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    Apreciar com moderao

    Fbio Wanderley Reis

    Num livrinho aparentemente saboroso (The Joy of Drinking, resenhadoh pouco noNew York Times), Barbara Holland traz divertido relato em queos 55 delegados Conveno Constitucional de 1787, os pais fundadoresdos Estados Unidos, aparecem interrompendo o trabalho para um descanso,dois dias antes de complet-lo. Renem-se ento numa taverna e consomem,de acordo com a conta de algum modo salva para a histria, 54 garrafas deMadeira, 60 de clarete, 8 de usque, 22 de Porto, 8 de aguardente de ma e 7

    tijeles de ponche, to grandes que, segundo se disse, patos poderiam nadarem crculo dentro deles. Depois voltam ao trabalho e acabam de fundar anova Repblica.

    No pretendo avaliar a relevncia do relato para a questo momentosada publicidade de bebidas alcolicas entre ns, ou para as matrias j velhasdo prprioNYTsobre Lula e a bebida. Registro apenas a curiosidade de umatarefa que a histria contempla com solenidade sendo executada de maneirarelaxada, a ponto de os atores se permitirem um intervalo de esbrnia

    alcolica.

    Essa imagem de relaxamento etlico e bonacheiro nas origens de umagrande obra institucional choca-se, porm, com discusses recentes deaspectos relevantes da vida americana. Uma delas se refere alta religiosidadeque persiste no pas, fazendo dele um caso claramente desviante diante daforte correlao, em nvel mundial, entre a prosperidade ou a modernidadegeral dos pases (altos nveis de desenvolvimento econmico, urbanizao,

    educao etc.) e a ocorrncia de secularizao.

    Pippa Norris e Ronald Inglehart (em Sacred and Secular, de 2004)vinculam a correlao a um sentimento bsico de insegurana existencialque seria propcio religiosidade. Esse sentimento se liga com a pobreza e ainsegurana material, e o aumento do nmero de pessoas religiosas no planeta,

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    que alguns destacam, se deveria ao fato de os pases pobres terem maiorestaxas de fecundidade do que os ricos. Mas liga-se tambm com traosmodernos que se do de maneira especialmente ntida nos Estados Unidos(ao lado da desigualdade comparativamente alta e da imigrao, preservando a

    operao de fatores tradicionais). E ocorre que tais traos modernos sojustamente os que fazem do pas o caso por excelncia de dinamismo e xitodos mecanismos competitivos da nova dinmica econmica globalizada. Somuitos, ponderam os autores, os ganhos em prosperidade trazidos pela culturaempresarial americana e a nfase na responsabilidade pessoal; o preo,contudo, so as ansiedades decorrentes, mesmo para as classes mdias

    profissionais, dos riscos de desemprego, os perigos de problemas inesperadosde sade sem adequado seguro mdico privado, a vulnerabilidade diante do

    crime, as dificuldades de financiar o cuidado prolongado dos idosos todauma srie de aspectos com respeito aos quais a comparao com os pases daEuropa ocidental deixa os Estados Unidos em ntida desvantagem. Nessa

    perspectiva, no de admirar que, alguns anos atrs, o aparecimento deentusisticas apologias da nova economia, como The Wealth of Choices, deAlan Murray, se desse junto com o impacto da publicao deBowling Alone,de Robert Putnam, em que se aponta o colapso da cultura cvica e a corrosodo capital social no pas.

    Certas ou erradas as teses de Norris e Inglehart especificamente quantoa religiosidade e secularizao, as ansiedades da insegurana existencial seintensificam no s na dinmica competitiva do capitalismo, em particular emsua reafirmao liberal, mas talvez especialmente nos processos de transioao capitalismo de qualquer tipo e de seu aprofundamento. Os desdobramentosno plano sociopoltico mais amplo no podem deixar de ser importantes, tantomais quando a transio do tradicional ao moderno ocorre ou se completanas circunstncias da nova dinmica econmica. Em interessante contraponto

    a Norris e Inglehart, Adam Ashforth observa a frica do Sul ps-apartheid emostra (em Witchcraft, Violence and Democracy in South Africa, de 2005)como a prpria abertura de oportunidades de avano econmico e educacional

    para os sul-africanos negros produz o aumento da desigualdade entre eles,trazendo ressentimentos e cimes e envenenando, como sintetiza algum mais,as relaes entre vizinhos, amigos e parentes com a consequncia, talvez

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    surpreendente aos nossos olhos, de fazer crescer intensamente o recurso aprticas tradicionais de feitiaria, que estendem sua penetrao da vidacotidiana e se desdobram em violncia e em dilemas e dificuldades para aao governamental em campos diversos, includo o combate Aids, que afeta

    grande parte da populao.

    Mas a intensificao das condies de insegurana e ansiedade podemser apreciadas em seus efeitos polticos num contexto mais familiar. Nomundo anterior globalizao e nova dinmica econmica, mesmo a luta

    poltica e seus instrumentos por excelncia, os partidos, foram com frequnciavistos como contribuindo decisivamente no para a ruptura, mas para aintegrao social. Isso se aplica em especial aos partidos de orientao

    socialista, cuja evoluo terminou em que se tivesse a mumificao dosobjetivos ideolgicos e revolucionrios, preservados retoricamente paraefeitos de identidade coletiva (e pessoal), em combinao com a convivncia

    pragmtica com o sistema sociopoltico e a insero realista no processoeleitoral. A luta de classes democrtica resultava, assim, em propiciar ummundo estruturado e psicologicamente seguro e o convite participao

    poltica significativa e, por assim dizer, aconchegante.

    E agora, num Brasil com democracia, mas em mudana e sem sequerluta de classes como tema e foco de organizao da ao poltica? Comoinsegurana e ansiedade se ligaro aos variados processos anmicos que vmmarcando a vida brasileira?

    Valor Econmico, 11/6/2007

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