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  • 7/29/2019 Valor92-Instituies e estouvamento

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    Instituies e estouvamento

    Fbio Wanderley Reis

    Dias atrs, em entrevista, o presidente da Capes, Jorge Guimares, fezdeclaraes de alguma repercusso sobre a concesso de bolsas de doutoradoem economia no exterior. De acordo com ele, nossos doutorandos se viriamformando segundo um modelo que faliu o mundo e que se teria mostradototalmente anticientfico, para dizer o mnimo, donde a necessidade dereexame da poltica da Capes a respeito.

    fcil apontar o que isso pode conter de distoro. Apesar de que JorgeGuimares fale de perguntar rea de economia, pode haver, e houve, aleitura segundo a qual se trataria de uma agncia estatal a dizer o que boacincia econmica, com base em avaliao discutvel sobre o que ocorre emdeterminado momento em seu campo prprio de estudo. Mas o tema envolve aquesto da relao entre o Estado, como representante da coletividadenacional e supostamente atento aos seus interesses gerais, e a comunidade dosque se dedicam atividade cientfica em diversos campos.

    No limite, h dois extremos negativos, o da imposio de diretrizes feitaautoritariamente pelo Estado aos especialistas e o de um tecnocratismo emque os especialistas ou peritos, tomando como no problemticos os fins aorientarem seu trabalho de pesquisa e ensino e baseando-se em suaqualificao especial quanto ao conhecimento tcnico dos meios para a

    busca daqueles fins, reclamam autonomia nas decises pertinentes. Se aquesto enquadrada pelo desiderato de uma sociedade e um Estadodemocrticos, a ponderao decisiva a de que os fins da atividade cientfica,

    como quaisquer outros, podem, sim, surgir como problemticos do ponto devista da sociedade, e h um espao legtimo para a poltica (e para osinteresses que nela se do, que os cientistas com frequncia abominam) nafixao dos fins a serem perseguidos. A presuno tem de ser a de que so oscidados os melhores juzes dos seus interesses em qualquer rea, e em ltimaanlise deve caber a eles, ou a seus representantes num Estado

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    democraticamente constitudo (sobretudo se so pblicos os recursos de quedependem as atividades), as decises sobre os fins: se necessrio, que os

    peritos se expliquem quanto aos meios, ou quanto aos aspectos tcnicos dosproblemas. E que possa haver o equilbrio apropriado entre sensibilidade e

    responsabilidade democrticas, de um lado, e, de outro, a autonomianecessria prtica cientfica.

    O assunto apresenta pontos de contato com outro que tem dado muitomais pano para mangas, o do ativismo do Judicirio, que se vem tornandomilitante e, com seus prs e contras, complicando a definio da rea decompetncia dos diferentes poderes e suas relaes. Com a invocao defilsofos alemes, Gilmar Mendes tem falado de uma representao

    argumentativa da sociedade a ser exercida pelo STF, em contraste com arepresentao resultante do voto popular que se teria no Legislativo. Se lidacomo envolvendo a suposio de que no h argumentao no exerccio darepresentao parlamentar, a posio pode ser acusada de arrogncia e,tambm ela, de tecnocratismo: seria esse o caso se prevalecesse a suposiode que o Judicirio, ou o STF, dispe de uma competncia tcnica especial,a do conhecimento das leis, que lhe permitiria de alguma forma apreender eacomodar os prprios fins da coletividade e represent-los virtualmente.Mas as coisas so confusas.

    Para comear, claro que o debate e a argumentao so parteimportante do enfrentamento e das eventuais manobras que compem aatividade parlamentar e h at quem sustente, reivindicando perspectivasafins ao chamado realismo legal, que o debate marcado pelo empenho dedar representao real aos interesses diversos, apesar (ou por causa) dedistanciar-se da idealizao do debate conduzido pelo juiz imparcial esupostamente orientado apenas pelos melhores argumentos, torna-se um

    debate melhor. Mas o realismo legal ele mesmo equvoco, remetendo tanto aessa representao estratgica de interesses quanto disposio por parte do

    juiz de ir alm da letra da lei em prol de valores supostamente mais altos.Ele serve, assim, de fundamento ao prprio ativismo do Judicirio: no se trataapenas de colocar em prtica a lei cujo conhecimento seria o apangio do STF,mas tambm de sua reinterpretao e mudana pela corte na condio de

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    porta-voz do povo e segundo valores que emergem da interpretao ativada Constituio realizada cotidianamente por todo cidado. Indo mais longe, adinmica de uma representao argumentativa passa, na verdade, de virtuala, em certo sentido, real, e fatalmente precria como tal, ao valer-se de

    audincias pblicas em que os amigos da corte, definidos a critrio doprprio rgo judicial, so chamados a manifestar-se.

    Do ponto de vista de uma sociologia jurdica, no caberia negar o queh de justificado, em geral, no recurso a postulados realistas, que seriam,ademais, presumivelmente um requisito mesmo para a construo de normas einstituies melhores. Mas, assim como se mostram complicadas as relaesentre sociedade, Estado e comunidade cientfica a que enviam as declaraes

    do presidente da Capes, assim tambm dificilmente aceitvel que sejam asprprias cortes de Justia, sem mais, a transformarem de maneira estouvada oprincpio talvez saudvel de um realismo sociologicamente informado (que, departida, remete a disciplinas em que os juzes no tm por que pretenderespecial competncia ou qualificao) em novas normas e procedimentos deduvidosas consequncias para a segurana jurdica. imperioso que, com asreformas que se faam necessrias, nosso Legislativo venha a reafirmar comvigor o seu papel.

    Valor Econmico, 8/12/2008

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