vai onde te leva o coracao

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Susanna Tamaro

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  • Susanna TamaroVai Aonde Te Leva o CoraoTtulo original: "Va' Dove Ti Porta Il Cuore"

  • Antes de mais, importa dizer que estamos perante um romance jclebre e celebrado pelos seus mltiplos xitos, desde o factode se ter convertido no livro mais vendido em Itlia nasltimas dcadas at s numerosas tradues no mundo inteiro.

    Livro-sensao, livro de descoberta ou de redescoberta e porisso mesmo livro no alheio diversidade de reaces.

    Atravs de um registo em que trs geraes de mulheresdialogam, numa voz que reconta as suas vidas, Susanna Tamaroserve-se dessa estrutura narrativa para confrontar osdiferentes tempos vividos e reavaliar este ciclo geracional. Aleitura deste livro enleante, quase hipntica, comovente, oque justifica talvez o seu imenso sucesso internacional. Deresto, a circulao do livro a esta escala surpreendentedeve-se a um fenmeno de passagem de testemunho de leitor paraleitor traduzido numa verdadeira consagrao pblica doromance de Susanna Tamaro que o tem mantido ininterruptamenteno topo das preferncias de leitura.

  • Para Pietro

    "Oh Xiva, o que a tua realidade?O que este universo to cheio de espanto?Que coisa forma a semente?Quem serve de meo roda do universo?O que esta vida para alm da forma que invade as formas?Como se pode entrar nela totalmente, por cima do espao e dotempo, dos nomes e dos sinais?Esclarece as minhas dvidas"!

    De um texto sagrado do xivasmo caxemirense

  • Opicina, 16 de Novembro de 1992

    Partiste h dois meses e h dois meses, exceptuando um postalonde me comunicavas que ainda estavas viva, que no tenhonotcias tuas. Esta manh, estive parada durante muito tempono jardim, diante da tua rosa. Apesar de o Outono j iravanado, destaca-se com a sua cor prpura, solitria earrogante, sobre o resto da vegetao j murcha. Lembras-te dequando a plantmos? Tinhas dez anos e leras h pouco tempo "OPrincipezinho. Ofereci-to como prmio por teres passado declasse. Ficaste encantada com a histria. As tuas personagenspreferidas eram a rosa e a raposa; no gostavas nada do baob,da serpente, do aviador, nem de todos aqueles homens vazios epresunosos que andavam a vaguear, sentados sobre os seusplanetas minsculos. Por isso, uma manh, enquanto comamos,disseste-me: "Quero uma rosa." Quando te respondi que jtnhamos muitas, disseste: "Quero uma que seja s minha, querocuidar dela, faz-la crescer." Claro que, para alm da rosa,tambm querias uma raposa. Esperta como todas as crianas,pediste a coisa mais simples antes da coisa quase impossvel.Como poderia negar-te a raposa depois de te ter oferecido arosa? Discutimos durante muito tempo e acabmos por nosdecidir por um co.Na noite antes de o irmos buscar, no pregaste olho. De meiaem meia hora, batias porta do meu quarto e dizias: "Noconsigo dormir." s sete da manh, j tinhas tomado opequeno-almoo, e j estavas lavada e pronta; de casacovestido, esperavas por mim sentada na poltrona. s oito emeia, estvamos porta do canil; ainda estava fechado. Tu,olhando por entre as grades, perguntavas: "Como hei-de saberqual o meu?" Havia uma grande ansiedade na tua voz. Eusossegava-te, no te preocupes, dizia, lembra-te de como oPrincipezinho domesticou a raposa.Voltmos ao canil trs dias a seguir. L dentro havia mais deduzentos ces e tu querias ficar com eles todos. Paravasdiante de todas as jaulas e ficavas imvel e absorta,aparentemente indiferente. Entretanto, os ces arremessavam-secontra as redes, ladravam, davam saltos, tentavam arrancar asmalhas com as patas. A encarregada do canil estava connosco.Para te estimular, mostrava-te os exemplares mais bonitos,julgando que eras uma menina como as outras: "Olha para aquele"cocker"", dizia. Ou ento: "O que te parece aquele "lassie"?"Respondias com uma espcie de grunhido e continuavas a andar,sem a ouvir.

    Foi no terceiro dia daquela via-sacra que encontrmos o

  • "Buck"". Estava numa das jaulas das traseiras, ondealojavam os ces convalescentes. Quando chegmos diante dagrade, em vez de correr para ns, como todos os outros, ficousentado no seu lugar e nem sequer levantou a cabea. "Aquele",exclamaste tu, apontando com um dedo. "Quero aquele co, ali."Lembras-te da cara estarrecida da mulher? No conseguiaperceber porque querias ficar com aquele cachorro to feio.Sim, porque o "Buck"" era pequeno de tamanho, mas, na suapequens, estavam includas quase todas as raas do mundo. Acabea de lobo, as orelhas moles e baixas de co de caa, aspatas geis de um baixote, a cauda vaporosa de um raposinho ea pelagem negra e fulva de um "dobermann". Quando fomos aoescritrio para assinar os papis, a empregada contou-nos asua histria. Tinha sido atirado de um carro, no incio doVero. No voo ferira-se gravemente e era por isso que uma daspatas de trs pendia como morta.Agora, o "Buck" est aqui, ao meu lado. Enquanto escrevo,suspira de vez em quando e aproxima a ponta do nariz da minhaperna. J h algum tempo que o focinho e as orelhas estoquase brancos, nos olhos j se lhe pousou aquele vu que sepousa sempre sobre os olhos dos ces velhos. Comovo-me aov-lo. como se aqui, ao meu lado, estivesse uma parte de ti,a parte que mais amo, aquela que, h muitos anos, soubeescolher o hspede mais infeliz e mais feio dos duzentos quehavia no canil.

    Durante os ltimos meses, enquanto andava a vaguear pelasolido da casa, os anos de incompreenso e mau-humor da nossaconvivncia foram desaparecendo. As recordaes que h minhavolta so recordaes de quando eras criana, cachorrinhovulnervel e perdido. a essa criana que escrevo, no pessoa fechada e arrogante dos ltimos tempos. Sugeriu-mo arosa. Esta manh, quando passei junto dela, disse-me: "Peganum papel e escreve-lhe uma carta." Sei que um dos pactos quefizemos no momento da tua partida era no nos escrevermos, e a custo que o respeito.Estas linhas nunca iro ter contigo Amrica. Se eu j c noestiver quando regressares, estaro aqui, tua espera. Porque que digo isto? Porque h menos de um ms, pela primeira vezna minha vida, estive gravemente doente. Por isso, agora seique entre todas as coisas possveis h tambm esta: daqui aseis ou sete meses, poderei j no estar c para te abrir aporta, para te abraar. H algum tempo que uma amiga me disseque a doena, quando atinge as pessoas que nunca sofreram denada, manifesta-se de uma forma imediata e violenta. Foiexactamente o que se passou comigo: uma manh, estava eu aregar a rosa, algum apagou a luz de repente. Se a mulher do

  • senhor Razman no me tivesse visto atravs da sebe que separaos nossos jardins, quase certo que a esta hora estariasrf. rf? assim que se diz quando morre uma av? Notenho a certeza. Se calhar, os avs so considerados toacessrios que no exigem um termo que especifique a suaperda. Dos avs no se rfo nem vivo. De uma formanatural, deixam-nos pelo caminho, como por distraco sedeixam ficar, pelo caminho, os guarda-chuvas.

    Quando acordei no hospital, no me lembrava de nada. De olhosainda fechados, sentia que me tinham crescido uns bigodeslongos e macios, bigodes de gato. Mal abri os olhos, vi queeram dois tubinhos de plstico; saam-me do nariz econtinuavam ao longo dos lbios. minha volta, s haviamquinas estranhas. Uns dias depois, fui transferida para umquarto normal, onde j havia mais duas pessoas. Uma tarde, osenhor Razman e a mulher foram visitar-me. "Se ainda estviva", disse-me ele, "deve-o ao seu co, que ladrava como umlouco."Quando j tinha comeado a levantar-me, apareceu no quarto umjovem mdico que eu j tinha visto de outras vezes, durante asvisitas. Pegou numa cadeira e sentou-se junto da minha cama."Como no tem parentes que possam tomar medidas e decidir porsi", disse-me ele, "tenho de lhe falar sem intermedirios ecom toda a sinceridade." Falava, e enquanto falava, mais doque ouvi-lo, olhava-o. Tinha os lbios finos e, como sabes,nunca me agradaram as pessoas de lbios finos. Segundo dizia,o meu estado de sade era to grave que no me permitiaregressar a casa. Deu-me o nome de dois ou trs asilos comservio de enfermagem para onde eu poderia ir viver. Pelaminha expresso deve ter percebido qualquer coisa porque, derepente, acrescentou: "No pense que como os asilos deantigamente, agora completamente diferente, h quartoscheios de luz e grandes jardins a toda a volta, onde se podepassear." "Doutor", perguntei-lhe eu, "conhece os esquims?""Claro que conheo", respondeu, levantando-se. "Pois , sabe,eu quero morrer como eles", e como ele parecia no entender,acrescentei, "prefiro cair de borco no meio das abboras daminha horta a viver mais um ano pregada a uma cama, num quartode paredes brancas." Nessa altura, j ele estava porta.Sorria, maldoso. " o que dizem muitos", afirmou, antes dedesaparecer, "mas, no ltimo momento, vm todos a correr terconnosco para os curarmos, e tremem como folhas."

    Trs dias depois, assinei um papel ridculo em que declaravaque, se por acaso morresse, a responsabilidade tinha sido

  • minha e s minha. Entreguei-o a uma jovem enfermeira de cabeapequena e duas enormes argolas de ouro nas orelhas e depois,com as minhas poucas coisas metidas num saco de plstico, fuiat paragem dos txis.

    Mal o "Buck" me viu aparecer na cancela, comeou a andar svoltas como um louco; depois, para provar que estava feliz,devastou ladrando dois ou trs canteiros. Dessa vez no tivecoragem para me zangar com ele. Quando veio ter comigo com onariz sujo de terra, disse-lhe: "Ests a ver, meu velho?Estamos outra vez juntos", e fiz-lhe ccegas atrs dasorelhas.Nos dias seguintes, pouco ou nada fiz. Depois do acidente, aparte esquerda do corpo j no obedece como outrora s minhasordens. Sobretudo a mo tornou-se muito lenta. Mas como meirrita que seja ela a vencer, fao tudo para a utilizar maisdo que a outra. Atei um fiozinho cor-de-rosa ao pulso, eassim, sempre que tenho de pegar numa coisa, lembro-me de usara esquerda e no a direita. Enquanto o corpo funciona, no nosapercebemos do grande inimigo que ele pode ser; se cedemos navontade de o contrariar mesmo por um instante, estamosperdidos.Em todo o caso, e dada a minha reduzida autonomia, dei umacpia das chaves mulher do Walter. ela quem vem visitar-metodos os dias e me traz tudo aquilo de que necessito.Enquanto vou girando entre a casa e o jardim, penso em tiinsistentemente, uma verdadeira obsesso. J por vrias vezesfui at ao telefone e levantei o auscultador com a inteno dete mandar um telegrama. No entanto, mal atendiam da central,decidia sempre no o fazer. noite, sentada na poltrona - minha frente, o vazio, e minha volta, o silncio -perguntava a mim mesma o que seria melhor. O que seria melhorpara ti, claro, no para mim. Para mim, claro que seriamelhor ir-me embora tendo-te a meu lado. Tenho a certeza deque, se te tivesse avisado da minha doena, teriasinterrompido a tua estada na Amrica e terias vindoimediatamente para c. E depois? Depois, talvez eu vivessemais trs, quatro anos, se calhar numa cadeira de rodas, secalhar meio apatetada e tu, por dever, terias tratado de mim.T-lo-ias feito com dedicao mas, com o correr do tempo, essadedicao ter-se-ia transformado em raiva, em rancor. Rancorporque os anos teriam passado e terias desperdiado a tuajuventude; porque o meu amor, com o efeito de um "boomerang",teria metido a tua vida num beco sem sada. Era o que a vozque no queria telefonar-te dizia dentro de mim. Mal decidiaque era ela quem tinha razo, uma voz oposta surgia de repente

  • no meu esprito. O que te aconteceria, perguntava a mim mesma,se, ao abrires a porta, em vez de me encontrares a mim e ao"Buck", todos contentes, encontrasses a casa vazia,desabitada h muito tempo? Existir algo de mais terrvel doque um regresso que no consegue cumprir-se totalmente? Setivesses recebido um telegrama a avisar-te da minha morte, nopensarias numa espcie de traio? Numa ofensa? Como nosltimos meses tinhas sido muito malcriada comigo, eucastigava-te, indo-me embora sem te avisar. Isso no teriasido um "boomerang", mas um turbilho, acho que quaseimpossvel sobreviver a uma coisa dessas. O que devias dizer pessoa querida fica para sempre dentro de ti; ela est ali,debaixo da terra, e tu no podes olh-la nos olhos, abra-la,dizer-lhe o que ainda no lhe tinhas dito.

    Os dias iam passando e eu no tomava nenhuma deciso. Depois,hoje de manh, a sugesto da rosa. Escreve-lhe uma carta, umpequeno relato dos teus dias que continue a fazer-lhecompanhia. E por isso aqui estou, na cozinha, com um velhocaderno teu minha frente, a mordiscar a caneta como umacriana que no sabe fazer os deveres. Um testamento? Nopropriamente, mas algo que te acompanhe durante anos, algo quepossas ler sempre que sintas necessidade de me ter junto deti. No tenhas medo, no quero fazer nenhum sermo nementristecer-te, s quero tagarelar um pouco com a intimidadeque antigamente nos ligava e que, nos ltimos anos, perdemos.Como j vivi muito e deixei atrs de mim muitas pessoas, seique os mortos pesam menos pela ausncia do que por aquilo que- entre eles e ns - no foi dito.Sabes, dei por mim a fazer o papel de me j um tanto entradanos anos, na idade em que normalmente se apenas av. Issoteve muitas vantagens. Vantagens para ti, porque uma av-me sempre mais atenta e mais bondosa do que uma me-me, evantagens para mim, porque, em vez de me imbecilizar como asmulheres da minha idade entre uma canasta e uma matin noteatro, fui de novo arrastada com prepotncia para o fluxo davida. A certa altura, porm, algo se partiu. A culpa no eranem minha nem tua, era das leis da natureza.

    A infncia e a velhice so muito semelhantes. Em ambos oscasos, por motivos diferentes, -se bastante inerme. Ainda no- ou j no - se toma parte activa na vida e isso permiteque se viva com uma sensibilidade sem esquemas, aberta. durante a adolescncia que uma couraa invisvel comea aformar-se em volta do nosso corpo. Forma-se durante aadolescncia e continua a engrossar durante toda a idade

  • adulta. O processo do seu crescimento parece-se um pouco com odas prolas, quanto maior e mais profunda a ferida, maisforte a couraa que se desenvolve em torno dela. Contudo,depois, medida que o tempo vai passando, como um vestido quese usou durante muito tempo, essa couraa comea a gastar-senas partes mais usadas, deixa ver a trama, e de repente, a ummovimento mais brusco, rasga-se. De incio no damos conta denada, estamos convencidos de que a couraa ainda nos envolvetotalmente, at que um dia, inesperadamente, por uma coisaestpida, sem sabermos porqu, damos por ns a chorar comoumas crianas.Por isso, quando digo que entre mim e ti se intrometeu umadiferena natural, precisamente isso que quero dizer. Napoca em que a tua couraa comeou a formar-se, a minha jestava em farrapos. Tu no suportavas as minhas lgrimas e euno suportava a tua inesperada dureza. Embora estivessepreparada para o facto de o teu temperamento mudar com aadolescncia, quando essa mudana ocorreu foi-me muito difcilsuport-la. De repente, havia uma pessoa nova diante de mim eeu j no sabia como devia tratar essa pessoa. noite, nacama, no momento de assentar ideias, sentia-me feliz com o quese estava a passar contigo. Dizia para comigo, quem passa aadolescncia ileso nunca vir a ser uma pessoa verdadeiramenteadulta. Mas, de manh, quando me batias com a porta na cara,que depresso, que vontade de chorar! No conseguia encontrarem parte alguma a energia necessria para te fazer frente. Seum dia, chegares aos oitenta anos, compreenders que, nessaidade, as pessoas sentem-se como folhas em finais de Setembro.A luz do dia dura menos e a rvore comea lentamente a chamara si as substncias nutritivas. O azoto, a clorofila e asprotenas so sorvidas pelo tronco e com elas vai-se tambm overde, a elasticidade. Ainda se est suspenso l em cima, massabe-se que por pouco tempo. Uma aps outra, as folhasvizinhas vo caindo, v-las cair, vives no terror de que ovento se erga. Para mim, o vento eras tu, a vitalidadeconflituosa da tua adolescncia. Alguma vez te apercebestedisso, minha querida? Vivemos na mesma rvore, mas em estaesto diferentes.Lembro-me do dia da partida. Estvamos muito nervosas, noestvamos? Tu no quiseste que eu fosse contigo ao aeroporto,e a cada coisa que eu te dizia para levar, respondias: "Voupara a Amrica, no vou para o deserto." porta, quando tegritei com a minha voz odiosamente estridente: "Tem cuidadocontigo", sem sequer te voltares, despediste-te, dizendo:"Trata bem do "Buck" e da rosa."Na altura, sabes, fiquei um tanto desiludida com essa

  • despedida. Como velha sentimental que sou, esperava uma coisadiferente e mais banal, um beijo ou uma frase afectuosa. S noite, quando, sem conseguir adormecer, andava de roupo pelacasa vazia, que percebi que tratar do "Buck" e da rosaqueria dizer cuidar daquela parte de ti que continua a viverjunto de mim, a parte feliz de ti. E percebi que, na securadaquela ordem, no havia insensibilidade, mas a tenso extremade uma pessoa que est quase a chorar. a couraa de quefalava h pouco. Ainda a tens, e to apertada que quase norespiras. Lembras-te do que eu te dizia nos ltimos tempos? Aslgrimas que no saem depositam-se no corao, com o passar dotempo vo formando uma crosta e paralisam-no, como o calcriose encrosta e paralisa as engrenagens da mquina de lavar.Bem sei que os meus exemplos extrados do universo da cozinha,em vez de te fazerem rir, fazem-te bufar de raiva. Tempacincia: cada pessoa vai buscar inspirao ao mundo queconhece melhor.Agora, tenho de te deixar. O "Buck" suspira e olha-me com unsolhos implorantes. A regularidade da natureza tambm semanifesta nele. Seja qual for a estao, sabe que chegou ahora de comer com a preciso de um relgio suo.

  • 18 de Novembro

    Esta noite, choveu muito. Era uma chuva to violenta queacordei por vrias vezes com o rudo que fazia ao bater naspersianas. De manh, quando abri os olhos, convencida de que otempo ainda estava mau, fiquei a aboborar durante muito tempoentre os cobertores. Como as coisas mudam com os anos! Quandotinha a tua idade, dormia como uma pedra, se ningum meperturbasse era capaz de dormir at hora do almoo. Agora,porm, antes da madrugada j estou acordada. Assim, os diastornam-se muito longos, interminveis. H uma certa crueldadeem tudo isto, no achas? As horas da manh so as maisterrveis, no h nada que nos ajude a distrair, est-se paraali e sabe-se que os pensamentos s podem andar para trs. Ospensamentos de um velho no tm futuro, na sua maioria sotristes, melanclicos. Interroguei-me muitas vezes a mim mesmaacerca dessa esquisitice da natureza. Outro dia, vi nateleviso um documentrio que me fez pensar. Era sobre ossonhos dos animais. Na hierarquia zoolgica, dos pssaros paracima, todos os animais sonham muito. Sonham os melharucos e ospombos, os esquilos e os coelhos, os ces e as vacas deitadasnos prados. Todos sonham, mas no do mesmo modo. Os animaisque, por natureza, so sobretudo presas tm sonhos breves, noso bem sonhos, so aparies. Os predadores, pelo contrrio,tm sonhos complicados e longos. "Para os animais", dizia olocutor, "a actividade onrica uma forma de organizar asestratgias de sobrevivncia, quem caa tem de criar formassempre novas de arranjar comida, quem caado - e costumacomer a erva que encontra sua frente - s tem de pensar no modo mais rpido de fugir." Em suma, oantlope, quando est a dormir, v diante dele a savanaaberta; o leo, pelo contrrio, numa constante e variadarepetio de cenas, v tudo o que ter de fazer para conseguircomer o antlope. Deve ser assim, disse ento para comigo,quando se jovem, -se carnvoro, e quando se velho,herbvoro. Porque os velhos, para alm de dormirem pouco, nosonham, ou se sonham no se lembram do que sonharam. Quando se criana ou jovem, a sim, sonha-se muito e os sonhos tm opoder de definir o humor do dia. Lembras-te das crises dechoro que tinhas, nos ltimos meses, logo ao acordar? Ficavaspara ali sentada diante da chvena de caf, e as lgrimascaam-te silenciosas pelas faces. "Porque que ests achorar?" perguntava-te eu ento, e tu, desolada ou furiosa,respondias: "No sei." Na tua idade, h muitas coisas aorganizar intimamente, h projectos e, nos projectos,inseguranas. A parte inconsciente no possui uma ordem ou uma

  • lgica clara, mistura as aspiraes mais profundas aosresduos do dia, empolados e disformes, e introduz asnecessidades do corpo entre as aspiraes mais profundas.Assim, se se tem fome, sonha-se que se est sentado mesa eno se consegue comer, se se tem frio, sonha-se que se est noPlo Norte e no se tem casaco, se algum foi grosseiroconnosco, convertemo-nos em guerreiros sedentos de sangue.Que sonhos tens tu a, no meio dos cactos e dos "cow-boys"?Gostava muito de saber. Quem sabe se, de tempos a tempos, noapareo l no meio, talvez vestida de pele-vermelha? Ou o"Buck", disfarado de coiote? Tens saudades? Lembras-te dens?Sabes, ontem noite, enquanto estava a ler sentada napoltrona,. ouvi de repente no quarto um rudo compassado,ergui a cabea do livro e vi o "Buck" que, enquanto dormia,ia batendo com a cauda no cho. Pela expresso ditosa dofocinho, tenho a certeza de que te estava a ver diante dele,talvez tivesses acabado de chegar e ele estava a dar-te asboas-vindas ou ento estava a lembrar-se de algum passeioparticularmente bonito que tenhas dado com ele. Os ces soto permeveis aos sentimentos humanos, com a convivnciadesde a noite dos tempos tornmo-nos quase iguais. Por isso htantas pessoas que os detestam. Vem demasiadas coisas de simesmas reflectidas no seu olhar terno e humilde, coisas quepreferiam ignorar. Neste momento, o "Buck" sonha muitas vezescontigo. Eu no consigo, ou talvez sim, mas no consigolembrar-me.Quando era pequena, viveu durante algum tempo em nossa casauma irm do meu pai, que tinha ficado viva h pouco tempo.Era uma apaixonada pelo espiritismo e quando os meus pais nonos estavam a ver, nos cantos mais escuros e escondidos,falava-me dos poderes extraordinrios da mente. "Se queresentrar em contacto com uma pessoa que est longe", dizia-meela, "tens de pegar numa fotografia dessa pessoa, fazer umacruz dando trs passos e depois dizer: estou aqui." Assim,dizia ela, poderia comunicar telepaticamente com a pessoadesejada.Foi o que fiz esta tarde, antes de comear a escrever. Deviamser umas cinco horas, para esses lados j devia ser manh.Viste-me? Ouviste-me? Eu vi-te num daqueles bares cheios deluzes e de ladrilhos onde se comem pezinhos com almndegasdentro, descobri-te logo no meio daquela multido coloridaporque trazias a ltima camisola que eu te fiz, aquela que temos veados vermelhos e azuis. Mas a imagem foi to breve epareceu-se tanto com as dos telefilmes que no tive tempo paraver a expresso dos teus olhos. s feliz? Isso o que mais me

  • interessa.Lembras-te de quantas discusses tivemos para decidir se erajusto ou no que eu financiasse essa tua longa estada noestrangeiro? Tu afirmavas que te era absolutamente necessria,que, para cresceres e aumentares os teus conhecimentos,precisavas de te ir embora, de deixar o ambiente asfixiante emque tinhas crescido. Mal terminaras o liceu e andavas scegas, na escurido mais completa, sem saber o que gostariasde fazer quando fosses grande. Em criana tinhas muitaspaixes: querias ser veterinria, exploradora, mdica dascrianas pobres. Nenhum destes desejos deixou o mais pequenorasto. Com os anos, a disponibilidade que tinhas manifestadopara com teus semelhantes foi desaparecendo; tudo o que erafilantropia, desejo de comunho, depressa se transformou emcinismo, solido, concentrao obsessiva no teu infelizdestino. Se por acaso a televiso dava alguma notciaparticularmente cruel, rias-te da compaixo das minhaspalavras, dizendo: "Na tua idade de que te admiras? Ainda nosabes que o que governa o mundo a seleco da espcie?"Das primeiras vezes, perante observaes destas, ficava semflego, parecia-me que tinha um monstro junto de mim;observando-te pelo canto do olho, perguntava a mim mesma dedonde terias tu sado, se era isso que eu te tinha ensinadocom o meu exemplo. Nunca te respondi, mas pressentia que otempo do dilogo terminara, que, fosse o que fosse que eudissesse, s poderia haver discusso. Por um lado, tinha medoda minha fragilidade, da intil perda de foras, por outro,pressentia que o que tu querias era precisamente o conflitoaberto, que a seguir ao primeiro haveria outros, cada vezmais, cada vez mais violentos. Sob as tuas palavras sentiafervilhar a energia, uma energia arrogante, prestes aexplodir e contida a custo; a forma como eu limava as arestas,a minha indiferena fingida perante os teus ataquesobrigaram-te a procurar outros caminhos.Ento ameaaste-me de te ires embora, de desapareceres daminha vida sem dar mais notcias. Se calhar estavas esperado desespero, das splicas humildes de uma velha. Quando tedisse que partir seria uma ptima ideia, comeaste a hesitar,parecias uma serpente que, de cabea bruscamente erguida,goelas abertas e pronta a ferir, deixa, de sbito, de ver apresa sua frente. E comeaste a pactuar, a fazer propostas,propostas diversas e vagas, at ao dia em que, com uma novasegurana, diante da chvena de caf, me anunciaste: "Vou paraa Amrica."Acolhi essa deciso como acolhi as outras, com um interessesimptico. No queria, com a minha aprovao, obrigar-te a

  • fazer opes apressadas, que no sentias profundamente. Nassemanas seguintes, continuaste a falar-me da ideia da Amrica."Se for para l um ano", repetias, obcecada, "pelo menos,aprendo uma lngua e no perco tempo." Ficavas terrivelmenteirritada quando te fazia notar que perder tempo no nada degrave. O mximo da irritao, porm, atingiste-o quando tedisse que a vida no uma corrida, mas um tiro ao alvo: o queconta no a poupana de tempo, mas a capacidade de sedescobrir um centro. Havia duas chvenas em cima da mesa que,de repente, fizeste voar, varrendo-as com um brao, depoisdesataste a chorar. "s uma estpida", dizias, escondendo orosto com as mos. "s uma estpida. No percebes que mesmoisso que eu quero?" Durante semanas fomos como dois soldadosque, depois de terem enterrado uma mina num campo, tomam todasas precaues para no lhe passarem por cima. Sabamos ondeela estava, como ela era, e passvamos ao lado, fingindo que acoisa a temer era outra. Quando deflagrou e tu soluavasdizendo-me no percebes nada, nunca percebers nada, tive defazer um esforo enorme para no te revelar a minha confuso.Nunca te falei da tua me, do modo como te concebeu, da suamorte, e o facto de o calar levou-te a acreditar que, paramim, nada disso existia, que era pouco importante. Mas a tuame era minha filha, talvez no te tenhas apercebido disso. Outalvez sim, mas em vez de o dizeres, guarda-lo ciosamentedentro de ti, de outra forma no posso explicar alguns dosteus olhares, certas palavras carregadas de dio. Da tua me, parte o vazio, no tens outras recordaes: eras aindademasiado pequena no dia em que morreu. Mas eu, eu guardona memria trinta e trs anos de recordaes, trinta e trsanos mais os nove meses em que a trouxe no ventre.Como podes pensar que isso me deixa indiferente?Se no fui a primeira a falar desse assunto, foi apenas porpudor e por uma boa dose de egosmo. Pudor, porque erainevitvel que, ao falar dela, tivesse de falar de mim, dasminhas culpas verdadeiras ou presumveis; egosmo, porqueesperava que o meu amor fosse to grande que cobrisse a faltado seu, que te impedisse um dia de teres saudades dela e de meperguntares: "Quem era a minha me, porque morreu?"Enquanto foste criana, ramos felizes juntas. Tu eras umamida muito alegre, mas na tua alegria no havia nada desuperficial, de esperado. Era uma alegria sobre a qual pairavasempre a sombra da reflexo, passavas das gargalhadas para osilncio com uma facilidade surpreendente. "O que , em queests a pensar?" perguntava-te eu ento, e tu, como sefalasses da merenda, respondias-me: "Penso se o cu acaba ouse continua em frente, para sempre." Sentia-me orgulhosa por

  • seres assim, a tua sensibilidade parecia-se com a minha, nome sentia uma pessoa crescida ou distante, mas ternamentecmplice. Enganava-me, queria convencer-me de que iria serassim para sempre. Mas infelizmente no somos seres suspensosem bolas de sabo, que vagueiam felizes pelos ares; nas nossasvidas h um antes e um depois, e esse antes e esse depois souma ratoeira para os nossos destinos, pousam-se sobre ns comouma rede se pousa sobre a presa. Diz-se que as culpas dos paisrecaem sobre os filhos. verdade, bem verdade, as culpasdos pais recaem sobre os filhos, as dos avs recaem sobre osnetos, as dos bisavs recaem sobre os bisnetos. H verdadesque geram um sentimento de libertao e h outras que nosfazem sentir algo de horrendo. Esta pertence segundacategoria. At onde vai a cadeia das culpas? At Caim? Serpossvel que tudo tenha de remontar a tempos to longnquos?Haver algo por detrs de tudo isto? Um dia, li num livroindiano que o destino possui todo o poder e que o esforo davontade no passa de um pretexto. Depois de o ter lido, umagrande paz desceu sobre a minha alma. Todavia, no diaseguinte, umas pginas mais frente, li que o destino apenas o resultado das aces passadas, e que somos ns, comas nossas mos, que forjamos o nosso prprio destino. E volteiao ponto de partida. Onde estar a soluo de tudo isto,perguntei-me. Qual ser o fio que se doba? Ser um fio ou umacadeia? Poder cortar-se, partir-se, ou envolve-nos parasempre?Entretanto, quem corta sou eu. A minha cabea j no o queera, as ideias continuam a l estar, claro, o que mudou nofoi a forma de pensar, mas a capacidade de aguentar um esforoprolongado. Estou cansada, sinto a cabea a andar roda comoquando era rapariga e tentava ler um livro de Filosofia. Ser,no ser, imanncia... depois de ler algumas pginas, sentia-meto atordoada como se andasse a viajar de camioneta porestradas de montanha. Deixo-te por agora, vou estupidificar-memais um pouco diante daquela amada odiada caixinha que est nasala-de-estar.

  • 20 de Novembro

    De novo aqui, terceiro dia do nosso encontro. Ou melhor,quarto dia e terceiro encontro. Ontem, estava to cansada queno consegui escrever nada, nem ler. Como estava inquieta eno sabia o que fazer, andei todo o dia entre a casa e ojardim. O ar estava bastante ameno e nas horas de maior calorsentei-me no banco ao p da forstia. minha volta, a relvae os canteiros estavam na mais absoluta desordem. Ao v-los,veio-me ideia a zaragata que houve por causa das folhascadas. Quando foi? No ano passado? H dois anos? Eu tinhaestado com uma bronquite que custava a passar, as folhasestavam todas em cima da relva, rodopiavam de um lado para ooutro, arrastadas pelo vento. Ao debruar-me da janela, sentiuma grande tristeza, o cu estava escuro, havia um grande arde abandono l fora. Fui ter contigo ao quarto, estavasdeitada na cama com os auscultadores colados aos ouvidos.Pedi-te por favor para pegares no ancinho e limpares asfolhas. Para me fazer ouvir, tive de repetir a frase porvrias vezes, cada vez mais alto. Encolheste os ombros,perguntando: "Porqu? Na Natureza ningum as apanha, ficampara ali a apodrecer e assim que deve ser." Nessa poca, aNatureza era a tua grande aliada, conseguias justificar tudocom as suas leis inabalveis. Em vez de te explicar que umjardim uma natureza domesticada, uma natureza-co que, deano para ano, se vai parecendo cada vez mais com o dono e que,tal como um co, precisa constantemente de cuidados, fui paraa sala de estar sem dizer mais nada. Pouco depois, quandopassaste minha frente para ires buscar qualquer coisa aofrigorfico, viste que estava a chorar, mas no fizeste caso.S hora de jantar, quando saste mais uma vez do quarto eperguntaste "o que que se come?", que reparaste que euainda estava no mesmo stio e que ainda estava a chorar.Ento, foste para a cozinha e comeaste a mexer nas panelas."O que preferes", gritavas da cozinha para a sala de estar,"um pudim de chocolate ou uma omeleta?" Tinhas compreendido que a minha dor era verdadeira e tentavas ser simptica, agradar-me de qualquer forma. Na manh seguinte, mal abri as portadas da janela, vi-te na relva, chovia muito, estavas com o impermevel amarelo e apanhavas as folhas. A pelas nove horas, quando voltaste para casa, fingi que nada se tinha passado, sabia que o que mais detestavas era aquela parte de ti que te levava a ser boa.Esta manh, ao olhar desolada para os canteiros do jardim,pensei que vou ter de chamar algum para acabar com o desleixoem que me deixei cair durante e depois da doena. Penso nissodesde que sa do hospital, mas nunca me resolvo a faz-lo. Como passar dos anos fui-me tornando muito ciosa do meu jardim,no renunciarei por nada deste mundo a regar as dlias, a

    TaniaHighlight

  • tirar de um ramo uma folha seca. estranho porque, quandoera rapariga, aborrecia-me muito cuidar dele: ter um jardimparecia-me mais uma maada do que um privilgio. De facto,bastava que a ateno diminusse por um dia ou dois para que,de repente, sobre aquela ordem to cansativamente alcanada,surgisse de novo a desordem, e se havia alguma coisa que meaborrecia era a desordem. No possua um centro dentro de mim,por isso no suportava ver no exterior aquilo que havia cdentro. Devia ter-me lembrado disso quando te pedi paraapanhares as folhas!H coisas que s se podem compreender quando se tem uma certaidade: entre elas, a relao com a casa, com tudo o que estdentro dela e em volta dela. De repente, aos sessenta, setentaanos, compreende-se que o jardim e a casa j no so um jardime uma casa onde se viveu por comodidade, por acaso ou por serbonito, mas o nosso jardim e a nossa casa, que nos pertencemcomo a concha pertence ao molusco que vive no seu interior.Formmos a concha com as nossas secrees, a nossa histriaest gravada nas suas volutas, a casa-casca envolve-nos, estpor cima de ns, nossa volta, talvez nem mesmo a morte aliberte da nossa presena, das alegrias e dos sofrimentos quesentimos dentro dela.Ontem noite, como no me apetecia ler, vi televiso. Mais doque ver, para falar verdade, ouvi, porque nem passada uma meiahora de programa passei pelo sono. Ouvia as palavras de temposa tempos, um pouco como quando se vai no comboio e se fecha osolhos e os discursos dos outros viajantes chegam at ns,intermitentes e sem sentido. Estavam a transmitir um inquritojornalstico sobre as seitas de finais do milnio. Haviadiversas entrevistas a santes verdadeiros e fingidos e nomeio do seu rio de palavras a palavra "karma" chegou-me porvrias vezes aos ouvidos. Mal a ouvi, lembrei-me da cara domeu professor de filosofia do liceu.Era jovem e muito anticonformista para a poca. Quandoexplicou Schopenhauer, falou-nos um pouco das filosofiasorientais e, ao falar delas, referiu-se ao conceito de"karma". Nessa altura, no prestei muita ateno ao assunto, apalavra e o que ela exprimia tinham-me entrado por um ouvido esado pelo outro. Durante muitos anos s ficou em mim asensao de que era uma espcie de lei de Talio, algo do tipo"olho por olho, dente por dente" ou "quem as faz, paga-as". Squando a directora do jardim-escola me chamou para me falardos teus estranhos comportamentos que o "karma" - e o que aele est ligado - me voltou ideia. Tinhas posto em alvorooa escola toda. De repente, durante a hora dedicada aos temaslivres, tinhas desatado a falar da tua vida anterior.

  • Primeiro, as professoras pensaram que se tratava de umaexcentricidade infantil. Ao ouvirem a tua histria, tentaramminimizar, fazer-te cair em contradio. Mas tu no caste, eat pronunciaste palavras numa lngua que ningum conhecia.Quando isso se repetiu pela terceira vez, a directorachamou-me ao jardim-escola. Para teu bem e para bem do teufuturo, aconselharam-me a levar-te a um psiclogo. "Com otrauma que teve", dizia ela, " normal que se porte assim, quetente evadir-se da realidade." Claro que nunca te levei aopsiclogo, parecias-me uma criana feliz, era mais levada aacreditar que essa tua fantasia no provinha de um mal-estarpresente mas de uma ordem diferente das coisas. Depois disso,nunca te obriguei a falar-me do caso, nem tu, por tuainiciativa, sentiste necessidade de o fazer. Talvez te tenhasesquecido de tudo no prprio dia em que o disseste diante dasprofessoras estarrecidas.Tenho a sensao de que, nestes ltimos anos, passou a estarmuito na moda falar dessas coisas; antigamente, eram assuntospara alguns eleitos, mas agora andam na boca de toda a gente.H j algum tempo li num jornal que, na Amrica, at existemgrupos de autoconscincia em torno da reencarnao. As pessoasrenem-se e falam das suas existncias anteriores. Assim, adona-de-casa diz: "No sculo XIX, era prostituta em NewOrleans, por isso, agora no consigo ser fiel ao meu marido",enquanto o gasolineiro racista afirma que o seu dio devidoao facto de ter sido devorado pelos bantus durante umaexpedio no sculo XVI. Que tristes imbecilidades! Perdidasas razes culturais, procura-se remendar a monotonia e aincerteza do presente com as existncias passadas. Se o ciclodas vidas tem algum sentido, creio que um sentido muitodiferente.Na poca dos acontecimentos no jardim-escola, arranjei unslivros, para te compreender melhor tentei saber algo maissobre o assunto. Num desses ensaios, dizia-se que as crianasque recordam com preciso a sua vida anterior so as quemorrem precocemente e de uma forma violenta. Certas obsessesinexplicveis luz das tuas experincias de criana - o gsa sair dos tubos, o medo de que tudo pudesse explodir de ummomento para o outro - faziam-me inclinar para este tipo deexplicao. Quando estavas cansada, ansiosa ou a dormir, erasinvadida por terrores irracionais. O que te atemorizava noera o homem de negro, as bruxas ou os lobisomens, era o medoinesperado de que o universo das coisas explodisse de ummomento para o outro. Nas primeiras vezes, quando apareciasaterrorizada no meu quarto, a meio da noite, levantava-me ecom palavras ternas levava-te de novo para o teu. A, deitada

  • na cama, agarrando-me na mo, querias que te contassehistrias que acabassem bem. Receando que eu dissesse qualquercoisa de terrvel, contavas-me primeiro a intriga de fio apavio, e eu limitava-me a repetir servilmente as tuasinstrues. Repetia a histria uma, duas, trs vezes: quandome levantava para voltar para o meu quarto, convencida de queestavas mais calma, a tua voz chorosa chegava at mim, jperto da porta: "Est bem assim?" perguntavas, " verdade queacaba sempre assim?" Ento, eu voltava para trs, beijava-tena testa e ao beijar-te dizia: "No pode acabar de outramaneira, minha querida, juro-te."Outras noites, porm, embora no estivesse de acordo em quedormisses comigo - dormir com os velhos no faz bem scrianas - no tinha coragem para te meter outra vez na tuacama. Mal sentia a tua presena junto da mesinha-de-cabeceira, sem me voltar, tranquilizava-te: "Esttudo sob controlo, nada vai explodir, volta para o teuquarto." Depois, fingia mergulhar num sono imediato eprofundo. Ento ouvia a tua respirao muito leve, por unsinstantes imvel, pouco depois a borda da cama rangiabaixinho, com movimentos cautelosos deslizavas para junto demim e adormecias exausta como um ratinho que, aps um grandesusto, regressa ao calor da sua toca. De madrugada, paraparticipar no jogo, pegava-te ao colo, morna, abandonada, e levava-te para o teu quarto, para acabares dedormir. Ao acordares, era muito raro lembrares-te de algumacoisa, estavas quase sempre convencida de que tinhas passado anoite toda na tua cama.Quando esses ataques de pnico ocorriam durante o dia,falava-te com ternura. "No vs como a casa forte",dizia-te, "v s como as paredes so grossas, como queres quepossam explodir?" Mas os meus esforos para te tranquilizareram totalmente inteis, de olhos arregalados continuavas aolhar para o vazio tua frente, repetindo: "Tudo podeexplodir." Nunca deixei de me interrogar acerca desse teuterror. O que seria essa exploso? Seria a recordao da tuame, do seu fim trgico e inesperado? Ou pertencia quela vidaque com to inslita ligeireza tinhas narrado s professorasdo jardim-escola? Ou seriam as duas coisas ao mesmo tempo,misturadas num qualquer lugar inacessvel da tua memria?Sabe-se l. Apesar do que se diz, julgo que na cabea do homemcontinua a haver mais sombras do que luz. Contudo, no livroque comprei dessa vez, tambm se dizia que h muito maiscrianas que recordam outras vidas na ndia e no Oriente, nospases onde a prpria ideia de outras vidas tradicionalmenteaceite. No me custa nada a acreditar. Imagina s o que

  • aconteceria se, um dia, eu fosse ter com a minha me e, semqualquer pr-aviso, tivesse comeado a falar numa outralngua, ou lhe tivesse dito: "No te suporto, estava muitomelhor com a minha me na outra vida." Podes ter a certeza deque ela no esperava nem um dia para me meter num manicmio.Existir uma fresta por onde possamos libertar-nos do destinoque nos imposto pelo ambiente de origem, de tudo o que osnossos antepassados nos transmitiram pela via do sangue?Talvez. Quem sabe se, a certa altura, algum no consegueentrever, na sequncia claustrofbica das geraes, um degraumais alto e com todas as suas foras tenta l chegar? Quebrarum anel, fazer entrar no quarto um ar diferente, a tens ominsculo segredo do ciclo das vidas. Minsculo, mas muitofatigante, terrvel pela sua incerteza.A minha me casou-se aos dezasseis anos; quando eu nasci,tinha dezassete. Em toda a minha infncia, ou melhor, em todaa minha vida, nunca a vi fazer um nico gesto afectuoso. O seucasamento no foi um casamento de amor. Ningum a tinhaobrigado, a deciso tinha sido dela porque, como era rica masjudia e ainda por cima convertida, o que mais ambicionava erapossuir um ttulo de nobreza. O meu pai, mais velho do queela, baro e melmano, tinha-se apaixonado pelos seus dotes decantora. Depois de terem procriado o herdeiro que o bom nomeexigia, viveram imersos em zangas e vinganas at ao fim dosseus dias. A minha me morreu insatisfeita e cheia de rancor,sem nunca ter tido a mais pequena dvida de que ao menos umaparte da culpa era dela. O mundo que era cruel porque nolhe tinha proporcionado opes melhores. Eu era muitodiferente dela, e aos sete anos, j sem aquela dependncia daprimeira infncia, comecei a no a suportar.Sofri muito por causa dela. Passava a vida a andar de um ladopara o outro e sempre e s devido a causas externas. A suapresumvel "perfeio" fazia-me sentir m, e a solido era opreo da minha maldade. De incio, fazia algumas tentativaspara poder ser como ela, mas eram tentativas desajeitadas quefalhavam sempre. Quanto mais me esforava, pior me sentia. Aauto-renncia conduz ao desprezo. Do desprezo raiva o passo pequeno. Quando percebi que o amor da minha me era algo quetinha apenas a ver com a aparncia, com aquilo que eu deviaser e no com o que eu era de facto, comecei a odi-la, nosegredo do meu quarto e do meu corao.Para no ceder a esse sentimento, refugiei-me num mundo muitomeu. noite, na cama, escondendo a luz com um pano, lialivros de aventuras at altas horas. Gostava muito defantasiar. Durante algum tempo, sonhei que era pirata, viviano mar da China e era uma pirata muito especial, porque no

  • roubava para mim, mas para dar tudo aos pobres. Das fantasiascom bandidos passava para as filantrpicas, pensavalicenciar-me em Medicina e partir para frica, para tratar dospretinhos. Aos catorze anos, li a biografia de Schliemann epercebi que nunca por nunca poderia tratar das pessoas, porquea minha nica e verdadeira paixo era a arqueologia. De todasas infinitas actividades que imaginei vir a exercer, creio queessa era a nica verdadeiramente minha.De facto, para concretizar esse sonho, travei a primeira enica batalha com o meu pai: ir para Clssicas. Ele nem queriaouvir falar nisso, dizia que no servia para nada, que, serealmente eu queria estudar, era melhor aprender lnguas. Sejacomo for, acabei por vencer. Quando transpus o limiar doporto do liceu, tinha a certeza absoluta de que vencera.Enganava-me. No final dos estudos, quando comuniquei a minhainteno de ir para a Universidade, para Roma, a sua respostafoi peremptria: "Nem bom falar disso." E eu, como entoera costume, obedeci sem dizer palavra. Nunca se deveacreditar que vencer uma batalha significa que se venceu aguerra. um erro de juventude. Agora, ao pensar nisso, achoque, se tivesse lutado, se tivesse teimado, o meu pai teriaacabado por ceder. A sua recusa categrica fazia parte dosistema educativo da poca. No fundo, pensava-se que os jovensno eram capazes de tomar decises prprias. Por conseguinte,quando manifestavam alguma vontade diferente, tentava-sep-los prova. Como eu tinha capitulado ao primeiroobstculo, tinham considerado mais do que evidente que no setratava de uma verdadeira vocao mas de um desejo passageiro.Para o meu pai, e para a minha me, os filhos eram, emprimeiro lugar, um dever mundano. A indiferena que sentiampelo nosso desenvolvimento interior igualava a extrema rigidezcom que tratavam os aspectos mais banais da educao. Tinha deme sentar direita mesa, com os cotovelos colados ao corpo.Se, ao faz-lo, s pensava na melhor forma de me matar, issono tinha qualquer importncia. A aparncia era tudo, paraalm dela s existiam coisas inconvenientes.Assim, cresci com a sensao de que era algo semelhante a umamacaca que devia ser bem domesticada e no um ser humano, umapessoa, com as suas alegrias, os seus desnimos, a suanecessidade de ser amada. Esse mal-estar depressa gerou dentrode mim uma grande solido, uma solido que com o passar dosanos se foi tornando enorme, uma espcie de vcuo onde eu memovia com os gestos lentos e desajeitados de um mergulhador. Asolido tambm nascia das perguntas, das perguntas que fazia amim mesma e s quais no sabia responder. J aos quatro, cincoanos olhava minha volta e pensava: "Porque estou eu aqui?

  • Donde que vim, de onde vm todas as coisas que vejo minhavolta, o que h atrs delas, tero estado sempre aqui, mesmoquando eu no estava, estaro sempre?" Fazia a mim prpriatodas as perguntas que fazem as crianas sensveis quandocomeam a tomar conscincia da complexidade do mundo. Estavaconvencida de que os adultos tambm as faziam, que eramcapazes de responder, mas, aps duas ou trs tentativas com aminha me e com a ama, percebi no s que no sabiamresponder, mas tambm que nunca as tinham feito a si mesmas.Assim foi aumentando a sensao de solido, compreendes, pararesolver todos os enigmas s podia contar com as minhasforas, quanto mais o tempo ia passando, mais perguntasfazia acerca de tudo, eram perguntas cada vez maiores, cadavez mais terrveis, ficava aterrorizada s de pensar nelas.Por volta dos seis anos tive o primeiro encontro com a morte.O meu pai tinha um co de caa, o Argo; era um co manso eafectuoso, o meu companheiro de jogos predilecto. Durantetardes inteiras, enchia-o de papas de lama e de ervas, ouobrigava-o a fingir que era uma cliente do meu cabeleireiro, eele, sem se revoltar, andava pelo jardim com as orelhas cheiasde ganchos. Um dia, porm, estava eu a fazer-lhe um novo tipode penteado, reparei que tinha um inchao na garganta. J halgumas semanas que no lhe apetecia correr e saltar comoantigamente, e se eu me punha a um canto a comer a merenda, jno se plantava minha frente a suspirar, espera.Uma manh, ao regressar da escola, no o vi minha espera noporto. De incio, pensei que tivesse ido a qualquer lado como meu pai. Mas quando vi o meu pai sentado tranquilamente noescritrio e sem o Argo a seus ps, senti dentro de mim umagrande agitao. Sa e gritando como uma possessa chamei-o portodo o jardim, voltei para dentro por duas ou trs vezes evasculhei a casa de alto a baixo. noite, quando fui dar aosmeus pais o inevitvel beijo de boas-noites, armei-me de todaa minha coragem e perguntei ao meu pai: "Onde est o Argo?" "OArgo", respondeu ele sem desviar os olhos do jornal, "o Argofoi-se embora." "E porqu?" perguntei eu. "Porque estava fartodas tuas maldades."Indelicadeza? Superficialidade? Sadismo? O que havia naquelaresposta? No mesmo instante em que ouvi aquelas palavras,houve algo dentro de mim que se rompeu. Comecei a no dormirde noite, de dia, bastava um pequeno nada para desatar asoluar. Passado um ms ou dois, chamaram o pediatra. "A midaest com um esgotamento", disse ele, e receitou-me leo defgado de bacalhau. E ningum me perguntou porque no dormia,porque andava sempre de um lado para o outro, com a bola rodado Argo.

  • a esse episdio que fao remontar a minha entrada na idadeadulta. Aos seis anos? Sim, aos seis anos. O Argo tinha-se idoembora porque eu tinha sido m, portanto, o meu comportamentoinflua no que estava minha volta. Influa, fazendodesaparecer, destruindo.A partir desse momento, as minhas aces deixaram de serneutras, independentes. Com o terror de cometer mais um erro,fui-as reduzindo ao mnimo, tornei-me aptica, hesitante. noite, apertava a bola do Argo nas mos e chorava, dizendo:"Argo, por favor, volta, mesmo se fiz mal, gosto mais de ti doque todos." Quando o meu pai levou l para casa outrocachorro, nem sequer quis olhar para ele. Para mim era, e foisempre, um perfeito estranho.O que imperava na educao das crianas era a hipocrisia.Recordo-me muito bem de que um dia, andava eu a passear com omeu pai ao p de uma sebe, encontrei um pintarroxo morto. Semqualquer receio, peguei nele e mostrei-lho. "Pe-o no cho",gritou ele de repente, "no vs que est a dormir?" A morte,como o amor, era um assunto que no se encarava de frente. Noteria sido mil vezes melhor se me tivessem dito que o Argotinha morrido? O meu pai poderia ter pegado em mim ao colo edizer-me: "Matei-o porque estava doente e tinha muitas dores.Onde est agora muito mais feliz." Claro que eu teriachorado mais, ter-me-ia desesperado, durante meses e mesesteria ido ao lugar onde o tinham enterrado, com a terra aseparar-nos teria falado com ele por muito tempo. Depois, apouco e pouco, teria comeado a esquec-lo, outras coisas meteriam interessado, teria tido outras paixes, e o Argoacabaria por deslizar para o fundo dos meus pensamentos, comouma recordao, uma bela recordao da minha infncia. Assim,pelo contrrio, o Argo transformou-se num pequeno cadver quetrago dentro de mim. por isso que digo que aos seis anos j era grande, porque,no lugar da alegria havia a ansiedade, no lugar dacuriosidade, a indiferena. Os meus pais seriam uns monstros?Claro que no, eram pessoas absolutamente normais para apoca.S na velhice que a minha me comeou a contar-me coisas dasua infncia. A me tinha morrido quando ela era aindacriana, antes dela tinha nascido um rapaz que morrera aostrs anos com uma pneumonia. Ela tinha sido concebida logo aseguir e tinha tido o azar de nascer no s do sexo feminino,mas tambm no mesmo dia em que o irmo tinha morrido. Pararecordar essa triste coincidncia, desde beb que a tinhamvestido de luto. Sobre o seu bero imperava um grande retratoa leo do irmo. Servia para lhe lembrar, mal abria os olhos,

  • que no passava de um substituto, de uma cpia desbotada dealgum melhor do que ela. Compreendes? Como culp-la ento dasua frieza, das suas opes erradas, da sua indiferena? Atas macacas, quando so criadas num laboratrio assptico e nopela prpria me, passado pouco tempo entristecem e deixam-semorrer. E se fssemos ainda mais atrs, at me dela ou me dame, sabe-se l o que encontraramos.A infelicidade costuma acompanhar a linha feminina. Comocertas anomalias genticas, passa de me para filha. Aopassar, em vez de se atenuar, torna-se cada vez mais intensa,mais enraizada e profunda. Nessa poca, para os homens, eramuito diferente, tinham a profisso, a poltica, a guerra; asua energia podia libertar-se, expandir-se. Ns, no. Ns,durante geraes e geraes, s tivemos o quarto, a cozinha, acasa de banho; demos milhares e milhares de passos, fizemosmilhares e milhares de gestos, carregando o mesmo rancor, amesma insatisfao. Ter-me-ei tornado feminista? No, notenhas medo, s tento olhar com lucidez para o que ficou paratrs.Lembras-te de quando amos para o promontrio ver o fogo deartifcio que disparavam do mar, na noite de 15 de Agosto? Devez em quando, havia um foguete que, embora explodisse, noconseguia chegar ao cu. A tens, quando penso na vida daminha me, na vida da minha av, quando penso em tantas vidasde pessoas que conheo, vem-me ideia esta imagem - foguetesque implodem em vez de subirem.

  • 21 de Novembro

    Li no sei onde que Manzoni, enquanto estava a escrever OsNoivos, se levantava todas as manhs feliz por voltar aencontrar todas as suas personagens. No posso dizer o mesmode mim. Embora tenham passado muitos anos, no me agrada nadafalar da minha famlia, a minha me ficou na minha memriaimvel e hostil como um janzaro. Esta manh, para tentararejar um pouco o que h entre mim e ela, entre mim e asrecordaes, fui dar um passeio pelo jardim. Durante a noitechoveu, para oeste o cu estava claro, mas sobre a casa aindahavia a ameaa de umas nuvens roxas. Antes que comeasse denovo a chover a cntaros, voltei para dentro. Pouco depoisveio um temporal, em casa estava to escuro que tive deacender a luz. Desliguei a televiso e o frigorfico, nofosse algum raio avari-los, depois peguei na lanterna, meti-ano bolso e vim para a cozinha, para o nosso encontro de todosos dias.No entanto, mal me sentei, reparei que ainda no estavapronta, se calhar havia demasiada electricidade no ar, os meuspensamentos andavam de um lado para o outro como se fossemfascas. Ento levantei-me e, seguida pelo "buck",imperturbvel, andei pela casa durante algum tempo, sem umdestino preciso. Fui ao quarto onde dormia com o av, depoisfui ao quarto onde agora durmo - e que antigamente era o datua me -, casa de jantar, e, por fim, ao teu quarto. Aopassar de um aposento para outro, lembrei-me do efeito que acasa provocou em mim quando c entrei pela primeira vez: nome agradou nada. Quem a escolheu no fui eu, mas o meu marido,o Augusto, e tambm a escolheu pressa. Precisvamos de umstio onde viver e no se podia esperar coisa melhor. Como erabastante grande e tinha jardim, pareceu-lhe que satisfariatodas as nossas necessidades. Mal abrimos o porto, achei-alogo de mau gosto, ou melhor, de pssimo gosto; no havia umanica parte que condissesse com a outra quanto cor e forma. Se a olhssemos de um lado, parecia um chal suo,do outro, com o grande postigo central e a fachada com otelhado em degraus, parecia uma daquelas casas holandesas quedo para os canais. Se a olhssemos de longe, com as setechamins de formas diferentes, percebia-se que o nico lugaronde podia existir era numa fbula. Fora construda nos anosvinte, mas no havia um nico pormenor que a pudessecaracterizar como uma casa dessa poca. O facto de no ter umaidentidade preocupava-me, levei muitos anos a habituar-me ideia de que era minha, de que a existncia da minha famliacoincidia com as suas paredes.

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  • Foi precisamente quando estava no teu quarto que um raio quecara mais perto do que os outros apagou a luz. Em vez deacender a lanterna, estendi-me na cama. L fora, o bater dachuva forte, as rajadas de vento; dentro de casa, sonsdiversos, estalidos, rumores surdos, rudos da madeira aajustar-se. De olhos fechados, a minha casa pareceu-me por uminstante um navio, um grande veleiro que avanava pelorelvado. A tempestade amainou por volta da hora do almoo, dajanela do teu quarto vi que dois grandes ramos tinham cado danogueira.Agora estou outra vez na cozinha, no meu lugar de batalha,comi e lavei os poucos pratos que sujei. O "buck" est adormir aos meus ps, prostrado pelas emoes desta manh.Quanto mais os anos vo passando, mais os temporais lheprovocam um terror de que custa a restabelecer-se.Num dos livros que comprei quando estavas no jardim-escola, lia certa altura que a escolha da famlia em que se nasce guiada pelo ciclo das vidas. Se temos aquele pai e aquela me s porque aquele pai e aquela me nos permitiro compreenderalgo mais, dar mais um pequeno, um pequenssimo passo. Mas seassim , pensei eu ento, porque se fica parado durante tantasgeraes? Porque que em vez de se avanar, se retrocede?Recentemente, no suplemento cientfico de um jornal, li que aevoluo talvez no funcione como sempre pensamos quefuncionava. Segundo as ltimas teorias, as mudanas noocorrem de uma forma gradual. A pata mais comprida, o bico deforma diferente para explorar outro recurso, no se voformando lentamente, milmetro a milmetro, gerao apsgerao. No, surgem de repente: da me para o filho tudomuda, tudo diferente. A prov-lo esto os restos dosesqueletos, mandbulas, cascos, crnios com dentes diversos.De muitas espcies nunca foram encontradas formas intermdias. O av assim e o neto assado, entre umagerao e a outra houve um salto. E se acontecesse o mesmo coma vida ntima das pessoas?As mudanas vo-se acumulando em surdina, lentamente e depois,a certa altura, explodem. De repente, uma pessoa rompe ocrculo, decide ser diferente. Destino, hereditariedade,educao, onde comea uma coisa e acaba a outra? Se uma pessoase pe a reflectir, mesmo s por um instante, fica logoaterrorizada com o grande mistrio de tudo isto.Pouco antes de me casar, a irm do meu pai - a que falava comos espritos - tinha pedido a um amigo dela, que eraastrlogo, para fazer o meu horscopo. Um dia, apareceu-me comum papel na mo e disse-me: "Olha, o teu futuro este." Haviaum desenho geomtrico no papel, as linhas que uniam o sinal de

  • um planeta ao outro formavam muitos ngulos. Mal o vi,lembro-me de ter pensado, no h harmonia aqui dentro, no hcontinuidade, h uma srie de saltos, de curvas to bruscasque parecem quedas. Na parte detrs, o astrlogo tinhaescrito: "Um caminho difcil, tens de te armar de todas asvirtudes para o percorreres at ao fim."Fiquei muito impressionada, a minha vida, at esse momento,parecera-me muito banal, tinha havido problemas, claro, mastinham sido problemas de nada, mais do que abismos eramarrufos juvenis. Mesmo quando me tornei adulta, mulher e me,viva e av, nunca me afastei dessa aparente normalidade. Onico facto extraordinrio, se assim se pode dizer, foi amorte trgica da tua me. No entanto, vendo bem, o tal quadrodas estrelas no mentia, porque sob a superfcie polida elinear, sob o meu rame-rame dirio de mulher burguesa, haviade facto um movimento contnuo, feito de ligeiras subidas,rupturas, escurides imprevistas e precipcios muitoprofundos. Enquanto ia vivendo, o desespero triunfava muitasvezes, e eu sentia-me como aqueles soldados que marcham acompasso, parados no mesmo stio. Mudavam os tempos, mudavamas pessoas, tudo mudava minha volta, e eu tinha a impressode que estava sempre parada.A morte da tua me deu o golpe de misericrdia na monotoniadessa marcha. A ideia j modesta que tinha de mim mesma ruiunum s instante. Se at hoje, dizia para comigo, dei um passoou dois, agora, de repente, retrocedi, atingi o ponto maisbaixo do meu caminho. Nesses dias receei no aguentar,parecia-me que aquela parte mnima de coisas que tinhacompreendido at ento desaparecia de chofre. Felizmente,no pude entregar-me por muito tempo a esse estado depressivo,a vida continuava, com todas as suasexigncias.A vida eras tu: chegaste, pequena, indefesa, sem mais ningumno mundo, invadiste esta casa silenciosa e triste com as tuasrisadas imprevistas, o teu choro. Ao ver a tua cabea decriana oscilar entre a mesa e o sof, lembro-me de terpensado que nem tudo tinha acabado. O acaso, na suagenerosidade imprevisvel, tinha-me dado mais umaoportunidade.O acaso. Uma vez, o marido da senhora Morpurgo disse-me que emhebraico esta palavra no existe. Para se referirem casualidade so obrigados a utilizar a palavra "azar", que uma palavra rabe. Estranho, no achas? Estranho, mastranquilizador: onde h Deus no h lugar para o acaso, nempara o humilde vocbulo que o representa. Tudo est ordenado,regulado do alto, tudo o que nos acontece, acontece porque tem

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  • um sentido. Sempre senti muita inveja das pessoas que aceitamesta viso do mundo sem hesitaes, inveja da sua leviandade.Quanto a mim, com toda a minha boa vontade, nunca conseguiaceit-la por mais de dois dias seguidos: perante o horror,perante a injustia, recuei sempre, em vez de os justificarcom gratido, geraram sempre em mim um enorme sentimento derevolta.No entanto, agora preparo-me para fazer uma acoverdadeiramente arriscada: mandar-te um beijo. Detestas osbeijos, no ? Batem na tua couraa como bolas de tnis. Masno importa, no podes fazer nada porque, neste momento,transparente e leve, j vai a voar sobre o oceano.Estou cansada. Reli o que escrevi at agora com uma certaansiedade. Percebers alguma coisa? Tenho muitas coisasapinhadas dentro da cabea; para sarem, empurram-se umas soutras, como as senhoras na altura dos saldos. Quandoraciocino, nunca consigo ter um mtodo, um fio que se vdesenrolando logicamente do princpio at ao fim. s vezes,penso que por nunca ter andado na Universidade. Li muitoslivros, interessei-me por muitas coisas, mas sempre a pensarnas fraldas, no fogo, nos sentimentos. Um botnico quepasseie por um prado escolhe as flores com uma ordem precisa,sabe o que lhe interessa e o que no lhe interessa; decide,elimina, estabelece relaes. Mas se um turista que passeiapelo prado, as flores so escolhidas de um modo diferente, umaporque amarela, outra porque azul, outra porque perfumada, e outra ainda porque est beira do caminho. Achoque a minha relao com o saber foi assim. A tua mecensurava-me sempre por causa disso. Quando discutamos, eucedia quase logo. "No tens dialctica", dizia-me ela. "Comotodas as pessoas burguesas, no sabes defender seriamente oque pensas."Se tu ests imersa nessa inquietao selvtica e desprovida denome, a tua me estava imersa em ideologia. Para ela, o factode eu falar de coisas pequenas e no de coisas grandes erafonte de reprovao. Chamava-me reaccionria e dizia que euestava cheia de fantasias burguesas. Segundo o seu ponto devista, eu era rica e, como tal, propensa ao suprfluo, aoluxo, tendia naturalmente para o mal.Pela maneira como algumas vezes me olhava, tenho a certeza deque, se houvesse um tribunal do povo e fosse ela a presidir,me teria condenado morte. Eu cometia o pecado de viver numapequena moradia com jardim e no numa barraca ou numapartamento da periferia. A esse pecado juntava-se o facto deter recebido em herana um pequeno rendimento que nos permitiaviver a ambas. Para no cometer os erros que os meus

  • progenitores tinham cometido, interessava-me pelo que eladizia ou, pelo menos, esforava-me por isso. Nunca trocei delanem lhe dei a entender at que ponto era alheia a qualquerideia totalizante, mas ela tambm devia notar a minhadesconfiana pelas suas frases feitas.A Ilaria andou na Universidade de Pdua. Podia muito bem terestudado em Trieste, mas era demasiado intolerante paracontinuar a viver comigo. Sempre que lhe propunha ir ter comela, respondia com um silncio carregado de hostilidade. Osseus estudos iam muito devagar, no sabia com quem elapartilhava a casa, nunca quis dizer-mo. Como sabia at queponto era frgil, estava preocupada. Tinha havido o Maio emFrana, as universidades ocupadas, o movimento estudantil. Aoouvir os seus raros relatos ao telefone, apercebia-me de quej no conseguia acompanh-la, estava sempre entusiasmada comqualquer coisa e essa qualquer coisa mudava constantemente.Obedecendo ao meu papel de me, tentava compreend-la, mas eramuito difcil: era tudo convulso, fugidio, havia demasiadasideias novas, demasiados conceitos absolutos. Em vez de seservir das suas prprias frases, a Ilaria desfiava "slogans"atrs de "slogans". Eu temia pelo seu equilbrio psquico:sentir que fazia parte de um grupo com o qual partilhava as mesmas certezas, os mesmos dogmas absolutos, reforava de um modo preocupante a sua tendncia natural para a arrogncia.No seu sexto ano de Universidade, preocupada com um silnciomais prolongado do que os outros, meti-me no comboio e fui tercom ela. Desde que tinha ido para Pdua, nunca o tinha feito.Mal abriu a porta, ficou estarrecida. Em vez de mecumprimentar, agrediu-me: "Quem te convidou?" e sem sequer medar tempo para responder, acrescentou: "Devias ter-me avisado,estava mesmo para sair. Esta manh tenho um exame importante."Ainda estava em camisa de noite, era evidente que estava amentir. Fingi no reparar e disse: "Pacincia, fico tuaespera e depois vamos festejar o resultado." Da a pouco, elasaiu de facto, e com tal pressa que deixou os livros em cima da mesa.Como fiquei sozinha em casa, fiz aquilo que qualquer me teriafeito, pus-me a vasculhar nas gavetas, procura de um sinal,de algo que me ajudasse a compreender que rumo tinha tomado navida. No tinha a inteno de a espiar, de me armar em censoraou em inquisidora, coisas que nunca fizeram parte do meucarcter. Sentia apenas uma grande ansiedade e, para aacalmar, precisava de um ponto de contacto. parte algunsprospectos e opsculos de propaganda revolucionria, nodescobri mais nada, nem uma carta, nem um dirio. Numa dasparedes do quarto, havia um manifesto que dizia "A famlia to arejada e estimulante como uma cmara de gs". A seu modo,j era um indcio.

  • A Ilaria regressou ao princpio da tarde, vinha com o mesmo arofegante que tinha sada. "Como correu o exame?"perguntei-lhe o mais afectuosamente possvel. Encolheu osombros. "Como todos os outros" e aps uma pausa acrescentou,"foi para isso que vieste, para me controlar?" Eu queriaevitar o recontro, por isso, em tom calmo e disponvel,respondi-lhe que s tinha um desejo: falar um pouco com ela."Falar?" repetiu incrdula. "E de qu? Das tuas paixesmsticas?""De ti, Ilaria", disse eu baixinho, tentando encontrar os seusolhos. Aproximou-se da janela, tinha o olhar fixo numsalgueiro que comeava a murchar: "No tenho nada para contar,pelo menos a ti. No quero perder tempo com tagarelicesintimistas e pequeno-burguesas." Depois desviou os olhos dosalgueiro para o relgio de pulso e disse: "J tarde, tenhouma reunio importante. Tens de te ir embora." No lheobedeci, levantei-me, mas em vez de sair fui ter com ela,peguei-lhe nas mos: "O que se passa?" perguntei-lhe, "o que que te faz sofrer?" Sentia que a sua respirao se tornavamais rpida. "Ver-te neste estado faz-me mal ao corao",acrescentei. "Apesar de me rejeitares como me, eu no terejeito como filha. Queria ajudar-te, se tu no vens ao meuencontro, no posso faz-lo." Nesse momento, o queixo comeoua tremer-lhe como quando era criana e estava quase a chorar,soltou as mos das minhas e voltou-se bruscamente para ocanto. Profundos soluos sacudiam-lhe o corpo magro econtrado. Acariciei-lhe os cabelos, tinha as mos geladas,mas a testa estava a arder. Voltou-se de repente, abraou-me,escondendo o rosto no meu ombro. "Me", disse "eu... eu...".Nesse preciso instante, tocou o telefone."Deixa-o tocar", murmurei-lhe ao ouvido."No posso", respondeu, enxugando os olhos.Quando levantou o auscultador, tinha de novo uma voz metlica,estranha. Pelo breve dilogo percebi que devia ter acontecidoalgo de grave. De facto, logo a seguir, disse-me: "Tenho muitapena, mas agora tens mesmo de te ir embora." Samos juntas, porta cedeu a um abrao muito rpido e culpado. "Ningum mepode ajudar", murmurou enquanto me abraava. Acompanhei-a at bicicleta que estava atada a um poste ali perto. J estavaem cima do selim quando, enfiando os dedos por debaixo do meucolar, disse: "As prolas so o teu salvo-conduto, no so?Desde que nasceste, nunca tiveste coragem para dar um passosem elas!"A tantos anos de distncia, este o episdio da minha vidacom a tua me que com mais frequncia me vem ideia. Pensomuitas vezes nele. Como possvel, digo para comigo, que, de

  • todas as coisas que vivemos juntas, seja esta a que primeirosurge nas minhas recordaes? Hoje, quando, mais uma vez,fazia a mim prpria esta pergunta, dentro de mim ressoou oprovrbio "A lngua bate onde o dente di". O que que issotem a ver, perguntars tu. Tem a ver, tem muito a ver. Aqueleepisdio vem-me muitas vezes ideia porque o nico em queeu tive a possibilidade de fazer uma mudana. A tua me tinhadesatado a chorar, tinha-me abraado: naquele momento,tinha-se aberto uma fresta na sua couraa, uma fissura mnimapor onde eu poderia ter entrado. Uma vez l dentro, teriapodido fazer como aqueles pregos que alargam mal entram naparede: vo-se dilatando a pouco e pouco, conquistando umpouco mais de espao. Ter-me-ia transformado num pontoslido na sua vida. Devia ter tido pulso para o fazer. Quandoela me disse "agora tens de te ir embora", devia ter ficado.Devia ter alugado um quarto numa penso ali perto e voltartodos os dias a bater sua porta; insistir at transformaraquela fresta numa abertura. Faltava muito pouco, sentia-o.Mas no o fiz; por cobardia, preguia e falso sentido dopudor, obedeci sua ordem. Eu tinha detestado as intromissesda minha me, queria ser uma me diferente, respeitar aliberdade da sua vida. Sob a mscara da liberdade oculta-semuitas vezes a indiferena, o desejo de no nos envolvermos.H um limite muito tnue, pass-lo ou no uma questo de umsegundo, de uma deciso que se toma ou no se toma; s nosapercebemos da sua importncia quando esse segundo passou. Sento nos arrependemos, s ento compreendemos que naquelemomento no devia ter havido liberdade, mas intruso:estvamos presentes, tnhamos conscincia, dessa conscinciadevia nascer a obrigao de agir. O amor no se entrega aospreguiosos, para existir na sua plenitude exige por vezesgestos precisos e fortes. Compreendes? Eu ocultei a minhacobardia e a minha indolncia sob o nobre disfarce daliberdade.A ideia do destino algo que surge com a idade. Quando se temos anos que tu tens, geralmente no se pensa nisso, tudo o queacontece como se fosse fruto da nossa vontade. Sentimo-noscomo um operrio que, pedra sobre pedra, vai construindo suafrente o caminho que dever percorrer. S muito depois quese repara que o caminho j est construdo, que algum otraou para ns, e que s nos resta seguir em frente. umadescoberta que costuma fazer-se por volta dos quarenta anos,ento comea-se a perceber que as coisas no dependem s dens. um momento perigoso, durante o qual no raroescorregar-se para um fatalismo claustrofbico. Para veres odestino em toda a sua realidade, tens de deixar passar mais

  • alguns anos. Por volta dos sessenta, quando o caminho atrs deti mais comprido do que o que tens tua frente, vs umacoisa que nunca tinhas visto antes: o caminho que percorresteno era a direito mas cheio de encruzilhadas, a cada passohavia uma seta que apontava para uma direco diferente; dalipartia um atalho, de acol um carreiro cheio de ervas que seperdia nos bosques. Alguns desses desvios fizeste-os sem teaperceberes, outros nem sequer os viste; no sabes se os queno fizeste te levariam a um lugar melhor ou pior; nosabes, mas sentes pena. Podias fazer uma coisa e no afizeste, voltaste para trs em vez de seguir em frente. O jogoda glria, lembras-te? A vida vai avanando mais ou menos damesma forma.Ao longo das encruzilhadas do teu caminho encontras as outrasvidas, conhec-las ou no, viv-las a fundo ou desperdi-lasdepende da escolha que fazes num segundo; embora o no saibas,entre seguir a direito ou fazer um desvio joga-se muitas vezesa tua existncia, a existncia de quem est perto de ti.

  • 22 de Novembro

    Esta noite o tempo mudou, veio o vento de leste, em poucashoras varreu todas as nuvens. Antes de comear a escrever, deium passeio pelo jardim. O vento ainda soprava forte, metia-sepor baixo da roupa. O "buck" estava eufrico, queria brincar,saltitava a meu lado com uma pinha na boca. Com as minhaspoucas foras s consegui lan-la uma vez, fez um voo muitobreve, mas ele ficou contente na mesma. Depois de terverificado o estado de sade da tua rosa, fui cumprimentar anogueira e a cerejeira, as minhas rvores preferidas.Lembras-te como troavas de mim, quando me vias parada aacariciar-lhes os troncos? "O que ests a fazer?" perguntavas,"isso no o lombo de nenhum cavalo." Quando te dizia quetocar numa rvore no nada diferente do que tocar emqualquer outro ser vivo, e que at melhor, encolhias osombros e ias-te embora, irritada. Porque melhor? Porque, sefao ccegas na cabea do "buck", por exemplo, sinto umacoisa quente, vibrante, mas por baixo disso h sempre uma leveagitao. a hora da papa, que est demasiado longe oudemasiado perto, so saudades tuas ou mesmo apenas arecordao de um sonho mau. Compreendes? No co, como nohomem, h demasiados pensamentos, demasiadas exigncias.Conquistar a paz e a felicidade nunca depende apenas dele.Na rvore, porm, diferente. Desde que desponta at quemorre, est sempre parada no mesmo stio. As razes fazem-naestar mais perto do corao da terra do que qualquer outracoisa, a copa f-la estar mais perto do cu. A linfa corre noseu interior de cima para baixo, de baixo para cima.Expande-se e retrai-se em funo da luz do dia. Espera pelachuva, espera pelo sol, espera por uma estao e depois poroutra, espera pela morte. Nenhuma das coisas que lhe permitemviver depende da sua vontade. Existe e mais nada. Compreendesagora porque belo acarici-las? Pela sua solidez, pela sua respirao to longa, to tranquila, to profunda. Alguresna Bblia est escrito que Deus tem as narinas largas. Emboraseja um tanto irreverente, sempre que tentei imaginar umaparecena para o Ser Divino veio-me ideia a forma de umcarvalho.Na casa da minha infncia havia um, to grande que eramprecisas duas pessoas para lhe abraar o tronco. Aos quatro oucinco anos, j gostava muito de ir ter com ele. E l ficava,sentia a humidade da erva debaixo do traseiro, o vento fresconos cabelos e na cara. Respirava e sabia que havia uma ordemsuperior das coisas e que eu estava includa nessa ordemjuntamente com tudo aquilo que via. Embora no soubesse

  • msica, algo cantava dentro de mim. No saberia dizer-te quegnero de melodia era, no havia um refro preciso, uma ria.Era mais como se um fole soprasse com um ritmo regular epoderoso na zona prxima do meu corao e esse assobio,espalhando-se pelo interior do meu corpo e na minha mente,produzisse uma grande luz, uma luz que tinha uma duplanatureza: a sua, de luz, e a de msica. Sentia-me feliz porexistir e, para alm dessa felicidade, para mim no existiamais nada.Poder-te- parecer estranho ou excessivo que uma crianapressinta algo deste gnero. Infelizmente estamos habituados aconsiderar a infncia como um perodo de cegueira, decarncia, e no como um perodo em que h muita riqueza. Noentanto, bastaria olhar com ateno para os olhos de umrecm-nascido para se perceber de que assim. Alguma vez ofizeste? Quando tiveres oportunidade, experimenta. Pe departe os preconceitos mentais e observa-o. Como o seu olhar?Vazio, inconsciente? Ou antigo, remotssimo, sbio? Ascrianas tm naturalmente um flego maior, ns, adultos, queo perdemos e no sabemos aceit-lo. Aos quatro, cinco anos, euainda no sabia nada de religio, de Deus, de todas essasconfuses que os homens fazem ao falarem destas coisas.Sabes, quando foi preciso decidir se havias ou no defrequentar as aulas de religio na escola, estive muito tempoindecisa acerca do que devia fazer. Por um lado, lembrava-mede como tinha sido catastrfico o meu primeiro encontro com osdogmas, por outro lado, tinha a certeza absoluta de que, naeducao, para alm da mente, havia que pensar tambm noesprito. A soluo veio por si, no mesmo dia em que morreu oteu primeiro criceto. Tinha-lo na mo e olhavas-me, perplexa."Onde que ele est, agora?" perguntaste-me. Respondi-te coma mesma pergunta: "Onde achas que ele est, agora?" Lembras-te do que me respondeste? "Est em dois lugares. Um bocadinhoaqui e um bocadinho entre as nuvens." Nessa mesma tarde,fizemos-lhe o funeral. Ajoelhada diante do pequeno tmulo,fizeste a tua orao: "S feliz, Tony. Um dia havemos devoltar a ver-nos."Talvez nunca to tenha dito, mas fiz os primeiro cinco anos deescola com as freiras, no colgio do Sagrado Corao. Acreditaque no foi um prejuzo pequeno para a minha mente j toinstvel. entrada do colgio havia, durante todo o ano, umgrande prespio armado pelas freiras. L estava o menino Jesusna sua cabana, com o pai, a me, o boi e o burro e, a toda avolta, montes e despenhadeiros de papelo unicamente povoadospor um rebanho de ovelhas. Cada ovelha era uma aluna e, deacordo com o seu comportamento durante o dia, assim era

  • afastada ou aproximada da cabana do menino Jesus. Todas asmanhs, antes de irmos para a aula, passvamos frente doprespio e, ao passar, tnhamos de ver qual era a nossaposio. Do lado oposto cabana, havia um precipcio muitoprofundo onde estavam as que se portavam pior, com duaspatinhas j suspensas no vazio. Entre os seis e os sete anos,vivi condicionada pelos passos que a minha ovelha dava. E intil dizer-te que quase nunca saiu da beira do precipcio.Intimamente, e com toda a minha vontade, tentava respeitar osmandamentos que me tinham ensinado. Fazia-o no s peloconformismo natural que tm todas as crianas, mas tambmporque estava mesmo convencida de que era preciso ser-se bom,no mentir, no ser vaidoso. Apesar disso, estava sempreprestes a cair. Porqu? Por coisas de nada. Quando, emlgrimas, ia ter com a madre superiora para lhe perguntarporque que a minha ovelha tinha mudado de novo de lugar, elarespondia-me: "Porque ontem tinhas um lao demasiado grande nacabea... Porque uma colega tua ouviu-te cantarolar, sadada escola... Porque no lavaste as mos antes de ir para amesa." Compreendes? Mais uma vez, os meus pecados eramexteriores, iguaizinhos queles de que a minha me me culpava.O que nos ensinavam no era a coerncia, mas o conformismo. Umdia cheguei ao extremo limite do precipcio e desatei asoluar, dizendo: "Mas eu amo o menino Jesus." Sabes o que medisse a freira que estava ali perto? "Ah, alm de seresdesarrumada, s mentirosa. Se amasses mesmo o menino Jesus,tinhas os cadernos mais em ordem." E zs!, com o indicadorempurrou a minha ovelha para o fundo do precipcio. Depois deste episdio, creio que no dormi durante dois meses.Mal fechava os olhos, sentia o colcho debaixo das costastransformar-se em chamas, e vozes horrendas troavam dentro demim, dizendo: "Espera, que j vamos buscar-te." Claro quenunca contei nada disto aos meus pais. Ao ver-me amarela enervosa, a minha me dizia: "A menina est com um esgotamento"e eu, sem uma palavra, engolia colheres e colheres de xarope. estranho, mas ao reviver agora as emoes dessa poca tenhoa impresso de que a minha grande crise de crescimento nofoi, como sempre acontece, na adolescncia, mas precisamentenesses anos da infncia. Aos doze, treze, catorze anos j eratristemente estvel. As grandes questes metafsicas tinhamdesaparecido a pouco e pouco para serem substitudas porfantasias novas e incuas. Aos domingos e dias de festa, ia missa com a minha me; ajoelhava-me com um ar compungido parareceber a hstia, mas enquanto o fazia pensava noutras coisas;tratava-se apenas de um dos muitos papis que tinha derepresentar para viver em paz. Por isso no te matriculei nas

  • aulas de educao religiosa nem nunca me arrependi de no oter feito. Quando, com a tua curiosidade infantil, me faziasperguntas sobre esse assunto, tentava responder-te de umaforma directa e serena, respeitando o mistrio que existe emcada um de ns. E quando deixaste de me fazer perguntas, muitodiscretamente desisti de te falar nisso. Nestas coisas no sepode forar nem travar, se no sucede o mesmo que com osvendedores ambulantes. Quando mais propaganda fazem dos seusprodutos, mais se suspeita de que so uma burla. Contigotentei apenas no fazer desaparecer aquilo que j existia.Quanto ao resto, limitei-me a esperar.No julgues, porm, que o meu caminho foi fcil; se, aosquatro anos, pressenti a aura que envolve as coisas, aos sete,j me tinha esquecido. certo que, nos primeiros tempos,ainda ouvia a msica, em fundo, mas ouvia. Parecia umatorrente num desfiladeiro; se estava quieta e atenta, beirado precipcio conseguia ouvir-lhe o rumor. Depois, a torrentetransformou-se num velho aparelho de rdio, num rdio que estprestes a deixar de funcionar. Em certos momentos, a melodiaexplodia com demasiada fora, no momento seguinte, nada.O meu pai e a minha me no perdiam nenhuma oportunidade parame censurarem pelo meu hbito de cantar. Uma vez, durante umalmoo, at apanhei uma bofetada - a primeira bofetada - porme ter escapado um "tralal". " mesa no se canta",trovejou o meu pai. "No se canta se no se cantor",acrescentou a minha me. Eu chorava e repetia entre aslgrimas: "Mas dentro de mim, canta-se." Para os meus pais,tudo o que sasse do mundo concreto da matria era totalmenteincompreensvel. Sendo assim, como era possvel conservar aminha msica? Seria preciso ter, pelo menos, o destino de umsanto. Mas o meu destino era o destino cruel da normalidade.Pouco a pouco, a msica foi desaparecendo e com ela osentimento de alegria profunda que me tinha acompanhado nosprimeiros anos. A alegria, sabes, aquilo de que mais tenhosaudades. Claro que depois tambm fui feliz, mas a felicidadeest para a alegria como uma lmpada elctrica est para osol. A felicidade tem sempre um objecto, -se feliz por algumacoisa, um sentimento cuja existncia depende do exterior. Aalegria, pelo contrrio, no tem objecto. Possui-nos semqualquer razo aparente, no seu ser assemelha-se ao sol, ardegraas combusto do seu prprio corao.Ao longo dos anos, esqueci-me de mim mesma, da parte maisprofunda de mim, para me transformar noutra pessoa, naquelapessoa que os meus pais esperavam que eu fosse. Pus de parte aminha personalidade para adquirir um carcter. O carcter,ters forma de o sentir, muito mais apreciado no mundo do

  • que a personalidade.Mas o carcter e a personalidade, ao contrrio do que sejulga, no andam a par, ou melhor, na maioria das vezes,excluem-se decisivamente. A minha me, por exemplo, tinha umcarcter forte, sabia o que fazia, e no havia nada,absolutamente nada, que pudesse comprometer essa segurana. Euera o seu oposto. Na vida de todos os dias, no havia nada queme entusiasmasse. Se tinha de decidir qualquer coisa,hesitava, adiava por tanto tempo que quem estava ao meu ladoperdia a pacincia e acabava por decidir por mim.No penses que foi um processo natural pr de parte apersonalidade para fingir que tinha carcter. Algo no meuntimo continuava a revoltar-se, uma parte desejava continuara ser eu prpria, enquanto a outra, para ser amada, queriaadaptar-se s exigncias do mundo. Que dura batalha! Detestavaa minha me, o seu modo de agir superficial e vazio.Detestava-a, mas, lentamente e contra a minha vontade, estavaa tornar-me exactamente como ela. essa a grande e terrvelchantagem da educao; a que quase impossvel escapar.Nenhuma criana pode viver sem amor. por isso que se adaptaao modelo exigido, embora no lhe agrade, embora no o achejusto. O efeito deste mecanismo no desaparece com a idadeadulta. Quando se me, volta a surgir sem nos apercebermosou querermos, molda de novo as nossas aces. Por isso, quandoa tua me nasceu, eu tinha a certeza absoluta de que mecomportaria de uma forma diferente. E de facto assim fiz. Noentanto, essa diferena era superficial, falsa. Para no imprum modelo tua me, tal como me fora imposto a mim, antes dapoca em que essas coisas se costumam fazer, deixei-a sempreescolher livremente, queria que se sentisse aprovada em todosos seus actos, passava a vida a repetir-lhe: "Somos duaspessoas diferentes e devemos respeitar-nos na nossadiferena."Havia um erro em tudo isso, um erro grave. E sabes qual era?Era a minha falta de identidade. Embora j fosse adulta, notinha a certeza de nada. No conseguia gostar de mim,estimar-me. Graas sensibilidade subtil e oportunista quecaracteriza as crianas, a tua me percebeu quase logo: sentiuque eu era fraca, frgil, fcil de dominar. Quando penso nanossa relao, a imagem que me vem ideia a de uma rvore ede uma trepadeira. A rvore mais velha, mais alta, est alih muito tempo e tem razes mais profundas. A trepadeiradesponta aos seus ps numa nica estao, no tem razes, tembarbas, filamentos. Sob cada filamento tem pequenas ventosas, com elas que vai subindo pelo tronco. Passado um ano oudois, j est l em cima, na copa. Enquanto a sua anfitri vai

  • perdendo as folhas, ela continua verde. Continua apropagar-se, a arreigar-se, cobre totalmente a rvore; o sol ea gua s a atingem a ela. Nessa altura, a rvore seca emorre, s fica o tronco, apoio miservel da trepadeira.Depois da sua morte trgica, no pensei nela durante algunsanos. Por vezes, reparava que a tinha esquecido e achava queera uma crueldade. Havias tu a acompanhar, claro, mas nocreio que o verdadeiro motivo fosse esse, ou talvez o fosse emparte. O sentimento de derrota era demasiado grande para poderadmiti-lo. S nos ltimos anos, quanto tu comeaste aafastar-te, a procurar o teu caminho, que voltei a pensar natua me, e isso comeou a obcecar-me. O remorso maior o denunca ter tido coragem para a contrariar, de nunca lhe terdito: "No tens razo nenhuma, ests a fazer uma asneira." Nosseus discursos havia "slogans" muito perigosos, coisas que,para seu bem, eu deveria ter arrasado imediatamente, masabstinha-me de intervir. A indolncia nada tinha a ver comisso. As coisas que se discutiam eram essenciais. O que melevava a agir - ou melhor, a no agir - era o comportamentoque a minha me me tinha ensinado. Para ser amada, tinha deevitar o recontro, fingir que era quem no era. A Ilaria eranaturalmente prepotente, tinha mais carcter do que eu e eureceava o conflito aberto, tinha medo de me opor. Se a tivesseamado de verdade, devia ter-me indignado, t-la tratado comdureza; devia t-la obrigado a fazer coisas ou a no as fazerde facto. Se calhar, era o que ela queria, aquilo de queprecisava.Porque ser que as verdades elementares so as mais difceisde compreender? Se eu tivesse compreendido que a principalqualidade do amor a fora, talvez tudo se tivessedesenrolado de forma diferente. Mas, para sermos fortes, preciso gostarmos de ns; para gostarmos de ns, precisoconhecermo-nos profundamente, saber tudo de ns, mesmo ascoisas mais ocultas, mais difceis de aceitar. Como possvellevar a bom termo um processo deste gnero, quando a vida como seu rumor nos vai empurrando para a frente? S o pode fazerdesde o incio quem possui dotes extraordinrios. Para o comumdos mortais, para as pessoas como eu, como a tua me, s restao destino dos ramos e das garrafas de plstico. De repente,algum - ou o vento - atira-nos ao leito de um rio, graas matria de que somos feitos, em vez de irmos ao fundo,flutuamos; isso j nos parece uma vitria e, por isso, derepente, comeamos a correr; deslizamos velozes para onde acorrente nos arrasta; de vez em quando, um molho de razes ouuma pedra obrigam-nos a parar; ficamos para ali durante algumtempo, batidos pela gua, e depois a gua sobe e liberta-nos,

  • e continuamos em frente; quando o curso tranquilo, vamos superfcie, quando surgem os rpidos, submergimos; no sabemospara onde vamos e nunca ningum pergunta; nos troos maiscalmos, conseguimos ver a paisagem, os diques, os silvados;mais do que os pormenores, vemos as formas, o tipo de cor,vamos demasiado depressa para vermos outras coisas; depois,com o passar do tempo e dos quilmetros, os diques vo ficandomais baixos, o rio vai alargando, ainda h margens, mas porpouco tempo. "Para onde vais?" perguntamos ento a nsprprios e, nesse instante, nossa frente, abre-se o mar.Uma grande parte da minha vida foi assim. Mais do que repararnas coisas, andei s cegas. Com gestos inseguros e confusos,sem elegncia nem alegria, consegui apenas flutuar.Porque te escrevo tudo isto? O que significaro estasconfisses to longas e to ntimas? Talvez j estejas farta,talvez tenhas folheado uma pgina aps outra, soprando deimpacincia. Onde querer ela chegar, deves ter perguntado,para onde me leva? verdade, enquanto escrevo vou divagando,em vez de meter pela estrada principal, muitas vezes e depropsito enfio-me por carreiros humildes. Dou a impresso deque me perdi e talvez no seja uma impresso: perdi-me mesmo.Mas este o caminho exigido por aquilo que tu tanto procuras:o centro.Lembras-te de quando te ensinava a fazer crepes? Quando osatiras ao ar, dizia-te, tens de pensar em tudo menos nanecessidade de eles carem direitos na frigideira. Se teconcentras no voo, podes ter a certeza de que caem enrolados,ou que se esborracham em cima do fogo. ridculo, mas justamente a distraco que conduz ao centro das coisas, aoseu corao.Agora, quem tem a palavra no o meu corao, o meuestmago. Resmunga e tem razo, porque, entre um crepe e umaviagem ao longo do rio, chegou a hora de jantar. Tenho de tedeixar, mas antes de te deixar, mando-te mais um odiado beijo.

  • 29 de Novembro

    O vento de ontem fez uma vtima, encontrei-a esta manhdurante o passeio do costume pelo jardim. Como se me tivessesido sugerido pelo meu anjo da guarda, em vez de dar, comosempre, s uma volta casa, fui at ao fundo, at ao stioonde antigamente havia o galinheiro e onde agora est odepsito do estrume. Foi precisamente quando seguia ao longodo pequeno muro que nos separa da famlia do Walter que vi umacoisa escura no cho. Podia ser uma pinha, mas no era porque,a intervalos bastante regulares, mexia-se. Eu tinha sado semculos, e s quando estava mesmo em cima dela que repareique se tratava de uma melra. Para a apanhar, pouco faltou parapartir o fmur. Mal estava quase a agarr-la, ela dava umsaltinho para a frente. Se eu fosse mais nova, agarrava-a emmenos de um segundo, mas agora sou demasiado lenta para ofazer. Por fim, tive um golpe de gnio, tirei o leno dacabea e atirei-o para cima dela. Assim embrulhada trouxe-apara casa e instalei-a numa velha caixa de sapatos, l dentrometi uns trapos velhos e fiz uns buracos na tampa, um dosquais bastante grande para ela poder pr a cabea de fora.Enquanto estou a escrever, est aqui minha frente, em cimada mesa. Ainda no lhe dei de comer porque est demasiadoagitada. Ao v-la assim agitada, tambm me agito, o seu olharaterrado embaraa-me. Se neste momento aparecesse uma fada, seaparecesse, cegando-me com o seu raio, entre o frigorfico e ofogo, sabes o que lhe pedia? Pedia-lhe o Anel do rei Salomo,aquele intrprete mgico que permite falar com todos osanimais do mundo. E poderia dizer melra: "No te preocupes,minha pequenina, sou um ser humano, sim, mas tenho as melhoresintenes. Vou tratar de ti, dar-te de comer e, quandoestiveres curada, pr-te-ei em liberdade."Mas voltemos a ns. Ontem, deixmo-nos na cozinha, com a minhaprosaica parbola dos crepes. Tenho quase a certeza de que fi