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93 I SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: OBRA, TEMPO E REFLEXOS RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL Variações sobre a Bendita Sabedoria Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro [email protected] Resumo: Neste texto, trato da transcrição / adaptação para quinteto de metias dos corais de Heitor Villa-Lobos intitulados Bendita Sabedoria e da composição das Variações sobre a Bendita Sabedoria, também para quinteto de metais, bem como teço algumas considerações e reflexões sobre a relação que mantenho com o legado de Villa-Lobos, sobre minha produção composicional recente e sobre a situação do compositor contemporâneo atuante numa instituição federal de ensino superior. Palavras-chave: Villa-Lobos. Corais. Quinteto de metais. Variações. Variations on Bendita Sabedoria Abstract: In this text, I discuss the transcription / adaptation for brass quintet of Villa-Lobos’ chorales Bendita Sabedoria and the composition of Variações sobre a Bendita Sabedoria, also for brass quintet, as well as offering some remarks and considerations about the relation I maintain with Villa-Lobos’ legacy, my recent compositional output and about the situation of Brazilian contemporary composers working in universities. Keywords: Villa-Lobos. Chorales. Brass quintet. Variations. Introdução Em junho de 2015, compus uma peça para quinteto de metais, intitulada Variações sobre a Bendita Sabedoria. Como o título sugere, trata-se de uma série de variações sobre o ciclo de seis peças corais a capela que Heitor Villa-Lobos compôs em 1958, a Bendita Sabedoria, subintitulada Palavras da Bíblia (Villa-Lobos 1958). A peça é fruto de uma solicitação de parceira proposta pelo professor de trompete da Escola de Música da UFRJ, David Alves, e pelo então recém-criado Quinteto de Metais da UFRJ, também integrado pelos demais docentes de instrumentos de metais da instituição, professores Leandro Soares, Phillip Doyle, Wesley Correa e Albert Khattar, aos quais dediquei a composição. 1 RODRIGO CICCHELLI VELLOSO é Professor Associado do Departamento de Composição da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998-). Doutor em Composição Musical pela University of East Anglia (1996). Cursus de compostion et d’inforatique musicale do IRCAM (1997). Bacharel em Composição Musical (1990) e em Flauta Transversa (2014) pelo Instituto Villa-Lobos da Unirio.

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I SIMPÓSIO NACIONAL VILLA-LOBOS: OBRA, TEMPO E REFLEXOS R I O D E J A N E I R O - R J - B R A S I L

Variações sobre a Bendita Sabedoria

Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso1

Universidade Federal do Rio de [email protected]

Resumo: Neste texto, trato da transcrição / adaptação para quinteto de metias dos corais de Heitor Villa-Lobos intitulados Bendita Sabedoria e da composição das Variações sobre a Bendita Sabedoria, também para quinteto de metais, bem como teço algumas considerações e reflexões sobre a relação que mantenho com o legado de Villa-Lobos, sobre minha produção composicional recente e sobre a situação do compositor contemporâneo atuante numa instituição federal de ensino superior.

Palavras-chave: Villa-Lobos. Corais. Quinteto de metais. Variações.

Variations on Bendita Sabedoria

Abstract: In this text, I discuss the transcription / adaptation for brass quintet of Villa-Lobos’ chorales Bendita Sabedoria and the composition of Variações sobre a Bendita Sabedoria, also for brass quintet, as well as offering some remarks and considerations about the relation I maintain with Villa-Lobos’ legacy, my recent compositional output and about the situation of Brazilian contemporary composers working in universities.

Keywords: Villa-Lobos. Chorales. Brass quintet. Variations.

Introdução

Em junho de 2015, compus uma peça para quinteto de metais, intitulada Variações sobre a Bendita Sabedoria. Como o título sugere, trata-se de uma série de variações sobre o ciclo de seis peças corais a capela que Heitor Villa-Lobos compôs em 1958, a Bendita Sabedoria, subintitulada Palavras da Bíblia (Villa-Lobos 1958).

A peça é fruto de uma solicitação de parceira proposta pelo professor de trompete da Escola de Música da UFRJ, David Alves, e pelo então recém-criado Quinteto de Metais da UFRJ, também integrado pelos demais docentes de instrumentos de metais da instituição, professores Leandro Soares, Phillip Doyle, Wesley Correa e Albert Khattar, aos quais dediquei a composição.

1 RODRIGO CICCHELLI VELLOSO é Professor Associado do Departamento de Composição da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998-). Doutor em Composição Musical pela University of East Anglia (1996). Cursus de compostion et d’inforatique musicale do IRCAM (1997). Bacharel em Composição Musical (1990) e em Flauta Transversa (2014) pelo Instituto Villa-Lobos da Unirio.

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Neste artigo, trato do processo de composição das Variações, da transcrição / adaptação para quinteto de metais que realizei dos corais, bem como ofereço algumas considerações e reflexões sobre a relação que mantenho com o legado de Villa-Lobos, sobre minha produção composicional recente e sobre a situação do compositor contemporâneo atuante numa instituição federal de ensino superior.

História de uma encomenda

Na manhã de 30 de abril de 2015, durante uma visita de treinamento realizada nas novas instalações de parte da Escola de Música da UFRJ na Torre Ventura da Avenida Chile, o professor David Alves abordou-me, relatando a recente criação de um Quinteto de Metais integrado por professores da Escola de Música. Colocou-se a minha disposição e de meus alunos para a realização de master classes sobre a escrita para quinteto de metais como forma de estímulo para que escrevêssemos peças para a nova formação.

Entusiasmado com a oferta, agendei de pronto uma sessão durante a aula de Elementos de Composição III, convidando também alunos de outras disciplinas e do Grupo de Pesquisa Oficina de Música Contemporânea. O encontro deu-se no dia 11 de maio de 2015, às 16h, na sala 23 do prédio II da Escola de Música. Os integrantes do grupo realizaram exposições pormenorizadas sobre seus instrumentos, seguidas da execução de exemplos de obras para quinteto, notadamente uma composição de Raphael Batista, o Divertimento Folclórico (Batista 1978). Ao final da sessão, os compositores presentes foram convidados a compor peças ou esboços para testá-los num novo encontro.

O novo encontro deu-se em 15 de junho, também durante a aula de Elementos de Composição III, e contou com a leitura da transcrição / adaptação que realizei dos seis corais da Bendita Sabedoria, dos primeiros esboços das Variações, bem como de esboços de peças dos alunos compositores Hugo Braga e Isabella Oliveira.

Em 24 de junho de 2015, concluí a composição das Variações e a obra permanece aguardando sua primeira audição no momento em que escrevo esta comunicação (outubro de 2015). A seguir, relato as motivações da nova peça e o porquê de trabalhar sobre os corais de Villa-Lobos.

Fio da meada

Durante o primeiro semestre de 2015, compus uma série de peças para diferentes formações, a começar por um quinteto de sopros, intitulado Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos. Esta peça mostrou-se particularmente fértil, tendo desdobrado de um de seus trechos o material que serviu de base à composição de uma peça para orquestra de cordas, intitulada À noite, um homem sozinho procura se recordar. Num determinado momento da peça

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para cordas, um tema marcante – uma segunda menor descendente seguida de um intervalo de quinta justa também descendente – insinuou-se. Recordava-me daquele motivo e, averiguando os recônditos de minha memória, qual um Pestana contemporâneo, pude localizá-lo: tratavam-se dos mesmos intervalos que abrem a primeira das seis peças da Bendita Sabedoria.

À noite, um homem sozinho procura se recordar foi concluída no começo de junho de 2015. Como que “assombrado” pelo motivo de Villa-Lobos, decidi-me a realizar a transcrição dos corais da Bendita Sabedoria como exercício preparatório para a escrita de uma peça original para quinteto de metais, refletindo as lições de orquestração aprendidas com o compositor Ricardo Tacuchian, quando de minha primeira graduação, em Composição, realizada no Instituto Villa-Lobos da Unirio de 1984 a 1990. Mergulhei, assim, não só no universo de Villa-Lobos, mas também em minha vida musical pregressa, pois havia cantado alguns destes corais com o Coral Pro-Arte em meados dos anos 1980. Chegamos a apresentar dois deles (1 e 5) no Festival Villa-Lobos de 1986. Uma curta passagem de nossa apresentação na Sala Cecília Meireles foi registrada em um documentário veiculado pela Rede Manchete de Televisão. A 1 hora e 41 minutos (1:41:00) do vídeo, um close no naipe de baixos revela, momentaneamente, o autor destas linhas na flor de seus 20 anos de idade. O coral executado é o quinto, Beatus homo invenit sapientiam. A regência é de Carlos Alberto Figueiredo.

A partir do exercício das transcrições, decidi-me a realizar uma série de variações. Como explicarei mais adiante, estas variações não seguem o modelo clássico de um tema curto seguido de variantes ornamentais. Antes, porém, de discutir as Variações, tratemos dos corais que lhes dão causa.

Bendita Sabedoria

O referido documentário declara que, em 1958, já diagnosticado com a doença que levaria a sua morte, Villa-Lobos, que teria se declarado ao longo da vida um católico não praticante, compusera então o que seriam as suas mais belas obras sacras. A afirmação levou-me a imaginar, portanto, o homem desenganado que, aproximando-se da morte, procura realizar um acerto de contas com Deus, pavimentando o caminho antes de embarcar na noite derradeira.

Os corais dividem-se em seis peças “para coro misto a seis vozes”, ainda que os numerosos divisi na partitura façam o tecido chegar muitas vezes a oito vozes. Foram compostos em Paris, em 1958, e dedicados à New York University. As palavras, como o título sugere, vêm da Bíblia e encontram sua origem nos seguintes livros: Coral 1 (Sapientia foris predicat) – Provérbios 1, 20; Coral 2 (Vas pretiosum labia scientiae) – Provérbios 20, 15; Coral 3 (Principium sapientiae) – Provérbios 4, 7; Coral 4 (Vir sapiens, fortis est) – Provérbios 24, 5; Coral 5 (Beatus homo invenit) – Provérbios 3, 13; e Coral 6 (Dexeteram tuam sic notam fac) – Salmo 90, 12. Quanto à colocação das palavras em música, a estratégia usada por Villa-Lobos faz uso do canto silábico, com largas passagens melismáticas, sobretudo em fonemas exclamativos (Ah! e Oh!). Do

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ponto de vista da textura, observa-se a alternância de contraponto imitativo, notadamente ao estilo fugato, com passagens homofônicas acordais. Em alguns momentos, notas pedais servem de contrapeso à movimentação em paralelo das demais vozes. As harmonias fazem uso de acordes de caráter tonal, muitas vezes com tétrades e acordes a mais vozes, diatônicos e, com frequência, também alterados. No último dos corais, sobressai a sobreposição de quartas justas, este intervalo sendo ubíquo na partitura, sobretudo como passo entre as vozes em contraponto imitativo.

Para o jovem coralista e estudante de composição, cantar estas peças foi uma grande emoção. Admirador da música de Villa-Lobos e interessado em conhecer melhor sua linguagem, as peças chamaram-me a atenção pela densidade da escrita a muitas vozes, pela mescla de passagens cromáticas e diatônicas, e por não conter caráter nacionalista ou folclórico explícito. Percebia nelas, também, certo arcaísmo estilístico, talvez pelo aspecto “gregoriano” preponderante na movimentação melódica por graus conjuntos de algumas frases, para mim justificado pela temática religiosa. Assim, a mistura de elementos disparatados causava-me grande curiosidade e interesse.

Transcrição / Adaptação para quinteto de metais

Optei pelo uso da expressão composta “transcrição / adaptação” (e não “arranjo”) para descrever o trabalho de recriação destes corais em quinteto de metais, pois procurei ser o mais fiel possível à escrita original de Villa-Lobos, fazendo prevalecer as intenções registradas na partitura.

Cheguei a observar, por exemplo, a articulação oriunda da escrita vocal para orientar as decisões de ligadura e articulação na escrita instrumental. Assim, grosso modo, mudanças de fonemas no canto geram articulação (golpes de língua) nos sopros e manutenção de um mesmo fonema nas vozes (melismas) geram passagens em legato nos sopros.

O desafio maior, porém, foi fazer caber, num grupo com cinco instrumentos melódicos, corais que muitas vezes chegam a oito vozes. Como estratégia norteadora, busquei eliminar redundâncias (dobramentos), e, nos casos em que algumas notas pedais não podiam ser eliminadas sob o risco de descaracterizar a textura, procurei manter as notas características (dissonâncias) das demais vozes. Tomemos como exemplo duas passagens: o acorde a oito que conclui o Coral 5, e uma passagem a oito vozes do Coral 6.

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Exemplo 1. Acorde a oito vozes que conclui o Coral 5.

Exemplo 2. Transcrição / adaptação do acorde do Ex. 1 para quinteto de metais

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Exemplo 3. Passagem a oito vozes do Coral 6

Exemplo 4. Transcrição / adaptação do acorde do Ex. 1 para quinteto de metais

Variações

A composição das Variações, como destaquei anteriormente, não seguiu o padrão clássico de uma curta frase ou pequena forma seguida de variantes ornamentais.

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Os corais são uma composição longa, com seis peças independentes, e quis criar uma espécie de complemento a eles com duração global equivalente. Na simulação em computador que realizei das peças, os corais de Villa-Lobos duram em conjunto aproximadamente 8’20”, enquanto as Variações que compus duram cerca de 8’40”.

Minha estratégia foi reaproveitar motivos, frases, sequências harmônicas e texturas presentes em todos os corais e desenvolvê-los em novos ambientes sonoros. Uma vez estabelecido o jogo inicial, cada seção das Variações prossegue em seu desenvolvimento próprio a partir dos elementos de partida até levar a uma culminância momentânea, seguida de uma dissolução de caráter suspensivo. Assim, a forma geral da composição foi pensada em seções claras, cinco ao todo, sucessivas e sem interrupção, cada uma explorando certo caráter que pode, por sua vez, conter elementos de partes contrastantes dos corais originais, reinterpretados e recontextualizados.

A primeira seção das Variações (compassos 1 a 71) abre com o motivo inicial do Coral 1 – segunda menor descendente seguida de salto descendente de quinta justa, mas transformado pelo andamento mais movido, pelas texturas variadas e pelo caráter de desenvolvimento, conforme ilustram os Exemplos 3 e 4, abaixo.

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Exemplo 5. Página inicial da Bendita Sabedoria, de Heitor Villa-Lobos

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Exemplo 6. Página inicial das Variações sobre Bendita Sabedoria, de Rodrigo Cicchelli

O restante da primeira seção prossegue na exploração do motivo na tuba em contraponto

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com a movimentação paralela ascendente de motivos por quartas justas alusivos ao Coral 6, incialmente nos trompetes, entremeados por uma espécie de duplo cantus firmus a cargo de trompa e trombone.

A seguir, indico resumidamente os elementos que compõem as demais seções.

A segunda seção (compassos 72 a 96) recontextualiza as tercinas do Coral 4, em contraponto com o motivo inicial do Coral 3 e tem caráter quase scherzando.

A terceira seção (compassos 97 a 128) é a segunda mais longa das Variações e tem grande intensidade dramática, explorando uma espécie de duplo ostinato que se choca ou interpenetra gradualmente. Os materiais tem origem nos elementos diversos do Coral 5 – notas pedais, progressões de acordes alterados e melodia por graus conjuntos.

A quarta seção (compassos 129 a 147) volta a trabalhar sobre as tercinas (e as terças) do Coral 4, com alusão à atmosfera do Coral 2, mas projetando sua expressão para aquilo que concebo como uma das facetas arquetípicas de Villa-Lobos, o seu lado “modinhesco”, aqui transfigurado na languidez da frase do trombone e na flutuação quase impressionista da harmonia e da rítmica de rubato escrito.

A quinta e última seção (compassos 148 a 193), a mais longa, recai sobre um fugato – inevitável – que tem como sujeito a frase dos sopranos do Coral 1 (compassos 17 a 20). Este tema é contraposto a diversos contrapontos, o principal deles oriundo do motivo inicial dos Corais. O fugato se desenvolve por diversos climas, passa por uma aceleração gradual e, após a recapitulação variada de algumas passagens de seções anteriores, desemboca num grand finale de muita intensidade rítmica e harmônico-melódica, levando a um gesto ascendente muito rápido – motus in fine velocior – e, também, como nas seções anteriores, de caráter suspensivo.

Presença de Villa-Lobos

Para compositores de minha geração, que nasceram após sua morte, Villa-Lobos é, indiscutivelmente, a figura máxima da música brasileira da primeira metade do século XX. Um grande compositor “do passado” sobre quem recaía, porém e curiosamente, uma apreciação ambivalente. Ao mesmo tempo incensado como “o” compositor brasileiro, grande “gênio da raça”, dele muitos procuravam se distanciar e, não raro, nos meios vanguardistas, sua música era tratada com certo ar blasé, quando não francamente esnobada, como se ele tivesse tido a obrigação (e falhado) em comungar das linguagens que se tornaram dominantes no pós-segunda guerra. Assim, para muitos, Villa-Lobos deveria ser rejeitado por não ter praticado uma linguagem composicional “sistemática”. A ideia de nacionalismo, nos anos de minha formação (década de 1980) era por sua vez também rejeitada. Nisto, certamente, a “ressaca” da ditadura militar ufanista que todos procurávamos suplantar promoveu uma espécie de afastamento das coisas do Brasil, percebidas, então, como retrógradas. E abrir-se para o novo significou,

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novamente, para nós, os colonizados, que tínhamos que voltar a admirar (e imitar) os modelos da vanguarda europeia...

Em anos recentes, com o surgimento de estudos aprofundados sobre a linguagem composicional de Villa-Lobos, dentre os quais destaco Villa-Lobos: Processos Composicionais, de Paulo de Tarso Salles, e Sobre Poética e Forma em Villa-Lobos: Primitivismo e Estrutura nos Choros Orquestrais, de Guilherme Bernstein Seixas, nova luz tem sido lançada sobre sua obra. Quem sabe, num futuro não muito distante, suas composições possam ser estudadas nos cursos universitários de composição, em pé de igualdade com Stravinsky, Bartok, Schoenberg e seus demais contemporâneos. Durante minha graduação em composição, porém, nem uma única peça de Villa-Lobos foi analisada nas diversas disciplinas que cursei, uma lástima. É como se, nos cursos de literatura, ignorassem a obra de Machado de Assis ou como se, nas Belas Artes, não quisessem saber de Portinari...

Ao aproximar-me dos 50 anos de idade e vencer, finalmente, a juventude (ufa!), tenho me reaproximado da música de Villa-Lobos e da música de seus “sucessores”. Um deles – César Guerra-Peixe – foi meu primeiro professor de composição, com quem estudava na mesma época em que cantei estes corais. Esta tem sido uma reaproximação sem ideias preconcebidas de qualquer natureza e que tem promovido a renovação de meu próprio fôlego criativo. Assim, o quinteto de sopros Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos foi composto para “dialogar” com o Trio (1986) que compusera sob a orientação de Guerra-Peixe e que recebeu, em 1987, por ocasião do centenário de Villa-Lobos, o 1º prêmio no Concurso Villa-Lobos de Composição, promovido pela Escola de Música da UFRJ. Este concurso contou, na banca, com nomes como Mário Tavares, Heitor Alimonda e Henrique Morelenbaum.

E o que tenho (re)descoberto em Villa-Lobos? Um compositor imensamente criativo, plural e... de vanguarda! A vitalidade e a variedade rítmica, a ousadia e as inovações timbrísticas, o colorido orquestral, as massas sonoras, a sinuosidade das melodias... Ora, não adotou um único “método”? Não fez música dodecafônica ou serial? E daí?! Agora que o serialismo se torna, definitivamente, coisa do passado, nada como o passar do tempo para revalorizar o que há de genuíno, inovador e inspirador na obra de nossos antepassados, sem a tensão da comparação com dogmatismos passageiros.

Considerações Finais

Na universidade contemporânea temos sido instados a promover intercâmbios com colegas de outras instituições e países e, muitas vezes, esquecemo-nos de dialogar com aqueles que trabalham na porta ao lado.

Em tempos recentes, porém, tenho procurado compor para meus colegas – e não para festivais ou concursos internacionais. Este é o caso dos Seis Estudos de Allures, para flauta, piano e eletrônica, de 2012. Encomenda da XX Bienal de Música Brasileira Contemporânea da

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Funarte, eles foram escritos tendo em mente Eduardo Monteiro e Flavio Augusto, que fizeram sua estreia ao meu lado em 2013.

As Variações marcam, portanto, mais uma etapa na aproximação com meus colegas professores de instrumento da Escola de Música da UFRJ. Neste sentido, tenho dito repetidamente a meus alunos: “quero me tornar um compositor ‘provinciano’!” E tenho recomendado a eles: “conversem com quem quer conversar com vocês!”

Tenho convicção de que será deste diálogo que irá surgir uma nova onda na cultura musical brasileira, onde o estímulo mútuo irá promover um novo e inspirador momento criativo em nossa cidade e em nosso país, revalorizando os compositores e instrumentistas brasileiros.

A César o que é de César? Deixemos Darmstadt para os alemães!

Referências

BATISTA, Rapahel. 1978. Divertimento Folclórico. Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. 1987. Trio (1986). Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. 2015. À noite, um homem sozinho procura se recordar. Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. 2015. Bendita Sabedoria – transcrição / adaptação para quinteto de metais. Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. 2015. Invenções, Interlúdios e Ritornellos Imperfeitos. Manuscrito.

CICCHELLI (Velloso), Rodrigo. 2015. Variações sobre a Bendita Sabedoria. Manuscrito.

SALLES, Paulo de Tarso. 2009. Villa-Lobos: Processos Composicionais. Campinas: Editora UNICAMP.

SEiXAS, Guilherme Bernstein. 2015. Sobre Poética e Forma em Villa-Lobos: Primitivismo e Estrutura nos Choros Orquestrais. Curitiba: Editora Prismas.

VILLA-LOBOS, Heitor. 1958. Bendita Sabedoria. Paris: Max Eschig.