coracao independente

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Coração Independente is the story of a neardeath experience.

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Page 1: Coracao Independente
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Pedro Serrano

CORAÇÃO INDEPENDENTE

Crónica de um ataque cardíaco

(2000)

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i

Ao Manel e à Gabriela, à Isabel Costa, Ana

Santos Silva, Vera Bonfocchi, e Carlos Orta

Gomes

À memória de Manuela Campos Monteiro,

Mário Braga, Judite Marques Neves, Nazaré

Ferreira, José Leitão, e Dennis Potter

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ii

ÍNDICE

Parte I – Para sempre é sempre por um triz 1

Parte II – Não há-de ser nada 25

Parte III – Fora de horas 51

Parte IV – No país do caldo verde 72

Parte V – Além dos semáforos 104

Agradecimentos 139

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iii

Que estranha forma de vida Tem este meu coração, Vive de vida perdida, Quem lhe daria o condão? Que estranha forma de vida. Coração independente, Coração que não comando, Vives perdido entre a gente, Teimosamente sangrando, Coração independente, Eu não te acompanho mais, Pára, deixa de bater. Se não sabes onde vais, Porque teimas em correr, Eu não te acompanho mais.

Alfredo Marceneiro /Amália Rodrigues

(Estranha Forma de Vida)

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Parte I

Para sempre é sempre por um triz*

* Da canção Beatriz , de Chico Buarque e Edu Lobo (O Grande Circo Místico, 1983).

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Às vezes, à mesa, quando era pequeno, para introduzir um apeadeiro na eternidade do engolir uma sopa de que não gostava, e depois de piscar o olho a uma das minhas irmãs ou primos, fazia deslizar a lâmina da faca de sobremesa por sobre o gume de uma outra faca, vizinha dos meus talheres. Era o suficiente para criar um saboroso intermezzo, pois, muito em breve e para gáudio de todos nós, a minha mãe assinalaria a alteração com a frescura de uma previsível advertência:

“Descruza-me essas facas; já sabes que não gosto de ver facas cruzadas.” “Ora, porquê, mãe? Que é que tem?...”, implorava um de nós, dando corda à

explicação. Facas cruzadas pressagiavam guerra no seio da família, tão certo como saltar sobre um corpo deitado e não repetir o movimento no sentido contrário impediria esse corpo de crescer; pousar um chapéu sobre uma cama; abrir um guarda-chuva dentro de casa... A minha mãe conhecia um vaticínio para cada acontecimento, um augúrio, benfazejo ou aziago (mais frequentemente aziago), acorrentado a cada procedimento. Nesta intricada tabela de interpretação e conduta para os mais insuspeitos gestos do quotidiano, a minha mãe dedicava um capítulo especial às aves, praticamente todas elas indicadores de funestos desenlaces, fosse o desanimado pio de corujas, a restolhada aflição de um pardal acidentalmente aprisionado dentro de casa, o voar inocente de pássaros sobre a nossa cabeça, até às aves tombadas em caminho que estivéssemos a atravessar. Nada disto, segundo a sua convicção, era muito bom para a sorte de quem tivesse a desdita de estar por perto no momento. “Crendices!”, rematava o meu pai com ar gozão, estribado na solidez pragmática da sua perspectiva de vida. No meu caso particular, nunca me considerei demasiado supersticioso; pelo menos daquele género de andar em permanência enredado na melancolia ou na ansiedade de possibilidades sinistras. Pelo contrário: se assimilei alguma da soturna fé da pitonisa que tinha em casa, ela foi temperada pela filosofia solar do meu pai e se sobre a minha cabeça sucede cruzar um par de pássaros rumo ao sul, ao norte ou ao poente, acho a circunstância de bom agouro. Mas por um qualquer automatismo atávico quando na manhã do dia 1 de Janeiro de 1999 abri a porta de casa e deparei com o cadáver recente de um minúsculo pássaro na soleira, uma parte remota da minha mente não conseguiu evitar um pensamento sincronizado com o velho crer materno:

“Qual delas morrerá primeiro?” Elas... Elas eram a minha mãe e a Judite, uma amiga de Viseu, casada com um grande amigo meu. Ambas padeciam do mesmo tipo de cancro, ambas tinham sido operadas com aparente sucesso e durante uns anos tudo correra bem, numa ausência de notícias que todos desejámos e confundimos com uma cura. Até que num daqueles dias cuja data nunca esquece, uma dor fina, um súbito cansaço ao subir de uma rua... E eis o pesadelo de novo instalado, o roteiro das últimas estações do calvário revelado nas impiedosas nuvens a preto e branco das radiografias e dos TAC*. E a vida que assim corria, tão maioritariamente serena. Quanto ao pássaro morto, concluía a metade objectiva da minha mente, este era, provavelmente, uma atenção da nossa gata Tangerina, que tem o hábito de arrastar para * TAC – tomografia axial computorizada.

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dentro de casa inesperados presentes: pássaros, lagartixas, gafanhotos e outros troféus interessantes. E a avezinha ali jazia, encalhada na borda do capacho da porta de entrada, uma asa desdobrada recordando um leque desengonçado, um punhado de penas tristes dispersas pela tijoleira. A minha mãe partiu à frente, nos primeiros dias de Março, quando o Inverno se preparava para passar a rédea das estações à Primavera, rebentavam já gomos verdes nas hortênsias da casa dos meus pais. A Judite, essa deixou-nos seis meses depois, no início de Outubro, acabara o Outono de chegar e, em Viseu, um ventinho cortante podava as primeiras folhas na avenida das tílias e punha a alma dos que regressavam do cemitério ainda mais infeliz. Mas espreitar o tempo que há-de vir tem os seus riscos, todas as histórias, todas as fábulas o repisam e, geralmente, o aprendiz de feiticeiro acaba por se dar mal ao ousar espiar as entranhas de matéria tão delicada e reservada aos deuses. Eu não fui excepção e alguém encarregou o futuro de me demonstrar como fôra ingénuo na interpretação dos presságios daquela primeira manhã de 1999. Pois eu estava então longe de adivinhar, de sonhar sequer, que a meio caminho desse pedaço de tempo sobre o qual conjecturava, entre a morte da minha mãe e a da minha amiga Judite, haveria ainda espaço para a minha própria morte, a qual ocorreria, se eu tivesse entendido tudo o que o pássaro tinha a revelar, na última semana da Primavera, em dia e hora a precisar.

2

Moro à beira-mar, numa rua sossegada, uma dúzia de Km a sul do Cabo Carvoeiro, essa linha mágica que, a crer nos boletins meteorológicos d’outrora, dividia o país em dois: a norte, a metade do tempo irremediavelmente chuvoso, e, a sul, a metade do tempo invariavelmente balnear.

Mas isso foi nos bons velhos dias, antes de as cegonhas ousarem subir de Alcácer do Sal para vir nidificar sobre os postes de alta tensão que bordejam o Mondego; quando o tempo parecia eterno e se podia confiar na constância das estações do ano. Ainda não há muito tempo estive a glosar o tópico com a enfermeira Edmea que encontrei a subir a travessa da Misericórdia, regressava eu de almoçar. Nessa semana já chovera por três vezes, duas das quais torrencialmente, e Maio, um mês habitualmente tão doce nos climas meridionais, ia quase no fim! Não, não era possível que o tempo não estivesse a mudar; apesar do que iam dizendo os meteorologistas, numa conversa que, embora recheada de tranquilizantes “médias mensais e anuais sensivelmente semelhantes a períodos homólogos”, não convencia ninguém.

Pela parte que me toca, em termos de explicação, estava disposto a dar-me por satisfeito com os derivados da teoria do buraco na camada de ozono e os desequilíbrios que esse género de coisas sempre provocam no clima, mas a enfermeira Edmea surpreendeu-me com a férrea convicção de que tudo era consequência dos excessos em satélites, foguetões e artefactos congéneres que o Homem enviava para o espaço, saturando a atmosfera! Talvez a teoria da enfermeira Edmea estivesse um pouco fora de época, mas isso que importa se o problema era exactamente esse: que chamar a um tempo destes em Maio, senão fora de época? E o calor que fez este ano em Fevereiro e Março? Um tempo de Verão!

“O meu rapaz fartou-se de tomar banhos na praia!”, dizia eu, partilhando com ela o meu assombro.

Junho trouxe os dias longos, mas arrancou incaracterístico; por vezes acinzentado, às vezes luminoso. Indeciso, nem carne nem peixe, nem frio nem quente. Neste tempero

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rolava eu a 17 de Junho, uma quinta-feira que passei a trabalhar e se escoou sem história, numa rotina perfeitamente semelhante aos dias que a antecederam. Ao fim da tarde regressei a casa e trabalhei mais um pedaço antes do jantar. À data presidia a um júri de um concurso com vinte e cinco candidatos e a quantidade de currículos que atafulhavam o meu quarto (local onde os enfiara por falta de outro espaço e, sobretudo, para não esquecer a tarefa que me esperava), tentaria um alpinista. Suspirei e, com o lápis em riste, ataquei o terceiro tomo dos cinco volumes que constituíam o curriculum vitae do décimo primeiro candidato.

Perto da hora de jantar recebemos a visita de uma amiga e do filho que por ali estiveram um pouco, contando as miúdas notícias com que se entretém a amizade nos dias amenos. Após o segundo convite para jantar e dando-se, de repente, conta das horas, foram embora a correr; nós (os três da casa) já sentados à mesa.

Comi pouco, não sentia grande fome, e, distraído da comida, dei por terminada a refeição antes da minha mulher e do meu filho. Deixei-me estar, esperando que acabassem a sobremesa, debicando aqui e ali na conversa que eles entretinham.

Progressivamente, mas numa cadência obstinada, fui inundado pela sensação que me distanciava do que se passava ao meu redor, impressão que apercebi na consciência com muita estranheza: estava a ouvir o que eles diziam, mas era como se o escutasse de uma dimensão mais recuada; como se estivesse parado num desinteresse imposto do interior de mim mesmo, de dentro para fora. Não participava no que se passava – estava desatento, não porque estivesse fixado em algo meu, mas porque os meus sentidos tinham escorregado para outro nível; os estímulos habituais pareciam não funcionar, o meu olhar desfocava-se do que fitava e atravessava o que olhava: sentia que estava a ver através de..., para além de... Os restos no meu prato, uma natureza-morta. Tomado por este estado, assisti ao fim do jantar e vi as pessoas começaram a mover-se, levantando copos e talheres e conduzindo-os para a cozinha numa algaraviada onde sobressaía o ininterrupto entusiasmo vocal dos dez anos do meu filho. Continuei sentado, paralisado nessa névoa de presenciar as coisas como se fosse um estrangeiro; tão alheado de tudo que os próprios sons começaram a dissociar-se de sentido, tornando-se rombos, como se me tivessem enchido os tímpanos de algodão, um retinir agudo de válvula de panela de pressão a vibrar lá ao fundo do canal auditivo. Meti os indicadores em ambos os ouvidos, tentando com este gesto dissolver aquela espécie de turvação sonora e abanei a cabeça para ver se me libertava de toda aquela alienação. Depois, sem transição, subiu-me um enjoo e levantei-me da mesa num ímpeto vertical, sem arrastar a cadeira para trás. Que mal, que vaga e profundamente mal, me estava a sentir! Caminhei pelo corredor, sem objectivo preciso, apenas porque o meu corpo exigia que me movesse. Não sei se foi do movimento, mas, ao dar aqueles passos, encontrei-me, de repente, encharcado em suor; um suor quente que brotava da pele como se esta se tivesse transformado numa nascente, disparatado no excesso e rapidez de produção: primeiro as palmas das mãos ficaram a escorrer; depois as costas empaparam a T-shirt instantaneamente, tal se ela tivesse caído numa poça de água; em seguida o peito, a testa, num galope imparável. “Que é isto?”, pensei lá muito ao longe, no isolado fundo de mim mesmo. Chegara ao fim do corredor e sentei-me no último degrau das escadas que conduzem ao andar de cima, degrau ao lado do qual está a mesinha do telefone. Sentei-me e foi mais ou menos nesse instante que percebi, por um novo descontrole no corpo, o que me estava a acontecer: Uma sensação de prisão abocanhara-me o braço esquerdo (como se os tendões que permitem o seu movimento harmónico estivessem a ser estimulados sem lógica), acompanhada de um retesamento no pescoço, irradiando de baixo para cima, em direcção ao maxilar inferior. Aquilo era o coração e, fosse lá o que fosse, era grave, só podia ser...

Pesadamente sentado, olhei vagarosamente em volta e esperei que alguém se desse conta de mim; parecendo-me que a tonalidade de tudo se esborratava em sombra, que a

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luz das lâmpadas já não era capaz de alumiar tão bem a noite como era costume. Finalmente, os olhos da minha mulher cruzaram-se com os meus. Aguardei, sabendo que ela reconheceria a ausência seguramente aprisionada naquele olhar.

“Pedro, o que se passa?” “Não estou nada bem, leve-me já para o Centro de Saúde.” E escorreguei do degrau até ao chão, abatendo-me como um monte de carne subitamente desossada; sem discernimento suficiente para me aperceber sequer da monstruosidade que era o Zé João, o meu filho ainda criança, estar a assistir a tudo aquilo.

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Sei-o de fonte segura graças à factura, “discriminativa, detalhada e completa”, da Portugal Telecom; documento com que um dia topei numa gaveta e onde, num comovido horror, descobri o facto e os seus frios detalhes: eram exactamente 21 horas 51 minutos e 53 segundos quando o telefonema foi atendido em casa da Vera, a amiga que nos tinha visitado uma hora antes, no início do jantar. A chamada durou menos de trinta segundos.

“Vem depressa, por favor. O Pedro está a sentir-se muito mal.” A Vera, para além de visita quase diária da nossa casa e da amizade que nos une, é

médica no Centro de Saúde local. As nossas famílias recorrem uma à outra com profusão, em cada alegria, em cada aflição; pelo puro prazer da companhia. E, reconhecendo o tom do apelo, nem quis saber pormenores do que se estava a passar. Desligou e abalou de casa.

Entretanto, a minha mulher correra a buscar o esfigmomanómetro e tentava medir-me a tensão, palpar-me o pulso.

“Então?”, interessei-me debilmente da vala do meu torpor. “O aparelho deve estar estragado”, respondeu, arreliada, “não consigo ouvir

nada!”. Não liguei ao pormenor. O meu corpo, e o que nele se passava, estavam longe de

me preocupar; eu era uma massa informe meia entornada no chão e a minha consciência, reduzida ao seu menor denominador comum, bruxuleava como a chama de uma vela.

Dei outra vez levemente conta de mim no exterior da casa. O ar fresco da noite fez-me vir à tona e apercebi-me que era um trambolho, de braços inertes e pés a arrastar, às costas de alguém. Inspirei profundamente e... visão do tejadilho e dos vidros do carro perlados de orvalho. (Na Praia é assim, mesmo no Verão a humidade impera e ao fim de uma hora um carro estacionado fica coberto de gotas de água.) Como pôde, a minha mulher abriu a porta do carro e empurrou-me pelo banco de trás fora.

A Vera chegou, entrou para a minha beira, pousou-me a cabeça no colo e, excelente ideia, abriu a janela do carro. A minha mulher arrancou. O meu filho também vai no automóvel, em casa não fica ninguém. Ouço a respiração ofegante da Vera perto de mim e sinto o ar fresco da noite entrar pelo carro dentro. É bom.

“Pedro, está-me ouvindo? Dói-lhe alguma coisa?”, pergunta ela lá ao longe no seu sotaque brasileiro, “sente dor no peito?”

Tento abanar a cabeça, mas não sei se sou eficaz. (Não, não me dói nada.) Exterior. Está escuro e estão a sentar-me numa cadeira de rodas. Ao meu lado há

uma ambulância de motor a gargarejar e uma mancha indistinta de luzes acesas por perto. Reconheço que estou à porta do Serviço de Atendimento Permanente do Centro de Saúde da Lourinhã, mas não tenho bem a certeza se é por o estar a ver ou se é porque o local me é tão familiar: sou médico e, nos últimos quinze anos, tenho trabalhado diariamente neste sítio. Conheço o edifício como as palmas das minhas mãos.

“Não vejo nada, não vos estou a ver”, comunico para o ar, para quem quer que seja que me está a empurrar a cadeira. Ninguém responde.

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Interior. Ruído; agitação; sombras. Identifico a voz que se me dirige, é uma das empregadas que faz serviço na recepção:

“Então, dr., não se está a sentir bem?” “Não a estou a ver”, digo, “reconheço-a pela voz, mas não a vejo”. Repito a novidade ao colega que me recebe. Talvez possa ser um facto clínico

importante. “Ouço-te, mas não te consigo ver; vejo apenas um halo luminoso no sítio onde tu

estás.” Não pronuncio nunca que estou cego, pois não me sinto como tal. Não vejo as

pessoas (é tudo, e parece simples), mas apercebo-lhes o corpo por um contorno luminoso, razoavelmente semelhante ao formato de um corpo humano, uma cercadura de luz amarela e brilhante de onde saem, como de altifalantes, vozes conhecidas. Estou calmo, nas antípodas do pânico. Não me sinto perturbado com a situação, vou-a explicando repetidamente: “Não, não me dói nada, mas não vos consigo focar; vejo apenas um halo luminoso.”

Uma picadela no braço (estão a pôr um soro a correr, para manter uma veia canalizada); a voz tranquila (de acento africano) do enfermeiro Clemente que se despede; movimento, trepidação de rodas em empedrado; barulho metálico de portas a fecharam-se. Estou dentro de uma ambulância e várias vozes falam à minha volta.

Alguém me aplica uma máscara de oxigénio sobre o nariz e a boca, e ouço a voz da Vera ciciar-me:

“Vou-lhe pôr um comprimido debaixo da língua; deixe derreter devagar.” Abro a boca sob o plástico. Tudo balouça e chocalha à minha volta, devemos ir a

uma velocidade doida; não é nada confortável e o barulho, de chapa a bater, é ensurdecedor. Ouço vozes atrás de mim, umas parecem humanas, outras de radio-táxi. O comprimido sabe a hortelã-pimenta, a máscara magoa-me o nariz. Abro os olhos e digo....

Vamos, devemos ir, para Torres Vedras. Estou de olhos abertos, mas continuo sem ver e preocupa-me a aflição que tocará quem olha para mim: o meu olhar inexpressivo, baço, desfocado e torto. É chato... Com quem ficou o Zé João? Estou de olhos abertos e não vejo ninguém, só vejo para dentro: luzes; luz branca, não..., amarela. Fecho os olhos: igual – luz em arco. Abro os olhos e digo...

Sinto-me entorpecido e mole, como se estivesse a resvalar mansamente para um adormecer. Não tenho bem a certeza da existência e da consistência do meu corpo, ou antes: acho que o vejo ali deitado numa ma-ca-ma; num plano um pouco inferior àquele em que me encontro, como se me estivesse a afastar dele em marcha-atrás, saindo de mim próprio pelo lado do pescoço e da cabeça; o meu corpo lá em baixo, quieto, à espera. Em volta do meu eu solto ganha contornos uma espécie de túnel circular, cuja parede contínua é feita de luz, uma luz intensa fortemente amarelada; uma tonalidade gordurosa, uma cor com a textura do amarelo das bolhas de gordura de uma canja de galinha.

“Isto é o tal túnel”, penso, “e estou-me a ir embora”, concluo, distintamente, quase surpreendido com a minha calma, pois, se estou a finar-me, como parece, não experimento nenhuma espécie de medo ou angústia e vivo o momento com toda a tranquilidade. Estar... Estou e observo, ponho-me a observar: não há muito para ver; há as paredes brilhantes de luz amarela e não tenho sequer a certeza se o túnel me envolve inteiramente, isto é, se o meu eu está completamente contido no seu interior. Movo-me, lentamente, de um modo que parece corresponder a um movimento de retroversão, mas não mudo sensivelmente de plano ou de local.

De súbito, estremeço, com uma sacudidela idêntica à que por vezes nos sobressalta quando estamos mesmo a atravessar a fronteira da vigília para o sono, e estou na maca da ambulância, sentindo uma respiração ofegante e aflita sobre o meu lado esquerdo e vendo,

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vendo distintamente, a João e um rapaz vestido de bombeiro lá para os lados dos meus pés.

A máscara comprime-me o nariz. Abro os olhos e refilo: “Esta merda magoa-me; é horrível respirar assim!” Ao meu lado esquerdo alguém falou; viro a cara lentamente nessa direcção. Vejo a

Vera sorrir-se e dizer: “Agora já se parece mais com você. Está-se sentindo bem?” Inspiro fundo, como para ter a certeza que sou inteiro. Por cima da minha cabeça

o frasco de soro balouça, frenético. Sim, sinto-me bem, apesar do incómodo da máscara o oxigénio torna-me leve o respirar. Sabe bem. Ouço uma voz dizer, vinda de trás:

“Doutora, cinco minutos.” “Avise outra vez que estamos chegando”, pede a Vera. A ambulância parou. As portas abrem-se com estrépito, o bombeiro desengata o

frasco de soro do suporte no tecto da ambulância, a maca move-se. Reconheço o local: Hospital de Torres Vedras, entrada da Urgência. Tenho ainda tempo de dizer à minha mulher:

“João, se tiver que ir para Lisboa, veja se consegue que me mandem para os Hospitais Civis.”

Enquanto a maca abre caminho até à porta interior da urgência vou encarando em contrapicado (isto é, de baixo para cima) as sucessivas cabeças que se esticam sobre aquele chouriço amarrado a uma maca. Os basbaques do costume, voyeurs de berma de estrada, a cocar se a encomenda que agora chega vem em melhor ou pior estado do que a que chegou cinco minutos antes. De mim não hão-de eles sacar nada!

4

O médico usa óculos e desenrola diante dos olhos atentos a tira de papel quadriculado do electrocardiograma. Abana a cabeça e diz:

“Aqui não parece haver nada... Ora vamos lá tirar a camisola para ver isso melhor.” E dirige a mão para o estetoscópio que usa, como se fosse uma estola de borracha

e metal, aninhado no pescoço. Tento ser cooperante e ajudar: finco o corpo nos cotovelos, levo as mãos à cintura e puxo para cima com toda a força, para desprender a fralda da T-shirt preta do cós das calças de ganga. E, nesse momento, tudo cessou de existir.

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Quem assistiu a tudo foi a Vera, que esteve dentro da urgência e ao meu lado o tempo todo; foi ela que mo contou, na primeira visita que me fez, uns dois dias depois, nem ela sonha o quanto me impressionou ouvir a descrição. Mas eu precisava de o saber mais cedo ou mais tarde, pois ia-me dando conta da dimensão por pequenos pormenores estranhos, acidentalmente apercebidos nas horas subsequentes; mas eram fragmentos, peças soltas de um puzzle que eu seria incapaz de completar sozinho. É que eu não estive lá!

Logo imediatamente a seguir ao gesto de tentar tirar a T-shirt, o meu corpo começou a arquear-se, o tórax empinou-se e formou-se-me um profundo cavado no abdómen, como se a pele da barriga tivesse, de repente, ficado colada às costas, sem vísceras pelo meio. A minha cara e boca torceram-se num esgar de endemoninhado, os olhos reviraram-se nas órbitas e todo o meu corpo foi sacudido por violentas convulsões.

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Depois fizeram-se ouvir os pouco diplomáticos ruídos associados ao que os técnicos referem pudicamente como “perda de controle dos esfíncteres” e, logo a seguir, os pulmões e o coração pararam de funcionar. Ponto final. Eu estava morto. Ainda não irremediavelmente morto, mas, indubitavelmente, mais morto que vivo.

Rapidamente, porque o cérebro sem sangue e sem oxigénio caminha vorazmente para a morte cerebral – a definitiva e irreversível morte, fez-se o costume, exactamente aquilo que se vê nos filmes: primeiro deram-me uns poucos de murros nas costelas sobre o coração, mas, como o método não desse resultado e tudo em mim continuasse teimosamente imóvel, foi preciso recorrer ao desfibrilador, à ressuscitação eléctrica.

“Tivemos que lhe dar um empurrãozito...”, explicou-me mais tarde o mesmo médico com uma encantadora modéstia, “é que o seu coração estava um pouco preguiçoso”.

“Preguiçoso como?”, perguntei ainda zonzo, sem perceber muito bem ao que ele se estava a referir.

“Vá, tente dormir”, cortou, “você teve um dia muito agitado; agora precisa de descansar – é importante que repouse”.

Dormir?! Como era possível? Impossível: Por um lado a morfina mantinha-me acordado, num limbo onde imperava uma ligeira euforia, um borbulhar dourado, uma excitação mansa; e, por outro, eu tinha muito que analisar, reatar o fio à meada, agora que regressara ao mundo dos vivos.

De que me lembrava eu? Viera a mim ainda na urgência, mas já com a maca em movimento, a caminho do internamento. Gente de branco à minha volta, ninguém que eu conheça e, de súbito, um vómito irreprimível e o jantar entornado entre o chão e uma bacia que me colocaram apressadamente debaixo da boca. Senti-me melhor e, de qualquer modo, aquele jantar estava amaldiçoado.

É noite e agora estou deitado numa cama, algures no hospital, num espaço separado de outra cama (onde alguém geme mansamente) por uma cortina de oleado, suspensa do tecto. Percebo vozes sussurradas e, numa parede envidraçada à minha direita, vejo, de vez em quando, passar gente. Como se fosse um boneco a saltar de uma caixa surge, inesperadamente, o meu médico a espreitar-me. Não diz nada, olha-me apenas com um ar que me parece apreensivo. Eu cá sinto-me bem; não me dói nada; o borbulhar do oxigénio e da morfina embalam os meus pensamentos. Vão desfilando no écran branco os acontecimentos das últimas horas e, sem muita consciência de todos os elos da cadeia ou da sua conexão, mas na intuição de ser figurante num milagre qualquer, os olhos enchem-se-me de lágrimas. Muitas; um manto contínuo, silencioso e tépido. Quando exageram, puxo a ponta do lençol para as limpar e percebo, numa restolhada metálica, que tenho o peito cheio de fios eléctricos. Um enfermeiro verifica o nível e o ritmo do soro, sorri-me e fecha a cortina a toda a minha volta. Encerrado no meu casulo de oleado, adormeço finalmente em paz.

Regressado ao serviço de urgência, o cardiologista faz uma última advertência à Vera, que se deixou ir ficando para saber as últimas novas sobre o meu estado antes de se reunir à João, que aguarda na sala de espera:

“O caso é bastante grave, não dê muitas esperanças à mulher dele.”

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Acordo com o tropel dos rodízios pela calha do tecto: a cortina que me embrulhou durante a noite está a ser recolhida contra a parede. Uma voz simpática dá-me

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os bons dias e pergunta-me como passei a noite. Depois, sem se deter, faz o mesmo na cama ao lado, disparando um novo “bom-d-i-a”.

Perfilho a teoria (mas não garanto que alguém a não formulou já anteriormente – talvez o Walt Disney) que qualquer pessoa lembra ou sugere, de alguma maneira ou ângulo, um animal. A chave da semelhança pode residir nos contornos do rosto ou na sua expressão, talvez tenha origem nos movimentos, podem até ser traços da psicologia; mas cães, gatos, leões, cavalos, pássaros, girafas ou, abreviando a listagem em categorias folgadas: mamíferos, répteis, insectos, aves, peixes, são seres que abundam por aí, nos passeios, restaurantes, automóveis e transportes públicos das nossas cidades, vilas e aldeias.

A enfermeira que, com uma energia esfuziante, se multiplica pela sala de tarefa em tarefa traz-me de imediato à ideia a imagem de um pardalito, daqueles que saltitam pelo chão fora como se jogassem à macaca no riscado da calçada; estacando para bicar uma migalha ou logo, num ápice, levantando voo e refastelando-se em vigoroso banho numa poça de água, de onde sai molhado (mas sempre com um ar de que a água lhe pegou mal) para, sem descanso, ir bisbilhotar mais além uma conversa num fio telefónico. É magra e frágil, e tem o ar trémulo dos bichos delicados. Cabelo negro, asa de corvo, e curto; olhos muito escuros, grandes e expressivos.

E, como ave que é, cantarola; vai cantando o tempo todo uma música (talvez favorita ou, se calhar, daquelas que se ouvem incidentalmente de manhã e não se conseguem mais tirar da cabeça o dia inteiro), canção que reconheço perfeitamente: é o All I Have To Do Is Dream, dos Everly Brothers. A música é velha, do fim dos anos cinquenta, mas bate bem e é, igualmente, uma das obsessões musicais do meu filho Zé João, que me pediu, aí pelos sete anos de idade, que lha gravasse, entre outras, numa cassete para seu uso exclusivo e a que resolveu dar o título de “Misturolândia”.

“Dream, dream-dream-dream”, canta ela. Fico a saber, pela empregada auxiliar que se desdobra azafamada no seu rasto, que

o pardalito se chama Catarina e que as bacias redondas de metal onde ela mexe se destinam a dar um banho de cama aos dois hóspedes da Unidade de Cuidados Especiais, que é como se chama o sítio onde estou, e um dos quais sou eu. Assusto-me com a perspectiva, e aproveitando o momento de privacidade proporcionado por um novo fechar das cortinas e pela entrega de uma inequívoca garrafa de vidro de boca larga, levanto o lençol e inspecciono-me à pressa: vá lá, ainda tenho umas cuecas vestidas!

Porém (questão de honra), não devo conservá-las muito mais tempo, pois o descontrolo esfincteriano da noite passada, do qual, morto de vergonha, só agora me dou conta e percebo as implicações práticas, exigem o seu rápido desaparecimento.

“Esmurraram-no bem ontem à noite!”, comenta Catarina, entretida a esfregar-me com o ar sereno de quem enxagua cambraias.

“Aah?...”, balbucio aparvalhado, não percebendo ao que ela se refere. Com uma grácil extensão do queixo ela aponta o meu peito: “Parece um Cristo!; olhe só: marcas de murros, uma queimadela do desfibrilador!” Tento sentar-me na cama para observar melhor o que me é revelado, porque, assim

deitado, só vejo três ou quatro ventosas de gaze agarradas à pele e um emaranhado de fios eléctricos ligados a elas, por cima dos quais se atravessa a sonda transparente do oxigénio.

“Quietinho”, diz ela sorrindo e mantendo-me colado à cama com uma amigável, mas firme, palma da mão, “espere que eu levanto-lhe a cama. Não se pode pôr já a mexer com tanta energia!”

A minha cabeça é um novelo entorvelinhado por memórias fragmentadas e desconexas, muitas das quais parecem não pertencer-lhe e terem ido lá parar por engano, talvez por troca com terceiros: vómitos, escuridão, caras inclinadas sobre mim, chocalhar metálico, lágrimas, pele picada, vago desejo de urinar, uma almofada desconhecida, bolhas

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frias que fervem sem parar. Calor, pele seca, e vontade de empurrar lençóis para trás; gemidos; uma voz, mansamente repreensiva, que diz: “vá, tente dormir”.

A todos estes fotogramas que, recorrentemente, se me acendem frente às pupilas tenta misturar-se, disforme e palpitante, uma apreensão que só ainda não cristalizou num colorido pânico porque algo em mim pontapeia para um profundo abismo as impressões e factos e que, assim, se mantêm circulantes no mesmo caldo inconsistente em que vogam as restantes memórias das últimas doze horas: Vejo-me, lá longe, a escorregar para o chão, o braço esquerdo aprisionado nas malhas de uma rede invisível; alguém me meteu não sei quê mentolado debaixo da língua; “tivemos que lhe dar um empurrãozito... o seu coração estava um pouco preguiçoso...”; as cuecas cruelmente sujas; “marcas de murros no peito, uma queimadela do desfibrilador...”

Apetece-me perguntar o que realmente me sucedeu, o que se passou comigo, mas tenho algum medo da resposta. Não quero saber uma porção de verdade superior à que posso aguentar sem quebrar.

Tudo se resolveu sem excessivo drama, a evidência surgiu de onde menos se espera, como é habitual nas histórias tristes: foi por uma escova de dentes que a verdade se revelou! E o instrumento da revelação chegou pelas mãos da João, a meio do meu banho de bacia, num saco cheio de artigos de primeira necessidade: pijama, um par de óculos, artigos de higiene: pente, pasta dentífrica, escova dos dentes...

Do todo, logo que a enfermeira Catarina me deu por lavado e arranjado, agarrei o tubo de pasta e a escova e, após atirar o lençol para trás, fiz o gesto banal de quem vai saltar de uma cama. Um grito da empregada auxiliar, uma corrida da Catarina até à minha cama, à qual me travou num golpe de artes marciais, fizeram-me perceber o todo, na sua escaldante simplicidade:

“Dr. Pedro!”, diz Catarina com um olhar coruscante, arredondando-se brilhante entre o zangado e o divertido, “o sr. não vai sair da cama por nada, está bem? Quer escovar os dentes? – pode fazê-lo na cama; quer urinar? – pode urinar sem sair da cama.”

E, dando-se conta do desbotamento da minha expressão: “É de toda a conveniência que, nestes primeiros dias, não faça o mais pequeno

esforço; é vital para o coração que o seu corpo esteja em repouso absoluto.” E, procurando animar o meu indisfarçável desalento com o seu sorriso, no mais

ciciado trinado: “Eu e a Fatinha ajudamo-lo em tudo o que quiser e precisar; basta dizer-nos...

OK?” E no sopro daquele “O” transmutou os lábios finos num perfeito círculo de estrias

delicadamente batonadas. Acenei com a cabeça, murmurei ok, e fiquei silenciosamente ciente de quão grave é

o meu estado. Porra! O universal, inocente e banal gesto de levantar da cama fôra neutralizado como se eu me preparasse para ir detonar algum interruptor nuclear, algures pousado no lavatório da casa de banho, ao lado do dispensador de toalhas de papel! Está bem, já percebi; eu devia saber.

É tão sério que a simples variação entre estar deitado ou em pé pode representar a diferença entre a vida, a doce vida conforme a tenho conhecido e desperdiçado, e a morte: a dos livros, a dos filmes, a dos outros. Brutal invisibilidade, a desta fronteira.

Escuso, aliás, de me continuar a esconder de mim próprio, de meter a informação, que brota de todos os lados, por baixo da alcatifa. O açafate de notícias que a João traz do exterior confirmam a minha mudança de estado, e os recados, as saudações, o “ele que não se rale com o trabalho”, o “agora ele tem é de descansar, de pensar nele”, revelam todo um circuito de contactos, para lá e para cá; fazem adivinhar pessoas perplexas, inquietas, querendo fazer chegar novas solidárias; algumas delas pensando, ainda meio aparvalhadas pelo toque madrugador do telefone, onde raio fica exactamente Torres

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Vedras e, apercebendo-se que, com a atrapalhação, se esqueceram de perguntar à João em que Serviço estou eu internado.

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A Unidade de Cuidados Especiais do Hospital de Torres Vedras é uma espaçosa sala de acesso reservado, encravada no coração do Serviço de Medicina Interna, com o qual comunica por uma porta situada à minha direita, e do qual está fisicamente separada por uma parede envidraçada. Quem passa, vê-nos aquarizados e nós, do outro lado do vidro, mergulhados em infindáveis bolhinhas de oxigénio, vemo-los também passando ou aprochegando-se pelo corredor.

A parede oposta dá para sul e para o exterior do hospital e, pelo largo vão de janelas, avisto, saracoteando-se no cismado torpor de um renque empoeirado e escuro de cedros, as cinturas altas, ondulantes, de alguns choupos. Lá longe, para além de prédios mal arrumados, imitando a feição de um desenho infantil, o olhar acompanha o macio verde de uma colina, onde uma improvável estradita se acavalita morro acima.

A Unidade de Cuidados Especiais tem quatro camas mas, neste momento, apenas duas estão ocupadas: a minha (que fica logo ao lado da porta e encostada à vitrina) e a de uma senhora idosa que, ao meu lado esquerdo e como eu de pés virados a poente, faz a preparação hospitalar necessária para ir um dia destes a Lisboa implantar um pacemaker*.

No entanto, a enfermeira Catarina acha que o sossego que reina na Unidade é sol de pouca dura, pois lá em baixo, na urgência, está de serviço o dr. Brito, e quando este está ao serviço aparecem sempre casos complicados, a exigir internamento nos Cuidados Especiais.

“É fatal como o destino...” Fatinha acena, confirmando: é um dogma! E, de facto, a meio da tarde, já a Catarina e a Fatinha tinham rendido o turno, a

tranquilidade que governava a Unidade foi sacudida pela entrada tempestuosa de uma maca. Em cima desta contorce-se um vulto que o pessoal se apressa a deitar numa cama vaga, em frente e à esquerda da minha. É um homem, agitado como peixe baldeado no convés de uma traineira, e geme alto as suas dores, levando as mãos, em gestos descoordenados, ao centro do tórax. Enfarte do miocárdio, não é difícil perceber, mas nada que se assemelhe ao que eu tive, que foi rápido, pacífico e completamente indolor como a depilação ideal. O dr. Brito e a enfermeira afadigam-se à volta do doente, mas a agitação que a dor lhe provoca mostra-se difícil de domar e, por mais uma tormentosa hora, o pobre convulsiona-se, despedaçando o peito com as unhas, como se uma serpente aí tivesse cravado venenosas presas. Sem alternativa, observo; impressionado e mudo.

Finalmente (estava eu estafado, só de assistir) o desgraçado acalmou-se, caiu instantaneamente num pesado sono e o pessoal pôde, enfim, respirar de alívio.

Agora que adormeceu, que a expressão se relaxou e adquiriu a infante bem-aventurança dos que dormem, a face do novo doente parece-me familiar. Ponho-me a esmiuçá-lo, mas reconhecer deitado um tipo que sempre se viu em pé; vê-lo em tronco nu, se sempre o vimos vestido; vê-lo parado no sono, quando sempre o vimos acordado, não facilita a tarefa! E, no entanto, ia jurar... E.., é..., parece-se imenso com o engenheiro Fidalgo, engenheiro civil; um tipo de Lisboa, mas que também trabalha na Lourinhã, e que, precisamente, anda a construir uma segunda residência, uma casa de praia, quase pegada à minha. Ainda ontem à tarde o encontrei no café da Dona Ção, transpirando confiança; * Aparelho de tamanho muito reduzido, capaz de proporcionar ao coração o estímulo de excitação eléctrica que este necessita para manter um ritmo de batimento apropriado.

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discutindo as propriedades do betão pré-esforçado com a João e mais outro arquitecto – eu, até, fugi logo mal percebi para onde se encaminhava a conversa. E, quem diria, hoje, aqui está, em perigo de vida e sem o imaginar! É ele, é... Acho que é.

Perto da hora do jantar, ainda ele dormia – arrasado do combate com o cerco coronário, chegou a João com uns telegramas, uns sumos de frutas e as novidades da nossa rua.

“Sabe o que aconteceu hoje ao engenheiro Fidalgo?” “Sei”, disse, apontando-lhe a cama em frente, “teve um enfarte do miocárdio”. A João desconhecia para onde o homem tinha sido enviado. Soubera apenas os

pormenores até à ida para o Centro de Saúde da Lourinhã; pensava até que ele teria seguido para Lisboa ou, talvez, para o Hospital de Cascais, onde a mulher trabalha. Antes disso, o engenheiro Fidalgo andava satisfeito na sua obra, orientando os pedreiros; ajudando a transportar uns materiais, pesadotes por sinal. A páginas tantas, sentira-se mal, muito cansado e suado, mas não ligara. Descansou um pouco, fumou um cigarro, continuou a dar uma mão: voltou a sentir-se mal, desta vez uma aflitiva falta de ar e um aperto de quebra-nozes no peito. Não conseguiu continuar, foi parar ao atendimento permanente do Centro de Saúde, onde o enviaram, a correr, para Torres.

Anoiteceu. Nas janelas que dão para a rua já se reflectem as luzes da nossa sala,

embora ainda se aperceba lá fora uma trama esmaecida de céu avermelhado, quase sufocada pela tonalidade azul-negro da noite – amanhã vai estar outro dia quente.

Tenho, nascendo por trás da cabeça, um candeeiro (daqueles de pescoço extensível), orientado sobre um dos livros que a João me trouxe. Não consigo fixar-me na leitura: ora me distraio com algum barulho no corredor, ora deito um olho ao engenheiro, que continua a dormir regaladamente, uma das mãos preventivamente resguardando o peito.

“Durma, durma, engenheiro. Todos os que aqui o viram chegar lhe desejam o longo sono dos justos.”

A enfermeira que tomou conta do turno da noite é uma morena de pele fagueira, com uma espessa massa de cabelo escuro emoldurando-lhe o rosto miúdo; salientando-lhe a finura do pescoço, encurvando-se graciosamente ao toque nos ombros. Que pena: mal acabou de se sentar à mesa de trabalho que existe encostada e perpendicular às janelas, deitou as mãos à cabeça, arrepanhou a cabeleira e estrangulou-a num rabo-de-cavalo com um elástico que aguardava entredentes. A nova contenção capilar, mais cómoda para quem trabalha e mais higiénica para nós – doentinhos, não lhe rouba o encanto, mas sublinha a alegoria pónei de carrossel em detrimento do perfil de sereia. Chama-se Inês, e interessou-se pelos livros que a João me trouxe, pediu para os observar; quis, depois, saber se lhe cedo um deles para se entreter durante as acalmias da vela. Diz-me que ler é o seu passatempo favorito e que o seu escritor preferido é uma das irmãs Brontë, se não me falha a memória, Charlotte.

Como num pub que se prepara para fechar, a enfermeira Inês dá-nos um primeiro sinal que são horas de recolher desligando a música que tocava baixinho na aparelhagem. Todavia, aqui os seus clientes não saem resmoneando pela porta fora nem, sequer, aproveitam o aviso para se irem deitar – eles já estão deitados; resta-lhes esperar que lhes baixem a cama e que o sono, na sua indulgência, os premeie.

“Quer que lhe corra a cortina?”, pergunta-me ela. Não quero. Com a cortina cerrada sinto-me como um papagaio a quem cobrem a

gaiola para que julgue que é noite e interrompa o patuá. Prefiro, ao incómodo de um pouco de luz a mais, estar em contacto com o que acontece ao meu redor.

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O tempo passa; não tenho sono; não estou acostumado àquela cama, nem a dormir com tanta gente em volta. De olhos abertos, mas procurando ser discreto, vou observando a enfermeira, que ainda não parou um minuto desde que entrou ao serviço. Parece haver sempre ainda mais uma tarefa a cumprir, que a mim bem me pareceria poder aguardar pelo dia seguinte, mas, meticulosa, com uma expressão séria e compenetrada, ela vai coleccionando gestos, arranjos, arrumos; levanta-se silenciosamente, confere um qualquer pormenor que, de todo, me escapa e volta a sentar-se à pequena mesa de trabalho para o registar. Escreve, escreve, escreve; a enfermeira Inês escreve como se pouco tempo lhe restasse para ditar as últimas vontades.

Espantado, sinto as pálpebras principiarem a pesar-me, o zunido permanente do oxigénio recuou para um suave bafejo hipnótico, mas luto para não adormecer já – estou fascinado pela lida da Inês e quero ver como o filme acaba.

Por fim, ela parece dar por terminado o trabalho. Agora levanta-se, pressiona ligeiramente o espaldar de uma poltrona de napa negra que esperava perto da mesa onde escrevia, recolhe o braço do candeeiro que lhe iluminava a mesa de trabalho até que a luz apenas derrama uma diminuta poça de luz sobre o topo da poltrona, e, por fim, recosta-se no improvisado leito, abrindo o livro que me tomou emprestado.

Não consigo mais segurar os olhos e na minha mente, cada momento mais indiferente às coordenadas do local onde estou, a incerteza pelo dia de amanhã vai sendo embrumada pela efusão do silêncio, suavemente ameaçado por uma página que se volta.

O trio de pacientes que a enfermeira Inês velou durante a noite atingiu o estatuto

de quarteto no Sábado de manhã com a chegada de um novo doente, uma entrada em cena impressionante, de coloração ainda mais dramática do que a do engenheiro Fidalgo, pois o recém-chegado, para além de se contorcer em cima da maca, e, depois, sem transição ou pausa, em cima do leito, berra com dores, agarrado ao peito e ao braço esquerdo. Outro enfarte? É o que parece, mas este tipo, vejo-o claramente porque o deitaram a menos de dois metros de mim, não deve ter nem trinta anos! É muito novo para um enfarte, embora o dr. Brito tenha largado uma destas manhãs que antigamente...

“... era raríssimo aparecer-nos um enfarte em pessoas com menos de cinquenta anos... Agora, aparecem-nos com trinta e, às vezes, até menos!”

No entanto, logo que acalmou, o António Luís clama que o seu problema nada tem a ver com o coração e que a origem do seu mal foi ter-se-lhe espetado no braço o espinho de um cacto, acidente que lhe terá provocado toda aquela reacção de dor no braço e no peito.

Os médicos não acreditam em explicação tão extravagante e, ventilando hipóteses de enfarte ou pericardite, conduzem a situação como se de um acidente cardíaco se tratasse; tratamento que, pese embora a sensatez dos clínicos, o exaspera.

“Beleza”, diz ele à enfermeira de serviço, uma ruiva de cabeleira aos canudinhos, “eu não consigo estar aqui parado na cama! Tenho que me levantar.”

E foi preciso mandar chamar o médico de apoio à Unidade para impor algum respeito, pois, agora que as dores lhe passaram completamente e se lhe despertou a claustrofobia do internamento, nada o convence que não pode ir de imediato embora, para casa; como se nada se tivesse passado.

O médico zurze-o com veemência e o António Luís escuta-o, a cabeça baixa, o ar humilde, mas mirando-me, a mim, que lhe estou exactamente em frente, à socapa, um gozo brilhando-lhe nos olhos azuis; uma piscadela de olho inaugurando uma cumplicidade.

Rapidamente nos tornamos compinchas, o António Luís e eu, unidos pela força das circunstâncias; pelos nossos rostos em espelho (se me sento na cama é a cara dele que me devolve o olhar); pelo gosto em espreitar movimentos; pela partilha de um mesmo

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tremor estético ante a variedade, a juventude e a beleza do elemento feminino que nos rodeia e de nós cuida.

“Dr.”, adverte ele com um movimento de pescoço direccionado ao corredor, “repare-me só naquela visão!”

Visões... Estamos, abençoadamente, rodeados de belas, interessantes, cativantes, diligentes, simpáticas, pacientes visões, que pontilham o nosso dia como as estrelas a noite.

Mas o António Luís não é uma personalidade meramente contemplativa e não resiste nunca a dirigir, no seu olhar sonolento, numa falsa inocência de menino sonso e malandro, elaborados galanteios a tudo o que lhe passa por perto.

“Pode-se saber o seu nome?”, pergunta à encandeante beldade que nos vem fazer os electrocardiogramas, estendendo-lhe o braço com a apócrifa solenidade de quem aguarda que lhe enfiem uma aliança no anelar.

A rapariga declina o nome e sorri, divertida, e, entretanto, o António Luís já avançou mais um passo:

“Você, por acaso, mora aqui, em Torres?” E como ela, sem interromper a colocação dos eléctrodos no peito do António

Luís, abanasse a cabeça numa negativa lenta, ei-lo lançando mais um arpão: “É pena...; senão convidava-a para sair comigo um dia destes.” Claro que tudo isto são quimeras: o António Luís não mora sequer perto de Torres

Vedras; ele, tal qual eu, reside a uns vinte e tal Km daqui, junto da mulher e de um filhito. Os meus dias, é forçoso que o reconheça, animam-se com a sua chegada à Unidade

de Cuidados Especiais. Apreciar a sua comunicabilidade malandra em acção encanta-me; a sua teatralidade, oscilando entre o pantomineiramente queixoso e o galante, diverte-me.

“Meu amor”, lança num queixume à auxiliar que nos trouxe o tabuleiro com a janta, “isto não se consegue comer! – acho que vou jantar fora...” E, arreganhando o sorriso n.º 37: “Você é que podia vir comigo. A que horas deixa o serviço?”

Também neste departamento da alimentação, comungo das opiniões do António Luís. Aqui come-se mal que se farta, contrariedade de que só agora me começo a dar conta: é que nos primeiros dias não me davam à boca nada mais do que uma chávena de chá, um iogurte e, às vezes, uma maçã assada. E isso deixa-se, em geral, comer sob qualquer latitude. Depois juntaram uma sopa e, enfim, lá ia ela sem grandes sobressaltos gustativos. Mas quando regressei à chamada dieta sólida! A comida é mauzota por estes lados. Talvez eu seja muito esquisito, admito; mas uma batata encruada, embora exteriormente se possa confundir com uma batata cozida, não cumpre o seu nobre destino alimentar.

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Não sei por onde anda o meu relógio mas, porque amanheceu e ontem foi Sábado, penso que hoje é Domingo e, pouco depois da hora do almoço, passou por aqui o Zé Marques Neves, em trânsito de Viseu para Lisboa. Vem, no meu cardíaco impedimento, substituir-me como presidente do júri no concurso que estávamos preparando desde Janeiro e cujas primeiras provas estão, há cerca de um mês, convocadas por mim para amanhã de manhã!

Vi a sua metade superior evoluir ao longo da parede de vidro que nos separa do corredor, o sorriso levemente contido, de modo a açaimar a emoção por trás da amizade, tentando que o esforço não lhe estique demasiado as comissuras labiais e dê muito nas vistas.

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Só quando abriu a porta e entrou na sala é que reparei – o homem vinha de calções!, um trajar nada conforme à sua habitual formalidade.

“Zé!, parece impossível. Um médico, um gajo importante como tu, entrar por um hospital dentro de calções!”

“Que queres?, lá fora está um forno!” Não vale de nada tentar contar ao Zé pormenores do que me aconteceu ou da

evolução recente do meu estado clínico: está completamente a par de tudo, actualizado com o que me sucedeu até uma hora atrás; peneirando cuidadosamente as palavras quando no discurso se refere à minha doença, para que nenhuma delas seja aprisionada pela minha exacerbada sensibilidade e contribua para me anuviar o alento. Ei-lo que salta já para outro terreno menos minado:

“Passei por tua casa agora mesmo; fui buscar os dossiers do concurso: tenho a mala do carro atulhada de caixotes e de papéis.”

Não se demorou muito e, anunciando que desejava ainda rever a formulação das questões a dirigir aos primeiros candidatos, fez menção de se levantar e partir. Retive-o um último momento; quis, antes de o ver ir-se, informar-me sobre o precário estado de saúde da Judite, mulher do Zé vai para uma vintena de anos.

“E a Judite? Como vai ela?” Por breves instantes a boa disposição, tão valentemente mantida, volveu-se numa

boca apertada e deixou entrever um olhar onde a angústia relampejou. “Hoje não é bom dia para falarmos disso...”, poupou-me, num sorriso triste. Calei-me e mudei de conversa, procurando devolver-lhe a gentileza de alguns

minutos esquecido do martírio que acabara de deixar em casa: operada a um cancro com sucesso, livre de doença durante um reconfortante número de anos, a Judite, quando já ninguém mais o esperava, esbarrara na disseminação de incontáveis células malignas por todo o corpo. O Zé, esse, recusava-se, apesar da evidência, a ceder ao impiedoso alastrar da doença, a uma realidade que o estava, cada dia que se escoava, a esmagar como a um insecto.

“Adeus, menino”, despediu-se, “porta-te bem”. Só depois de o ver desaparecer no corredor e após deitar uma olhadela aos

adormecidos ou entorpecidos companheiros de quarto, me afundei em silêncio pelo lençol, ocultando os olhos molhados de quem pudesse passar por ali. Grande merda, olha só o estado em que eu estou!

O fim de semana escorreu vagarosamente; soporoso; com muito calor e revoadas

de visitas pelo corredor; olhando, ao passar, com receosa curiosidade os enfrascados da Unidade de Cuidados Especiais, um pouco como se fossemos cobras num solário. Compreende-se: todos os quatro ostentamos monitores cardíacos à cabeceira; um tubo que sai da parede e se nos pendura no nariz; finos cabos eléctricos colados ao peito; frascos de soro a pingar por nós adentro. Somos, pelo menos na aparência, na personificação dessa qualidade assustadora e um tanto alienígena que é a doença, os coitadinhos de serviço.

Não obstante, mas isso eles não o sabem, eu sinto-me optimamente aqui deitado e o mesmo, sem grande abuso, poderia ser dito do António Luís (quando não está a ensaiar flatos para chamar a atenção); da minha vizinha do lado; ou do engenheiro Fidalgo que dorme pacificamente, a boca espapaçadamente escancarada confundindo, no outro lado da montra, os caçadores de curiosidades hospitalares.

O meu aspecto exterior pode ser assustador, o quadro clínico será, porventura, reservado mas, não fôra a proibição de me levantar da cama, e diria que estou de perfeita

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saúde. E isso é deveras confundente: sentirmo-nos como é costume e tratarem-nos como se pudéssemos estourar a qualquer momento.

Atendendo à torreira que se apercebe lá fora e ao fácies alucinado dos forasteiros, está a ser um fim de semana de Verão ideal; sem nada para fazer além de debicar um ou dois parágrafos num livro e escutar languidamente as canções saídas pelas colunas da pequena aparelhagem que existe pousada numa das prateleiras sob as janelas e, geralmente, sintonizada na Rádio Nostalgia; isto é, quando a enfermeira Inês não está de serviço.

“Também já é nostalgia a mais!”, desabafa ela, desdenhosa, mudando prontamente de estação.

Dissonâncias... Entre vários outros aqui no hospital, eu e a enfermeira Catarina (que tem mais do que trinta e cinco anos) apreciamos ouvir a Radio Nostalgia: conhecemos aquelas músicas todas; são do nosso tempo; podemos cantarolá-las, quanto mais não seja mentalmente...

Let’s all get up and dance to a song That was a hit before your Mother was born...* Por outro lado, a enfermeira Inês, que tem vinte e poucos anos, aprecia, sobretudo,

música moderna, entenda-se: feita nos dias que lhe correm nas veias; e as canções que ela agora ouve serão, se a história se repetir, as canções que ela gostará de trautear daqui a uma dúzia de anos, mas isso faz parte do seu insondável futuro: para já, e é tudo o que conta, ela ainda não tem idade para se sentir nostálgica.

Já com rodagem suficiente para entender o conceito, o dr. Daniel Varanda, o meu médico, aquele a quem saiu o brinde da minha paragem cardíaca, voltou, após o fim-de-semana, a aparecer por aqui, para me informar que amanhã...

“... vamos fazer-lhe um ecocardiograma, para ver como isso ficou e, se tudo estiver estabilizado, queria enviá-lo a Lisboa, para uma coronariografia.”

“Coronariografia?!”, repito, num eco apreensivo. “Sim; temos que tentar descobrir porque é que isto lhe aconteceu. Você não acha?” Achar, não é o problema... Achar, eu acho; mas a ideia de uma coronariografia!

Não é o mesmo que nos dizerem que vamos fazer uma radiografia. Não é estimulante a notícia de que nos vão enfiar uma sonda por uma artéria acima, esfuracando por ali fora até ao coração, para depois nos injectarem um contraste que, como o flash de uma máquina fotográfica, nos ilumina todos os torcicolos da circulação cardíaca para a posteridade.

“E quando vai ser isso? Onde é que me vai mandar?”, pergunto, sumidamente. “Homem, você parece que está com pressa em nos deixar!”, ralhou ele no seu tom

pseudo-áspero. “Vamos por partes: primeiro vamos ver como se está a comportar a máquina e, depois, trata-se do resto. Mas, se tudo correr bem, gostava de ter isso esclarecido ainda esta semana.”

E, vendo-me caído; não querendo deixar-me em silêncio, exigiu: “Está bem?” Não estava nada bem, estava péssimo, mas lá lhe disse que sim. O que se pode

dizer ao homem que nos salvou a vida três dias antes e que, além do mais, tem um carácter obstinado?

Fiquei saturninamente a pensar naquilo; seguindo desligadamente a animada conversa entre um refastelado António Luís e uma auxiliar de acção médica que, perto dele, sobre uma bancada, vai transformando alvas camadas de gaze em fofas compressas.

A Unidade de Cuidados Especiais tem, em permanência, uma enfermeira e uma empregada auxiliar de serviço, disposição que causa uma inveja danada no resto do hospital, pois tal exército para uma minoria de apenas quatro doentes é considerado pelo pessoal das restantes enfermarias um luxo oriental, mesmo tratando-se, como o nome da * Da canção Your Mother Should Know, de John Lennon e Paul McCartney (Magical Mistery Tour, 1967).

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Unidade indica, um local para internar e manter sob estreita vigilância situações graves ou em risco de se tornarem graves a qualquer instante.

Pessoalmente, lamento que todo este luxo não tenha repercussões no conteúdo dos tabuleiros em que nos trazem as refeições, as quais, infelizmente, continuam a vir da cozinha comum e a manter uma rigorosa intragabilidade. O que me tem valido são as delicatessen que a João me vai trazendo em cada visita – iogurtes, fruta fresca, bolachas, uma compota... Acabei de jantar, afastei os despojos da bandeja para o mais longe de mim que os braços permitem e estou compenetradamente a descompor as quadrículas de canela de uma taça de arroz-doce que, via mercado-negro, me enviou uma vizinha amiga.

A Unidade está silenciosa e tranquila, como aparenta estar a noite que espreita nos vidros das janelas; uma acalmia recamada de cansaço, espessa como uma poeira de Agosto. A doente da cama ao lado foi hoje de manhã enviada a Lisboa, colocar o seu pacemaker, e o engenheiro Fidalgo, dormindo virado para os choupos que nenhuma brisa agita, vai-se amanhã para um hospital de Lisboa, onde tem conhecimentos.

“Estou a ver que ainda cá fico sozinho”, amargurou-se o António Luís quando desabafei as novidades sobre a minha coronariografia. “Foi a velha; amanhã vai o engenheiro; depois é você...”

“Eh!, também não exagere: ainda nem sei quando vou e, se for, vou e venho no mesmo dia – eles não me querem lá para semente!”

“Sei lá”, duvidou, com um semblante tão taciturno como se enfrentasse a possibilidade de se achar, de um momento para o outro, só, à superfície do planeta.

“Mas sei eu”, garanti-lhe, “ao fim de duas ou três horas apareço aí outra vez”. Está outra vez no turno da noite a enfermeira Inês e, como já vamos sendo velhos

conhecidos, quando veio baixar-me a cama, aproveitou para dar uma olhadela aos livros e revistas que tenho pousados ao meu lado e cujo monte vai aumentando cada dia que passa.

“Empresta-me este para hoje?” A rádio foi desligada, as luzes, excepto o candeeirinho da mesa de trabalho,

apagaram-se, e a enfermeira Inês, deixou temporariamente a Unidade, para ir, à pressa, engolir alguma coisa à copa da enfermaria – é a hora da última ceia.

Fecho os olhos; aninho o corpo; ajeito-me na almofada, procurando o perfeito encaixe para a cabeça. Lá de fora, do corredor, chegam ruídos esparsos de vozes longínquas, um tinir de metal, uma porta que chia nos gonzos, um rolar de algo que é empurrado. Adormecer...

Adormecer está para além da vontade, não é estado que se deixe iludir facilmente e, desde que aqui estou, divido-me todas as noites entre a vontade de ser colhido pelas desmemoriadas asas do sono e a recalcitrante necessidade de me manter acordado, para surpreender a morte, no caso de ela vir rondar por aí. Fazer-me difícil; não ir assim por esse negrume fora como uma menina leviana. O arzinho enganador que ela assume e, ao mesmo tempo, a brutalidade com que nos arranca o tapete debaixo dos...

“Dr.?... Já está a dormir?” “Não”, respondo num registo que se tenta alcandorar ao paradoxal apuro de um

sussurro audível. “Boa noite”, despede-se o António Luís, semi-erguido na cama, os olhos claros

luzindo na penumbra. “Esta noite podemos dormir sossegados, não acha? – temos um anjo a tomar conta de nós.”

“É verdade”, assenti, regressando mais leve ao desfiar interrompido do meu terço de pensamentos. “Boa noite, durma bem.”

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Nunca tinha passado um aniversário numa cama de hospital ou, melhor, nunca tinha sequer estado internado num hospital, mas há sempre uma primeira vez para tudo e hoje, uma terça-feira, faço 46 anos, uma quantia que, por um triz, não se ia cumprindo e a que, de repente, me apetece saudar com um gasto “bonita idade!”

Estou a ver-me, não fosse o presente e superveniente motivo, a passar o dia como outro qualquer, atendendo, entediado, os telefonemas dos crónicos do costume; despachando com secura as manifestações de regozijo pelo meu natalício, remoendo uma reflexão nostálgica sobre o passar dos anos. Mas não este ano.

Desembrulhei as prendas que me fizeram chegar; li as mensagens que me mandaram; recebi a visita do meu filho Zé João (a quem não via desde o dia do enfarte), da Vera e dos filhos; e, quase ao fim da tarde, abraçando a si um enorme ramo de flores e equilibrando, na mão que lhe restava, um vaso com uma verdejante planta, apareceu por aqui um jovem colega, em representação de uma dúzia de outros que, num gentil cartão pejado de assinaturas familiares, me desejavam “melhoras, felicidades e muitos anos de vida”.

Agora, entretido a despachar como sobremesa um covilhete de esplêndidas cerejas que a João trouxe para me enriquecer o jantar, admiro, com satisfação, o efeito que o meu ramo de flores está provocando lá fora, por trás dos vidros, em cima do balcão de recepção do Serviço de Medicina. Foi a Fatinha que tratou do desencantar da jarra, da água, do arranjo; e que, antes de deixar o turno, às oito da noite, abriu a porta da Unidade e, sobraçando a planta envasada que eu acabara por lhe oferecer, se despediu:

“Vou cuidar dela com todo o cuidado: mesmo quando se for embora, vou saber que está bem se a planta estiver bem...”

Fiquei como um parvo a olhar, sem conseguir responder a um cumprimento com umas tão belas raízes. Quem reagiu de imediato foi o António Luís que, esticando a cabeça por sobre os pés da cama, me atirou:

“Ó dr., diga lá, esta foi linda...” Um bom pedaço depois do jantar, uma empregada veio-me buscar para darmos

uma volta até às catacumbas do rés do chão, onde se situam as salas dos meios auxiliares de diagnóstico. Vou, sempre em esforço zero, deitado na maca para onde me mudaram, fazer a anunciada ecocardiografia, um exame ao funcionamento do coração que usa como método o meio de orientação predilecto dos morcegos: os ultra-sons.

Sentado ao computador está, de bata branca, um tipo moreno e magro. Não me lembro de o ter visto anteriormente. É pouco comunicativo e manteve-se calado ao longo de todo o tempo em que foi chafurdando com o manípulo do ecógrafo pelo gel viscoso que previamente me espalhou no tórax.

“Você teve um enfarte extenso, diz o médico no final, “mas está a recuperar bem e a revascularização do miocárdio está a fazer-se rapidamente”. E despedindo-me:

“Vamos ver se, ainda esta semana, o mandamos a Lisboa fazer um cateterismo, para investigar isto.”

“Já sabe a que hospital me vão mandar?” “Não, não sabemos; estamos a tratar disso: o costume é Santa Maria ou, então,

Santa Marta.” “Se fosse possível, preferia ir aos Hospitais Civis”, arrisco, timidamente. “Não lhe sei dizer nada; isso nem sequer depende muito de nós, depende das

marcações... Depois fale com o Varanda.” No dia seguinte, assim o vi entrar na enfermaria, tratei de me agarrar ao dr.

Varanda:

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“Dr., afinal onde vou fazer a coronariografia?” “Homem!, acabei agora mesmo de confirmar isso: no Santa Maria só o podiam

receber para a semana; de modo que vai amanhã a Santa Marta, ao fim da manhã. Já combinei tudo com o Gil Seabra, o colega que o vai examinar – um tipo porreiro e muito competente, você vai ver.”

Comecei a sentir uma aragem de sorte soprar para os meus lados, fluxo que logo afocinhou, e acabou por mirrar, na sequência de uma última observação do médico:

“Senhora enfermeira, é preciso não esquecer de preparar este doente para um cateterismo.”

Logo que o dr. Varanda deixou a sala quis saber em que consistia a tal preparação, pois pus-me (ignorância minha) a imaginar dietas e jejuns especiais; medicações específicas, sei lá, clisteres radicais...

“Ah, nada de especial”, respondeu ela prontamente, “é só rapar os pêlos do púbis e de ambas as virilhas”.

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Manhã de S. João; 11 horas. Eis-me por breves instantes, o tempo de enfiarem a minha maca na ambulância, ao ar livre de uma manhã quente e gloriosa. Hoje guarda-se feriado na minha cidade natal e, também, na minha vila adoptiva. A esta hora, no Porto, a maior parte das pessoas ainda ressona ou, os mais madrugadores, lamentam os excessos da véspera e penam a ressaca; os lixeiros, esses, devem andar pelas ruas amaldiçoando o tufão que os foliões fizeram desabafar sobre a cidade ontem à noite. Na Lourinhã, onde a tradição nunca foi o que era, com um calor destes vai-se para a praia – é esse o costume de uma boa manhã sãojoanina.

Quem vai comigo a Lisboa é a enfermeira Catarina, circunstância que encaro como uma atenção carinhosa do meu rico S. João: eu não saberia escolher melhor a companhia, porque o seu modo de ser, do tom de voz à delicadeza eficiente, acalmam e pacificam.

A ambulância segue pela auto-estrada num trote regular. O movimento a esta hora é nulo e nenhum de nós tem pressa, o que me permite manter um olho na paisagem e um ouvido no discurso de Catarina, que, a propósito do rápido que é ir agora a Lisboa, me está a contar das aulas de pintura que, duas vezes por semana, aí recebe.

“Ai sim?”, pergunto, agradado; “pinta? Não fazia ideia!” É a paixão dela, apercebo-o no tom cativado com que descreve o passatempo, no

brilho sonhador que lhe toma o olhar escuro. Lá fora, solitário e pendente no separador central da auto-estrada, acaba de se

cruzar connosco um daqueles exagerados barretes de Pai Natal que indicam a pujança e o sentido do vento.

“A que horas acha que voltamos a Torres?”, inquiro, pois espero a visita, a meio da tarde da Ana e do João Vasco, os meus sobrinhos do Porto.

Ela não sabe; é sempre difícil prever horas (de atendimento ou de regresso) nas idas aos hospitais de Lisboa, mas, se tudo correr bem, “lá pelas quatro ou cinco da tarde”.

Passamos por postes de alta tensão, altivos espantalhos metálicos com bracitos curtos de talidomida, estendendo entre si uma meada curva e pesada de grossos e descaídos cabos eléctricos; fios que se vão entesando e tornando linhas rectas à medida que nos aproximamos deles, e alguns dos quais ostentam enfiadas, como se fosse um colar de contas apenas iniciado, anafadas esferas coloridas.

Catarina vai chilreando a meu lado: fala-me dos anos passados na Holanda; da filha, da família; do trabalho no hospital.

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Estamos a descer para Lisboa. Para trás fica uma paisagem de colinas suaves, cuja ondulação doce me encantou, quando, há quinze anos atrás, me mudei das montanhas majestosas e de perfil cortante de Trás-os-Montes para o Sul e penetrei nesta pintura naïf.

Pela janela mais próxima da minha cabeça desfilam e logo desaparecem no passado os enormes placards, uns azuis outros brancos, que assinalam as várias hipóteses rodoviárias: auto-estrada do Sul, ponte Vasco da Gama, Odivelas, Lisboa. Olha que curiosa a perspectiva da Calçada de Carriche vista de baixo para cima, com os prédios de ambos os lados da via inclinando-se e ameaçando fundir-se lá no alto; rotação cubista de um caramanchão de árvores numa estrada rural. Sobre mim desabam, incessantemente, candeeiros como girafas; semáforos de pálpebras espetadas; marquises, janelas, e vidraças, ostentando nas escamas de vidro reflexos prateados e azuis.

Sob o calor, a cidade está preguiçosa, o trânsito escoa-se devagar e, subitamente, no vermelho de um semáforo, reconheço ao meu lado a tonalidade caramelo-ferruginosa do Fórum Picoas. Atravessamos a cidade em direcção a oriente, é o que é.

A ambulância desagua silenciosamente no jardim do Hospital de Santa Marta. Já aqui estive, mas em pé – ou melhor, a maior parte do tempo sentado; uma tarde, também de Verão, numa reunião de trabalho com colegas, no gabinete do director do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica. Com a pouca atenção que habitualmente concedemos aos locais onde vamos por outros motivos, recordo vagamente dessa visita um jardim antigo e em obras; um mastodôntico e trémulo ascensor; uma sala com fotografias e diplomas, profusamente emoldurados pelas paredes; um calor sufocante.

Encostam a maca a uma parede e esperamos: Catarina, bombeiro, e eu. O tempo passa, já se foi a hora do almoço e, como não tenho outro remédio que o jejum, insisto com os meus acompanhantes para irem comer qualquer coisa. Não tem sentido penarmos os três. Resistem-me algum tempo, mas a fome acaba por vencer.

Quando toda a gente desaparece, saco, de sob o lençol, um Halls que chupo às escondidas, para manter algum açúcar em circulação. Eu sei que eles me querem em jejum apenas por causa dos vómitos, mais nada; por isso não vou agora ficar para aqui o dia inteiro agoniado, a rebentar de fraqueza e com o estômago ronronando e inchado como uma câmara de ar!

Estou todo entretido a puxar o lustro com a língua ao rebuçado, a engolir uma saliva docinha e eis que, sem aviso, tudo se alvoroça. A maca começa a mexer-se e ao meu lado surge um homem novo que me cumprimenta afavelmente, que diz o nome (com a surpresa não o consigo compreender) e me vai falando numa voz pausada, ciciada, de tímido. Percebo que é o médico que me vai fazer o exame às coronárias: tem um ar qualquer coisa achinesado; uma poupa de cabelo sal e pimenta avarandada na testa e poderia, sem necessidade de excessiva caracterização, encarnar na perfeição a personagem do cientista louco que ficamos a imaginar da literatura, ou vemos numa fita do James Bond, num laboratório cheio de máquinas, a trabalhar para os bons.

“Falei com o seu médico de Torres, sei tudo sobre a sua história...”, diz-me suavemente, fazendo a ligação entre o meu passado e o meu presente; ancorando a minha pessoa àquela nova realidade. Sinto que não o faz ao acaso, porque calhou; ele tem o tipo de quem está atento, de quem entende o que é andar perdido nos corredores da doença, de quem não se esqueceu que um doente é, no mínimo, constituído por cabeça, tronco e membros.

E vai-se mantendo ao meu lado, sorrindo um sorriso torto na boca levemente esquinada, enquanto a maca entra para uma sala enorme, sem janelas visíveis, quase às escuras, cheia de gente mascarada de verde e de aparelhos de filme de ficção científica. Com cuidado passam-me para uma cama, iluminada como um palco e em tudo semelhante a uma mesa de operações.

“ A Catarina não vai dar comigo quando chegar do bar”, penso.

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O médico explica-me resumidamente o que vai fazer e pede-me para lhe comunicar todas as sensações e alterações que for detectando durante o exame. Depois sinto uma pequena picadela na virilha: está a fazer uma anestesia local. Vejo-o pegar num objecto redondo, comprido e esbranquiçado, semelhante a um esticador de cortinas; vareta que, adivinho, me vai enfiar pela artéria ilíaca acima, numa viagem de toupeira até ao coração. Não sinto dor, apenas uma sensação quente na coxa (provavelmente algum sangue derramado com a introdução do catéter). Em seguida, um estremecimento, um latido, como se algum corpo estranho tivesse tocado ao vivo o coração e este, assustado, tivesse disparado num batimento mais rápido.

“Agora vai sentir uma sensação de calor”, avisa o médico. Já conheço aquela sensação de outras andanças: é o contraste a espalhar-se pelo

corpo, uma ardência como se nos despejassem um whisky duplo directamente no interior das veias. Sentimo-lo dar a volta ao corpo num ápice de montanha-russa, com dois locais sublinhados na passagem: o céu da boca, que fica quente como se lhe tivessem aplicado um sinapismo e, vá-se lá saber porquê, a zona púbica.

“Só mais uma vez”, diz o médico, manejando lá ao fundo a sonda. Outra vez calor e uma dor fina. Queixo-me, conforme combinado. “Já está..., estava só a observar a mamária interna.” “Mamária interna?”, interroguei-me, revendo mentalmente a anatomia da zona,

“então o exame não era só para averiguar o estado das coronárias?” Com um chapinhar elástico, o médico conseguiu livrar-se das luvas de borracha,

que numa obstinação de ventosa se lhe agarravam às pontas dos dedos. Ouço-o segredar para o lado:

“Arranje-me uma cama.” E depois, uma mão no ombro e, na sua voz calma: “Sabe, vai ter que ficar cá...; para ser operado.” “Operado ao coração?”, pergunto estupidamente. “Sim, vai ter que ser feito um by-pass... Isso não está nada bem. Você tem uma

obstrução de noventa por cento no tronco-comum*.” Não digo nada. Que posso eu dizer? Fico esmagado pelos factos. Um

esmagamento aéreo, como um murro que, de tão forte, não dói mas atordoa. Captando a minha expressão catatónica, o médico acrescenta:

“Não se aflija, vai tudo correr bem: a mamária interna está em bom estado para uma pontagem. Amanhã ou, o mais tardar, na segunda-feira, isto fica resolvido.”

Saio da sala para dar lugar ao próximo cateterismo. Encostam a maca a um canto do corredor, numa zona menos movimentada. Alguém me envolve a coxa picada com uma ligadura larga, um autêntico adesivo; apertando fortemente, em torniquete. Para rematar, colocam-me em cima da zona onde foi perfurada a artéria um trambolho com o formato dum paralelepípedo (daqueles que ainda pavimentam o chão de algumas ruas). Suponho que será feito de chumbo, pois pesa muito mais do que pesaria algo semelhante talhado em pedra.

* Inteligentemente, na função de bombear nutrientes e oxigénio a todo o corpo, o coração alimenta-se em primeiro lugar a si próprio. Com esse fim, mal sai do coração, a artéria aorta (o grosso vaso que transporta, através de sucessivas ramificações, sangue ao mais recôndito e minúsculo pedacinho do organismo) dá origem a duas artérias independentes que, dirigindo-se ao coração, o alimentam de sangue recentemente renovado nos pulmões. Cada uma destas duas artérias (coronária esquerda, e coronária direita) subdivide-se depois em várias artérias que, envolvendo-o como uma coroa – daí o termo coronárias –, cobrem toda a superfície do músculo cardíaco. Entre a sua origem na artéria aorta e a subdividisão nos seus dois ramos principais, a artéria coronária esquerda (que irriga toda a metade esquerda do coração) percorre um trajecto de cerca de 1 cm de extensão conhecido como tronco comum. Tendo em conta esta configuração anatómica, uma obstrução significativa no tronco comum leva a que todas as artérias a jusante do obstáculo deixem de receber sangue e, como consequência, que metade do coração entre em falência imediata.

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“Tem que manter isto aqui por quatro horas”, dizem-me. Compreendo o recado: uma artéria com o calibre da artéria ilíaca tem um poder de

contracção fortíssimo e, esburacada e deixada à solta, é menina para, num repuxo pujante e intermitente, nos deixar sem pinga de sangue em não muitos minutos.

A enfermeira Catarina e o bombeiro, que me aguardavam fielmente à porta da sala, despedem-se. Regressam a Torres Vedras sem mim, e eu fico ali, sem eles. “Vai correr tudo bem, vai ver”, garante-me ela no seu tom meigo e atencioso. E desaparecem, vão à vida deles. Fico entregue a mim, o que não é grande companhia. Tenho fome e sinto-me desanimado; para ali expatriado num corredor de hospital; a equilibrar um pedregulho de chumbo na virilha, outro a tolher-me a alma; e uma novidade explosiva para assimilar ou engolir (o problema é meu): amanhã ou, o mais tardar, segunda-feira vou ser operado ao coração. Ao coração! Uma obstrução de 90 %! Quer dizer: não passa pinga de sangue pelo tronco comum, metade do meu coração deixou de funcionar! Por isso caí redondo, como um tordo. Tem, enfim, explicação a brutalidade do que me sucedeu.

Não sei quanto foi, mas o tempo passou e, finalmente, alguém se lembra de mim. Em cima da maca, atravesso corredores e algumas portas até ser despejado num quarto de duas camas onde não está mais ninguém. Ao fundo há uma janela de vidros fumados a branco, por onde entra pouca luz e se sugere que, lá fora, vai entardecendo. Será? Que horas são? Onde andará toda a gente?

Decorridos uns indeterminados séculos chega a João com os meus sobrinhos, que vieram do Porto visitar-me a Torres Vedras. Deram com o nariz na porta no Hospital de Torres, pois eu não estava lá e tiveram que aguardar o regresso da enfermeira Catarina para ficarem a saber as novidades. Disfarçam como podem, mas está tudo com um ar consternado e murcho. Sobretudo eu que, comprimido por pensamentos soturnos, a sensação de estar perdido no hospital, um longo jejum, e o findar do dia, desabafo, rude e lugubremente, as minhas preocupações:

“Eles não vão conseguir fazer nada..., nenhum by-pass; não vão conseguir descolar a artéria do osso; isto está, de certeza, tudo estuporado, tudo fibrosado por causa da radioterapia...”

Tentam acalmar-me. Já falaram com o dr. Gil Seabra, que a João e a Ana acharam “um amor”, e ele explicou-lhes tudo; mostrou-lhes as imagens, a cores, do meu coração e “também disse que tudo ia correr bem”. Apresentam-me argumentos claros, positivos. Sustentam que agora...

“...pelo menos já se sabe qual é o problema. Vai ser resolvido amanhã.” Óptimo! Fico a saber, por elas, que a minha operação é no dia seguinte, e não na

segunda-feira, e que vou ficar como novo. Afinal, sou um gajo com futuro e isto é apenas um problema de canalização! Acabo por me calar, mais por exaustão do que por me terem levado a bom porto.

Dão-me de jantar e à hora de se apagarem as luzes trazem-me um chá, umas bolachas e um Lorenin. Devo comer agora, porque amanhã vou ter que estar (outra vez) em jejum. Iniciou-se a contagem decrescente.

As luzes apagam-se e fico à espera, pacientemente, como se aguardasse numa bicha a manhã que se segue, pois não tenho muita fé que o sono chegue. Encolhido, no escuro, ouvindo em fundo os ruídos desagregados da enfermaria, faço um balanço depressivo dos mais recentes anos da minha vida e da pouca sorte que, particularmente nos três últimos anos, não parece querer abandonar-me.

Repetidamente, recordo e tento arrastar à primeira página da consciência umas linhas que, quase dois anos depois de terminada a última sessão de radioterapia, li, no capítulo dedicado à minha doença, num livro de Medicina: “A irradiação cardíaca acelera a doença coronária e mais do que triplica o risco de um enfarte do miocárdio fatal*.” Na * Harrison’s Principles of Internal Medicine, 14th ed. (New York: McGraw-Hill, 1998).

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altura não liguei muito, li com leveza; parecia-me impossível que, acabadinho de sair de um cancro, tanto azar fosse logo, de seguida, bater de novo à minha porta. Claro que ainda liguei menos à pormenorização da afeição do feixe de raios radioactivos pelas várias artérias que irrigam e alimentam o coração: “Alguns estudos apontaram uma incidência elevada de doença das coronárias do tronco-comum*.”

Um punhado de lágrimas, negras de angústia e ardentes como fel, amontoam-se-me teimosas sob as pálpebras cerradas – são escassas e acabarão por se evaporar sem macular aquela almofada desconhecida. Raios me partam!

* Robert Schlant, R. Wayne Alexander ed., O Coração, 8.ª ed. (Nova Iorque: Mc.Graw-Hill, 1996).

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Parte II

Não há-de ser nada

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Catorze; 14 de Maio de 1996. Há datas que nos ficam buriladas na memória com a fixidez de baixo-relevo dos aniversários nas pedras tumulares. Sete menos vinte da manhã, uma escassa dúzia de Km a sul do cabo Carvoeiro. Adivinha-se um dia de sonho: lá de fora insinua-se um hálito dourado de luz e os melros trinam ao desafio cascatas de harmonias e fugas. Estou parado em frente ao espelho do quarto de banho a fazer a barba. Por volta das nove horas esperam por mim em Lisboa, onde tenho duas reuniões; uma de manhã, com colegas; outra à tarde, com uma jurista do Ministério da Saúde.

Já lavrei toda a espuma que me cobria a face e inicio agora, com o cuidado que a região exige, o pescoço. Ao passar a lâmina pelo lado esquerdo sinto uma ardência ligeira da pele, sensação que perdura enquanto inspecciono o local com a gilete no ar. A irritação corresponde à pele por cima do inchaço que me apareceu recentemente, há cerca de uma ou, no máximo, duas semanas. Nunca lhe liguei muita importância, coisa pequenita, dei conta dele precisamente ao fazer a barba, mas encarei-o como outros pequenos males que vêm e vão. O corpo toma bem conta de si próprio e, num misterioso silêncio interno, vai reconstituindo pacientemente a nossa integridade, devolvendo-nos ao nosso cenário habitual.

Mas o ardor persistente, a leve vermelhidão da pele circundante atraem a minha atenção de um modo mais intenso. Passo um dedo por cima da pequena tumefacção e acho que está mais saliente; vendo bem, até maior no reflexo que o espelho devolve. E, nesse momento, despejam-se do espírito, numa torrente contínua, todas as possíveis explicações para papos no pescoço, sobretudo em tipos com mais de 40 anos. E entro em órbita. O pânico acabou de cravar os dentes no meu pescoço.

Passei o dia todo ao de leve, com uma enorme dificuldade em me concentrar no que estava a fazer. Busquei alívio junto de um dos colegas com que reuni, no intervalo de um café para que o convidei e a quem resumi a história, desvalorizando-a o mais que pude. Não me adiantou nada, é claro!, e obtive apenas um reforço na minha ansiedade:

“Se fosse a ti fazia um hemograma e um Rx do tórax. Provavelmente não é nada de especial, mas tiravas isso a limpo.”

“Hemograma?”, horrorizei-me em silêncio. E logo eu, que abomino agulhas! A tarde arrastou-se em exasperantes detalhes, o meu olhar apegado ao relógio, na

espera da hora de ligar ao Manel, que nunca chegaria “antes das oito e meia”, segundo me dissera a Gabriela, a quem telefonei mal cheguei a casa. O Manel é, pelos preceitos do sangue, meu primo direito, mas pela legitimidade própria de quem atravessou comigo infância e adolescência; pelos pedaços vividos que cada um guarda do outro, ganhou, há muito, parentela de irmão. Para além disso, é médico, especializado em Medicina Interna (isto é, especialista em corpo inteiro), e inspira-me toda a confiança de que preciso em termos clínicos. De modo que foi nele, que mora em Braga, a quase 400 Km de mim, que pensei imediatamente. Ele telefonou-me, mal chegou a casa. Contei-lhe a história do papo. Ouviu em silêncio e, depois, quis saber outros pormenores: localização exacta; consistência; se era doloroso, se se agarrava aos tecidos adjacentes; tempo de evolução. O costume e eu a perceber, do lado de cá do fio, os caminhos por onde o raciocínio dele se ia embrenhando. “Isso pode não ser nada de especial, é possível que seja dum dente; mas o melhor é irmos vendo as coisas com calma, uma de cada vez...”

E mandou-me começar por um anti-inflamatório suave; duas vezes ao dia, durante quatro ou cinco dias; a ver como reagia o papo. Se o gânglio, que era o que aquilo tinha

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todo o ar de ser, não diminuísse de tamanho, então seria bom ir ao dentista, inspeccionar a dentuça do maxilar inferior.

Embora não me andasse a doer nenhum há anos, agarrei-me logo à saída dos dentes: sim era muito possível. Desde miúdo tenho maus dentes, péssimos dentes; sou do género que vai três ou quatro vezes por ano ao dentista, tenho camarote reservado numa clínica dentária e, para mim, o meu dentista é um bom amigo.

Uma semana depois estava eu no Porto, reclinado na cadeira do dentista; ele olhando atentamente o negatoscópio, onde repousava uma radiografia panorâmica da minha cremalheira. O papo não se mexera: nem maior, nem menor; firme; e ele observou minuciosamente todos os dentes que podiam estar implicados no crescimento daquele gânglio.

“Não me parece que seja daqui”, disse; “às vezes há umas escorrências internas, quase indetectáveis; geralmente bactérias Gram-negativas. Pode ser que seja isso, mas não vejo nada suspeito.”

Depois, pensou melhor, e resolveu: “Deixa-me telefonar aqui a um colega nosso, a ver o que é que ele acha. Ele

trabalha na Cirurgia Plástica e os gajos lidam muito com pescoço, têm muita prática destas merdas.”

E sentou-se ao telefone, enquanto eu permanecia na cadeira de guardanapo ao pescoço, acompanhando a démarche.

Senti passar um sopro gelado pela sala quando no meio dos “pois” e “hums” que ia ouvindo, o vi, numa fracção de segundo, fitar-me com um olhar que se modificara. Desligou.

“O gajo acha que devias fazer uma biópsia aspirativa, para tirar isto a limpo. Gânglios no pescoço, sabes como é...”

Telefonei ao Manel, relatando o facto, solicitando instruções. “Deixa-me tratar disso”, disse ele. “Quando é que podes vir cá?” No dia seguinte, pela hora do lanche, eis-me em Braga, deitado numa marquesa,

espreitando de lado os gânglios que surgiam no monitor à medida que o radiologista me passava no pescoço a varinha mágica do ecógrafo. Ao lado, numa mesa de vidro, uma enorme seringa e várias lâminas de vidro esperavam; respectivamente, ser espetada no meu pescoço e serem barradas com o produto que iria entupir a agulha quando o gânglio sorteado fosse picado. Distinguia-os perfeitamente: eram cinco ou seis, uns grandes outros de tamanho médio; todos aninhados no silêncio da minha carne.

Doeu menos do que eu pensava, ou seja, mais do que a dor restou vibrando a sensação de uma seringa a ser enterrada num pescoço como se fosse um punhal. Porra!, impressiona. No antes e no depois.

O Manel, sempre ao meu lado, uma certeza que se repetiria nos tempos vindouros, encarregou-se de levar as lâminas ao tipo da anatomia patológica, para diagnóstico. Hipóteses? Talvez tuberculose ganglionar. Então e os dentes? A infecção nos dentes e as bactérias a escorregarem pelos interstícios do pescoço?, relembrava. Não, ponderava o Manel, opinava o radiologista (no fundo, achava eu também): eram gânglios a mais, eram grandes demais. Talvez tuberculose ganglionar...

Vim para casa; a resposta do homem do microscópio demoraria alguns dias. “Enquanto se espera podias ir tomando um anti-inflamatório um pouco mais

potente”, prescreveu o Manel, “a ver o que dá”. Ao anti-inflamatório juntei, iniciativa pessoal e uma fé residual na hipótese

“sequelas de complicação dentária”, um antibiótico comum: se a causa fosse infecciosa, raciocinava eu num desdobramento entre médico-e-doente, o antibiótico seria uma medida acertada e resolveria tudo; estilo trigo-limpo, farinha Amparo. Se fosse tuberculose, ou outra coisa pior, não aqueceria nem arrefeceria.

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Olhar o espelho tornou-se um ritual; um tique; uma mania. Mal me levantava interrogava o espelho ao lado da cama; o da casa de banho. Apetece-me palpar, apertar, mas lembro-me das palavras do Manel:

“E não andes prá’i a mexer nessa merda!” Não mexo, isto é, toco ao de leve; só para fazer o dedo ganhar uma memória táctil

da dimensão, tendo em vista uma comparação futura. Ando nervoso, muito nervoso; a sombra da adaga do resultado não me larga, e a

João, provavelmente enervada pela minha instabilidade, pergunta-me porque é que não telefono ao Manel, a ver se ele já sabe alguma coisa. Mas eu não quero. Quero esperar com naturalidade, não quero antecipar nada. Haverá uma resposta no fim da espera: será que precipitá-la não a poderá adulterar? Claro que não, mas quem tiver a certeza absoluta que atire a primeira pedra.

Três dias mais tarde o Manel telefona e, enquanto se demora a saber se está tudo bem e como vai a família, a minha garganta contrai-se, fremente como as asas de uma borboleta em flexões ao sol. E finalmente:

“Sabes, o Melro não consegue ver nada: diz que só encontra linfócitos e sangue; a biópsia foi mal feita, tem que ser repetida.”

Fico desconfiadíssimo com aquilo do flop da biópsia. Será mesmo? Ou será que o resultado foi péssimo e os gajos estão a adiar; a ganhar tempo para acumularem coragem e, finalmente, me dizerem a verdade? Ou, talvez seja isso, querem repetir para confirmar a temível sentença! Enredado nesta latejante paranóia, mal ouço o Manel que me pergunta pela evolução do gânglio.

“Igual...”, relato, desinteressado do pormenor; “nem maior, nem mais pequeno”. Desligo prometendo ligar depois, para combinar a próxima biópsia. Para já não

consigo pensar em nada. Toda a minha realidade se transformou num enorme buraco negro que chupa tudo e cospe ansiedade. Nada pode correr pior. Massacro os amigos (nenhum dos quais parece acreditar que isto seja mais do que um episódio inconsequente) com os pormenores e com as minhas desconfianças; sabendo como estou a ser chato, procurando nas respostas que me dão algum alívio; mas, sobretudo, indícios de que me estão a enganar. Às tantas, toda a gente está de posse de informações que eu não tenho, que me ocultam.

Uns dias mais tarde meto-me no carro, outra vez caminho de Braga. Paro em Famalicão: é terça-feira e o Juca está de urgência. Observa-me demoradamente, a meu pedido e na sequência das indicações que o Manel vai, etapa a etapa, vertendo ao telefone:

“Agora gostava que fosses observado por um otorrino.” Sei porquê. Gânglios no pescoço: linfomas; tumores: da amígdala, da faringe, da

hipofaringe... O Juca está tenso e assobia enquanto me examina os ouvidos, a boca, a garganta.

Conhecemo-nos há vinte e cinco anos, somos amigos do peito. Faz-me um interrogatório cerrado e, no final, ao voltar a tratar-me como o seu velho amigo do costume diz: “Daqui não é nada, moço; ponho-os no cepo...”

Em Braga, o Manel leva-me directamente para o consultório do médico que examinou as lâminas da biópsia frustrada e onde irá também ter um cirurgião que, desta vez e para garantir uma técnica perfeita, me vai picar o pescoço.

O médico patologista dá pelo nome de Melro e é um tipo alto e esgargalado, de escuros e ferozes olhos azuis, que, sem parar de falar e desenhar arabescos no ar com os dedos magros, vai acendendo um cigarro no outro. Tem um humor corrosivo, à flor da pele; facto que ele mesmo confirma, prazenteiro:

“Na faculdade era conhecido pelo ácido sulfúrico.” As viagens começam a pôr-me nervoso e resolvo aceitar o convite da Gabriela e do

Manel, para ficar em casa deles até ao resultado da biópsia. Dois dias depois, o Melro

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telefona à hora de jantar. Fumo branco. Afinal não é nada: apenas células inflamatórias e alguns linfócitos. Euforizado pela boa-nova regresso a casa na mesma noite: está uma noite quente e linda, de luar intenso. Pela auto-estrada abaixo, emparedado entre a música do leitor de cassetes e a beleza da lua amarela, choro, de alívio ou de alegria; não tenho bem a certeza.

Entretanto, e do calendário despegou-se já Maio, umas poucas de manhãs mais tarde, ao acordar e olhar, no automatismo interiorizado, o espelho ao lado da cama, a linha de contorno do papo parece-me menos proeminente. Confirmo no espelho do quarto de banho: sim, parece ter diminuído qualquer coisa; a pele está aparentemente menos esticada e menos irritada. Parece que o antibiótico, cujo último comprimido acabei de tomar na véspera, fez, afinal, efeito.

As melhoras mostram-se espectaculares nos dias que se seguem: o gânglio diminuiu a olhos vistos e quando, a caminho de Viana do Castelo onde vou passar o resto da semana a trabalhar, no dia 10 de Junho passo por Braga, o Manel junta à minha a sua satisfação. É feriado, mas o Manel tinha combinado com o Falcão, o cirurgião que me fez a última biópsia aspirativa, uma consulta rápida; para que ele me observasse e, caso achasse necessário, procedesse à marcação da biópsia cirúrgica, na sequência do que recomendara o Melro:

“Se esse gânglio não desaparecer de uma vez por todas, da próxima vamos pô-lo ao sol; é a única maneira de termos a certeza.”

Depois de me palpar o pescoço com demora, o cirurgião sentenciou: “Não há gânglios biopsáveis; isto está limpo. Para já não há nada que fazer; se a

coisa voltar a crescer, tira-se, rápido, com uma anestesia local.” Maravilha, caso duplamente encerrado! Sigo para Viana, onde explico, excitado, a

toda a gente o que aconteceu: “Afinal, aquilo era infeccioso; desapareceu tudo com o antibiótico!” E, atirando

pazadas de terra sobre o incidente, continuava: “Eh, pá, que susto; quase um mês de paranóia, com a espada no pescoço!” “Agora devias era tirar umas férias”, aconselham-me amigos e conhecidos, “e

esquecer isto tudo; virar esta página”. O papo voltou a crescer. Primeiro, quase imperceptivelmente, não me dando a

certeza se sim ou sopas; parecia ligeiramente maior, mas estaria mesmo? Depois, e num espaço de poucos dias, cresceu de uma forma avassaladora, voraz, que eu confirmava em silêncio, esquecido dos conselhos do Manel, espremendo-o entre o polegar e o indicador. Aliás, aquilo que eu palpava sob a pele retesada não era apenas um gânglio, eram pelo menos dois e talvez fossem mesmo três. Parecia-me que o gânglio inicial crescera e se estendera, fundindo-se com outro adjacente, mas era difícil perceber os limites de cada um deles. Olhava o espelho, tentando ter certezas e fazia-o tantas vezes que perdera o ponto de comparação: não, não estava maior do que duas horas antes; do que na véspera. Ou estaria?

“O seu gânglio não está outra vez maior?”, perguntava a João, apreensiva. “Não sei; acho que está na mesma...”, respondia, evasivo e agastado por mais

alguém estar a reparar no mesmo que eu. E esperei, sombrio, até a certeza e a apreensão me explodirem na cara, passados uns dois ou três dias.

O Manel não pareceu excessivamente surpreendido quando, no fim de semana, lhe voltei a ligar e, calmamente, voltou a tomar o leme da minha arrombada barca:

“Vou marcar a biópsia com o Falcão. Quando é que poderias vir cá?”

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Marcamos para terça-feira, uma vez que segunda-feira, dia de S. João, é mau dia para combinar seja o que seja no Norte, desde apanhar médicos a marcar um bloco operatório.

Tento ocultá-lo como posso, mas transformei-me num monstro paranóide: em silêncio rastejei do meu invólucro humano para uma região onde reina uma desconfiança eterna e absoluta. Não dou real valor ao que dizem à minha frente, porque estou convencido que todas as conversas são de circunstância e conjuradas para me manterem iludido (os únicos diálogos que me interessam são aqueles que se processam nas minhas costas), mas acabo por prestar uma excessiva e doentia atenção a tudo; procurando vestígios nas entrelinhas das frases mais comuns. Procuro, incessantemente, trazer o assunto à baila, na espera que algum comentário amenize a minha ansiedade, mas se alguém o faz espontaneamente fico alerta, pois considero que se o está a fazer é mau sinal. Quero saber, mas não quero perguntar; quero perguntar, mas não o quero saber, ou melhor: não sei o quanto quero saber. A noite, quando tudo serena à minha volta, é o osso mais duro de roer: deito-me, estafado, mas não consigo dormir e, logo que a luz se apaga, a minha cabeça desata a processar vertiginosamente hipóteses que rapidamente edificam os mais sinistros cúmulos. Moído de cansaço, levanto-me e passeio sem rumo e sem fito pela casa fora, olhando distante para quem dorme em paz.

A vinte e cinco de Junho arranco para Braga, para fazer a biópsia cirúrgica, marcada para o meio da tarde. É outra vez terça-feira e faço uma pausa em Famalicão para almoçar com o Juca na Sara Barracoa. Ele está visivelmente impressionado com o tamanho da tumefacção no meu pescoço. Não o diz directamente, mas percebo-o pelas perguntas que me faz e pela atracção do seu olhar naquela direcção.

No fim do almoço fui levá-lo ao consultório. Antes de sair do carro, ele virou-se para mim e atirou, em despedida: “Adeus, moço, porta-te bem.” E, metendo a cabeça pela janela aberta, achou por bem acrescentar:

“Não há-de ser nada...” Em Braga, o Falcão olhou o meu pescoço com o ar espantado que vira uma hora

atrás estampado na cara do Juca, e disparou: “Eu não te posso fazer isso com uma anestesia local; eles cresceram imenso! Vai

ter que ser com anestesia geral.” O reparo colou-me ao chão, como se o mundo inteiro estivesse a gozar comigo.

Ainda há dez dias atrás, nesta mesma sala, tudo estava bem; fora-me dada liberdade para respirar fundo e ir em paz. O Falcão deve ter captado o negrume da minha onda mental, pois logo estendeu uma jangada:

“Vamos fazer uma coisa: vamos tentar uma última biópsia aspirativa. Com o tamanho que isto tem, se for bacilar já tem caseum, é diagnóstico certo. Que dizem?... Vou telefonar ao Melro; pode ser que ele nos possa atender já.”

O Melro recebeu-nos logo, no serviço de Anatomia Patológica do Hospital de S. Marcos, onde está de serviço nessa tarde; embora vá dizendo que não concorda muito com uma nova biópsia aspirativa.

“Nestas coisas, o melhor é pôr o material ao sol, as picadas têm que se lhe diga... E para além do mais já estás a ficar com esse pescoço numa miséria: começa a não se distinguir se o que se vê é do tecido ganglionar ou do traumatismo das agulhas!”

Mas perante a barreira muda que se especa à sua frente; empurrado pelos argumentos do Falcão sobre a madureza dos gânglios (“aah.., não achas?... o centro tem que estar cheio de caseum”), vai-se preparando para a sessão:

“Não tenho grandes instalações para te acomodar. As opções são: aqui, deitado em três cadeiras umas ao lado das outras, ou, lá em baixo, na mesa da sala de autópsias...”

E, com o seu ar mefistofélico, dá-me a escolher: “Onde preferes?”

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“Prefiro aqui, nas cadeiras”, digo com um sorriso à altura, “sempre é menos duro”. “Mas por outro lado”, trunfou ele imediatamente, “na sala de autópsias sempre

tínhamos água corrente e uma melhor iluminação”. Aninho-me de lado em cima das cadeiras e aguardo, enquanto o Melro dispõe as

lâminas uma a uma sobre a mesa e o Falcão aplica uma grossa agulha a uma seringa de plástico de tamanho familiar. Estou nas mãos das aves.

A biópsia não foi conclusiva; o Melro não encontrou caseum nenhum e no dia seguinte, pelas quatro da tarde, fui operado ao pescoço. A operação correu bem e demorou hora e meia, mais do que em princípio seria de esperar para uma biópsia, mas, como o Falcão explicou ao Manel, foi obrigado a uma lavoura do caraças, pois os estupores dos gânglios (“tirei-lhe três; também não estavam ali a fazer nada!”) enfiavam-se por debaixo do esternocleidomastoideu, assapando-se entre a jugular e a carótida.

“Sítio filho da puta!”, concordava eu, amparado pelo Manel, ao abandonar o hospital, já o crepúsculo se tornava noite, ainda tonto da anestesia e com um enorme penso branco colado ao gasganete.

Jantámos tarde, no quintal, porque dentro de casa não se conseguia parar com o calor. Já me tinha esquecido do forno que Braga pode ser no Verão.

Deito-me cedo e, cansado, adormeço sem dificuldade, mas, na maré vasa da anestesia, acordo a meio da noite, excitado e cheio de calor. Fumo um cigarro à janela: lá fora está uma brasa como se fossem três da tarde e não mexe uma palha. Parece uma noite de Sevilha, a cidade onde, que me lembre, mais sofri com calor. Em silêncio, desço as escadas, dou uma volta pela sala e refresco a cara na porta aberta do frigorífico. Volto a subir com um copo de água gelada e um livro do Júlio Cortázar, ao qual desbravei umas 50 ou 60 páginas de enfiada. Subitamente, sem pródromo e sem remédio, expludo num tremendo espirro, um daqueles capazes de espantar os morcegos que dormem sob os pilares do diafragma.

“Porra”, desabafo, preocupado; “lá se foram os pontos...” Na manhã seguinte saberia que, paredes-meias, a minha prima Gabriela, insone e

angustiada com a prenda que lhe ocupava o quarto de hóspedes, pensou precisamente o mesmo, muito provavelmente sem o “porra” de permeio.

Ainda cheguei a encarar a possibilidade de ficar em Braga até ao resultado da biópsia estar pronto, mas o Melro avisara logo que aquilo ia demorar e que esperava poder “trabalhar em paz”, referência jocosa e justa à perturbação que, via telefónica, lhe tinha assolado a vida desde que eu lhe caíra em sorte. Assim, a João e o Zé João foram-me buscar a Braga e regressei a casa a 29 de Junho, dia do santo do meu nome.

Mantive-me relativamente calmo por dois ou três dias, mas, para além deles, recomecei a ferver, ebulição para que muito concorreram as constantes telefonadelas a indagar “se eu já sabia alguma coisa”, “afinal o que é que tens?”, “mas de que é que o gajo está à espera para te dizer o resultado!?”; telefonemas que, para além de me porem em brasa, me estavam a fazer sentir um tanto culpado pela minha inexplicável ignorância e pelo stress a que estava a sujeitar os outros. Em desespero de causa telefonei ao desgraçado do Manel, pois prometera a mim próprio que não ligaria directamente ao Melro, “nem que chovesse merda”. “Sossega, que eu falo-lhe”, prestou-se o Manel. E, cumprindo a promessa, no dia seguinte o Manel ligou-me.

“O Melro diz que precisa de mais uns dias para ter o relatório definitivo – ainda não acabou os testes imunocitoquímicos – mas já me disse que não encontrou células estranhas no tecido ganglionar...”

Respirei fundo, e ousei perguntar: “Então podemos pôr de lado a hipótese de metástases...” “Sim”, disse ele.

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“E de linfomas?”, adicionei, manhoso e esperançado. Um brevíssimo silêncio, mas detectável mesmo assim, e o meu pobre primo viu-se

obrigado a responder: “De metástases, sim; de linfoma, ainda não.” Sábado, 6 de Julho, perto da hora do almoço, a João levou-me o telefone ao quintal. “É o Manel”, diz. Atendo, com a consciência de que é aquele o momento. O Manel pigarreia antes de

o dizer: “Olha, Pedro, o que tu tens é um linfoma... Um linfoma de Hodgkin.”

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Confesso que a sensação dominante, no instante em que o Manel me comunicou o diagnóstico, foi de alívio. Pode parecer estranho, para quem acaba de saber que tem um cancro, mas ao fim de um mês e meio de espera, de incerteza, de avanços e recuos, de esperanças sucessivamente estupradas, saber o que se tem é qualquer coisa. É como se o comboio desgovernado onde seguimos batesse com fragor metálico no pára-choques do término da linha e, finalmente, parasse. Até que enfim! E, depois, consolava-me eu, um Hodgkin (um tumor maligno dos vasos linfáticos, uma espécie de primo afastado da leucemia) é um cancro especial, tem um comportamento relativamente previsível e o seu tratamento é possível, frequentemente com bons resultados. Não sou adepto de suposições destas, mas, imaginando que uma eventual entidade de Superior omnipotência me colocasse entre a espada e a parede ao atroar do assento etéreo: “Vais ter um cancro; disso não podes escapar. Mas, deixo-te escolher qual...” Bem, se assim tivesse que ser e Ele me emprestasse o cardápio por dez minutos, eu acho que me inclinaria a escolher um linfoma de Hodgkin; um cancro menos mau...

“E agora, o que se segue?” “Agora tens que fazer o estadiamento da doença”, disse o Manel do lado de lá da

linha. Incapaz de raciocinar, deambulando sem parar pelo quintal, pedi-lhe que me trocasse em miúdos.

“TAC: cervical, torácico e abdominal; análises de sangue; biópsia óssea, biópsia hepática; e, se calhar, uma linfangiografia das pernas, para ver se há atingimento linfático periférico. Depende um bocado...”

Verguei, quebrado ao peso de tantas assustadoras perspectivas, que, afinal, faziam ainda parte do diagnóstico da doença; quero dizer: aquilo eram apenas as entradas do menu, o princípio dos princípios. Restava esperar pelas más notícias que o processo de diagnóstico podia também arrastar, e, ocultando-se num futuro incerto, nevoento e sinistro como um monstro marinho, sobrava todo o tratamento. O terrível tratamento dos cancros: a quimioterapia, a radioterapia. Não tinha bem a certeza qual delas seria aplicada no meu caso.

Em Braga, espalmando o telefone contra a orelha, o Manel aguentava o silêncio, esperava que eu desemburrasse.

“E como achas que me vão tratar?... Quimio? Radio?” Ele não quis adiantar mais: “Não sei, pá, ainda é muito cedo para falar nisso... Mas porque não falas ao Rui?

Ele está a par de todos os passos dados até ao momento; gostava que ouvisses a opinião dele.”

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Tal como o Juca (o meu otorrino de estimação), o Rui é médico, um oncologista distinto, e pertence à mesma colheita de amizades: uma reserva com vinte e cinco anos. Conheci-o no segundo ano do curso de Medicina, uma manhã das muitas em que me encostava a um dos balcões do vestiário a ver quem passava; perto da entrada do bar da Faculdade. Ele chegou, falou, disse não sei o quê e assim, sem se dar por isso, pôs-se em marcha uma amizade que, independentemente da periodicidade dos contactos, ainda hoje se aguenta em pé.

Estivemos ao telefone uma longa hora, talvez mais; uma abençoada hora em que o Rui percorreu todas as escalas de abordagem possíveis do meu tumor:

“Para começar, o que tu tens é um cancro – vamos chamar os bois pelos nomes – é com isso que temos que lidar.”

Sobretudo ouvindo, porque o Rui sabia muito bem calcular aquilo que eu queria ir desvendando sobre a doença e quanto (fui apenas fazendo uma pergunta aqui e outra acolá); discorrendo sobre tudo, desde o tipo histológico do tumor aos modelos terapêuticos possíveis, as agruras e consequências do tratamento, os aspectos psicológicos, os temperos metafísicos.

Ele ia-me dando dicas importantes à navegação: “E vê se vais falando disto com outros gajos que tenham o mesmo que tu – é

muito útil. Mas gajos que tenham o mesmo tipo de cancro, ouviste? Não te ponhas a falar com cancerosos em geral; não ligues ao que dizem outros tipos de doentes.”

E continuava, desbobinando uma catadupa de conselhos com os quais eu, numa excitação de neófito, ia atafulhando os bolsos:

“Desliga do que dizem os outros: agora toda a gente te vai dar opiniões. Arranja um médico em quem tenhas confiança e entrega-te nas mãos dele.”

E despediu-se com uma última sugestão: “Neste fim-de-semana não penses mais nisto. Bebe uns copos, fuma os últimos

cigarros e, para a semana, decides o que queres fazer e começas a tratar do assunto. Tens muito tempo.”

Durante todo o fim-de-semana andou a bailar-me no espírito, peganhenta como uma mosca solitária de Outono, a estranha coincidência, a ironia silenciosa com que o destino nos brinda quando se decide meter connosco: muitos anos depois de os conhecer, os meus três maiores amigos dos vinte anos tinham escolhido, por razões que só eles sabem, e onde, suspeito, o sabor do acaso jogou forte cartada, três especialidades médicas muito diversas – o Manel, Medicina Interna; o Juca, Otorrinolaringologia; Oncologia, o Rui. Mais de uma década passada, empurrado por uma aflição específica, de tombo em tombo pela ladeira abaixo, eu precisara, sequencialmente e em cada encruzilhada, da perícia que cada uma destas especialidades encerra e, como se não existissem para outro uso, eles lá estavam religiosamente à minha espera; para me escoltarem até ao porto mais próximo. Reconhecê-lo, fez-me uma impressão tremenda.

Apesar do “tens muito tempo” do Rui, fui rápido a tomar decisões; não consegui ficar parado. Após tanto tempo de incerteza sentia-me sequioso de acção, necessitava mexer-me, queimar a energia negra que se acumulara em mim. E embora todo o meu ser se inclinasse por continuar o processo no Norte, onde estavam os médicos, os amigos em que depositava total confiança, esse desejo era pouco exequível na sua transposição para o concreto mundo das miudezas. O que se seguia arrastar-se-ia, no mínimo, por seis meses, o que, na prática, forçaria uma mudança para outro lado e eu queria enfrentar uma provação daquelas no enquadramento securizante do lar; entre os meus pertences, as minhas coisas. Para além disso, andar pelo Norte nestas bolandas aumentaria exponencialmente as probabilidades de os meus pais virem a saber do assunto, por acaso e por terceiros (seria uma péssima maneira de o ficarem a saber). E, pelo menos para já, eu queria mantê-los longe do assunto.

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Foi, novamente, junto de amigos que procurei orientação para a viragem a Sul do meu rumo e, o mais suavemente que se pode desejar a uma jornada com estas arestas, achei-me rapidamente com uma porta onde bater e uma consulta marcada.

“A Helena recebe-te na quarta-feira, às onze da manhã, nos Capuchos. Eu vou lá ter contigo – encontramo-nos à porta do serviço de Hematologia”, ouvi na voz tranquila da Ana Maria – uma amiga, também médica, a quem pedira que me fizesse a prospecção do mercado lisboeta de tratamento de linfomas –; a súmula do que me conseguira arranjar ao fim de quarenta e oito horas de aturada pesquisa.

Tal como o Hospital de Santa Marta, junto do qual foi envelhecendo num partilhado resmungo pelos sucessivos acrescentos e atropelos arquitectónicos, o Hospital de Santo António dos Capuchos integra a nobre e vetusta linhagem dos Hospitais Civis de Lisboa, e fica encastrado numa zona antiga da cidade; vizinho do extenso e verdejante jardim ao lado do qual, no centro de um gradeamento engarrafado por placas votivas e num ambiente indiano de flores frescas e círios acesos, se eleva aos céus sobre um pedestal de mármore a efígie bronzeada do dr. Sousa Martins, o facultativo que o povo beatificou e, um século após a sua morte, continua a invocar na hora das aflições.

A médica é pequenina, muito magra e usa uma bata que lhe sobra em comprimento e largura, ajustada ao corpo graças ao cinto e às mangas enroladas. Manda-me sentar e mirando-me com uns olhos muito vivos, dá início à consulta:

“Então, Pedro, conte-me lá tudo desde o princípio.” “Desde o princípio?”, procuro confirmar, habituado à quase uniforme falta de

interesse dos médicos por aquilo que o doente tem para contar, pelo moderno menosprezo a que a chamada história clínica foi votada em nome da excitação tecnológica; desinteresse mais ou menos manifesto por cortes bruscos ao discurso do paciente e por uma surdez total perante os pormenores individuais do relato.

“Sim...”, diz ela sem pressa aparente, entrelaçando os dedos nodosos e descansando as mãos sobre o tampo da secretária.

Contei e ela ouviu sem interromper, olhando com atenção o relatório da anatomia patológica que lhe estendi como remate da história e onde o Melro reduzira seis excruciantes semanas da minha vida a escassas linhas: “Três gânglios linfáticos, o maior de 4 cm, superfície de corte compacta e esbranquiçada. O exame histológico mostra envolvimento ganglionar por DOENÇA DE HODGKIN DE PREDOMÍNIO LINFOCITÁRIO, SUBTIPO DIFUSO.”

“Olhe, Pedro, o que eu penso que temos que fazer no seu caso é...” E o que ela, com muita calma e muito tacto, sem carregar em teclas sombrias nem

aligeirar prognósticos, me reservava era: primeiro, investigar o grau de alastramento da doença pelo meu corpo (o que seria feito à custa de TAC, uma bateria de análises sanguíneas, e biópsia do osso da anca); e, seguidamente, tratamento com quimioterapia citostática e, como remate, talvez radioterapia.

“Quimio e radio!?”, não consegui conter a desagradável e esmagadora sensação de desastre total. Que estado deveria ser o meu para precisar de tão arrasante combinação!

Na sua atenta finura, ela encaixou o meu baque: “Logo se verá..., iremos com calma e de acordo com os resultados dos exames,

mas, em princípio, em casos como parece ser o seu, gostamos de completar o tratamento citostático com radioterapia – obtêm-se assim os melhores resultados: a quimioterapia é a arma ideal para destruir células malignas jovens, em intensa actividade reprodutiva; a radioterapia, pelo contrário, é o aconselhado para células quiescentes.”

E depois de me deixar respirar fundo, acrescentou: “Está preparado para fazer os TAC hoje à tarde? É que se estiver, eu já lhe

consegui marcação. Quanto menos tempo perdermos, mais depressa o Pedro se vê livre disto tudo.”

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“Está em jejum?”, perguntou-me a menina da recepção da clínica para onde a dr.ª Helena Gouveia me enviara com uma carta de recomendação.

Sim, podia considerar-se que sim: eram três da tarde e a última coisa que comera fôra o pequeno-almoço, umas seis horas antes.

“Então é assim: vai começar por beber este copinho – é um contraste, não sabe a nada –, a seguir vou-lhe trazer mais alguns e, entretanto, procura não urinar; tá bem?”

Depois de uma hora a emborcar intermináveis e avantajados copázios de um líquido incolor e inodoro como água, mas tão enjoativamente insípido como plástico liquefeito; passei outra hora deitado numa maca estreita, segurando nas mãos cruzadas e esticadas para trás da cabeça uma seringa, ligada por um catéter a uma veia do meu braço direito e cheia de uma substância que, de vez em quando, me vinham injectar e me punha o corpo a ferver, como se de aguarrás se tratasse.

“Vai sentir uma sensação de calor”, avisava-me diligentemente a enfermeira antes de me instilar mais uma bombada, “mas não se aflija – é normal”.

Não, eu não me afligia com tão pouco; sempre gostei de emoções fortes e prefiro o calor ao frio... O que me martirizava era a eternidade da sessão; a dor nos braços, inteiriçados e dormentes de tão artificialmente estirados; era a bexiga ameaçando rebentar e, sobretudo, estava moído por aquela voz monótona que, vinda de uma cabina onde apercebia duas silhuetas de bata branca, ia debitando sem fim, num registo de instrução gravada: “agora não respire..., “respire...”; “não respire...”, “respire...”; não respire...”; enquanto um enorme anel de metal branco, no centro do qual eu e o meu catre estávamos enfiados, subia e descia pacientemente ao longo do meu corpo numa exploração milimétrica das minhas entranhas; descrevendo movimentos e deixando escapar ruídos de objectiva de máquina fotográfica.

“Respire..., não respire...; respire..., não respire...” No final do exame, estava eu – arrotando contraste e zonzo de fome – a acabar de

me vestir, veio ter comigo a médica que, na cabina, controlava a incidência e o ritmo dos cortes radiológicos. Tem um ar simpático e meigo, uma voz doce:

“Olhe, colega, queria dizer-lhe que a doença está circunscrita à parte alta do pescoço, onde são ainda visíveis três gânglios por trás do esternocleidomastoideu – mas não muito grandes: o maior tem 2 centímetros e o menor cerca de 1,3 –; de resto, pode ficar sossegado, está tudo limpo; está tudo completamente limpo.”

Agradeci-lhe as novas com a intensidade proporcional a ser ela a responsável por estar tudo “tão limpo” no meu corpo e, irreprimivelmente, encheram-se-me os olhos de lágrimas, fenómeno que não consegui nem conter nem disfarçar. Ela não leva a mal, continua a sorrir ao estender-me a mão na despedida, ao desejar-me felicidades para o tratamento.

De regresso aos Capuchos, mensageiro de mim próprio, a dr.ª Helena Gouveia mostrou-se muito satisfeita com os resultados dos TAC.

“Digo-lhe que é raro, é mesmo muito raro, apanharmos um Hodgkin num estadio tão inicial, temos muito pouca experiência de casos como o seu... Vantagens de ter um pescoço tão magro: se o Pedro fosse mais gordo podia andar aí meses com isso a crescer sem se aperceber de nada!”

As análises sanguíneas também estavam bem, de modo que se podia avançar. “A 17 de Julho – é quarta-feira”, disse ela folheando uma agenda, “podíamos

começar. De manhã cedo fazíamos a biópsia óssea e, logo a seguir, a primeira faixa de quimioterapia. O que diz?”

Eu não sabia o que dizer. Para além de estar borrado de susto com o que se avizinhava, que tinha eu a achar?; para onde podia eu fugir que o meu corpo doente não fosse ter comigo?

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“Pensando melhor”, continuou ela, procurando ajustar o meu futuro ao calendário, “vamos fazer por desencontrar a biópsia e o tratamento: é capaz de ser demasiada violência para um só dia...”

E marcando datas na agenda, fixou as estações do meu destino imediato: “Então está decidido: biópsia a 17, primeira faixa de quimio a 18 e, depois, uma

sessão de quinze em quinze dias, o que dá 1, 14 e 29 de Agosto, data em que, em princípio e se o seu sangue se aguentar bem, terminará o tratamento com citostáticos.”

Exibição de Vermeers num salão de cabeleireiro, é o que, assim

impressionisticamente, me sugere a sala de tratamentos de quimioterapia. Uma dezena de poltronas de napa preta, reclináveis e encimadas por grandes

anteparos laterais para apoio e esconderijo de cabeças indecisas; ventoinhas e tripés encostados pelos cantos; assistentes de bata branca sentadas em tamboretes aos pés de cada um dos clientes, um tabuleiro de metal pousados nos joelhos. Quanto aos clientes..., todos diferentes e todos iguais. Um visual comum unifica a diversidade sexual, etária, social e, até, de atitude dos presentes: velhos, novos; homens ou mulheres; nenhum escapa a uma mesma tez desmaiada, um olhar tocado, uma rarefacção capilar. O grau varia, mas todos vão expondo (ou tentando ocultar) sobrancelhas quase sem pêlos; pálpebras sem pestanas ou escassamente orladas por pestanas incolores; cabelos fracos, partidos, sem viço, com o ar de que se despegariam da cabeça ao mínimo sopro. Vários, não têm já mesmo cabelo algum e mascaram-no como podem: cabeleiras postiças, barretes, bonés, lenços de todos os feitios e padrões. Há, depois, os assumidos, os que ostentam provocantemente o crânio calvo e anguloso, skinheads pouco convincentes. Eu – já decidi – quando chegar a minha hora, quero ser um desses; não vou disfarçar, vou rapar à máquina zero.

“Ah!, e também lhe vai cair cabelo; não totalmente, mas bastante”, avisara-me a dr.ª Helena Gouveia quando me expôs os perigos e as contrariedades do tratamento.

Mas para já é cedo para me ralar com isso – uma coisa de cada vez decidi eu: é apenas o dia do meu primeiro tratamento e isso só acontecerá mais tarde, talvez a partir do segundo tratamento, isto é, nunca antes de decorridas duas ou três semanas.

Estou confortavelmente sentado, um pouco nervoso mas decidido a portar-me como um homenzinho; no colo um livro da Jane Austen e uma revista daquelas de folhear e deitar fora, tipo sala de espera de consultório médico ou salão de cabeleireiro. Acabou de se sentar num tamborete em frente a mim uma enfermeira com uma máscara que lhe tapa boca e nariz e um tabuleiro no colo, onde posso observar várias seringas e frascos de diversos tamanhos, um dos quais envolvido em papel de estanho.

A enfermeira lê atentamente um papel, encaixado no tabuleiro como uma pauta de música e que penso conter os ingredientes e o planeamento da minha ração química, esquadrinha o conteúdo do tabuleiro, olha-me como um fiscal de alfândega e pergunta se eu sou o sr. Fulano de Tal. Virei a saber que é um procedimento comum, uma rotina fielmente observada: mesmo depois de me conhecerem perfeitamente, dentro de uma mesma sessão de quimioterapia, elas nunca nos enfiam nada nas veias sem antes confirmarem que somos os fieis destinatários da mixórdia. O caso não é para menos, pois embora as drogas que nos injectam possam ter designações simpáticas e apelativas, oscilando entre o nome de divindades mitológicas e pratos da cozinha italiana, algumas delas são tão pouco inocentes que, se pingadas acidentalmente na pele de um cristão, provocam queimaduras que fariam corar de inveja qualquer soda cáustica.

A mim, por exemplo, vai-me ser dada uma sopa de letras chamada ABVD, sigla que abrevia o cocktail formado por quatro drogas – Adriamicina, Bleomicina, Vinblastina, Dacarbazina – uma das quais é tóxica para o coração, outra provoca fibrose pulmonar, a

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terceira é neurotóxica como um gás de guerra e, para atalhar a extensa lista de efeitos indesejáveis, todas, praticamente todas, causam tanto enjoo como as curvas do mar alto.

“Vamos lá a ver que tal são essas veias...”, diz a enfermeira atando-me um garrote ao braço e empunhando uma agulha ligada a um tubo ao qual estão acopladas torneirinhas de plástico.

Mais tarde, ao contar episódios da história do meu cancro, ao tentar dar resposta à curiosidade das pessoas que, disfarçando um certo embaraço, querem desvendar se “custa muito, a quimioterapia?” ou “o que é pior, a quimioterapia ou a radioterapia?”, habituei-me a chamar a estas sessões o meu período napalm; para as distinguir da outra fase do tratamento – a radioterapia – que resumia aos meus ouvintes como o período Hiroshima. Pode parecer caricatural comparar um tratamento com drogas prescritas por médicos à gasolina gelificada que os aviões americanos despejavam sobre o Vietname e que, ao deflagrar no solo, reduzia tudo a chamas, na esteira das quais nada sobrava ou voltava a crescer durante anos. Sim, admito que possa parecer excessivo, mas perguntem a quem andou metido nestas drogas! A quimioterapia com citostáticos é um veneno e apercebemo-lo mal as substâncias começam a trepar pelas nossas veias acima. Eu, se tivesse que conservar citostáticos em casa, guardava-os num armário alto, num esconso sombrio da garagem, longe do alcance das crianças e ao lado do remédio dos ratos e dos pesticidas!

Ainda hoje, quatro anos passados sobre os tratamentos, recordo com um estremecimento esse inferno de náusea e queimadura interna, essa perversão intensa dos sentidos que faz com que o perfume usado (pobrezita, que não sonha com isto) pela minha dedicada médica hematologista me cause tonturas sempre que vou à revisão, sempre que o identifico em qualquer lugar onde entro; que nunca mais me deixou entrever a capa do livro da Jane Austen que levei para a primeira sessão sem me desencadear um salivar salgado e enojado e, claro está, mo impedirá de o ler para todo o sempre. Bem, podia ser pior; tanto quanto aprendi nas conversas de bastidores com os meus companheiros de martírio há quem, ao fim de vários anos, vomite de cada vez que vê a enfermeira que lhe administrava as drogas. Ó Pavlov, olha que é chato!

É óbvio que os médicos sabem disto, ou seja, que aquilo mexe com as tripas, de tal modo que minutos antes de iniciar cada sessão (ou “faixa”, como eles lhe chamam) nos administram um potente anti-emético, para dirimir este tipo de efeitos. Imagino como seria se não nos dessem tal preventor! Eles sabem, não imaginam é a intensidade, as nuances que bailam nesse espectro de enjoo, nesse purgatório pré-emético. O vómito é apenas a saída cómoda de tal estado, mas não é o pior: o pior é a náusea que se mantém ao longo das três, quatro (ou mais) horas de cada sessão e que sobe, sobe, sobe, em ondas, vinda do estômago e nos mantêm em suspensão instável, como um equilibrista com fobia das alturas.

Depois, isto não acaba com a sessão, continua pelos dias após o tratamento e nunca a gente sabe muito bem o que nos vai enjoar, os cheiros que nos vão provocar vómitos: se os gases dos automóveis, se os perfumes, ou o cheiro de comida, os sabonetes... Depende dos dias, depende daquilo que se vai cruzando connosco e que, indelevelmente, vamos passando a associar à nossa náusea essencial. No que se refere a enjoos, passei a perceber perfeitamente as queixas das grávidas.

Para terminar a descrição dos efeitos dos citostáticos sobre o olfacto, e antes de continuar a saga dos abalos causados por estas drogas em outros departamentos, devo resumir que, em geral, a quimioterapia potencia a acuidade para captar odores (o que, possivelmente, explica o efeito exagerado desses odores em nós, nomeadamente a náusea e o vómito), capacidade que se prolonga ao longo de todo o tratamento e que, no meu caso pessoal, se transformou numa aquisição permanente, pois, no que diz respeito a faro, tornei-me um autêntico animal, o que, sinto-o assim, foi um ganho e não uma perda.

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Bem... A minha primeira sessão de quimioterapia foi um sucesso e encheu-me de confiança, pois despachei aquilo em pouco mais do que duas horas. E abriu-me o apetite! Saí do hospital cheio de fome e, estupidamente, atasquei-me com uma tortilha de ovos e batatas, acompanhada a sumo de laranja! Fiz mal, é claro, e cheguei a casa enjoado como uma fartura esquecida em óleo de fritar.

À noite tive uma ponta de febre, comichão na pele, o estômago como forrado a alumínio e dificuldade em conciliar o sono; excitado pelo zumbido que as drogas me instalaram na cabeça e pelo telefone, que não parou de tocar desde que cheguei a casa até perto da meia-noite! Entre eles, recebi um telefonema de um colega, meu ex-aluno e antigo colaborador, com quem não contactava havia séculos e de quem me tinham chegado (um?, dois anos atrás?), recordava-o vagamente, informações de que estivera doente; um linfoma achava eu...

Essa chamada, que nesse dia tomei por desmoralizante e um tanto impiedosa, foi a primeira das muitas que se repetiram, ao longo de meses, até ao último dos meus tratamentos estar concluído. O Miguel Guimarães nunca mais me largou, numa persistência que no princípio me exasperava e assustava (sabia, de antemão, que ia ouvir detalhes impressionantes); em seguida fui percebendo e desejando o caracter exclusivo e a genuína intimidade doentia desses telefonemas; e, finalmente, reconheci em toda a atitude, para além de uma discreta demonstração de amizade, o cunho da solidariedade que une os atingidos por doenças graves e que tantas vezes encontrei ao longo dos quilómetros que, como doente, percorri pelos corredores dos hospitais.

O Miguel tivera um Hodgkin, mais pesado do que o meu, acabara de se livrar da doença não há muitos meses e os seus telefonemas, com uma periodicidade que parecia subordinada a um qualquer planeamento estratégico, antecipavam os passos seguintes do meu próprio trajecto.

“Sim, o primeiro tratamento custa pouco”, disse-me ele nesse prefácio telefónico, “mas o segundo já lhe vai custar mais, vai ser mais longo; é que as veias vão ficando queimadas”.

O Miguel Guimarães acabou por constituir-se a materialização do ser nebuloso e longínquo de quem o meu amigo oncologista falara quando me prescrevera:

“E vê se vais falando disto com outros tipos que tenham o mesmo que tu – é muito útil.”

“Onde vou eu agora encontrar gajos que tenham o mesmo que eu?!”, pensara após o conselho do Rui, desejando seguir a orientação, mas não sabendo como, nem tendo alma para lhe dar forma. Não ia pôr nenhum anúncio no jornal e intimidava-me pensar trocar impressões com os doentes com que fosse topando no hospital:

“Desculpe, você, por acaso, não terá um Hodgkin?” Passei a comparar os meus sintomas, o nível da minha hemoglobina, a velocidade

de sedimentação, o número de plaquetas, as cãibras musculares, milimetricamente com as do Miguel, numa maluqueira só igualável às cimeiras de cozinheiras discutindo receitas ou de viciados em jogos de computadores trocando dicas e desvendando truques.

“Não, a mim não me dá para vomitar”, afirmava-lhe com superioridade. “Isso é o que você pensa”, contrapunha ele, “espere pela continuação; os efeitos

são cumulativos”. Na primeira quinzena de Agosto, já longe da ressaca mais evidente do primeiro tratamento; antes do segundo, e consciente que a partir daí a minha aparência só poderia piorar; preparei-me para uma última ida ao Porto, visitar a família e, acima de tudo, revelar ao meu pai o que se passava comigo. Assim o tinha decidido, depois de muito pensar o assunto, após ponderar prós e contras com amigos próximos. O meu pai, um médico bem formado e informado, saberia compreender o problema e as soluções tomadas e era a pessoa indicada para a opção final do que dizer ou não dizer à minha mãe sobre o assunto.

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Não havia volta a dar e, sobretudo, parecia-me terrível que eles viessem a saber do meu caso pela inadvertida e casual pergunta de alguém que, encontrando-os, resolvesse interessar-se pelo meu estado:

“Então, e como vai o Pedro, está melhor? Já acabou os tratamentos?” Não, não podia deixar que isso acontecesse. Atravessei a ponte da Arrábida e num

conciliábulo de vozes amortecidas, combinei, primeiro com o meu pai e depois com as minhas irmãs, manter a minha mãe a cento e oitenta graus da existência e dos pormenores da minha doença. Para cancro já lhe chegara o dela e a respectiva praxe: a cirurgia, a quimioterapia, a radioterapia; as séries intermináveis de exames invasivos; as salas de espera deprimentes. Agora que tudo estava calmo e ela se libertara das grilhetas do IPO*, não era sensato ir estragar tudo com o relambório das minhas mazelas. Assim, acertámos, eu não voltaria ao Porto senão no Natal, altura em que o meu cabelo já teria renascido e o meu aspecto geral, esperava-se, estaria razoavelmente recuperado. Até lá, e para não levantar nenhuma lebre, eu faria apenas telefonemas de circunstância e o meu pai iria tendo notícias sobre a minha evolução através das minhas irmãs.

Como presto percebi, logo a partir do segundo tratamento, o Miguel Guimarães era um mestre no assunto e eu o reles e cada vez mais murcho aprendiz. As duas horas de duração do primeiro tratamento saltaram para três, pois as minhas veias não conseguiram aguentar o ritmo inicial de gotejamento; violentadas – à medida que o líquido alaranjado descia do frasco suspenso sobre a minha cabeça e ia serpenteando pelo tubo até penetrar no braço –, esbraseadas por uma intensa e dolorosa sensação de distensão, como se o calibre da veia estivesse a ser alargado para além da sua capacidade de contenção.

“Sr.ª enfermeira...”, clamava enquanto não me atrevi a fazê-lo eu, “por favor, por favor ponha isto a correr mais devagar”.

Regressei a casa amachucado, directo para a cama, tremendo de um frio quente e seco, vendo os objectos ganharem contornos mais escuros e menos nítidos, retocados por tonalidades esverdeadas; mantendo o meu exagerado apetite, mas, doravante, ludibriado, como num jogo de vermelhinha, pela imprevisível mudança dos sabores dos alimentos, que deixavam de saber ao que era habitual numa alucinante cadência, pois tanto o doce virava salgado, como, na próxima refeição, ganhava laivos de amarga adstringência ou, sem avisar, voltava ao sabor original.

“Pelo menos não vomitei, e esta já acabou, é menos uma...”, consolava-me, numa introspecção que fui desenrolando e sofisticando até a transformar num credo secreto para manuseio pessoal: Uma esperançada paciência, um passo de cada vez (“este tratamento já está”), um apontamento positivo para o melancólico quadro de honra (“hoje não vomitei”), uma lanterna para alumiar um metro do túnel (“a próxima sessão é só daqui a quinze dias”); contornando com ronha de diplomata, com sinuosidades de réptil, evitando a todo o custo o desespero despoletado por um sobrevoar demasiado ambicioso do futuro, posto em marcha por pensamentos do tipo: meu Deus, ainda tenho mais duas sessões pela frente e já mal me aguentei nesta!”; “meu Deus e daqui vou para a radioterapia!”; “meu Deus, ainda me faltam seis meses disto e sei lá se vai valer a pena...”

Entre o segundo e o terceiro tratamento começou a cair-me o cabelo e dizer o cabelo é tomar a parte pelo todo, porque não caiu só o cabelo, caiu tudo o que é pilosidade e cheguei ao fim do Verão mais parecia um eunuco: quase sem cabelo, sem um pêlo na barba, um genuíno Vermeer em termos de sobrancelhas; as pestanas constantemente a tombarem, irritantes como ciscos, para dentro dos globos oculares, juncando-me as lentes dos óculos de vírgulas, e, façamos baixar por aqui, sobre a glabra e desanimada personagem, o manto da compaixão e do pudor.

Durante as sessões nada mais faço que olhar os frascos pendurados sobre mim, procedimento que antes tomara como sinal de frivolidade por parte de alguns dos meus * Instituto Português de Oncologia.

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colegas do salão (“porque é que os gajos não se tentam entreter com alguma coisa: ler, ou olhar para a TV, por exemplo?”). Agora, agora sigo hipnotizado a formação, o preguiçoso despegar de cada uma das gotas que cai no sistema, que desce até ao meu braço e é empurrada pelas gémeas que, em fila, se vão acotovelando na sua esteira até ao interior das minhas veias; as revistas, compradas numa banca à porta do hospital, abandonadas no colo ou num dos braços da cadeira. Esta é, diria, a atitude mais vulgar. Há, claro, excepções: há uma dama de meia idade que costuma sentar-se em frente a mim e que, de cabelo tosquiado a máquina 3 e uma sugestão de sobrancelhas na fronte (uma lídima vénus de Vermeer) lê o seu livro em total concentração, como se tomasse sol na sua casa de campo, num calmo entardecer de Outono. Mas é raro tal distanciamento, tal aceitação: a maior parte de nós, plebeus, permanece, durante horas, embrutecida, a fitar as gotas que desfilam como contas de um rosário, até cair a última e o bendito penso-rápido nos ser colado no braço.

“Como vais?”, perguntam-me os amigos ao telefone. “Vou andando...”, desabafo, “e o que mais me lixa é que nunca me senti mal com a

doença: são os tratamentos que vão dando cabo de mim!” Para assinalar a efeméride, no decurso da última sessão no hospital de dia do

Serviço de Hematologia achei-me, de súbito, mal, tremendamente mal. Apesar do potente anti-emético que previamente me administraram endovenosamente, apesar da minha teimosia em aguentar até ao fim quando tão pouco faltava já, uma torrente de náusea subiu exponencialmente em arrancos que, vindos do fundo de mim, me inundaram a boca com um oceano de saliva de travo metálico.

“Lá vai”, lembro ter pensado, “vou vomitar”, antes de, em violentas sacudidelas gástricas, começar a escorregar pela cadeira abaixo, vendo tudo em volta ficar escuro.

“Sr.ª enfermeira”, gritou a acompanhante de um colega, correndo em direcção a mim com um recipiente, processado em cartão reciclável e parecendo uma caixa de ovos, pensado para situações daquelas.

Percebi então, enquanto a enfermeira me media a tensão, me palpava o pulso, me espicaçava verbalmente, para que serviam as ventoinhas encostadas a um canto. Aaah, que bem me soube aquele fresco na cara.

Sem, apesar da crise ter vomitado, terminei o último tratamento de quimioterapia e regressei a casa, contente por ter superado o meu amigo Miguel Guimarães. Mas, por volta do Km 34 da auto-estrada de Torres Vedras, a João teve que travar de repente para que eu me pudesse revolver em vómitos à vontade sobre a berma, no meio de uma quente e magnífica tarde de Verão.

A dr.ª Helena Gouveia estudou cuidadosamente os novos TAC, leu o relatório que

os acompanhava, e olhou para mim com um ar entusiasmado: “Fantástico, Pedro, desapareceu tudo com quatro sessões! Você entrou em

remissão completa.” “Remissão completa” foi um termo que, juntamente com “AVBD”, me passou a

acompanhar como uma sombra, a mim, discretamente matriculado em todos os documentos como um DH-PL-1A. Ninguém o diria, mas todas estas cifras e palavrões identificam uma pessoa bafejada pela sorte: doença de Hodgkin (DH), na sua versão histológica de predomínio linfocitário (daí o PL); no estadio 1 da doença, sem sintomas B (sintomas de mau prognóstico)e, por isso, classificado como A. Ou seja, um indivíduo com um cancro muito limitado e em fase inicial a quem, depois de submetido a um pot-pourri de químicos, desapareceram todos os sinais de doença. A esta ausência completa de sinais chamam eles “remissão completa”, porque, quando falam de cancro, os médicos são muito cautelosos e evitam, como se pudesse atrair má-sorte, pronunciar a palavra “cura”.

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Os meus dias no Hospital dos Capuchos tinham chegado ao fim e dali eu seguiria directo para as radiações; encaminhado para o Hospital de Santa Maria, uma vez que os Hospitais Civis de Lisboa não estavam equipados com serviço de Radioterapia.

“E agora”, perguntava eu, sentindo-me um tanto ou quanto órfão, “como é?; deixo de ser seguido por aqui?”

“Os únicos sítios em Lisboa onde fazem isto é no IPO e no Santa Maria”, explicava-me a Helena; “nós temos um acordo com o Santa Maria, eles têm um serviço novo, belissimamente equipado, a nossa articulação com eles tem funcionado bastante bem... E, claro, espero que o Pedro nos venha visitar de vez em quando.”

Lembro, como se fosse hoje, a primeira consulta de radioterapia no Hospital de Santa Maria. Foi marcada para o meio-dia do último dia de Verão e o que me faz recordar tão bem essa manhã não é a tenacidade anil com que o Verão se agarrava à vida na despedida, mas sim a dúvida angustiosa que tomava conta de mim à medida que, saído do táxi junto aos portões de entrada, me aproximava a pé do edifício do hospital: “Será que vou encontrar o cantinho que me está reservado dentro desta babilónia? Será possível que alguém aqui me espere, para acabar de me tratar?”

Parecia-me que não e o que, para mim, negava toda e qualquer chance de esperança, o que, mais que tudo me acabrunhava era a bizarmiforme dimensão do hospital, o qual me surgia como a encarnação do sonho de eternidade pelo betão de um ditador do ex-Leste da Europa. Enorme; desolado; cinzento; e assim se manteria, parecia-me, mesmo que o pintassem de verde-esperança ou de azul-ultramarino. É mais forte do que ele, é incontornável; devia ser proibido.

Acabei por encontrar, num discreto e novo anexo de apenas um piso construído encostado à fachada poente do Hospital, o serviço de Radioterapia; inaugurado, dizia uma placa afixada no amplo e moderno hall de entrada, pelo primeiro-ministro em 1993, isto é, apenas três anos antes.

Após uma olhadela vaga sobre a minha pessoa e um virtual esboço de aperto de mão, o dr. Bernardo Ataíde, a partir de hoje o intermediário entre mim e a radioactividade, o responsável pelo meu período Hiroshima, leu o resumo que a Helena preparara, foi enfiando os TAC no negatoscópio e pôs-se a observá-los com aplicação. Passado uns minutos deu-se conta que eu me mantinha, no lado oposto da secretária, de pé, especado à borda de uma cadeira.

“Sente, sente...; por favor.” Sentei-me e continuei à espera, tentando, sempre que me parecia apropriado e

vislumbrava uma aberta na observação dos exames, que ele ia prosseguindo em silêncio, explicar o que se passara até ali. Sem dar nenhum sinal evidente que me seguia ele continuou a esfolhar relatórios e análises; registou o meu nome no cabeçalho de uma enorme ficha clínica, acrescentou a famosa sigla DH-PL, e desatou a escrever pelas linhas fora. Passados uns bons minutos de sarrabiscos miúdos, pousou a caneta, levantou a cabeça e, olhando na direcção da janela, dirigiu-me a palavra:

“O seu caso é assaz raro; é muito pouco frequente chegarem-nos doentes em estadios tão precoces, com doença limitada a um só grupo ganglionar. Diz que fez quimioterapia?”

“Sim”, respondi, surpreendido com a pergunta, “quatro sessões com AVBD..., as doses totais estão aí indicadas”, acrescentei apontando os papéis que ele acabara de consultar.

“Foi pouco, foi pouco...”, ecoou ele, mais para si próprio do que para mim. “Mas”, tentei defender-me, “parece ter sido suficiente; estou em remissão

completa, diz a dr.ª Helena Gouveia”.

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“Pois, pois, é também o que diz aqui a sua médica”, admitiu ele, olhando de novo para os relatórios que eu lhe levara. Finalmente, continuando a dirigir-se-me com se eu estivesse além da janela, sentado algures no jardim do Serviço, pareceu decidir-se:

“Olhe, isto vai ser assim: hoje fazemos a preparação no simulador e na próxima quarta-feira, você começa os tratamentos no acelerador linear – vamos irradiar, ao longo de 25 sessões, o pescoço, parte anterior e posterior; as regiões supraclaviculares e axilares; e todo o mediastino...”

Chocado com a revelação, estarrecido com a descrição da imensidão da zona a submeter a radiações, interrompi-lhe, de jorro, o discurso:

“Mas isso não será um bocado pesado demais, dr.?!; quer dizer: para quem tem uma doença tão limitada como é a minha e já fez quimioterapia. Não seria suficiente um tratamento mais leve?”

Eu não estava a falar de cor, às cegas, ou com a leviandade de quem discute o preço de um tapete com camelos em baixo-relevo. Não sou especialista em linfomas nem em radioterapia, mas sabia exactamente o meu mal e a sua extensão e fartara-me de ouvir, com a desmedida atenção aos pormenores própria dos perseguidos e dos desconfiados, prelecções sobre o assunto, algumas das quais sem sequer as ter requerido...

“Se fosses para o meu hospital, só te faziam radioterapia...” “Ainda te vão fazer radioterapia a seguir?! Isso ficava mais que seguro só com

quimioterapia. Mas eles lá sabem!...” Independentemente das vozes serem tantas quantas as nozes, uma mediana podia

ser traçada em tanta douta opinião: hematologistas, oncologistas, radioterapeutas, todos estavam de acordo que “num caso como o teu, e tendo até já feito quatro faixas de quimio, uma irradiação do pescoço e da região supraclavicular deverá ser suficiente”.

Surpreendido com a minha tirada reivindicativa, de que não estava obviamente à espera, o dr. Bernardo Ataíde ficou uns momentos calado, a olhar-me de lado; como se eu fosse um espécime raro de doente, o doente que emite opinião.

“Vamos ver...”, concedeu, “mas, como lhe disse, a sua situação é rara, existe pouca experiência, e eu prefiro jogar pelo seguro. Tenho muito medo das recidivas no mediastino.”

Calei-me e voltei ao meu ar expectante e humilde de paciente sentado na borda da cadeira. Afinal que podia eu fazer? Fugir? E para onde? Ir para outro lugar onde tivesse que começar tudo de novo, vendo o tempo escoar-se e adivinhando os linfócitos, de momento tão sossegadinhos, a medrarem em catadupa no escuro do meu corpo, ao ritmo obsceno de ninhadas de ratos? Ou negociar, dizer-lhe: “Olhe, o corpo é meu e dos 25 tratamentos que o dr. me propõe só faço, digamos, metade; metade não, que não dá conta certa – faço 13..., treze também não, não gosto do número; fechamos o negócio a 14.” Um doente não tem opinião, não risca, é riscado.

Levantando-se, ele cortou as minhas lucubrações: “Vou estudar o seu caso e, para a semana – no dia do seu primeiro tratamento,

digo-lhe o que decidi. Sabe onde fica a sala do simulador?” Após uma hora e não sei quantas radiografias depois, saí do simulador (um

aparelho que mima os feixes de radiações, o local e o ângulo de impacto no corpo, e permite aos técnicos visualizar o volume a tratar e ensaiar, sem dano, os futuros bombardeamentos) com o canastro cheio de riscos vermelhos, pintados com uma caneta semelhante às que se usam para escrever em acetatos; traçados para definir e orientar o posicionamento exacto do meu corpo debaixo do acelerador linear, que esse, ao contrário do simulador, não emite apenas raios de luz inofensiva: gera perfurantes raios invisíveis, primos dos da bomba atómica!

Um traço horizontal, cruzando o lobo da orelha esquerda; uma cruz desenhada em cada ombro, outra na parte superior do esterno; uma longa linha ao nível do diafragma;

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múltiplas linhas curtas nas costas, delimitando e sobressalientando a localização exacta das minhas vértebras dorsais.

“Só me falta um brinco para parecer um punk”, dizia, brincando, à sorridente e simpática técnica que assistira o meticuloso trabalho do dr. Bernardo Ataíde e se deixara ficar a fazer-me companhia, enquanto, em frente a um espelho, eu vestia a camisa.

Ela riu-se, abanando a trança que se lhe despenhava pelas costas e revelando no sorrir um daqueles aparelhos de corrigir a posição dos dentes que estão tão na moda.

“E, diga-me”, continuava eu, sentindo-me muito mais à vontade a fazer-lhe perguntas a ela do que ao médico, “posso tomar banho com isto?; não se vai apagar tudo?”

“Pode, banho de chuveiro; mas com algum cuidado, sem esfregar com muita força...; as marcas vão-se esbatendo com as sucessivas lavagens, mas, como o senhor vem cá todos os dias, não há problema, nós voltamos a avivá-las.”

Cheguei ao ar livre (cá fora a manhã terminara, mas sucedera-lhe, sem transição, uma bela e sossegada tarde de Verão) completamente em papa e, para condizer com o minha estafada condição psicológica, o meu pobre invólucro corporal deveria ter sido transportado dali para fora em ambulância.

Este primeiro round passou-se a uma sexta-feira e, ao longo do fim-de-semana, tentando de algum modo recompor-me do desabamento causado pela perspectiva de cinco semanas ininterruptas de radioterapia e, sobretudo, pela dose e extensão do tratamento previsto, fiz alguns telefonemas de urgência. As minhas angústias eram tão específicas que só um amigo, especialista em radioterapia e conhecedor da minha situação, me pôde sossegar:

“No teu caso, acho que um mini-mantle era perfeitamente adequado – um mantle* alargado parece-me excessivo. De qualquer modo, também te digo que nestas coisas é sempre melhor a mais do que a menos!”

Na quarta-feira seguinte, bastante nervoso com a aproximação da sentença final do médico e pelo primeiro rendez-vous com as radiações, lá estava eu de novo, sorrindo à senhora da recepção e perguntando pelo dr. Bernardo Ataíde.

Na sua afabilidade inexpressiva, o dr. Bernardo foi conciso: “Olhe, estive a pensar no seu caso e decidi que vamos fazer-lhe, como lhe tinha

dito, um mantle alargado. Fico mais sossegado quanto aos resultados.” E, antes de me enviar para o acelerador linear, fez-me ainda um breve resumo dos

efeitos secundários das radiações, alguns possíveis, outros mais que prováveis: diminuição franca de saliva e de suor (por irradiação das glândulas salivares submaxilares e das glândulas sudoríparas axilares); queda de cabelo na nuca e desaparecimento da barba; queimaduras na pele exposta aos raios; inflamação do esófago e refluxo dos alimentos do estômago para a boca; pericardite; pneumonite e, a médio prazo, eventuais problemas na tiróide...

Engoli em seco, antecipadamente. A sala do acelerador linear é grande como um hangar; descomunal; nua;

praticamente só lá existe a cama onde nos deitamos e o portentoso aparelho que produz os raios com que nos bombardeiam o corpo e que me faz lembrar os gigantescos telescópios dos planetários. O percurso, que como aluno aplicado virei a decorar rapidamente, é sempre o mesmo. Quando chamam pelo meu nome, pouso a revista, salto da cadeira na sala de espera e entro para um pequeno vestiário onde me ponho de tronco nu. Depois, numa antecâmara na qual se afadigam as técnicas de roda dos seus computadores e onde,

* Em inglês mantle quer dizer manto, cobertura, e é também interessante (pela costela irónica) referir o seu significado de camisa incandescente, quando o termo se aplica a lâmpada ou candeeiro. Na acepção radioterápica, o mini-mantle, por oposição ao mantle alargado, refere uma área de irradiação que inclui apenas a zona doente e a área contígua: neste caso todo o pescoço, ambas as regiões supraclaviculares e, eventualmente, a região axilar do lado doente.

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por um circuito interno de vídeo, se pode controlar o que se passa na sala do acelerador linear, espero que saia o doente que está a acabar a sua sessão de radiações. Geralmente cruzamo-nos à porta da sala, eu e ele (ou ela e eu) nus da cinta para cima; comigo, por vezes, admirado por ver o crânio liso como uma bola de bilhar daquela senhora que, ainda há pouco, esperava decentemente sentada na sala de espera ao meu lado, vestida e com um cabelo que me parecia perfeitamente normal. Espanto-me, mas não o deixo transparecer e cruzamo-nos em silêncio, trocando um imperceptível meneio de cabeça. Nenhum de nós se atrapalha ou embaraça por nos vermos em tal figura, sabemos que somos do mesmo tamanho e que é matéria que ficará entre nós.

Entro, espero que, de um rolo montado aos pés do catre, desbobinem e estiquem sobre o colchão um novo lençol descartável, subo um escadote de dois degraus e deito-me. Logo a seguir as técnicas, geralmente duas, posicionam-me, sem pressa, o corpo até ficarem satisfeitas com a relação que se estabelece entre as marcas que no meu pescoço e tórax assinalam as zonas que vão ser irradiadas e as luzes que o aparelho emite e que indicam onde vão penetrar os verdadeiros raios, esses sim, invisíveis. O processo é demorado, milimétrico, e quando me consideram suficientemente alinhado passam-me sobre a testa uma larga banda esbranquiçada de fita aderente (igual àquela que se utiliza para selar caixotes de papelão), fita que, em cada uma das extremidades é colada às bordas laterais da marquesa, onde me quedo, imóvel como um rato a ser farejado por um gato. O objectivo da fita-cola é que eu não possa rodar a cabeça em movimentos laterais e para garantirem que também não serei tentado a movê-la em acenos verticais, passam-me uma segunda rodada da fita aderente por baixo do queixo, para manter sempre uma mesma exposição do pescoço.

“Agora não se mexa, está bem?”, dizem sempre antes de abandonarem a sala. “Está; podem ir descansadas”, aquiesço mentalmente, porque de queixos

agrilhoados é complicado falar claro. Fico só e ouço, lá ao fundo, a porta, encorpada e blindada como a porta de uma

central nuclear, fechar-se. Toca a fugir, que vêm aí os raios fantasma. Não os vejo, mas sei quando começam a jorrar, pois durante a sua emissão uma sirene, colocada numa parede em frente, emite uma luz vermelha intermitente e um toque de alarme semelhante ao aviso de um ataque aéreo. Fecho sempre os olhos durante o processo, não que isso adiante seja o que for, mas sinto-me psicologicamente mais protegido; esperando que a ronca pare de bramir, a porta se volte a abrir e me venham descolar da mesa e tirar dali. Não se vê nada, não dói nada, não se sente nada; o processo é invisível, incorpóreo, apenas fica a pairar no ar um odor seco e levemente eléctrico, diferente de qualquer cheiro meu conhecido, mas que um dia saberei reconhecer se o encontrar noutro contexto.

Salto da marquesa, percorro o corredor até à grossa porta, cruzo-me com o doente seguinte, visto-me e, antes de abandonar o local, passo pela sala de espera a despedir-me de quem ainda não foi atendido.

“Então até amanhã...; estimo as melhoras.” Todos fazemos isto, todas as manhãs, usando a mesma frase. Foi um ritual que

aprendi nos tempos da quimioterapia, mas que aqui se pratica com redobrado rigor; não há quem falhe. Tanta circunspecção é, porventura, inútil e ridícula, mas fazemo-lo convictamente: é que é bem provável que amanhã alguém do grupo já não consiga aparecer ao tratamento. Quanto às melhoras...

No final da minha primeira sessão de radiações, estava eu a meter a fralda da camisa por dentro das calças, quando a porta do exíguo vestiário se abriu e entrou uma senhora de bata branca. É, conforme me explica, enfermeira e está ali para me integrar na vida do Serviço e me explicar alguns pormenores que todos os doentes deveriam conhecer. Tendo em vista a função ambientalista, acho-lhe um ar excessivamente deprimido: não consegue esconder um olhar desanimado e uma expressão facial descaída, lembrando um

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São Bernardo com o barrilinho de cognac vazio em dia de avalanche. Num tom monocórdico, automatizado, e pontilhado por horríveis detalhes – alguns dos quais duvido se venham a aplicar à minha situação clínica específica, resume-me o que eu vou passar e sentir, o todo embrulhado no que “o que nós podemos fazer por si”, e termina dizendo:

“Também temos capacidade para apoio psiquiátrico e psicológico e, se vier a ter necessidade, podemos fornecer-lhe saliva artificial...”

Eu estava ali, literalmente encostado à parede, nu da cinta para cima e um pouco enrascado, a ouvir a monótona ladainha da senhora e por pouco não me desmanchei a rir com aquela da “saliva artificial”, quer pelo inesperado da oferta, quer porque, incontrolavelmente, irrompeu no meu espírito, sugestionado por bancos de leite e bancos de esperma, a imagem de um banco de saliva, povoado por benévolos e esforçados dadores a cuspirem, irmanados pela mesma devoção, para dentro de um escarrador esterilizado...

Vivi a primeira semana de tratamentos com uma grande energia e alegria, pois, comparado com o horror nauseante e instantâneo da quimioterapia, aquilo não custava nada! Mas é que mesmo nada. Sentia-me até um nada ridículo e desperdiçado: ir todos os dias a Lisboa para me deitar debaixo de uma máquina durante um minuto e, depois, vir-me embora para casa! Suave (e fugaz) inconsciência. O Miguel Guimarães bem me dera a entender que não ia ser fácil e ainda hoje lembro o conselho que, ao ser sugerido, não entendi bem:

“E vá-se preparando para andar sempre com uma garrafinha...” “Uma garrafinha!?” “Claro, uma garrafa com água: vai ficar sem ponta de saliva, e precisa de beber

constantemente, para consegui engolir.” Sim, ele avisou-me, o médico também, mas nesses primeiros dias eu andava meio

eufórico pelo contraste com a quimioterapia, cujos efeitos e lembrança iam recuando no meu corpo e mente à medida que o tempo se escoava. Já tratara até de enterrar as apreensões quanto à quantidade e extensão dos tratamentos sob uma montanha de lógicos torrões. Se calhar, até era melhor assim: afinal eu estava em boas condições físicas para aguentar aquilo; antes resolver tudo agora do que depois ter de repetir; afinal, as coisas acabam sempre por acontecer da maneira mais harmónica, etc., etc.

A meio da segunda semana o meu vento mudou e, de repente, um cofre-forte e um piano de cauda (um atafulhado, o outro mudo, e ambos metafóricos) despenharam-se de um qualquer décimo nono andar sobre os meus ricos e pintalgados costados. Um cansaço, uma astenia, uma fraqueza, tão brutais que, pela primeira vez na vida, percebi como se deve sentir uma pilha descarregada ou um pneu em baixo. Rapidamente tive que me mudar para uma residencial em Lisboa, e os meus dias passaram a estar centrados no tal minuto de tratamento, porque, antes e depois dele, todo o tempo era escasso para me recompor da tareia que diariamente, e de um modo cumulativo, levava no Hospital de Santa Maria.

Quando, lá pela terceira semana de tratamento, comecei angustiadamente a pensar “eu não aguento isto” e a contar as sessões que ainda faltavam, novas entidades surgiram para me empurrarem pelas escadas abaixo: Primeiro, deixei de poder cuspir; a minha saliva desapareceu (ao ponto de, sempre que o tentava, não conseguir sequer fazer despegar do lábio inferior a diminuta amostra de cuspo laboriosamente congregada ao longo de dois ou três minutos). Depois, tenho soluços frequentes e quando como a comida engarrafa-se-me no esófago e faz-se cara para chegar ao estômago. E mesmo após lá chegar, qualquer capricho que desconheço a faz constantemente voltar-me à boca, numa ruminação azeda que me faz arder numa azia constante.

Mais? As minhas axilas, de onde há muito tempo os pêlos desapareceram (não há depilatórios como os agentes anticancerosos), esfolaram e estão em carne viva; não me convém nada encostar os braços ao corpo, pois despegá-los dele é um martírio. O pior é à

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noite, na cama, no abandono do sono e no calor do leito: acordo frequentemente durante a noite para as borrifar com a água de uma taça que passei a ter à cabeceira.

Passo toda a tarde deitado na cama do meu quarto da residencial, sem fazer nada; sem vontade e força para fazer nada, ouvindo vagamente a vida zumbir lá fora. Amanhã tenho que voltar outra vez ao hospital e, à escala humana, regressarei um degrau mais próximo da cave. Espero, tenho que esperar e só posso contabilizar os dias um a um, mais do que isso e atolo-me no pântano do desespero, que esvoaça em volta da minha disposição como um urubu. À noite saio para ir jantar, sozinho, sempre ao mesmo restaurante e arrasto-me pela ruas devagar: dói-me o pescoço, doem-me as costas, fraquejam-me as pernas; os ossos dos meus braços e tórax parece que ficaram ocos e que se podem partir sob qualquer piparote. Dói-me engolir, o simples subir e descer da maçã de Adão no pescoço é penoso.

Andei dias seguidos com uma comichão terrível na parte posterior do pescoço até perceber que tinha aí uma feia ferida, causada pela etiqueta que as camisas geralmente trazem cosidas no colarinho. Assim está a minha pele: desfaz-se como papiro friável. Remedeio o assunto almofadando o pescoço com lenços de seda natural, empapados em Biafine, o abençoado bálsamo que o dr. Bernardo Ataíde me receitou quando, depois de me queixar a uma das técnicas e após vários dias a ganhar coragem, lhe expus o que se passava nas minhas axilas.

“Ah..., já podia ter dito..., é frequente acontecer; vou-lhe receitar uma pomada muito boa para isso.”

O meu aspecto é francamente mau: vejo-o no espelho, apercebo-o no modo como as pessoas olham para mim, se, por exemplo, me atrevo a entrar num restaurante ou num café. Também o que pensar de um gajo cor cinza-de-cigarro, com a pele do pescoço encardida a castanho-escuro?; anguloso como um espeto, com uma cabeça que não é bem careca nem deixa de o ser e onde vegetam uns cabelitos, raros e quebradiços, que (ah ah, se eles soubessem) posso arrancar do crânio com os dedos, como se sacasse um prego de madeira podre!?. Entro, pouso-me em câmara lenta sobre a cadeira, e agora são os empregados, que me trazem a lista e os talheres, que me inspeccionam com surpresa, indecisos se me hão-de considerar doente, drogado, ou maluco (ou tudo junto); a mim e aos sarrabiscos vermelhos que ostento no pescoço e no lobo da orelha esquerda. Porém eu sou, há vários anos, um cliente regular da casa; um tipo confiável num sítio respeitável O que terá dado ao gajo que, como se já não bastasse ter passado a usar um lenço entalado no pescoço (quase sempre o mesmo e com traços nítidos de um sarro engordurado), bebe agora um litro e meio de água à refeição e despacha quase uma garrafa de azeite para temperar o prato que encomendou?

“Espelho, espelho meu; existe alguém com pior aspecto do que eu?” Ele diz que sim, para me deixar de lamúrias e olhar em volta na sala de espera, a

que fica em frente à porta que conduz ao acelerador linear. Na sala de espera há de tudo. Há doentes de todas as condições e para todos os

apetites: os aparentemente em razoável estado físico (subgrupo no qual gosto de me considerar), e os, nitidamente, em péssimo estado, que esperam, com anémica e longínqua indiferença; encolhidos em cadeiras de rodas que lhes ficam demasiado largas ao corpo franzino, ou amarrotados numa maca, a sua vez de serem chamados. Este último subgrupo é bastante volátil, isto é, um dia estão lá connosco e no seguinte já deixaram de estar e todos nós desconfiamos para onde terão ido sem, no entanto, o comentarmos em voz alta. (É que abundam crianças na sala, existe mesmo um canto que lhes está reservado, com mobília à altura e brinquedos coloridos.) Há os que falam abertamente da sua doença; os que deixam essa tarefa para os acompanhantes; os que se conservam petreamente enrolados em si próprios numa ostensiva atitude de isolamento e de negação do local onde

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se encontram e há, também, os que tentam passar despercebidos (subgrupo no qual tento incluir-me), o que nem sempre se revela fácil de conseguir ou manter.

“E, o senhor, também é um tumor na cabeça?”, interpela-me uma mulher com sotaque ilhéu que conta, fazendo recuar para segundo plano o interesse pelo programa que passa na TV, a história da doença do marido.

“Não, não; minha senhora”, informo timidamente, apontando a minha cicatriz, “a mim foram uns papos que me apareceram aqui no pescoço...”

Satisfeita a curiosidade, ela continua a narrativa com todos os detalhes, desde os primeiros sintomas, à primeira ida ao médico em S. Miguel, o internamento para estudo e, finalmente, à vinda para Lisboa, onde estão, há mais de um mês, hospedados numa pensão.

“E a vida que nos estava a correr tão bem!”, confidencia num ar de ser a primeira vez que toma consciência da felicidade perdida; como se tivesse sido necessária aquela brutal interrupção da normalidade, aquele devastamento da vida de uma família inteira, para se dar conta disso:

“... é que nos estava mesmo a correr bem.” Enquanto ela suspira e vai enxugando os olhos num lenço, o marido, sentado a seu

lado, sacode lentamente a cabeça numa anuência silenciosa com os factos relatados e com a felicidade perdida, lá longe, no meio do mar.

Saído da berlinda, espio agora disfarçadamente, protegido por uma revista de actualidades, um miúdo dos seus oito anos que, sentado em frente a mim numa das pequenas cadeiras do cantinho infantil da sala vai, numa pose ensimesmada, rodando entre dois dedos, num tique silencioso, uma madeixa de cabelo. Quando se levanta, respondendo à chamada para o tratamento, reparo que o chão em volta da cadeirita onde ele estivera ficou polvilhado de cabelos; tufos pretos, tristemente abandonados, que a mãe, de cócoras e olhando embaraçadamente em volta, recolhe com rapidez e depõe cuidadosamente num balde do lixo. Escondido atrás das últimas façanhas estivais das princesas do Mónaco, oculto a impressão que a cena me provoca e aguardo uns momentos, até que a compaixão que me tomou os olhos se desvaneça.

Sentado na sala de espera consigo ver também a porta que dá acesso ao acelerador linear, um pedaço de corredor e, é uma das imagens mais constantes, o perfil do dr. Bernardo Ataíde que, incessantemente o percorre para entrar e sair na zona de tratamentos, sem nunca olhar para o lado ou deter-se para cumprimentar alguém. É, para mim, nas dezenas de horas que ali tenho esperado, fácil perceber que o homem é a alma técnica daquele Serviço, percepção que me é confirmada pelo eco dos profissionais que constantemente recorrem a ele:

“Dr. Bernardo”, interpela-o uma das técnicas, “não se importa de chegar ali dentro?”

“Não viste o dr. Bernardo por aí?”, pergunta outra. E ele lá vai a todas, infatigável; sempre de cara fechada, sempre presente. Conto os dias que faltam para acabar os tratamentos como o náufrago na ilha

deserta, que regista cada dia que passa com um entalhe no tronco da palmeira; como o preso que vê a sua pena finalmente atingir a parte decrescente da curva.

No dia em que realizei o vigésimo tratamento, tal como fizera no aniversário da décima sessão, festejei interiormente e passei-me a mão pelo esgarçado lombo, murmurando: “lindo menino...” Como se o tivesse adivinhado, nesse fim de manhã, estando já eu deitado sob a verruma radioactiva, nos atavios sado-masoch à base de fita-cola do costume, apareceu o dr. Bernardo Ataíde para uma visita.

“A partir de amanhã vamos meter-lhe uma protecção cardíaca”, comunicou-me lá de cima, na sua peculiar entoação áspera e um tanto snobe.

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“Está bem, dr.”, respondo para o luminoso vácuo, pois com a cabeça amarrada à marquesa, o meu horizonte é unicamente preenchido pelas potentes luzes que jorram da máquina e que, apontadas sobre mim, me condenam a uma fixa e obscura ofuscação.

Como frequentes vezes sucede, quando entra pela sala de surpresa, ele deixa-se ficar um bocado a rectificar o trabalho de posicionamento que as técnicas executaram e a orientar a interposição, entre o meu corpo e a máquina, da espessa placa de acrílico perfurado à qual estão aparafusados os cilindros de chumbo que protegem certas zonas vitais das radiações.

No dia seguinte, uma quinta-feira, colocaram no meu molde a protecção cardíaca, um novo acrescento de chumbo à placa de acrílico e na sexta-feira, no final do vigésimo-segundo tratamento, a técnica, ao estender-me a mão para me ajudar a levantar, transmitiu-me:

“Antes de se ir embora passe no gabinete do dr. Bernardo; ele quer falar consigo.” “Entre, entre”, convidou, ao ver a minha silhueta titubear na ombreira da porta

entreaberta. E, mirando os estores da janela, como é seu hábito, informou: “Então está quase, hem?... Para a semana vamos fazer três sessões de irradiação,

usando uma dose um pouco mais forte, mas dirigidas apenas ao pescoço – um último reforço na zona doente.”

E, esticando um dos cantos da boca, num enviesado proto-sorriso, concluiu: “E, em princípio, deve ficar definitivamente livre disto tudo.” A 30 de Outubro de 1996 terminei a radioterapia e três semanas depois, na

penúltima sexta-feira de Novembro, tive que ir ao Porto, a uma reunião que se realizou na sede da Ordem dos Médicos, um bonito casarão no Jardim da Arca D’Água. Como já não via o meu pai desde o início de Agosto, decidi telefonar-lhe, propondo-lhe que nos encontrássemos clandestinamente no bar da Ordem.

Cerca das cinco horas, logo que a reunião terminou, desci as escadas e dirigi-me ao bar. Para além de um empregado atrás do balcão, a sala estava deserta. O dia arrastava-se frio e húmido e uma aconchegante lareira crepitava no silêncio da tarde. Vi o meu pai lá ao fundo, sentado ao lado do enorme pano envidraçado que faz parecer o jardim entrar pelo bar dentro.

Quando sentiu alguém entrar na sala, o meu pai olhou, com a presteza natural de quem está expectante, mas, não me tendo reconhecido, voltou à neutralidade de atitude anterior, mirando a janela e o entardecer morrinhento. Só quando, insistindo, me aproximei dele com um sorriso aberto ele se levantou, comovido, para me saudar, tentando disfarçar o choque que lhe provocava a minha figura.

No final de Dezembro voltei ao Porto. A minha mãe lamentou o imenso tempo que eu estivera sem aparecer, censurou “essa vida agitada que vocês levam” e achou que me ficava lindamente o meu novo penteado, de cabelo à escovinha. O Natal correu bem, isto é, como de costume, e, para quem sabia de tudo o que se passara, havia no ar uma alegria, uma leveza, suplementar.

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Hoje, 25 de Junho de 1999, é o grande dia em que vou ser operado ao coração. Afinal, apesar da longa e angustiada retrospectiva de ontem à noite, acabei por

conseguir adormecer e dormi bem, sem pesadelos ou bruscos despertares no escuro.

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A enfermeira apareceu com um comprimido de Lorenin 2,5 (dose mais que dupla) e uma seringa que, calculo, deve conter petidina; o habitual como preparação para uma cirurgia. Manda-me meter o Lorenin debaixo da língua e deixar derreter. Quanto à seringa, fica para depois: vai telefonar primeiro, a saber a que horas me querem lá em cima, quer ela dizer, no bloco operatório da Cirurgia Cardiotorácica.

O tempo vai passando e nada digno de registo, a não ser que o Lorenin derreteu à sombra da língua e amoleceu os meus pensamentos mais esquinados. A João chegou e espera comigo. É quase meio-dia quando a enfermeira regressa com a seringa em riste. É agora, vou subir, “chamaram lá de cima”.

Uma empregada auxiliar vem buscar-me e, placidamente, empurra a cama contra as portas, pelos corredores fora, até a um enorme e velho ascensor. Está frio por estas bandas. O elevador agita-se espasmodicamente enquanto sobe e ela vai falando o tempo todo, contando histórias do ascensor e do dia em que ele encravou entre dois andares e um doente em paragem cardíaca à espera dentro dele. Foi o diabo! Desaguamos na ala do bloco e encostam a cama a uma parede, ao pé da porta de uma das salas. A João despede-se; não pode ficar ali. Entrego-lhe os meus óculos. Espero.

Uma cabeça inclina-se sobre mim. Da face só vejo os olhos; tudo o resto está tapado por um barrete e uma máscara, verdes. Podia ser um gafanhoto gigante, mas pela voz e pela apresentação que faz de si percebo que é uma mulher; é a médica que me vai anestesiar. Quer saber como me sinto, se estou muito ansioso. Vai-me informando, pausada e serenamente, do que se vai passar; adianta-me que a estadia (em princípio de 48 horas), a seguir à operação, nos Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica é uma experiência, física e psicologicamente, dura. Não estou muito seguro do fluir do discurso. Tomo consciência que, quase imperceptivelmente, ela envolveu a minha mão na dela e sinto-me confortado pela radiância morna desse contacto e cativado pelos olhos magníficos que me fitam: belos, apesar de isolados de todo o contexto facial, e ternos, transmitindo no seu modo de fitar e na luz que reflectem um interesse por mim e pelo que sucederá a seguir. É a primeira vez, em toda esta minha nova doença, que me falam assim, tão para dentro de mim. É bela, a guardiã do meu sono sem sonhos.

“Daqui a uns dias, vou visitá-lo à enfermaria”, diz sorrindo e logo acrescentando: “Provavelmente não me vai reconhecer...”, um gesto designando o seu estado

mascarado. Mexo a cabeça, como quem vai anuir, mas corrijo: “Não me vou esquecer facilmente dos seus olhos.” Depois, e é a última coisa que lembro com nitidez, abriu-se uma porta e dei por

mim a ser empurrado para um espaço que me pareceu demasiado pequeno para a quantidade de gente que o lotava: uma multidão mascarada de verde; todos de mãos enluvadas em borracha, mãos que mantinham unidas e espetadas no ar, como se estivessem prestes a iniciar uma prece; e todos a olhar para mim, como se me esperassem.

“E eu para aqui nesta figura”, pensei, quase envergonhado e com vontade de me pôr de pé para cumprimentar toda aquela gente.

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Parte III

Fora de horas*

* Da canção After Hours, de Lou Reed (The Velvet Underground, 1969).

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Caio em mim, de chofre, no meio da noite. Quero dizer, suponho que é noite pela escuridão reinante na minha periferia, onde apenas umas débeis luzes de presença mimetizam uma atmosfera de cabina de avião de longo curso lá pelas três horas da manhã. Dores de garganta e sede, tremenda sede. Lanço os olhos em volta. Está tudo escuro e parece deserto. Apercebo paredes distantes e a suspeita de janelas nessas paredes, através das quais se côa alguma luz, uma luz alaranjada, crepuscular. É como se a superfície dessas janelas ocultasse candeeiros de iluminação pública acabados de acender. Vejo alguma coisa mexer-se lá ao fundo e dirijo o olhar nessa direcção. Movo o braço, tento mover o braço esquerdo, mas está pesado e preso. Um tubo fino de soro sai-me do meio do braço, outro da zona do pulso e, na ponta do indicador, tenho enfiada uma carapuça luminosa, ligada a um fio que se perde algures. Com a mão direita (está igualmente perra e o braço também tem um tubo, serpeando a partir da zona do cotovelo) toco no dispositivo – destaca-se do dedo com facilidade. Ah..., é um oxímetro, um aparelho para medir o grau de oxigenação do sangue. Enfia-se e prende-se no dedo como uma mola. Emite uma luz de vinho tinto, como sucede quando encostamos a lâmpada de uma lanterna à polpa de um dedo, a cor do sangue visto à transparência da pele. Alguém passa no meu ângulo de visão. Espontaneamente levanto o dedo luminoso, pedindo atenção. Atenção. Debruça-se um anjo louro, vestido de branco. Sorri e pergunta-me, numa voz que não tenho a certeza de estar a ouvir, o que quero. Pelo menos (assim inquirido de repente fico bloqueado) quero molhar a palavra.

“Tenho sede”, ouço-me dizer numa voz rachada, “queria beber”. “Mas, para já, não lhe posso dar de beber”, nega ela gentilmente, “posso é molhar-

lhe os lábios com água”. Ou isso. Acho lindamente, à falta de melhor. O anjo volta com um copo, onde está

mergulhada uma espátula envolta em gaze. Passa-me a gaze pelos lábios, uma e outra vez. Faço a batota que posso e chupo como um vitelo esfomeado. Depois de me inspeccionar, o anjo ergue voo e desaparece.

Estou desperto. Voltei a mim sem ponta de sono; o meu cérebro começa a zunir de excitação. Conheço a sensação de outra anestesia geral, feita três anos atrás, e de outros estados menos dignos: é tal qual como quando se adormece de borco numa bebedeira e se acorda, a meio da noite, como um ricochete, uma insónia irremediável instalada até de manhã.

Plim. Chegam-me sons. Estranhos; tão desgarrados que não tenho a certeza se são ficção da minha mente obnubilada. Não sei de onde vêm, não sei para que servem; não capto a quem servem. Veículos de quê? “Isto não é música...” Pli-i-m-m. Um som sintético; ecoante, como se fosse um pingo de água a tombar cadenciadamente numa banheira onde alguém colocou um potente microfone. Plim, agora outro, de tonalidade e cadência diferente. Plim--plim---plim; outros. São sons musicais, que se cruzam no espaço, e, repentinamente, é como se estivesse imerso num concerto de pingos de casa de banho: banheira, lavatório, bidé, autoclismo. Andante. Musicais, mas pervertidos, como um som de CD riscado; repetindo a mesma nota até ela se esvaziar do sentido tonal. Repetem-se, cruzam-se, aceleram, ganham agora um tom angustiado. Recuam; voltam a ser lentos e mais espaçados. Uns parecem vir de longe, do fundo da sala, mas outros parecem ter origem mesmo por cima da minha cabeça. Vibrafone..., aquele é tal qual uma batida num tubo de vibrafone, a ecoar no escuro. Vem-me, de súbito, à ideia a banda sonora da série de TV Twin Peaks*, uma associação a que cheguei pelo carácter insólito e minimal que ambos os sons aparentam. Gostava que parassem um pouco com isto, para ser franco; * Twin Peaks, de David Lynch, 1990.

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com este ruído invasivo que tanto me rodeia como tentáculos ou, sem transição, me empurra pelo espaço fora. Como pode um corpo sólido estar assim dependente de um som!?

Entretanto, os meus olhos habituaram-se progressivamente ao escuro e às luzes quebradas. Percebo que estou num enorme espaço, com umas colunas lá ao fundo; sem nenhuma porta visível, com focos de luz aqui e ali: um ambiente despojado de restaurante japonês, de átrio de edifício futurista, penetrados clandestinamente pela calada da noite e onde a solidão só é cortada pela claridade de dois ou três focos de halogéneo, esquecidos acesos por cima do balcão da recepção.

Sinto-me gelado. Olho-me e reparo que no centro do meu peito nu existe um objecto não identificado: uma fita branca estende-se desde o umbigo e perde-se-me na sombra do queixo. Palpo a fita com cuidado. É alta e felpuda. “Ah”, concluo, “é o penso da cicatriz; eu fui operado...”. Tento puxar o lençol, que me tapa até à barriga, para cima, mas ele não obedece ou porque está encravado nalgum lado, ou porque é demasiado curto. Espero o próximo esvoaçar do anjo pelas redondezas e levanto o meu pirilampo digital.

“Tenho frio; não me podia puxar o lençol para cima, ou arranjar um cobertor?” Ela esclarece: “Não posso, temos que manter esses tubos sempre à mostra. Posso é arranjar-lhe

uma fronha de almofada, para tapar o peito.” “Tubos? Quais tubos?”, admiro-me, enquanto ela se afasta para ir buscar a tal

fronha. Dou conta então, pela primeira vez, que uma mão travessa acima da linha do umbigo tenho três tubos a sair do corpo: dois mais ou menos na linha média e um à esquerda, quase na parede lateral do tórax. Cada um deles tem o diâmetro aproximado de um dedo; estão cosidos à pele com um ponto de linha preta e desaparecem para os lados do chão, bem fora do meu estreito campo visual. Como é que não os tinha visto agora mesmo? As coisas vão e vêm; ora estão, ora desaparecem; brotam como cogumelos: não há estabilidade na realidade ou, pelo menos, nos meus sentidos. Não apreendo o conjunto do mundo em volta: se uma imagem se impõe na minha consciência isso é feito à custa do recuo de um som.

Não reparara também que não estou só no salão, onde tudo até então parecia indistinto ou vazio, e um cenário surgiu diante de mim com a convicção de quem sempre ali esteve. Há corpos humanos deitados pelo espaço fora; paralelos, alinhados ao longo da parede à minha esquerda; lá ao fundo...; pairando a meio metro do chão. São vários; cinco ou seis, e estão imóveis, deitados, quase nus, fosforescentes, a pele brilhante, de um esbranquiçado de marfim gorduroso. Cada corpo está deitado sob uma imensa grua branca pendurada do tecto, de cujo tronco metálico saem vários braços articulados, uma versão gigantesca dos tentáculos que ornamentam uma cadeira de dentista. Dos braços de cada grua pendem, como uma fruta estranha, frascos de soro e enormes seringas de plástico, ligadas por um emaranhado de tubos e fios que se perdem na superfície e nas entranhas dos corpos estendidos. Um corpo agita-se (está vivo!) e da sombra surge uma figura branca que se aproxima dele, estende o braço e toca com os dedos num monitor de televisão que se encontra pousado na extremidade de um dos braços do guindaste. A figura branca dá um passo atrás, olha para o alto, para o monitor, e desaparece no escuro.

Experimento olhar para cima de mim, para trás de mim, mas não consigo. O meu pescoço está rígido e quando o tento mover ele chocalha. Virando a cabeça um pouco capto, pelo ângulo externo do olho direito, um troço de uma série de fios ascendentes e a luminescência de um écran de computador. Vislumbro, também, no espaço à minha direita, outros corpos, imóveis, pairando numa bruma de luz violeta.

Não quero saber mais. Fecho os olhos. Os sons reaparecem e continuam a pingar, espessos como geleia, à minha volta. Tento não lhes ligar muito.

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Fico comigo e tomo consciência de que sobrevivi à operação, de que cá estou eu outra vez deste lado. Distendo internamente e comovo-me. Tenho os olhos molhados, mas não os abro. Só os volto a abrir para o exterior quando começo a ouvir uma certa agitação no ambiente e novos ruídos mais conformes com o banal. Das janelas vem uma luz que, embora amortecida, fere os meus olhos secos e ardentes e, a pinceladas brancas, expulsou os miasmas que se acoitaram toda a noite no salão.

Amanheceu, e, deduzo, estou hospedado na Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta.

Agora com feições muito mais definidas, o anjo louro aproxima-se da minha cama. Vem despedir-se:

“Adeus, ET.” Sorrio e levanto o dedo luminoso, com o objectivo de o encostar ao dela e, assim,

cumprir o previsto no guião da história. Mas estou muito lentiforme e, entrementes, ela já voltou costas e zarpou no vácuo.

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É Sábado de manhã, o anjo deu à sola e quem fica a tomar conta de mim é a Marta, uma enfermeira muito nova a quem não daria mais de dezoito (vá lá: dezanove) anos. Mas não deve ser, não é possível que haja enfermeiras com dezoito anos, calculo eu. A Marta é muito alta ou, pelo menos, julgo-o (as coisas parecem todas maiores quando a nossa perspectiva é, invariavelmente, a de baixo para cima); esguia como um junco, cabelo castanho pelos ombros e um par de sobrancelhas da mesma pelugem, bem desenhadas e que lhe dão um ar grave, excepto quando sorri e as deixa espreguiçarem-se, pois então parece uma garotita de, vá lá, doze anos. Tem a frente da bata cheia de pins: bonequinhos de plástico, miniaturas, letras do alfabeto, enfeites desse género. Espero que ainda conserve e use o ursinho que lhe ofereci nesse Sábado e que vinha, como se por encomenda, preso num postal que me trouxe a João e mandado pela minha sobrinha Ana, quatro dias antes, para assinalar o meu enfartado quadragésimo sexto aniversário.

A manhã e a animação trazida pela mudança de turno dissiparam as trevas e trouxeram uma tremenda azáfama ao local onde me encontro que, visto à luz do dia, é completamente diferente.

Estou parqueado ao fundo de uma sala ampla (terá os seus 200 metros quadrados), pintada de cores claras; na qual, e isso é o mais chocante para quem repara, nada está encostado às paredes – há uma larga trincheira de vazio a toda a volta, de modo que as dez camas que conto na Unidade parecem ter sido desalojadas dos seus locais tradicionais por uma inundação, terramoto ou outra insubordinação telúrica. No centro da sala, quatro altaneiras colunas, encimadas no alto por um lintel e cingidas no solo por robustos balcões de madeira, delimitam o espaço que, no desvario de ontem à noite, me aparecia como um átrio futurista e por onde via aparecerem e desaparecerem pessoas. É a bancada de trabalho do pessoal de serviço! Na parede à minha direita, quase toda ela envidraçada e permitindo uma visão amalgamada de salas adjacentes, fica a porta de entrada, protegida por um corta-vento de duas folhas, e, de um lado e outro desta, uma fileira de mostradores sobre os quais repousam enormes máquinas rectangulares que, assim numa primeira impressão, me parecem analisadores de sangue automáticos.

Ao longo das três paredes restantes arrumam-se então as camas, separadas umas das outras por generosos metros quadrados e cada uma delas plantada à sombra de um descomunal braço articulado, o qual, embutido lá longe no tecto da sala, se precipita quase até ao nível do chão, onde se desdobra numa série de extremidades, aparentando um canivete suíço em plena demonstração de todos os acessórios. Cada um destes

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inverosímeis guindastes tem pintado, a meio do corpo cilíndrico esmaltado a branco, um algarismo identificador, o que faz com que as camas pareçam jangadas cromadas fundeadas ao longo de uma doca seca. Deduzo, pelo número 6 estampado no guindaste que domina a cama ao fundo dos meus pés e pelo 8 impresso no colocado à minha direita, que a trindade formada por mim, pela minha cama e pelo meu guindaste (que não vejo, mas sinto) não poderá ser outra se não a 7. Ou, para usar a terminologia que ouço ao pessoal quando querem designar a localização de algum doente, eu sou a unidade 7.

A minha ronda de reconhecimento é abruptamente interrompida pela chegada de dois jovens empregados auxiliares, um rapaz e uma rapariga, os quais, completamente abstraídos da minha existência, fazem a minha cama comigo lá dentro, conversando animadamente por cima de mim; enquanto num gesto largo e vincado que recorda uma coreografia de bandeiras da revolução cultural chinesa, retiram, de uma vezada, o lençol para o substituir por outro. Foi nesse breve momento em que nada me tapava, que reparei numa fita branca, semelhante à que na véspera descobrira no peito mas mais comprida, aposta ao longo da face interna da minha perna direita, e estendendo-se do joelho até ao calcanhar. “Que será?”, teria perguntado aos meus botões, caso possuísse algum. Deixo-os afastarem-se da cama e, resolvido a inventariar-me de uma ponta à outra, levanto com cuidado o lençol.

Da cinta para baixo, topei apenas com um tubo de algália e a tal fita branca que, pensando um pouco, deve corresponder a uma sutura de excisão da safena, o que significa que os tipos me fizeram, no mínimo, um duplo by-pass coronário: um arterial, usando a mamária interna; e outro venoso, utilizando um pedaço da safena interna, o grande vaso venoso que percorre todo a extensão dos membros inferiores (da anca ao pé) e costuma constituir, quando as suas válvulas se cansam, a principal causa do tormento conhecido por varizes.

Na minha metade superior, o caos é total e a profusão de tubos e fios justificavam um agente de trânsito ou, no mínimo, a cautela de um letreiro, dizendo: PERIGO, CORPO EM RECONSTRUÇÃO. Adicionando-se aos três tubos de drenagem que, saindo da parte inferior do tórax se perdem debaixo da cama, e ao penso cirúrgico que me atravessa do pescoço ao umbigo, posso ainda contabilizar, agarrados ao meu peito, um emaranhado de finos cabos plastificados que devem servir para que, algures num monitor, seja visível a actividade do meu recauchutado músculo cardíaco. Tenho também, uma mão travessa abaixo do mamilo esquerdo, um pequeno novelo de fios de metal (semelhantes às cordas mais finas de uma guitarra) cujas extremidades invisíveis, adivinho-o a medo, estão lá dentro, anzolados no coração, e as pontas visíveis, muito enroladinhas se encontram enfiadas num minúsculo tubo de vidro, seguro en su sítio graças a uma linha preta que me coseram na pele. Eu não quero pôr-me a ir por aí fora nas extrapolações, mas acho que se trata dos fios de um pacemaker provisório, que está aqui à mão de semear para, se alguma coisa falhar, fazerem uma ligação directa do meu motor à corrente eléctrica. É uma presença consoladora.

No peito, acho que é tudo. Quanto aos braços, vêem-se-me tubos de soro ligados a cada um deles e ainda um terceiro, de recheio encarnado, cuja outra extremidade termina num saco de plástico com a mesma cor suspeita: estou a ser alvo de uma transfusão e não me agrada nada, com os tempos que correm, a ideia de receber sangue de gente que não me foi apresentada. No pulso esquerdo tenho também um penso por onde se imiscui uma sonda que, dolorosamente, se enfia nas profundezas da minha carne e que, pela localização, deve terminar numa agulha espetada na artéria radial, um vaso que conduz o sangue oxigenado do braço para a mão e que os médicos gostam de, em situações destas, manter permanentemente picado para poderem medir o teor de gases no sangue arterial sempre que lhes apetecer. Ah, e é verdade – ia ficando de fora no que aos braços respeita –

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a carapuça luminosa no meu indicador, mas, se a ia ignorando, isso foi porque dessa já falei que chegasse ontem à noite.

E seria, finalmente, tudo, se, no interim, não tivesse descoberto a razão do intrigante chocalhar que acompanha fielmente cada movimento da minha cabeça e que é provocado pelo ritmado entrechocar dos 5 – dispositivos em plástico azul-bebé – 5, que ostento, uns por cima dos outros, cravados na jugular direita e irmanam o meu pescoço ao cachaço de qualquer touro da lezíria em tarde de Campo Pequeno.

Ouço música no ar! Alguém ligou o rádio e, ao reconhecer a canção, não posso impedir-me de sorrir pela coincidência:

Oh! no, not I; I’ll survive, I will survive... Então não é que é a Gloria Gaynor a cantar o velhinho I Will Survive?*

A enfermeira Marta apareceu por aqui outra vez e, depois de ter espreitado para baixo da minha cama, sentou-se a escrever numa mesinha que existe aos meus pés, aliás aos pés de todas as camas. Pergunto-lhe pelo pequeno almoço, pois estou roto de fome e vejo chegando bandejas para alguns dos outros hóspedes. Ela levantou a cabeça do que estava a fazer, arrebitou as sobrancelhas, sorriu-se, e informou:

“Para já não vai poder comer nada, sr. José; se tiver muita sede posso molhar-lhe os lábios.”

“Sr. José!?”, o meu primeiro nome (um nome pelo qual ninguém nunca me tratou) no melhor estilo TAP...; eu bem me parecia que estava num enquadramento meio aero-transportado. E aquela de me poder molhar os lábios, para aquele peditório já tinha dado!

Com o passar das horas o efeito da anestesia geral desvaneceu-se completamente e temo que a partir de agora fique fisicamente entregue a mim próprio, o que não é muito bom, pois começo a ter umas dores em crescendo na parte lateral do tórax. O que me dói, ao contrário do que suporia, não é a cicatriz da operação, mas sim um dos três tubos que tenho a saírem-me da parte inferior do peito; especificamente o tubo à esquerda de tudo, o que me atravessa as costelas e que, presumo, deve corresponder a um dreno pleural.

O tormento provocado por um dreno pleural é indescritível, ou antes, é horrível mas, talvez, descritível. A sensação é a de uma faca (não muito afiada) enfiada entre duas costelas e cujo cabo alguém roda com gosto cada vez que inspiramos, provocando uma dor grosseiramente aguda cada dois segundos. Paralelamente, fazendo companhia a esta dor existe um estado permanente de carne triturada, como se um estúpido rottweiler tivesse ferrado os dentes naquela zona e se recusasse a abri-los enquanto o dono não chega; negando-me a esperança de um possível alívio.

O cirurgião de serviço que, quando me queixei, acorreu à chamada da enfermeira Marta, conhecia bem o problema:

“Dreno pleural”, constatou, “dói que se farta!”. E, lacónico, virando-se para a Marta: “morfina”.

Heroína, morfina, codeína, petidina... Abençoados sejam os alcalóides do ópio, no caso concreto a morfina, por amordaçarem a dor, aplacarem a angústia e dissolverem a ansiedade. Não posso dizer que a dor tenha desaparecido completamente, mas recuou, quase de imediato, para um ponto da minha consciência onde ficou a rosnar numa de muita parra e pouca uva, permitindo-me regressar a uma bendita semi-normalidade dos sentidos.

Agora que estou calmo e visto não quererem dar-me de comer, só me resta continuar a investigação interrompida; entreter-me com o que se desenrola sob os meus exaustos e toldados olhos, na periferia dos meus atentíssimos pavilhões auriculares.

Somos nove doentes, deitados em camas estreitas, com a largura apenas necessária ao encaixilhar do nosso corpo. Camas cromadas, articuladas, segmentadas e flexíveis como centopeias, com protecções laterais; o, calculo, último berro do design em leitos * I Will Survive, canção de D. Fekaris e F. Perren, 1978.

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hospitalares, condizentes com o resto do equipamento desta enfermaria sofisticada e apetrechada como uma nave espacial, onde o único pormenor destoante são os chaços dos doentes. Pobres almas trajando ricamente. Todavia, sem falsa modéstia, e também sem nenhum orgulho, quero crer que sou o indivíduo em melhor condição dos que aqui se encontram. Pelo menos, e tirante o pescoço açaimado, mexo todas as partes do corpo, falo, estou consciente, participo – o que não se pode dizer da maioria dos meus colegas.

Mas não longe do enfermo quase perfeito, quase isolada do resto da sala e separada da minha por uma cama vazia, está o pior caso da Unidade de Cuidados Intensivos. É uma senhora, e chama a atenção o permanente corrupio à volta dela, que, para além de operada ao coração, padece de cancro em estado avançado, avançadíssimo. Não come, não se mexe, não fala, não reage, e o que resta do seu corpo vai-se liquefazendo para os lençóis, que as enfermeiras mudam com uma frequência impressionante, e para as toalhas, que elas, abnegadas lavadeiras, torcem como se as tivessem acabado de tirar de um tanque.

Virando a cara, noutra direcção e não muito longe de mim, deitado de costas, incomoda-me um homem numa agitação permanente, tentando levar umas mãos incertas à boca, num desadequado gesto para arrancar o grosso tubo de plástico canelado que tem enfiado pela goela abaixo e lhe mantém os pulmões convenientemente arejados. Na sua impotência, treme e agita as pernas finas em espasmos incongruentes, como se fosse uma rã espicaçada por electricidade. A enfermeira destacada para o vigiar, alertada pelos sons que se libertam do computador acoplado àquela unidade, aproxima-se da cama e, após consultar o monitor, ralha-lhe:

“Esteja quieto..., vá lá, tenha calma. Nós bem gostávamos de o poder desentubar, mas não dá: o senhor esquece-se de respirar!”

E, clic!, descobri o mistério dos plins. Os plins são, afinal, sinais sinteticamente emitidos pelos computadores residentes

nos guindastes a que estamos ligados e destinam-se a relatar, de um modo insinuantemente sonoro e instantâneo, as coordenadas vitais de cada um dos hóspedes da Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica. Eu emito os meus plins, tu emites os teus plins, ele emite os seus plins, e, o que é pior, todos nós ouvimos os plins uns dos outros. Os sons variam e, se tudo está bem e dentro do biologicamente previsto, manifestam-se esparsos e melodicamente suaves. Quando o doente se agita ou o seu metabolismo ou fisiologia resvalam para uma zona perigosa, os sons aceleram-se, angustiam-se no trinado e, é essa a primordial intenção, chamam a atenção de pessoal treinado para descodificar o seu significado. Um efeito secundário desta alarmante utilidade é a instabilidade e a confusão que os ruídos desencadeiam nos doentes conscientes.

Apercebo-me de tudo isto pelo padrão que vou estabelecendo entre a tonalidade e o ritmo dos plins e o repentino ar de cão de caça de uma das enfermeiras que, levantando a cabeça do que estava serenamente fazendo, se aproxima lesta do paciente de onde jorra o perturbado sinal (embora, admito, é para mim muito difícil perceber de onde brota determinado aviso, porque os sons emanam constantemente de todos os lados e produzem emaranhadas grinaldas sonoras que enchem o ar), junto do qual fica observando atentamente os dados inscritos no monitor; informação que, graças à combinação de um dedo e de um écran sensível a estímulos digitais, ela vai percorrendo e, se for caso disso, aprofundando, manipulando e corrigindo; recorrendo a rápidas análises de sangue ou à administração de um pingo disto ou uma dose daquilo, desiderato ao alcance de uma mão, pois cada um de nós está em completa comunhão física com a maquinaria à sombra da qual jaz.

Dizer completa comunhão física com as máquinas não é exagero, nem figura de estilo. Veja-se o meu caso, e todos estamos assim – há quem tenha até mais tubos de ligação do que eu. Sei que a finalidade de tanta fiarada e tubo não é essa, mas, de facto, eu não poderia fugir por muito que o quisesse ou tentasse. Estou completamente preso,

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manietado, literalmente amarrado pelo pescoço e, mesmo que não tivesse o esterno serrado ao meio, não me conseguiria sequer sentar; qual o quê – nem sequer virar de lado na cama! O meu raio de acção exprime-se em escassos centímetros. Mas esta comunhão com as máquinas não é somente física, é mais do que isso; complica-se também pela dependência que a nossa vida tem de cada tubo, fio ou agulha que entra ou sai de nós e que, muito prosaicamente, permite que, num corpo cheio de andaimes, luza uma anima. Estou amarrado a uma geringonça que me penetra, me mantém vivo e funcionante e que, em troca, se manifesta pondo a nu todas as minhas perdas e ganhos, todos os meus latidos e palpitações. Só no cinema tinha visto narrado e ilustrado algo tão perturbante como esta simbiose entre o mecânico e o biológico. E, claro, no cinema há um lençol a recordar-nos a fantasia. A gente raramente acredita quando vê a arte a imitar a vida.

O cirurgião de serviço à Unidade apareceu de novo e folheia o processo que está na mesinha encostada ao fundo da minha cama. Observo-o, internamente divertido com uma descoberta: o tipo é a cara chapada do Lou Reed, o cantor rock ou, fazendo justiça às próprias palavras de alguém de quem sempre fui fã, o “escritor apaixonado por uma guitarra eléctrica*”. Igualzinho..., a cara, os óculos, o modo de se mover; só não tem a expressão causticada e tensa do Lou Reed. Este tem um ar tranquilo e pachorrentamente gozão.

“Fibrilação ventricular!”, exclama como se assobiasse entre dentes, “você teve muita sorte...”

“É, não é?”, digo eu, blasé, de tão habituado a este comentário; “a esta hora já devia estar morto”.

“E como!”, deixa ele escapar pensativo, consultando os meus dados: “Você teve isto no dia dezassete, hoje são vinte e seis – são dez dias!” E olha para mim como imaginando aquilo em que eu me poderia ter transformado em dez dias de defunção.

Depois saiu do transe e sorriu, maroto: “Então, e essa dor?” Jogo à defesa: “Pelo menos por agora não me dói nada, dr.” “Vamos ver se lhe conseguimos tirar isso ainda hoje”, disse ele inclinando-se,

espremendo o dreno entre os dedos e analisando os coágulos de sangue agarrados na parede do tubo, “isto está praticamente seco”.

“Hoje, dr.?”, perguntei; mal podendo acreditar em tanta sorte e empurrando para segundo plano a questão do quanto me poderá custar a manobra de extrair do meu corpo uma coisa que dói tanto.

“Talvez, talvez; mas só lá para a noite”, respondeu. E foi-se a outras unidades, agitando, como se pedisse boleia, o polegar na direcção da Marta e deixando no ar o aviso:

“Mas olhe que para podermos fazer isso, elas vão passar o dia consigo às voltas; prepare-se...”

Gosto deste médico que me calhou em sorte e o mesmo parece passar-se com o pessoal que trabalha na Unidade, que se lhe refere e dirige num tom respeitador, mas, ao mesmo tempo, amistoso e muito à vontade; e ainda há bocado vi uma jovem enfermeira apoiar familiarmente um cotovelo no ombro dele, para assistir, sorridente e de camarote, a um pseudo-ralhete com que ele mimoseava uma colega dela.

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O meu vizinho mais próximo é o sr. Alberto, cuja cama se encontra perpendicular à minha, talvez a uns dois metros de distância. Nesta posição tenho uma boa perspectiva do sr. Alberto, que jaz, se exceptuarmos as fraldas e os tubos, completamente nu no seu

* Superstars: Andy Warhol e os Velvet Underground, Assírio & Alvim, 1992.

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leito. (Aliás, mais lençol menos lençol, estamos todos assim e eu desconheço o paradeiro das minhas cuecas desde que fui internado em Torres Vedras) O sr. Alberto é um bebé de uns sessenta e muitos anos e uma dor de cabeça para o pessoal da Unidade de Cuidados Intensivos, pois a única coisa que consegue mover é a expressão facial. O sr. Alberto não mexe os braços, nem as pernas, nem a cabeça e tem o teimoso hábito de se pôr a mascar no plástico da máscara de oxigénio, o que acaba por não ser nada bom para ele, porque, sistematicamente, esta acaba por lhe escorregar da boca e do nariz, ficando o sr. Alberto como um peixe fora d’água, a soprar uma saliva cheia de bolhas pela boca fora e a tornar-se vermelho como um sentido proibido. Completamente confinado ao meu poleiro, assisto aflito, sem nada poder fazer senão olhar e esperar que o surpreendam. Mas as enfermeiras estão vigilantes e a história acaba sempre bem, com o sr. Alberto a levar um terno e inútil raspanete. O sr. Alberto é uma das unidades que dá mais trabalho, porque é preciso virá-lo de posição com a regularidade de um frango no espeto e ele, pesado como é, não ajuda nada. É preciso ainda massajar-lhe frequentemente a pele para que não ganhe escaras e dar-lhe de comer à boca. Para além de sofrer do coração, o sr. Alberto é diabético e tem um temperamento dócil, que encanta o pessoal de todos os turnos. Eu cá acho-o parecido com um dos sete anões, aquele bonacheirão, a quem a Branca de Neve fazia festas na careca.

Antes de estar aqui, o sr. Alberto trabalhava na agricultura, pormenor que interceptei hoje de manhã, quando a fisioterapeuta insistia em ensinar-lhe uma respiração correcta:

“Meta o ar pelo nariz e sopre-o pela boca; é como se primeiro cheirasse uma flor e depois soprasse uma vela. Vá lá: cheirar a flor, soprar a vela; cheirar a flor, soprar a vela...”

O sr. Alberto tenta, exibindo um sorriso um pouco parado na face, mas o mais que consegue é encharcar o virtual pavio com as bolhas de saliva que sopra pela boca. A fisioterapeuta desiste e vai-lhe fazendo movimentos passivos com os braços, enquanto conversa com ele:

“Gostava de voltar para a sua terra?, gostava sr. Alberto?; e trabalhar outra vez no campo?”

E como o homem sorrisse mais nitidamente: “Ah, claro que gostava, não é? Mas é por isso que o senhor aqui está, foi isso que

lhe deu cabo do coração...” Acabei de almoçar como um nababo, sopa e maçã assada, e agora jibóio

preguiçosamente, entretendo os olhos com o que se passa em volta. Subiram a parte superior da cama ao sr. Alberto para lhe dar de almoçar. Ele lá

está, razoavelmente adornado sobre a esquerda, tombando sobre a jovem auxiliar que lhe vai contando coisas e metendo a sopa na boca, colher a colher, e limpando pacientemente o queixo. A rapariga é roliça e vistosa e o sr. Alberto, com a cabeça entornada no colo dela, olha-a de baixo para cima e sorri encantado.

Desvio o olhar, e reparo que entra na Unidade o sobrinho. O sobrinho é um senhor baixo que o pessoal deixa abusar do horário das visitas. Ele, no entanto, abusa pouco e de cada vez que vem, no mínimo duas vezes ao dia, vai pedir autorização à enfermeira chefe; licença para ir dar o almoço, ou o jantar, à tia. Depois dirige-se para o lavatório que há numa das paredes e lava as mãos com a precisão e a meticulosidade de um cirurgião. Vê-se que está habituado, que anda nisto há muito.

A tia está lá ao fundo, longe da unidade 7, no lado oposto da sala. Não lhe consigo ver a cara, nem me é possível observar a cena com a riqueza dos grandes-planos do presépio do sr. Alberto, mas sei que é velha e que o seu estado é ainda mais precário do que o do sr. Alberto. A tia apenas come; mecanicamente; não sorrindo, nem dando conta de nada do que se passa. E o sobrinho vem, todos os dias, dar-lhe de comer; disse à João

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que ela é o único parente que tem, mantém-se em Lisboa, onde esteve empregado, só para cumprir aquela tarefa.

O sobrinho traz uma caixinha de plástico com comida, provavelmente sopa; daqui não consigo ver o que é. A cama da tia foi subida, até as duas metades formarem praticamente um ângulo recto e a senhora está como que suspensa pelo tronco (penso que deve estar amarrada à cama para se manter naquela posição erecta), com a cabeça a descair-lhe solta sobre o pescoço. Lentamente, carinhosamente, o sobrinho vai-lhe levando a colher à boca, num processo que vai demorar uma eternidade até estar concluído. E fala, e fala; fala com a sua velha tia. Eu não ouço nada, daqui só percebo as tonalidades gerais, intensas e soturnamente belas, daquele quadro que me recorda uma descida da cruz. Sem aviso, os olhos enchem-se-me de lágrimas e o meu peito é sacudido pelo terramoto iminente de uma salva de soluços que, envergonhadamente, faço por estancar. Mas ninguém deu conta de nada e aquele pranto não será contabilizado no balanço das minhas perdas de líquidos do dia.

“Sr. José”, assusta-me a Marta que, sem aviso, irrompeu no meu território, “vamos lá virar um bocado esse corpo. Ordens do dr. Luís Caniço.”

A João, que chegou e está aqui sentada ao meu lado, diz-me que são quatro da

tarde. Serão... Agora sinto-me bem, depois de ter passado duas estupidamente inúteis e horrorosas perpetuidades cheio de dores. Pouco após o almoço, o efeito da morfina passou e a dor começou a avisar que ia voltar; primeiro latindo lá do fundo, do local para onde se retirara, depois aproximando-se em crescendo, às guinadas, até substituir todo o meu ser consciente e me transformar num gemido.

Uma médica deambulava pelo serviço, de unidade em unidade. Quando chegou à minha contei-lhe da minha aflição e supliquei por um bálsamo. Ela anuiu prontamente e instruiu a Marta para me dar duas ampolas de paracetamol “endovenosas”.

“Paracetamol!”, exasperei-me em silêncio, “meu Deus, esta gaja não faz mesmo ideia com que tipo de dor está a lidar!”. Medicar uma fera daquelas com paracetamol (ou com aspirina – o que seria equivalente) era como confundir um casaco de peles com o leopardo que lhe serviu de estofo e enfrentar o felino com um cartão de crédito. Mas que podia eu fazer? Lá engoli os Ben-U-Ron e fiquei a observar a inutilidade da água-mole em pedra-dura: nada – a dor não pestanejou sequer. Aguentei o que pude, o que achei lógico para considerarem a hipótese de me voltarem a meter qualquer coisinha no bucho e chamei pela Marta.

“Marta, vai ter que me dar morfina; isto não me fez nada...” Ela fitou-me e percebi-lhe indecisão no olhar. Foi aconselhar-se com a enfermeira

da unidade mais próxima. Esta largou o que estava a fazer e veio ver o meu dreno; olhou para mim desconfiada, como se eu tivesse acabado de dar um salto do Casal Ventoso até ali e me tivesse enfiado debaixo dos lençóis, de sapatos e tudo, à espera da próxima rodada de seringas! Dirigi-lhe o meu olhar mais suplicante. Não disse nada e afastou-se, levando a Marta. Passado poucos instantes vi a Marta ao telefone. Quando voltou disse-me:

“Vou-lhe pôr uma dose de morfina, em perfusão.” “Deus lhe pague”, agradeci, devoto. E agora diz a João que são quatro da tarde, hora de pão com marmelada, e eu

estou bem, chapinhando na bem-aventurança cálida e dourada da minha segunda dose de morfina; passeando um olhar lento pelo salão.

“Olhe, um hipopótamo e um galo!”, digo, de súbito à João, não acreditando no que vêem os meus olhos.

Ela vira a cabeça na direcção do meu olhar e, captando a alegoria, ri-se. Pela porta da Unidade acabaram de entrar duas empregadas auxiliares, trajando batas verde-hospital.

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Uma delas é uma mulata dourada e possante, de frisada cabeleira longa apartada ao meio, e um doce e tímido sorriso nos lábios grossos; encanto que lhe ilumina toda a face e o caramelo dos olhos. A outra, o galo, é pequenina, seca de carnes; e traz o cabelo domado na nuca pela mola de uma enorme travessa, por entre cujos temíveis dentes de plástico se escapa, rebelde e altiva, uma crista triunfante de cabelo negro, liso e brilhante. A mulata rola pelo salão num movimento uníssono, imponente como um paquete, enquanto, a seu lado, o galo move a cabeça sem parar, em movimentos rápidos e curtos, mirando do alto do grácil pescoço o mundo à sua volta com uns olhos vivos de cor verde acinzentada. É linda e poderia substituir com dignidade o galináceo de Barcelos como símbolo nacional.

Uns minutos depois o galo vem, com umas peculiaridades fonéticas no falar de travo Beirão, perguntar o que quero lanchar. Desconfiado da generosidade, pergunto-lhe o que posso comer. Já sabia; quase nada: um iogurte e é um pau! Quando me traz o iogurte, aproveito para meter conversa:

“Você não é de Lisboa, pois não?... É da Beira-alta?” “Beira-baixa...”, retorquiu, com um sorriso orgulhoso e um brilho suplementar nos

olhos verdes, “sou da Sertã”. Estou outra vez sozinho. A João foi-se embora no fim do meu lanche e depois

apareceu, para uma visita curta e de poucas falas, a Ana Maria, que veio só olhar para mim. As visitas aqui são quase todas muito rápidas; não que o pessoal de serviço as enxote, mas mais porque os visitantes não sabem o que dizer, o que fazer, enquanto estão aqui dentro e, calculo, devem todos, independentemente do muito que amem quem visitam, estar ansiosos por se porem ao fresco; por respirar de novo o familiar ar poluído lá de fora. Tenho estado aqui a observá-las: atravessam rigidamente, vindas da porta de entrada, o espaço que as separa do doente que vem visitar e, aí chegadas, ficam, depois do beijo ou do afago de uma mão na testa ou no cabelo do acamado, sem saberem como comportar-se. Frequentemente, ficam mudas; de pé ao lado da cama, sem coragem para olharem muito intensamente o familiar, e só voltam a falar para desfecharem uma despedida: “adeus, meu pai; até amanhã...”. E saem, mais depressa do que entraram; e o todo parece o ritual de visita a um defunto que não nos é muito próximo. Assisto, embaraçado, sem tomar partido, sem saber o que pensar; sentindo, confusamente, compaixão por todos eles, compaixão por todos nós.

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A enfermeira de apoio à unidade 6 (o sr. Alberto), aquela com que a Marta se foi aconselhar a propósito das minhas dores, chama-se Patrícia, deve andar a começar a escorregar em direcção aos trinta e é, para o bem ou para o mal (ou seja: pelos padrões de Hollywood), uma boneca. É loura, tem uns olhos azuis intensos como um céu de Verão – perdendo-se a gente neles seria possível ouvir o cantar das cigarras – e uma boca redonda e expressiva como a de um peixinho de aquário. A pele, quartzo rosa sob claras em castelo, uma promessa de macieza igual à da neve acabada de cair. Ao invés da maior parte das colegas, não veste bata e move-se, em passinhos travados de japonesa, pelo serviço numas calças justas e numa blusa, ambas de cor branca, como se estivesse permanentemente num plateau, perante câmaras de filmar.

Há pouco, imediatamente antes da João sair e porque demonstráramos curiosidade, a enfermeira Patrícia esteve a contar-nos pormenores do funcionamento da Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica, como se fosse cicerone de uma visita guiada. Com amor, falou-nos do seu trabalho; das rotinas do Serviço; da serventia de cada máquina; dos doentes internados.

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“Mas deve morrer aqui muita gente...”, afirmou a certo ponto um de nós. “Não, olhe que não”, cortou ela, quase escandalizada com a insinuação, “aqui não

morre ninguém facilmente!” E eu a achar que sim, que ela tinha toda a razão: estamos todos tão unha com

carne imbricados nas máquinas que os nossos corpos quase perderam a liberdade de darem o último suspiro sem licença. E a licença não será dada: graças a umas gotas disto e daquilo, cuidadosamente monitorizadas por computador, o derradeiro suspiro reverterá em penúltimo. E nenhum de nós dará conta sequer do perigo que correu, nada transparecerá; pois de cada vez que o nosso computador solta um plim um anjo da guarda aproxima-se e olha o monitor sem pestanejar, com a mesma fleuma e olhar desinteressado que ostentaria se estivesse a assistir à mensagem de Ano Novo do Presidente da República.

Agora a Unidade acalmou, as visitas terminaram, e um silêncio relativo impera. Em frente a mim, e com o necessário auxílio de uma colega, a enfermeira Patrícia acabou de virar o sr. Alberto de lado e massaja-lhe o corpo com aplicação. O sr. Alberto está neste momento de frente para mim e vejo-lhe a expressão em grande plano: o branco-amarelado do cabelo ralo; a face inexpressiva, pontuada por um par de olhos azul-deslavado de onde se pendura uma lágrima. E a enfermeira Patrícia continua a mexer no corpo do sr. Alberto como se amassasse pão, como se valesse a pena, como se de algum modo esperasse que ele se levante e caminhe antes do fim do seu turno.

Aninhado na unidade 7 eu desfruto de tudo à bruta, com precisão e sem me poder negar: A imensa mole flácida vertendo em pregas da cama e sobre ela, apaixonadamente debruçada e sussurrando palavras que não distingo, a enfermeira Patrícia, que entretanto acabou ou desistiu da massagem e vai acarinhando aquele destroço com um sorriso terno na cara, os intensos olhos azuis meigamente pendendo sobre ele. Bondade que o sr. Alberto, de costas para ela, não pode ver. Nas lágrimas e no ranho que, de novo, me invadem o nariz e a boca vou mastigando pensamentos práticos de que “esta gente devia ser paga a peso de ouro”, mas é mais do que isso, porque de facto estou a assistir, num ermo descampado da vida, aos gestos que produzem ouro; um ouro volátil que se vê mas não se deixa pesar. E essa visão produz um sentimento quase demolidor que me reconcilia com o mundo. Meu Deus!, estou emocionalmente um frangalho, qualquer coisinha me atira para um vale de lágrimas! Eu conheço isto, até dos compêndios, é a famosa labilidade emocional das doenças pesadas, muito falada a propósito dos acidentes vasculares cerebrais. E já tinha visto este filme, três anos antes, por altura do meu cancro. Parecia um copo cheio de mais, emocionava-me com tudo e, à mínima, zás: os olhos rasos de água. A inundação chegava a acontecer sem razão aparente: uma vez, num restaurante, a jantar com amigos, e, sem aviso prévio, quase serenamente, os meus olhos encheram-se de lágrimas. Perante o flagrante de olhos molhados e congestionados, cheguei a fingir, a levar a mão à testa e, fungando:

“Acho que estou a chocar uma gripe; sinto-me quente, ardem-me os olhos.” Ainda não recuperei do meu nariz ranhoso quando o hipopótamo, com a

majestade de quem transporta uma cabeça de baixela, se acerca de mim com a bandeja do jantar.

“Aqui janta-se cedo”, comento para disfarçar. Ela sorri ainda mais que o seu estado natural e, pousando o tabuleiro na mesinha

aos meus pés, começa a subir a minha cama com cuidado. Seja ela a de mulheres ou de outra marca qualquer, eu gosto muito da beleza. A

beleza tem sido o meu principal sustento na doença.

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Despachado o jantar dos doentes que podem jantar, as enfermeiras começam a

pensar no delas. Preparam-se para encomendá-lo ao serviço de entregas de um restaurante chinês das redondezas e, enquanto as outras ouvem atentamente, uma lê, em voz sonora e através de um intercomunicador, a ementa a uma colega que se encontra algures numa das salas de isolamento. Alguém interrompe a leitura para avisar:

“Eu, se fosse a vocês, não mandava vir crepes; vão chegar cá com a massa como se fosse borracha!”

“Chut, está calada; ninguém te perguntou nada”, repreendem as outras no meio de risadas.

O processo é lento e perpassado de orientais avanços e recuos, pois não está a ser fácil porem-se de acordo quanto aos pratos e acompanhamentos que vão partilhar. Uma declara não gostar de chao-ming e outra não apreciar o que considera o habitual excesso de cebola do chop-suey de porco....

“Coca-cola?, a acompanhar comida chinesa!?”, escandaliza-se uma mais purista. “Muito pior é beber chá – onde é que já se viu acompanhar um jantar a chá?”,

abespinha-se uma das mais novas. Depois de uma grande discussão, e uma zanga iminente, a escolha está pronta e vai

custar mil escudos por cabeça. Abrem-se carteiras, combinam-se empréstimos; moedas tilintam. Gostaria de poder jantar com elas, confesso; gostaria de lhes oferecer aquele jantar, mas, neste filme, eu não tenho palavra na matéria, nem sequer umas reles cuecas onde pudesse esconder uma nota de banco. Nã..., neste filme eu não tenho cobertura.

Distraído com o jantar das enfermeiras, entretido a observar como, em minutos, montaram e desmontaram no centro de um cenário tão tecnologicamente sofisticado um festivo ambiente de picnic, nem me dei conta que as janelas voltaram a ganhar a mesma tonalidade alaranjada de ontem e que, imperceptivelmente, as luzes do tecto se foram acendendo. É outra vez noite na Unidade de Cuidados Intensivos.

A Marta está sentada aos meus pés, escrevendo nas colunas do enorme papel que tem sobre a mesa. De vez em quando olha para o monitor por cima de mim e regista mais qualquer coisa. Daqui vejo-a muito distintamente e acho-lhe um ar terrível. Envelheceu dez anos desde manhã, o olhar afundado na gruta de umas imensas olheiras castanho-equimose; até as sobrancelhas parecem ter descaído. Tem a boca apertada enquanto trabalha e eu percebo que está a fazer um grande esforço para levar a missão até ao fim. Está ali há umas quinze horas e vai voltar no dia seguinte às oito, para fazer o turno de Domingo de manhã!

Às tantas, e como aconteceu constantemente durante a jornada, alguém a interpela lá do meio da sala; nada de especial, uma simples pergunta, mas que agora, caída com estrépito no meio do cansaço, desfaz o seu frágil equilíbrio.

“Não falem comigo”, grita ela, rouca e desvairada; os grandes olhos castanhos enchendo-se de lágrimas.

Depois olhou para mim, embaraçada pelo excesso da reacção, pelas lágrimas e pela minha proximidade de espectador atento. Sorrio-lhe o mais Xanax dos meus sorrisos e cicio: “Há dias em que a gente não se devia levantar da cama, não é?” Ela concordou com a cabeça, fez tremeluzir na face cansada um sorriso fininho e continuou a escrever aplicadamente o meu diário.

Felizmente, um a um, começam a chegar os elementos do turno da noite. Cumprimentam e vão ficando na conversa, às vezes voltam a sair; regressam. A maior parte são, como de costume, mulheres; há um ou outro homem, raro. Inesperadamente, vejo juntar-se ao grupo uma visão, como diria, referindo-se a mulheres bonitas, o António

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Luís, meu colega de caserna no Hospital de Torres Vedras. Morena, é a palavra de ordem. Cabeleira farta e negra pelas costas abaixo, esculpida a gel em ondas largas; uma pequena travessa de plástico azul-petróleo em forma de andorinha, avultando como uma jóia naquele negrume, tentando com dificuldade abraçar e suspender uma braçada capilar ao nível da nuca. Moreníssima; o tom trigueiro da pele contrastando deliciosamente na bata branca e justa de mangas curtas, com o branco esplêndido dos dentes que, juntamente com uns zigomas levemente salientes, lhe tornam o sorriso notável a seis metros de distância. Um acontecimento, digno de uma noite de Sábado, na Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica. Processa-se agora a clássica reunião de passagem de turno, em que cada uma das enfermeiras do turno cessante vai resumindo a história e o estado actual do doente (ou doentes) a seu cargo:

“Na unidade 1 temos o senhor...” Não ouço bem tudo o que dizem, estou longe de mais, mas aguardo com ansiedade que chegue a vez da Marta resumir a unidade 7. A minha vez chega e sou apresentado de um modo lisonjeiro, que me enche de orgulho; como se a Marta estivesse a defender as minhas cores: “Na unidade 7 está o sr. José, foi operado ontem à tarde...., etc.; situação estável, sem complicações a registar.”

Às apresentações dos doentes segue-se a decisão de quem fica com quem e eu não consigo deixar, como se estivesse num concurso da televisão, de acompanhar com toda a expectativa o meu sorteio.

“Meu Deus, faz com que me calhe a morena”, invoquei, na esperança de poder usufruir a visão com maior intimidade.

E Deus, que é grande, foi também generoso. Ela ficou com a unidade 7 (uma das que dava menos trabalho) e eu quase gritei do meu leito de inválido: “Yeeessss...”

Brevemente, a Marta veio tratar das apresentações: “Este é o sr. José; e esta é a enfermeira Débora, que vai ficar a tomar conta de si

esta noite.” Ao perto, a visão era igualmente terrífica (eventualmente forte em demasia para um

tipo num estado como o meu, hipersensível e com o bucho atestado de morfina), sublinhada pelo inebriante odor que se deslocava à sua volta de cada vez que ela efectuava um gesto ou um movimento. Um belo perfume (talvez mais uma água de colónia) no seu bouquet de travo fresco mas, simultaneamente, detentor da poderosa intensidade de uma qualquer insintetizável alfazema tropical.

E assim foi a tenra noite de Verão evoluindo: a Marta foi dormir, eu mirava o que se passava, e a aveludada criatura cirandava por ali, um perpétuo sorriso estampado no rosto.

Entretido, ouvi interessadíssimo as entusiasmadas confidências da enfermeira Débora sobre o seu casamento, marcado para Setembro, e não me foi difícil teletransportá-la de imediato para Bora Bora, uma coroa de flores exóticas pendurada no pescoço, e vislumbrá-la a esparrinhar água tépida em pocinhas de coral, sob uma lua de mel.

O devaneio foi-me interrompido por uma punhalada nas costelas: lá estava a dor outra vez a regressar. Solicitei a sereia, para a pôr ao corrente dos pormenores sobre o maldito tubo:

“Ouça, o dr. Luís Caniço prometeu-me que talvez ainda me retirassem hoje o dreno pleural.”

Ela fitou-me, surpreendida, fosse pelo tom técnico dos termos ou, quiçá, pelo inusitado de um tal procedimento a uma hora daquelas.

“Ah sim?”

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“Sim. Passei o dia a ser virado e espremido... Isto está completamente seco, ora veja.”

Com um ar pouco entusiasmado ela espreitou o dreno e afastou-se em direcção ao quartel-general. Fiquei à espera. Passado algum tempo voltou, o encantador sorriso afivelado.

“Lamento, mas não é hoje que lhe vamos tirar isso; o médico diz que é melhor ficar para amanhã.”

Embatuquei; emurcheci. Passara todo o dia agarrado à ideia de que me livraria daquela chaga, que não ia precisar de mais morfina para passar umas horas em sossego – para falar verdade a morfina contribuía para um estado de euforia um pouco cansativo e para uma sensibilidade exagerada, de dois bicos: boa e má, conforme os estímulos, consoante as horas. Desanimado, deixei cair as pálpebras, como se esse simples gesto pudesse arrastar um sono redentor, fizesse saltar as horas em direcção ao futuro.

Plim, plim; plim-plim-plim; pliiim... Como na selva logo após o sol posto, agora que as luzes se apagaram e voltámos a

ficar mergulhados no limbo espectral de ontem à noite, os ruídos libertaram-se e os avisos sonoros dos computadores voltaram a atacar em força. Não é que durante o dia tenham parado, ou sequer abrandado, mas com a noite parecem ter ganho uma autonomia, uma intensidade e uma presença que, à luz do dia, se amortecia no ambiente geral da Unidade (eu, pelo menos, estive largas horas sem lhes ligar, sem os ouvir). Ou será que todos nós, os que jazemos nestas camas, nos afligimos com o chegar da noite e o nosso ritmo biológico, através dos sensores que nos ligam às máquinas, traduz sonoramente o nosso desconforto, o nosso medo? Não sei, mas a espessura do volume mexe comigo.

Ao meu lado, o sr. Alberto migrou do seu contorno humano para o de uma encerada e lívida peça de museu, secção antigo Egipto. Mais ao longe, o camarada que se esquece de respirar estremece os seus espasmos de rã a uma tonalidade violácea, o tubo canelado do ventilador prolongando-lhe o queixo ao estilo da barbicha mortuária do Tutankamon. Ao fundo, a unidade da “tia” está imersa em sombra, como se ela, sob o seu embondeiro de frascos e seringas, se tivesse dissolvido na aguada branco-esverdeada dos lençóis. Ainda lá estará amanhã, quando o sobrinho lhe vier dar a sopa? Viro a cara para a direita e o meu pescoço chocalha como uma cascavel de plástico: não quero ver, mas não me socorre em nada cerrar os olhos, porque fechá-los amplifica a audição e o pior de tudo isto são os plins que, cada vez mais alto, pingam, ecoam, gotejam sem parar.

Repete-se-me a sensação de que vou mudando ao longo da sala e tanto parece que estou encostado cá ao fundo, no meu devido lugar; como a meio; ou lá à frente, à beira do palco. A realidade tornou-se movediça e sinto-me como se estivesse aprisionado numa daquelas esferográficas (recordação de Fátima) que, quando se inclinam, fazem surgir um inesperado e diminuto andor que, num silêncio de pesa-papéis, escorrega até ao bico. Preferia não me mover pelo espaço fora: esta sensação confunde-me e assusta-me, sobretudo porque me força a invadir o espaço dos outros doentes e não me permite um ponto de vista constante, centrado em mim.

Plim, plim, Pliiim, pliiim-pliiiim-PLIM-PLIIM... Alguma coisa de muito grave se passa! Sem razão aparente, os sinais sonoros

dispararam e o ar está saturado de apitos e silvos que vêm de todas as direcções. Já pouco se ouvem os plins musicais; o tom geral dos sons é angustiado e evoluiu para uma babel que abarca o ameaçador zunido urbano das viaturas policiais, o troar disfónico das roncas dos faróis; o rouco silvo de alarme que, nos filmes de ficção científica, avisam a heroína em apuros que a estação espacial vai explodir não tarda um fósforo. O pessoal de serviço está atrapalhado: vejo as enfermeiras correrem de um lado para o outro, espreitando com ânsia nos monitores dos computadores os valores vitais de cada um dos doentes; tocando freneticamente os écrans em instruções digitais, cruzando informações rápidas.

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Eu não escapo à vigilância. A enfermeira Débora já aqui veio duas vezes nos últimos dez minutos. Olha para o monitor por cima da minha cabeça, olha para a minha cara, baixou-se e espreitou debaixo da cama.

“Isto sou eu”, convenço-me, “sou eu que estou a provocar esta hecatombe sonora, esta agitação”. Sinto o coração a galope no peito e tento estabelecer um paralelismo entre a sua batida e os plins que andam pelo ar. Não há dúvida. Sou eu! Cada vez que respiro mais fundo, que me mexo, que o meu coração se contrai, os sinais sonoros disparam em consonância. Sou eu... Sinto-me encharcar em suor, primeiro quente, depois gelado. Sou eu: não o consigo apurar (não tenho relógio, não chego facilmente com uma mão à outra mão), mas o meu pulso bate completamente descontrolado, devo estar prestes a estourar...

“É melhor chamar alguém”, ouço alguém dizer não muito longe. Tento acalmar-me, tento domar os movimentos respiratórios e, logo que o

consigo, faço um sinal à enfermeira Débora. Ela aproxima-se; acho-lhe um ar apreensivo. “Que se passa?”, pergunto-lhe. “Há alguma coisa que está a correr mal, não é?” “Não se passa nada de especial”, responde, olhando-me com um olhar sombrio,

“tente descansar”. “Ouça”, digo-lhe em desespero de causa, “sou médico e percebo que está a

acontecer alguma coisa grave; se é comigo diga-mo, por favor, tenho o direito de o saber”. Ela fita-me com um ar estranho e afasta-se, sem palavra. Algum tempo depois

volta com uma colega que, pela expressão fechada, já deve estar a par das minhas pretensões, da minha intromissão na rotina da Unidade.

“Então, o que se passa?”, pergunta-me, ríspida. Disparo, de rajada: “O que se passa é que há qualquer coisa que está a correr mal com um dos doentes

– bem vos vejo a correr aí de um lado para o outro, a dizer que é preciso chamar alguém – e eu quero saber se tem a ver comigo. Sou médico, podem-mo dizer à vontade; eu vou entender, não mo podem esconder.”

“Não é nada, esteja calmo; não é nada consigo. Foi um doente, diabético, que descompensou, mas já está tudo controlado... Não é nada consigo; oxalá estivessem todos tão bem como o senhor!”

E sorriu-me, em amarelo. Acalmei um pouco, mas não o suficiente. Como podia ter a certeza que não era nada comigo?, que afinal o problema era com o sr. Alberto, que me parecia tão tranquilo, tão quietinho, na cama ao lado!?

“Porque é que não tenta dormir?”, sugere-me a Débora num tom tenso e um tanto zangado.

“Quem me dera”, respondo-lhe, pensando por andará o sorriso dela, “mas como é que acha que vou conseguir dormir no meio desta balbúrdia?”

“Quer que lhe tente arranjar qualquer coisa para ajudar?” Quis e ela regressou com um comprimido. “O que é?, o que me vai dar?” “Lorenin...” “De quanto?” (Quase ouvi o suspiro mental que ela deu.) “Um miligrama...” “Um miligrama? Isso não me vai fazer nada! Não me arranja, ao menos, um de

2,5?” Ela lá foi, perguntar a uma qualquer entidade misteriosa o que fazer ao meu

pedido. Mas a entidade misteriosa achou que não e eu tive que me calar com o que me deram. Ninguém me ia dar mais nada nessa noite.

Chupando o Lorenin e obcecado pela ideia de que, pelo menos, não ia morrer sem dar luta, tentei dar-me uma ajuda, um pouco à toa, experimentando ideias avulsas a que me pudesse agarrar e me trouxessem algum consolo; pegando-lhes e largando-as, à medida que

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irrompiam e desfilavam pelo meu pensamento, ao jeito de quem, em frente a um espelho e já atrasado para um jantar à luz da vela, procura uma roupa que lhe assente bem ou, minimamente, não o deixe ficar mal.

“Não vou morrer hoje à noite; seria ridículo depois de tudo por que já consegui passar”, ruminava como quem conta carneiros, “hei-de sair vivo desta espelunca; hei-de voltar lá fora”.

E daquele primário e irracional modo – murmurando ininterruptas palavras de amor a um cavalo selvagem a que, prudentemente, ia acariciando a crina – fui subindo pelo lombo daquele pânico e, devagar muito devagarinho, abracei-me ao seu instável pescoço para não cair. Ele empinou-se ainda durante longo tempo, ou a mim mo pareceu, mas eu, de olhos fechados e mente vazia, deixei-me ir, sem protestar, sem oferecer resistência, pelas inóspitas veredas que ele decidiu atravessar, até que, tão arrasado quanto eu, parou.

De vez em quando, na periferia da minha palpitação, sentia a incorpórea deslocação de atmosfera que acompanha a aproximação cuidadosa de alguém e, por uma fenda microscópica das minhas pestanas cerradas, controlava o que seria: claro que, invariavelmente, e que bom voltar ao mundo do previsível, era uma das enfermeiras a espreitar a evolução do impaciente paciente. Às vezes a visita à minha cama era da enfermeira Débora, mas para o saber eu não precisava sequer de abrir os olhos, pois um bálsamo estonteante anunciava-me, com confortável antecedência, a sua presença. Numa dessas silentes visitas, já ela se preparava para, aliviada, voltar costas e consolidar a convicção que eu descansava em paz, não resisti à tentação de um convívio e, abrindo os olhos, perguntei: “Sabe que horas são?”

“Já passa das cinco da manhã.” “Tão tarde!?”, espantei-me. “Pois é, tá a ver?! Tente dormir...”

19

Devo ter dormido, se é que dormi, aí uma hora; mas, fosse sono ou apenas estupor, foi o suficiente para quebrar o novelo de terror de ontem à noite, porque, entretanto, a luz raiou e tudo voltou a adquirir um ar banal.

Principalmente, acordei vivo e, se tudo correr bem, hoje, Domingo, vou sair daqui. Não sei para onde me vão mandar, nem isso me preocupa, mas vou sair daqui, por aquela porta ali ao fundo.... Se tiver sorte (não quero garanti-lo) não passarei outra noite nesta plataforma intergaláctica, neste ambiente de andróides. A enfermeira Débora, que amanheceu com um ar um tanto ressacado, já andou por aqui às voltas, mas tem-me tratado com uma certa frieza. Não a censuro (eu fui um factor extra de stress numa noite que, para elas, não foi nada fácil), assim como não lhe levei a mal o tom um nada sarcástico com que me passou à enfermeira que a vai substituir: “Aqui tens o sr. José que, ao contrário do que ele imaginou ontem à noite, está bastante bem.” E foi-se, o meu vulcão extinto. A nova enfermeira chama-se Beatriz, é loura, e perscrutando-me com uns olhos azul-diluído, de tamanho exagerado pelas lentes dos óculos, entabulou conversa: “Afinal, o que é que se passou ontem à noite?” Resumi-lhe o principal, enquanto ela me ia esfregando o corpo com compressas tépidas: os plins; o descontrole diabético do sr. Alberto; o nervosismo do pessoal; o meu medo de que tudo aquilo fosse comigo.

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“Não vejo nada de estranho na sua reacção”, disse ela com simplicidade, “isto tudo pode ser bastante assustador.” Há, novamente, música no ar e a enfermeira Beatriz vai trocando impressões melómanas com os colegas. Agora toca uma canção romântica, daquelas de faca e alguidar e cantor de voz enrouquecida, e ela, sem interromper a minha barrela, acompanha a letra, olhando para um dos colegas de turno e, revirando os olhos para cima, suspira e confidencia-lhe:

“Esta música mata-me...” Para além de perspicaz e romântica, a enfermeira Beatriz é uma óptima profissional que desempenha todas as etapas das suas tarefas com pormenor e rigor, explicando-me com detalhe e prazer o que vai fazer para me pôr pronto a ir embora da Unidade.

“Digam o que disseram”, filosofa ela aplicada a embeber uma compressa com éter, “o modo como dói menos ainda é arrancar tudo de um puxão só”.

No ar à minha volta paira um forte odor a éter e, imagino pelo que me vai custando cada adesivo descolado, um rasto de pêlo desraizado. (Não sei se concordo com a teoria da Beatriz.) Aproxima-se o grande momento: já nada tenho a atravessar-me o corpo senão os três drenos que colectam o lixo que babou da cirurgia e os fios eléctricos do pacemaker. A enfermeira Beatriz foi chamar o Lou Reed que, muito bem disposto, se prepara para me despachar dali para fora. “Vamos então livrá-lo disto...”, diz.

Os drenos abdominais saem com relativa facilidade e sem magoar nada de especial. Quando cada um deles está cá fora, o médico ata a linha que estava já preparada na minha pele para dar o sumiço final naquele buraco. Falta apenas o dreno que está enfiado entre as costelas e, antes de começar a puxar por ele, o Lou avisa: “Este aqui; você só não vai voar com dores porque não tem asas.” E aconselha-me: “Inspire profundamente e depois vá soprando o ar devagar, à medida que eu puxo.” Aconteceu exactamente como ele tinha dito: o tubo agarrou-se à carne o que pôde (estava cheio de aderências aos tecidos onde estava enfiado), mas o médico não lhe deu tréguas e extraiu-o com um único e potente gesto. Eu, na realidade, não voei, mas, já o tubo estava cá fora, e ainda estava a soprar ar como se estivesse na aflição de ter colada entre os dedos uma castanha assada acabada de sair do fogareiro. Mas, surpreendentemente, mal aquele desgraçado tubo, que me condenara ao inferno nas últimas 48 horas e que fôra a minha obsessão, saiu, todo o mal desapareceu, como se nunca tivesse existido. A enfermeira Beatriz dá-me como pronto para desancorar da Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Torácica. Arranjaram-me um pijama verde-alface-desidratado, umas pantufas descartáveis tipo japonês (como aquelas que nos oferecem nos voos de longo curso), ajudaram-me a vestir e sentaram-me com todos os cuidados numa cadeira de rodas, pois eu, descobri-o espantado, não me aguento nas canetas.

Mas surgiu um problema de última hora que a enfermeira Beatriz vem, apoquentada, expor ao Lou Reed.

“Dr. Luís, não há vagas na enfermaria de Cirurgia Cardiotorácica...” Mestre Lou coça a cabeça mas não se atrapalha e, afastando-se calmamente nas

suas socas de trabalho, atraca-se ao telefone mais próximo. Durante o impasse sou visitado pela fisioterapeuta que já conheço de vista, do

acompanhamento que costuma dar ao meu vizinho sr. Alberto. Vem-me recomendar e ensinar os exercícios respiratórios do “cheirar a flor” e “soprar a vela”.

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“É muito importante que os pratique nestes primeiros dias”, aconselha ela com uma veemência contagiosa, “melhoram a sua circulação e evitam problemas pulmonares. Vá lá, vamos treinar um pouco.”

A minha flor cheira a éter, ninguém me bate palmas quando apago a vela, mas, tentando portar-me como um recruta exemplar, reproduzo o melhor que posso as instruções.

“Ok, sr. José, por agora chega. Depois há-de passar pela enfermaria uma colega minha, que lhe vai ensinar mais alguns exercícios.”

Sinto-me excitado. Tudo, profissionais e procedimentos, se concentra e afadiga em mim, o que sublinha a minha partida iminente: acabaram agora mesmo de me encaixar entre as costas e o espaldar de lona da cadeira de rodas um maço de alentados envelopes pardos que, calculo, contêm as radiografias e os outros exames que me foram fazendo ao longo do tempo.

O Lou Reed aproxima-se. Vem, suspeito, despedir-me: “Está tudo arranjado. Você vai voltar lá para baixo, para a Unidade de Cardiologia, para a cama onde já esteve.”

Cá vou eu a toda a velocidade, conduzido pela enfermeira Beatriz, pela sala fora; em direcção à inacessível porta que, afinal, se deixa atravessar com a maior das facilidades! Já está e agora existe um corredor com portas de um lado e outro, portas que correspondem à Unidade Infantil e aos quartos de isolamento. De uma delas sai de repente a Marta, que faz travar a cadeira de rodas para me dizer adeus e me desejar felicidades. Sim, Marta, felicidades; é o que nós todos precisamos para andar por aí. (A felicidade devia ser uma coisa recarregável.) Felicidades para si também.

20

Ponho as mãos no fogo pela veracidade do que acabei de contar, mas não as chamusco, no que se refere à fidelidade dos factos noticiados, na chama fria da objectividade. Dos dois dias que passei na Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica, as primeiras 24 horas, recém expelido de um coma artificial com várias horas de duração, passei-as sem comer. Relembro ainda que todas essas 48 horas as vivi submerso numa neblina de morfina, e sem dormir, na totalidade do tempo que ali permaneci, mais do que um par de horas na madrugada de Domingo. Se nisto encavalitar o tremendo stress físico e, sobretudo, psicológico que uma Unidade daquelas faz pesar sobre doentes e trabalhadores, então compreender-se-á porque é que não respondo por mim. Soube depois que muitos doentes desenvolvem psicoses durante e após a estadia em Unidades deste estilo, isto é, desatinam completamente, não aguentam a pressão. Não sou eu, nem ninguém que tenha trabalhado ou estado internado num local destes, que se vai admirar com esse desvario, disso tenho certeza. Pessoalmente, tive sorte, passei-me um pouco, mas foi explosão fugaz. Não afirmo, sequer, que foi um pesadelo, não posso dizer que tenha apreciado; posso testemunhar que constituiu uma das provas mais duras a que fui submetido e, talvez, a experiência psicológica mais intensa e bizarra de toda a minha vida; da qual, para dar notícia, e como deixei escrito, recorri a fotogramas, contextos sonoros e sensações importadas do cinema, porque só na linguagem cinematográfica, graças ao jogo simultâneo de imagens, sons e movimento, consigo achar uma linguagem que me sirva para ilustrar com similitude as atmosferas por onde vagueei.

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E não foi somente agora, a posteriori, nas manobras de rememoração e montagem do passado e por artifícios de narrador, que me socorri deste tipo de analogias; pois, na altura em que experimentava os acontecimentos, pedaços desses mundos vinham-me constantemente à mente, numa premência instintiva em catalogar o caos sensorial e emotivo. Sim, querendo dar uma de cinéfilo, poderia alargar-me em exemplos, quase todos eles coligidos em filmes de ficção científica e citar Ridley Scott e a odisseia Alien, para caracterizar o ambiente desolado de nave espacial (gelada, à solta no cosmos, povoada de seres hibernantes e de imprevisíveis andróides) da Unidade de Cuidados Intensivos ou, até, escavando nos paradigmas clássicos do cinema de ficção ir buscar semelhanças a Stanley Kubrick e à sua Odisseia em 2001, para resumir a inquietação aguda e vertiginosa da viagem. Mas são especialmente as escorregadias e, aparentemente, deformadas visões que povoam as obras de David Lynch e David Cronenberg que melhor espelham uma vivência impossível de retratar usando apenas as linhas com que se cose a realidade, a palavra escrita.

De Lynch, das cuidadas e sofisticadas bandas sonoras de alguns dos seus filmes, herdei o código para materializar e decifrar a envolvente sonora – minimal; repetitiva; de abismais e perturbados ecos – que, inusitadamente, tão significativa foi na definição de todo o meu estado de espírito durante aquelas quarenta e oito horas. Em David Cronenberg*, um realizador que trocou a Medicina pelo cinema e constrói recorrentes fábulas em torno do que pode suceder quando seres vivos são cruzados ou infestados por máquinas, reconheci, com um tremendo murro no plexo solar, como são facilmente encarnáveis as suas obsessões sobre simbiose entre seres vivos e seres mecânicos, e em que estranhas partilhas esse contacto pode desembocar. À estranheza do espaço onde permaneci, junto outra estranheza, que não parou de me surpreender durante toda a escrita dos capítulos dedicados ao período que passei nos Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica, a minha aventura como unidade 7. Várias vezes me certifiquei, e as contas batiam sempre certo: eu estive internado na Unidade apenas dois dias; quatro dúzias de horas à justa, nada mais. Não é possível, penso ainda hoje. Mas foi, foi o tempo que por lá parei e qualquer registo do hospital comprovará. E no entanto... O que aquele tempo rendeu! Como se o relógio tivesse abrandado a passada dos ponteiros, dando-me oportunidade de saltar em andamento para fazer um enorme e assombrado passeio, e esperado por mim numa esquina, de onde me sacou, perdido e confuso, 48 horas depois.

* Particularmente os filmes Festim Nu (Naked Lunch, 1991), A Mosca (The Fly, 1986) e Irmãos Inseparáveis (Dead Ringers, 1988).

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Parte IV

No país do caldo verde

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21 Foram vozes nas proximidades que, insinuando-se mansamente no meu sono, me subtraíram, devagar, ao abraço da sesta de Domingo à tarde. No início não distinguia o que diziam. Eram várias; vozes masculinas; e, entre elas, destacava-se a sonoridade, monótona e cantada, de um acento alentejano. Fui escutando, procurando destrinçar, tomando consciência que nasciam por trás da minha cabeça e para além da cortina que me resguardava o lado esquerdo da cama. Pedaços de diálogo iam vogando na minha direcção, até que alguns ficaram retidos na malha do meu entendimento: “...mas, amigo Enguia, não acha que era tamanho a mais; mesmo tratando-se de uma lebre!?” “Companheiros, é a exacta verdade... parece que a estou ainda vendo...” “P’ra verdade, a garantia é curta...”, caçoou uma voz nortenha. “Mas se eu o juro a vocês... Palavra de caçador!”, continuava o sotaque alentejano; comprometendo a solenidade da jura com uma gargalhada rouca e estertorosa, na qual se adivinhava a vibração de mucosidades encravadas nos brônquios, características do fumador inveterado. E, numa intimidade de dormitório de rapazes, a conversa continuava, preguiçosa e detendo-se em meandros como um rio de Verão. “Mas o que agora verdadeiramente me está afligindo”, prosseguia o alentejano, baixando a voz para um sussurro que, mau grado a precaução, a rouquidão amplificava até ao meu alcance, “é a tripa...” “A tripa, sr. Cipriano!?”, ecoou vivamente uma das vozes, puxando o fio à conversa. “É verdade, amigos, acontece que não consigo numa arrastadeira... Não tenho posição!” Os colegas abafavam o riso, espicaçavam-no; exigiam-lhe precisão ao discurso: “Não consegue, o quê?” “Cagar, está-se vendo!” “É tudo uma questão de hábito...”, pontificava outro. “Ou de não ter outro remédio”, gozava a pronúncia do Norte. “Vocês estão mofando, mas eu é que não consigo fazê-lo para um penico de chapa todo amolgado e, ainda por cima, deitado!” Quando a gargalhada geral, que saudou esta tirada, se extinguiu, um dos colegas perguntou: “Mas por que é que você não expõe o assunto à enfermeira e lhe pede para ir à retrete?” O problema do sr. Cipriano Enguia, conforme o relatou num tom já vizinho do angustiado, é que não tinha coragem e, ademais, assaltava-o o medo de um “não”. “Elas não gostam que vamos sozinhos para a sanita. Têm medo que nos dê lá o abafa...” Perante a situação, tentando ultrapassar o impasse, alguém acabou por sugerir que, colectivamente e a uma só voz, os residentes naquele pavilhão da enfermaria dos homens, apresentassem o problema sob a forma de requerimento. E, de imediato, lançando mão do expediente burocrático que adorna a herança genética de qualquer português, lançaram mãos à obra. “Senhora enfermeira...” “Não”, emendava alguém, “Excelentíssima senhora enfermeira...”

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“Excelentíssima senhora enfermeira: Nós, os abaixo assinados, residentes nesta enfermaria, vimos pedir-lhe....” “...vimos solicitar a atenção de V. Ex.ª”, propôs outra voz. “...residentes nesta enfermaria, vimos solicitar a atenção de V. Ex.ª para a situação do nosso companheiro...” “Colega e amigo”, preferia o principal requerente. “...do nosso colega e amigo Cipriano Enguia, natural da Vagarosa, que há quatro dias...” “Cinco”, precisou o queixoso. “...cinco dias que não caga...” Risos em surdina, entrecortados por um ataque espasmódico de tosse, interromperam durante alguns minutos a elaboração do requerimento, a qual foi retomada após acesa discussão do termo a empregar. “...que há cinco dias que não obra, derivado a não o conseguir fazer numa arrastadeira; pelo que ardentemente imploramos que o deixe...” “...que lhe permita que o vá tentar fazer na casa de banho”, rematou outra das vozes, acrescentando: “está pronto”. “Falta o pedem deferimento”, lembrou um dos conjurados. Terminada a petição, e antes que lhes esmorecesse a coragem, chamaram pela enfermeira, perante a qual desbobinaram, a várias vozes (nas quais, como era de esperar, não reconheci a do interessado), o oficial pedido. A enfermeira riu-se e depois ralhou com eles, como se fossem um bando de garotos traquinas. Mas lá levou com ela para a privada o aflito sr. Cipriano, que, na partida e durante o trajecto, foi sendo encorajado pelos companheiros: “Coragem, amigo Cipriano”, estimulava um. “Sempre em frente; olhar a direito, sem ver o que lhe passa debaixo das chinelas”, aconselhava outro. A enfermeira ralhava brandamente, impondo o silêncio, pois, dizia, estavam a perturbar toda a enfermaria. No quarto ao lado, eu ia relaxando a mente, distendendo o meu ser; encantado pelo contraste entre aquele ambiente, quente e humano, e o da regelada estação espacial de onde acabara de chegar.

“Eis-me de volta ao país do caldo-verde”, pensei, consolado. Com uma réstia de sorriso dissolvendo-se ainda nos lábios divertidos, a enfermeira entrou pelo quarto dentro, a investigar o estado do doente da cama 16. É uma ninfa loira, mas não do subtipo luminoso; antes uma loura miraculosamente regressada do Vesúvio, uniformemente envolta numa patine cinza; desde o dourado cendré dos cabelos que lhe caem até meio das costas, até à cor da pele; ao brilho da face, onde é excepção o rosa escuro dos lábios que abrigam, enquanto conversa comigo sobre o sr. Enguia, um sorriso discreto, suave e um nada macerado. “É um velhote dos lados de Beja, e um doente habitual do Serviço. Já fez três ou quatro enfartes e de vez em quando vem cá parar, porque não tem muito cuidado com o tabaco e com a bebida.”

“Três ou quatro enfartes!”, arrepio-me. Ela acena levemente com a cabeça no seu jeito um pouco melancólico; os ombros caídos, as mãos entrelaçadas e abandonadas em descanso sobre a parte anterior da bata muito branca. “Quer que lhe levante a cama?”, pergunta, “daqui a pouco são horas do jantar. Não que hoje vá já poder comer grande coisa...” Uma voz chama-a do corredor e ela vai-se.

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Chama-se Diana, a empregada que me vem pousar a bandeja do jantar no colo. Muito bonita; feições finas como porcelana; modos requintadamente delicados, e uma grande conversadora. Enquanto me arranja a almofada por trás das costas, me endireita o tronco com cuidado e coloca diligentemente o guardanapo de papel a resguardar o penso do meu peito, vai-me confessando a aflição que, quando começou a trabalhar ali na enfermaria de Cuidados Intensivos de Cardiologia, lhe fazia a doença e os doentes, sobretudo os doentes – “como o senhor” – operados ao coração. “Agora já não”, acrescenta, “até gosto muito de trabalhar aqui, mas no princípio! E, sabe,” continua num desabafo, “tenho muito medo de vir também a ter qualquer coisa no coração. Sou muito nervosa, tenho muitas palpitações; às vezes parece que o coração me bate na boca.” Já que estamos em maré de intimidades, aproveito para lhe revelar que sou médico e com esse cartão de visita lhe acalmar a transparente ansiedade; varrendo, para as névoas do improvável, a possibilidade de doença cardíaca. “Primeiro, você é muito nova para estas doenças e, segundo, isso que descreve é ansiedade, não lhe vai dar cabo do coração assim num instante... Pode ficar descansada.” E ela, depois de dar à rangente manivela e me descer a cabeceira da cama, vai-se, despedindo-se num tranquilizado e tranquilizante “até mais logo”, deixando-me a olhar para o tecto, onde por uma pequena coluna de som se espraiam baixinho, mas audíveis, as canções da Rádio Nostalgia. One day I feel so happy Next day I feel so sad I guess I’ll learn to take The good with the bad...* Às onze horas, já eu me passava pelas brasas outra vez, a Diana voltou com um chá de tília e duas bolachas Maria, imediatamente seguida pela enfermeira Leonor (assim se chama a dolente e cendrada jovem), que me vem medir a tensão, o pulso, a temperatura, e dispensar a medicação prescrita pelos médicos. “Quer que encoste a porta?”, pergunta antes de sair e após entalar a pêra da campainha na almofada, ao alcance da minha mão. “Não, obrigado; por favor deixe-a assim.” Assim é aberta, escancarada; que é como quero ficar hoje, perto do mundo e das pessoas. “Será que amanhã vou acordar vivo?”, questiono-me à medida que a minha cabeça se familiariza com a travesseira, as luzes se apagam, a enfermaria se aquieta e as tossidas se vão tornando mais esparsas. Corrijo a redundância: “Será que amanhã vou acordar?” Não quero adormecer. Passos no corredor. Quem será? É alguém do pessoal, disso tenho a certeza, que os doentes não se movem à noite. Estão todos... Plim. Estremeço, involuntariamente, e aguço o ouvido. Um sacolejamento surdo e, depois, silêncio absoluto; duradouro. Ah!... deve ser sinal de um elevador nas redondezas: o plim de anúncio da paragem num andar qualquer. Por momentos temi ter sido teletransportado de novo lá para cima, para a unidade de cuidados intensivos da cirurgia cardiotorácica. Mas não, foi apenas um plim doméstico.

* Da canção Teenager in Love, interpretada (entre outros) por Dion and the Belmonts.

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O bucolismo dominical em que ontem me embalei e, apesar da minha resistência, se volveu em sono tranquilo, foi completamente varrido pelo irromper de uma agreste segunda-feira que, vestida de branco e sem pedir licença, me entrou pelo quarto dentro de seringa em riste, espetando-ma prontamente na barriga. “É fraxiparina”, explicou aos meus pestanejantes olhos, “enquanto aqui estiver vai tomar uma todas as manhãs”. Arrancada a seringa, voltou a enfiar a agulha na bainha de plástico que a protegia e, com pontaria, atirou todo o conjunto para dentro do saco de plástico que forra o balde do lixo encostado à minha cama; vizinho do facetado e antigo frasco de vidro que, mesmo durante o dia, me serve de vaso de noite. “Agora vai-se lavar, está bem?”, avisou, levantando a cama e rolando para perto de mim uma mesa sobre a qual fumegavam duas grandes bacias de metal cheias de uma água espumosa, numa das quais flutua um pedaço de pano-turco rectangular do tamanho de uma mão. “Acha que consigo?”, duvidei, tendo em conta a minha fraqueza e a, praticamente, total incapacidade em mexer o tronco e o pescoço. “Consegue”, afirmou, categórica, “e o que não conseguir nós ajudamo-lo”. “E isto?”, digo, ainda medroso, escudando-me no imaculado penso que me divide o peito ao meio, nas ventosas que fixam os eléctrodos do monitor cardíaco à minha pele, “vai ficar tudo encharcado...” “Ah!, não se preocupe; depois vamos mudar-lhe isso.” E, ao mesmo tempo que, ajudada por uma auxiliar, me sentava na cama e me arrastava para a borda da mesma, ia explicando, apontando uma das bacias: “Esta é para lavar a parte de cima, e esta”, disse, indicando a outra, de onde emanava um discreto odor a desinfectante, “é para a parte de baixo”. E deixou o quarto, comunicando também: “Já lhe trazemos um pijama lavado.” Fiquei ciente, a olhar as bacias e as minhas escanzeladas pernas, pendentes sobre o soalho. Será que, em primeiro lugar, eu seria capaz de despir o pijama onde a enfermeira Beatriz, tão profissionalmente, me enfiara na véspera? Fui. Demorou uns tremeliquentos séculos, mas fui: botão a botão, ombro por ombro, cotovelo a cotovelo; puxando uma manga perra, abanicando as costas para ajudar a fazer escorregar o algodão do casaco; levantando uma nádega de cada vez, empurrando, enrolando e, finalmente, deixando cair. “Santo Deus!”, constatava esforçadamente, “a diferença que faz ter um osso rachado de alto a baixo, a falta que um esterno faz a um homem”. E, finalmente, lá estava eu, equilibrado nu à borda da cama, a ensopar a luva sem dedos na espuma tépida e, concentrado como um gato, esfregando lentamente o meu escalavrado corpo; esbaforido pelo esforço e preocupado por estar a deixar cair água por todo o lado: no lençol, no chão, sobre o pijama. Foi nesta figura, gotejante e desnuda, que uma enfermeira desconhecida me apanhou, para meu íntimo horror e sua total indiferença, ao entrar pelo quarto dentro, empunhando um telefone portátil. “É para si”, disse, “quer atender?” Atendi. Era a João, a saber como eu passara a noite, e fiquei muito espantado, uma meia hora mais tarde, ao vê-la surgir à porta do quarto – num estado de expressiva ansiedade –, porque as visitas dela tinham tradicionalmente lugar em dois períodos do dia,

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definidos pela rotina hospitalar: ao redor da hora do almoço e ao entardecer, coincidindo com o jantar (janta-se cedo nos hospitais). “Então?”, perguntou, aflita. Principescamente recostado na cama, com a bandeja do pequeno almoço sobre as pernas; sentindo-me, apesar do felino arremedo de banho, fresco, lavado e confortável no meu pijama novo, olhei-a com pasmo. “Então, o quê?” Fôra a minha voz ao telefone que a pusera em pânico e a fizera correr ao hospital: esperava falar comigo e do outro lado atendera-a, num discurso entrecortado e arfante, um fio de voz, sumido, quase afónico; acoplado a uma respiração sibilante e estertorosa, de moribundo. “Que susto!, pensei que lhe tinha sucedido alguma coisa grave.” “Foi do banho”, expliquei, “estava a meio do banho e o esforço de me lavar pôs-me com a língua de fora”. É este o meu novo estado vocal. A minha voz parece que mirrou e, se não conservasse na memória alguns planos de topografia anatómica, ficaria a pensar que, durante a cirurgia cardíaca, e por distracção, me tinham dado uma facada nas cordas vocais! A minha rica voz, grave e de belas sonoridades, transformou-se num falsete, que se volve num murmúrio roufenho ao fim de um ou dois minutos de conversa. A operação, muito mais do que o enfarte, pôs-me de gatas: falar arrasa-me como transportar menires; comer um pão e beber um chá cansam-me como se tivesse subido dez andares a correr; e, diria, o valor nutritivo de tudo o que meto à boca consome-se imediatamente no simples esforço exigido pelo mastigar, não sobrando nem uma caloria para aplicar depois. É assim que estou: sou obrigado a descansar após uma conversa, após uma refeição; chego a adormecer exausto se tenho duas brevíssimas visitas seguidas! Longinquamente, o meu actual cansaço recorda-me os tempos da radioterapia, mas é uma fraqueza diferente: esta é, mesmo assim, mais absoluta, obriga mais imperativamente à horizontalidade; está ligada a uma intensa limitação da capacidade cardio-respiratória, é de rédea e fôlego curtos. E ninguém imagina a quantidade de ar e de esforço muscular que se gasta para manter uma conversa; ninguém sonha como conservar a atenção focada pode cansar um coração remendado há pouco. E, então, durmo, dormito, adormeço, e, nos intervalos, gemo, ouço e olho, que, ainda assim, são os exercícios que menos me fatigam e mais me consolam. Gemer é um modo particular de expulsar o ar dos pulmões, uma variante sonora de expiração. Gemer é bom. “Já se sabia”, dirão, acrescentando reticências, os mais malandros. Mas não é disso que agora estou a falar: gemer é bom, mesmo quando não é por efeito das melhores causas; gemer conforta, gemer faz companhia. No meu caso, não gemo por dor, que não tenho dores especiais – ao contrário do que seria previsível – e tenho à disposição (“em SOS”, dizem eles), para esse fim, um remédio, se decidir que as tenho (é este o luxo do SOS: o SOS* é a vontade do doente a dar frutos). Gemo porque tudo me é difícil e penoso; gemo para acompanhar o escoar do tempo; para desabafar; para me sentir a funcionar. Ah... e gemo baixinho, e apenas quando estou sozinho. No meu caso, neste grau, gemer é pessoal e intransmissível. Gemo porque consigo e quero, não porque seja compelido a fazê-lo. Depois do almoço arrastaram para aqui, deixando-a estacionada no espaço entre as duas camas, uma poltrona de napa preta, que uma empregada se apressou habilidosamente a forrar com um lençol, rematando o trabalho com uns grandes e orelhudos laçarotes no alto espaldar.

* SOS – sinal internacionalmente adoptado pela Conferência de Berlim, em 1906, para transmitir angústia ou aflição. Literalmente, as iniciais da sigla correspondem às primeiras letras da frase “Save Our Souls” (salvai as nossas almas).

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“Pronto, agora já tem onde se sentar; escusa de ficar aí agarrado à cama. Quer que o ajude a descer?” Não quis. Quero saborear este momento, os meus primeiros passos, sozinho. Pedi apenas para ela me subir a cabeceira da cama, pois não consigo mudar, sem assistência, da posição de deitado para a posição de sentado. Mas é que nem pensar!; não tenho onde me apoiar, o meu esterno foi cortado ao meio há quatro dias, ainda não teve tempo de colar, e sem esterno as minhas clavículas, o meu pescoço, os meus braços, não têm apoio, não podem funcionar como alavanca e ajudar o mexer do corpo. Deitado na cama, como uma tartaruga virada sobre a casca, estou à mercê da gentileza alheia: não me levanto, não me sento, não consigo sequer virar-me de lado e, se me movo alguns centímetros para baixo, para ajustar a posição da cabeça na almofada demasiado cheia, é graças a diminutos e esforçados serpenteios das ancas e das costas. Mas, teimosamente, depois de se pôr a dar à manivela, como quem tenta fazer pegar um calhambeque, e me elevar até à posição de sentado, a senhora resolveu ficar ali a supervisionar os meus esforços; o modo como eu ia pendurando as pernas fora da cama e avaliava a distância que separava os meus pés do soalho. “Agora é só deixar-me escorregar e estou no chão, em pé”, calculava eu, teso como um prego, os braços alinhados ao longo do corpo, as palmas das mãos levemente apoiadas na borda do colchão. E deixei-me ir, como se deslizasse para dentro de uma piscina. Caí direito, lá isso caí, mas apenas firmei o corpo sobre os pés e ensaiei um passo, uma funda vertigem e umas pernas de borracha fizeram-me cambalear, num intróito de estatelamento, até aos braços da empregada que, muito batidos em primeiras tentativas de voo, ali estavam, rápidos e firmes, a suster-me. “Foi uma tontura”, justifiquei-me. “Com calma, vá; lembre-se que o senhor já não se põe de pé há uma porção de dias: está fraco e desabituado de andar.” Aqui estou, contente, na minha poltrona nova, abarcando um ângulo de visão impraticável para quem está deitado e praticamente imóvel; observando o meu quarto de um refastelado observatório.

Estreito e comprido; uma janela de vidros foscos lá ao fundo, apenas deixando adivinhar se é dia ou noite; um desmesurado pé-direito à moda antiga, permitindo conjecturas de duplex a um qualquer empreiteiro enfartado, acamado e enfastiado. Duas portas, sempre escancaradas; uma delas dando para o corredor central da enfermaria e outra, contígua à cabeceira da cama, geminando-me com o quarto ao lado do meu, aposento onde conspiram o sr. Enguia e os seus companheiros, e através da qual me chegam os pedaços de conversa que me entretém e por onde, sem aviso, surge, por vezes, um enfermeiro, uma auxiliar ou, mais raramente, um médico, pois estes parecem preferir a porta principal à do cavalo. Eu já aqui tinha estado, no dia em que me trouxeram de Torres Vedras para Santa Marta; foi nesta mesmíssima cama que me despejaram depois das escandalosas revelações da coronariografia; foi aqui que amassei a angústia de me sentir perdido num hospital; foi sobre esta travesseira que, na longa noite que antecedeu a operação ao coração, revi a minha vida e fui assaltado pelo flash-back do meu cancro, relacionando coisas que, até aí, me boiavam desirmanadas pela mente. Como o mundo é pequeno e como, mesmo nos momentos de aparente paralisia, não pára de rodar. O quarto é agora um local familiar, um abrigo onde me sinto bem. E, no entanto, classificado pela bitola fria de quem aqui trabalha, é, simplesmente, uma espécie de quarto de arrumos, pejado de monos. É o reduto onde se guarda aquilo que sobra, o que não se sabe muito bem onde enfiar, aquilo que só se usa de vez em quando; e, lá ao fundo, perto da janela, a coberto de uma cortina de oleado pudicamente esticada que os oculta dos olhos dos visitantes, já vi irem buscar suportes para soro, procurarem um desfibrilador sobressalente ou soprarem o

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pó a outros aparelhos e acessórios pouco familiares. E, desconfio, o mesmo se deve passar com os doentes que aqui são internados – são excedentes. É o meu caso, que não havia lugar para mim na enfermaria da Cirurgia Cardiotorácica e era preciso porem-me nalgum lado. Esta minha sensação de que estou aquartelado num limbo de antiguidades é corroborada pelo desabafo de um ou outro elemento do pessoal quando dá à manivela para me levantar a cama. “É preciso comer um boi para fazer subir a sua cama! Esta, e aquela”, revelam com um gesto indicativo do segundo leito do quarto, “são as camas mais antigas de toda a enfermaria. Isto já não se usa!” Fazendo parelha com a cama de manivela, que, sempre que é accionada, canta como um realejo, outra antiguidade está exposta sobre um suporte por cima da minha cabeça. É um velho monitor cardíaco Hewlett Packard, de um cinzento de submarino, ao qual estou ligado por um longo fio, que se bifurca em várias pontas sobre o meu peito; trela benévola que me permite ir até à cadeira, e em cujo écran, aprisionado num óculo redondo, um incansável e fugidio ponto verde traça as oscilações do meu coração. Não perco muito tempo a mirá-lo, pois, tal como nunca achei graça a ouvir contra a almofada o latejar do coração na orelha, não estou interessado em ver permanentemente traduzido perante os olhos o funcionamento das minhas entranhas.

Descontando o esfigmomanómetro automático de mostrador digital, a poltrona de napa preta é a maravilha técnica mais avançada aqui do quarto. Acabei de descobrir que tem inteligentes potencialidades motrizes, isto é, se eu lhe aplicar uma leve pressão com as costas o espaldar desliza para trás, num convite à reclinação; ao mesmo tempo que a parte frontal do assento se levanta e vai fornecendo um apoio para descanso às pernas. Ou seja: pode-se transformar este maple numa chaise-longue de convés. Entusiasmado com a descoberta, concedi-me a liberdade de experimentar posições cada vez mais ousadas, até atingir a posição de completamente deitado; encantando-me com a ideia de no futuro assim repousar, abandonando no colo o livro que estava a ler; semicerrando os olhos ou descansando-os no tecto; ouvindo música.

Mas, como descobri demasiado tarde, a minha superdotada poltrona não foi programada para clientes sem esterno ou, trocando em miúdos, necessita, para ir revertendo à posição inicial de cadeira sentada, que o usufrutuário lhe dê um leve sinal, o qual consiste em descolar um pouco as costas do assento, para que o espaldar – num horror ao vácuo – inicie um movimento ascensional. E eis-me, eu, que não consigo fazer nem um esboço desse modesto movimento, aqui esticado, deitado a contragosto; numa terrível vexação, vendo a campainha lá ao longe pelo canto de um olho; esperando que alguém se lembre de vir aqui devolver-me a um ângulo menos raso...

Fui descoberto à hora do lanche por uma robusta rapariga de tonalidades camoesas que, com geitinho, me devolveu à segurança da cama e aos prazeres de um chá com bolachas e compota.

“Se quiser outro pacotinho, eu trago-lhe”, ofereceu, dando-se conta da minha sofreguidão pelas bolachas Maria.

Agradeci e aceitei a oferta: o pacote que distribuem só traz duas bolachas – uma ninharia, considerando a minha fome danada. Ela regressou e deixou-se ficar, encostada com familiaridade ao fundo da cama, a ver-me aviar a segunda rodada de bolachas.

“Gosto de o ver comer com apetite”, comentou como se me conhecesse desde sempre, “também bem precisa, que está pele e osso!”

A minha magreza, o meu peso pluma, são fonte de comentário e de leve zombaria para todos os que lidam comigo:

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“Cinquenta e cinco quilos!”, escandalizara-se, lá em cima, na Cirurgia, o dr. Luís Caniço, quando, a seu pedido e tendo em vista um cálculo terapêutico, o informei quanto pesava, “isso dá uma dose subterapêutica, quase infantil!”

“Não sei se lhe vou conseguir medir a tensão com este aparelho, ou se vá buscar outro à Cardiologia Pediátrica...”, ironizara, na véspera, uma enfermeira ao ver o meu braço nadar, após todos os ajustes possíveis, na braçadeira do esfigmomanómetro.

“Quer que lhe baixe a cama?”, perguntou a moça ao recolher a bandeja do lanche. “Se não se importa, mas desça-me devagar, por favor”, acautelei, receando –

tendo em vista a sua enérgica robustez – um desfazer da posição de sentado demasiado brusco, porque as quedas súbitas na horizontalidade magoam-me. Os ossos do meu peito, apesar de cosidos com quatro arames mais grossos do que bordões de guitarra, aguentam mal um estiramento rápido: a cicatriz retesa-se e dói-me.

“Então até logo”, disse ela, brindando-me com um genuíno sorriso prazenteiro, sobraçando a bandeja vazia e caminhando para a porta, “logo venho visitá-lo outro vez”.

“Ei, como é que se chama?”, exclamei antes que ela cruzasse a ombreira. “Rosa”, respondeu uma voz já sem imagem. Pesado do lanche, fui resvalando para um torpor benfazejo; polvilhado por

pensamentos satisfeitos e progressivamente mais moles: “Que bom estar ali, naquele quarto antiquado, sem as algemas de tubos, soros, ou sensores; dissolvendo-me devagar naquele ambiente que emulava a paz de um fio de fumo branco elevando-se lentamente de uma chaminé, num fim de tarde campesino.”

Sim... Se calhar era, aos olhos de todos, apenas um pequeno passo, uma melhoria insignificante (que, lá fora, comentariam até com algo como: “não, ainda não está livre de perigo, ainda está em cuidados intensivos”); mas, para mim, que enorme progresso a minha barca ter sido desamarrada e não estar a meter água que se visse.

E, nessa esperançada quietude, adormeci de novo.

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Terça-feira. Acordei outra vez vivo. Já me lavei e mudei de pijama, e devem estar a bater as nove da manhã, pois na Rádio Nostalgia passa o enigmático trecho musical de sabor Caribeño que, de há uns dias para cá, antecede todos os noticiários e promove uma campanha de ar condicionado da Peugeot, direccionada aos calores automobilísticos deste Verão:

El único fruto del amor es la banana, es la banana... Será... Como se trata de um anúncio, a rádio reproduz apenas um curto extracto da

canção e eu fico sempre suspenso, sem nunca conseguir perceber a justificação de tão radical opinião. Será azedume? Será filosofia? Um dia tentarei ouvir a música completa e esclarecer o mistério, mas, por agora, estou mais interessado na chegada do pequeno-almoço porque, possuído por uma nova mentalidade que só me faz pensar em comida, pauto o decurso das minhas horas pelo desejo de que me seja servida a refeição seguinte!

E, estou siderado, ao arrepio da tradição hospitalar, aqui come-se bem. A comida é boa, variada e bem apresentada Eu, pelo menos, assim o acho, mas admito uma leve distorção no juízo, induzida pelo escrupuloso regime dietético etíope a que fui sujeito enquanto estive lá em cima, nos Cuidados Intensivos da Cirurgia Cardiotorácica. Ainda ontem, ao jantar, a João, ao olhar a sopa que eu sorvia com aplicação, inquiriu numa enfastiada dúvida:

“Está boa? Não está lá com grande aspecto...” “Está magnífica”, defendi com veemência.

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Apesar o aspecto aguado do líquido, onde flutuavam uns fiapos ralos de vegetais, pudesse condicionar uma impressão errónea, tratava-se de um belíssimo caldo, enobrecido com raspas de cenoura e folhas de agrião, que, embora sem sal, me soube pela alma e, ainda hoje, o meu paladar recorda.

Fortalecido pelo pequeno almoço, tomado já nos confortos da poltrona, confiante nos cinco passos quase firmes que, sem auxílio, conseguira dar da cama até ao maple; senti-me com energia suficiente para, numa excursão arriscada, ir, sem pedir licença a ninguém, tentar fazer a barba ao lavatório que ontem, quando uma empregada correu a cortina para despejar umas sobras de água, surpreendi ao fundo do quarto; vizinho da janela, dos suportes de soro e de uma ou duas cadeiras de rodas de pneus recolhidos.

Chinelando e usando como apoio todos os objectos cujas fundações me inspiravam confiança, dei a volta à cama, para assim alcançar a mesinha de cabeceira e a bolsa onde tenho guardados os apetrechos de higiene. E foi no extremo desse exíguo trajecto que me apercebi, por um estirão no fio, de uma limitação às minhas pretensões de liberdade: o monitor cardíaco – raios! –, estou ligado a uma máquina e a trela que me amarra é curta.

Voltando à poltrona, para estudar o problema, cheguei à conclusão que há dois caminhos para chegar ao lavatório: pedir, mais uma vez, licença e ajuda a alguém, ou desfazer por alguns minutos a minha sujeição ao monitor. O que não é nada complicado, dado que os fios dos eléctrodos, presos por pinças às rodelas de gaze adesiva coladas no meu peito, terminam numa ficha que se encaixa numa tomada. Tomada de onde nasce o longo (mas, para os meus intentos, não suficientemente) cabo cinzento que conduz os impulsos eléctricos do meu coração até ao veterano Hewlett Packard. Em suma: livrar-me disto é tão canja como desligar um candeeiro da parede e a única alteração previsível é a de que o incansável e saltitante ponto verde vá tirar uma folga.

Em pé, corajosamente virado para o monitor, desarticulei a ficha da tomada e vi a linha verde sumir-se de imediato no écran. Depois, arrimando-me a tudo quanto podia, iniciei a minha navegação à vista, em direcção à longínqua cortina de oleado.

Acabara de dobrar a linha da poltrona e começava o contorno da segunda cama, quando senti alguém apressado entrar no quarto e uma voz feminina interpelar-me num ralhete:

“Ei! o que se passa aqui?... Onde pensa que vai?” Expliquei-lhe: ia barbear-me no lavatório do quarto; eles não queriam que eu me

mexesse, que combatesse a imobilidade? Para isso tinha tido que desligar o cabo do monitor, mas voltaria a ligá-lo logo que regressasse à cadeira; eu sabia como se fazia: tinha memorizado as conexões antes de as desfazer.

“É que me pregou um susto enorme. Estava lá dentro, na sala de trabalho, e, de repente, dispara o alarme e desaparecem-me os seus sinais cardíacos!”

Apanhado com a boca na botija, desfiz-me em desculpas pelo susto pregado à enfermeira. Que bronca! Eu sabia lá que aquilo estava remotamente ligado a uma sala de controle! Supusera, talvez iludido pelo ar antiquado do equipamento e da mobília, que pura e simplesmente, ninguém desse conta; o que não foi sensato da minha parte. Afinal estou num Serviço de Cardiologia de um hospital central, numa Unidade de Cuidados Intensivos!

Durante uns instantes, escondido pela cortina, fico parado, olhando o espelho, o qual, friamente, me devolve uma imagem que já não via há uma boa dúzia de dias. Então, este, sou eu; o aquele que andou lá e cá. Reconheço-me, mas sem espessura, sem profundidade no reconhecimento; como se o eu reflectido pelo vidro estanhado fosse gelo fino, friável e escorregadio. Estou (ou sou) mais magro, parece-me; estou, ou sou, muito pálido; o pijama é largo demais, danço dentro daquelas mangas; o pescoço perde-se,

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descarnado, naquela gola; precisaria de um cinto para cingir decentemente aquele casaco verde-alface-lixiviado ao meu tórax.

A barba está por fazer, acinzentada, mas não tão hirsuta como seria de esperar; cresceu pouco. Uma vez que o pequeno lavatório não tem tampa para vedar o ralo, abro a torneira num fio de água, molho o pincel e espremo-lhe em cima uma bisnagadela de creme. Num gesto automático, ergo o braço e começo a cobrir a cara de espuma, não perdendo de vista a imagem no espelho. Custa! Pesa! São extraordinariamente árduos aqueles factos singelos de levantar uma mão acima do nível do cotovelo; de varrer a cara com as sedas de um pincel de barba. Como é possível ser tão moroso e fatigante o movimento de espalhar a espuma pela face? Paro, cansado, surpreendido; mirando a patética figura que arfa no espelho, um buraco escuro de boca entreaberto no meio da espuma branca; duas clavículas proeminentes e um osso do peito onde sobe e desce, agitada, a trama felpuda de uma longa tira de gaze. Pouso o pincel; interrompo um pouco; espalmo a mão direita na borda do lavatório: assim apoiado talvez seja mais fácil continuar.

Passou demasiado tempo e, entretanto, a espuma começou a secar na pele, tornou-se uma película branca, leve e volátil como caspa – tenho de me despachar se quero evitar repetir tudo desde o início. Inclinado para a frente, com um braço e uma mão a escorar-me o corpo, lá vou passando a lâmina pela face; raspando rombamente as patilhas, a face, o queixo; impondo-me estoicamente uma sucessão de milimétricas metas antes das quais, decidi, não poderei dar-me ao descanso: “Vá, acabar primeiro o queixo, depois: pausa. Em seguida, todo o pescoço (à esquerda e à direita), depois: descanso. E então, vendo já luz ao fundo do túnel, o lábio superior, que é o mais difícil e exige concentração; um estiraçar perfeito da pele, obtido à custa de uma complexa e habilidosa contracção dos músculos faciais e do pescoço. Exige, também, o arrebitar da ponta do nariz, com o auxílio da pinça formada pelos dedos polegar e indicador, o que significa o ter de, temporariamente, abandonar o apoio da mão direita e ficar entregue ao suporte das coxas e ancas, pressionadas contra o lavatório. Depois, descanso, e, finalmente, lavar a espuma residual e enxugar a face.”

Um deserto mais tarde, arrasado e sem fôlego, arrasto-me até à poltrona, onde me deixo cair como posso. Preferiria deitar-me, tão exausto estou, mas isso implicaria esperar, pedir ajuda; dar parte de fraco, chatear alguém. Fico por aqui. Tirarei partido das potencialidades do cadeirão com prudência.

Gradualmente, tranquilizado pelo repouso, o ritmo da respiração vai-se acalmando e os pensamentos voltam a fluir no meu espírito como borboletas após a chuva. Sinto-me satisfeito por me ter barbeado, por o ter conseguido sozinho, pela imagem menos plúmbea que, no final, o espelho me devolveu; mas, ao mesmo tempo, algo em mim se horroriza, se apoquenta, pela dimensão gigantesca que assumiram actos que costumavam ser tão comezinhos. No meu dicionário pessoal, onde antes se lia “com uma perna às costas”, deve agora ler-se “sem pernas para andar”.

Rasuro-me, rescrevo-me e, no cansaço de pensar, no investimento em não me assustar, vou amolecendo sobre a poltrona.

El único fruto del amor es la banana... Na Rádio Nostalgia acabam de dar as dez horas. “Só?”, espanto-me ainda, antes de

adormecer. “Bom dia. Desculpe acordá-lo, mas queria observá-lo.” Abro os olhos, assarapantado, com a sensação de os ter fechado apenas poucos

segundos antes. De bata branca, ela olha-me de cima, com um ar definitivo, o estetoscópio

pendurado no pescoço. Habituado a ser manequim de montra, pergunto:

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“Quer que mude para a cama?” “Não, não é preciso; está muito bem aí” diz, numa voz velada e de colocação nasal;

entretida a perpassar folhas de papel, Rx, electrocardiogramas, e relatórios de análises, que vai organizando em cima da mesa com rodas que serve de apoio à minha cama. “Estou preocupada com o seu potássio...”, deixa escapar por fim, fitando-me pensativa e tamborilando ao de leve os dentes da frente com a esferográfica, “está muito baixo!”

Embaraçado com o rasteiro comportamento do meu potássio, faço o gesto equivalente a um encolher de ombros, como se confessasse a minha impotência, um “eu bem lhe digo, mas ele não me liga nenhuma!”

Ela continua a olhar-me, embrenhada em pensamentos; e, depois, saindo da abstracção, numa inspiração:

“Acho que o vou pôr a tomar um suplemento, está bem?” “Está óptimo”, anuo, aliviado, vendo defendidos os interesses das minhas reservas potassémicas; e observando-a, com curiosidade, enquanto escreve, afincadamente, notas no meu processo clínico. Trinta e tal anos. Alta; magra; longos cabelos pretos; enormes olhos castanho-escuro; e uns malares atrevidamente salientes, os quais, conjugados com uns incisivos longos, lhe dão um ar de menina traquina, que, aliás – cheira-me – deve ter sido. “O teu potássio não presta, o teu potássio é mais baixo do que o meeeu...” Olho e não consigo deixar de a ver com nove anos de idade, magricela, correndo sobre uns joelhos ossudos e umas pernas tão povoadas de negras como uma nêspera madura; balançando no ar uns cotovelos angulosos, perigosos como navalhas de ponta-e-mola. Gira que se farta.

“Se puder evitar mais radiografias, agradeço”, peço à médica, num aviso que faço a cada um dos novos médicos que se debruça sobre o meu dossier, “é que, há três anos atrás, andaram a irradiar-me o tórax durante cinco semanas – já levei com uma dose de radiações que chega para uma vida inteira...”

Ela levantou a cabeça dos papéis e encarou-me com um olhar sério e demorado. “Não se aflija; pedirei só o que for absolutamente indispensável.”

Até hoje não tive aqui nenhum médico certo, todos os que andam pela enfermaria me vem ver: um ausculta-me, outro requisita mais um Rx, mais um electrocardiograma; um outro faz mais uma pergunta vital para a minha história clínica:

“Algum dia teve sífilis?” Vou sendo cuidado, mas a sensação de seguimento que tenho é avulsa, como se os exames que os diversos médicos me fazem não se relacionassem, como se cada um deles depenicasse um pormenor de cada vez que a escala roda. Mas com a dr.ª Lúcia Garcia senti algo de diferente, fiquei com a impressão que ela agarrou no meu caso, o sacudiu de pó, tomou decisões sobre mim, e que, a partir de agora, a vou ter como minha médica assistente. Sabe-me bem pensar isso. Por onde andaria ela que, estando eu aqui já há décadas, nunca a tinha visto? Quem também nunca mais tinha visto foi o cirurgião-chefe da equipa que me operou e que, ao fim da manhã, entrou porta adentro, disparando:

“Então você ainda cá está?!” Sentadinho, muito quieto, na minha poltrona de napa preta e apanhado de

surpresa; a mim, operado ao coração há apenas três escassos dias, só me ocorreu responder, na minha actual voz fanada:

“Estou nas mãos dos cardiologistas. Só posso ir embora quando eles me mandarem...”

E, diga-se, os cardiologistas são mais pausados que os cirurgiões. É engraçado como as especialidades médicas diferem umas das outras na atitude (já não falo nos

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procedimentos), nomeadamente no ritmo com que abordam e tratam os doentes. Nas especialidades cirúrgicas a perspectiva de acostagem é, grosso modo, deitar o doente numa mesa operatória, reparar o que está torto, e, dois ou três dias depois – não havendo complicações –, despachá-lo a grande velocidade do hospital, dizendo: “este já está, quem é o próximo?” Este raciocínio impregna todos os cirurgiões, sejam eles especializados em intervencionar barrigas, pescoços, ou corações. Pelo contrário, as especialidades ditas médicas (por oposição às cirúrgicas) encaram os problemas num ritmo de passo a passo, etapa por etapa, com a placidez possível tendo em conta o caso presente. Assim é na Medicina Interna, assim é na Hematologia, assim é na Cardiologia. Grosso modo, repita-se, porque a fronteira entre especialidades “intervencionistas” e “conservadoras” nem sempre é nítida ou estática.

Almocei uns excelentes carapaus assados, acompanhados de batatas e outros vegetais cozidos (tudo regado com um bom azeite espanhol) e, a meio da tarde, um enfermeiro desembaraçado, achou que era tempo de me livrar dos emplastros que me cobrem o peito e a perna.

“Isso está mais que bom. Quanto mais ao ar estiverem, melhor.” Tiraram-me os pensos e tenho agora ao léu, generosamente pinceladas com o

castanho-avermelhado do Betadine, as extensas suturas do tórax e da perna. Estão, apesar da crueza de ferida recente e do aspecto tosco de fecho-éclair sugerido pelos (contei-os) cinquenta e muitos agrafes que aproximam os bordos cortados, com bom aspecto: secas e sem sinais de infecção ou de inflamação.

Vou, passo a passo, gatinhando em direcção a um momento que, se tudo correr bem, me levará daqui para fora; com sorte talvez me volte a aproximar daquilo que já fui, antes de ser atropelado, num apeadeiro sem guarda, por esse comboio de mercadorias chamado enfarte. Já não estou vinculado a tubos, trespassado por agulhas, dependente de ar engarrafado. Ainda estou preso por uma trela a uma máquina, mas essa deixa-me passear e não me é essencial, é só para terceiros irem vigiando como eu vou andando; não é grave. E, agora, tiraram-me os pensos: são menos dois lençóis sobre os móveis da casa fechada onde, depois de abertas janelas e arejado o mofo, nos preparamos para voltar a habitar. Duas cicatrizes novas, tracejadas a aço, empastadas de sangue seco – quantos pormenores a observar, quanta mudança a registar mentalmente até ao longínquo dia em que uma ténue estria esbranquiçada se confunda de tal modo com a minha imagem que não me aperceba dela ao ver-me num espelho.

Já na rádio soaram as onze e os vidros fumados da janela ao fundo do quarto

cobriram-se de noite. Lá fora esteve um dia de Verão abrasador, não que aqui dentro se tenha feito sentir muito, mas o ar sofredor das visitas, coaguladas em suor e com vírgulas de cabelo coladas na testa, ou os desabafos do pessoal são sugestivos termómetros.

“Nem sabe a sorte que tem em estar aqui, neste fresco; lá fora está um inferno!” Cá dentro, como é costume, a temperatura do ar manteve-se relativamente

constante ao longo de todo o dia, mas, talvez por empatia, abateu-se sobre a enfermaria a silenciosa quietude que se segue à tormenta.

Sentado na cama, acabei de mastigar a minha ceia e de sacudir as migalhas das bolachas que, enquanto beberricava o chá de tília, tombaram como flocos amarelados sobre as páginas em que o escritor Truman Capote descreve a saborosa e conturbada primeira apresentação da ópera Porgy and Bess, no Inverno de 1955, na União Soviética*.

Está outra vez de serviço a enfermeira Leonor, a minha cendrada amiga, com quem há pouco me sucedeu uma partilhada e emocionada conversa sobre doença, sofrimento e morte – ou vida, que é, afinal, o saco onde tudo isso cabe. As coisas começaram, por acaso, com uma troca de impressões, objectiva e genérica, sobre mim e o * Os Cães Ladram, Editora Civilização Brasileira, 1977.

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modo como viera ali parar, à cama 16 do Serviço de Cardiologia; mas o tumor maligno que espreita por trás da minha maleita cardíaca arrastou para a tona a história de cancro da avó dela, doença que ela vive de perto e, pareceu-me, tão perigosamente perto, que lhe chamuscou a memória. Daí, o ambiente da conversa foi-se envolvendo num tom confessional, em que ao narrar de um detalhe por um de nós correspondia uma identificação do outro e, nesse registo, fomos prosseguindo até que um súbito embaraço de olhos brilhantes, nos fez dar por terminado o assunto e regressar aos nossos papéis iniciais: o do doente que se prepara para dormir e o da eficiente enfermeira que vigia e cuida dos seus pacientes.

Antes que saísse do quarto, pedi-lhe que me encaixasse, do lado esquerdo e direito da cama, as grades de protecção que fazem o meu leito transformar-se num berço. Ela pareceu um pouco espantada com o pedido – deve achar que não estou assim tão tantã que precise de grades.

Explico-me: “As camas são muito estreitas, sabe? Tenho medo de cair durante a noite.” E tenho. Seria horrível cair da cama abaixo, no meu estado actual. A simples ideia

de pensar nessa possibilidade é, já de si, tremenda. Sinto-me um vidrinho, um vidrinho raso de água e com um deficiente controle sobre o corpo. E então no mundo cego e agitado do sono! Sei lá o que poderá acontecer? É bastante improvável – se eu não consigo sequer virar-me de lado sozinho – mas, ainda assim, tenho receio. Cair. Não..., por mim, não me importava sequer que eles me amarrassem à cama, se isso pudesse garantir melhor a minha segurança.

O tempo passa. Em volta as luzes foram-se apagando. Estão já instalados, no seu máximo, o silêncio e a obscuridade possíveis numa enfermaria hospitalar. Fecho os olhos, abro os olhos; cerro os olhos.

No escuro, no dilatado silêncio provocado por um ambiente sem música e pelo recolhimento a si próprios de dezenas de doentes, o errático e abafado plim do elevador ainda me assusta. Menos que ontem, ainda menos que anteontem, mas alguma coisa, mesmo assim. Sombrios quadros nocturnos relampejam no meu espírito: imagens do sr. Alberto, fosforescendo no espaço na sua cor de marfim velho; visões do camarada que, com o tubo enfiado pela goela abaixo, estremecia, distante da sua feição humana, sonhos de rã de laboratório. (É onde eu irei outra vez parar, sei-o bem, se algo se complicar dentro de mim.) E a tia? Em que poço de escuridão se debaterá a tia, agora que jaz no limbo entre duas visitas do sobrinho?

Abro os olhos. Estou na minha antiquada enfermaria. Algures, ali perto, ciranda a enfermeira Leonor e, mais longe, pela cidade, já dormindo ou absortas em imprevisíveis vigílias, luzem as pessoas que fazem parte da minha vida. Eu... Eu estarei na minha antiquada enfermaria enquanto mantiver os olhos abertos e uma tímida luz iluminar a ombreira da porta.

24

Logo que de manhã me apareceu uma empregada no quarto aproveitei para, inocentemente, lhe perguntar se hoje não podia, em vez de me lambuzar nas bacias do costume, ir tomar uma chuveirada na casa de banho que eu, por ter espreitado o corredor, já sabia onde ficava.

Para ser sincero, já tinha esta fisgada desde ontem, porque o ser humano é assim mesmo e mal lhe dão uma bacia quer logo a banheira, o jacuzzi. Já não me chega o banho à

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gato. Preciso de me lavar em condições. É que, fazendo bem as contas, não sei o que é tomar um banho há quinze dias! É muito, sobretudo em pleno Verão.

E, acima de tudo, incomoda-me, mais ainda do que poder impressionar mal quem aqui entra, cheirar a doente, que é o meu cheiro actual; uma mistura infeliz entre o odor de balneário de liceu e o aroma de armário de casa de banho, com um toque de essência de talco velho. Cheirar como um doente perpetua a minha condição de doente, não me ajuda nada a progredir em direcção à cura. Estou a caminho de me transformar num ser não-humano, empestado por um perfume de borracha de irrigador, destilando remédios em vez de suor; humores que ficam agarrados à pele como nuvens baixas, emitindo uma vibração cada vez que me mexo. Cheiro exactamente ao que me repele quando me aproximo de um doente.

E pensar que tudo isto se resolveria com um simples banho! Porém, a empregada não achou o meu desejo tão simples de satisfazer quanto isso

e foi lá dentro aconselhar-se com a enfermeira... Que veio na peugada da primeira dizer-me que era melhor não, talvez amanhã.

“O senhor ainda está muito fraco e com o vapor quente pode ter alguma tontura; sentir-se mal, cair. Talvez amanhã...”

Esmoreço com a negação e lá me arrasto em direcção às bacias. Para me vingar, decido lavar também a cabeça e enfio-a, desafiadoramente e sem pedir licença na espuma anti-séptica, até tocar o fundo da tina destinada à higiene da “parte de cima”.

Tal como ontem intuí, a dr.ª Lúcia Garcia assumiu o leme da cama 16 e ei-la que, imparável, cruza a porta do quarto.

“Então, como é que vai hoje?” Que posso eu dizer?; agora que há luz, por hoje já me picaram o que havia a picar,

tomei o pequeno-almoço e lavei a cabeça, senão que: “Acho que vai tudo andando bem.” “Nada de dores?”, insiste ela. Não, não tenho dores; sinto os ossos do peito um tanto doridos quando me mexo,

mas nada de especial, não me vou pôr a queixar daquilo. “Suo é muito, sabe?”, digo, aproveitando a aberta, e para me tentar livrar de uma

dúvida não resolvida, “acordo sempre encharcado em suor, com o casaco do pijama colado às costas”.

“Bem..., está muito calor, é natural que sue”, diz ela, visivelmente pouco impressionada com os sintomas, começando a abrir o meu, cada dia mais espesso, processo clínico.

Pois.., é uma explicação consistente, mas eu tenho estado para aqui a magicar em postulados etiológicos mais sofisticados. Já as enfermeiras, a quem me lamentei do mesmo, a quem mostrei, como provas definitivas e irrefutáveis, a rodilha ensopada do casaco de pijama, a mancha húmida no lençol que cobre a poltrona de napa preta, me brindaram com razões, plausíveis, sim, mas bastante primitivas para o meu gosto:

“O colchão da cama tem uma cobertura de plástico; é claro que não deve ser tão fresco como o de sua casa.”

Até a João, que, em princípio, não integra a conspiração, vibra no mesmo diapasão: “Claro!, a poltrona é de napa, é um material sintético. Não é uma textura que

respire como o couro ou o tecido.” Quase no fim da visita, depois de ter passeado o estetoscópio pelos pontos cardeais do meu peito e costas, a dr.ª Lúcia perguntou-me, enquanto folheava as últimas novidades do meu processo e como quem não quer a coisa, se eu tenho para onde ir quando sair daqui, isto é, se tenho algum local preparado e quem tome conta de mim. Respondi-lhe que sim, que me espera um atapetado ninho, e ela deixou cair um hipotético:

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“Então, se calhar, na sexta-feira mandamo-lo embora.” Fico suspenso, à espera de mais pormenores, mas ela, após um sorriso rápido, desapareceu com o meu dossier debaixo do braço.

Em cima da hora do almoço, enviada por uma médica Fisiatra à qual me queixei ontem, passou por aqui uma fisioterapeuta a quem me agarrei com unhas e dentes, pois já tive oportunidade de perceber que ensinam óptimos truques “faça você mesmo” e, no meu presente estado, preciso deles como de pão para a boca; tenho muito a perguntar e a aprender.

Primeiro, e mais urgente: como tossir? “Não se defenda da tosse; tussa tudo o que tiver a tossir...”, insinuara o dr. Luís

Caniço antes de me mandar cá para baixo; tal o mestre que, na hora da despedida, deixa cair no regaço do iniciado um amuleto para o proteger dos perigos não imaginados da viagem. Rapidamente, como é próprio dos estagiários, esqueci a advertência do mestre. Tossir? Eu não tinha tosse!

Evaporados os últimos vapores da morfina que me davam lá em cima e que tem como uma das muitas propriedades terapêuticas um poderoso efeito antitússico, o reflexo da tosse restabeleceu-se e, estando eu em sossego, acontece que tossi. Uma única e simples vez, mas suficiente para jurar que, se de mim dependesse, eu não voltaria a tossir nunca mais.

“Não se defenda da tosse...” Tossi e a dor brotou tão violenta que, de imediato, usurpou todo o espaço

reservado à consciência, fazendo escoar, num imenso buraco negro, todo o presente: o local onde estou, quem sou eu – entre outras ninharias. Durante uns longos e bloqueados minutos fiquei completamente imóvel; surdo; mudo; o peito rebentado por uma granada; à espera que sucedesse o que costuma acontecer às dores: que vão abrandando com o passar do tempo. Mas esta parecia não recuar. Como podia eu, após um aviso daqueles, não me procurar defender?

“Não se defenda da tosse...” Segundo, e também muito urgente: como começar a mexer-me mais, como, por

exemplo, sentar-me na cama sem ajuda? Ela sorriu e quis, primeiro, saber se eu tenho praticado os meus exercícios

respiratórios. Acenei que sim, mas ela quis uma demonstração prática. “Caramba!”, pensava enquanto inspirava e expirava pela cartilha jardim-de-infância

do cheirar-a-flor-e-soprar-a-vela, “esta gente da fisioterapia é toda obcecada pela respiração”.

À décima expiração ela deu-se por satisfeita e passou a ensinar-me os tais truques, modestos como verdades básicas.

“Quando sentir que vai tossir, cruza os braços sobre o peito, para o proteger, de modo a que os braços comprimam o esterno e as mãos – de palmas completamente abertas e dedos estendidos – amparem as últimas costelas.”

Experimentei o auto-abraço. “Isso”, continuou, “e tente – sempre que lhe for possível – fazer coincidir a saída

da tosse com a expiração. Ora tussa lá.” Muito a medo, lá tossiquei uma amostra. “Isso, está a ver? Outra vez. Mas agora, antes de tossir, experimente inspirar primeiro o ar e tente empurrar a tosse cá para fora à medida que expira.” Surpreendente. Tossir a prestações. Como a coisa funcionava, como era tão espantosamente simples. E logo que aquela santa me deixou, depois de explicar ainda como uma tartaruga entornada se pode sentar usando a alavanca de um antebraço, entretive-me a tossir sem

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mestre. O Dr. Luís Caniço teria orgulho, se me visse ali, abraçado a mim mesmo e a tossir confiadamente. “Então? Está com tosse?” Era a Rosa que chegava com o meu almoço na ponta dos braços estendidos. “Olá. Outra vez de serviço?”, cumprimentei-a, satisfeito por a rever tão cedo, pois é normal as pessoas aparecerem e desaparecerem sem aviso, no preciso momento em que nos habituamos à sua presença, em que começamos a entender as suas idiossincrasias de função. “Sim, eu só trabalho aqui, na Cardiologia.” E repousando os braços cruzados na mesa que serve de apoio à minha cama, como se estivesse debruçada num mirante, acrescentou, desafiando-me: “Sabe há quantos anos eu ando por aqui, por Santa Marta?” Pousei a colher, que iniciava um arco ascendente, e tratei de me concentrar na pergunta. Ela aguardava, sorridente, na pose triunfante de quem sabe que o opositor não tem a mínima chance. “Sei lá...”, dizia, procurando ganhar tempo, imaginando a idade que ela teria (os seus vinte ou vinte e um anos, não poderia ser muito mais) e subtraindo-lhe mentalmente a idade mínima de ingresso no mercado de trabalho. “Sete anos?”, exagerei, a medo, desprezando, numa tentativa para não sair pesadamente derrotado, as leis sobre trabalho infantil, os direitos universais da Criança. “Quinze anos...”, esmagou-me, desvanecida com o meu ar incrédulo. “Mas como é possível?”, queria eu saber, de colher no ar, “que idade tem você, afinal?” “Vinte e dois anos”, respondeu, numa displicência de quem acha a pergunta irrelevante para a matéria em discussão. Rapidamente, pus-me a rodar teorias na cabeça: será que ela seria um daqueles casos de crianças cronicamente doentes que, de recorrerem tão habitualmente ao hospital, vão sendo esquecidas pela família e se tornam peças da mobília, passando a viver pelas enfermarias? Não, não neste caso. Não era compatível que aquele sorriso sem sombra de mágoa, aquelas cores de maçã lustrada, correspondessem a um triste ex-espécime de hospitalismo. Compadecida de mim, do meu apetite suspenso e do almoço que arrefecia, ela adiantou o epílogo: “ A minha mãe já aqui trabalhava e, quando eu nasci, começou a trazer-me com ela; nessa altura ninguém levantava problemas. De pequenina que brinquei nos jardins e corredores do hospital; conheço isto tudo, de uma ponta à outra.” “E você gosta; gosta de trabalhar aqui...”, concluí, mais do que perguntei, rematando a sopa e o mistério. Sem pronunciar uma palavra, ela acenou com a cabeça, num ênfase de quem, desde que tinha vindo ao mundo, encontrara a vocação naquelas grossas paredes. Depois sorriu-se e disse: “Bem, vou aqui ao lado ver ser precisam de mim. Não quero ver nada no seu prato quando voltar: veja lá se come tudo, que está muito magro!”

Há bocado, tinha acabado de jantar e estava deitado na cama, ofegante; a descansar do esforço que é comer uma refeição completa e das emoções das últimas visitas da noite, quando ouvi um toc-toc na ombreira da porta e uma voz perguntar se podia entrar. Estiquei o pescoço para além do oleado da cortina e vi aproximar-se uma pessoa, vestida com o traje verde que identifica quem aqui trabalha. Era uma senhora desconhecida, que

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me sorriu as boas-noites e, rodeando a cama, se veio sentar, virada para mim, num dos braços da poltrona de napa preta. “Quem será?”, perguntei-me, sem, no entanto, dar a entender o meu desconhecimento, pois já me habituei a receber a visita de colegas simpáticos ou de funcionários do hospital que, aproveitando o passaporte da bata ou do estetoscópio, me vem trazer recados e cumprimentos de algum conhecimento mútuo. “Como tem passado?”, ia ela dizendo num tom amistoso, enquanto eu lhe passava rapidamente o scanner das minhas retinas, comparando aquela imagem com os meus arquivos da memória: face oval, cabelo curto, castanho e de ar macio; uma cara bonita onde brilhavam uns olhos inteligentes... (“não, não sei quem é”) E, nesse momento, numa iluminação, reconheci-a pela atraente redondez dos seus olhos, pela penetração calorosa do olhar. “Já sei quem é”, disparei, satisfeito, “é a minha anestesista; eu sabia que a ia reconhecer pelo olhar!”

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Rotina. O que na nivelada perspectiva de um internado melhor caracteriza um hospital é o rígido circuito da sua vida diária. Rotina. Também não podia ser de outro modo para manter funcionante um mundo onde se cruzam centenas de doentes, de que é preciso cuidar, e centenas de profissionais, que tratam deles. Rotinas...

O meu dia inicia-se pelas oito da manhã, hora a que uma mulher da limpeza (habitualmente negra) entra pelo quarto dentro e, sem uma única palavra, acende as luzes e põe-se a passar o soalho a pano. Não se incomoda comigo, nem a minha presença a impede de limpar o chão por baixo da cama, pois como esta tem rodas basta dar-lhe uns pequenos encontrões para resolver o assunto. Eu, claro, vou a reboque. Acabada a limpeza, sai, deixando a luz acesa.

Estou prestes a retomar o sono quando um “bom dia” viola os ares e alguém de bata branca confirma o meu nome num papel antes de me espetar na veia do braço uma seringa: tiram-me sangue para analisar. Muitas vezes, são simpáticos e perguntam antes em que braço prefiro ser picado. Encolho os ombros, pois tanto me faz – fui, sou, tão picado por toda a gente, que me é desanimadamente indiferente o local onde enfiam a agulha.

“As suas veias estão a ficar muito rígidas”, comenta a técnica, procurando com o indicador enluvado um ponto de sangria razoável, “já quase não sei onde o hei-de picar!”

Consegui voltar a adormecer, mas não por muito tempo: outro “bom diiia”, outra vez a luz a acender-se e uma enfermeira avança para mim artilhada com uma pequena seringa – é a minha dose diária de fraxiparina, droga que me é dada com a mesma finalidade com que se usa vinagre na cabidela: não deixar engrossar e coagular o sangue; a qual me é aplicada na barriga, um dia à esquerda do umbigo, no seguinte à direita.

“Em que lado foi picado ontem?” A seringa é minúscula, a agulha é curta, a picada é fina, mas fica a retinir durante

algum tempo aquela sensação fria e aguda. Fico a olhar para o tecto e, pouco a pouco, vou-me embrenhando no som da Rádio Nostalgia que alguém acabou de ligar para todo o hospital. Acabam de dar as nove horas.

Dawn is a feeling A beautiful ceiling...* “Bom diiia...” Uma enfermeira, com a frescura só possível em alguém que acabou

de chegar ao trabalho, vem medir-me a tensão arterial e tomar-me a temperatura. Levanta * Da canção Dawn, interpretada pelos Moody Blues (Days of Future Passed, 1967).

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a parte superior da cama até eu ficar quase sentado, enfia-me a braçadeira do aparelho que está permanentemente à espera ao lado direito da cabeceira e, depois de o sacudir e verificar a escala, entrega-me o termómetro e vai-se embora: o esfigmomanómetro é automático e quando ela voltar revelar-lhe-á, de bandeja, a frequência do pulso e a tensão do sangue contra as minhas artérias. Já sei o que ela vai dizer ao olhar o mostrador de números vermelhos:

“Ui!, a sua tensão está muito baixa Costuma tê-la sempre assim tão baixa?” “Não”, direi eu, “antes de ser operado tinha-a normal.” Estou, embalado pela música, outra vez a sentir-me amolecer, e eis que um tilintar

metálico anuncia a aproximação do banho. Apesar da superficialidade da lavagem, a higiene matinal refresca-me, elimina a

sensação peganhenta de uma noite suada, do pijama colado ao corpo, e desperta-me para as alegrias do pequeno-almoço.

Pequeno-almoço, almoço, lanche, jantar, ceia – esta gente passa a vida a dar-nos de comer, num ritual que me recorda os voos intercontinentais, com as hospedeiras constantemente a pousar-nos sob o nariz refeições, e snacks, e aperitivos; tentando estabelecer quebras na entediante, claustrofóbica sensação de eternidade da viagem.

No hospital é a mesma coisa e eis o meu biorritmo completamente dependente do metrónomo da cantina. A comida (tal como nos aviões) chega à enfermaria em enormes carrinhos metálicos e daí é distribuída ao nosso regaço pelas mãos da Diana, da Rosa ou de qualquer outra empregada que esteja ao serviço.

Pequeno-almoço e medicação. A refeição é, quase sempre a mesma (chá de tília, pão, compota, nada de manteiga, uma peça de fruta), os comprimidos é que, às vezes variam, e eu pergunto sempre o que é aquele desconhecido, redondo e cor de salmão, que é novidade no copinho de plástico onde se amontoam os remédios. No princípio, as enfermeiras hesitavam um pouco perante a pergunta, mas à medida que se vai sabendo por aqui que sou médico, lá me vão fazendo o obséquio:

“É o suplemento de potássio receitado pela dr.ª Lúcia.” Sossego. Se foi receitado pela dr.ª Lúcia... Entre o pequeno-almoço e o almoço bato uma pequena soneca, entretenho-me a

coscuvilhar a azáfama do corredor e recebo a visita dos médicos, que caem em força na enfermaria ao fim da manhã, quando as camas estão feitas, os doentes lavados e comidos e as análises, e outros elementos auxiliares da avaliação do estado dos pacientes, enfiadas nos respectivos processos clínicos.

As visitas sociais são raras antes do almoço: o hospital concentra a primeira rodada de visitas precisamente à hora do almoço, o que é uma estratégia simpática e útil, pois assim os familiares sempre podem fazer companhia ao doente (é sempre mais chato comer sozinho) e dar uma ajuda ao descasque da fruta ou a uma colher de sopa mais titubeante. Eu, por exemplo, acreditem ou não, vejo-me desesperado para descascar uma maçã: não só porque me faltam braços e ombros para isso, não só porque é uma tarefa longa e cansativa, mas também porque as facas são rombíssimas! Não, o esquema está bem pensado.

Hoje o almoço é bocadinhos de peru assado, acompanhados com batatas e couves de Bruxelas e está tudo óptimo. Sentada na borda da cama, a João, que ainda não almoçou, olha para mim com inveja, um tanto espantada com o meu desenfreado apetite.

“Está bom?” “Muito bom”, digo, com a dicção atafulhada de peru. “Deixa-me provar?”, implora ela, morta de cobiça. Ao invés das manhãs, em que ninguém nos deixa em paz, no hospital as tardes são

livres e passo-as a ler Truman Capote e a ouvir a Rádio Nostalgia, seja pela coluna

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aparafusada no tecto do quarto ou, quando pretendo abstrair-me dos ruídos ambientes, pelos auriculares do walkman que o meu filho Zé João me emprestou.

Não sei explicar por que razão me deu para eleger o Truman Capote como escritor de cabeceira para a minha estadia hospitalar. Porquê esse e não outro? Intriga-me... Tive, já no Hospital de Torres Vedras, outros livros à minha disposição, mas não consegui pegar em nenhum deles com convicção; não penetrava mais do que uma página ou duas em qualquer deles. E, então, veio-me, de repente, a gravídica vontade de reler a prosa, jornalisticamente requintada e subtilmente poética, do homem. Pedi à João para me trazer os livros, tudo o que houvesse lá em casa: Música para Camaleões, Súplicas Atendidas, Harpa de Ervas, tudo com que topasse na estante.

Também o faço na cama, mas, sendo menos violento para os braços e para o pescoço, leio sobretudo sentado na poltrona, a perna direita estendida e apoiada numa cadeira, para poupar à desgraçada, que ainda deve estar confusa, o esforço de bombear contra a gravidade o sangue por uma veia que deixou de existir em metade da sua extensão.

Quando me canso de ler, ou porque o cérebro se me derrete sobre as pálpebras ou porque não aguento mais o esforço de manter aberto e folhear o livro, estico a poltrona para trás, enfio os auriculares nos ouvidos e fecho os olhos para uma leve siesta ou, se o torpor é grande, rastejo até à cama para um exercício de maior envergadura.

Assim ficaria de bom grado até ao lanche, mas alguém soprando o meu nome, uma cadeira arranhando a corticite do soalho ou uma interferência junto do meu corpo, obrigam-me a descolar os olhos em direcção à vigília. Eu já sei o que é: são visitas!

Há-as de todas as espécies e feitios: curtas e longas; sonantes e silenciosas; com presentes e de mãos a abanar; as que se locomovem normalmente e as que, apenas entram a porta, se transportam em pontas como se bailassem num Lago dos Cisnes; as que me olham como era seu costume e as que agora derramam o olhar em mim. Há-as para..., ia sintetizar, “todos os gostos”, mas, para meu gosto actual, preferiria não ter nenhuma.

Não me apetece ver ninguém, não sei os porquês. As melhoras que me enviam pessoas conhecidas nada me dizem; os recados pessoais dos amigos que me traz diariamente a João não me despertam qualquer espécie de emoção, ouço referir os nomes deles com distante estranheza. Algo se passa de diferente, houve um elo com o mundo que se quebrou neste ataque que o meu coração fez a mim próprio, reclamando uma autonomia insensata.

Visitas. O início foi insidioso e eu estava desprevenido, convencido que as coisas se passariam à semelhança do que era regra nos cuidados intensivos da cirurgia: aí não nos passavam telefonemas e as pessoas estranhas ao serviço eram rigorosamente controladas. Era assim que se passavam as coisas lá em cima, no espaço estelar; mas cá em baixo, de volta ao país do caldo verde, a romaria cedo desfilou.

Telefonemas, uns atrás dos outros; pessoas a entrarem por aqui dentro, um quarto de porta aberta, às vezes em molhadas de três, cruzando diálogos por cima do meu pretexto. É normal, é natural, era bem intencionado, era um sinal de que contava com amigos no mundo, mas eu ia-me finando com o desgaste, eu ficava afónico de cansaço a seguir a cada telefonema, esfalfado no fim de cada visita, comatoso no rescaldo de uma conferência em simultâneo.

De tudo isto me salvou a enfermeira-chefe, a quem supliquei que me defendesse dos amigáveis ataques do exterior. Compreensiva e batida no assunto, só me pediu confirmação do que lhe pedia e a listagem das excepções. A partir daí, como um dragão zelador, ela tratou do resto. O telefone deixou de viajar constantemente para o meu quarto e cada tentativa de contacto não prevista era submetida ao meu desejo e decisão. Deus seja louvado. Claro que houve amuos no meio do embargo e delicados incidentes diplomáticos que tiveram de ser cuidadosamente desenredados. Mas com esses remorsos podia eu bem.

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Demora-se sempre em mim uma leve angústia quando, na visita da hora do jantar,

vejo a João olhar para trás num último adeus; cruzar a porta e desaparecer até ao dia seguinte. Lá se foi, penso, na irremediável eternidade com que animais e crianças sentem as ausências, a minha ligação com o resto do mundo. E haverá para mim um dia seguinte?

Dissipo a angústia com alguma acção por trás da cortina que esconde o lavatório, escovando os dentes com o vigor possível e atirando, antes de voltar à cama, uma última miradela à janela que dá para não sei onde e na qual a noite se encostou aos vidros. Depois, disponho as duas almofadas na cabeceira da cama, ponho um livro e o walkman ao alcance da mão e deito-me.

Nunca, como à noite, um hospital que durante o dia se assemelha a um mercado onde todos circulam e tudo se deixa atravessar, se torna um local privado. No hospital a noite é calma e tem algo de íntimo: terminaram as visitas, mesmo as últimas, aquelas que teimam após o recolher obrigatório e fazem bufar de impaciência as enfermeiras. A nossa casa comum fecha-se ao exterior; ficamos só nós, os doentes e o pessoal, flutuando noite fora numa família de acolhimento temporário.

Entre o fim do jantar e a ceia fico a ouvir música e a ler e, se não tenho os auscultadores enfiados nas orelhas, a deitar um olho para algum sobressalto no corredor ou a distrair-me pela conversa dos compinchas do quarto ao lado; diálogos perdidos num fragmentado rememorar do que cada um deixou para trás ou, ainda mais frequentemente, centrados na discussão de detalhes esmagadoramente orgânicos e escassamente psicológicos, comuns a todos nós, os internados: Comer, as dificuldades do engolir e as extravagâncias do apetite. Dormir e a relutância em adormecer ou as aparências da insónia de cada um. Tossir, muito ou pouco; tosse seca e tosse recheada; dolorosa ou fácil. Apertos, palpitações, moedeiras ou sacolejões no peito. Urinar; abundante, às pinguinhas, ardente; branca, amarela, alaranjada; turva, com ou sem espuma ou odor... Mas, a grande atracção destas trocas de impressões (e com uma explicitação de pormenores de uma riqueza e franqueza só possíveis nesta irmandade) é o acto de evacuar.

Evacuar, defecar, obrar, cagar. Escolha-se o termo que melhor se adaptar à susceptibilidade de cada um, mas saiba-se que a satisfação dessa necessidade fisiológica é a estrela da companhia e ocupa, destacada, o primeiro lugar na lista de preferências das conversas nas enfermarias hospitalares. “Que horror!”, dir-se-á, “podiam entreter-se com assuntos mais agradáveis!” Ah..., mas aí é que está o busílis, é que o assunto torna-se obsessivo quando a função não é cumprida agradavelmente, satisfatoriamente, até, pois um doente internado não é, na generalidade, pessoa para grandes exigências: ele adapta-se o melhor que pode à plenitude possível. O desempenho do acto é, já de si uma coisa complicada: sem privacidade, na posição de deitado, em cima de um artefacto que lembra um bidé de lata atropelado por um rolo compressor. E, numa enfermaria repleta de doentes cardíacos, associam-se às dificuldades descritas muitas outras, marcadas pela ansiedade e pelo medo: todos nós temos o intestino preguiçoso ou entupido quer porque estamos acamados e parados, quer porque tomámos morfina (uma terrível rolha); nenhum de nós ignora que o esforço físico específico exigido pelo acto pode desencadear um agravamento da situação cardíaca ou, inclusive, um novo enfarte. Há tipos que ali foram parar na sequência de um momento desses. É trauma que não esquece.

Aqui, em Santa Marta, a obsessão é esta, por um assunto destes se gera facilmente solidariedade entre doentes e entre estes e o pessoal que aqui trabalha; já no Hospital de Torres Vedras era a mesma coisa, a mesma conversa, as mesmas piadas exorcizantes, as mesmas risadas esverdeadas; o mesmo olhar preocupado a um ventre que, embora tenso como a pele dum bombo, permanecia impiedosamente mudo.

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Por isto ou por aquilo, a lembrança esgueira-se-me muitas vezes para Torres Vedras, para a gente que aí me cuidou e, em particular, para os meus colegas de cama na Unidade de Cuidados Especiais. Penso muitas vezes neles. Que será feito do António Luís?; continuará internado e a arremessar românticas palavras de assédio às belezas que tomavam conta de nós? E do engenheiro Fidalgo, que tão tenazmente resistia ao conceito e prática do uso da arrastadeira? Onde estarão neste momento? Estarão vivos?, estarão bem? Quantos doentes haverá agora internados na Unidade de Cuidados Especiais? A enfermeira Catarina estará de serviço esta noite?, ou será a Inês? Tenho que procurar saber dessa gente logo que sair daqui.

O devaneio esgotou-se e dou por mim a cabecear de sono, o livro descaído entre os dedos, o rádio a zumbir lá no alto, a enfermaria quase em recolhimento total; um tintinar de louças lá ao longe – deve ser a ceia que está sendo ultimada na copa.

Calculo (faz parte da rotina diária) que por este instante as duas enfermeiras de serviço se estejam a travestir de massagistas na sala de trabalho. A metamorfose, desiludam-se as bocas aguadas, não é muito imaginativa: enfiam umas luvas de borracha, empunham uns tubos de pomadas, de onde se escapa a antiquada fragrância da arnica, e passam, de sala em sala, a oferecer uma massagem nas costas aos doentes internados. A primeira vez a que tal coisa assisti fiquei estupefacto: com o tipo de serviço oferecido pelo hospital, pela lembrança, pela simpatia; com a paciência gentil das raparigas ao fim de tantas horas de serviço.

“Quer uma massagem?” Não tenho tido, até hoje, lata para ousar pronunciar um “sim” Inibo-me, não

quero abusar, sobrecarregar o essencial do trabalho delas, que é, já de si, pesado e repetitivo.

Ceia; medicação da noite; última medição da febre e da tensão arterial. A música extinguiu-se; as luzes dos quartos apagaram-se; ouve-se um ou outro doente a fazer um último pedido, a apresentar uma queixa de última hora, como os meninos que atrasam a chegada do sono com pavor das sombras agigantadas pelo escuro.

Eu não me queixo; não chamo ninguém, não peço um derradeiro copo de água; mas não escapo a essa apreensão, caída sobre mim do meio da escuridão. A noite é tão antiga como este receio de que algo mau vá suceder antes que o sol ilumine de novo os vidros foscos da janela.

“É perfeitamente estúpido”, rumino para mim, atascando-me de pensamentos-talismã como quem almofada o chambrinho de um bebé com saquinhos cheios de ervas bentas, “não há razão nenhuma para a noite ser diferente do dia”. Sei-o muito bem. Aliás, vem nos livros, em esclarecedores gráficos de barras, o período mais perigoso é a madrugada, ao nascer da claridade, quando a vida desiste, cansada ante o desafio de um novo dia, e a tensão arterial se eleva. Portanto, é estúpido estar a inquietar-me. Acalmo um pouco, mas, de olhos entrecerrados, resisto, agarro-me a este dia que finda.

“É absurdo”, insisto, “por que razão concreta há-de o meu coração falhar só por ser noite? Amanhã vou, mais uma vez, verificar que tudo isto foi uma estéril perda de tempo.

Mas acordar vivo no dia seguinte deixou de ser uma certeza, uma coisa natural. Chegará, para mim, o dia seguinte? Nunca sei, não é evidente. No escoar da noite desisto da questão por exaustão.

Às vezes acordo a meio da noite com a sensação de que está alguém dentro do

quarto, que sou observado à sorrelfa. É uma sensação que, por certo, detestaria em qualquer outra situação mas que aqui me faz apenas entreabrir um olho, confirmar a presença e voltar a adormecer, reconfortado e tranquilo. Foi apenas uma enfermeira que

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passou a espreitar, a ver como se aguenta o doente da cama 16; provavelmente para ir escrevinhar uma nota sobre o decorrer da minha noite no livro de ocorrências. Poderia ter sido um anjo, um arcanjo, um querubim, tanto me faz. Seja o que for, entidade benfazeja, apenas perpassou numa alva sombra que logo se dissipou.

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Após numerosas advertências, depois de me fazerem uma visita guiada na qual me apontaram os diversos perigos e a localização do cordel ligado à campainha de alarme, lá me deixaram tomar o meu primeiro banho. A porta da única casa de banho que serve este sector da enfermaria, uma daquelas portas que correm ao longo de uma calha, não tem nem fechadura nem trinco; encosta-se e é tudo! Enquanto me dispo, sinto-me um pouco esquisito com a sensação de poder ser invadido a qualquer momento. Mas a finalidade é mesmo essa: em circunstância alguma deve alguém ficar ali fechado, inacessível a uma rápida intervenção do exterior. Somos todos cardíacos, que diabo! Durante o banho, à medida que a água quente do chuveiro me jorra pelas costas, e depois no final, enquanto me seco e visto, percebo o alcance de todas as advertências, dou razão aos cuidados que me pareceram excessivos, perdoo e agradeço a proibição de não o ter tido tomado mais cedo, aquilo tudo que na véspera me parecera uma mera exibição de poder discricionário por parte de uma enfermeira. Estou tão debilitado que o só inesperado impacto da água me fez vacilar e, em seguida, o esforço da esfrega aliado ao efeito do calor sobre a minha tensão arterial e ao ambiente rarefeito da minúscula casa de banho, deixaram-me completamente tonto; o simples levantar de um pé para enfiar uma perna do pijama não me fez cair porque me apoiei a tempo no lavatório. É com alívio que escancaro a porta, saio para o corredor e, no caminho de regresso ao quarto, endereço o meu melhor sorriso à auxiliar que, durante o meu banho, andou sempre por ali a rondar e, de vez em quando, bateu à porta, a indagar se tudo ia bem. A pouco e pouco, os doentes da sala ao lado ou porque tiveram alta ou foram transferidos para outro lado, foram sendo substituídos e o sr. Cipriano Enguia ficou sem o núcleo-duro dos seus companheiros; aqueles que ouviam as suas histórias com agrado e lhe davam um troco amistoso, aqueles que tornavam amena a sua estadia no hospital. E isso nota-se tão claramente que, apenas usando os ouvidos, se dá conta da deterioração da sua situação humana, e logo, clínica: tornou-se queixoso, confuso, agitado; dá o dobro do trabalho ao pessoal e passa as noites a mexer-se na cama, a falar sozinho, irrequietando toda esta ala da enfermaria.

Ainda por cima, como se não bastasse o desaparecimento dos camaradas, o destino internou um novo doente aparentemente só para ser a sua sombra negra, um tipo que encontrou no sr. Enguia o alvo ideal para descarregar um caracter mesquinho. Aqui deitado, mesmo sem nunca lhe ter visto a cara, a criatura põe-me os nervos à flor da pele, pois está permanentemente a picar o alentejano para desencadear as narrativas atabalhoadas que este agora faz (as mesmas que outrora – quando eram lucidamente articuladas – divertiam toda a gente), às quais responde com escárnio e grosseria:

“Cale-se, homem, não vê que isso que está a dizer é um disparate!” Não resisti, tal aversão o comportamento e o tom do homem me provocam, a

fazer, antes do almoço, uma lenta incursão até ao fundo do corredor para, ao passar pela porta do quarto ao lado do meu, ver a que ventas corresponderia tal personalidade e não precisei sequer de o ouvir falar para descobrir quem era: lá estava, estendido numa cama,

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um tipo comprido, ainda novo, com uma face de feições grosseiras e exageradas, lembrando algo o Tom Waits ou, para quem nunca viu a cara deste cantor-compositor pop na capa de um disco ou uma das suas prestações como actor nos filmes do Francis Ford Coppola*, um daqueles toscos e sinistros personagens que o pintor Jerónimo Bosch escolheu para acompanhar Jesus no quadro em que este transporta a cruz.

No regresso ao meu quarto, fulminei-o com o mais nefasto dos olhares, mas de nada adiantou, pois, pouco depois, lá estava:

“Ó sr. Cipriano, veja lá se esta noite dorme virado para o outro lado. A noite passada ninguém conseguiu dormir consigo a ressonar!”

Um tipo detestável! Da parte de tarde vem visitar-me, com a avó, o Zé João. A João, que apareceu aqui estava eu a almoçar, confirmou-me a vinda. Esta visita tem sido planeada, aprazada, falada, refalada, e, sucessivamente, adiada, sempre por minha iniciativa. Faz-me impressão pensar o que se passará na cabeça dele sobre isto tudo e gostaria de lhe poupar uma visão do pai que o impressione demasiado. Já não o vejo desde o dia em que, fulminado pelo enfarte, tombei no chão frente aos seus olhos, e, já inconsciente, fui arrastado pelo quintal até ao carro, onde, pela primeira vez, ele viajou, sem pedinchar, no lugar da frente. Minto... Vi-o, por um minuto ou dois, no dia dos meus anos, quando me foi dar um beijo de parabéns à Unidade de Cuidados Especiais do Hospital de Torres Vedras. Sim, é verdade, vi-o brevemente nesse dia; eleva-se agora diante de mim a sua imagem: tímido, de calções, parado à borda da cama, levemente arredio, o olhar muito sério emitindo um inarticulado “quando voltas para casa?, aqui não é o teu lugar”. Por tudo isto; por mim, por ele, estou nervoso com a perspectiva iminente da visita. Mas, também, com a minha eventual alta amanhã, não dá para adiar mais a vinda.

E as visitas chegaram, dobrando, uma a uma, o umbral da porta: entrou primeiro a minha sogra, comovida mas sorridente, empunhando um pequeno bouquet de flores do quintal de Cascais, as pobres já desfeiteadas pela canícula de Julho, demasiado cáustico para flores vaguearem pela cidade. Na sua esteira surgiram o Zé João e o primo, o João Pedro, ambos esfregados, penteados, e afivelados em recomendações para uso hospitalar.

Sentado na poltrona de napa, a perna direita esticada e apoiada no tampo de uma cadeira, desligo os fios que me ligam ao monitor e começo a levantar-me para os beijar. A minha sogra (está a ver-me pela primeira vez após toda esta história), os olhos brilhantes, os lábios apertados, para se manter firme em frente dos pequenos, ensaia um impedimento. Sorrio-lhe um “não, eu faço questão”.

Rápida, ela vira costas; procura pelo quarto um recipiente onde possa colocar as flores.

“Vai ter que se arranjar com isto”, digo-lhe, indicando o copo pousado na mesinha de cabeceira; “há uma torneira ali ao fundo, por trás da cortina”.

Tal como as flores, que sobram pelo copo fora, os três estão parados à minha frente, em pé, sem à vontade para ocuparem as duas únicas cadeiras livres que há no quarto.

“Vá, sentem-se”, digo, empurrando na direcção deles a cadeira onde tenho a perna pousada. E, brincalhão:

“De pé, ficam muito altos...” Nestes quinze dias, o meu filho cresceu; está mais moreno. “Vocês estão pretos! Têm ido para a praia?” “Não, temos ido todos os dias para a piscina da Nita...” O Zé João, reparei logo que entrou, tem uma enorme ferida a meio da perna, de

través sobre a crista da tíbia, ferida de pouca carne, feia, de crosta recente e grumosa. Pergunto-lhe onde a fez. * Pode ser visto, por exemplo, em Rumble Fish (1983), The Cotton Club (1984), e Dracula (1992).

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“Foi na piscina da Nita...” “Deve ter doído imenso, quando a fizeste.” Ele acena um sim, depois olha o chão, outra vez encabulado. “Mostra cá”, peço, “deixa-me ver ao perto; pousa aí o pé na borda da poltrona.” Depois de o ter junto a mim, de lhe observar a ferida com cuidado, de uma carícia

na barriga da perna magoada, ele fica mais à vontade e, deixando-se estar encostado a mim, começa a interessar-se pela fiarada e pelos agrafes no meu peito.

“Doem-te?”, quer saber. “Não, mas tenho mais, sabes? Também tenho uma ferida na perna”, digo

levantando a perna do pijama. “Quantos são?”, pergunta. “Cinquenta e quatro ou 57. Se queres que te diga bem, já não tenho a certeza; um

dia estive a contá-los mas já me esqueci do número exacto.” Tivesse a minha sogra chegado duas horas mais tarde e o Zé João não teria tido a oportunidade de ver, ao vivo, em que consiste um pai agrafado, pois, segundo me disse a pedido da dr.ª Lúcia, apareceu aqui um jovem e simpático cirurgião cardiotorácico que desceu lá de cima, das alturas, para proceder à retirada dos agrafes e dos fios metálicos do pacemaker provisório que ainda conservo pendurados no peito, enrolados numa gaze. O médico enfia umas luvas e empunhando um pequeno objecto metálico que parece uma tesoura de manicura, diz: “Ora vamos lá a isto...” Um agrafe cirúrgico não se distingue grandemente daquele outro que usamos para criar um bloco de papel, a partir de um conjunto de folhas soltas. Ambos consistem num pedacito de metal cujas extremidades aguçadas, sob a acção de uma forte pressão, se cravam verticalmente e unem elementos anteriormente separados: papel, no exemplo que escolhi; pele, no meu caso. E, na substância a aproximar, reside também, na hora de desunir, a diferença: o papel não se queixa! Durante os anos em que pratiquei cirurgia, a maior parte deles como ajudante do meu pai, muitas vezes apliquei agrafes em incisões cirúrgicas. E gostava dessa tarefa, remate de uma intervenção que, por vezes, se arrastara horas. Depois de apanhado o jeito, a coisa é fácil de fazer, dá prazer ver o resultado final e, sobretudo, é um procedimento muito mais rápido do que coser com linha. Uma limpeza. Tirar agrafes, para ser sincero, tirei muito menos do que coloquei; sei lá, não calhou tanto. Quanto à impressão que o processo faz ao paciente... Huum, nunca tinha reflectido muito nisso. Pôr, não custa nada – eu sabia – o processo é feito sob anestesia. Tirar... Confesso que, na perspectiva de doente, me pus a pensar no assunto muito antes da hora de os extrair, quase desde o momento em que os vi à luz do sol. É que cinquenta e tal agrafes! Imagine-se: e se extrair 1 já dói? “Não, isto não custa nada”, dizem os médicos, “praticamente não se sente”. Exacto. Praticamente... Só que o praticamente é a nossa pele, a deles é, nestas circunstâncias, completamente teórica! Bem, a pinça estava romba, o cirurgião era jovem, e, provavelmente, tal como eu, colocara mais agrafes do que os que extraíra. Aquilo picava que se fartava e ao quarto agrafe já eu perguntava: “Vai tirá-los todos hoje? Não é muito cedo? Julgava que ia tirar um-sim-um-não. Olhe que eu, no sítio para onde vou, tenho possibilidade de tratar do resto, basta dizer o dia em que quer que os tire.” “Não vai ser necessário”, dizia ele, prestável, “tira-se já tudo agora. Esta pinça é que está um pouco esquisita...” “Mas olhe que é nova, dr.”, esclareceu o enfermeiro que assistia a operação.

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“Pois..”, admitia o médico, vendo-me estremecer a mais uma extracção, “é nova, mas não presta! Por favor, vá-me lá buscar outra.” O médico ocupou a espera na limpeza dos minúsculos pingos de sangue que assinalavam o local onde uma ponta de metal deixara a pele de modo mais abrupto e eu aproveitei também para, disfarçadamente, passar as costas da mão pelos olhos, procurando dar sumiço à encarnação do “até me vieram as lágrimas aos olhos!” Com a segunda pinça a situação melhorou: estou já livre de agrafes e a ser besuntado com Betadine. “Isto agora não vai doer nada”, avisa o cirurgião, começando a desenrolar cuidadosamente o novelo de fios do pacemaker, “vai apenas sentir uma leve impressão, como se fosse um puxão”. Exacto, não doeu nada; não posso invocar sofrimento – apenas o desconfortável estiramento que deve experimentar uma lagarta ao ser arrancada da folha de alface onde tem a tromba enfiada. Senti as extremidades invisíveis dos fios, aquelas que estavam entrosadas no coração, descolarem-se num estremunhamento e, no longo trajecto até à luz exterior, nessa relutância em abandonar as profundezas do corpo, um recuar feito de minúsculos braços que resistem à partida. “Viu?, não custou nada!”, comentou o médico sorridente, “agora só falta tirar as sedas de sutura dos drenos, mas isso só lá para segunda ou terça-feira”. E, dando por terminada a sessão, despedindo-se com um afável shake-hands, abalou até à próxima cabine telefónica onde, seguramente, o esperava uma urgente mensagem dos outros super-heróis, a senha para uma nova missão no espaço exterior. Zaaap... Hoje, deve-lhe ter calhado, todo o santo dia tem estado de serviço à nossa Unidade a dr.ª Lúcia Garcia. Esteve de manhã (veio aqui, como é costume, observar-me), esteve toda a tarde (via-a, de quando em quando, passar ali no corredor); já a vi depois do jantar – sorriu-me, de longe, ao atravessar a porta de entrada do Serviço, um sorriso, belo como uma sobremesa. Se calhar só se livra disto logo ao fim da noite, com o próximo turno. Para mim é um luxo, sabê-la por aqui. É certo que está permanentemente um médico de apoio à enfermaria, mas a dr.ª Lúcia, para além de ser a minha médica e uma atraente morena, cruza o meu espaço visual com tanta frequência, intensidade e denodo, que acaba por me transmitir uma reconfortante sensação de tranquilidade.

Da minha cama posso controlar tudo o que entra e sai do Serviço, pois, uma décima de segundo após cruzarem a porta de entrada, as pessoas, o trem da comida, as macas, os aparelhos – enfim: tudo o que se move ou é movível – entram no meu campo de visão, atravessam a minha nesga de paisagem: um espaço circunscrito pelo caixilho da porta do quarto, esquadria ao qual um pedaço de parede acrescenta perspectiva; parede onde, com uma mão repousando sobre o coração e os olhos em alvo dos seres etéreos, existe pendurada uma imagem de Santa Marta. Ao contrário do dr. Gil Seabra, que entra na Unidade como se fosse o seu primeiro dia de trabalho, tímido e quase cosendo-se com as paredes, só lhe faltando mesmo tocar à campainha antes de entrar, a dr.ª Lúcia move-se aqui como peixe na água, dir-se-ia que não nasceu para outra coisa: desde o modo como empurra a porta à entrada, aos passos determinados pelo corredor fora, tudo aqui é o seu aquário privativo (e até o oxigénio parece borbulhar em sua intenção).

Será que amanhã me vão mesmo dar alta? Tudo parece, pelo encaminhar da situação, mas... Não sei, eles nunca são muito claros, não dizem “vá-se preparando, vá avisando a família, que amanhã vai embora”. A dr.ª Lúcia aflorou ontem o assunto e, mais nada, não se falou mais nisso; nem ela, nem eu, nem nenhum dos outros médicos que por

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aqui passaram a seguir, nem mesmo este que me veio agora livrar de todo o ferro-velho que ainda me atravancava o corpo. Ninguém... Com a excepção do birmanês. “So..., when are you leaving?” O birmanês é um médico que vi pela primeira vez na sala das coronariografias, secundando e observando com toda a atenção os procedimentos do dr. Gil Seabra. Segunda-feira ao passar pela porta do quarto fez-me um simpático aceno de reconhecimento e, na terça-feira, entrou para me cumprimentar e ficou a falar um bocadinho. Desde aí é um ferrinho diário, lá pelo fim da manhã, às vezes também à tarde. Acho que não tem muito com quem falar e, para além do mais, não fala português. Nasceu na Birmânia, mas a vida, após a licenciatura em Medicina, empurrou-o até Macau, onde frequenta a especialidade de Cardiologia. Acontece que o Hospital do Conde de S. Januário, a casa no cimo do monte – como lhe chamam os chineses, não tem capacidade para fornecer todo o treino que integra a especialidade de Cardiologia e, então, os médicos de Macau têm que voar até Portugal para o completar. Treze mil Km depois, este veio parar a Santa Marta e ao meu quarto, para mais uma curta e cerimoniosa visita. “So..., when are you leaving?”, perguntava-me ele ontem. “Talvez na sexta-feira”, respondo-lhe em inglês, “pelo menos foi o que me disseram”. “Oh!, I see...” Falamos de Macau, de Portugal e da Birmânia; de Medicina e de política de saúde; do Oriente e do Ocidente; até que ele, achando, pelas antenas dos seus misteriosos critérios, que já atingiu o limite do meu tempo visitável, se despede até ao próximo encontro. Será que amanhã me vão mesmo dar alta? Se assim acontecer, esta será a minha última noite aqui e, admito-o, penso com alguma apreensão na alta. Há uma parte de mim que tem medo de ir embora, que preferiria ficar aqui, onde tudo corre tão amavelmente, onde me sinto seguro. Afinal devo a minha vida a esta gente, à cadeia ininterrupta que desde o Centro de Saúde da Lourinhã até ao Hospital de Santa Marta me foi empurrando pela ribanceira acima. Encontro-me tomado por sentimentos contraditórios como o prisioneiro que na hora da liberdade se angustia em deixar as grades da prisão e sente, por antecipação, saudades da cela, dos carcereiros com que se habituou a lidar ao longo dos anos e, no mais recôndito de si, receio do mundo que não parou de girar lá fora.

“Vai querer uma massagem?” Em frente à cama, casaco curto, calças e sapatos de cor branca, ostentando no queixo uma pêra, espetada na minha direcção como um pincel de barba, está especado um jovem enfermeiro; profilacticamente enluvado e com um tubo de pomada já muito espremido numa das mãos. “Está bem”, digo, decidido e menos intimidado pelo facto de ele não ser do sexo feminino. “Então, tire o casaco e sente-se ali”, instrui-me, apontando-me uma das cadeiras encostadas à parede. Seguindo as indicações, sento-me à cavaleiro na cadeira, dando-lhe as costas; os braços cruzados apoiados no espaldar. O tipo tem umas mãos fantásticas e dois minutos depois de começar a trabalhar-me o dorso e o pescoço nem quero acreditar no bem-estar que uma manobra tão simples está a espalhar em mim; no emergir da consciência do retorno à normalidade da textura e do posicionamento do meu tronco, até aí transformado pela cirurgia e pela tensão nervosa sobre os músculos num tremendo, torcido e enferrujado amontoado de ossos, músculos e tendões, com um enganador contorno humano.

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À medida que relaxo, torno-me generoso nas apreciações: “Vou-lhe dizer uma coisa: com umas mãos dessas, você devia era ser massagista a tempo inteiro!” Bem, isso também era o que ele queria – ser massagista a tempo inteiro – e, já que sonhar não custa, fazê-lo integrando a equipa técnica de um clube desportivo famoso. Percebo que estou perante um estudioso do assunto e pergunto-lhe se, por acaso, já ouviu falar do livro O Segredo Está nos Pés, volume em que se descreve a correspondência entre o mais incipiente acidente anatómico (proeminência, depressão, sulco, sinuosidade) de cada um dos dedos dos pés e uma zona específica do resto do corpo, para, em seguida, se enaltecerem as maravilhas que a exploração criteriosa destas relações, conseguida pelo massajar minucioso destas extremidades, pode proporcionar à harmonia do ser humano. A passagem ritmada de mãos lubrificadas ao longo do meu lombo interrompeu-se e uma voz, simultaneamente entusiasmada e de comando, interpelou-me: “Vire-se aí; que eu vou-lhe fazer uma massagem nos pés!” Confundido, sentindo que está a ser ultrapassado um qualquer limite dos cuidados hospitalares, balbucio: “Ouça, muito obrigado, mas não vale a pena. Isto já foi excelente, sinto-me outro...”. Ele, porém, não admite recusas: “Não, foi você que chamou para aqui os pés! Então, quero que veja...” Entre a espada de ser surpreendido por alguém que, de repente, passe por ali e veja o homem entretido com os meus pés (será que a dr.ª Lúcia ainda está de serviço? imagine-se só a cara dela se entra por aí dentro) e a parede de ferir a simpatia e a comunhão atingida com o enfermeiro; feito Cinderela, lá adiantei timidamente o meu pé esquerdo. “Que besta!”, concluí quando a sessão terminou, estendendo-me na cama e achando-me como novo “o que eu tenho perdido...” É a Rosa que me traz a ceia: bolachas Maria, chá de tília, e o copinho da medicação. “Se calhar amanhã vou-me embora, sabe?”, digo-lhe, numa revelação meio pesarosa. “Isso é sinal de que já está bom”, replica ela no seu pragmatismo prazenteiro, “espero que depois nos venha cá ver de vez em quando”. “Claro que venho”, afirmo-lhe com a solenidade de um escuteiro em dia de graduação. “Então coma, que daqui a pouco venho cá buscar a bandeja e apagar-lhe as luzes.” No tecto, o Bobby Vinton canta veladamente para todo o hospital: She wore blue velvet Bluer than velvet was the night Softer than velvet was the light From the stars...*

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Acordei cedo, logo atento a alguma modificação que me permita deduzir se vou ou não ter alta.

Mas nada. Nenhum indício me esclarece ou, sequer, sugere uma tendência: tiram-me sangue, como é costume; a gentilíssima menina grávida dos electrocardiogramas faz a sua visita habitual; a enfermeira pica-me a barriga; distribuem-me um pijama novo... * Da canção Blue Velvet, de Bernie Wayne e Lee Morris, 1951.

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Para queimar minutos e testar os progresso do meu equilíbrio, após avisar a Rosa, vou tomar uma chuveirada ao quarto de banho. No regresso, saboreio o pequeno-almoço com toda a calma (é possível que seja a última refeição que como no hospital) e demoro-me pelo lavatório, a escanhoar a face e a pentear a guedelha. Talvez seja, também, a última vez que me olho naquele espelho; quem sabe?

“Espelho, espelho meu; alguém terá alta e esse alguém serei eu?” Afundo-me na poltrona, um livro aberto no colo, mas uma excitação fina

desencaminha-me a concentração: o meu olhar, rasando a colcha da cama, foge continuamente pela porta escancarada e espiolha cada microscópica alteração na fatia de corredor que daqui avisto.

A João telefona. Quer saber se sempre me há-de ir buscar, e a que horas. “Não faço ideia”, lamento-me, “ninguém me diz nada!” “Não faz mal”, diz ela do lado de lá, “volto a ligar-lhe mais tarde. De qualquer

maneira, para o que der e vier, levo-lhe um roupão, um par de sapatos e dois pijamas...” “Dois pijamas!?” “Sim, para escolher o que achar mais fresco. Pedro, cá fora está um calor de

morte!” Lá fora... Pensar que essa possibilidade se abeira da concretização, se poderá

cristalizar num momento específico de um futuro vizinho, provoca-me repetidos sobressaltos interiores, finas descargas ao longo do estômago e punhadas eléctricas no diafragma. É, de certo modo e à minha escala, uma apoteose. Lá fora. Como se o intrincado cenário construído laboriosamente e minuto a minuto ao meu redor pelos acontecimentos que a doença arrastou consigo tivesse sido, num processo inverso e simétrico do anterior, desconstruído, passo a passo, imperceptivelmente. Até ao desmontar, a que assisto agora, dos últimos andaimes, desembocando no instante em que, fundindo-se tudo em mim, hei-de ser espectador e actor de um empolgante quadro: eu, pelo meu pé, atravessando a porta da enfermaria. Eis algo para o qual não devo ter pressa.

Finalmente, ao fim da manhã, mal me dando tempo para aparentar fleuma, apareceu a dr.ª Lúcia, com uma resplandecente expressão de fim-de-semana que lhe confere um brilho de apetite às maçãs do rosto. “Então, preparado para se ir embora?” E como eu estivesse, passou a tratar dos assuntos relacionados com a alta: conselhos médicos (“o seu potássio ainda está um nadita baixo, veja se come muitas bananas”); documentos dos marcos mais cruciais da minha aventura médico-cirúrgica no Hospital de Santa Marta; informações sortidas, úteis a um tipo em trânsito. “O melhor é ser você a guardar tudo isto consigo; é mais seguro. Também lhe vou entregar uma carta resumindo a sua situação clínica, para entregar ao colega de Torres Vedras.” “Isso era bom”, agradeço, “gostava muito de lhes poder levar uma informação completa do que aqui se passou comigo”. Concordando com a obviedade do procedimento, e não parando de vasculhar no meu processo, abrindo e fechando dossiers, desagrafando papéis, clipando outros, ela acena vigorosamente com a cabeça, ameaçando vassourar com o cabelo, que lhe escorrega da face até ao tampo da mesinha estacionada aos pés da cama, tudo o que com tanta paciência separou e ordenou.

De pé, encostado à cama, acompanho tudo com a atenção de quem testemunha a assinatura de um armistício; uma das minhas narinas intrigada com o leve travo a tabaco que lhe chega de cada vez que ela sacode a massa de cabelo escuro, para logo esquecer o detalhe, rendido ao espanto de observar o brusco desaparecimento da dr.ª Lúcia pela porta fora.

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“Onde terá ido?”, fico-me cogitando. Mas ela logo volta: traz mais uns papéis que dobra e enfia num espesso envelope castanho de tamanho A4.

“São fotocópias da sua coronariografia. Também já mandei pedir lá cima, à cirurgia, o resumo da sua folha operatória – devem estar a vir trazê-la, faltava só ser assinada pelo cirurgião.”

Freneticamente, rasgando folhas de blocos, redige mais algumas notas, enfia novos papéis em envelopes, e, como se, de súbito, lembrasse algo inadiável, desapareceu outra vez porta fora. Pouco depois, anunciando-se por um tímido toc-toc no umbral, desbotando até ao tom pálido da colcha muito lixiviada onde se sentou, espraiando-se lentamente num dos buracos negros deixados pelo desaparecimento da dr.ª Lúcia, deteve-se também por ali o dr. Gil Seabra; a dar os últimos retoques; a preparar o futuro, pois é o médico que ficará a seguir o meu caso. “Vai ficar a tomar, diariamente e com caracter duradouro, duas drogas: 100 mg de aspirina ao almoço; e um comprimido de 50 mg de atenolol, metade ao pequeno-almoço e metade ao jantar.”

E mete-me um papel nas mãos, acrescentando numa voz um nada fatigada: “É importante que os tome regularmente, sem esquecimentos... Faz toda a

diferença...” Estou tão insuflado pela sensação de amarras a serem cortadas que balanço numa maré de sensações e aquele “faz toda a diferença” fica a vibrar em mim, como um pormenor importante de que não nos atrevemos a esclarecer a hipnótica ressonância.

Não faço outra coisa senão alinhar papéis e envelopes em cima da cama, dando-me, um tanto fora do contexto, conta de que estou prestes a concluir que é uma terrível incongruência os cardiologistas daquele Serviço serem uns tão grandes fumadores! Apercebo-me disso, cada vez que um deles se aproxima de mim, pelo forte odor picante, por um acusador dedo amarelado. “Então estes gajos, que nos pregam contra os malefícios do tabaco com um ar tão terminante; cuja vida é o permanente encarar e remendar das sinistras consequências do vício, acabam por não ter juízo nenhum?”, espanto-me. “Volta cá daqui a um mês, está bem? Já lhe marquei aqui consulta para o dia 2 de Agosto”, diz, entregando-me mais uma folha de papel. Fico a olhá-lo, estupefacto. Daqui a um mês? Trinta dias! O intervalo sem vigilância médica, após tudo o que me aconteceu e a que fui submetido, parece-me uma desconsiderada eternidade, um salto do 8 para o 80. Não estava a contar com nada disto, quase imaginava que me iam anilhar uma pulseira electrónica e implantar uma câmara de vídeo no cérebro antes de me permitirem ir embora! Os meus sentimentos são ambivalentes: não sei se festeje a liberdade, se chore a orfandade. Afivelando o famoso sorriso à Mona Lisa, o dr. Gil Seabra estende-me a mão e despede-se com a formalidade cavalheiresca que usa no trato comigo:

“Adeus, dr., felicidades para o senhor... Se precisar de nós – já sabe, sinta-se perfeitamente à vontade para nos contactar...” E esfumou-se. Atabalhoado, recuei até à poltrona de napa preta. E agora? Seria aquilo a alta? Devia entender o adeus do dr. Gil como um “podes ir embora” ou esse poder estaria apenas reservado à dr.ª Lúcia? A quem pertenço eu, agora que estou na terra de ninguém, entre a enfermaria e a porta da rua? Ao médico que me vai ficar a seguir na consulta externa ou à médica que supervisionou o meu internamento? Inclino-me para a adopção da última hipótese, mas que é feito dela? que entra e sai do quarto com tanta frequência que nem percebo se alguma das saídas deveria ter sido considerada a última!

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Num hospital, em caso de dúvida, o melhor, antes de fazer asneira e levarmos uma corrida de alguém de direito, é perguntar às enfermeiras. Elas conhecem sempre uma saída, e nós sentimo-nos mais à vontade com elas. Pousam mais demoradamente junto do rebanho do que os médicos. Como tendo adivinhado as minhas lucubrações, eis a dr.ª Lúcia que dispara pelo quarto dentro, o pescoço ainda semi virado para trás, para o corredor, no aprazar de uma combinação para um almoço de lazer, no dia seguinte – leitão assado, salvo o erro. “Agora pode ir, quando quiser”, disse, com a mais breve das simplicidades, um sorriso claro. Senti-me descalço: era meio-dia e tinha combinado com a João que ela telefonaria, por volta da hora do almoço, a saber as horas a que, com segurança, me poderia ir buscar. E já me tinham despedido! Perguntei: “Mas acha que ainda posso almoçar cá?” “Claro!”, assentiu na sua voz nasalada, “aliás são quase horas de almoço”. Almocei e estava a arrumar os meus pertences, que, coitados, se acomodaram com largueza num pequeno saco de papel, quando, esbraseada, a João chegou, com os tais pijamas, um belo roupão de seda azul e uns sapatos emprestados que não serviram aos meus pés, habituados ao relaxe das chinelas japonesas do hospital. Vesti-me como pude: enfiei as calças do mais fino dos pijamas, mantive as chinelas do hospital e pus, sem vestir o casaco, o roupão pelas costas, lembrando-me do “calor de morte” que ela anunciara.

Não me passava pela cabeça ir embora sem me despedir do pessoal do Serviço. A minha vontade seria dizer adeus a toda a gente com quem lidara, mas como isso seria impossível (a não ser que estivesse por ali mais uns dias aguardando a rotação completa da escala), queria, pelo menos, agradecer e saudar quem estivesse a trabalhar naquele turno. Até isso me saiu furado! Toda a gente disponível estava à volta do sr. Cipriano Enguia que desatinara por completo e insultava, em pesado vernáculo, as enfermeiras que o seguravam e lhe tentavam aplicar o calmante prescrito pela dr.ª Lúcia Garcia.

Veio ter connosco a enfermeira Leonor, arregalando as sobrancelhas e desculpando-se pelo que estávamos a ouvir.

“Ele não está nada bem..., e tem uma força! Mal o conseguimos segurar!” Eu sabia que ele não estava bem, que a situação se degradava exponencialmente.

Toda a manhã assistira do meu quarto à silenciosa passagem do sr. Enguia pelo corredor, em direcção à porta do Serviço, buscando a liberdade de pijama e, com enorme paciência, via também uma enfermeira ou uma auxiliar deslizarem a toda a velocidade atrás dele, segurando-o por um braço e tentando, com palavras mansas, convencê-lo a voltar para trás, para a sua cama; tentativas que eram geralmente bem sucedidas, apesar de uma ou outra interjeição menos suave, para logo a cena se repetir um quarto de hora mais tarde.

Após uma breve hesitação, gerada pela inibida inferioridade do estatuto de doente, despedi-me com um beijo da enfermeira Leonor, pedindo-lhe que dissesse por mim um adeus a toda a gente. Emocionado, olhei uma última vez o meu quarto; a cama 16; a poltrona vazia; e saí devagar atrás da João que conhecia o caminho. Estaquei..., atónito, pois mal cruzara a porta da enfermaria e dera meia dúzia de passos fui atingido pela branca e violenta claridade do exterior. E eu que me julgava encarcerado no espesso edifício, num qualquer andar superior, distante do mundo o equivalente a um labirinto de escadas e corredores, estivera aquele tempo todo vizinho da porta da rua! “Espere aqui, enquanto eu vou buscar o carro”, disse a João, sugerindo-me um banco corrido em frente à larga porta de saída. Deixei-me cair no banco, pasmando com a intensidade da luz e com o calor que fazia. Meu Deus, eu não fazia ideia nenhuma que estivesse tão quente, um braseiro daqueles! Parecia que olhava a porta de um forno, por

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onde saíam baforadas de calor que tornavam o ar visível e o faziam ondular numa miragem de auto-estrada. Pois é, também já estávamos em Julho. “Estou a ver que o senhor foi operado ao coração”, abordou-me uma voz. Olhei. Era o parceiro mais próximo do banco que me interpelava, um homem de uns cinquenta e tal anos, de pijama e roupão como eu, e que mirava, com uma admiração invejosa, o meu tronco nu e a minha impante cicatriz: “Eu vou ser operado para a semana”, continuou e, após uma pausa, “custa muito? Dizem que dói um bom bocado...” “Não”, tranquilizei-o, “nada que o senhor não aguente. As primeiras quarenta e oito horas são um bocado difíceis” – continuei, resumindo sem alarde a estadia fora de horas nos Cuidados Intensivos da Cirurgia Cardiotorácica – “mas, depois disso, começa tudo a correr bem e o tempo passa num instante”. Entretanto, numa prudente manobra de marcha-atrás, a João chegara com o carro. Dei uma bacaulhazada ao homem, desejei-lhe felicidades e entrei para o banco da retaguarda, evitando a insegurança do lugar do morto e, sobretudo, o cinto de segurança sobre a cicatriz fresca do peito. Deixei cair a pesada porta com cuidado e, metendo o braço pela janela aberta, acenei, como se fosse a rainha de Inglaterra, aos doentes que iam desfilando ante mim, ordeiramente pousados como pássaros no banco corrido em frente à porta do hospital.

Sentimental, ao atravessarmos o portão de Santa Marta, idealizei ainda virar-me para trás, num derradeiro olhar, mas o meu pescoço e tórax não se articulam como dantes e, quando desisti e desfiz a tentativa de movimento, já a João cruzava velozmente um semáforo recentemente convertido ao verde.

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Parte V

Além dos semáforos

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Passei uma convalescença de luxo, entre vagares de almofadas macias, debruadas com rendas antigas, e açucareiros de prata; pastoreando a minha fraqueza por entre o trinar de melros, o rumorejar da copa de pinheiros mansos e os ruídos amortecidos de vida doméstica no andar de baixo.

Trouxe comigo do hospital, para além das surradas chinelas japonesas descartáveis cujo ar enxovalhado e a minha teimosia em usar tanto impressionam a minha sogra, a luva de pano-turco com que me esfregava todos os dias (promovida, doravante, a souvenir de Santa Marta) e os tiques da rotina hospitalar.

Acordo, com a precisão de um galo, todos os dias às oito da manhã, apercebendo, em vez da negra que empurrava a cama para passar o chão a pano, o entusiasmo da luz de uma manhã de Verão que bate na pesada persiana da porta que dá para a varanda, imiscuindo a língua incandescente por todos os interstícios do estore.

“Acorda”, grita, espiando o interior do quarto com um monóculo faiscante, que vacila como gelatina no tecto; “estás vivo – não vês? – deixa-me entrar...”

“Estás louca!”, respondo familiarmente, “eu bem que gostava, mas não posso fazer esforços”.

“Anda lá”, diz a outra, tentando-me com a projecção de um virtual cartucho de libras de ouro que brilha sobre o mogno escuro de um móvel, atiçando o bisel do espelho pousado sobre a cómoda, roçando-se dengosamente na base de dois castiçais de prata e ameaçando derreter as respectivas velas azuis; “deixa-me entrar”.

“Estou proibido de fazer esforços isométricos*, e o meu esterno ainda não está soldado – tenho, pelo menos, para mais três semanas”, vou-me justificando, enquanto executo com cuidado a manobra de me sentar na cama.

Primeiro, rodo todo o corpo, à custa de pernas levantadas e pés fincados, sobre o meu lado destro. Depois espeto o cotovelo direito no colchão, a mão esquerda apoiando contra o peito, para suster e amparar a sutura do esterno, uma pequena almofada; e, agora, vou retesando lentamente o cotovelo numa função de alavanca e soerguendo o tronco à medida que braço e antebraço funcionam como um elevador firmado na sapata espalmada da mão direita. Dou uns ganidos, os ossos queixam-se, mas eis-me sentado na cama.

Pouso os pés no chão e metodicamente, uma vez que não tenho arrojo físico para as atirar, passo metade do arsenal de almofadas que me ampararam o corpo durante o sono para a poltrona de veludo azul; de modo a poder alcochoar todos os pontos não apoiados das minhas costas e pescoço, e sento-me, à espera que apareça alguém. Tenho no quarto uma campainha eléctrica, à qual foi aumentada a extensão do fio e cuja pêra toda a gente passa a vida a colocar-me perto da mão, mas fico à espera porque não tenho pressa nem quero chatear ninguém. Sentado na semi-obscuridade, ligo o multifuncional tijolo rádio + leitor de CD + gravador de cassetes, e sonho já com o pequeno almoço que virá em breve, espero.

Nos primeiros dias tomei-os gulosamente no leito, mas as migalhas, que sob o corpo assumem a dimensão de gravilha, o desequilíbrio da bandeja na moleza do colchão, na instabilidade de um colo; e, sobretudo, a dificuldade em dispor convenientemente o arsenal de talheres, louça e comida, levaram-me bem cedo a repudiar a romantização do pequeno-almoço ideal e a procurar a poltrona azul onde, de um lado, conto com a * Esforço isométrico (ou estático) – tipo de exercício físico em que é mobilizado um grupo muscular isolado, o que, em termos de hemodinâmica, acaba por se traduzir na imposição de uma pressão significativa sobre o coração. Como exemplos podem ser citados o levantar, em peso, de uma botija de gás; disparar a correr para um autocarro que acabou de passar por nós e se quer apanhar; o esforço requerido para desapertar as porcas de um pneu de automóvel.

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companhia da música e, do outro, com o tampo de uma mesinha de apoio com duas prateleiras.

Eis que entra a minha sogra com um bom-dia e um jarro de sumo de laranjas recentemente espremidas, seguida da Mirna que nos braços estendidos transporta uma soberba natureza-morta: fatias de pão de milho, incrustado de louras sementes de girassol, que partilham o cestinho de casquinha, forrada com um naperon bordado a ponto de Assis, com fresquíssimas fatias de pão misto de centeio e trigo. Como matéria barrante, para além da clássica manteiga meio-sal (banida em Santa Marta), posso escolher entre compota de ginja ou de laranja-amarga, doce de framboesa ou geleia de marmelo; esta última o terror dos guardanapos de linho, pois escorre pelas fatias de pão, compelindo-me a um não de todo desagradável lamber das falanges. Se de hidratos de carbono e gorduras estamos conversados falta ainda referir o contributo proteico, acrescentado por umas fatias ou uns triângulos de queijo light, por vezes abrilhantado por umas róseas fatias de fiambre. Ah! e chá, chá descafeinado à discrição. Conferindo um toque tropical ao tabuleiro, o amarelo forte de uma banana, presença diária a cargo da supervisão directa do meu sogro, que tomou sob sua responsabilidade as minhas reservas de potássio. Achando ainda pouco e na crença de que a engorda é sempre uma via segura para a recuperação de um organismo debilitado, a minha sogra junta por vezes um naco de bolo de nozes ou, por ser mais saudável, uma grossa talhada de bolo de frutas.

E eu, dono de uma nova anima gastronómica, ataco tudo, limpo tudo, como que é um gosto ver-se. Não tarda, a balança começará a queixar-se, mas, para já, não chego sequer aos meus velhos 55 Kg – estou pele e osso, como diria a Rosa.

Quando a bandeja se retira e as últimas louças deixam o quarto, miro com preguiça os livros, e com enfado os cartões, cartas e telegramas que se vão acumulando na prateleira inferior da mesinha.

“Qualquer dia tenho que começar a responder a isto”, conjecturo vagamente, “tenho que pedir para me comprarem selos”.

Confortado com a intenção, sintonizo o rádio na Antena 2, mas estão a emitir uma peça para quinteto de cordas demasiado excruciante para o meu estado de espírito. Acabo por ir parar ao repetitivo reconforto da Rádio Nostalgia, e, recostando-me na poltrona, fecho os olhos e embalo-me até paragens habitadas por poucos pensamentos.

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Demorei a recuperar a consciência reflexiva, aquela que é capaz de apreciar o todo, para além da justaposição das partes. Perdi a noção do tempo e, fora das palas temporais, não conseguia analisar a porção de vida que se me tinha escoado.

Uma prolongada anestesia deu-me também cabo da memória: durante mais de um mês os registos duradouros falhavam-me e não tinha certezas sobre coisas maquinais como números de telefone ou o uso rigoroso de palavras para designar objectos ou situações específicas. Ao tentar dizer um número de telefone familiar lembrava-me da imagem numérica do conjunto, por exemplo: 214835792, mas não estava seguro quanto ao quarto algarismo: parecia um 8, mas não juraria que não fosse um 9 – duvidava; como nos acontece nos minúsculos caracteres da última linha das tabelas luminosas que os oftalmologistas têm penduradas na parede: tropeçava. O mesmo se passava com as palavras: o discurso fluía, mas de vez em quando uma palavra – da qual, porém, visualizava o arquétipo a flutuar na mente – escorregava para o abismo, como um peixe acabado de sair do mar. E muito, isso sucedia-me muitíssimo com nomes de pessoas. As pessoas lá estavam, mas o modo de as chamar... – debaixo da língua, esse caixote do lixo!

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Assim, andei às aranhas, uma longuíssima data de dias, com o espaço e o tempo comportando-se como coisas movediças, sem a solidez habitual.

Tudo isto atingira a sua agudeza máxima durante a estadia na Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço de Cirurgia Cardiotorácica, onde a sensação do meu posicionamento no espaço se modificava constantemente, e tanto me parecia estar deitado ao fundo da imensa sala, próximo da parede, como, logo a seguir, me achava no meio dela e, sem transição, na frente, no lugar do palco (digamos assim). Ou como se estivesse numa sala de aula, mudando de carteira em cada hora que passava. E, conforme o ponto de localização, assim era também a consciência do meu estado: observador e tranquilo, com algum domínio sobre o que se passava, quando estava cá ao fundo, encostado à parede (de facto a posição real da minha cama na Unidade); inseguro quando me achava a boiar no meio da sala, sem coordenadas fixas evidentes; confuso e alarmado, quando era transportado para o proscénio, onde me sentia, solto e sem significado, como um adereço numa peça de teatro absurdo.

Por vezes, no recolhimento da poltrona azul, nas horas em que sou suposto dormitar a sesta, folheio, às escondidas e com atenção, a velha agenda preta que regressou ao meu monte de pertences, às minhas mãos. Ora olho com pormenor o calendário de 1999, os meses de Maio e Junho, a sucessão das semanas, os dias que recheiam essas semanas, a correspondência entre uma data numérica e o dia da roda da semana que a fixou como quinta ou sexta-feira; ou me detenho com esforçada obstinação num nome e no número telefónico contíguo. Ambos me retêm o olhar, num déficit de reconhecimento, num amontoado de estranheza: o número porque parece não soar como de habitual, no encaixe inquestionável de algarismos que eu, outrora, discaria sem pestanejar; o nome porque, não obstante soe ao de um velho e querido amigo, não o sinto embutido em mim com a evidência de os meus olhos serem castanhos ou o meu nome ser Pedro. As raízes da pertença ao léu!

Parece que amanhã (ou depois de amanhã) vêm cá visitar-me dois amigos meus, um casal. Amigos, muito amigos, há muitos anos; uma amizade tipo todo o terreno. Moram longe, umas centenas de Km, vêm de propósito, estiveram à espera que eu tivesse alta do hospital, porque no hospital eu não queria ninguém. Não lhes podia dizer que não viessem. Mas era o que me apetecia: preferia não os ver já, não sei bem porquê, mas há em mim um enorme receio de não ter que lhes dizer, de ir dar com desconhecidos, de que eles deparem com um completo estranho e saiam daqui a dizer que afinal...

“...enganamo-nos na porta!”

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Lamento. Lamento-o profundamente. Lamento a decepção que as próximas linhas vão causar nos corações sensíveis, nas mentes bem intencionadas, mas é forçoso que o diga: o pior da doença não é o hospital, não são as dores nem são os médicos, não são os tratamentos; não é mesmo a comida requentada que nos chega ao colo após uma longa viagem da cave. O pior da doença são as visitas!

Num outro grau de consciência, eu já o sabia da experiência com o meu linfoma, mas parece-me bem que o esquecera. Lembro como fiquei surpreendido, até um pouco chocado, ao descobri-lo, logo na fase inicial da doença, quando toda a gente começou a querer saber o que se passava comigo. Recordo o chegar a casa, por volta das cinco da tarde, da primeira sessão de quimioterapia, o ter-me estendido na cama, enjoado como um queque, e de o telefone ter inocentemente repicado no andar de baixo. Inocentemente, também, a João atendeu-o e, com ele na mão e o bocal tapado, perguntou-me se queria

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atender. Atendi – afinal era uma das minhas irmãs, a saber como correra o primeiro tratamento. Ela não se demorou muito, “deves estar cansado, a precisar de repousar”. É... No fim da conversa pousei o telefone ao meu lado e fechei os olhos. Pouco depois o telefone tocou outra vez. Ingenuamente, atendi. E quando terminei de atender telefonemas era meia-noite, interrompera o jantar várias vezes e tinha contado a mesma história uma vintena de vezes. Sim, eu estava verdadeiramente cansado e a precisar de repousar.

As coisas continuaram assim ao longo de toda a quimioterapia, ao longo das vinte e cinco sessões de radioterapia e eu aterrado cada vez que o telefone tocava (apanhando-me até a olhar para ele de lado, quando o pobre estava quieto e silente), sempre que alguém acenava com uma “pequena visitinha”.

“Diz lá qual foi a última coisa que eu te contei”, passei a perguntar quando me telefonavam, numa tentativa de evitar a repetição de algo já narrado, e sentindo cada vez mais irreal, à medida que o tempo ia passando e as versões se iam acumulando, quer a narrativa, quer o meu papel de protagonista.

Digo, as visitas têm que se lhes diga! Com o enfarte repetiu-se o filme, mas, como habitualmente sucede com as sequelas cinematográficas, para pior. E este “pior” deriva não só das circunstâncias objectivas da doença (dependência de terceiros e regime de acamado) mas de uma singularidade que o enfarte encerra e que, posteriormente, fui encontrando em gente que também passou por isto. É frequente, confidenciaram-mo tipos indecisos entre o culpado por se sentirem assim e o aliviado por encontrarem um membro da mesma seita, os sobreviventes de um enfarte do miocárdio não quererem ver ninguém e cada anúncio de uma (galgando já as escadas ou ainda sob a forma de intenção) visita – com possível excepção para família muito próxima – é encarado como uma ameaça, como um momento que enquanto se não cumpre nos deixa mergulhados no mais angustiante frenesi. Discorro em meu nome, é óbvio, mas não foram poucos os de que ouvi falar ou que, no vão de uma conversa apressada, me fizeram o mudo e velho sinal iniciático de mãos divergindo, adeusando o vazio: “Ninguém, compreende?, absolutamente ninguém! A minha sogra saiu porta fora, lavada em lágrimas...” O que será? Porque será? Comigo, o fenómeno começou logo após o acidente cardíaco, ainda no meu leito em Torres Vedras, mas de um modo incipiente, sem grande visibilidade. As notícias demoram algum tempo a dar a volta, pertenço a uma família de gente discreta e eu próprio ia filtrando, com a colaboração da João, as pessoas às quais se teria que comunicar o acontecimento e aquelas que, para defesa delas ou por defesa minha, deveriam, no momento, ser mantidas na santa ignorância. No rescaldo da cirurgia, em Santa Marta, o processo de rejeição de visitas agudizou-se brutalmente e estas passaram a ser encaradas como uma violação dos direitos humanos, um estupro da privacidade, uma ameaça à minha sobrevivência. Foi por aí que assumi, nesta matéria, uma obstinação que raiava o patológico, que pedi para me secarem todos os contactos telefónicos com o exterior. A atitude, e o consequente comportamento, prolongou-se pela convalescença com o mesmo grau de tolerância nula a visitas ou contactos telefónicos e se alguma melhoria foi emergindo, ela deve-se não a mim mas, na totalidade, ao peso das conveniências, à evidência de que era indecente, desumano, sem sentido, continuar a não deixar aparecer, abandonar pendurados na ponta do fio, amigos, gente preocupada comigo e interessada em ouvir a minha voz ao vivo e não recados meus transmitidos por interpostas pessoas; uma vez que algumas semanas tinham já passado desde o incidente e, tanto quanto se soubesse, eu não estava incapaz de falar.

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“Diz-lhe que não estou cá...” “Como? que não estás!? És suposto estar sem te poderes mexer!” E eu, irritado, sem argumentos; abanando a cabeça perante um telefone que me estendiam, sentindo-me mal por o recusar, mas sentindo-me ainda pior se o tomasse nas mãos e ouvisse aquela voz que não escutava há tanto tempo. Chegando-me dos confins do mundo, e que, por muito banal ou neutro fosse o que dissesse, me ia deixar a tremer, a arfar, sem voz, com as costas e o casaco de pijama completamente ensopadas em suor, como se tivesse acabado de correr uma maratona. Destinado, tal o telefone no fim da conversa, a um pousio na horizontal. O que quererá isto dizer? Não o faço de propósito. Parece que perdi a ligação com o resto do mundo e, o que é mais grave, emocionalmente isso não me afecta nada. As pessoas que mais procuro evitar são, consigo empiricamente dar-me conta, aquelas que mais notícias me podem veicular lá de fora, do mundo por onde eu me mexia, particularmente do contexto profissional. Defendo-me, acho: não quero saber de nada, estou muito bem aqui; não me interessam os noticiários do que se passa no país ou no meu quintal. Porque será que fico tão excitado, tão arrasado, com um único telefonema? Será um sistema de defesa automático? Será o coração a evitar, através de uma ardilosa conspiração com o cérebro, estímulos acrescidos que o ponham a palpitar a um ritmo entendido como desaconselhável pelos sensores do instinto de sobrevivência?

Pelo menos já consegui demonstrar aqui por casa que é experimentalmente relacionável a constante telefonema/costas encharcadas, o que foi bom, pois ampliei a rede de defesa da minha privacidade face ao exterior.

Conforme decidido, o tal casal de amigos veio visitar-me e, sendo amigos especiais, a minha sogra preparou um lanche, fez um bolo, serviu refrescos.

Como ainda me custa muito manter o pescoço em pé, recebi-os estendido na cama, enquadrado por um batalhão de almofadas; as cicatrizes do peito, untadas de Betadine, brilhando ao sol da tarde; a perna direita do pijama arregaçada pelo joelho, um saco de plástico cheio de gelo equilibrado no tornozelo, mitigando a ardência e o inchaço na costura da veia safena.

Uma espécie de Maja Desnuda, versão Francis Bacon, tal era a minha configuração enquanto me preparava para o embate, ouvindo-os subir as escadas; a voz do Carlos D. entrelaçando cortesias com a da minha sogra, comentando o terrível calor que se fazia sentir por todo o país, incêndios deflagrando um pouco por todo o lado. Ei-los agora já dentro do quarto, saudando-me num tom forte e optimista, como se nada tivesse acontecido desde a última vez que nos víramos, sentando-se nas cadeiras que a minha sogra dispusera em frente à cama. Mas, logo que a porta se fechou, e ficamos apenas os três no quarto, não se equilibrando no cenário, porventura agitados pela emoção do encontro com um amigo que estivera tão longamente no fio da navalha e pela visão do meu físico, os olhos de ambos, para lá de todas as convenções ou combinações, acusaram o toque das lágrimas. Deus! Aquilo de que agora consigo reter a beleza e rememorar com serenidade, foi-me na altura um tremendo choque, como se de algum modo, desdobrado em dois, estivesse a assistir ao meu próprio velório – uma demonstração viva do pobre ser em que me transformara. Disfarcei, é claro, tomei para mim o papel do cicerone e, enquanto eles se recompunham e limpavam o olho discretamente, fui fazendo perguntas sobre isto, sobre aquilo, “... e beltrano, que é feito?” Eles foram ficando; querendo ir, para não me cansarem demasiado, e eu insistindo para que ficassem um pouco mais, por gosto e por valentia, para que pudessem sair dali com uma mais satisfatória impressão sobre mim e os meus progressos.

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Quando, depois de os levar à porta, a minha sogra subiu a recolher a louça do lanche, achou-me esvaído na cama, num afundamento flácido como um desmaio, o peito arquejante, o pijama colado às costas, encharcado em suor, um fio castanho de Betadine e transpiração escorrendo da sutura do esterno. Deram-me água com açúcar, mediram-me a tensão, rectificaram as almofadas; ralharam-me pela insensatez de visita tão demorada. Enfim, toda a gente apanhou um grande susto. E o que tinha, afinal, sido aquilo? O que provocara aquela crise? Visitas! Visitas, não daquelas noblesse oblige, com comedidos acenos de pescoço, tom de voz condicionado e beicinhos bico-de-bule, que essas ia encaixando razoavelmente sem grandes mossas para além do cansaço, mas visitas de amigos, amigos próximos. Era difícil acreditar, mas eu estava assim mesmo, ainda demasiado fraco para aguentar emoções prolongadas. Nesta confusão toda de amigos e conhecidos, demorei-me a perceber as delicadas nuances que se ocultavam por trás do síndrome:

“O gajo está maluco – não quer ver ninguém!” Por um lado o gajo queria estar em paz; passar o que tinha de passar no modo

como o tinha que passar – sozinho, que ainda há vivências não delegáveis. Por outro, e que espanto o atravessou quando descobriu a implicação, o gajo passara por uma experiência terminal – é pá, afinal o gajo até tinha morrido! E para cada uma das pessoas que voltava a ver, eu era forçado a reatar, do zero, a relação. Era como renascer e revelava-se muito mais difícil com corações que se conheciam do que com caras que já se tinham visto.

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Ao fim de alguns dias comecei a aventurar-me até ao andar de baixo para tomar as principais refeições com o resto da família. O caminho é longo – há dois lances de escadas a descer – e por estranho que possa parecer, mais espinhoso na descida para a sala do que na subida de regresso ao quarto. É, talvez, a vertigem de muitos degraus desenrolando-se sob os olhos, a insegurança no meu corpo, sempre compensada pela assistência de alguém que desce dois degraus à minha frente, enquanto piso, um após o outro, os degraus, uma das mão usando a parede como bordão. É Julho. As férias escolares já começaram; a casa repleta de gente. Está cá o Zé João e os primos, mais dois amigos que o Zé João arrastou, tudo sob o benevolente olhar da minha sogra, que adora ter a casa cheia. A mesa de almoços e jantares é alegre, barulhenta e aceitavelmente disparatada; as portas permanentemente abertas para a larga varanda sobre o jardim, onde nem um sopro agita a calmaria pesada de um Verão ardente que torna a vegetação recolhida durante o dia e pensativa à noite. Apesar da minha vontade e da, um tanto incrédula, satisfação em partilhar aquele mundo nítido e rico, a verdade é que estou demasiado débil para aguentar grandes doses de multidão e, logo que a refeição termina, regresso ao meu quarto, escoltado por olhos atentos no lento trajecto escada acima.

Preciso ainda de ajuda para quase tudo: medir a temperatura (não tenho força nem apoio muscular para executar um gesto tão simples como sacudir o termómetro, a fim de desfazer a subida do mercúrio da véspera); desinfectar com Betadine a sutura da perna; calçar a meia elástica que me comprime a perna, inchada e terrivelmente dolorosa ao nível do tornozelo, suplício que a torreira exterior amplia.

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As únicas actividades que faço sozinho, para além de comer e voltar as páginas de um livro, são fazer a barba e tomar banho e, mesmo assim, com muitas cautelas. O banho, tomo-o sentado num banco de madeira, estrategicamente colocado debaixo do jacto do chuveiro. Sabe bem: vou descansando enquanto me esfrego e não tenho que me preocupar com a sensação de instabilidade que, sem apoio, sentiria em pé sob a força da água, particularmente quando para champonar a cabeça é forçoso que feche os olhos.

Tomar banho, secar-me, fazer a barba, passar uma cotonete embebida em desinfectante pela costura do peito, e eis a zero a energia acumulada ao longo da noite. Fico nas lonas, chinelo pelo corredor até ao quarto, deixo-me cair (metaforicamente, é claro, pois faço-o sempre em câmara lenta) na poltrona e fico a arquejar, afundado num imenso cansaço. Mas nem tudo são espinhos: já ouço o alegre tintinar da baixela do pequeno-almoço aproximando-se. É incrível mas não penso em mais nada do que em comer! Uma hora depois de terminar uma refeição começo a ser assediado pela ideia da próxima e tento adivinhar pelos rarefeitos odores que se intrometem pelo vão da escada ou me chegam pela varanda se o jantar será carne ou peixe. Eu dantes não era assim, comer não era muito mais do que uma necessidade a cumprir, nunca fui aficcionado de palmilhar 100 Km para me ir empanzinar com uma lampreiada ou um leitão assado. Mas agora..., agora começo a perceber os gordos, a compulsividade de enfiar comida no bucho, o angst do vazio interprandial. Porque será? Foram os dias de míngua hospitalar? Não, isso não é verdade: em Santa Marta comia-se bem e abundantemente. Será porque, dado o meu estado, é o único prazer à mão de semear?, que me resta? Não sei; o que sei é que os meus dias decorrem nas entrelinhas das refeições. Sentado na poltrona azul, um livro abandonado no colo, a Rádio Nostalgia ao meu lado, olho sonhadoramente pelas portas-janelas abertas e, detendo-me na luz matinal, penso:

“O que será o almoço?” Embora o horizonte que alcanço pela varanda esteja pintalgado por árvores, pela

copa alta de uma mimosa, pelo rubro-bago-de-romã de uma buganvília, pelo verde cerrado de uma mata de pinheiros, o Zé João e o João Pedro acharam que eu precisava da companhia mais personalizada de um ser vegetal e arrastaram, lá de baixo do quintal, uma grande planta e o respectivo vaso; que colocaram na tijoleira da varanda, encostada a um dos painéis de vidro da porta para que, sem nenhum esforço e esteja na cama ou sentado na poltrona, possa desfrutar da sua presença.

É uma planta curiosa e rapidamente me afeiçoei a ela, como a um animal de estimação. Tem cerca de um metro de altura, folhas banalmente lanceoladas, mas é dotada de umas delicadas flores de cinco pétalas de cor violeta, unidas umas às outras como os gomos de um guarda-sol de praia, pontuadas por um aveludado e apimentado toque de amarelo no centro. O nome, que descobri etiquetado ao caule, diz muito sobre as propriedades heliotrópicas das flores: Solanum rotaneli. Desde manhã cedo até ao fim da tarde, as flores espamparam-se numa amplitude e numa orientação de chapéus de esplanada de praia às duas da tarde para, logo que o sol começa a declinar, se fecharem como guarda-chuvas num bengaleiro.

Numa apetência que irrompeu em Santa Marta, ainda hoje estou para saber porquê, continuo a entreter-me apenas com a prosa de Truman Capote e leio agora o A Sangue Frio, livro a quem concedi umas tréguas para, finalmente, começar a responder ao maço de correspondência que ando a acumular desde o primeiro dia de doença e que não cessa de crescer, como se o Pai Natal andasse confuso com as datas: telegramas, cartões, cartas, livros, presentes sortidos; todos os dias o correio entrega alguma coisa.

Sentado na poltrona, cingido de almofadas, uma perna esticada sobre uma cadeira, o eterno saco de gelo pingando sobre a toalha de turco em que está envolvido, tento ordenar o que tenho sobre a mesinha de apoio por ordem de chegada – é que alguns

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daqueles telegramas já têm mais de um mês, amarelecem ao meu lado desde os meus dias no Hospital de Torres Vedras.

Uma prancheta sobre o colo, um maço de envelopes fazendo companhia a um rolo de selos, escrevo a primeira linha de um agradecimento com um esforço inesperado, como se desde os bancos da escola primária não tivesse voltado a pegar na caneta e os movimentos da mão tivessem caído no esquecimento. Fico espantado, mas insisto. Acabei o bilhete, redijo agora o envelope: remetente, nome do destinatário, endereço, código postal e, localidade. E paro, arrasado; os músculos do antebraço doridos, a mão pesada, a respiração alterada, as costas suadas.

Desisto, por agora. A continuar assim não vou responder a tudo antes do Natal! Reclinado, de olhos fechados, constato e considero, ainda surpreendido, os diversos aspectos do meu estado físico tão debilitado: a voz, que se vai tornando um fio ao fim de poucos minutos de uso, a rasteira capacidade em desempenhar tarefas antes banais: escovar os dentes, raspar a barba, manter uma conversa telefónica, escrever um postal. Estou, como diria o meu amigo Carlos D., “um caco”; num mês envelheci trinta anos! E, com espelho ou sem ele, avalio-me com estupefacção. No entanto, o que o espelho me mostra não é alguém assim tão enrugado, tão precocemente senilizado – apesar das feridas e cicatrizes estou razoavelmente parecido com o que era. E, sobretudo, a minha debilidade física, embora o asfixie em desânimo, não casa com o meu estado mental, com a chama que arde em mim ou com a constante brisa que me percorre as volutas da memória; com a voz antiga, continuamente sussurrada, que diz: “hoje é um dia, amanhã será outro – voltas a tentar; talvez saia melhor”. “Há-de melhorar, as coisas hão-de melhorar”, penso, confiante, tentando já pôr-me a identificar, a acarinhar, um pormenor que se distinga positivamente.

Um dia, ao jantar, senti que as mãos se me suavam, de repente, sem motivo aparente. Esse sinal foi acompanhado de um leve baque, como uma única nota fora de tom no meio de uma rapsódia, mas como o episódio foi pouco menos do que instantâneo não me afligi e arrumei-o numa nova faceta da minha personalidade pós ataque cardíaco: em ambientes barulhentos, de muita gente e, principalmente, fechados, desenvolvo uma certa claustrofobia – uma aflição por me sentir entre paredes e uma grande vontade de abrir uma janela ou fugir para ir aspirar ar ao exterior. Não liguei, portanto. Mais tarde nessa noite, já longe do incidente, regressava do quarto de banho para me deitar quando, intempestivamente, fui sacudido por uma gigantesca onda de má disposição, atacando-me em todas as frentes: as luzes escureceram nas quatro lâmpadas em chama de vela dos apliques do corredor; a minha visão tornou-se turva; um arrepio frio descia a espinha; do estômago subiram náuseas e – o velho sinal aterrador – o corpo encharcou-se-me em água, tal as nascentes que, afastadas da zona de rebentação, babam a areia da praia. Na sensação de iminente queda que acompanhou tudo isto, apoiei-me na estante de portas envidraçadas que ocupa grande extensão do corredor e consegui chegar até ao quarto, esparralhar-me de través na cama. Estava sozinho no andar de cima e tão tolhido pelo colapso que nem a campainha vi ou dela me lembrei. Fiquei, esperando, uma mão pousada no peito, acalmando o coração que palpitava medroso. Fui encontrado pelo meu cunhado, que subira ao andar de cima para me dar as boas-noites e ficou completamente em pânico com o quadro, com a minha tez... “...completamente branca – julguei que te ficavas ali!”, desabafou mais tarde, traumatizado com a cena e com a sensação de impotência perante o que sucedia. Pedi-lhe que nos papéis da primeira gaveta da cómoda procurasse um envelope grande, onde deveria constar sob o logotipo verde os números de telefone do Hospital de

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Santa Marta. Tudo o que se seguiu demorou largos minutos: na atrapalhação ele não dava com o envelope, não se lembrou que não havia telefone no quarto e que se tornava necessário ir buscar um telemóvel e, acima de tudo, não sabia a quem telefonar e o que dizer. O tempo passara, eu metera um almofadão sob as pernas (de modo a mantê-las altas e a conduzir mais sangue para a cabeça) e, apesar da sensação de esvaecimento, ia-me sentindo melhor. Os suores tinham estancado, a visão melhorara, o quarto voltara a ser perceptível, e acabei por ser eu a pedir para me ligarem à Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia e daí ao médico de serviço, um nome para mim desconhecido. Quando cheguei à fala com ele e lhe expliquei quem era, que fizera um duplo by-pass há cerca de quinze dias, que estivera na cama 16 do Serviço, ele localizou-me: “Ah, já sei, é o colega de Torres Vedras.” Aflito, confiei-lhe as minhas desgraças: os sintomas, os sinais. “Quais são as suas tensões neste momento?”, perguntou-me do outro lado do fio. Eu sabia lá as minhas tensões! Não existia um aparelho naquela casa e o meu estava longe, na Praia. Depois quis saber o que eu estava a tomar e aconselhou-me a redução da dose do atenolol, o medicamento que tomo para manter o coração plácido mas que outros tomam para controlar uma tensão arterial demasiado alta, pois é uma droga de várias virtudes e múltiplos inconvenientes. “Isso tem todo o ar de crise hipotensiva”, dizia com toda a calma. “Após a cirurgia cardíaca as tensões são sempre muito baixas, e a quase completa ausência de movimento, mais o beta-bloqueante, agravam a situação.” “Então acha que não vou morrer assim de repente?”, brincava eu muito a sério do lado de cá. “Não!”, disse num risada simpática, “coma qualquer coisa salgada, reduza a dose de atenolol para metade, e vá controlando as tensões e o pulso”. Após um chá bem açucarado, umas bolachas com queijo, e um punhado de castanhas de caju torradas e salgadas, adormeci como um passarinho. No dia seguinte a João comprou um aparelho de medir tensões e pulso todo automático, e tivemos ocasião de confirmar numericamente a miséria em que eu andava: as minhas velhas tensões de 80/120 mm Hg tinham-se sumido cano abaixo e o melhor que eu exibia, em tensões por vezes ainda mais baixas, era uma mínima de 60 e uma máxima de 80!

O episódio da minha crise nocturna, contado num tom aterrado por um impressionado cunhado, teve um efeito fatal sobre o meu quotidiano e a atenção sobre mim reforçou-se de tal maneira que quase voltei a sentir saudades da relativa indiferença com que era deixado ao abandono horas a fio na cama 16 de Santa Marta. E, uma vez que o problema estava identificado, o interesse pelos meus valores tensionais integrou o domínio público e as variações da minha mínima passaram a ser diariamente inquiridas e discutidas como cotações da Bolsa.

Ainda por cima, contribuindo para um efeito bola de neve, essas crises repetiram-se (uma, duas, três vezes) à vista de toda a gente, por exemplo no decorrer de um jantar: eu, acabado de comer a sopa, sentindo o calor subir em mim, o súbito estacar inexpressivo do fácies e, de um momento para o outro, eis toda a gente apercebendo-se da mudança, expectantes, criando-se um silêncio preocupado, enquanto eu me levantava como podia, pedindo esverdeada permissão para me ausentar; deixando a refeição a meio para vacilar até ao sofá no fundo da sala ou, se o conseguia, voltar ao refúgio do andar de cima.

É noite ou é o que parece pelos estores descidos, pelos cortinados cerrados. Deitado na cama, cabeça baixa e pernas ao alto, mascando terapêuticos amendoins salgados, descanso de mais um flato no andar de baixo. Lá longe, na poltrona de veludo

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azul, está alguém – que não acabou de jantar – sentado na semi-obscuridade, vigiando o meu recobro. Como sempre, o regresso à tona da plena consciência inicia-se por uma espantada percepção dos contornos do espaço em volta, um misto de reconfortante reconhecimento de um espaço familiar, perturbado pela excessiva presença de alguns pormenores que, durante o dia, em situação normal, não sobressaem na rotina geral do quarto. Absorto, sentindo no despertar do corpo que a cabeça me lateja, que tenho as costas moídas, olho com fixidez os três panos de madeira lacados a branco da porta do quarto, onde a cercadura dourada que enquadra cada um deles se projecta num relevo inusual. Já sei, acontece com cada detalhe apercebido nestas circunstâncias, manterá durante dias uma presença desconfiada, um pouco ostensiva para um objecto inanimado.

Estou preocupado com estas variações da tensão arterial. Tenho medo que signifiquem que algo está a voltar para trás. Embora o médico de Santa Marta não tenha ligado grande coisa, estes episódios lançam uma sombra sobre a convalescença, minam a minha confiança, tornam-me cismático. “Após a cirurgia cardíaca as tensões são sempre muito baixas e a ausência de movimento, mais o beta-bloqueante, agravam a situação...”, dizia-me ele ao telefone. Quanto ao beta-bloqueante a investigação está feita, as medidas correctivas em curso: reduzi, como indicado, a dose para metade, mas, mesmo assim, o meio comprimido que engulo de manhã revela-se arrasador. Sinto a sua acção iniciar-se uma hora depois e atingir o seu pico cerca de três horas após a toma – é como se me tivessem aberto uma torneira e me esvaziassem de energia. Fico amolengado, esvaído, ensonado; a garganta seca, a voz perde potência; os globos oculares parece que perderam lubrificação e os olhos quase chiam cada vez que os mexo nas órbitas. Sendo assim, e porque a dose que estou a tomar é já quase infantil, ensaio a microscópica tarefa de partir o meio comprimido em duas metades e passo a tomá-lo aos quartos. A estratégia resulta: as crises espaçam-se no tempo, dão sinal de se atenuarem. A isto junto o contributo, a minha modalidade muito particular de exercício físico para estimular o movimento circulatório, para contrariar a tal “ausência de movimento”. Em pijama, de roupão, descalço para não ser travado pelo passinho curto das chinelas, inicio passeios, depois caminhadas e, por fim, maratonas no corredor que une o meu quarto ao resto do andar de cima; lá em baixo na espaçosa sala, atravessando-a em passadas cada dia mais enérgicas, contornado vezes sem conta a senhorial extensão da mesa da sala de jantar. “Estás a andar há quase uma hora”, cronometra a minha sogra, animando os meus treinos. E seja pelo que for, pelo efeito das medidas ou pela ocupação da mente com metas concretas, melhoro a olhos vistos. O aparelho de medir tensões ainda não acusa pó ou teias de aranha mas, pelo menos, já só é retirado da caixa duas vezes por dia: uma de manhã e outra à noite.

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Abalou-me, confesso que abalou. Aos bocadinhos, ao longo das noites nas camas de hospital, mais tarde, durante as insónias da convalescença; à medida que a poeira foi assentando e eu fui juntando e colando os fragmentos coleccionados, fazendo a montagem e, depois, vendo e rebobinando vezes sem conta o filme.

De igual modo, quando me olho ao espelho e contemplo impressionado o meu novo corpo, cruzado por cicatrizes do pescoço aos calcanhares – só me faltam os parafusos na cabeça (e, vá lá, calçar 51) para igualar o Frankenstein. Até mesmo, tal como

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a ele em noite de tempestade, o meu sopro vital se fica a dever à electricidade, em última análise à EDP! Abalaram-me vários aspectos. Chocou-me, em primeiro lugar, o modo como, em menos de três anos fui ruminado por um cancro e, logo em seguida, sem ter tempo de dobrar tudo numa gaveta da memória, fui devassado por um enfarte e por uma experiência terminal que me atropelou como um comboio de mercadorias. É demasiada areia para a minha camioneta, atrever-me-ia quase a dizer que é demasiada areia para a de qualquer um. Uma espécie de irritação por a esgalgada dama andar a simpatizar tanto comigo: olha que porra, e há ele tanta gente no mundo!

Em segundo lugar, a simplicidade da coisa, isto é, da morte. Não só o seu carácter repentino, o cliché do sopro na vela, que isso é quase conversa de elevador. Não. A simplicidade, a falta de metafísica, a falta de ambiente, o anti-glamour (mesmo que sinistro). Nada... O sol brilha, o automóvel anda, o copo esvazia-se, os pássaros cantam, o mar existe. Nada muda. A construção do mistério, do momento especial, do mérito, está toda por nossa conta. Chocante!

O mais duro, aqui como no hospital, continuam a ser as noites. As manhãs, magníficas manhãs de Verão, contagiam-me com a vitalidade, a sua

frescura recente põe-me a rodar no sangue uma disposição optimista. À noite, subo do jantar mal ele termina; pois descer as escadas, comer, conversar, dar atenção ao que se passa, fatiga-me o suficiente para logo desejar a tranquilidade, o silêncio do quarto, onde posso dosear os estímulos rodando o botão da aparelhagem ou fechando um livro. Simples. Vou atrasando sempre a hora de me deitar definitivamente, de apagar a luz e ficar a sós com os meus botões. Geralmente leio um pouco na poltrona azul, ao som do rádio, até me cansar de estar sentado e depois mais um pouco na cama, até me doerem as costas ou a posição dos braços. Na hora de apagar a luz, e se ela está por perto, cravo uma massagem nas costas à João. Ao fim do dia os meus ossos e músculos acusam uma tremenda ansiedade, puramente física mas tão aflitiva como a mais diáfana angústia. Foi em Santa Marta que percebi como uma massagem nas costas e no pescoço aliviam essa tensão e devolvem a um corpo crispado uma apreciável calma. Logo em seguida, aproveitando o amolecimento para melhor me esticar, deito-me para baixo, num mar de almofadas: uma sob a cabeça; outra preenchendo os vãos do pescoço; uma terceira encaixada entre as costas e o colchão, evitando que o tronco fique desapoiado e se torne demasiado pesado para os ossos recentemente costurados; uma outra, grande e bojuda, lá ao fundo da cama, mantendo a perna direita acima do nível do colchão, de modo que a drenagem venosa se faça fluentemente e não agrave, por estase, a dor do tornozelo; e, acho que é tudo, uma minúscula almofada de casa de bonecas que mantenho apertada ao peito para que possa auxiliar uma compressão macia do esterno durante algum movimento imprevisto durante a noite. Demoro uma eternidade com todo este processo, desde que da posição de sentado decido passar à de deitado: o esterno não aguenta uma descida brusca e, mesmo muito lentamente, parece ir rachar-se em dois, arrastando com ele um desengonço de costelas e clavículas. Macaco velho, vou gemendo um ai-ai-ai expirativo durante a manobra, o qual pode não ser muito eficaz mas sempre alivia e distrai. Finalmente, apago a luz. Custa-me adormecer. Custa-me sempre adormecer. Não me abandonou a incerteza de acordar vivo no dia seguinte: despertar vivo ainda não voltou a ser uma coisa tão natural como ter fome ou sede.

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Telefonar para o Hospital de Torres Vedras. Andava com esta fisgada desde os

meus últimos dias em Santa Marta. Era uma obsessão, como se uma parte da família estivesse sem notícias minhas e logo aquele ramo do clã que me vira renascer e, uma brilhante manhã de S. João, me vira sair e não regressar para jantar.

Posto isto, uma manhã, de dedos trémulos, liguei para um número que nunca discara. Automaticamente, logo que me atenderam do Serviço de Medicina perguntei pela enfermeira Catarina. Não estava: estava de férias. Então, e a enfermeira Inês? Também não...

“Por acaso não me sabe dizer se ainda aí está, na Unidade de Cuidados Especiais, um senhor chamado António Luís?”

“Não podemos dar informações clínicas sobre doentes”, respondeu a voz, tornando-se friamente impessoal. “Quem fala?”

Expliquei-me: tinha estado ali internado, na cama logo à entrada da porta, fôra para Santa Marta ser operado; o António Luís era meu colega de enfermaria.

“Ah! é o dr. Pedro?”, a voz desconhecida tomando o tom do ‘já podias ter dito’, “aqui é a enfermeira Salomé”.

E fiquei a saber que o António Luís tivera alta, para casa, que tudo acabara em bem; que a Catarina regressaria das férias na semana seguinte. Desliguei, de costas suadas, sentindo a mesma emoção de quem acabou de pousar o telefone de uma chamada de longa distância, de falar para casa.

Uns dias depois voltei a ligar, para cumprir a incompleta missão: queria dizer olá à Catarina, fazer-lhe chegar a viva voz do seu doente perdido em Santa Marta (um “muito obrigado” camuflado nas minhas intenções).

E desta vez ela atendeu, numa voz que, apesar da satisfação pela minha lembrança, me soou sucumbida:

“Nós soubemos tudo o que se passou consigo”, confidenciou em resposta às minhas informações, “o dr. Varanda e o dr. Brito estiveram sempre em contacto com o Hospital de Santa Marta, têm-nos posto a par”.

“E a Catarina?; como vai?” Aí fiquei a conhecer as razões da voz entristecida: durante as férias dela, sem aviso,

de repente, o pai morrera-lhe; provavelmente coração. “O choque foi muito grande”, disse, “mas o que me preocupa agora é a minha

mãe, que ficou muito abalada”.

33

Esta noite sonhei com a minha mãe. De manhã o cenário tornara-se, como habitualmente sucede com os sonhos, indistinto, mas havia um sulco profundo, uma impressão forte.

Algures, a meio de um longo corredor de cave, não sei quem estendeu-me um telefone, um daqueles que estão acoplados à parede; um telefone branco, na ponta de um fio, também branco, esticado. “Toma. Uma chamada para ti.” Atendi e reconheci imediatamente a voz da minha mãe, embora ela a estivesse a tentar disfarçar, fazendo-se passar pelo meu primo Heitor. “Coitada”, pensei, “não me quer impressionar por estar morta e, ao mesmo tempo, a telefonar”.

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“Pedro?”, dirigiu-se-me ela numa voz camuflada que me chegava cheia de ruídos, “tenho uma coisa muito importante para te dizer...” Imediatamente a seguir a esta introdução, a chamada, depois de vários gorgolejos compatíveis com interferências ou perda de rede, foi-se abaixo e restou apenas um som agudo a retinir no bocal. Estava sentado na poltrona, a tomar o pequeno almoço e ainda sob influência da perturbação causada pelo sonho, quando a João chegou e, após alguns rodeios, disse: “Tenho uma coisa triste para lhe contar... Tinha decidido não o fazer, para não o incomodar, mas acho que é melhor dizer-lho. Vai ser pior se o souber depois, quando já não puder fazer nada. Morreu o tio Mário...” “Quando?”, perguntei de imediato. “Já morreu ontem; o enterro vai ser hoje, ao fim da manhã.” Passei o resto do dia a choramingar, a prestações, aproveitando os momentos em que me achava só no quarto. O tio Mário era o meu tio preferido, um daqueles tios mais novos que é o ídolo dos sobrinhos. A última vez que o vira fôra uns dois meses antes, quase sem voz, sentado num maple como este em que estou agora, com o terrível e macilento ar de quem tem uma doença ruim; e eu soubera, minutos antes de subir as escadas e entrar na sala onde ele via televisão, a confirmação do diagnóstico pela minha aflita prima: “O meu pai tem um cancro no pulmão...” Toda aquela sequência, que se inaugurara com o sonho, fez uma terrível impressão ao meu devastado estado geral: a morte em si, a sua notícia; o pré-aviso da minha mãe que, indelevelmente, passei a ligar àquele acontecimento. Morte, morte, morte. Este ano tem sido uma festa.

34

Um mês passado, a 2 de Agosto, regressei a Santa Marta, para a consulta que fôra programada no dia da alta.

São nove da manhã de um dia abrasador. A João deixou-me à porta do hospital e foi tratar de estacionar o carro, tarefa difícil naquela zona, mesmo em Agosto, com a cidade em férias.

Atravesso o jardim devagar, reconhecendo a custo, na imobilidade pétrea da paisagem e dos objectos, o local onde, parece-me há uma eternidade, cheguei um dia para fazer um exame rápido às coronárias.

À minha frente segue vagarosamente uma médica (lá vai ela com o arco de borracha negro do estetoscópio a espreitar-lhe do bolso da bata) que, ao sentir o saibro estalar na sua retaguarda, se virou num olhar enquadrador que logo se volveu anódino.

“Olha quem ela é”, pensei, divertido com o meu papel de homem invisível. Aquela senhora, que antes dessa ocasião eu nunca vira, tinha estado uma noite no meu quarto em Santa Marta, apresentando-se como amiga de amigas minhas e ali parara uma lenta e entretida hora vendo-me jantar, debitando encomendados cumprimentos; e tecendo considerações sobre a vida, a doença e como esta, tal marcador fosforescente, realça o que aquela tem de mais importante.

Embalado neste divertimento, estuguei o passo, ultrapassei-a e olhei para trás demoradamente, a impregnar-lhe os olhos com as minhas feições. Nada..., mas é que nem toscanejou!

Ainda no jardim, na rampa que descia para a entrada por onde, no dia da alta, deixara o hospital, cruzei-me com um rapaz que empurrava indolentemente um contentor

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de lixo hospitalar, um auxiliar de que me recordava do pavilhão dos Cuidados Intensivos da Cirurgia Cardiotorácica – tinha ainda na memória uma imagem, fresca como uma Polaroid, dele e duma colega, numa coreografia de recorte maoísta, esbracejando um lençol lavado por sobre o meu corpo. Olhei-o intensamente: nada, nem o mais leve sinal de reconhecimento.

Menos divertido; sentindo embaçar-se a tremeluzente emoção que desde que me levantara me tomara o peito, dirigi-me para a larga porta pela qual, nesse momento, saía um rancho de pessoas, provavelmente gente que largara o turno da noite. Boquiaberto, reconheço, falando com uma acompanhante, a enfermeira Patrícia, a loura de intensos olhos azuis que massajava tão compassivamente o sr. Alberto; e que, apenas um mês atrás, nos dera, a mim e à João, longas e briosas informações sobre o funcionamento da sua querida Unidade de Cuidados Intensivos, o tal local onde ninguém morria facilmente. Mas a minha boca não pára de se escancarar: a Patrícia que passa por mim, sem dar conta da minha existência (e isso é já o menos, face à dimensão da minha estupefacção), usa óculos!; tem apostos na face uns óculos graduados, de lentes brancas e aros negros! Mas... como pode ser? Ela, lá em cima, enquanto trabalhava, não usava óculos de espécie nenhuma; deslizava, sem bata, sem nenhum acrescento à sua hollywoodesca figura de boneca, pelo espaço da Unidade. Meu Deus, concluo, numa maravilhada iluminação, ela tirava os óculos para trabalhar! Em cena, ela caprichava a imagem, aperfeiçoava a sua beleza.

Atordoado, olhando para trás até vê-la desaparecer numa esquina, entrei a larga porta do hospital e dou conta que ao passar por mim, uma mulher de bata branca me mira e me faz um, muito ténue, aceno de cabeça. Sim, olá, estou a ver quem és. É uma jovem médica da Cardiologia que um dia, na orla da cama 16, me informou, num ar desconsolado:

“Eu gostava de o auscultar, mas você parece que está sempre com visitas!” Vá lá! – finalmente uma ou duas pessoas da Cardiologia ainda se lembravam de

mim, uma delas o dr. Gil Seabra, o médico que me mandara lá ir. “Então?”, perguntou a João quando se juntou a mim na sala de espera da consulta externa. “Ninguém me reconheceu!”, respondi, desanimado. “Não é isso. O que disse o médico?” “Ah..., diz que está tudo bem. Volto cá em Outubro, para fazer uma prova de esforço.” “Contou-lhe das suas aflições com as tensões?” “Contei. Não deu grande importância ao assunto.” No dia seguinte, em cumprimento de uma promessa mental que fizera a mim próprio de começar a aventurar-me no exterior logo que fosse abençoado pelos médicos, saí para a meu primeiro passeio a pé. “Sim”, dissera o dr. Gil, “ande a pé; ande muito a pé. É um excelente exercício para o coração.” Tudo são para mim comemorações de um regresso ao mundo: vestir-me e calçar-me (já não me recordo sem pijama, roupão e chinelos), despedir-me com um “até logo”, sentar-me num assento de automóvel, andar pelas ruas, ver o trânsito, muitas pessoas... A João estacionou, à sombra de palmeiras, o carro no cimo da larga avenida que desce até à baía de Cascais e aqui vamos nós torneando o murete que ladeia o passeio e uma magnífica vista sobre o mar, estendendo-se até lá longe pela marginal, a outra margem. Um dia esplendoroso, todo azul e ouro. Pela primeira vez tenho a noção da transformação brutal que se deu no meu corpo, sinto-me como se, num ápice, tivesse envelhecido quarenta anos. O meu andar é hesitante, lento, de pequenos passos, e olho cada pessoa que connosco se cruza com terror, pois tenho a certeza que o mais leve contacto me fará estatelar no chão sob o impacto.

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Eis-nos chegados ao fim da avenida, ao lado da Praia dos Pescadores, e agora é preciso atravessar o passeio em frente ao Hotel Baía, em busca do lado de lá, porque é nossa intenção dar uma voltinha pela feira do livro que abancaram no jardim do Visconde da Luz. Não me consigo decidir pelo momento ideal para me aventurar à travessia. O trânsito, ali, é ridiculamente lento e compassado, seja porque o chão é de calçada portuguesa e não de asfalto – o que talvez iniba os motores – seja porque a maioria dos condutores que ali passa se passeia; mas, mesmo assim, essa mais que familiar placidez automobilística parece-me hoje o autódromo do Estoril, nos saudosos dias da Fórmula 1. E se algum me toca? Esmaga-me, com toda a certeza. E se não me tocam, mas se eu apresso o passo para diminuir o risco de chegar um carro? Tropeço ou escorrego e caio, é certo e sabido. “Quer que o ajude a atravessar?”, pergunta a João, pressentindo as minhas hesitações de beira de passeio em borda de piscina. “Não, eu atravesso sozinho”, respondi, orgulhoso. No outro lado, respirando de alívio, sentei-me num banco de pedra, a descansar das emoções, a olhar o trânsito que enfrentara com sucesso. “Meu Deus!, que difícil vida a de um velho”, apercebi num lampejo. Aguentei-me como um herói perambulando pelos stands da feira do livro. Voltei a atravessar o perigoso caudal de trânsito em frente ao Hotel Baía e, com coração de leão, subi de novo toda a avenida; mas, logo que cheguei a casa, procurei a cama, estafado por aquela tão radical tarde de aventuras.

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Estar doente e ser doente são estados diversos; muito diferentes nas consequências que acarretam à nossa imagem, aquela que temos de nós próprios e a outra, a que os outros guardam de nós.

Quando era menino gostava de estar doente, de tal modo que cheguei até a tentar alcançar por imitação esse estado transcendente do ser fingindo uma dor de cabeça e mergulhando o termómetro na caneca de café com leite do lanche, numa tentativa (vã, pois é difícil enganar um pai que é médico, particularmente quando a nossa fronte, ingénua e fresca, não condiz com uma linha de mercúrio nos 40ºC) de evitar a escola e, sobretudo, de adquirir um invejável estatuto – o passaporte para um quotidiano de que passava, no leito-trono do andar de cima da casa, a ser o centro. As refeições à la carte, os sucessivos sumos naturais (como se de repente o quintal se tivesse povoado de laranjeiras), a inveja das minhas irmãs, os telefonemas a saber de mim, o presente que o meu pai trazia quando chegava do trabalho. Foi assim que um fim de tarde, a princípio desiludido por ser um livro pequeno e quase sem imagens, me iniciei no suspense e na febre de ler um livro de um só fôlego. Em vez do álbum do Tintim da penúltima amigdalite, o meu pai trouxera-me, desta vez, uma coisa chamada Os Cinco na Ilha do Tesouro, uma história escrita por um homem chamado Enid Blyton. (Ainda hoje o simples mencionar do nome dessa autora me faz crescer água na boca, pois nunca na vida, e Deus sabe quanto tentei, provei scones com manteiga como os que ela servia aos seus heróis.)

E, depois, as doenças da infância eram, para mim, rapazinho ocidental, breves, benfazejas, e esfumavam-se sempre num final feliz que acabava num regresso à escola no meio da admiração geral dos colegas e, inclusive, na semi-breve indulgência do professor. Ah, estar doente era uma saborosa e desejada mordomia...

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E se estar doente era sinónimo de, como se diz hoje, uma importante mais valia, ser doente é, pelo contrário, um resvalante processo de perda: perda de autonomia; perda de estatuto, perda da auto-imagem. E tudo começa com o olhar. Será que com a doença a nossa imagem se modifica? É o que parece quando observamos o olhar dos outros sobre nós, olhar que se alterou em relação à bitola habitual. Toda a gente, o que inclui família, amigos e conhecidos, nos passou a olhar de um modo diferente. Sem excepção? Sim, quer dizer, não, há uma excepção: os profissionais de saúde, cujo olhar varia entre o tranquilizadoramente normal ou o vazio total, como se não existíssemos.

O que se modificou afinal? Nós? O olhar dos outros sobre nós? ou, mesmo, o nosso olhar sobre os outros? Eu acho que é o olhar dos outros, pois começamos a ser olhados de forma diferente mal a notícia da doença se espalha, ainda antes de ostentarmos sinais da maleita ou estigmas dos tratamentos. É possível, também, que o nosso olhar sobre os outros se modifique porque a doença torna-nos desconfiados, passamos a estar expectantes, uma vez que talvez estejam, para nossa tranquilidade, a ocultar-nos algo: o nosso olho torna-se detectivesco. Mas isto, suponho, é secundário e funciona apenas como um catalisador da percepção: o que mudou mesmo foi o olhar dos outros sobre nós. Existe um olhar especial para doentes. E mais: dentro dessa categoria específica, há ainda espaço para matizes – o olhar dos outros pode variar conforme a doença de que padecemos. Quando se tem um cancro, por exemplo, o olhar dos outros sobre nós é um olhar assustado, isolador, como se fossemos portadores de uma doença contagiosa. Não é, não se pega, e toda a gente o sabe; mas esse é o olhar: assustado e, simultaneamente, cavando um fosso entre eles e eu. Porque será? Especulo, mas penso que é pela ideia de morte, certa e a prazo, associada ao cancro. As pessoas cheiram que aquela face, aqueles ossos, aqueles olhos, contêm a morte, anunciam a morte. E olham assim, sem querer, como podem. Isolam-nos, numa redoma de quarentena. É embaraçoso encarar um mensageiro da morte, que até ainda há pouco tempo era um amigo, irmão, mãe, pai ou avô. Com o enfarte é diferente. Não somos ameaçadores, nem mensageiros de nenhuma peste; somos coitadinhos, uns vidrinhos que podem rebentar a qualquer esforço. Inspiramos quase ternura, que é isso que inspira o coração. As pessoas admiram-se que consigamos subir escadas, andar depressa, coisas do género. São prestáveis (“espera, eu levo isso”), são atenciosas (“não prefere ir antes de elevador?”), passam a ir fumar o cigarro lá fora, para não nos matarem com o fumo. E nós, os doentes, temos que lutar forte para não sermos levados de enxurrada, abalados e modificados por isso, pois toda a gente nos olha assim, o olhar dos outros empurra-nos para esse papel: o de doentes. Não obstante, como toda a medalha tem um reverso, a doença de um paciente concreto, ainda que não transmissível, também pode provocar consequências sobre os outros. Na esteira da doença de Hodgkin e dos meus gânglios no pescoço não faltou quem se começasse a apalpar ciosamente e a achar que pequenas ervilhas mirradas sob o queixo podiam ser um sinal de algo mais alarmante. Eu, que tivera papos com o tamanho de ovos, ria-me, é claro, dizia: “Estás maluca! És médica, devias ter juízo. Isso são restos calcificados de alguma amigdalite antiga.” Mas as movimentações, precoces e tardias, produzidas pelas ondas de choque do meu enfarte sobre a gente que comigo priva foram muito mais espectaculares e merecem uma, mesmo que abreviada e anónima, lista de lavandaria; ordenada pela gravidade crescente das manifestações: 1. S., T., e U. afligiram-se ao longo de alguns dias com perturbantes sensações no peito. S. referiu ter sentido umas “picadelas num braço”, não garantindo se no esquerdo ou se no direito”;

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2. X. deixou de fumar, de vez. Andava a tentar há uns 25 anos; 3. X., Y., e Z. foram, a correr, fazer electrocardiogramas. Y. chegou mesmo a submeter-se a uma (clandestina) prova de esforço. Confessou-me que ia morrendo, só com o susto proporcionado pela experiência; 4. Deixo V. para o fim, por se tratar de um comovente caso de solidariedade com um amigo. V. foi, de ambulância e, depois, de charola, parar ao serviço de urgência de um hospital central, com uma terrível opressão no peito, a qual, felizmente, passou sem mais cuidados que umas boas palavras e um cheirinho de Valium; 5. Quase metade destes pacientes são médicos.

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Regressar a casa, teve que se lhe dissesse. Nunca abri o bico sobre o assunto, mas a ideia de voltar para casa não me era

simpática. Não estava morto por isso, ou cheio de saudades das pedras do lar. Era mais uma coisa que ia ter que acabar por acontecer e, para não correr a tentação de ficar eternamente ligado à carinhosa hospitalidade dos meus sogros, tinha-me dado a mim próprio um prazo mental para fazer as malas.

“A seguir à consulta de revisão”, pontuava, “começo a sair e a dar umas voltas por aí e, o mais tardar, uma ou duas semanas depois, quando já me aguentar razoavelmente bem nas canetas, levantamos ferro”.

E, ao mesmo tempo, ia cogitando sobre a minha secreta renitência em voltar para casa. O que seria? Durante algum tempo serviu-me a explicação de que essa incorpórea aversão teria a ver com o regresso ao local onde ocorrera o sinistro acontecimento, que entre aquelas paredes ficara a pairar uma sombra malsã e a minha simpática casinha à beira-mar virara uma espécie de cemitério índio, povoado por miasmas. Ao fim de alguns dias, mesmo antes de regressar a casa, a teoria ficou-me curta nas mangas e foi sendo substituída por outra, mais consistente: de facto, não me apetecia voltar a lugar nenhum, fosse a minha casa, fosse outra qualquer que me pusesse a imaginar. Deixara de ter raízes, era isso que sentia; não pertencia a lado algum. Aparentemente, qualquer lugar me era igual. Que estranhos sentimentos para uma criatura tão caseira!

Apesar da relutância, mantive-me calado, e uma tarde de Agosto, desembarcamos, com o carro carregado como um odre, à porta de nossa casa. Saí devagar do automóvel, olhando em volta, como quem aprecia o cenário de uma casa que alugou para passar férias através de uma fotografia de agência. Eu já ali tinha estado.

A Tangerina veio ter connosco ao portão. Está magrérrima, o macio tigrado do pêlo substituído por uma pelagem ruça e baça como uma carpete no fio. Move-se com lentidão e saúda-nos num miado quase inaudível. Recupera ainda de uma pneumonia que desenvolveu durante a nossa ausência e que a ia matando; deixara até de comer e mal se levantava nas patas. A Dona Luísa e a Carlota, nossas amigas e prestáveis vizinhas, dividiram a caridade de a levar ao veterinário, de cuidar dela, de nos telefonarem à medida que havia novidades sobre a evolução do seu estado de saúde. Pobre gata, deu-se mal com o abandono brusco e a solidão que se lhe seguiu.

No caminho até ao alpendre onde fica a porta da frente, ladeado por maciços de agapantos, as flores pendem murchas sobre a haste seca, ela própria dobrando-se em direcção ao solo, como que suportando mal a humilhação do desbotado fim de uma flor que, no auge da radiação, alardeava, por cada uma das pequenas trompas que lhe dão forma, a magnificência com que a sua rosácea enriquecia o ar primaveril de um requintado toque violeta. A superioridade daquela cor que no entardecer de Junho tão bem reflectia a

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luz do sol poente sumiu-se e o que restou foi somente a base folhada que, hoje tal como ontem, se conserva verde.

“Pai, não entras?”, chamava o Zé João, fitando-me do alpendre, talvez escandalizado com a minha falta de pressa em rever o interior da casa; espantado que a minha ânsia não igualasse a sua.

“Vou já, Zé; vai entrando tu...” ... despacho-o, subindo o primeiro degrau mas fitando ainda o caminho por onde,

à justa dois meses antes, o meu corpo fôra arrastado, às costas – como se um saco fosse; os meus olhos ao nível das corolas dos agapantos, retendo uma imagem que aguardou até hoje para irromper na minha memória: a de uma escurecida floresta de radiância violeta; devolvendo à consciência um tesouro enterrado: a impressão táctil de uma flor roçando um rosto, um contacto inesperadamente frio como o nariz de um gato.

Está-se a ver que houve barrela! A casa foi mexida recentemente, os objectos não acusam o pó mas, ainda assim, chegam à minha pituitária algumas moléculas do melancólico mofo que uma casa de praia não permanentemente habitada esconde nos seus cantos e rodapés. Mofo... Um longínquo odor a fungos, misturado com a estranheza que, desde pequeno e provei viagens e férias grandes, me marcou como um ferro, sempre que regressava a um dos meus sucessivos lares: o espaço acolhe-me, tolera-me, chega a mostrar-se semelhante, mas não me celebra. Está, agora que se habituara à ausência, um pouco desconfiado com o regresso do que considerava inamovível, do que pensava pertencer-lhe. Vai ter que se adaptar outra vez e isso demora. Para já, não diz nada, mas deixa errar sobre mim um indefinido aroma de amuo.

Melhor recepção me reservava a D. Nazaré, a minha vizinha do lado; uma senhora de oitenta anos de quem há uma quinzena conheço as menores oscilações da renitente hipertensão e do coração doente. Impressionada com o meu desaparecimento súbito, com o violento mal que, por via da mesma víscera que a apoquentava, arrumara “um senhor ainda tão novo”, a excelente senhora fez-me chegar, com uma regularidade ansiosa, recados de boas melhoras, desejos de rápido regresso e, na minha estadia no Hospital de Torres Vedras, o mimo de umas maçãs assadas ou a doçura canelada de um arroz-doce.

“Ó sr. dr. ...”, exclamou quando me viu atravessar a soleira da sua porta, estendendo na minha direcção, de sob o xaile lilás que mesmo no Verão usava como aconchego, uns braços comovidos.

E abraçou-se a mim a chorar, pedindo desculpa pela sua tolice.

Não sabia que me tinha tornado tão famoso aqui na minha rua, nas ruas

adjacentes. A doença conferiu-me celebridade local. Pessoas vagamente conhecidas, e outras até com quem nunca cruzara um cumprimento, atravessam a rua, vêm ter comigo, saudando o meu regresso, querendo saber se vou melhor, desejando-me felicidades, adorando os pormenores, se por acaso estou em maré de os contar; arrepiando-se quando, com generosidade e alguma malícia, mostro a cicatriz do peito a alguns privilegiados (que a da perna, já me dei conta, não tem grande impacto).

“Grande susto, hem?”, dizem-me no café da D. Ção, olhando-me com respeito. “Uma página para virar...”

Vou acenando que sim, agradecendo a simpatia, mas só porque é mais fácil para seguir adiante. Não consigo identificar os comentários como descrevendo a minha impressão sobre o que me sucedeu. Não me assustei, não tenciono virar a página e esquecer isto. Isto (o enfarte, o cancro) faz parte da minha vida e aí o quero integrar; não o consigo sequer sentir como uma coisa má que me aconteceu.

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“E olha que andava perfeitamente bem, ainda nessa tarde o tinha visto”, comenta às vezes um dos meus interlocutores para a pessoa que o acompanha no momento, a qual fica a olhar para mim como para um entroncamentado fenómeno. “Para morrer basta estar vivo”, filosofo do alto da minha experiência. Um outro fenómeno interessante foi a quantidade de gente que, de repente, descobri sofrerem do coração, que tiveram enfartes, que, como eu, foram operadas. Não preciso sequer de me esforçar por encontrá-las: elas vêm ter comigo, atravessam-se acidentalmente no meu caminho, ou alguém mas vem apresentar. Colegas. E eis-nos a trocar cromos: o enfarte, a coronariografia, a intervenção cirúrgica, a convalescença, o tempo há que fomos operados e como temos passado de saúde; a levantar fraldas, a esforçar decotes para, em plena rua, comparar o tamanho e o esbatimento das cicatrizes. “A sua ainda está muito fresca”, tranquiliza-me um veterano, “daqui a três anos estará assim...” Sabe bem, quem diria? Reconforta encontrar almas gémeas; alivia reconhecer que os nossos medos, angústias, dificuldades e manias são, afinal, monotonamente comuns. “Ai sim? Você também tinha medo de adormecer?”, desconfio eu, encantado. “Medo de adormecer!? Eu andei borrado, com medo nem sei bem de quê, durante seis meses seguidos!” “Sabe”, confidenciou-me uma sobrevivente em voz baixa, “eu acho que o medo que isto nos deixa é por ser uma coisa tão brusca, tão rápida – ficamos que tempos a pensar que se pode repetir a qualquer momento”. “Foi como se tivesse sido atropelado sobre o asfalto por um camião TIR”, assim me descreve um colega o momento existencial do seu enfarte.

E, neste convívio, amealhamos conhecimentos, trocamos pequeninos conselhos que nenhum médico nunca nos deu ou sobre os quais pareça ter informação. Talvez porque aquilo que a maioria dos médicos sabe foi de o ter lido em livros ou artigos especializados, por sua vez escritos por outros médicos que, tal como os seus leitores, ouvem pouco os doentes, as subtilezas dos retratos dos queixosos e não valorizam as suas, aparentemente secundárias, necessidades. Eles, os médicos, actuam por sub-empreitadas. O cirurgião abriu, reparou, coseu – está terminado da minha parte. Chegam os cardiologistas e equilibram a máquina até ela estar em condições de aguentar-se sozinha – está pronto, por nós pode andar. E o resto? Ah, meus amigos, desenrasquem-se, que estão nas movediças areias do “isso já não é nada comigo”. Isso não é importante, não é relevante, é secundário, dizem todos eles ou, pelo menos, dão-no a entender no silêncio alheado, no enfadado:

“Depois, lá fora, fala com o seu médico de família.” Há excepções, claro: uma das que encontrei, médico em Torres Vedras, passara,

como doente, três meses deitado numa cama de hospital. “Faz uma grande diferença...”, dizia-me.

Visitar e agradecer. Vestido como quem vai visitar a madrinha, fui uns dias depois ao Hospital de Torres Vedras; o grosso envelope de papel pardo com os principais elementos da minha passagem por Santa Marta debaixo do braço; a garganta apequenando-se de expectativa a cada porta que me aproximava do Serviço de Medicina. A qualquer momento poderia dar de caras com o dr. Varanda, com a enfermeira Catarina, com a enfermeira Inês ou qualquer outra das pessoas que comigo haviam lidado pouco mais de um mês atrás, mas que distavam para mim o equivalente a vários anos-luz. Do outro lado do balcão de recepção, onde outrora um ramo de flores que me tinham dado no dia dos meus anos pusera uma mancha festiva, encontrei, escrevendo

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sossegadamente num enorme livros de registos, uma enfermeira desconhecida. Assim que levantou a cabeça e me fitou perguntei-lhe se a enfermeira Catarina estava ao serviço. Que não, respondeu-me, estava de folga. E então a enfermeira Inês, quis saber em seguida. Também não estava – gozava férias, esclareceu ela, já um pouco renitente a tanta pergunta e tão poucas explicações ao que eu era e ao que ia. “E o dr. Varanda, sabe se está cá?”, comecei eu, explorando outra linha de abordagem. Já uma migalha impaciente, ela aconselhou-me a procurar na sala dos médicos, ao fundo do corredor. A caminho da sala dos médicos passei rente à parede envidraçada da Unidade de Cuidados Especiais, que agora, possivelmente pelo contraste com os imensos espaços e a sofisticação tecnológica com que privara no Hospital de Santa Marta e, talvez, também, por estar a olhar para ela em pé e de ego refeito, achei mais exígua e despida; encantadoramente remediada e asseada, tal como a gente pobre mas muito digna dos livros de instrução primária do Estado Novo. Havia, no momento, apenas dois doentes internados e a minha antiga cama, onde me fartara de debicar cerejas, encontrava-se vazia, de lençol imaculadamente esticado. Uma enfermeira, sentada lá ao fundo na mesa de trabalho, olhou, intrigada. Fugi. Na sala dos médicos dei de caras com o dr. Brito que, ao ver-me espreitar à porta, me saudou com um efusivo: “Olha quem ele é! Seja bem aparecido. Entre, entre; temos que comunicar ao Varanda que você está aqui: ele vai querer vê-lo.” “Então ele está cá hoje?”

“Está, está; ainda há pouco aqui esteve – deve ter ido lá em baixo à Urgência.” E levava já a mão ao telefone quando o dr. Daniel Varanda, surgido do nada,

cruzou a porta da sala. “Aí vem o homem que me salvou a vida” foi tudo que me ocorreu dizer;

embaraçado com a força daquele instante, ao ver a surpresa pela minha presença inesperada estampar-se-lhe na cara.

“Bem pode dizê-lo...”, retorquiu ele no modo pseudo-áspero já meu velho conhecido.

E, avançando para mim, deu-me um esquisso de um abraço, após o que não parava de me assentar palmadas no ombro, no braço, de dizer:

“Homem, deixe-me olhar bem para si. Você não calcula como estou satisfeito de o ver.”

E mirava-me, de cima a baixo, os olhos tornados mais pequenos, brilhando quase comovidos. E ralhava-me, folgazão:

“Você nem imagina o susto que me pregou... Consigo não quero brincadeiras!” “Trago aqui umas coisas para si”, disse, estendendo-lhe o envelope de Santa Marta. “Depois vemos isso, agora venha comigo – quero que o pessoal o veja.” Não adiantou dizer-lhe que já lá tinha estado, que não estava ao serviço ninguém

que se lembrasse de mim. “Isso é o que você pensa”, respondeu, arrastando-me por um braço. E, lá fomos, e, de quando em quando, ele repetia: “Eh, pá, você não imagina como estou contente de o ver em pé...” “Pois é, dr., mas estou aqui cheio de cicatrizes de uma ponta à outra – pareço o

Frankenstein!” Ele achava irrisório: “Mais vale feio e vivo do que muito lindo e morto... Não acha?” Parou no meio do corredor e, agora que tudo passara, revelou-me, numa

confidência sem testemunhas:

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“Ouça: aquilo esteve mesmo muito feio... Foi por um triz.” Fiz a pergunta que me bailava na mente, a certeza que pedia confirmação: “Quer dizer que teria sido demasiado tarde se tivesse chegado à Urgência uns dez

minutos depois?” “Ou até menos”, respondeu, amortecendo o tom de voz. Calei-me. Apesar de requentada, era uma notícia que desmoronava. Ia a sair da enfermaria, um tanto desconsolado por não ter encontrado todas as

pessoas que esperava, quando esbarrei com a Fatinha, que entrava. “Dr.!”, exclamou ela sorridente, “é bom voltar a vê-lo por aqui”. Resumi-lhe um pouco da minha estadia em Santa Marta; o como agora estava tudo

muito melhor; as minhas tentativas para entrar em contacto com o Hospital de Torres logo que consegui pegar num telefone.

“Eu sei, a Catarina contou-me que tinha telefonado.” E, depois, muito séria: “Mas, mesmo sem ter notícias suas, eu sabia que estava tudo a correr bem porque a

planta que me deu também estava bem. Havia de ver como medrou!” No fim de semana batemos para Cascais, a revisitar a casa e as pessoas.

Pessoalmente, embora não o dissesse, um dos meus interesses era, como faria a Fatinha, rever o meu alter ego, a planta que me fazia companhia do lado de fora da porta do quarto. Como estaria? Teria crescido? Não se teriam esquecido de a regar? É que com esta canícula...

A nossa intenção era permanecer até domingo ao fim da tarde, mas uma notícia triste fez-nos correr a casa de urgência: a D. Nazaré, a vizinha que escassos dias antes celebrara tão tocantemente o meu regresso acabara de falecer, no Hospital de Torres Vedras, com um enfarte do miocárdio.

No silêncio da minha consternação, sentado nas cadeiras duras do anexo da igreja onde o corpo repousava, não queria admitir que, mais uma vez, tivesse sido assim tão simples. Eu conhecia o coração doente da D. Nazaré, a sua excitabilidade excessiva, que às vezes a afligia por muito pouco:

“Sabe, sr. dr.”, admitia ela recostada na cama, depois de eu a auscultar, de lhe tomar o pulso, de lhe tranquilizar a apreensão, “eu estava muito ralada com o atraso do meu neto: tinha ficado de vir jantar, atrasou-se... Pensei logo em acidente.”

Frequentemente, durante estas confissões, eu retinha-lhe a mão na minha, esperando que a tranquilidade regressasse, e acabava por voltar a casa satisfeito com o pouco que tinha sido necessário para alcançar um final feliz.

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Quem me visse, na segunda quinzena de Agosto, caminhando decidido pelas ruas da Praia; calcorreando os areais; subindo e descendo penhascos com afoiteza; rejubilando com as poças de água da maré vasa, um mostruário de vida e cor, não diria nunca que ali andava alguém com um coração recentemente destroçado; uma criatura que, apenas duas escassas semanas antes, se aventurara pela primeira vez a meter o nariz fora de casa para um vacilante passeio pelas ruas de Cascais. Foram felizes esses dias de Agosto. Como um balão embriagado a hélio, o meu corpo reerguia-se de um estado jacente do qual pensava não haver já hipótese de retorno completo, numa excitação de olhos brilhantes, numa certeza imparável. Num progresso evidente em cada dia que passava, a minha condição física reaproximava-se do seu modelo

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interior, para todos os efeitos (e, teimosamente, ao longo dos mais agrestes momentos da doença) sempre muito mais jovem do que o invólucro exterior. Sim, como foram contentes esses dias de Agosto, a vida toda para viver, os meus olhos de novo em pé, olhando em frente; a alma garantindo-se na fé de que dali para a frente as coisas só poderiam melhorar.

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Em Setembro os dias encurtam com uma rapidez alarmante e jantar na mesa lá fora, sob a videira, torna-se desencorajador: às oito da noite o sol já se arrefeceu nas ondas e, em redor, tudo escureceu, numa evidência de que o Verão terminou.

Assim, é noite e estamos os três a jantar dentro de casa, as luzes acesas, quando, sem nenhuma espécie de aviso, uma sensação conhecida me assalta e se enrola por mim acima com a avidez de uma cobra constritora. De novo a impressão de que na minha cabeça irrompe a ausência, as coisas se distanciam; eu só no mundo, de repente isolado de tudo o resto. Estou a ser assaltado por disparos vindos do interior do meu corpo.

Em segundos, as palmas das mãos, que, no susto, apoiei de dedos abertos no tampo da mesa, ficam molhadas e, ao levantá-las, o desenho da mão fica marcado a suor na madeira. Igualmente, sinto a camisa começar a embeber-se, como em sangue quente, na pele molhada das costas, e o sulco que junta braço e antebraço tornar-se pegajoso. O assalto é de tal maneira célere e surpreendente que fico paralisado, a minha expressão ganhando o ar estranho de quem olha sem ver o que lhe está à frente das pupilas.

“Pedro? O que é?”, pergunta a João, alarmada; um comentário que é também ele, tal como o que está a suceder no meu corpo, um déjá vu. Tudo aquilo é igual, é uma repetição do que aconteceu na noite de Junho em que tive o ataque cardíaco.

Esfregando as mãos uma na outra, levantei-me, atravessei o corredor, fui até à sala, onde me deitei no sofá esperando o pior: aquilo era um novo enfarte. Só podia ser – o desenrolar de acontecimentos era o mesmo.

Mas não foi, quer dizer, não me afundei em nenhuma espécie de coma ou inconsciência, não ceguei nem despertei em nenhuma maca de ambulância, e, pelo contrário, ao fim de não muito tempo recuperei da crise: a pele secou, as mãos deixaram de escorregar uma na outra, a sensação global de instabilidade recuou e tudo voltou ao normal, ou quase.

Entretanto, a João fora buscar o esfigmomanómetro e avaliava-me a tensão, o pulso – nada de especial, tensões de rés-do-chão, mas nada de alarmante.

“Se calhar foi alguma crise hipotensiva”, tentava eu encaixar o fenómeno numa explicação.

“Se calhar”, concordava a João, “alguma coisa passageira”. O problema é que não se revelou tão passageira assim. Nos dias seguintes,

primeiro intermitentemente, dando-me o intervalo suficiente para um falso recuperar da minha tenra confiança na capacidade do meu sistema cardio-circulatório, e depois de um modo cada vez mais próximo, mais insistente, os episódios repetiram-se.

Desesperado, e ao mesmo tempo que ia procurando uma explicação para o que me estava a suceder, telefonei para Torres Vedras, para o dr. Daniel Varanda. Descrevi-lhe os sintomas o mais precisamente possível e com detalhes que porventura lhe soaram metaclínicos, tanta era a carga de microscópicas variações sensitivas. Seja como for, embora me tenha reafirmado que “eu consigo não facilito nada” e prescrito o uso

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sublingual de um comprimido de nitroglicerina* durante as crises, não me pareceu que tivesse ficado muito impressionado com as queixas.

“Você tem andado muito ansioso?”, perguntou-me; uma pergunta ou uma insinuação que já a Vera e mais alguns amigos me tinham feito quando, acabrunhado e de voz cava, lhes contara o triste estado em que me encontrava, o qual relacionava com um retrocesso da minha situação clínica. “Ansiedade?”, fiquei a magicar, tentando encontrar uma associação entre momentos de medo ou tensão psicológica e o desencadear daquelas crises. Não, e o especialmente aflitivo para mim, era aqueles episódios não revelarem nenhum padrão de eclosão que pudesse ser relacionado com algo concreto. Sim, sucediam-me às vezes à noite, à hora a que tivera o acidente cardíaco, mas outras vezes aconteciam-me de manhã. Certo, pareciam ter relação com as refeições, mas nem sempre. A tensão arterial revelava-se baixa durante estes episódios? Sim, mas por vezes também subia e o pulso acelerava-se. Onde estava o denominador comum? Não encontrava nenhum e isso desesperava-me, pois dificultava a descoberta de um padrão consistente e, logo, de uma aberta para uma explicação. Bem, as aflições passavam com o comprimido sublingual de nitroglicerina que o médico, à cautela, recomendara. Mas passavam, igualmente, se eu me aguentasse e não fizesse nada, se esperasse; apenas demorava mais tempo. E passavam, num tempo idêntico ao que demorava a nitroglicerina a actuar, se eu metesse debaixo da língua um amargoso comprimido ansiolítico. Onde estaria a verdade? No coração? Na cabeça? A cabeça a dar cabo do coração? Vice versa? E, entrementes, com toda a gente a mirar-me de lado, a perder a paciência para tanta palpação de pulso e medição de tensão arterial, atafulhei-me de calmantes, nas cavalares doses habitualmente prescritas para as situações de pânico. Mas nada resolvia em definitivo a ocorrência de, pelo menos, duas ou três crises destas por dia e, a pouco e pouco, fui abusando das horas que passava deitado na cama, sem me mexer, local onde, ainda, estava a coberto dos ataques e o meu fraquíssimo coração era sujeito a um esforço mínimo. E, insidiosamente, transferi-me para uma situação de acamado, de coelho na toca, de bicho das trevas a quem a luz do sol fere. Os dias passaram, as costas doíam-me de tanta cura de colchão e uma manhã, ao despertar para tomar o calmante e o quarto de comprimido de beta-bloqueante (primeiros gestos do meu acordar), sem mesmo executar o esforço de me sentar na cama, fui assaltado por um rasante episódio de súbitos e intensos suores, um bafo de calor por mim acima que me obrigou a atirar os lençóis para trás, como se queimassem. Não, nem em repouso absoluto estava a salvo daquilo: eu estava era lixado! Um novo telefonema e, à tarde, dei comigo em Torres Vedras, a fazer um electrocardiograma. “Não vejo aqui nada de especial”, concluiu o dr. Varanda deslizando os olhos pela longa tira de papel quadriculado. “Aliás, está até melhor do que o último que você fez.” Perplexo; não sabendo o que pensar e, sobretudo, não vendo saída para a situação, aguardava, deitado na marquesa, enquanto ele me auscultava. “É como lhe digo; nada de especial. Vou-lhe propor o seguinte: amanhã ou depois você passa no hospital e fazemos-lhe uma prova de esforço, para tirar teimas. Acho que ainda é um bocado cedo para uma prova destas – você foi operado há muito pouco tempo – mas tendo em consideração as suas queixas...” Achei bem, mas continuei, absorto, a olhar para ele com um ar que deve ter sido tão transparentemente desamparado, que o levou a perguntar: “Você ficava mais sossegado se eu o internasse? Quer dizer: aguardava pela prova de esforço no hospital...”

* Nitroglicerina – embora o nome o possa deixar supor não se trata da substância usada como explosivo! Neste contexto, o termo refere-se a um medicamento usado como vasodilatador coronário, o clássico comprimido que se põe debaixo da língua durante uma crise anginosa ou um enfarte.

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Respondi que sim, sentindo um enorme alívio com a proposta. No hospital, pelo menos, se sucedesse algo de grave eu já lá estava; havia o que era preciso para socorrer um cardíaco atribulado. E cá estou eu outra vez internado, de oxigénio no nariz e um selo de nitroglicerina colado num ombro, por causa das coisas. Desta vez não me fizeram a distinção de me porem nos Cuidados Especiais – estou numa cama banal do Serviço de Medicina, sem as mordomias de monitorização cardíaca permanente e enfermeira 24 horas por dia. Estive internado quatro dias, num dos quais fiz a tal prova de esforço. Fiz... Não fiz descreveria melhor a realidade: mal me puseram a andar em cima da passadeira (ligado às máquinas por fios eléctricos presos ao meu peito), não teria passado mais do que um minuto, o dr. Daniel Varanda disse-me para parar e mandou desligar a passadeira rolante. “Isto ainda está tudo muito fresco”, disse, “é melhor deixarmos para mais tarde”. Saí dali aterrado, convencido que o meu estado era tão grave que ao mais pequeno movimento o meu coração acusa o toque: entra em isquemia, ameaça falir! Então é por isso que me sinto assim?

No fim de semana, como os exames suplementares que entretanto fiz não acusassem nada de novo, deram-me alta. Estou de novo de regresso à Praia e mal cá cheguei, talvez uma hora depois, tive outro dos meus esquisitos e inclassificáveis ataques.

Insónias. Não consigo dormir. Levanto-me e passeio pela casa fora enquanto tudo dorme. Paro no quarto que também serve de biblioteca e onde estão arrumados a maior parte dos livros que temos. Ponho-me a olhá-los, invadido por pensamentos vindouros: quem irá ficar com isto? Que acontecerá a cada um destes livros? Um dia destes serão tirados destas prateleiras para irem para outro sítio?; deitados ao lixo?; olhados com um suspiro? Serão separados uns dos outros por critérios que nunca conhecerei, eles, que foram sendo adquiridos e coleccionados também sem critério de colecção. Morte, morte, mortalidade. São muito atraentes, são um achado, as aproximações ao tema que proclamam a sua não existência, que, de facto, ela só existe para quem fica, pois para quem se vai, e cessa de ser, ela não tem um lugar na consciência; que é apenas uma porta de passagem para outra dimensão, etc., etc. Mas o certo é que, do ponto de vista comezinho do instinto de sobrevivência, tudo neste assunto nos inquieta e nada nos sossega. À revelia, com um arrepio invernoso, vem-me repetidamente à memória uma frase do dr. Gil Seabra, quando, na consulta de revisão, falávamos do que me tinha sucedido, da obstrução de 90 % do tronco comum e do enfarte que se lhe seguiu. Eu espantava-me com a completa ausência de aviso, de sinais de alarme antes do ataque. Ele observava-me em silêncio e depois, na sua voz suave e sem alterar a expressão do rosto, disse: “Sabe..., no geral este tipo de situação tem um curso silencioso e manifesta-se com consequências catastróficas.” Consequências catastróficas... O dito, como uma inadmissível sentença, não me sai da cabeça. Passeio pela casa, revendo os objectos que dormem imóveis, detendo-me em cada um deles com olhos futuristas de fantasma apressado.

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Por oportunidade, gosto e feitio, tenho reflectido um bom bocado nisso e a minha conclusão inclina-se, com crescente teimosia, para a sabedoria sintetizada em “poupe-se ao

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boi a vista do malho”, provérbio a cuja génese tive sobeja ocasião de assistir nas minhas deambulações por Trás-os-Montes.

No princípio dos anos oitenta, e apesar de o método já estar legalmente banido em Portugal, nessas terras inclementes ainda se matavam os bovinos, para lhes apreciar a celebrada posta e a famosa ilhada, usando uma marreta, isto é, um cabo de madeira relativamente longo a que, numa das extremidades, fôra encaixado um maciço quadrilátero de ferro. Nada mais simples e o meu fascínio ao observar a barbaridade repartiu-se sempre, numa indecisão crónica, entre a precisão do movimento com que o talhante, depois de cuspir nas mãos, desferia o golpe entre os cornos do animal e o fulminante efeito produzido por esse único golpe: obedientemente, e em câmara lenta, a vitela abatia-se sobre o chão como se lhe tivesse tornado impossível suportar o próprio peso.

Poupe-se ao boi a vista do malho, repito, e acrescento: “mesmo que o boi teime em conhecer o malho”, pois ver o malho é sempre diferente de imaginá-lo. Isto é o testemunho que, como médico e como rez, gostaria de transmitir aos profissionais de saúde, e, especialmente, aos meus caros colegas de profissão que, por desconhecimento, dogma, ingenuidade ou modernice, podem sentir-se tentados pelas abordagens cruas da realidade ou enganados pelo aparente desejo do doente em saber “toda a verdade”.

Cuidado com essa toda a verdade que, depois de disparada boca fora, é impossível negar ou desnodoar. Um doente, particularmente portador de doença grave, é um ser paranóide, de antenas no ar; dividido entre a desconfiança de que lhe estão a encobrir alguma coisa (a qual procura descobrir numa lógica masoquista ou, simplesmente, de curiosidade aguçada) e a necessidade de negar, de adiar, de considerar-se excepção aos aspectos mais trágicos da doença, aqueles, precisamente, que fazem tombar os outros mortais.

Prudência, muito prudência – não há nenhum “na América é assim que se procede”, nenhum “mas ele pediu-me, queria saber quanto ia durar, para poder organizar a vida” que justifiquem uma abordagem menos que super-cautelosa de tal assunto.

Ninguém (foi rebuçado que tive que chupar e com o qual também me engasguei) aguenta viver com a ideia de morte de um modo permanente; ao longo das 24 horas do dia; dia após dia. É necessário uma derivação, um terreno, ainda que aceradamente pedregoso, mais familiar aos nossos pés descalços; um vale banhado por uma luz menos crua.

As lendas abundam no meio médico, nicho particularmente interessante, pois é microclima onde os actores conhecem, enquanto no papel de pastores, as doenças, a sua marcha, o seu fim. E, no capítulo negação, posso citar o exemplo do famoso, lúcido, e experimentado cirurgião de neoplasias abdominais que, chegando-lhe a vez de estar às portas da morte com mal equivalente, se ilude, até ao fim, com cândida convicção:

“Felizmente, no meu caso, foi tudo descoberto a tempo: tive uma tremenda sorte, pois geralmente isto corre para o torto – sou um caso num milhão!”

Ou ilustrar o capítulo esperança com a pungente história da enfermeira do IPO que discutia entusiasticamente com os médicos a quase inidentificável diminuição das suas metástases cerebrais, após duas dezenas de sessões de intenso bombardeamento radioterápico:

“Estou satisfeita, dr., parece que, finalmente, estou a responder ao tratamento...” É que não conhecemos mais nada senão a vida e, a ver bem, a morte é coisa que

não tem existência palpável, só existe para os outros.

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Como nos darmos conta de que algo mudou em nós, que não estamos mentalmente como era costume? De que estamos, como se diz, um pouco chalados?

Não é fácil, uma vez que tudo começa com um procedimento (por vezes apenas uma atitude) que não se tinha e se passa a ter. Depois, é preciso praticá-lo até que integre os nossos circuitos e, em seguida, que reconheçamos, no meio das centenas que definem o nosso comportamento, esse procedimento como estranho e isso só acontece se ele tiver uma certa frequência, uma certa constância. E um procedimento estranho, apenas um, não é, em regra, suficiente para achar que estamos assim tão diferentes. Ou seja: é preciso desenvolver um segundo procedimento estranho, identificá-lo também como estranho, pô-lo ao lado do primeiro e apercebermo-nos de que são um conjunto. E por aí fora.

É claro que chegados ao ponto de termos sob rigorosa auto-análise uma razoável espetada de procedimentos estranhos, um reforço nesta desconfiança de que algo diferente sucede provavelmente já eclodiu sob a forma do desabafo de um amigo que, cortês e caridoso, nos diz:

“É pá, não leves a mal o que te vou dizer, mas já pensaste em ir a um psiquiatra?” E como a gente se mostre levemente admirada, um fio de “quem?, eu!” no tom de

voz: “Ouve, não é nada de especial... É normal, após um enfarte – não é fase que se

ultrapasse sem uma ajuda.” E, a seguir, vem os exemplos de Fulano, Beltreno, Sicrino... “O Sicrino!, marido da Antinomia! Eu falei-te; andou chanfrado de todo...”

No meu caso, demorei cerca de quatro meses a descobrir que sim – eu tinha estado um pouco adoidado, e esta descoberta quase coincidiu no tempo com os tais conselhos de um ou dois amigos que, possivelmente, cheios de me aturar os tiques, resolveram recomendar-me como panaceia um ferrador de almas. Primeiro, havia aquela mania tão estranha de não querer ver ninguém, de ficar com as costas empapadas em suor no fim de um simples telefonema. É que nem era bem ver alguém – era mais contactar com alguém. Isto – esta mania – punha as pessoas abismadas, dava-lhes o direito de dizer: o tipo não está bem! O segundo sintoma (menos escandaloso porque mais discreto): a resistência em voltar a casa, erroneamente confundida no início com o complexo do “regresso ao local do crime”. Terceiro: as salvas de crises. Os estranhíssimas achaques de distanciamento do real, visão escurecida, cabeça leve, os charcos de suores; a sensação iminente de que me tiravam o tapete debaixo dos pés. Este era o aspecto realmente assustador, o que me impedia de sentir que tinha um futuro para olhar para e que, mesmo quando me eram concedidos uns dias de interregno entre as investidas, não o eram suficientemente espaçados para que eu pudesse ter posto de lado o sentimento de fragilidade. E eis que numa iluminação muito esgravatada, quando já me prestava a seguir os conselhos dos amigos em procurar o apoio de um espreita-miolos, descobri os talvez do que me estava a acontecer, incluindo que dois dos sintomas/sinais estranhos, apesar de parecerem tão díspares, podiam abrigar-se ao sol de uma mesma explicação; o que me deixava com duas bizarrias em vias de serem arquivadas e uma no activo. A saber: Aversão às pessoas + resistência em voltar a casa. Eu passara por uma experiência física terminal, depois por uma situação de morte clínica, e, logo em seguida, por uma intervenção cirúrgica de alto risco, exigindo, ela própria, uma quase paragem do coração e, no final, quando o conserto está alinhavado, uma ressuscitação eléctrica. Isto é: eu estive mais do que uma vez desligado da vida, esta foi-me interrompida e, então, de algum modo

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de que desconheço as minudências, a minha noção de mim despertou com a virgindade ignorante de um recém-nascido. E, tendo os meus elos antigos com o mundo (as pessoas, a pertença ao lar) sido apagados ou, pelo menos, desbotados por essa interrupção da ligação, ao renascer eu tive que os restabelecer um a um. E assim parecia, com cada pessoa que se apresentava perante mim: por muito amigo ou próximo que tivesse sido anteriormente eu olhava-a com a estranheza de quem saiu de uma longa amnésia e precisava de tempo e de esforço para a focar e recolocar no escaninho da mente onde ela me pertencia. Fora isto, ficavam por explicar os achaques, a sensação de morte iminente, a desagradável consciência de me estar a tornar um crónico do: “O Pedro lá está, com o seu ataquezito de morte súbita...”

Será que, também, todas as experiências limite por que passei teriam accionado uma espécie de alarme vital biológico que, tal como acontece por vezes com os alarmes dos automóveis, ficara mal regulado e disparava à menor rabanada de vento? Não sabia. O certo é que eu não estava bem e não tinha, como em relação ao resto, nada a certeza que a explicação do meu mal fosse psicológica, uma manifestação psicossomática. Foi aí que chegou Outubro e entrou na minha roda de preocupações a prova de esforço, marcada para o dia 7 em Santa Marta.

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Deviam mudar o nome àquilo! É que eles (os médicos e os outros técnicos de Saúde) nem sonham os terrores, os estragos, que só a designação desencadeia. Encontrei almas, quer doentes em fase de avaliação do estado em que lhes ficara o coração após o enfarte, quer pessoas em investigação da sua situação cardíaca, que faltaram à marcação, só pelo medo que lhes fez o modo como designam aquilo. “Prova de esforço? Quem, eu? Você já viu: depois do que me aconteceu ia-me sujeitar agora a esforçar o coração! Não pus lá os pés!” Eu acabei por ir, a 7 de Outubro, ao fim da manhã. A prova fora indicada pelo Dr. Gil Seabra na revisão que fiz em Agosto e no fim da consulta uma enfermeira marcou a data, perguntou-me se a hora me era conveniente e entregou-me um prospecto com informações úteis, desde o tipo de roupa a vestir, o que fazer com a medicação que se andava a tomar, até aos sapatos mais adequados para não escorregar durante a prova. De acordo com as instruções comecei, quase duas semanas antes, a reduzir gradualmente a dose do beta-bloqueante que tomava, medicamento que, entre outras indicações terapêuticas, mantém o batimento cardíaco em baixas rotações. Esperava deste modo conseguir estar completamente limpo de droga na altura do exame (conforme indicava o papel) e evitar, o mais possível, o efeito produzido por uma suspensão apressada do medicamento: o disparar, por mecanismo reflexo, da frequência cardíaca. Apesar dos meus cuidados, da lenta e cuidadosa redução que programei, não consegui evitar que nas vésperas do dia da prova o meu pulso tivesse acelerado das 60 r.p.m.* do costume para umas exaltadas 80 batidelas por minuto. Não era muito grave, mas sentia a aflição por trás da grade costal. À ansiedade provocada pelo desmame do “calmante” cardíaco iam também desaguar as sombrias recordações do fraco resultado alcançado na prova de esforço que, não muito antes fizera no Hospital de Torres Vedras; confluência que antecipava em mim a quase certeza de um péssimo resultado. Resumindo: na manhã da prova lá estava eu em

* rotações por minuto.

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Santa Marta, de calças confortavelmente largas, sapatos antiderrapante; sem ter pregado olho e apreensivo como um actor em noite de estreia. Uma prova de esforço, ao contrário do que o nome sugere, não envolve o levantamento de alteres ou o aguentar pé firme uma corda puxada na outra ponta por 30 fuzileiros – consiste, simplesmente, num electrocardiograma ambulante: ligam-nos uns eléctrodos ao peito e põem-nos a andar, num passo progressivamente estugado, numa passadeira rolante; enquanto o trabalho do coração vai sendo registado e analisado num computador. Abreviadamente, é nisto que consiste uma prova de esforço. Aparentando à vontade, despi-me da cinta para cima, deixei que me colocassem os fios no peito e subi para cima da passadeira. “Sabe como isto funciona?”, perguntou simpaticamente a jovem técnica. “Sei”, respondi com desportivismo, um receio de que “agora é que vão ser elas” estreitando-me a garganta. “Então, vamos lá”, disse ela sentando-se frente ao monitor. Agarrei, como se conduzisse um carrinho de supermercado, a pega de metal forrado a borracha, finquei os pé e preparei-me para arrancar, olhando o cartaz O Porto Visto de Vila Nova de Gaia que quatro pedaços de fita-cola mantinham colado na parede, ao nível dos meus olhos. “Só um momento...”, comunicou-me ela, mesmo antes de pôr o tapete a rolar, levantando-se e deixando-me só na sala. “Pronto”, pensei, “já está! Isto está tão mal que não é preciso sequer começar – nota-se em repouso, mal se liga o electrocardiógrafo.” Passados uns instantes, a técnica regressou, arrastando atrás de si um tipo com ar de poucos amigos; as mãos enfiadas nos bolsos da bata, o inquestionável estetoscópio pendurado ao pescoço. “Então você ainda nem começou isto e já está com o pulso a 140!”, descompôs-me como apresentação. Tartamudeei uma desculpa, relacionada com o facto de não conseguir controlar voluntariamente o meu ritmo cardíaco, mas o doutor não me deu abertas: “Você está a tomar algum medicamento?” “Estava”, rectifiquei, “atenolol, meio comprimido por dia. Parei progressivamente de o tomar, conforme...” “Mas não podia!”, trovejou ele, fulminando-me pelo meu atrevimento. “Mas o papel dizia que...” “Vamos lá...”, ordenou ele à técnica, atirando-se para cima de uma marquesa, onde ficou sentado de braços cruzados, vigiando-me com ferocidade. A passadeira estremeceu e começou a rolar. Apressadamente, estiquei os braços e tentei acertar a passada, para evitar ser sugado para o local onde o tapete de borracha desaparece na estrutura da máquina, para voltar a surgir por detrás dos meus pés. Tapetito enganador! Alguns minutos passaram e a técnica informou-me que ia acelerar o ritmo e inclinar a passadeira, de modo a simular uma subida. “Se sentir alguma dor no peito ou peso nas pernas, diga logo, está bem?” “Sim”, respondi ofegante, sem tempo para pensar, olhando em frente e correndo sem parar em direcção à minha cidade natal. Cerca de dez minutos depois, o tapete voava sob os meus pés, a ladeira tornara-se mais íngreme e o Porto, inatingível como o lago de Tântalo, continuava, tal o médico na marquesa, mergulhado num timbre pardacento, acusei cansaço: “Está a começar a doer-me a barriga das pernas...” Progressivamente, como um carrossel quando a corrida termina, a passadeira foi abrandando, até se imobilizar.

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“Pode vestir-se”, sorriu a técnica, “e esperar uns minutos lá fora. Eu levo-lhe lá o relatório.” Feliz por ter escapado vivo à prova, enfiei a camisa à pressa e, mesmo sem a enfraldar, abri a porta, despedindo-me. “Você não pode nunca parar de tomar os comprimidos, ouviu?”, atirou-me ainda o médico, sentado na marquesa, os braços cruzados sobre o peito como se fizesse aquecimentos para uma dança cossaca. O relatório da prova de esforço foi-me entregue num envelope, fechado mas não colado, que não me atrevi a espiolhar. “Então não lê o que aí diz?” perguntou a João, surpreendida com a minha passividade perante um resultado cujo desfecho me trazia tão alterado. “Não, não quero; isto deve estar uma desgraça. Não quero ser eu a ver, vou entregá-lo fechado ao dr. Gil.” O dr. Gil Seabra abriu o envelope, mirou rapidamente os traçados, confirmou as conclusões e devolveu-me os papéis. “Está óptimo; uma prova completamente negativa...” Fiquei a fitá-lo, paralisado no meio do corredor, sem me atrever a acreditar no sentido evidente do que estava a ouvir. Ele, na sua calma delicada, aguardava uma reacção minha que pusesse termo à inquirição. “Então quer dizer que não vou morrer já amanhã?”, tentei compremetê-lo. “Disto, não...”, sorriu-se. E, como me visse parado, tal um pássaro a quem concederam a liberdade e não se atreve a deixar a gaiola; percebendo o temor que por ali andava, o dr. Gil Seabra pousou-me uma mão no ombro e disse aquilo que eu precisava de ouvir: “Aceite um conselho, dr. – livre-se de nós!”

Foi também por esta altura que encontrei na caixa do correio um convite para a inauguração, no Sábado seguinte, de uma exposição colectiva de pintura em Sobral de Monte Agraço. O convite, impresso, vinha acompanhado de um bilhete manuscrito, assinado pelo único nome dos artistas expostos que me era familiar: A enfermeira Catarina, no seu gentil modo, expressava o prazer que teria em ver-nos, a mim e à João, aparecer, fosse na vernissage ou, se de todo impossível nessa tarde, em dia a ajustar, para que pudesse estar presente e nos guiar pelas suas telas. Sábado à tarde, no sentido Torres Vedras – Lisboa, a auto-estrada estava quase vazia e eu, conduzindo com vagar, ia apreciando os tons de vermelho e castanho que iam tomando conta da paisagem; numa divagação que misturava em paleta única o azul diluído de um céu onde arrefecia um cúmulo branco com sensações provocadas pela motivação da viagem – Catarina, recordações da doença e dessa outra viagem que tinha feito com ela, uns três meses antes, naquele mesmo asfalto, numa ambulância, a caminho do Hospital de Santa Marta. Ao meu lado, a Teresa, que eu açambarcara para companhia nessa aventura para a qual me sentia um tanto nervoso, ia querendo sintonizar-se com ambiente que a esperava: “Mas, afinal, tu conheceste essa Catarina como enfermeira ou como pintora?” “Como enfermeira. Cuidou de mim quando estive internado em Torres. Foi ela que me contou que pintava e eu pedi-lhe para me avisar, quando fizesse alguma exposição.” “Mas já a conhecias antes disso...” “Não, nunca a tinha visto. Aliás, nunca mais a voltei a ver desde essa época – vai ser hoje a primeira vez que a vou olhar sem estar amarrado numa cama ou numa maca.” A Teresa achou imensa graça ao pormenor.

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“Então deves estar um pouco nervoso?” Acenei que sim, que estava, e fiz pisca à direita, pois aproximava-se o ramal de saída da auto-estrada para Pero Negro, Enxara, e Sobral de Monte Agraço. Entrámos sorrateiramente na galeria municipal, onde já perambulavam uma série de pessoas. Um programa distribuído à entrada, uma mesa com comes e bebes, quadros pendurados nas paredes, e eu e a Teresa a observarmos aplicadamente cada um dos quadros até... “...ver se nos orientamos”, como eu lhe segredava, intimidado, num ambiente onde não via ninguém conhecido. “Está ali, já a vi...”, exclamei. “Onde?”, interessou-se a Teresa. “Ali ao fundo. Estás a ver aquelas três senhoras de preto? É a do meio, a mais pequenina.” A mais pequenina, a mais magra, a mais escura das três figuras; a que mais gesticulava e se explicava em todas as direcções. Até que, nos seus movimentos irrequietos de pardal, no seu olhar escuro, nos viu e, sem qualquer hesitação, avançou para nós com um grande sorriso de boas vindas. “Dr. Pedro, sempre conseguiu vir!” Embaraçado, estupidamente emocionado com o reencontro, demorei-me a apresentar a bela e atenta jovem loura que me acompanhava: “Esta é a Teresa; é minha afilhada.” “Ah, venham cá”, disse a enfermeira Catarina, “quero-lhes apresentar a minha mãe e a minha irmã. A minha mãe está cheia de ouvir falar de si, dr. Pedro”, confidenciou-me, “ficou toda orgulhosa com o livro de pintura que me mandou e com as palavras simpáticas que teceu ao trabalho da filhinha dela...” De repente, no meio da confusão, eu e a Teresa acenávamos risonhos para toda a gente. No intervalo de alguma nova apresentação eu pasmava para Catarina: agora que a via em pé, de igual para igual, me apercebia de que baixinha ela era, a fada dos Cuidados Especiais; de quão frágil era nas suas vestes de luto, a alma que enchera de cuidados e gentileza os meus dias naquela enfermaria. Estava a tentar explicar todas estes matizes emocionais à Teresa, quando, Catarina, abandonando um grupo, me puxou por um braço e me comunicou: “Agora venha daí, que eu quero-lhe explicar porque pinto o que pinto em cada uma das minhas telas.” “Você parecia-me muito mais alta quando eu a via deitado”, não me consegui eximir a confessar-lhe. “Ah, é tudo uma questão de perspectiva” casquinou ela num risinho feliz. Quando regressámos a casa o dia apagara-se numa noite azul, límpida, estrelada, tépida como um leve agasalho. “Podias pôr música”, sugeriu a Teresa, na quebra do envolvente silêncio em que vínhamos embalados provocada pela paragem na portagem. “Ok.” E com a perfeição que o momento merecia, numa benesse que a vida às vezes deixa escapulir, a estação de rádio não vomitou um anúncio, um noticiário, ou sequer uma música captada a meio de ser emitida. Ouviu-se um breve nada e do éter irromperam na noite as primeiras estrofes de uma velha e condizente canção: Starry, starry nights Paint your palette blue and grey Look out on a summers day With eyes that know the darkness in my soul * * Da canção Vincent, de Don McLean, 1972.

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Noc, noc, noc... “Está aí alguém?” Este é o cantinho dedicado ao paranormal, às energias transviadas, aos dedos

passando ao de leve pela bola de cristal. E, idealizo-o curto, como a camilha de uma mesa pé-de-galo, porque a verdade é que não creio muito nisto; na sorte traçada na palma da mão, na vida para além da morte. Mas, tal como o mais manhoso dos políticos, acautelo o futuro e acrescento, desde logo, que “em certos assuntos nunca se deve dizer nunca”.

Assim que comecei a receber visitas e a contar o episódio do meu ataque cardíaco, com o excesso de detalhes useiro às conversas de não interessa qual sala de espera de qualquer estabelecimento de saúde ou pavilhão de abluções de qualquer estância termal – sabe-se lá porquê a doença remete-nos para descrições longas, para o arregaçar de calças e camisas a mostrar chagas e cicatrizes – dizia eu, quando comecei a receber visitas e a falar nesses momentos e, no encadeado da narração, referia que “não conseguia ver as pessoas, sabes, via apenas um contorno luminoso à volta delas”, foi comum interromperem-me, exclamarem com ar conhecedor:

“Ah..., mas isso era a aura!” Mais do que a aura, causou ainda superior sucesso o túnel luminoso por onde

andei, para a frente e para trás, no trajecto de ambulância até ao Hospital de Torres Vedras e que descrevi na primeira parte desta crónica.

“Aah!, o túnel, o tal túnel”, largavam, impressionados, os interlocutores, “estiveste mesmo lá...”

Estive; estive mesmo lá e também eu conheço as histórias do túnel, ligadas às experiências que rondam a morte ou as situações extremas similares. Mas, diferindo dos relatos mais tradicionais, o meu túnel quase não tinha paredes que lhe dessem substância; a luz era gordurosamente amarela e não branco-transcendental, e não havia nada lá ao fundo à minha espera, aliás não havia sequer fundo.

Sim, andei mesmo por lá e acredito que a estadia no túnel é própria ou, pelo menos, pode suceder, a quem está nas fímbrias de um estado terminal, mas, na minha opinião, aquilo não é caminho ou porta que se abra para lado nenhum; vejo-o muito mais como a consequência de uma deficiente oxigenação cerebral. A mesmíssima explicação proporia para a aura. Lastimo, lastimo não poder engrossar as fileiras dos que trazem notícias do além.

Mas, ainda que mantenhamos a análise só ao nível dos nossos corriqueiros invólucros individuais, sem andar a chocalhar búzios ou invocar almas passadiças, sobram pormenores por explicar. Acontece-me muito frequentemente, com uma regularidade que já mo permitiu demonstrar a terceiros, consultar o relógio e serem, invariavelmente, dez menos dez da noite. Dez menos dez foi a hora a que se iniciou o meu enfarte e em que, num acesso de terrível mal estar, me levantei como um zombie da mesa onde jantava para deambular pelo corredor até cair para o lado. E agora sucede-me, de repente e impelido por nenhuma necessidade ou razão, apenas por um súbito clic que me assalta, ter vontade de olhar para o relógio e serem 21:50. É estranhíssimo, como se um qualquer alarme biológico tivesse permanecido programado para aquela hora dentro de mim. Digamos, para facilitar, que são marcas que estas coisas deixam.

Um amigo meu teve, muitos anos atrás, uma namorada que morreu com uma leucemia. À época ele era muito jovem, vivia aquela idade em que somos eternos e raramente alguém morre à nossa volta, e a longa agonia da sua bailarina (era o que ela fazia

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na vida), acompanhada de perto e com horrorizada devoção por ele, quase o destruiu; fê-lo andar um par de anos perdido por aí. Recentemente, numa noite já de lareira acesa, esse amigo visitou-me e eu, motivado por tudo o que me acontecera nos últimos três anos – do cancro ao acidente cardíaco – mostrei interesse por essa sua história, de que, na época, me chegaram apenas umas ligeiras impressões. E ele contou-me, tantos anos depois ainda perturbado pela recordação, que, longe da namorada – que jazia numa cama de hospital de uma capital estrangeira – sentira, em determinado momento, que ela acabara de morrer. Fez duas coisas: olhou o relógio e fixou a hora, e, sem saber porquê, dirigiu-se à janela mais próxima. Na realidade, a namorada morrera, com exactidão, à hora em que ele lhe sentiu a morte. Quanto ao clarão de luz que viu ao aproximar-se da janela, ele não garante nada sobre a sua génese, nem sequer é hoje muito radical quanto à sua existência, mas ficou convencido que era algo que passava e se despedia e isso iluminou-lhe, para sempre, a memória.

E calamo-nos, porque a evocação destes factos pequeninos e secretos estava a comover-nos para além do admissível o que, na circunstância, era uma amena conversa a seguir ao jantar.

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Desta vez não me apeteceu ir a nenhum lado na passagem de ano. Preferi ficar

por aqui, por casa. Perto da meia-noite fomos, a pé, até casa da Vera, para passar a meia-noite junto dela e da sua família.

A Praia está neste fim de ano cheia de pessoas, sobretudo gente nova. Desde o início da tarde os fui vendo chegar, aos bandos: de carro, de camioneta, à boleia; invadindo as mesas dos cafés; corcovados de mochilas e sobraçando embrulhos de todos os feitios que, adivinho pelos formatos e pelo cuidado com que são transportados, contêm comida e bebida para mais logo. Preparam-se para a grande noite e daqui a umas horas estarão, Zeus seja louvado!, todos embriagados. É clássico, sempre foi assim: um bom festejo implica uma boa anestesia. Ainda por cima este ano é a passagem para 2000, talvez para o milénio e para o século XXI.

À meia-noite comi as doze passas, brindei, e bebi o champanhe com a convicção de todos os anos em que o faço, isto é, nenhuma. Um pouco mais tarde, alguns de nós foram dar uma volta pela beira-mar. A noite estava fria e as estrelas tiritavam num céu integralmente nítido, o que é raro por aqui, pois uma neblina costuma toldar a maioria das noites.

No caminho até à areia passámos por várias festas, desenrolando-se perante os nossos olhos para lá de janelas de moradias e apartamentos; cruzamo-nos com grupos que se passeavam nas ruas de taças na mão e garrafas debaixo do braço. Toda a gente, numa ânsia de solidariedade instantânea, se cumprimenta com um “boas-festas” em vez de “boas-noites”.

O paredão está pejado de vultos e, com a celeridade de andorinhas, o Zé João, o Ricardo, a Carolina, o João Pedro e o Marquinho, desembestaram por ele fora, depois de me terem vindo pedir dinheiro para irem comer um gelado, requintado excesso a proibidas horas. Dançando de braços abertos na areia molhada, a Verinha, filha da Vera, ostenta feericamente os seus quinze anos e os primeiros sinais de abuso de espumantes, e não tarda a meter-se pelo mar dentro, completamente vestida. A Vera, com água pelos

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tornozelos, grita por ela, na risonha impotência de quem passeia pela trela um cachorro que cresceu e se tornou mais possante que o dono.

Ao meu lado, a João aponta-me Peniche lá ao longe, flutuando no mar debruada a luz, onde uma girândola de fogo de artifício risca a noite verticalmente e desenha na distância uma roseta, frágil como a corola de um dente-de-leão; florescência que logo fenece numa filigrana lenta de estrelas cadentes, como se, ao atingir o céu, alguém a tivesse soprado enquanto murmura: “o teu pai é careca”.

Inspiro profundamente o ar marítimo, o odor a algas, que, como uma seta, me transportam às cavalitas da memória para as praias da minha infância, em Leça da Palmeira, e sinto, a coberto dos fios de metal que me cosem o peito, o coração bater contente à louca velocidade de quatro mil e duzentas batidas por hora.

Outubro 1999/ Setembro 2000

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Agradecimentos Ao longo de muitos anos, intrigou-me a singularidade da gratidão dos doentes para com o seu médico. Assisti ao fenómeno desde criança, pois o meu pai é cirurgião e colaborei com fervor no acontecimento de ir atender o portão para recolher, entregues por variados tipos de mensageiros, presentes que lhe eram destinados. O corrupio tornava-se particularmente intenso no Natal e na Páscoa, mas, ao longo de todo o ano, um presente aparecia para me recordar que o fenómeno existia. Claro que, na altura, eu era pequeno e as minhas reflexões sobre o assunto pouco ultrapassavam a rudimentar lógica do “que sorte; pagam e, ainda, dão prendas!”. Uma sorte que em alguns casos raiava, na minha opinião, o bizarro: doentes que, operados há dez, ou mais, anos, continuavam, todas as épocas festivas, a ir levar ao portão do meu pai o lombo de porco, o vinho espumoso, os perus ou (ah!, sim, ainda estou a sentir o cheirinho) o pão doce especial que nos punha a salivar de antecipação e faz parte da minha história universal dos pequenos-almoços das férias de Natal: fresco ou, uns dias depois, em grossas torradas barradas com manteiga. E que dizer das situações em que o presente se tornava uma tradição hereditária? Havia almas que, mesmo após chorados e enterrados os progenitores, continuavam, fielmente, a tocar a sineta da casa dos meus pais para entregar a “lembrançazinha” habitual. “Estes doentes são loucos”, pasmava, enquanto observava o meu pai agradecer, compenetrado e venerador, a cesta de ovos forrada a papel de jornal e o molho de grelos atado com um vime. O mundo rodou e chegou-me a vez de ser médico e de, por vezes, passar a ser objecto de reconhecimento por parte de pessoas a quem tinha prestado serviços na minha actividade profissional. Embaraçado, sacudia os agradecimentos com titubeantes “não fiz mais do que o meu dever” ou, até, rudes e descabidos “não agradeça, sou pago para fazer este trabalho”! E, no reverso da medalha, na hora de, como doente, me mostrar reconhecido, senti-me frustrado, quase chocado, com a esqualidez da retribuição: “Não fiz mais do que a minha obrigação”, “não tem nada que me agradecer” ou, claro está, uma despersonalizante primeira pessoa do plural: “não tem nada que nos agradecer, não fizemos mais do que a nossa obrigação”.

Irra! Eu sei que não fizeram mais do que a vossa obrigação, eu sei que são pagos para isso, mas acontece que do outro lado da vossa obrigação se apresenta um ser que está vivo, ou razoavelmente inteiro, graças a tudo isso; um viajante que ajudaram a regressar a um mundo onde tudo, ou quase tudo, está como dantes. E isso é um milagre, ou, como diria o José Cardoso Pires, dizendo o mesmo, “algo que deslumbra e ultrapassa*”; um retorno a que eu nunca tinha compreendido o alcance. É penoso dar com a gratidão na parede. Um doente sente-se grato na hora de abandonar o tecto onde passou pelo indizível. Mais... Sente uma estranha comoção por terem sido estranhos os companheiros mais eficazes numa aventura daquela dimensão, no fundo os únicos que o continuaram a tratar com normalidade e não como a alguém que, de repente, se tornou um intocável ou, na melhor das hipóteses, um extraterrestre. E eu, se fosse gastar com o tema do reconhecimento tantas palavras quantas gostaria, faria deste capítulo o mais longo desta narrativa. Por isso, para não maçar desnecessariamente toda a gente, e, também, para não embaraçar ninguém, o deixei para as últimas páginas.

* De Profundis, Valsa Lenta, Publicações D. Quixote, 1992.

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Não vou agradecer a amigos a amizade, a companhia ou os recados que me foram mandando ao longo da estadia nos hospitais e, persistentemente, através da minha convalescença: isso também se assemelhou a um Natal no meio do Verão. Tanto postal, tantas cartas; livros; discos; chocolates, flores... Não, com esses não vou aqui gastar espaço. O meu reconhecimento fica guardado apenas para aqueles que, profissionalmente, cuidaram de mim.

E dentro desses começo por pedir desculpa a quem amputei o nome e trato apenas pelo primeiro: era o nome pelo qual me lhes dirigia e, passado este tempo todo, para chegar a um sobrenome que conferisse maior dignidade formal ao agradecimento teria que proceder a um inquérito junto dos orgãos de gestão do Ministério da Saúde, o que, sem dúvida, obrigaria a longas explicações e desembocaria num, mais que provável, “pedido indeferido”, ao abrigo de qualquer alínea de uma europeia convenção sobre confidencialidade dos dados. Assim, o agradecimento fica incompleto, porventura vago. Lembro-me que numa das minhas romagens à Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia do Hospital de Santa Marta, onde preguicei uma semana na cama 16, pedi, na sua ausência, para, da minha parte, serem entregues “cumprimentos à enfermeira Ana”. “Qual delas?”, perguntou a minha interlocutora, “a morena?” “Não”, respondi eu descorçoado por haver mais que uma, “a loura”!

Para além disso, quero agradecer a todos os que cuidaram de mim e de quem desconheço o nome, ou porque nunca o soube, ou porque o fui esquecendo à medida que me distanciava dos dias em que com eles lidei. E foram muitos. Sou grato a todos os médicos que por bisturi, drogas, palavras, ou outra intervenção, me restituíram a integridade física; mas, como corpo sofrido, alma angustiada e hóspede prolongado dos Serviços de Saúde, quero sublinhar, com potentes holofotes, o meu reconhecimento ao pessoal de enfermagem e ao pessoal auxiliar dos Serviços por onde passei; profissionais que me aturaram 24 horas por dia e a quem está distribuído o quinhão mais pesado da tarefa de lidar com doentes: levantar, dar banho, mobilizar, alimentar, mudar roupas e chegar arrastadeiras; dar injecções, clisteres e limpar fluidos e secreções malcheirosas; descer a cama, deitar, chegar o telefone e apanhar o livro que caiu, etc., etc. Profissionais a quem ainda sobra ânimo (como fui, repetidamente, testemunha e receptor) para nos acarinharem, para conversarem connosco, num processo que nos restitui, no ambiente pesado, artificial e impessoal do hospital e da doença, a memória e o sentir do que é ser uma pessoa.

Neste contexto, uma menção de apreço às enfermeiras (utilizo o feminino porque eram mulheres na sua esmagadora maioria) da Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica do Hospital de Santa Marta, que suportam, ao longo de turnos excessivamente longos, um trabalho violento, capaz, pelo desgaste físico e psíquico inerente, de quebrar qualquer um e que, penso, só o aguentam tendo em conta o vigor associado à juventude da maior parte delas. Pelas razões que narrei na Parte III deste livro, o trabalho destas profissionais deveria ser pago a peso de ouro, pois, embora estreita, seria a única forma justa de retribuir a riqueza que geram. Com excepção do período relacionado com a descrição do linfoma de Hodgkin (Parte II), narração que assume nesta crónica um carácter episódico e secundário, e cujos agradecimentos, por esse motivo, guardei para as últimas linhas, os reconhecimentos seguem a ordem cronológica dos factos ocorridos. 1. Centro de Saúde da Lourinhã Ao Dr. Manuel João Marques, que prontamente me recebeu e encaminhou para o nível de cuidados necessário, e, do fundo do coração, à Dr.ª Vera Bonfocchi, que me

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assistiu e acompanhou, numa ansiedade que extravasava o profissional e revelava a amizade aflita, ao longo de todo o crucial trajecto até ao Hospital de Torres Vedras. 2. Hospital Distrital de Torres Vedras

Ao Dr. Vítor Mariano que, literalmente, me salvou de morte certa e me conduziu, com paciência e persistência, ao longo da minha doença. Ao Dr. Fernando Reis, director do Serviço de Medicina, e aos restantes médicos do Serviço que me assistiram. Às enfermeiras e auxiliares da Unidade de Cuidados Especiais e do Serviço de Medicina, com uma especial menção às enfermeiras Sofia Carvalho, Paula Coelho, Salomé e à auxiliar de acção médica Zézinha. 3. Hospital de Santa Marta (Lisboa)

a) Serviço de Cirurgia Cardiotorácica: Ao Professor José Roquette, Dr. Filipe Robalo e Dr. João Mendes, cujas mãos reconstruíram o meu coração sem o deixarem cair. À Dr.ª Odete Macedo, que, num abrangente conhecimento da Anestesiologia, não só se ocupou do meu sono sem sonhos como, também, me apaziguou de toda a angústia à entrada do bloco operatório.

b) Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardiotorácica: Ao Dr. Jorge Cunha, por tão tranquila e bem humoradamente vigiar a minha recuperação imediata da cirurgia cardíaca. Às enfermeiras e pessoal auxiliar da Unidade, com uma especial referência às enfermeiras Rita Barbosa, Teresa, Susana e Neuza. c) Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia: Ao Dr. Rui Ferreira, o meu ombro amigo ao longo de toda a estadia no Hospital de Santa Marta, e à Dr.ª Lurdes Ferreira. Aos enfermeiros, enfermeiras e pessoal auxiliar desta Unidade, com uma especial menção à enfermeira-chefe da Unidade, às enfermeiras Ana Machado e Sandra Lopes, e às auxiliares de acção médica Sara, Susana e Ana. 4. Aos meus sogros Maria José Barbosa e António Terrão, pela generosidade e amizade com que receberem e cuidaram, primeiro a minha invalidez e, depois, a minha convalescença. 5. E ainda (linfoma de Hodgkin)

a) Diagnóstico e enquadramento: Dr. Manuel Campos Monteiro (Serviço de Medicina Interna), Dr. Joaquim Falcão

(Serviço de Cirurgia Geral) e Dr. Fernando Pardal (Serviço de Anatomia Patológica), do Hospital de S. Marcos, em Braga.

Professor João Sampaio Fernandes e assistentes Maria do Céu Cardoso e Helena Fernandes, da Clínica de Medicina Dentária do Amial, no Porto.

Dr. Joaquim Miranda, Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Distrital de Famalicão.

Dr. Rui Dessa, Serviço de Oncologia Médica do Hospital Distrital de Guimarães. b) Tratamento e acompanhamento: Dr.ª Isabel Costa, enfermeiras do Hospital de Dia, Cristina e Nuno (recepção de

doentes), do Serviço de Hematologia do Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa.

Dr. Francisco Mascarenhas e técnicas de Radioterapia (uma referência especial à Patrícia) do Serviço de Radioterapia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.