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Encontro Nacional de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI
24 e 25 de novembro de 2014 • Londrina, PR
O descentramento do sujeito na vinheta de Retrato Falado1
Juliana Mastelini Moyses2
Resumo: O objetivo do trabalho é fazer um paralelo entre a ideia de descentramento do
sujeito apresentada por Hall (2004) no livro A identidade cultural na pós-modernidade
e a vinheta de abertura de Retrato Falado, quadro transmitido pelo programa Fantástico
da Rede Globo entre 2000 e 2007. O quadro trazia histórias reais dramatizadas por
atores e as cenas eram intercaladas com depoimentos das pessoas envolvidas. Em uma
das vinhetas que o quadro apresentou durante o período em que foi ao ar, os rostos das
depoentes aparecem embaralhados com o rosto da atriz que as interpreta, formando um
quebra-cabeça. Seguindo os conceitos de Hall, mostramos como o sujeito do Retrato
Falado é construído, a partir da vinheta, pelo recorte e se constrói na multiplicidade.
Palavras-chave: Comunicação; descentramento do sujeito; quadro Retrato Falado;
vinheta.
Abstract: The object of the work is make a parallel between the idea of decentering the
subject presented by Hall (2004) in the book The question of cultural identity and the
opening sequence of Retrato Falado, frame transmitted by program Fantástico of Rede
Globo between 2000 and 2007. The frame brought true histories dramatized by actors
and the scenes were intercalated with testimonies of the people involved. In one of the
opening sequences that the frame presented during the period in which it was
transmitted, the deponents’ faces appear mixed with the face of the actress who plays
her, forming a puzzle. Following the Hall’s concepts, we show how the subject of
Retrato Falado is built, from the opening sequence, by clipping and it builds in the
multiplicity.
Introdução
O presente trabalho traça um paralelo entre a ideia de descentramento do
sujeito apresentada por Hall (2004) no livro A identidade cultural na pós-modernidade
e a vinheta de abertura do quadro Retrato Falado, transmitido pela Rede Globo entre
2000 e 2007. Hall apresenta cinco momentos do pensamento moderno sobre o sujeito
1 Trabalho apresentado no GT 4- Abordagens Analíticas em Comunicação Visual, do Encontro Nacional
de Pesquisa em Comunicação e Imagem - ENCOI. 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina
(UEL). E-mail: [email protected].
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que desencadearam em rupturas na ideia de um sujeito fixo detentor de uma identidade
unificada.
Retrato Falado é um quadro de humor baseado na vida real. Trazia
histórias de telespectadoras que enviavam suas cartas ou e-mails à equipe do programa.
Analisamos a vinheta presente nos dois últimos episódios do DVD lançado em 2005
com 15 histórias do Retrato Falado. A vinheta traz diversos retratos das mulheres que
participaram do quadro. Cada rosto é uma peça do quebra-cabeça. Algumas peças
formam parte do rosto da atriz que interpreta as personagens. As peças se movimentam
como se buscassem completar esse rosto, que, porém, nunca se completa. Em vez disso,
ele sempre está embaralhado com retratos das personagens. A vinheta, portanto, com
sujeitos fragmentados, possibilita um olhar da perspectiva do descentramento que Hall
descreve.
Retrato Falado
Retrato Falado contava história reais de telespectadoras que enviavam
suas cartas à equipe do programa. Surgiu como um quadro do recém criado programa
Zorra Total, em 1999. No final do primeiro ano, foi transferido para o Fantástico.
Segundo o site oficial do programa, tornou-se “rapidamente um dos maiores sucessos
do Fantástico”.
O quadro era dirigido por Luiz Villaça e encenado pela atriz Denise
Fraga. Foram apresentadas histórias românticas, cômicas e dos mais variados estilos,
nas quais a atriz encarnava personagens reais. Segundo o site, o quadro ficou no ar até
2001, quando ganhou prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte na categoria
Humor. Em 2003, voltou a ser exibido a pedido dos telespectadores que continuavam a
mandar suas histórias ao programa. A partir de 2004, segundo Caminha (2007, p. 141),
passou a ser exibido por temporadas, com cerca de 12 a 16 episódios por ano.
No livro Retrato Falado - histórias fantásticas da vida real (2005),
Denise Fraga explica o processo de produção do quadro. A atriz conta que a equipe do
programa recebia cerca de 500 cartas ou e-mails por semana. Dois pesquisadores
selecionavam as histórias e escolhiam cerca de 50 que eram transmitidas ao diretor.
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Apesar da grande quantidade de cartas, Fraga explica que muitas vezes não conseguiam
uma boa história. E se a história tivesse um bom começo, mas um final ruim, era
abandonada. “Partimos do princípio de que um dos charmes do programa é o fato de a
história ser real. Sendo assim, se o começo é bom, mas o final não, não inventamos
outro desfecho, simplesmente abandonamos a história” (2005, p. 268). Questões de
produção também eram definidoras para se abortar uma história.
A seguir, todos os possíveis envolvidos eram entrevistados e os
roteiristas se baseavam nessas entrevistas para escrever o roteiro do episódio. Eles,
então, enriqueciam as histórias “com estatísticas e dados interessantes, e a dramatização
[era] intercalada por depoimentos de personagens reais envolvidos nos casos narrados”
(HEITZMANN, 2011, p. 216).
A vinheta de abertura
A análise aqui presente se volta para a vinheta de abertura do quadro
analisado presente nos dois últimos episódios do DVD, intitulados Dente por dente, ou
jaqueta por jaqueta3 e Denise Alice ou Renata Fraga?
No início dos episódios, a atriz Denise Fraga apresenta a história que será
contada. Ao fundo, uma espécie de quebra-cabeça movimenta desenhos que
representam fotos 3X4 de mulheres que provavelmente tiveram suas histórias contadas
no Retrato Falado. Os rostos vão se alternando rapidamente de forma que não é
possível identificar facilmente uma pessoa, já que os desenhos apresentam apenas
alguns traços pessoais (Imagem 1).
3 Quando o episódio foi ao ar, não apresentava título. O título aparece no DVD que foi lançado em 2005
com 15 histórias.
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Imagem 1
Entre os retratos aparecem também peças que formam o rosto da atriz
que interpreta todas as personagens no quadro. A face da atriz aparece grande e o
tamanho das peças que formam o retrato das pessoas são apenas partes da figura dela.
Enquanto a atriz fala, as peças se movimentam ao fundo na busca de formarem o rosto.
Mas este não se completa. E o desenho ao fundo sempre mistura retratos das
personagens e da atriz.
A seguir, depois que a atriz fez a apresentação do episódio aparece a
vinheta propriamente dita. As imagens do quebra-cabeça continuam a se movimentar ao
fundo enquanto uma animação da atriz de corpo inteiro aparece na frente dos desenhos
com uma máquina fotográfica na mão. A animação “olha” para o telespectador e dá as
coordenadas para um possível fotografado (Imagens 2 e 3).
Imagem 2 Imagem 3
Quando a posição está boa, sinaliza com um gesto e “tira” a foto. Da
câmera fotográfica, então, sai um flash que ilumina toda a tela e em seguida o nome do
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quadro é apresentado. Cada letra de “Retrato Falado” aparece em um quadrado que
desliza do canto direito até formar as palavras ao centro da tela em um fundo verde sob
o foco de uma luz em forma de círculo, como num teatro. A seguir, começa-se a contar
a história (Imagem 4).
Imagem 4
A vinheta de Retrato Falado à luz das ideias de Hall
Stuart Hall (2004) mostra como o sujeito do Iluminismo, visto como
possuidor de uma identidade fixa e estável, foi sendo desconstruído por uma série de
pensadores, que descentraram esse sujeito, “resultando nas identidades abertas,
contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno” (p. 46) e mudando a
forma como a identidade é conceitualizada.
Hall explica que aqueles que defendem a noção de uma fragmentação da
identidade moderna, argumento apresentado em todo livro A identidade cultural na pós-
modernidade, defendem que o sujeito foi deslocado. Esse deslocamento é descrito
através de cinco rupturas nos discursos do conhecimento moderno que lançam um olhar
analítico sobre a constituição do homem.
A primeira ruptura diz respeito aos estudos marxistas que defendem que
o homem produz história a partir de condições já dadas. Assim, não tem vez a ideia de
um sujeito fixo. Este se transforma a partir de condições que lhes são externas. A
questão principal a que nos detemos é a de que o homem não é um ser pronto, acabado e
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singular, mas um ser em construção. E que ele é formado na multiplicidade de
condições com as quais se depara ao longo da vida.
O sujeito do Retrato Falado está em construção, apesar de uma narrativa
sobre ele já ter sido produzida e contada no quadro. Essa narrativa mescla a fala do
personagem sobre si mesmo, o toque dos roteiristas, produtores e diretor, e a
interpretação da atriz. São diversos palpites sobre um mesmo personagem. Assim, como
mostra a vinheta, o sujeito do Retrato Falado se constrói na relação com os outros, tanto
que é no embaralhamento das peças e dos rostos que a face da atriz busca se completar,
através do diálogo entre atriz e personagem.
Vilas-Boas, no livro Biografismos, no qual apresenta reflexões sobre as
escritas de vida, defende a importância de se ter a consciência que o indivíduo não se
constrói sozinho. Para o autor, nenhuma pessoa é um “self-made nascido com o gene da
vitória” (2008, p. 135). Ao contrário, a pessoa a quem o biógrafo retrata contou com a
colaboração de muitos coadjuvantes, a quem o autor chama de “co-autores” da obra de
seus biografados. Para se ter o entendimento de que as pessoas não constroem sozinhas
seu “universo consagrador”, ele fala da necessidade de reconhecer a importância do
mundo das experiências comuns.
Relacionada a essa ideia de que o ser humano não se constrói sozinho,
Geertz (1989) fala que a cultura é tão importante para o ser humano que condiciona o
próprio ser do indivíduo. É por isso que o autor defende que sem homem não haveria
cultura, mas certamente sem cultura também não haveria homem. Somos “animais
incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura” (p. 36).
Assim, ideias, valores, atos e até mesmo as emoções dos seres humanos
são produtos culturais, como o próprio sistema nervoso o é. “Não é diferente com os
homens: eles também, até o último deles, são artefatos culturais”, (GEERTZ, 1989, p.
37). E o autor fala que assim como a cultura nos modelou e continua nos modelando
como espécie, ela também nos modela como indivíduos separados. Portanto, o homem
não é nem um ser imutável subculturalmente nem o resultado de cruzamentos culturais
estabelecidos. Ele está em construção.
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Por essa perspectiva, a noção de um homem pronto e constituído pode ser
uma ilusão, já que ele pode estar tão envolvido com onde está, quem é e no que acredita
que sua constituição é inseparável desses aspectos.
O segundo descentramento mostrado por Hall, que rompe com a ideia de
um sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa, vem da descoberta
do inconsciente por Freud, por afirmar que o ser humano é formado com base em
processos do inconsciente regidos por outra lógica que não a da razão.
No livro A crítica da razão sensível (1998), Michel Maffesoli mostra
como a razão não tem mais o papel de única provedora de respostas em nossa
sociedade, e aí, a importância dos sentidos, pois existem outras formas de conhecimento
que não precisam do aval da ciência e nem por isso são inferiores. São, apenas, saberes
diferentes. Ele defende que o imaginário traz um tipo de saber raro com verdades
múltiplas. Dessa forma vê o “sensível como parte integrante da natureza humana”
(p.22).
Ao falar do sensível, Maffesoli faz uma crítica ao racionalismo defendido
na modernidade, uma razão abstrata, separada, que dificulta a compreensão da vida em
seu desenvolvimento. Para haver um entendimento do que a experiência vivida tem de
denso, imagético e simbólico, o autor diz ser preciso ativar todas as capacidades do
intelecto humano, “inclusive as da sensibilidade” (p. 27). Para ele racionalismo e
irracionalismo são sempre complementares e a vida é sempre um movimento que
exprime a união de contrários.
É preciso saber desenvolver um pensamento audacioso que seja capaz de
ultrapassar os limites do racionalismo moderno e, ao mesmo tempo, de
compreender os processos de interação, de mestiçagem, de interdependência
que estão em ação nas sociedades complexas (p. 37).
Em contraposição ao saber abstrato, que vem de fora do objeto, Maffesoli
fala da razão interna das coisas. Dessa forma, pratica-se uma ideia que Maffesoli credita
a Scheling de uma “ciência criativa”, que possibilita vincular natureza e arte, conceito e
forma, corpo e alma. E que considera que a vida tem suas razões que muitas vezes a
razão desconsidera. E por isso a importância de um pensamento relativizante, que
admite uma multiplicidade de valores.
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“Nada, nem ninguém, jamais é exclusivamente aquilo que parece ser em
um dado momento. É sempre mais, e isto porque há, em cada um e em cada fenômeno,
algo de performado que convém desenvolver” (p. 60). Assim, o autor defende que os
sociólogos devem fazer o mesmo que os romancistas fazem com seus personagens:
procurar fundamento e não simples causas para perceber a razão interna, mesmo que
esta se contraponha à razão funcional e instrumental as quais estamos acostumados.
Voltando às ideias de Hall, o autor explica que a respeito da identidade,
pensadores psicanalíticos como Lacan defendem que o eu como unificado é uma ideia
que
a criança aprende apenas gradualmente, parcialmente e com grande
dificuldade. Ela não se desenvolve naturalmente a partir do interior do núcleo
do ser da criança, mas é formada em relação com os outros; especialmente
nas complexas negociações psíquicas inconscientes, na primeira infância,
entre a criança e as poderosas fantasias que ela tem de suas figuras paternas e
maternas (p. 37).
A ideia de Nancy Huston (2010) vai no mesmo sentido. Para ela, a
identidade das pessoas vem das histórias e narrativas que lhes são contadas durante a
primeira infância: “acreditamos nelas, gostamos delas, nos agarramos a elas” (p. 29).
Huston, assim, mostra que os humanos são seres em processo e em
constante construção. Nesse sentido, além de questões constitutivas e racionais do ser,
este é formado pelos impulsos inconscientes e pelo que é histórico, social e cultural.
Assim, tem-se a noção de um sujeito dividido, devido a sua própria formação
inconsciente.
A partir da vinheta do Retrato Falado, percebe-se que, apesar de o
telespectador olhar para a história transmitida pelo quadro como uma reconstituição dos
acontecimentos, e, assim, propor um indivíduo como unidade, este se apresenta na
dividido. E por mais que se busque unificá-lo, ele permanece dividido. Fala Hall:
assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos insconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado
sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em
processo”, sempre “sendo formada” (p. 38).
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Para Hall, a identidade plena que está dentro de nós como indivíduos não
é tão importante quanto aquilo que está em falta e se completa com o que nos é exterior,
“pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (p. 39). Assim, o
mais importante no quadro não é a busca por uma unidade do sujeito que tem sua
história contada, não é descobrir sua essência para recontá-la aos telespectadores, mas o
processo de complementação que se dá pelo toque da atriz, dos produtores, diretor e
roteiristas. Portanto, como ela é representada por si e pelos outros.
Mesmo assim, o telespectador busca saber quem é, e como é,
verdadeiramente, a personagem que tem sua história contada no quadro. E
“psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ‘identidade’ e construindo biografias
que tecem as diferentes partes de nossos eus divididos numa unidade porque
procuramos recapturar esse prazer fantasiado da plenitude” (HALL, 2004, p. 39).
O terceiro descentramento que o pensador apresenta concerne às ideias
advindas do pensamento de Saussure. Para o linguista, não somos autores daquilo que
expressamos com nossa língua, pois apenas podemos dizer o que as regras nos
permitem, já que a língua é um sistema social, não individual. Assim, não se expressa
apenas o que se quer. “Falar uma língua não significa apenas expressar nossos
pensamentos mais interiores e originais. Significa também ativar a imensa gama de
significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais”
(HALL, 2004, p. 40). Não se pode, portanto, fixar o significado de uma palavra em
ligação direta com o mundo que existe fora dela. Esse significado depende da relação de
similaridade e diferença com as outras palavras, explica Hall.
Relacionadas a isso estão as ideias de Geertz (1989) sobre o pensamento
humano, que, para ele é tanto social como público, e “seu ambiente natural é o pátio
familiar, o mercado e a praça da cidade” (p. 33). Pensar, diz Geertz, não consiste nos
acontecimentos na cabeça, mas num tráfego entre símbolos significantes, como
palavras, gestos, desenhos, sons musicais, enfim, qualquer coisa que esteja afastada da
simples realidade e que seja usada para impor significado à experiência.
Esses mecanismos simbólicos vinculam o que os homens são capazes de
se tornar e aquilo que eles realmente se tornam. Porque “tornar-se humano é tornar-se
individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais” (p. 37).
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Esses padrões culturais são criados historicamente, e a partir deles damos forma, ordem,
objetivo e direção a nossas vidas.
Falar de linguagem no contexto da análise do Retrato Falado é essencial
já que é através da linguagem, e das narrativas sobre si, que o sujeito busca se formar.
Este é construído através da linguagem. Desde o nome do quadro, a ideia se faz
presente: Retrato Falado. É um retrato que se constrói a partir da fala e do que a pessoa
conta sobre si. Um retrato construído através das palavras não pode ser algo fixo,
fechado, já que o significado das palavras, como visto, é cambiável, “inerentemente
instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado
(pela diferença)” (p. 41).
O retrato falado busca um fechamento, uma identidade. A própria atriz
que interpretava as personagens buscava essa identidade. Ela conta que quando o
quadro nasceu, tentava imitar todos os gestos e maneira de falar das personagens.
Assim, “quando o programa ia ao ar, eu era apenas um fantoche opaco diante daquela
realidade tão brilhante que é uma pessoa falando espontaneamente diante de uma lente”,
explica Fraga (p. 269).
Com o tempo, percebeu que o importante não era a cópia:
Não adiantava: eu era Denise e nunca seria Irene. Com o tempo, fui
percebendo que o mais importante da minha profissão é justamente
interpretar. E o que é interpretar? Perceber algo e passar para o outro a sua
percepção. Foi muito bom quando vi que, melhor que ser Irene, era eu ser
essa terceira pessoa que o ator é capaz de criar: nem Denise, nem Irene, mas
Irene-Alice (p. 269).
Portanto, mesmo que se tentasse imitar a personagem, a diferença estava
presente. E na vinheta, mesmo que o quebra-cabeça tente se completar, as peças se
embaralham e promovem o diálogo entre personagens e atriz. O conteúdo transmitido
pela vinheta não acaba ali, e a história contada no quadro carrega outros significados
que não estão aparentes. Não é possível transmitir tudo aquilo que foi vivido e
apreendido por meio de todos os sentidos humanos através apenas da fala. A linguagem
não consegue abarcar a totalidade do significado.
O quarto descentramento de que fala Hall diz respeito às ideias de
Foucault sobre o poder disciplinar. Para o pensador, o poder disciplinar, exercido pelas
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instituições sociais, visa manter todas as instâncias do ser humano sob controle e
disciplina. Esse poder atinge primeiramente a espécie humana como um todo e depois o
ser como indivíduo. O que faz com que o sujeito, apesar de se inserir em uma instância
social, se individualize ainda mais. Nisto consiste o paradoxo dos regimes disciplinares:
“quanto mais coletiva e organizada a natureza da instituição da modernidade tardia,
maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual” (p. 43), e
por isso o descentramento.
O quinto descentramento é o impacto do feminismo como crítica teórica
e como movimento social. No que diz respeito ao descentramento do sujeito, o
movimento questiona a distinção entre o privado e o público com o slogan “o pessoal é
político” (p. 45). Com isso, leva para a discussão pública, questionamentos que antes
diziam respeito apenas à esfera privada, como família, sexualidade e trabalho
doméstico.
Isso diz respeito também à vinheta do Retrato Falado. Além do fato de o
quadro só contar história de mulheres, ele traz para o âmbito público, histórias que
aconteceram, e pertencem, ao espaço privado. Na vinheta, os rotos privados ganham a
extensão pública, indo ao ar em uma rede nacional de televisão.
O movimento feminista, explica Hall, politizou questões referentes à
subjetividade ao afirmar que aquilo que somos depende da maneira como somos
formados e produzidos como sujeitos generificados. Nesse sentido, não cabe a ideia de
um ser com uma identidade fixa, esta depende das relações que esse ser irá desenvolver
ao longo da vida.
Considerações finais
A partir da análise aqui expressa, que lançou um olhar sobre a vinheta do
quadro Retrato Falado à luz da ideia de descentramento do sujeito defendida por Hall
(2004), percebe-se que apesar de buscarmos uma imagem fixa de um personagem, isto
não é possível. Uma pessoa, sua identidade e, portanto, sua imagem, é algo sempre em
processo. Assim como o sujeito do Retrato Falado. Seu eu não termina na história
contada, ou na forma como ele se vê e transmite no olhar para a lente, e nem tampouco
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no episódio transmitido pela televisão, depois que a história passou pelas mãos dos
produtores, roteiristas, diretor e atriz. Ao telespectador ainda cabe a tarefa de construção
e desconstrução do personagem. O resultado disso é um sujeito recortado, em
fragmentos múltiplos, assim como são múltiplos os aspectos que tensionam a
constituição do sujeito.
E como esses aspectos são múltiplos, não cabe aqui fechá-los. Se não
existe um sujeito com uma identidade fixa, seria um erro buscar um retrato que seja
fixo, que, portanto, não daria conta da multiplicidade do sujeito a quem se propõe
retratar. A vinheta de Retrato Falado propõe essa impossibilidade de fixidez. Em
nenhum momento o rosto da atriz Denise Fraga se completa, de forma que aparece
sempre embaralhado com os rostos das retratadas. O que permite entender que o retrato
apresentado no quadro não é nem da atriz nem da retratada, mas uma mistura dos dois.
E por mais que se busque o rosto unificado e completo, este sempre está em processo, e
a diferença se faz presente.
Referências
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VILAS BOAS, Sérgio. Biografismo: reflexões sobre as escritas de vida. São Paulo:
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