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Vício tecnológicoChellis Glendinning

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Esta obra é livre. Pode e deve ser reproduzida no todo ou em parte, além de ser liberada a sua distribuição.

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Tecnologia, trauma e o selvagem

“Que milhões de pessoas compartilhem dasmesmas formas de patologia mental, não torna

essas pessoas sãs.” – Erich Fromm

Eu me encontrei com um jovem ativista políti-co para uma conversa na semana passada em meucafé favorito. Um homem pró-feminista e funda-dor de uma organização juvenil antiguerra durantea Guerra do Golfo, esse rapaz de 21 anos de idadevive para explorar questões sociais e agir de acor-do com suas convicções. A questão que mais opreocupava no momento diz respeito à tecnologia.“A televisão tornou as pessoas menos inteligen-tes?”, ele se perguntava, e baseava sua conclusãono preceito desconstrucionista de que só se podefalar a partir da experiência pessoal. Sua respostafoi “Definitivamente, não.”. De fato, a capacidademental desse jovem era mais substancial e suaperspicácia mais aguda do que eu já havia visto

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em qualquer outra pessoa de qualquer idade. Maseu não pude deixar de notar que antes mesmo queum café com leite expresso quádruplo explodisseem suas células cerebrais, meu jovem amigo esta-va em um discurso verborrágico de 120 palavraspor minuto, vibrando em seu assento como umfoguete pronto para o lançamento, vociferandopalavras como VPL e Macromind, e respondendosuas próprias questões em saltos quânticos atravésde paradigmas não integrados por qualquer visãode mundo, realidade física ou obrigação moralpara com a vida que sejam coerentes.

Tal como meu amigo, a maioria de nós quehabitamos a sociedade tecnológica de massa achadifícil compreender o impacto da tecnologiasobre a realidade social, quando deixada à solta,agindo sobre nossas psiques. Assim como asminúsculas bactérias aeróbias que residem dentrode hardware de computador, estamos tão enrai-zados em nosso mundo tecnológico que dificil-mente nos damos conta de que ele existe. Noentanto, a contaminação radioativa generalizada, a

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epidemia de câncer, os derramamentos de petróleo,os vazamentos tóxicos, as doenças ambientais, adepleção da camada de ozônio, os aquíferos conta-minados e as extinções culturais e biológicas indi-cam que o construto tecnológico que recobre todanossa experiência, percepção e ação política precisaser seriamente criticado. Ademais, essa críticarequer integração por uma visão de mundo, umarealidade física e uma obrigação moral para com avida que sejam coerentes.

Neste momento da história, é essencial queindaguemos questões difíceis e profundas a res-peito do lugar que a tecnologia ocupa em nossasvidas. Qual é a essência da tecnologia moderna?Como ela estrutura nossas vidas, nossas percep-ções, nossa política? Como ela molda nossas psi-ques? O que ela diz a respeito de nossa relaçãocom nossa humanidade e com a Terra? Infeliz-mente, os obstáculos às respostas estão entrin-cheirados, como pilares de concreto em umentrecruzamento de autoestrada, tanto em nossarealidade social quanto psicológica.

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Eu descobri a extensão desses obstáculosenquanto estava em uma turnê promocional para omeu livro When Technology Wounds (Quando aTecnologia Fere). O livro é baseado em um estudopsicológico daqueles que sobreviveram à tecnolo-gia: pessoas que se tornaram medicamente adoeci-das como resultado de exposição a algum tipo detecnologia nociva à saúde. Eu entrevistei morado-res de Love Canal, veteranos do setor nuclear, tra-balhadores do ramo do amianto, filhas do DES(Dietilestilbestrol), trabalhadores da indústria deeletrônicos, usuárias do dispositivo intrauterinoDalkon Shield, proprietários de casas cujas águassubterrâneas foram contaminadas, e habitantes doperímetro da Área de Testes de Nevada, assimcomo pessoas que sofrem de câncer, doençasambientais, fadiga crônica, disfunções imunológi-cas e muitos outros problemas.

Ao que tudo indica, essa população está cres-cendo. 41.000 habitantes de Louisiana estãoexpostos a 3,5 milhões de toneladas de lixo tóxicoao longo do corredor industrial entre Baton Rouge

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e Nova Orleans. 30 milhões de famílias estaduni-denses, ou 96 milhões de pessoas, vivem em umraio de 80 quilômetros de alguma usina nuclear.135 milhões de habitantes de 122 cidades e muni-cípios respiram um ar densamente poluído, aopasso que 250 milhões de estadunidenses – todosnós – estão expostos a 1,18 milhão de toneladasde pesticidas a cada ano, além de todas as partícu-las radioativas que pairam pelo globo terrestrevindas de Hiroshima, de Chernobyl e das áreas detestes nucleares em Nevada e no Cazaquistão1.

1 David Maraniss e Michael Weisskoff, “Corridor of Deathalong the Mississippi”, San Francisco Chronicle, January 31,1988; Jay Gould, Quality of Life in American Neighborhoods(Boulder, Co.: Westview, 1986), 2:117-20; Critical Mass EnergyProject, “The 1986 Nuclear Power Safety Report” (Washington,D.C.: Public Citizen, 1986); Daniel F. Ford, Three Mile Island(New York: Penguin, 1982); Aerometric Information and Retrie-val System: 1988, with Supplemental Data from Regional OfficeReview (Washington, D.C.: Environmental Protection Agency,July 1989); Unfinished Business: A Comparative Assessment ofEnvironmental Problems (Washington, D.C.: EnvironmentalProtection Agency, Office of Policy Analysis, February 1987),pp. 8-86; Lawne Mott e Karen Snyder, “Pesticide Alert”, Ami-cus Journal 10, no.2 (Spring 1988), 2; e Information DiseaseAlmanac, 1986 (Boston: Houghton Mifflin, 1986), p. 129.

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Na turnê do livro, eu sugeri que, visto queem toda parte as pessoas estão ficando doentesem decorrência da exposição à tecnologia, seriamelhor se estabelecêssemos um diálogo beminformado e bem fundamentado a respeito datecnologia. Esse diálogo não estava acontecen-do. Em um debate na Rádio Pública Nacionalcom o Professor do Instituto de Tecnologia deMassachusetts Marvin Minsky, o inventor dainteligência artificial, me perguntaram se eutinha alguma objeção aos computadores. Euexpressei a preocupação de que as substânciasquímicas letais utilizadas para fabricar os com-putadores contaminam a biosfera. Eu mencioneiYolanda Lozano, uma trabalhadora de 36 anosde idade de uma fábrica da General Telephoneand Electric em Albuquerque que morreu decâncer depois de ser exposta a produtos quími-cos no trabalho. O Professor Minsky retrucou:“Isso não importa.”. Em um outro momento deminha turnê, a conversa terminou quase antesde haver começado: “Tirem essa mulher do ar!

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Ela é o convidado mais idiota que vocês já tive-ram!”, guinchou um ouvinte do talk-show. “Eunão posso abrir mão da minha mamografia!”, ber-rou uma outra. “Assim que nos encarregarmosdessa questão ambiental”, insistiu um homem emuma feira do livro, “deveríamos colonizar Marte.É imperativo para nossa fé no futuro”.

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Vício tecnológico

Enquanto psicóloga, eu comparo a consciênciapública atual dos impactos da tecnologia à com-preensão que as pessoas tinham do alcoolismo nadécada de 1950. Naquela época, todo mundobebia. Beber era mais do que socialmente aceitá-vel; era exigido. O Alcoólicos Anônimos já existiahá 20 anos e estava crescendo, mas seus membrosainda consideravam um constrangimento perten-cer a essa comunidade. Nos últimos 40 anos,ocorreu uma revolução muito importante em nos-sa consciência do potencial destrutivo do alcoolis-mo. Eu vejo uma necessidade similar na próximadécada de se repensar uma outra dependênciaperigosa: nosso vício em tecnologia.

Não é uma ideia nova que nós que vivemos nasociedade tecnológica de massa sofremos de víciopsicológico em relação a máquinas específicascomo carros, telefones e computadores, e até mes-mo da tecnologia em si mesma. Mas o quadro é

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maior e mais complexo. Tal como o filósofo socialMorris Berman declara em The ReEnchantment ofthe World (O Reencantamento do Mundo):

O vício, de uma forma ou de outra, carac-teriza todos os aspectos da sociedade industri-al. (…) A dependência de álcool, de alimentos,de drogas, de tabaco (…) não é formalmentediferente da dependência de prestígio, de umacarreira bem-sucedida, de influência mundial,de riqueza, da necessidade de se construirbombas mais engenhosas, ou da necessidadede se exercer controle sobre tudo.

O editor da revista Science descreve a dependên-cia da nação em relação ao petróleo como um vício,enquanto o Vice-Presidente Al Gore afirma que esta-mos viciados no consumo da própria Terra2. EmSteps to an Ecology of Mind (Passos para uma Eco-logia da Mente), o filósofo evolutivo Gregory Bate-son assinala que o comportamento viciado está deacordo com a abordagem ocidental da vida, quecoloca mente contra corpo. Bateson conclui: “É de

2 D. F. Koshland, “War and Science”, Science 251, no. 4993 (February 1, 1991), 497; Al Gore, Earth in the Balance (Boston:Houghton Mifflin, 1992).

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se duvidar se uma espécie que tem tanto uma tec-nologia avançada quanto esse estranho modo polari-zado de encarar o mundo é capaz de sobreviver”.

Para esclarecer essa noção de que a sociedadecontemporânea em si mesma está baseada no queeu chamo de “vício tecnológico”, basta lem-brarmo-nos que nenhuma máquina funciona porconta própria. Em outras palavras, ficaremos parasempre aprisionados a uma análise narcisista dotipo “mas eu quero minha mamografia” enquantopercebermos a tecnologia apenas como máquinasespecíficas que ou nos servem individualmente ounão. Aquilo que Lewis Mumford chama de“ordem mecânica” ou de “megamáquina” é todoum sistema psico-sócio-econômico que incluitodas as máquinas em meio a nós; todas as organi-zações e métodos que tornam essas máquinas pos-síveis; aqueles dentre nós que habitam esse cons-truto tecnológico; os modos através dos quaissomos socializados e pelos quais exigem que par-ticipemos do sistema; e os modos pelos quais pen-samos, percebemos e sentimos enquanto tentamossobreviver dentro desse sistema.

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O que estou descrevendo é um sistema socialconstruído pelos humanos e centrado na tecnolo-gia, estabelecido sobre os princípios de padroniza-ção, eficiência, linearidade e fragmentação, comouma linha de montagem que atinge as cotas deprodução, mas não dá a mínima para as pessoasque a operam. Dentro desse sistema, a tecnologiaexerce influência sobre a sociedade. A indústriaautomotiva reorganizou completamente a socieda-de estadunidense no século XX. Da mesma forma,as armas nucleares definem a política global. Aomesmo tempo, a sociedade reflete o ethos (menta-lidade) tecnológico. A organização social doslocais de trabalho, assim como sua arquitetura,refletem os princípios mecanicistas de padroniza-ção, eficiência e cotas de produção.

A partir de nossa experiência cotidiana dentroda sociedade tecnológica de massa, notaremosque atos “normais” como ficar na fila, obedeceraos sinais de trânsito, ou alistar-se no serviçomilitar, todos constituem atos de participaçãonesta grande máquina. Considerar nossas mentes

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e nossos corpos como desconectados na saúde ena doença, ou pensar que o lixo radioativo enter-rado no solo não irá eventualmente infiltrar-se noslençóis freáticos, são sintomas do pensamentofragmentário que emerge dessa ordem mecânica.

A tecnologia e a sociedade estão completamen-te entrelaçadas. “A tecnologia tornou-se nossomeio ambiente assim como nossa ideologia.”,escreve o crítico social holandês Michiel Schwarz,“Não mais usamos a tecnologia, nós a vivemos.”3.

Vine Deloria, um indígena Sioux e autor demuitos livros sobre a história e a política indíge-na, descreve os resultados dessa imbricação soci-otecnológica como “o universo artificial”:

O mundo selvagem transformado emruas de cidades, linhas de metrô, edifíciosgigantescos e fábricas resultou na substitui-ção completa do mundo real pelo mundoartificial do humano urbano. (…) Cercadaspor um universo artificial em que os sinaisde alerta não são a aparência do céu, o grito

3 Michiel Schwarz e Rein Jansma (eds.), The Technological Culture (Amsterdam: De Bailie, 1989), p. 3.

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dos animais, a mudança das estações, massim o mero lampejo do semáforo e a sireneda ambulância e da viatura de polícia, aspessoas do meio urbano não fazem ideia decomo o universo natural é4.

Langdon Winner, em sua obra AutonomousTechnology (Tecnologia Autônoma), leva essaideia mais longe, argumentando que os artefatos eos métodos inventados desde a revolução tecnoló-gica desenvolveram-se em dimensões e em com-plexidade ao ponto de cancelarem nossa capacida-de mesma de compreendermos seu impacto sobrenós. A realidade científico-tecnológica socialmen-te estruturada que agora ameaça determinar todosos aspectos de nossas vidas e cobrir o planetainteiro está fora de controle, afirma ele.

A imersão total, a perda de perspectiva e aperda de controle nos dão uma indicação daconexão entre o processo psicológico do vício eo sistema tecnológico. O vício pode ser com-preendido como uma doença progressiva que

4 Vine Deloria, We Talk, You Listen (New York: Delta, 1970), p. 185.

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começa com mudanças psicológicas interiores eleva a mudanças na percepção, no comportamento eno estilo de vida, e então ao colapso total. O sinaldistintivo desse processo é a compulsão descontrola-da e muitas vezes sem propósito de preencher umasensação perdida de sentido e de conexão com subs-tâncias como o álcool ou experiências como a fama.

Por todo o sistema tecnológico, os sintomasreconhecidos do processo viciante estão desca-radamente evidentes. Eles são óbvios no com-portamento daqueles que promovem a tecnolo-gia para manter o controle sobre a sociedadeou para inflar suas próprias contas bancárias eseus próprios egos. E eles são evidentes paratodos nós porque nossa experiência, nossoconhecimento e nosso senso da realidadeforam moldados pela vida no mundo tecnológi-co. Os sintomas do processo viciante que serãodiscutidos aqui incluem a negação, a desonesti-dade, o controle, os transtornos de pensamento,o sentimento de grandiosidade e a desconexãoem relação aos próprios sentimentos.

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Negação

Um dos sinais distintivos de todo vício é apresença da negação. O alcoólatra praticante fin-ge que tudo está normal e mantém as aparênciasa qualquer custo. Do mesmo modo, em relação àtecnologia e à destruição ambiental, uma posturageneralizada na sociedade de que “esse é o cursonormal das coisas” permeia nossas vidas. A nega-ção abunda. A indústria automotiva dentro e forado país continua produzindo em massa novosmodelos de carros poluentes. A televisão veiculaa propaganda desses carros. Nós continuamos acomprá-los. O governo dos Estados Unidos negauma ligação entre o desenvolvimento tecnológicoe o aquecimento global, enquanto um presidenteapós o outro propõe mais desenvolvimento tecnoló-gico como a resposta ao desastre ambiental. A indús-tria do plástico inunda os mercados mundiais comprodutos derivados do petróleo, valendo-se até mes-mo da ideia de bancos de parque feitos de plásticoreciclado como uma desculpa para produzir ainda

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mais. A medicina oficial nega a existência das doen-ças ambientais. As corporações negam o impactoambiental dos processos de produção tóxicos.

As pessoas que sobreviveram à tecnologia pas-sam por um sofrimento ainda maior, à medida queencontram uma negação generalizada de que suasdoenças sejam causadas pela tecnologia – negaçãopela indústria dos seguros, pelo sistema judiciário,pela medicina oficial, pelos meios de comunicação,e até mesmo por amigos e familiares. Tal como oativista de Love Canal Lois Gibbs me disse:

Eu fui ao pediatra do meu filho e disse:“Veja bem, há oito pacientes que têm vocêcomo médico deles. Todos eles ainda nãocompletaram doze anos de idade, todos elestêm um transtorno urinário semelhante. Qualé o porquê disso? O que você me diz do fatode que você tem oito pacientes que vivem auma distância de alguns quarteirões de LoveCanal que têm a mesma doença?”. Ele medisse: “Não há conexão”5.

5 Chellis Glendinning, When Technology Wounds (New York: Morrow, 1990), p. 66.

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Desonestidade

Este sintoma manifesta-se no alcoólatra noato de beber às escondidas, no comportamentofurtivo, e no ato de mentir a respeito de seussentimentos e atividades. Em relação ao vício emtecnologia, a desonestidade revela-se mais expli-citamente no comportamento de corporações e deagências do governo cujo interesse pessoal é ofe-recer tecnologias nocivas.

Sabemos, por exemplo, que os responsáveispela empresa A. H. Robins, fabricante do DIUDalkon Shield, sabiam de antemão do potencialrisco médico de seu produto. Não obstante,eles colocaram o produto no mercado, e quan-do relatórios e estudos indicando efeitos noci-vos vieram a público, a empresa A. H. Robinsalegou total ignorância6.

6 Morton Mint, At Any Cost: Corporate Greed, Women and the Dalkon Shield (New York: Pantheon, 1985), chapter 3.

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Controle

Os viciados precisam controlar o mundo deles afim de manter o acesso à fonte de sua obsessão.Uma viciada em trabalho que eu conheço, que diri-ge um pequeno instituto, é incapaz de negociar atémesmo o menor dos acordos, porque contribuiçõesde outras pessoas contrariam seu senso de controle.Do mesmo modo, as corporações multinacionais dehoje em dia demonstram uma obsessão em contro-lar os recursos mundiais, os mercados consumido-res, o comportamento dos trabalhadores e a opiniãopública em relação aos seus produtos.

Consideremos também a estrutura mesma datecnologia moderna. Os tipos de tecnologia queuma sociedade desenvolve não são tão absolutosou tão predeterminados quanto nosso ethos(mentalidade) de progresso linear gostaria de nosfazer acreditar; eles expressam os objetivos deuma sociedade, tanto conscientes quanto incons-cientes. Na sociedade tecnológica de massa, háuma notável semelhança entre os tipos de tecno-logia produzidos e os modos tirânicos de poder

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político. Poderíamos, em tese, concentrar nossosesforços tecnológicos em invenções que nospermitiriam satisfazer necessidades humanasbásicas do modo mais sustentável possível. Emvez disso, procuramos desenvolver tecnologi-as, desde barragens até cremes antienvelheci-mento, que nos permitem um grau crescente decontrole sobre o mundo natural.

Esse desejo de controle muitas vezes sai pelaculatra, quando os humanos assumem uma posi-ção de dependência extrema dos artefatos técni-cos, e as fronteiras entre quem é o senhor e quemé o escravo desvanecem. O que acontece com nos-sas vidas quando nossos carros enguiçam ouquando nossos telefones entram em pane? O queacontece quando você não possui um aparelho defax, um computador ou um carro? O domínio datecnologia sobre nossas vidas também se traduzem desempoderamento político. A própria concep-ção, invenção, desenvolvimento e implantação denovas tecnologias envolve um processo socialaltamente não democrático que é racionalizado

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como “progresso”. A experiência de vida daquelesque sobreviveram à tecnologia comprova estefato: geralmente, eles são expostos a eventos tec-nológicos que os privam de sua saúde e de seusmeios de subsistência sem qualquer aviso prévioou possibilidade de escolha.

Se os tipos particulares de tecnologia emmeio a nós existem para promover o domínio e opoder, devemos nos perguntar: para quem? Esobre quem? Os moinhos de vento e as ocasexpressam valores democráticos e ecológicosporque as próprias pessoas que os inventam, pro-duzem e mantêm são as mesmas que os usam.Em contraste, as tecnologias disseminadas nasociedade de massa refletem uma mentalidade decontrole sobre o mundo natural, sobre o espaço,sobre as outras pessoas e até mesmo sobre nósmesmos. Tal como Jerry Mander coloca, manteruma usina nuclear requer um controle rígido ecentralizado tanto por parte do governo quantoda indústria, primeiramente, para levar a caboum projeto que exige tamanho investimento de

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capital; em segundo lugar, para conquistar a opi-nião pública; e finalmente, para oferecer apoiomilitar em caso de sabotagem, acidentes ou pro-testos públicos. A presença de armas nucleares,biológicas e químicas no arsenal de uma naçãonão só controla os inimigos dessa nação; ela tam-bém amedronta e intimida, e, desse modo, con-trola os próprios cidadãos dessa nação.

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Transtornos de pensamento

Os alcoólatras e outras pessoas que abusam desubstâncias tipicamente empregam modos de pensa-mento que servem às necessidades imediatas do vício,ao invés do bem-estar da pessoa em longo prazo. Issose vê, por exemplo, no alcoólatra que bebe para alivi-ar o sofrimento físico e emocional da ressaca.

Do mesmo modo, grande parte do pensamen-to na sociedade tecnológica de massa é disfunci-onal. Muitas pessoas adotam a “solução tecnoló-gica” como resposta para problemas sociais, psi-cológicos e médicos causados por soluções tec-nológicas anteriores. Por exemplo, um programagovernamental proposto pretende cobrir os ocea-nos com placas de poliestireno que, assim seespera, refletirão a luz solar “indesejada” parafora da superfície da Terra e nos salvarão doaquecimento global. De modo semelhante,alguns cientistas sugerem lançar centenas desatélites em órbita ao redor do planeta para blo-quear a luz do Sol7. Isso é pensamento viciadopela tecnologia em sua forma mais sofisticada.

7 Jerry Mander, In the Absence of the Sacred: The Failure of Technology and the Survival of the Indian Nations (San Francis-co: Sierra Club Books, 1991), p. 179.

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Grandiosidade

A ilusão de poder expandido do alcoólatra prati-cante é bem conhecida. A ilusão de grandeza quemove o desenvolvimento tecnológico é menos evi-dente, mais fictícia. Essa grandiosidade insiste quea sociedade tecnológica de massa é superior a todosos outros modos de organização social. Isso impli-ca que a evolução humana é linear e sempre pro-gressiva, e que todas as sociedades deveriam serjulgadas pelo critério das conquistas tecnológicas.

O principal meio de socialização da sociedadetecnológica, as Relações Públicas, é o que dá à tec-nologia sua grandiosidade. “Controle as possibili-dades.”, sugere a propaganda do MasterCard. “Oque exatamente o computador mais poderoso eavançado do mundo pode fazer? Tudo o que elequiser!”, promete o Compaq Desk-Pro. Ao mesmotempo, as “armas inteligentes” postas em açãodurante a Operação Desert Storm (Tempestade noDeserto) e televisionadas em rede nacional propa-gandeiam que a tecnologia estadunidense e os Esta-dos Unidos são “o número um”. Por trás dessa

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insistência deveras fervorosa, encontra-se a com-pulsão fora de controle e muitas vezes sem propósi-to de criar expressões de grandiosidade cada vezmaiores – e o que constitui o sinal distintivo doviciado, de retornar constantemente à fonte de enal-tecimento. Precisamos de mais carros, de mais tele-visores, de mais barragens, de mais tecnologiasnovas para provarmos nossa grandiosidade.

Desconexão em relação aos sentimentos

Os alcoólatras transbordam de emoções, maseles não conseguem expressar-se direta ou cons-trutivamente. Em vez disso, seus sentimentosestão ocultos sob as sombras de seus inconscien-tes, e assim eles negam seus próprios sentimen-tos e vivem em um estado de emoção petrificada.

De modo semelhante, a sobrevivência no sistematecnológico requer que fiquemos “frios” e que noscomportemos como máquinas. O sinal distintivo daeducação tecnológica é aprender matemática paraquantificar a realidade, e dominar o pensamento

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fragmentário para cumprir uma função em um mun-do mecanicista. Cada matéria que aprendemos naescola parece não ter relação com as outras.

A sociedade tecnológica de massa está estru-turada “de cima para baixo”, de modo que a suanatureza fragmentada impede a maioria de nósde sequer vislumbrar uma compreensão do todo.O Projeto Manhattan, que construiu as bombasque mataram centenas de milhares de pessoas emHiroshima e Nagasaki, foi estruturado de acordocom um modelo militar mecanicista. O projetoincluía 37 instalações espalhadas ao longo dosEstados Unidos e do Canadá, cada uma delas for-necendo um fragmento do processo de produ-ção8. No Laboratório de Los Alamos, o trabalho erapropositalmente realizado com uma compartimen-tação de tarefas e uma censura da comunicaçãoentre os cientistas que permitia a cada um dosenvolvidos perder seu senso de vulnerabilidade eenvolver-se em atividades cujas consequências nãopodiam ser sentidas, nem sequer compreendidas.

8 Richard Hewlett e Oscar Anderson Jr., The New World,1939-1946: A History of the Atomic Energy Commission (Uni-versity Park: Pennsylvania State University Press, 1962), p. 3.

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A consequência dessa abordagem da vida é queos sentimentos, as experiências e as percepções tor-nam-se desconectados uns dos outros, e o inconsci-ente torna-se o receptor de sentimentos reprimidos.Como resultado, muitos de nós tendem a ficar emum estado de semiconsciência: as violações hedi-ondas e subterrâneas à nossa volta catalisam nossossentimentos, mas não sendo reconhecidos e nãosendo considerados bem-vindos pelo mundo meca-nicista, nós os extravasamos em comportamentosque não sentimos nem compreendemos; como, porexemplo, jogar a bomba atômica.

Devemos reconhecer o vício sistêmico nasociedade tecnológica de massa se um dia quiser-mos alcançar um estado de bem-estar psicológicoe tecnológico. O movimento de reabilitação em12 passos diz que o viciado precisa fazer “uminventário moral minucioso e corajoso” de simesmo. No nível pessoal, isso inclui assumir aresponsabilidade por casos em que violamos aintegridade de outra pessoa. No nível coletivo,teríamos que assumir a responsabilidade pelas

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incontáveis violações da sociedade tecnológicacontra a humanidade, os animais, o mundo dasplantas e a Terra. Mas para que nossos coraçõesdilacerados possam superar o processo viciante,precisamos ficar atentos. Tal como o psicoterapeutaTerry Kellogg nos diz, o comportamento viciadonão é natural à espécie humana. Ele ocorre porquealguma violação insuportável aconteceu conosco9.

E, de fato, passamos por uma violação insu-portável: um trauma coletivo que explica a rea-lidade insidiosa do vício e do abuso que infun-de nossas vidas na sociedade tecnológica demassa. O Diagnostic and Statistical Manual ofMental Disorder (Manual diagnóstico e esta-tístico de transtornos mentais) define traumacomo “um evento que está fora do espectro daexperiência humana e que seria marcadamenteangustiante para quase todo mundo”10. O trau-ma sofrido por pessoas tecnológicas como nós

9 Terry Kellogg, “Broken Toys, Broken Dreams” (Santa Fe,N.M.: Audio Awareness, 1991).

10 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 3d ed. (Washington, D.C.: American Psychiatric Association, 1987).

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é a remoção sistêmica e sistemática de nossasvidas do mundo natural: das gavinhas de texturasterrosas, dos ritmos do Sol e da Lua, dos espíritosdos ursos e das árvores, da própria força vital. Otrauma é também a remoção sistêmica e sistemáti-ca de nossas vidas do tipo de experiências sociaise culturais que nossos ancestrais tinham quandoeles viviam em sintonia com o mundo natural.

Vine Deloria afirma corretamente que nós,pessoas tecnológicas, “não fazemos a menorideia” de muito daquilo que se encontra fora do“universo tecnológico artificial com o qual esta-mos familiarizados.”. Os seres humanos evoluí-ram ao longo de cerca de três milhões de anos ede cem mil gerações em evolução sincrônicacom o mundo natural. Somos criaturas que surgi-ram da Terra, que são física e psicologicamenteconstituídas para desenvolver-se em intimidadecom a Terra. Há meras trezentas gerações, ou0,003 % de nosso tempo na Terra, os humanos nomundo ocidental iniciaram o processo de contro-le do mundo natural através da agricultura e da

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domesticação de animais. Apenas cinco ou seisgerações se passaram desde que as sociedadesindustriais emergiram a partir desse processo dedomesticação. Nossa experiência na sociedade tec-nológica de massa de fato está “fora do espectro daexperiência humana”, e pelas evidências de sofri-mento psíquico, destruição ecológica e controletecnológico, este modo de vida tem sido “marcada-mente angustiante” para quase todo mundo.

Embora seja um fato amplamente ignorado,evidências saltam das páginas de textos antropo-lógicos sugerindo que as mesmas qualidades psi-cológicas perseguidas com tanto afinco pelosmovimentos psicológicos, espirituais e de reabili-tação de hoje em dia; as igualdades sociais pelasquais os movimentos de justiça social dos dias dehoje lutam tão corajosamente; e as conquistasecológicas perseguidas pelos movimentos ambi-entalistas de hoje em dia, são as mesmas qualida-des e condições sob as quais nossa espécie viveupor mais de 99,997 % de sua existência.

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Os povos baseados na natureza viviam todosos dias de suas vidas no mundo selvagem. Esta-mos apenas começando a compreender como essemodo de vida atendia às expectativas inerentes àpsique humana de desenvolvimento para a maturi-dade e a saúde plenas. Nos povos baseados nanatureza que até hoje ainda mantêm alguns traçosde sua relação com a Terra e com suas culturasbaseadas na Terra, podemos discernir um senso deserenidade resoluto para com a vida cotidiana, umnítido senso de identidade e de dignidade, umasabedoria que a maioria de nós é capaz de admirarapenas de longe e uma ausência do vício e do abu-so que, na civilização, tornaram-se sistêmicos.

A perda dessas experiências psicológicas eculturais em face de uma realidade cada vez maisconstruída pelos humanos e, no fim das contas,determinada pela tecnologia, e a perda de umviver em participação fluída com o mundo selva-gem, constituem o trauma que nos foi legado.

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O sinal distintivo da resposta traumática é adissociação: um processo através do qual efetua-mos uma ruptura em nossa consciência, reprimi-mos campos inteiros de experiência e bloquea-mos nossa plena percepção do mundo. A dissoci-ação resulta não apenas da experiência traumati-zante direta, mas também do tipo de transforma-ções sociais que ocorreram no processo históricode domesticação. Em sua obra Nature and Mad-ness (Natureza e loucura), Paul Shepard descre-ve esse processo como o início de uma dicotomiaoutrora desconhecida entre selvagem e domesti-cado na qual todas as coisas consideradas domes-ticadas (mudas de plantas cultivadas, animaiscapturados e a mentalidade mecanicista e contro-ladora necessária para mantê-los vivos) são valo-rizadas e protegidas, enquanto todas as coisasconsideradas selvagens (“ervas daninhas”, ani-mais selvagens e o modo fluído e participativo deser humano) são consideradas ameaçadoras edignas de serem mantidas à distância.

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Essa divisão entre selvagem e domesticado estána base tanto da personalidade viciada quanto dasociedade tecnológica. Em última análise, essa divi-são nos aprisiona à realidade construída pelos huma-nos e causa todas as dicotomias desnecessárias eproblemáticas com as quais nos debatemos hoje emdia – desde masculino/feminino e mente/corpo, atésecular/sagrado e tecnológico/baseado na Terra.

O afastamento da sociedade tecnológica emrelação ao único lar que um dia conhecemos é umevento traumático que ocorreu ao longo de gera-ções e que ocorre novamente em cada uma dasfases de nossa infância e em nossas vidas cotidia-nas. Em face dessa ruptura, sintomas de estressetraumático não são mais um evento raro causadopor um acidente esdrúxulo ou por condições cli-máticas extremas, mas a substância mesma davida cotidiana de todo homem e de toda mulher.

À medida que a vida humana passa a serestruturada cada vez mais por meios mecanicis-tas, a psique se reestrutura a fim de sobreviver. Oconstruto tecnológico corrói as fontes primárias

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de satisfação que antes faziam parte da rotina davida na natureza selvagem, tais como a nutriçãofísica, a comunidade vital, os alimentos frescos, acontinuidade entre trabalho e sentido, a participa-ção direta nas experiências de vida, nas escolhaspessoais e nas decisões comunitárias, e a cone-xão espiritual com o mundo natural. Essas são asnecessidades que nascemos para satisfazer. Pri-vados da satisfação dessas necessidades, não épossível que tenhamos uma vida saudável. Naausência dessas necessidades, desolada e emchoque, a psique encontra uma satisfação tempo-rária ao buscar fontes secundárias como as dro-gas, a violência, o sexo, os bens materiais e asmáquinas. Embora esses estimulantes possamsatisfazer no momento, eles nunca serão capazesde satisfazer verdadeiramente as necessidadesprimárias. E assim nasce o processo viciante.Tornamo-nos obcecados por fontes secundáriascomo se nossas vidas dependessem delas.

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O mundo hoje está inundado em um mar devícios tanto pessoais quanto coletivos: o alcoo-lismo, o abuso de drogas, o vício em sexo, oconsumismo, os transtornos alimentares, a code-pendência e a beligerância. Em seu livro Co-Dependence (Codependência), a psicoterapeutaAnne Wilson Schaef coloca que, sob esses com-portamentos, encontra-se um processo de adoe-cimento identificável “cujos pressupostos, senti-mentos, comportamentos e falta de ânimo levama um processo de não-vida que é progressiva-mente voltado à morte.”. Embora suas palavrasdescrevam o processo viciante em indivíduos,elas também caracterizam o vício tecnológicoda civilização. A sociedade está viciada em tec-nologias específicas como carros, supercompu-tadores e armas biológicas, e todas elas facili-tam uma propensão doentia ao controle, entor-pecem a psique em relação à dor e nutremmomentaneamente uma sede de poder.

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O vício tecnológico é também um vício a umdeterminado modo de perceber, experimentar epensar. À medida que o mundo tornou-se menosorgânico e mais dependente de soluções tecnoló-gicas para problemas criados por soluções tecno-lógicas anteriores, os humanos renunciaram a umavisão de mundo antes repleta de águas límpidas eimpetuosas, coiotes, constelações de estrelas, len-das dos ancestrais e pessoas cooperando umascom as outras com um propósito sagrado, em tro-ca de uma nova visão de mundo. Mas os ances-trais do mundo ocidental tomaram para si a tarefacrucial de redefinir sua visão de mundo em umestado de deslocamento psíquico, e assim elesacabaram fazendo a projeção de uma visão demundo que reflete a raiva, o terror e a dissociaçãodo estado traumatizado. Eles sonharam não comum mundo do qual os humanos fizessem parteplenamente, mas sim com um mundo que pode-mos definir, compartimentar e controlar. Eles cria-ram a perspectiva linear, o paradigma científico-tecnológico e a visão de mundo mecanicista.

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A vida na Terra empacotada como o produtodessa construção é, para citar o povo Hopi, irre-mediavelmente koyaanisqatsi, ou seja, fora deequilíbrio. Enquanto psicóloga, acredito que lidarcom esse desequilíbrio desde suas raízes exigirámais do que políticas públicas, regulamentaçõesou legislação; é algo que exigirá um processo psi-cológico coletivo para curar a nós, povos tecnoló-gicos que, graças a uma cultura mecanizada, per-deram o contato com nossa humanidade essencial.

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