações sociais. Como diz nosso iconográfico Guimarães Rosa : “Não se toca boi à força nem para pasto melhor“

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Arte, Educação e Cultura Profª Ana Mae Barbosa*

Educação para o desenvolvimento de diferentes códigos culturais A Educação poderia ser o mais eficiente caminho para estimular a consciência cultural do indivíduo, começando pelo reconhecimento e apreciação da cultura local. Contudo, a educação formal no Terceiro Mundo Ocidental foi completamente dominada pelos códigos culturais europeus e, mais recentemente, pelo código cultural norte-americano branco A cultura indígena só é tolerada na escola sob a forma de folclore, de curiosidade e esoterismo; sempre como uma cultura de segunda categoria. Em contraste, foi a própria Europa que, na construção do ideal modernista das artes, chamou a atenção para o alto valor das outras culturas do leste e do oeste, por meio da apreciação das gravuras japonesas e das esculturas africanas. Desta forma, os artistas modernos europeus foram os primeiros a criar uma justificação a favor do multiculturalismo, apesar de analisarem a "cultura" dos outros sob seus próprios cânones de valores. Somente no século vinte, os movimentos de descolonização e de liberação criaram a possibilidade política para que os povos que tinham sido dominados reconhecessem sua própria cultura e seus próprios valores.

Leitura cultural, identidade cultural, ecologia cultural A busca de identidade cultural passou a ser um dos objetivos dos países recém-independentes", cuja cultura tinha sido até então, institucionalmente definida pelos poderes centrais e cuja história foi escrita pelos colonizadores. Contudo, a identidade cultural não é uma forma fixa ou congelada, mas um processo dinâmico, enriquecido através do diálogo e trocas com outras culturas. Neste sentido, a identidade cultural também é um problema para o mundo desenvolvido. Apesar disso, a preocupação com o estímulo cultural através da educação tem sofrido uma diferente abordagem nos mundos industrializados e em vias de desenvolvimento, revelando diversos significados através de diferenças semânticas. Enquanto no Terceiro Mundo falamos sobre a necessidade de busca pela identidade cultural, os países industrializados falam sobre a leitura cultural e ecologia cultural. Assim, no mundo industrializado a questão cultural é centrada no fornecimento de informações globais e superficiais sobre diferentes campos de conhecimento (cultural literacy) e na atenção equilibrada às diversas culturas de cada país (ecologia cultural). No Terceiro Mundo, no entanto, a identidade cultural é o interesse central e significa necessidade de ser capaz de reconhecer a si próprio, ou, finalmente, uma necessidade básica de sobrevivência e de construção de sua própria realidade. Os três termos aos quais nos referimos acima convergem em um ponto comum: a noção de diversidade cultural. Sem a flexibilidade para encarar a diversidade cultural existente em qualquer país não é possível tanto uma identificação cultural como uma leitura cultural global ou, ainda, uma cultura ecológica. Diversidade cultural: multiculturalismo, pluriculturalidade e interculturalidade Aqui, para definir a diversidade cultural, nós temos que navegar novamente através de uma complexa rede de termos. Alguns falam sobre multiculturalismo, outros sobre pluriculturalidade, e temos ainda o termo mais apropriado - Interculturalidade. Enquanto os termos "Multicultural" e "Pluricultural" significam a coexistência e mutuo entendimento de diferentes culturas na mesma sociedade, o termo "Intercultural" significa a interação entre as diferentes culturas. Isto deveria ser o objetivo da

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educação interessada no desenvolvimento cultural. Para alcançar tal objetivo, é necessário que a educação forneça um conhecimento sobre a cultura local, a cultura de vários grupos que caracterizam a nação e a cultura de outras nações. Interculturalidade: alta e baixa cultura No que diz respeito à cultura local, pode-se constatar que apenas o nível erudito desta cultura é admitido na escola. As culturas de classes sociais baixas continuam a ser ignoradas pelas instituições educacionais, mesmo pelos que estão envolvidos na educação destas classes. Nós aprendemos com Paulo Freire a rejeitar a segregação cultural na educação. As décadas de luta para salvar os oprimidos da ignorância sobre eles próprios nos ensinaram que uma educação libertária terá sucesso só quando os participantes no processo educacional forem capazes de identificar seu ego cultural e se orgulharem dele. Isto não significa a defesa de guetos culturais ou negar às classes baixas o acesso à cultura erudita. Todas as classes têm o direito de acesso aos códigos da cultura erudita porque esses são os códigos dominantes - os códigos do poder. É necessário conhecê-los, ser versado neles, mas tais códigos continuarão como um conhecimento exterior a não ser que o indivíduo tenha dominado as referências culturais da sua própria classe social, a porta de entrada para a assimilação do "outro". A mobilidade social depende da inter-relação entre os códigos culturais das diferentes classes sociais . Interculturalidade: a cultura do colonizador e do colonizado A diversidade cultural presume o reconhecimento dos diferentes códigos, classes, grupos étnicos, crenças e sexos na nação, assim como o diálogo com os diversos códigos culturais das várias nações ou países, que incluem até mesmo a cultura dos primeiros colonizadores. Os movimentos nacionalistas radicais que pretenderam o fortalecimento da identidade cultural de um país em isolamento, ignoram o fato de que o seu passado já havia sido contaminado pelo contato com outras culturas e sua história interpenetrada pela história dos colonizadores. Por outro lado, os colonizadores não podem esquecer que, historicamente, eles foram obrigados a incorporar os conceitos culturais que o oprimido produziu acerca daqueles que os colonizaram.

Interculturalidade e cultura do Outro A demanda para identificação, isto é "ser para um Outro"-assegura a representação do sujeito, diferenciado do "Outro" , em alteridade "Identidade é ser para si mesmo e para o Outro; consequentemente, a identidade é encontrada entre nossas diferenças" . A função das artes na formação da imagem da identidade lhe confere um papel característico dentre os complexos aspectos da cultura. Identificação é sempre a produção de "uma imagem de identidade e transformação do sujeito ao assumir ou rejeitar aquela imagem reconhecida pelo outro". O papel da arte no desenvolvimento cultural

Através das artes temos a representação simbólica dos traços espirituais, materiais, intelectuais e emocionais que caracterizam a sociedade ou o grupo social, seu modo de vida, seu sistema de valores, suas tradições e crenças. A arte, como uma linguagem presentacional dos sentidos, transmite significados que não podem ser transmitidos através de nenhum outro tipo de linguagem, tais como as linguagens discursivas e científica. Não podemos entender a cultura de um país sem conhecer sua arte. Sem conhecer as artes de uma sociedade, só podemos ter conhecimento parcial de sua

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cultura. Aqueles que estão engajados na tarefa vital de fundar a identificação cultural, não podem alcançar um resultado significativo sem o conhecimento das artes. Através da poesia, dos gestos, da imagem, as artes falam aquilo que a história, a sociologia, a antropologia etc., não podem dizer porque elas usam um outro tipo de linguagem, a discursiva, a científica, que sozinhas não são capazes de decodificar nuances culturais. Dentre as artes, a arte visual, tendo a imagem como matéria-prima, torna possível a visualização de quem somos, onde estamos e como sentimos. A arte na educação como expressão pessoal e como cultura é um importante instrumento para a identificação cultural e o desenvolvimento. Através das artes é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. "Relembrando Fanon", eu diria que a arte capacita um homem ou uma mulher a não ser um estranho em seu meio ambiente nem estrangeiro no seu próprio país. Ela supera o estado de despersonalização, inserindo o indivíduo no lugar ao qual pertence. Arte-Educação e a consciência de cidadania Contudo, não é só incluindo arte no curriculum que a mágica de favorecer o crescimento individual e o comportamento de cidadão como construtor de sua própria nação acontece. Além de reservar um lugar para a arte no curriculum, o que está longe de ser realizado de fato, até mesmo pelos países desenvolvidos, é também necessário se preocupar como a arte é concebida e ensinada. Em minha experiência tenho visto as artes visuais sendo ensinadas principalmente como desenho geométrico, ainda seguindo a tradição positivista, ou a arte nas escolas sendo utilizada na comemoração de festas, na produção de presentes estereotipados para os dias das mães ou dos pais e, na melhor da hipóteses, apenas como livre expressão. A falta de preparação de pessoal para ensinar artes é um problema crucial, nos levando a confundir improvisação com criatividade. A anemia teórica domina a arte-educação que está fracassando na sua missão de favorecer o conhecimento nas e sobre artes visuais, organizado de forma a relacionar produção artística com apreciação estética e informação histórica. esta integração corresponde à epistemologia da arte. O conhecimento das artes tem lugar na interseção da experimentação, decodificação e informação. Nas artes visuais, estar apto a produzir uma imagem e ser capaz de ler uma imagem são duas habilidades interrelacionadas. Leitura Visual Em nossa vida diária, estamos rodeados por imagens impostas pela mídia, vendendo produtos, idéias, conceitos, comportamentos, slogans políticos etc. Como resultado de nossa incapacidade de ler essas imagens, nós aprendemos por meio delas inconscientemente. A educação deveria prestar atenção ao discurso visual. Ensinar a gramática visual e sua sintaxe através da arte e tornar as crianças conscientes da produção humana de alta qualidade é uma forma de prepará-las para compreender e avaliar todo o tipo de imagem, conscientizando-as de que estão aprendendo com estas imagens. Um currículo que integre atividades artísticas, história das artes e análise dos trabalhos artísticos levaria à satisfação das necessidades e interesses das crianças, respeitando ao mesmo tempo os conceitos da disciplina a ser aprendida, seus valores, suas estruturas e sua específica contribuição à cultura. Dessa forma, realizaríamos um equilíbrio entre as duas teorias curriculares dominantes: aquela centrada na criança e a centrada na disciplina(matéria). este equilíbrio curricular começou a ser defendido no

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reino Unido pelo Basic Design Movement durante os anos 50, quando Harry Thubron, Victor Pasmore, Richard Hamilton, Richard Smith, Joe Tilson e Eduardo Paolozzi desenvolveram sua arte de ensinar a arte. Eles associaram atividades artísticas com o ensino dos princípios do design e informação científica sobre o ver, tudo isso com ajuda da tecnologia. Seus alunos estudavam gramática visual, sua sintaxe e seu vocabulário, dominando elementos formais, tais como: ponto, linha, espaços positivo e negativo, divisão de áreas, cor, percepção e ilusão, signos e simulação, transformação e projeção nas imagens produzidas pelos artistas e também pelos meios de comunicação e publicidade. Eles foram acusados de racionalismo, mas hoje, após quase setenta anos de arte-educação expressionista nas escolas do mundo industrializado, chegamos à conclusão que expressão "espontânea" não é uma preparação suficiente para o entendimento da arte. Apreciação da arte e desenvolvimento da criatividade Apreciar, educar os sentidos e avaliar a qualidade das imagens produzidas pelos artistas é uma ampliação necessária à livre-expressão, de maneira a possibilitar o desenvolvimento contínuo daqueles que, depois de deixar a escola, não se tornarão produtores de arte. Através da apreciação e decodificação de trabalhos artísticos, desenvolvemos fluência, flexibilidade, elaboração e originalidade - os processos básicos da criatividade. Além disso, a educação da apreciação é fundamental para o desenvolvimento cultural de um país. Este desenvolvimento só acontece quando uma produção artística de alta qualidade é associada a um alto grau de entendimento desta produção pelo público. Arte-Educação preparando o público para a Arte Uma das funções da arte-educação é fazer a mediação entre a arte e o público. Museus e centros culturais deveriam ser os líderes na preparação do público para o entendimento do trabalho artístico. Entretanto, poucos museus e centros culturais fazem esforço para facilitar a apreciação da arte. As visitas guiadas são tão entendiantes que a viagem de ida e volta aos museus é de longe mais significativa para a criança. Mas, é importante enfatizar que os museus e centros culturais são uma contribuição insubstituível para amenizar a idéia de inacessibilidade do trabalho artístico e o sentimento de ignorância do visitante. Aqueles que não tem educação escolar têm medo de entrar no museu. Eles não se sentem suficientes conhecedores para penetrar nos "templos da cultura". É hora dos museus abandonarem seu comportamento sacralizado e assumirem sua parceria com escolas, porque somente as escolas podem dar aos alunos de classe pobre a ocasião e auto-segurança para entrar em um museu. Os museus são lugares para a educação concreta sobre a herança cultural que deveria pertencer a todos, não somente a uma classe econômica e social privilegiada. Os museus são lugares ideais para o contato com padrões de avaliação da arte através da sua história, que prepara um consumidor de arte crítico não só para a arte de ontem e de hoje, mas também para as manifestações artísticas do futuro. O conhecimento da relatividade dos padrões da avaliação dos tempos torna o indivíduo flexível para criar padrões apropriados para o julgamento daquilo que ele ainda não conhece. Tal educação, capaz de desenvolver a auto-expressão, apreciação, decodificação e avaliação dos trabalhos produzidos por outros, associados à contextualização histórica, é necessária não só para o crescimento individual e enriquecimento da nação, mas também é um instrumento para a profissionalização. Arte para o desenvolvimento profissional

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Um grande número de trabalhos e profissões estão direta ou indiretamente relacionados à arte comercial e propaganda, out-doors, cinema, vídeo, à publicação de livros e revistas, à produção de discos, fitas e Cds, som e cenários para a televisão, e todos esses campos do design para a moda e indústria têxtil, design gráfico, decoração etc. Não posso conceber um bom designer gráfico que não possua algumas informações de História da Arte, como por exemplo, o conhecimento sobre a Bauhaus. Não só designers gráficos mas muitos outros profissionais similares poderiam ser mais eficientes se conhecessem, fizessem arte e tivessem desenvolvido sua capacidade analítica através da interpretação dos trabalhos artísticos em seu contexto histórico. Tomei conhecimento de uma pesquisa que constatou que os camara men da televisão são mais eficientes quando têm algum contato sistemático com apreciação da arte. A interpretação de obras de arte e a informação histórica são inseparáveis; sendo uma a abordagem diacrônica horizontal do objeto e a outra sua projeção sincrônica vertical. A intercessão dessas duas linhas de investigação produzirá um entendimento crítico de como os conceitos formais, visuais e sociais aparecem na arte, como eles têm sido percebidos, redefinidos, redesignados, distorcidos, descartados, reapropriados, reformulados, justificados e criticados em seus processos construtivos. Essa abordagem de ensino ilumina a prática da arte, mesmo quando esta prática é meramente catártica. Arte para o desenvolvimento emocional e afetivo Aqueles que defendem a arte na escola meramente para libertar a emoção devem lembrar que podemos aprender muito pouco sobre nossas emoções se não formos capazes de refletir sobre elas. Na educação, o subjetivo, a vida interior e a vida emocional devem progredir, mas não ao acaso. Se a arte não é tratada como um conhecimento, mas somente como um "grito da alma", não estamos oferecendo nem educação cognitiva, nem educação emocional. Foi Wordsworth que, apesar de seu romantismo, disse: "A arte tem que ver com emoção, mas não tão profundamente para nos reduzirmos a lágrimas".* Ana Mae Barbosa é Professora Titular da Universidade de São Paulo, autora de vários livros, entre eles Tópicos utópicos (1998) e Arte Educação: Leitura no subsolo (1999). Ganhadora do Prêmio Interncional Sir Herbert Read (1999).

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Arte: imagem e produção artística na diversidadeRoberta Puccetti

Mestre em Educação pela PUC-Campinas, SP.Doutora em Educação pela UNIMEP – Piracicaba, SP.

IntroduçãoA busca por um modelo de escola inclusiva tem suscitado inúmeras reflexões e

abordagens. Este artigo se insere nesse contexto. A abordagem que empreendemos tem como eixo central a arte e sua relação com o processo de ensino, linguagem, aprendizagem e desenvolvimento dos deficientes mentais.

A questão da deficiência mental se situa no campo mais amplo e complexo da diversidade. É o recorte que promovemos para tratar da arte, produção artística e imagem, enquanto mediadores no processo de construção do conhecimento dos deficientes mentais. Nesta perspectiva, tomamos a arte, também, como expressão, por excelência, da subjetividade. Expressão que possibilita múltiplas leituras; que em seu processo de produção transita entre a sensibilidade e a razão. E é justamente nessa mobilidade entre o sensível e o racional que reside o seu potencial transformador e inclusivo, onde não há diferenças entre os sujeitos, mas apenas singularidades.

A subjetividade, por seu turno, se constitui socialmente por meio da linguagem. A linguagem é, então, meio de constituição do sujeito, modo de refletir sobre a realidade, sobre o mundo e sobre si mesmo. Porém, mais que meio de expressão, a linguagem representa a organização dos processos mentais. Desse modo, aprender a linguagem artística desvela a capacidade de expressão inerente aos homens, pois atua em sua dimensão criativa.

O processo de produção artística é em si um processo de conhecimento, visto que compreende uma série de ações/operações conectadas ao sujeito, que compreende, relaciona, ordena, classifica, transforma e cria. O sujeito participa ativamente desse processo, percebe a realidade, sua capacidade de transformar, inovar. Enfim, percebe-se como ser criativo e que seus limites podem ser superados. Em relação aos deficientes mentais, a arte atua do mesmo modo: desenvolve o raciocínio lógico, a percepção visual, memória, motricidade, capacidade de comunicação e a autonomia. Sob esta perspectiva, a diferença e a diversidade se apresentam plenas de possibilidade e o ensino de arte como um novo referencial para a inclusão.

Este artigo se sustenta nesses pressupostos, na concepção da arte como linguagem, mediadora do conhecimento, uma vez que a aprendizagem não se resume às operações mentais, mas também envolve a dimensão sensível do sujeito, que observa o mundo, que se relaciona com o outro, um ser cultural e com percepções estéticas, apesar das limitações biológicas.

A Imagem e seu ConteúdoSob o enfoque da arte, a imagem está associada à representação visual de formas como pintura, desenho, escultura, gravura e fotografia, dentre outras. Configura-se numa mensagem visual situada entre a expressão e a comunicação, em elemento de interação entre o homem e o mundo, carregado de expressão, destinada a

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provocar reações sensíveis, tanto que Kohatsu (1999), com propriedade, assinala que as imagens sempre exerceram grande fascínio sobre os homens, conduzindo-os a um estado de encantamento.

Joly (1996:13-14) assinala que a imagem “indica algo que, embora nem sempre visível”, é sempre resultado da produção de um sujeito. E acrescenta que imagens “são como reflexos no espelho e tudo mais que emprega o mesmo processo de representação”.

A imagem é interpretação e atribuição de sentido, uma intenção de representação original, que carrega a invenção e a imaginação. Envolve, pois, o processo criativo, a obra enquanto materialização do fazer, repleta de intencionalidade. Portanto, está contida num processo de produção que revela o universo de cada ser, seu olhar, sua visão de mundo, num contexto de interação social. Refere-se a um registro geral de acontecimentos e envolve a interioridade e a contemplação, desencadeando a atribuição de significados.

A imagem carrega consigo as potencialidades cognitivas da visualidade. Na produção artística revela-se o esforço de explicitar a idéia, o pensamento e a visão. É a representação simbólica da realidade, do mundo interior e exterior. Sob esse olhar, a arte se constitui num sistema de representações, construtora de símbolos, que envolvem processos psicológicos e intelectuais. Em outras palavras, a imagem desencadeia processos mentais como a abstração; associações; articulações; informação; propiciando o desvelar da cultura e o acesso a ela, um modo de saber e de construir conhecimento. Se a imagem é um acontecimento, um fenômeno visual, então ela pressupõe interpretações, implica em desvelar significados, em aproximações:

A imagem, como fenômeno, é passível de interpretações. A hermenêutica visual descreve a aparência a partir de elementos que convergem para lhe dar sentidos e valor; contextualização em termos de um horizonte hermenêutico, tanto filosófico, como explicativo e consciencial. (Meira, 2003:38).

A imagem constitui-se num objeto destinado ao conhecimento do sujeito por meio da linguagem. Há, então, um modo de interpretar-lhe os sentidos. Sob esse olhar, Meira (2003:39) assinala que: “A linguagem reduz a imagem a um objeto, e o olho a um sujeito. As análises da imagem prendem-se a seu percepcionismo e recognição, ao conteúdo da imagem, ao que se metaforiza sobre sua forma”.

A interação entre a imagem e o processo de criação envolve uma ampla gama de saberes, sentidos e repertórios conceituais, em um constante ir e vir, e um contexto de significação e ressignificação, de construção e desconstrução contínuos.

Trabalhar com imagens e processos de criação artística e estética mobiliza saberes e operações complexas no manuseio da fantasia e de repertórios conceituais. Incide sobre mundos internos e externos com os quais os agentes de transformação pedagógica estão imersos. Além disso, apresenta (sic) problemas de discernimento para lidar com interinfluências visuais, comportamentos, gestos criadores e transformações de caráter ético, estético, poético e político transversalmente às vivências cotidianas. Valores, imagens, reelaborações semânticas, interfaces e relações que formam um cosmo de saberes e intensidades, ao buscar-se qualificar a experiência humana por obras, processos e práticas que influenciam a visão e as formas de compreensão da vida social (Meira, 2003:40).

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Revela-se, então, a função da imagem: agregar significados, formas e comportamentos cotidianos, de exteriorização de subjetividades e de exercício da criatividade. A imagem assume-se como cultura visual atual, o contexto estético de nossa experiência sensorial, a parte e o todo que nos toca ver para situar nossos saberes, nossos afetos, nossas percepções, além de um complexo mundo de formas ligadas a obras e processos de criação” (Meira, 2003:52).

A Produção Artística: a experiência do fazerCompreender como se dá o processo de criação possibilita inúmeras aprendizagens sobre a arte, visto que o processo de criação já é em si um processo de conhecimento, pois “um dos critérios para a compreensão da arte é a ‘invenção’; o outro, a ‘descoberta dos meios de produção – criação’, de acordo com a ‘coisa’ a realizar, o que refere uma ‘artisticidade’ inerente à operosidade em geral”, conforme ensina Meira (2003:32-33). E recorrendo a Barilli (apud Meira, 2003:32) ressalta que “uma experiência estética envolve as vivências e as transformações sensíveis e cognitivas que um sujeito elabora a partir dessas vivências” para concluir que:

A experiência estética coloca a cognição em permanente desconstrução e reconstrução, pela vulnerabilidade aos acontecimentos, estados de espírito, relações com a cultura, saberes múltiplos vindos do corpo e de abstrações, além do que a mente elabora a partir de paisagens do corpo, do ambiente, da memória e da ficção.

Com efeito, o processo de criação envolve o meio social, condições de sua operacionalização e afetividade. Compreender esse processo possibilita “redimensionar o trabalho cognitivo e reflexivo ao possibilitar a criação de conceitos visuais e gestuais com base na relação e na manutenção da ‘intransitividade’ e ‘transitividade’ do processo de aprendizagem” (Meira, 2003:34). 5

O processo criativo é intencional, orientado por razões e motivações. É a conjugação do fazer artístico e da atividade criadora. O produzir artístico (fazer), do qual resulta a obra, é o ato de produzir que envolve um processo de ordenação lógica e conceitual (dimensão poética). A atividade criadora é sustentada pela criação, pela razão intuitiva, pelo não racional, evidenciando o intangível e o imponderável, o vínculo entre o sujeito e o mundo (dimensão poética).

Pareyson (apud Eco, 1986) entende que o processo cognitivo configura-se como uma troca contínua entre os estímulos existentes na realidade e as propostas que a pessoa acrescenta, dando-lhe forma. Desse modo, o conhecimento é construção de significados e se realiza na mediação entre o fazer e o compreender. Duarte Júnior (2001), por sua vez, considera que o conhecimento advém do processo de articulação entre o sentir e o simbolizar e assinala que “contudo, não há linguagem que explique e aclare totalmente os sentimentos humanos”. E conclui que o conhecimento dos sentimentos somente se dá por meio de consciência distinta do conhecimento racional

5 Meira (2003:44) assinala, ainda, que “Merleau-Ponty já havia enfocado o processo de criação como manifestação ontológica e fenomenológica, dizendo ser o ato de criação pensamento nascente e originante de idéias e imagens surgidas de relações com o visível e o sensível, simultaneamente. Essa relação se faz no ato e na forma de conceber os processos de criação no encaminhamento de relações no percurso da obra por fazer, cujos delineamentos futuros nascerão das interações com as matérias envolvidas no processo de realização, em que a percepção mostrará, de modo radical, como as questões e as dúvidas e erros se instauram a partir deste fazer. A obra de arte é um modo de revitalização do ato de pensar, ao explorar inclusive aspectos irracionais e errantes que lhe são peculiares, quando liberto de limites.”

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e que a arte é “uma ponte que nos leva a conhecer e a expressar os sentimentos” e que a forma de apreendê-la é a experiência estética. De tal modo, o conhecimento é um processo que passa pela compreensão da representação, da significação entre símbolo e objeto.

Ora, se o conhecimento é uma ordenação de símbolo, a produção artística é uma modalidade de saber, visto que nela se realizam “processos mentais de raciocínio, memória, imaginação, abstração, comparação, generalização, dedução, indução, esquematização” (Castanho, 1982:18). Enfim, consagra processos que conduzem à construção do conhecimento, associada à linguagem e à abordagem de sistemas de signos; proporciona contato com o mundo não apenas por meio da razão, mas também da emoção. É nesse sentido que cada obra representa um sistema particular de signos que obedece a esquemas estruturais comuns à mesma forma expressiva e que, ao mesmo tempo, permite que tais signos se relacionem entre si, criando novos significados. Assim, considerada, implica num sistema de leitura.

Linguagem visualA linguagem visual compreende várias categorias de expressão, onde a

construção de qualquer uma delas implica em conhecimento e na leitura de elementos visuais como a forma, a cor, o espaço (bidimensional e tridimensional), o equilíbrio, a relação entre luz e sombra, plano e superfície, além de outros. O conhecimento da linguagem visual assume fundamental importância quando se reconhece que vivemos na “civilização da imagem”, conforme assinala Durand (apud Meira, 2003:40), e a partir daí, necessário para a formação integral das pessoas e sua socialização em forma de inclusão do cidadão.

Nos atos de desenhar, pintar, criar uma escultura estão implícitos processos de organização de espaço, definição de formas e composição de planos. Ao produzir artisticamente, ao compor visualmente, a pessoa articula e estrutura o sentir e o pensar. Nesse fazer artístico estão presentes o conhecimento e a leitura dos elementos visuais, a organização e a ordenação do pensamento, a significação (representação), a construção de imagem, a expressão da história pessoal e social do sujeito. Então, acreditamos que o ensino de arte é resultado da articulação entre o fazer, o conhecer, o exprimir e o criar.

Tomando cada sujeito em sua unicidade, inserido num pluralismo cultural, temos que as histórias de vida são únicas e, portanto, são diversas as possibilidades de construção das expressões visuais.

A Imagem, a Produção Artística e a Diversidade: para além dos limites da deficiência

Vygotsky (1996) considera que o fato de criar signos (ferramentas psicológicas) representa uma forma particularmente humana de ser, revelada ao criar novas estruturas. Desse modo, refletir sobre a significação é pensar naquilo que nos faz humanos, o que de acordo com a perspectiva histórico-cultural somente é possível na dimensão social (a apropriação da significação acontecer no domínio social). Para Vygotsky (1996), os signos são mediadores das relações entre os homens e a palavra é o signo, por excelência.

A partir dessa perspectiva, os aspectos neurológicos são as causas da deficiência mental e impõe limitações. Contudo, como a apropriação se dá na esfera do

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simbólico, estas podem ser superadas. O processo de criação artística possibilita a superação das limitações visto que os instrumentos simbólicos têm a função de constituir os sujeitos sociais e não há limites para incorporação de significados. Com efeito, Vygotsky (1989:7) considera que “a deficiência deve ser enfocada como um processo de desenvolvimento e não vinculada aos processos patológicos, deste modo considera que a criança deficiente não é menos desenvolvida ou incapaz, mas simplesmente se desenvolve de maneira diferente”.

De acordo com Vygosty (1996), não há possibilidade de desenvolvimento cognitivo fora da linguagem e, tampouco, desenvolvimento da linguagem sem a mediação que ocorre nos processos interativos. A linguagem, o signo por excelência, é o principal mediador entre o mundo cultural e biológico. Desse modo, é impossível pensar em desenvolvimento cognitivo fora do mundo cultural, sem o uso da linguagem, os processos de significação criados entre as pessoas no meio social. Bakhtin (1992:49-51), por seu turno, pondera que “o que faz da palavra uma palavra é a sua significação. O que faz da atividade psíquica uma atividade psíquica é, da mesma forma, sua significação”. A atividade mental realiza-se, portanto, por meio da significação, da semiótica, pois “a significação constitui a expressão da relação do signo, como realidade isolada, com uma outra realidade, por ela substituível, representável, simbolizável”.

Loureiro (2003:13) afirma com propriedade que “todos os homens são capazes de realizar operações construtivas de transformação da natureza em signos de cultura”. Além disso, são capazes de conhecer e fazer (produzir representações) de natureza realista ou abstrata; de se exprimir, de projetar a visão que tem de si e do mundo, “construir alegorias, penetrar nos símbolos e nos mitos”. Sob essa perspectiva, as pessoas, portadoras de deficiências ou não, podem envolver-se no processo criativo, fazendo, conhecendo, exprimindo, experimentando. Enfim, realizando e vivenciando a experiência estética.

Desse modo, a existência de deficiência não limita, mas aponta para outras capacidades e possibilidades de apropriação de signos, de significados. Novas possibilidades de operações simbólicas, de criação, de memória, abstrações, de atenção, de raciocínio, de apreender e formar conceitos, de sensibilidade, de imaginação, dentre outras. Portanto, as potencialidades podem ser atingidas de várias formas. A linguagem é uma delas, compreendida em seu sentido amplo, considerando a arte como um modo de pensamento e conhecimento.

Nossa experiência com a utilização de imagens demonstra resultados significativos no processo de formação e na relação social do deficiente mental. A produção artística propicia ao deficiente mental a interação com o coletivo, a conexão com o que conhece, sente e possibilita que o sentimento e o sentido se manifestem no novo. Permite-lhe, ainda, o desvelar dos aspectos sociais, culturais, psicológicos, emocionais e racionais que impregnam o universo das representações que faz do mundo e de si. Meira (2003:83) afirma que:

A arte também trabalha com o impessoal, a abstração e os conceitos, mas num plano de intensidade afetiva inclusiva e não excludente quanto às emoções e às interações subjetivas. Ela os converte em forma, em forma de ação. A experiência envolve ciência, arte e filosofia, para converte-se num acontecimento singular, marcar uma história de saber com uma aprendizagem de fazer, produzir metáforas e imagens potentes para inventar uma nova vida, uma vida melhor.

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As experiências e o conhecimento se manifestam na representação simbólica, que é resultado das articulações do pensar, do conhecer e do significar. No fazer é possível reconhecer os processos de representação e de interpretação, o entrelaçamento da emoção e da razão (do sentir e do pensar), desencadeando o novo, que revela a visão e a interpretação do mundo.

Considerações finaisQuando se fala em educação tem-se uma visão homogeneizada do trabalho e

das pessoas: todos aprendem de modo igual e no mesmo ritmo, perdendo-se a noção do singular, quando a condição humana é plural. A arte contempla essa pluralidade e na educação especial não é diferente. Desse modo, entendemos que a educação é estar em busca de algo diferente (novo) para a transformação e transposição de algo já existente e criação do inexistente. Sob este enfoque, educação e arte têm muito em comum, pois na arte o processo de criação move o fazer, o conhecer e o exprimir.

A arte, então, permite ao homem demonstrar como vê e como se vê no mundo. Permite que outros conheçam essa relação. Nesse sentido, a arte se constitui num canal de comunicação e por isso possibilita ao deficiente mental articular, relacionar e inteirar-se, sem perder de vista suas potencialidades. Propicia a inteiração dos deficientes mentais, integrando-os num processo de desenvolvimento por meio do fazer, sem levar em conta os aspectos patológicos ou orgânicos. Não enfatiza os déficits, as deficiências, mas capacidades reais num processo mental e sensível de compreensão, abstração, planejamento, elaboração, relações e associações, que resulta na criação artística.

A arte (fazer, conhecer, exprimir) envolve o sujeito histórico, social, cultural enredado no simbólico, ser de linguagem, conduzido pela expressão, mediada pela imagem. Ora, a construção do conhecimento se processa nos jogo dessas representações sociais, das trocas simbólicas, tendo a linguagem como instrumento de interação e desenvolvimento. A arte tem o seu papel nesta construção. É isso que propomos: a arte como linguagem, como mediadora do conhecimento, pois a aprendizagem não se resume a uma operação mental, mas também envolver o sujeito como elemento sensível e atuante, que observa o mundo, que se relaciona com o outro, um ser cultural e com percepções estéticas.

A produção artística desloca o olhar. Rompe com o limite do racional e o estigma da diferença, pois ordena o pensamento; revela a expressão; convida à criação; comunga com a idéia da inseparabilidade; constrói a forma, tornando-a visível (imagem) e, enquanto construção se revela como linguagem e representação simbólica. Na produção artística estão presentes o impessoal, a abstração e os conceitos, mas numa dimensão sensível. De tal forma, que a deficiência mental não representa obstáculo para a capacidade de construção simbólica, nem para a sensibilidade.

Quando desenvolvem qualquer atividade artística, as pessoas deficientes estão fazendo a leitura, conhecendo os elementos, organizando o pensamento, dando significação ao que vêem e sentem e, enfim, constroem a imagem, que assim entendida revela a visão que têm de si e do mundo. Se entendermos o conhecimento como a ação do sujeito sobre a realidade, numa interação mediada, na relação com os outros, então a arte propicia a construção de conhecimento e da própria consciência. Se entendermos que na organização da construção a forma é um ato de comunicação, então é possível reconhecer que a produção artística do deficiente quer nos dizer algo

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e em sua leitura podemos identificar dados culturais, símbolos e a significação presente no ato criativo, no seu criador.

Desse modo, a experiência artística é um exercício de sensibilidade, onde as vivências têm significados e conteúdos e pode ser estimulada por meio de práticas pedagógicas, que se constroem com as interações entre o fazer, conhecer e exprimir, o processo de criação e as concepções de linguagem. Essa ação incorporará uma mudança de olhar, uma ação imersa em expectativas, transpondo os desafios, repleta de ousadias. Isso nos remeterá também à necessidade de lançarmos sobre o aluno um olhar que nos permitirá conhecê-lo além, na sua diferença, como sujeito que, interagindo com seus interlocutores, apropria-se de formas culturalmente organizadas de ação, constituindo-se sujeito de seu próprio desenvolvimento, capaz de utilizar-se da arte para tal e assim atribuindo-lhe seu real papel.

A produção artística deve ser considerada sob a perspectiva da diversidade, propiciando a inclusão social, compreendida como abandono, paradigma da igualdade e da transformação da diversidade em singularidade, de ruptura com a hierarquia, com a classificação segregacionista dos níveis cognitivos e demais deficiências, que busca não o tratamento especial, mas o singular e criativo. Nesse sentido, representam a possibilidade ilimitada de percepções do mundo e podem fugir ao sistemático, ao convencional, ao normal, ao modelo instituído, pois o que faz a diferença é o olhar que se tem para a diversidade.

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