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Para

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Uma menina me ensinou Quase tudo o que eu sei Era quase escravidão Mas ela me tratava como um rei! (Renato Russo, Ainda é cedo)

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Sumário

Noturna ....................................................................................................... 06 O feitiço de Áquila .................................................................................... 07 Meta-física .................................................................................................. 08 Sonata Vulgar .............................................................................................. 09 Pretérito perfeito .......................................................................................... 10 Orgasmo ...................................................................................................... 11 Ode sintética ............................................................................................... 12 Haikai? ......................................................................................................... 13 Aula de astronomia .................................................................................... 14 Idílio impressionista ..................................................................................... 15 O fim dos tempos ...................................................................................... 16 Itinerário existencial ................................................................................... 17 Insônia ......................................................................................................... 18 Silicone ......................................................................................................... 19 Dark ages ..................................................................................................... 20 Exercícios tomistas ..................................................................................... 22 Hégira ........................................................................................................... 23 Cleptocaco ................................................................................................... 24 Um tributo a Sá-Carneiro ......................................................................... 25 O último Narciso ....................................................................................... 26 O paciente e o tempo ................................................................................ 27 Dislexia ........................................................................................................ 28 Soneto derradeiro ........................................................................................ 29 Oração A Santo Antônio .......................................................................... 30 Fênix ............................................................................................................. 31 O álbum revisado ....................................................................................... 32 Balada da coruja .......................................................................................... 33 Observações de um leigo acerca da arte de pintar virgens .................. 34 Left side ....................................................................................................... 35 Das estações do ano ................................................................................... 3 Adeus a Mário Quintana ........................................................................... 37 Um chá das cinco com Oscar Wilde ....................................................... 38 Contradições do zodíaco ........................................................................... 39 Sem metro ................................................................................................... 40 A reinvenção do dilúvio ............................................................................ 41 Evoluções (ou carnaval das horas) .......................................................... 42 Encruzilhada da poesia .............................................................................. 43 O cão e a janela .......................................................................................... 44 Modus vivendi ............................................................................................ 45

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Bloody Mary ................................................................................................ 46 Homo sapiens ............................................................................................. 47 Versos em off sob uma canção sem Kurt Cobain ................................ 48 Despertar ..................................................................................................... 49 Pequeno relicário poético ......................................................................... 50 Segunda impressão ...................................................................................... 51 Hora de dormir .......................................................................................... 52 Soneto de contrição ................................................................................... 53 Mea culpa .................................................................................................... 54 15 de fevereiro ............................................................................................ 55 [De]Gradação .............................................................................................. 56 Reciclagem .................................................................................................. 57 Dois tempos ............................................................................................... 58 Biografia do autor ....................................................................................... 59

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Noturna A noite é entrecortada pelas preces E ecoa nela um grito transparente Eu sigo no meu passo, molemente, Pensando com quem mesmo te pareces. Não falo com ninguém pra não saber Que cada casa olha triste a rua. Um galo canta, a noite já recua - O dia se prepara pra nascer. Nos pontos se aglomeram os ofícios Do velho labutar madrugador De lutas, de suor, de sacrifícios E eu transponho tonto o portão Jogando sobre a cama a minha dor Rezando pra sonhar um sonho bom

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O feitiço de Áquila Surdo-mudo eu Cega te encontrei Numa noite de reveillon Dançamos Beijamos Tomamos sidra Cereser. Mas à meia noite a decepção Não ouvi o foguetório Tu não viste a cor Dos fogos de artifício De ironias faz-se a vida: Meu toque não foi capaz De dar cor ao teu mundo; Tua voz não pode Me falar de amor!

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Meta-física Muito acima das torres Da intersecção das conversas O céu espreita a cidade Pelos olhos do urubu Além das camisinhas com sêmen Das fraldas com merda E do absorvente com sangue Fede o corpo do poeta! Todo nu, sem o Rolex Sem curso superior Atrai moscas varejeiras O poeta virou homem Caiu morto e apodrece Em plena tarde de sol

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Sonata vulgar Triste é o destino quando nos condena A ser sós e tristes, a querer demais Um alguém a quem não teremos jamais. Doída é a sorte de um amor sem fim Que corrói a alma e impõe a pena De passar a vida sem ouvir um sim Mas muito mais triste é sentir o amor É gozar os dias como se essa glória Infinita fosse, não fosse história Não pudesse um dia converter-se em dor Relembrar teu corpo grudado ao meu Perdido em beijos, em gozo explodindo É triste, é doído... vai me destruindo: O meu corpo é órfão se é ausente o teu!

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O pretérito perfeito Ouço o choro da noite quando durmo E em minha cama quente me revolvo Apertando o cobertor em que me envolvo Mergulhado no horror eu me consumo Sinto o cheiro do teu corpo tão presente Sem saber em que cama tu te deitas Pra quem mesmo é que te enfeitas Por quem é que tu andas sorridente Você foi um lírio branco em minha vida Perfumado, inebriante, um desafio Que perdi tão recém desabrochado Hoje resta-me doendo essa ferida E a lembrança quando é noite e faz frio E a saudade conjugada no passado

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Orgasmo

Quero-te assim Leve, fluida Quanticamente conceituada Tua matéria fugindo à mão Onipotente, romantizada Toco-te assim Cauto, acanhado Polidamente ruborizado Tua libido Sacode o chão Misticamente sintetizada Perco-te, enfim Breve, ousada Cinicamente desintegrada Tua voltagem Corre em mim Diariamente ressuscitada

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Ode Sintética Ama? Ama nada! A manada...

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Haikai ?

No auge da vida Na lida do meu porvir Sorrir é ferida!

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Aula de Astronomia

Quando sua luz se apagou Fiquei atordoado e senti medo. Os astrônomos, em sua frieza, Dizem que as estrelas - Ainda que de primeira grandeza - Depois que morrem Simplesmente explodem. Triste destino, Deus, Esse das estrelas Que depois de tanto brilho Apagam, esfriam, Morrem e... explodem! Mas mais triste ainda É esse nosso destino De olhar para o céu Na mais escura das noites E descobrir que a estrela predileta Apagou, esfriou Morreu e... explodiu!

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Idílio Impressionista

A primeira visão Que tive de você Foi das pontes de Monet: Impressões ao Nascer do Sol! Sentada sobre um nenúfar As formas se confundiam Teus contornos se fundiam Com a flor. Mas na sugestão Das formas borradas Vi só tua alma Só inspiração E até hoje ando Feito um Gericault Te esquadrinhando Vigiando a luz Procurando a cor Que possam me dar Tua expressão

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O fim dos tempos Quatro anjos visitaram a cidade Era noite e todos dormiam E quando o sol brotou novamente Viram somente as pegadas no céu Desde essa noite o sono dos homens Já não é mais tranqüilo enfim Todos plantaram à porta de casa Dois cães de guarda e um arlequim Ainda assim a cada manhã No céu azul tomado de sol Ou nas pesadas nuvens chuvosas Os pobres homens tomados de horror Contam os sonhos que foram levados Naqueles passos que sobem aos céus

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Itinerário Existencial Vivo cada dia inteiro: Respiro um pouco de oceano Algo de deserto Um tanto de nostalgia. Raciono a alegria: Planto um litro de vento Uma tonelada de cal Uma dúzia de papoulas. Creio em poucas coisas: Sonho os sonhos possíveis As manhãs vindouras As cores frias do espectro. Possuo o nada: Dispenso os curiosos Os loucos mais ferozes O luxo da vitória. Odeio respostas prontas: Como os raios do sol Bebo a gargalhada de Deus Ando porque sinto vontade Paro quando tenho saudade Morro se deixar de amar!

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Insônia

Descobri que em ti encontro sensações Que marejam, rugem, queimam... extrapolam Sussurram no ouvido, arrepiam pele; Movem mar e terra, mudam estações. E esses gritos loucos vão tomando o corpo, Em vertigem cega consumindo a alma, Esperando a hora de tomar-te inteira: - Gosto, cheiro, som, imagem... tempestade! Quem me vê sorrindo, com semblante calmo nem percebe logo que nem durmo à noite Enfrentando monstros pra te merecer! Noite após noite, nessa luta infinda, Às vezes um anjo me concede um sonho: - Mas no bom do beijo vem me acordar.

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Silicone

Entre o poético E o patético, O protético...

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Dark Age Roubamos os últimos raios de um sol decadente Nadando até a atmosfera em artefatos velozes; E, quando caíram falidas as tardes do universo, Abrimos nossos guarda-chuvas de seda Pra improvisar uma inusitada dança da chuva. A esse tempo, os cães ladravam solitários Espantando um anjo que investigava abjuros. Empoleirados nas coberturas dos arranha-céus, Os galos provocavam os cães lá de baixo. Umas poucas meninas – flores amarelas e medrosas, Aventuravam-se nas ruas vez por outra, E se traziam as mãos trêmulas e sem graça, Não escapavam aos olhares dos soldados, Que deixando cair as metralhadoras no asfalto, Contemplavam o ventre coberto pela chita. Mas, quando os primeiros raios cortaram os céus, Um bando de gansos que seguia pro sul deu meia volta E o bronze dos sinos de distantes catedrais Dobrou com estranha imprecisão Saudando os que restaram sobre a terra! Então a desgraça desabou como se fora dia, Assustando os cemitérios clandestinos, Urrando e pedindo pra passar. Dos esgotos jorraram rios de bichos escrotos Que invadiram as casas asseadas das madames, Desfrutando a comida sobrante no armário, Embebedando-se com o Porto das adegas. As serpentes, do alto de suas cabeças feridas, Picavam os calcanhares das donzelas, Devorando as maçãs que desabavam da àrvore do Bem e do Mau... Os governantes vivos do mundo inteiro, Confortavelmente reunidos num bunker, Resolveram distribuir, gratuitamente,

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Arsênico e Colts aos comprovadamente mais pobres, Contanto que a racionalidade dos Congressos Votasse um novíssimo tributo Capaz de cobrir mais esses gastos E suprir umas tantas comissões. Por fim, cansados com a ausência do chilrear dos pássaros Abrimos concurso para ornitólogo-real E instituímos recompensa a quem trouxesse Um pardal vivo Um diamante virgem Uma estrela do mar... Ou a calda de uma distante estrela cadente! Enforcamos,então, os magos que pregavam o fim do mundo E nos acostumamos a jantar com os novos dias... Vivendo como se vivêssemos de fato.

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Exercícios Tomistas Quando nasci, há algum tempo, Me deram um anjo velho e cansado por guarda. O pobre até que me seguiu bem em tempo de gatinhas E correu atrás de mim já nos primeiros passos... Mas perdeu-me nas peraltices do esconde-esconde. E quantas vezes extraviei-me num dos seus cochilos! Sozinho, corri entre as árvores da floresta; Brinquei desatento entre os carros da avenida. Sozinho, desvendei os mistérios do amor (E com este o horror da verdadeira dor). Sozinho, fiz meu anjo cansado em preguiçoso... E agora, quando grito seu nome ele já não ouve: Sabe que bem ou mal, eu cuido de mim!

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Hégira Um galope muito estranho de cavalos Ecoando desde a estrada do remoto Ainda assombra quem caminha o agora Na poeira carregada pelo vento Vinga mais que a alguns poucos desafetos A carcaça estúpida do tempo Lá no céu daquele azul tão ilusório Desenhado com pincéis quase invisíveis Canta um pássaro armado pra viagem Lamentando qualquer coisa que ficou E ao largo alguns relâmpagos rutilam Brotam nuvens carregadas de desejos Os tambores já ecoam nos trovões Molham homens, molham deuses... molha tudo!

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Cleptocaco É verdade. Vai-te, soberba! Sou obrigado a gritar sandices... A esgoelar-me quase até o fim Só pra fugir do silêncio vil Cansei, deveras. Dá-me um café! (não suporto matar cobras no asfalto!) Colho-me no horizonte eterno agora, Mendigando algum grão de presente. Soletro palavras (que lia de-já-hojinho) E ajeito os óculos escuros na cara: - Pacifiquei-me, assinto! Trago comigo esse guarda-chuva E caço lagartixas nos dias de sol. Acho que estou quase vivo!

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Um tributo a Sá-Carneiro Reparei na vida esse caminho E de repente fiz-me viandante De súplicas tornei-me suplicante Por gestos que jamais achei sozinho Ser-Poeta que se cria pela dor E gana e suor... e exaustão Formei-me num amante sem tesão Da chama que queimou-me sem calor A noite enrodilhou-se aos meus pés Grassou na encruzilhada do meu dia Cantou, chorou, gemeu – fez-se revés Me fiz ladrão de horas – quem diria?! Voltei só pra insistir nesse viés: -Bandido que a si mesmo sentencia!!

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O último Narciso Colhi-me aos pedaços no acaso Olho por olho, dente por dente! Montei com tudo algo diferente Daquele eu de já vencido prazo Não sei se andei perdido no alheio Ou se o eterno é realmente farsa Mas o sorvete que ganhei de graça Tornou-me assim enormemente feio E, desvairado, quebrei meu espelho Contei sorrindo piadas na praça - Chorei sozinho com o meu conselho! Fui caçador que não sabe o que caça Pisei com lodo o tapete vermelho: - Fantasma louco que a si mesmo abraça!

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O paciente e o tempo A vida passou-me a mim Como jornada inglória Regateando a vitória Num tédio louco sem fim O tempo tocou-me assim Com mãos de pura voragem Nesta insólita viagem Vagando feito Caim E tão jovem sou cansado Seguindo em meu dasatino Sem presente e sem passado Por forte vento levado Refém do insano destino Sou breve, quase errado!

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Dislexia Num ppael amraleado Rbasiqeui meu hoirnozte Com gfriate e soildão E a prsesa de um isnatnte Com gfriate e soildão Rbasiqeui meu hoirnozte Em ppael amraleado Na prsesa de um isnatnte Rbasiqeui meu hoirnozte Na prsesa de um isnatnte Em ppael amraleado Com gfriate e soildão Na prsesa de um isnatnte Rbasiqeui meu hoirnozte

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Soneto Derradeiro Talvez algum dia estejamos os dois Perdidos, tão sós a desatar os nós Descrentes do ontem, do amanhã e do após Que não mais possamos deixar pra depois Então Deus, bondoso, queimará o mundo. E entre as labaredas, totalmente nus Dançaremos loucos com os urubus Degustando enfim um existir profundo Meu amor, de resto, nos abraçaremos Divisando o céu se desfazendo inteiro, Sem grandes ganâncias, ternos e serenos. E pra ti será meu olhar derradeiro Compensando todo o tempo que perdemos Serei o teu último, já que não fui primeiro.

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Oração a Santo Antônio

Priscila loira E Carla morena (em dívidas com a vida) Procuram urgente Quem tire seus nomes Do SPC

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Fênix Sobejamente desenhado Na retro-escala do prazer Teu corpo foi desintegrado No cabedal do vir-a-ser Mais que uma simples ilusão Gritou, sangrou (me deserdou!) E na agonia quis então Dar-me a ribalta do teu show Pois no espetáculo me fiz Protagonista por acaso Nesse dueto de almas vis Encenei frágil a coragem Brilhei presente em teu ocaso Pra renascer um dia além

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O álbum revisado Guardados estão os retratos A mãe, o pai... os meninos: Tudo amarelando com o tempo! Às baratas, folha com a poesia primeira, A lua submersa em nuvens pesadas; O termômetro das noites de catapora... Terá sido mesmo há tanto tempo assim? Guardados nas cicatrizes estão os cortes - Mastro quebrado da nau partida nos arrecifes. Os corpos abraçados nas manhãs chuvosas Os pés enlaçados, brincando sob os cobertores O medo estranho de portas fechadas. Tudo registrado pela lente desfocada... Tênue como a cal que mofa nas paredes. Guardadas ficaram as sensações: Os beijos que pareciam tão ardentes O suor tão verdadeiro dos corpos ofegantes Os cabelos molhados do banho a dois. Tudo soterrado depois da tempestade! Só algumas poucas lembranças se salvaram... Tudo sob as pedras, os entulhos e a lama. Guardados permanecem os sonhos, Monumentos erguidos ao fracasso: A casa, os móveis... os brinquedos espalhados pelo chão! Os risos, o barulho... o canal disputado da televisão! E o som da pipoca estourando no fogão. Tudo amarelando com o tempo. Tudo soterrado depois da tempestade!

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Balada da coruja Pouco a pouco o tempo expirou Os desejos se propuseram aguardar Os minutos ecoaram no sempre O sol germinou no horizonte As ruas se pintaram de humano... É chegada a hora de dormir!

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Observações de um leigo acerca da arte de pintar virgens Na parede descansa pendente o retrato: Os olhos fixos vislumbrando o infinito Na boca, escondido, um sorriso aflito, Nos cabelos penteados o toque abstrato. A expressão sóbria escurece o cenário: O fundo negro... o dourado dos cabelos As rugas discretas pontuando desmazelos O lábio cerrado ditando o inventário. Mas quem ousaria adivinhar-lhe a intenção? Por que reclamam os olhos um horizonte perdido? Como pode um sorriso conter tanta aflição? Pois esperam os olhos um tapete estendido E as rugas são marcas da indignação Tudo pincelado num mal-entendido!

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Left Side

No hemisfério cerebral Trocados

Na grande revolução

Sentados

No Golpe de Estado Mutilados

No quadro com giz

Grafados

No toque das mãos Vencidos

No lado do amor!

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Das estações do ano Consumi meu tempo no teu sal impuro Por horas e dias... por meses e anos! Carreguei-te enorme, pesada... sozinho. Bêbado, sombrio, em caminhos insanos. Consumi meu ser no teu acre vinho: Fui poeta, louco – amei-te – eu juro! Desfolhei de dor a cada outono Padeci no inverno do inverno teu Floresci sublime em tua primavera Queimei no verão do teu ser profano! Consumi meus passos pelas tuas curvas Que caminham sempre sem rumo algum: - Beirei a desgraça de querer ser teu!

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Adeus a Mário Quintana Nunca fui bom poeta. Me emociono fácil... Não fico aguardando anos Que um verso amadureça Para então surpreender-me E nas dores do parto Cobrir-se de luz. Ando por aí olhando... E se vejo algo que me toca, Não guardo a cena, maquiavélico, Aguardando o momento Procurando o tempo: Jogo logo tudo Na cara do mudo!

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Um chá das cinco com Oscar Wilde Pela vidraça um jardim mergulhado Vence, orgulhoso o fog londrino E cá na casa bem badalado Pentala o cuco em seu desafino Surge o criado, metódico andar Acende a lâmpada, serve o senhor. Sobe o black tea, invade o ar, Mistura aroma, pesar e dor. Pende na parede o retrato pintado Cujo semblante parece indagar: Quem é esse homem tão desolado? Pois é lord Henri – espreita a tarde! Jaz ali sentado em seu medo de amar. Jaz em sua casa, com sua verdade!

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Contradições do Zodíaco No passo extremado dos teus palavrões Ardendo em desejos meu verso se instaura “Poeta falido, despido de aura Duelas perdido entre escorpiões!” Não vês que os teus dias se enchem de medo, Que gemes prostrado em presença do amor? Deixaste o casulo de dor e torpor, Cedeste ao pecado de engano tão ledo... Agora, decida, lerdeza infinita! Escuta, ela xinga impropérios de amor, Enquanto teu sangue fervendo se agita.” Menina bonita de gênio ruim Do encanto que exalas eu ouso propor: Reserve os teus dias restantes pra mim!

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Sem metro Perdi-me em rascunhos De tantas versões De versos que chegam De versos que vão Que chego a sentir-me Rabisco desfeito Poeta sem rumo Sem musa e sem paz E ando maluco Surrando palavras Forçando sentidos Rasgando a alma... E quedo-me ausente Imerso em mim mesmo Meus passos são curtos De rumo incerto. Agora sou feito De noites compridas Insones, ranhidas De tédio e calor. Escrevo teu nome Mil vezes mais uma Tecendo em mim mesmo A teia do amor Mas meu verso é pobre Sem inspiração. Em vis redondilhos Menores que eu mesmo Ensaio arremedos Nas rimas puídas Fingindo um sorriso Que – juro! – não sinto...

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A reinvenção do dilúvio Faze uma arca de madeira Entra nela com tua mulher E teus filhos e teu cão E teus anseios e tuas verdades. Choverá então por quarenta dias E por quarenta noites choverá... Depois virá novamente o sol E de novo a terra povoarás. Não, pensando bem, Faze uma arca de madeira: Entra nela sem tua mulher E teus filhos e teu cão E teus anseios e tuas verdades. Choverá então por quarenta dias E por quarenta noites choverá... Depois virá novamente o sol. Então não haverá mundo por povoar Tu serás então toda a humanidade! E todo desumanidade tu serás! E acorde consigo mesmo, Finalmente serás feliz...

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Evoluções (ou Carnaval da horas) Ainda que seja manhã E que brilhe um sol de plena sexta-feira E que corte o ar um cheiro de goiaba E que Vera Márcia fale de Barroco E que aquele homem monte o seu sebo E que algum fútil fale de política E que em meia hora eu tenha uma aula Nada disso é importante Ainda que eu seja homem E que passem tantas mulheres bonitas E que eu goste tanto das orquídeas E que tenha tão poucos amigos vivos A que ache bom o gosto de cerveja E que não consiga sair dessa UFES E que ignore o porquê da existência Nada disso é importante Importante mesmo É decifrar a tristeza dos teus olhos E te dar meu colo em dias de cansaço É colher teu riso cheio de malícia E saber se a minha e a tua vida Podem se cruzar nas linhas do acaso Na extensão de um ponto de intersecção Mas mais importante mesmo É que estou vivo É que você está viva O resto, o tempo ajeita...

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Encruzilhada da poesia Despontando de um peito arrebentado Recoberto pelo plasma da surpresa Encontraram deformado o coração Tinha marcas de tortura e sofrimento Suspeição de violência de mulher Marca-passo e três pontes de safena Recolhido em um frasco transparente Embebido em matéria de aguardente Foi doado para ser periciado Estudado nas aulas de medicina Mas um dia abandonado no armário Foi levado no descuido da faxina E no lixo finalmente acomodado Encontrou-se com os olhos do poeta...

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O cão e a janela Uma luz sublime vem do horizonte... Mentira! Meus olhos é que estão felizes. Afinal se sou os olhos que te guiam Se sou luz pro mundo feio que te assombra E observo o mundo que não podes ver Vejo as pessoas feias que não vês Enxergo as mulheres que riem de ti Percebo as crianças a te imitar Noto as pessoas com cara de pena Apanho o olhar de nojo dos normais. Pois Guardo as pancadas que me dás sem dó Só por dó de ti que não podes ver Esse entardecer comum de sexta-feira.

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Modus vivendi Ontem um homem estranho suicidou-se sem motivos: Atirou-se na frente do trem das sete Que, sorte dele, atrasara dezenove minutos. Uma garotinha procurou o pai nos restos do infeliz, Mas saiu mais triste que chegou... não o encontrou. Uma mulher, ajeitando a aliança na mão direita Procurava o noivo traído... foi embora sozinha. Do outro lado da estrada de ferro, Furando o cordão de isolamento da PM, Uma mãe gritava por um filho José, Enferrujando os trilhos numa torrente de lágrimas. No meio da rua um carro buzinava impertinente Reclamando da interrupção súbita do trânsito E o motorista culpando o prefeito pela confusão. Alguns moleques aproveitavam o tumulto Pra roubar algodão-doce de um vendedor desatento Que procurava um lugar para se instalar. Um padre que passava pelas imediações Ganhou o aplauso da multidão com uma pergunta de efeito: “Por que as pessoas suicidam-se sem motivos?!”

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Bloody Mary

Perdão por não ser romântico... que pena! Os românticos são espécie em extinção - E o suicídio (ou seria aborto?) de mais um poeta Não me parece realmente boa idéia. Certo é, porém, que a primeira vez que vi Maria Não era noite nem dia... acho mesmo que chovia Prenúncio de tempestade? Quem sabe?! Perdão por não ser romântico Não há mais lugar pra carneiro Nessa terra de churrasco. Maria também não é Teresa Com cara de perna numa primeira vez. E, olhando de novo, Seus olhos não são mais velhos que o corpo - São apenas mais tristes! Tampouco o espírito de Deus – pobre Deus! Volta a mover-se sobre a face das águas Quando vejo Maria agora. Triste poeta, tua Teresa Nem se compara à minha Maria... perdão! Perdão por não ser romântico Mas hoje é sábado O sétimo dia... dia de descanso! Perdão, Maria! Guardo teus olhos atrás de lentes espessas E se escrevo assim relapso Tão longe do metro É por força centrífuga Por conta da vertigem que me causa A hélice do liquidificador... Talvez a estranheza do teu amor! Perdão, Maria, por não ser romântico! Mas preciso atender Uma ligação urgente No telefone vermelho.

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Homo Sapiens Admita-se que viver é isso De andar à frente da sombra. - O que será da vida nos dias de chuva? Assinta-se em ser essa reles mortalha Que caminha ereta nas trilhas escassas Farejando as pistas do elo perdido Garanta-se a fila na sala de espera Da ante-sala anexa à recepção Do ascensorista do abatedouro! Falhe-se de novo na conceituação Do que é planar em pane eterna Sobre a cordilheira desse coração...

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Versos em off sob uma canção sem Kurt Cobain Encontrei o amor escondido Mofando num canto escuro da casa. Nos olhos assustados, um medo suicida Os braços apertando o corpo frio A face fantasmagórica... o peito ofegante A boca retendo gemidos abafados. Acho que senti pena, não sei Quis abrir as cortinas Ou pintar de branco todas as paredes. Aconcheguei-o assustado em meu colo: Cuidei, beijei, cantei uma canção de ninar Rezei um Pai Nosso pra’judar! Liguei pro Ministério das relações exteriores, avisei: - Sim, pode vir busca-lo, é ele mesmo! Chama-se amor e tem a marca da prisão do coração Comunica-se numa linguagem ininteligível E aparenta ter perdido temporariamente o rumo - Mas felizmente ainda está vivo...

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Despertar Em festa acordavas o meu dia Com teu sorriso a me cutucar E o azul dos teus olhinhos imprimia Aquela cor feliz ao despertar E nossas brincadeiras dia a fora Enchiam de sabor a existência Eu nunca imaginei levar-te embora O lodo, a serpente e a demência Agora, acordo imerso em solidão... Não tenho mais você pra me abraçar Meu peito esvaziou-se de emoção Os dias passam todos sem valor A vida é tão fria em seu andar - Perdida está do mundo a sua cor!

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Pequeno relicário poético Não culpemos a poesia! A embriaguês do verso não tem culpa Se aberto o peito e vacilante a mão Quebrada a casca do velho casulo Nos toma o amor... Não culpemos a poesia! A pequenês do verso não em culpa Se passa a brisa e vem o tufão Engole o dia, a noite, a canção E nos toma a dor. Não esqueçamos a poesia! A extensão do verso não tem culpa Se é breve a vida e fugaz o amor. Antes o poeta estava morto - Não! Só hibernava, digerindo o horror... Não evitemos a poesia Em sua entrelinhas habitam os amores (Todos coabitam com as suas dores!) Colhendo no ontem o amanhã e o hoje Gestando no velho o novo poeta.

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Segunda impressão Eu que escrevia páginas de versos Fingindo amores que jamais senti Ando agora seco, pagando os excessos - Me falta um verso logo para ti. Assim desbotado, um poeta morto, Amo-te em silêncio, órfão de palavras. Sei que antes fútil, esgotei as lavras, Minha rica rima virou verso torto. E um sorriso triste pesa-me nos lábios Quando a noite é clara e lá vai janeiro Nesta nau que vinga sem um astrolábio Eis que aumenta o vento louco da canção E com casco roto volvo ao estaleiro Pra tentar um verso... mas sem emoção.

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Hora de dormir Há uma pedra caindo no vazio da alma Observo o movimento contando estrelas Degustando o silêncio que encobre o infinito. A que horas mesmo você acorda todo dia? Na janela do abismo a massa se desloca Vai rasgando sonhos nunca consumados Acordando mortos antes enterrados Queima em meu peito algo desumano Por ora meus olhos cedem ao cansaço O sono contido, repleto de noite, Num redemoinho me engole inteiro Talvez amanhã a paisagem conserve O cheiro de cravos que enche a escuridão Na brisa leve que move a cortina.

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Soneto de Contrição Entrego-te os tostões que me restaram As horas maldormidas, meus amores Meus filhos, meus irmãos... meus detratores! Os nomes feios pelos quais já me chamaram Entrego-te essa mortalha violada Por álcool, por mulheres, por saberes Quiçá por letais vírus, sem haveres Por ondas de pecados soterrada Entrego-te, Senhor, o meu porvir Os dias que achares que mereço Agora decidido a te servir Entrego-te esse semblante desolado Ciente de que é dia e escureço Tranqüilo, arrependido... resgatado!

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Mea culpa Patulé nasceu pelado Como nasce todo mundo Amarelo e barrigudo Deformado, olho fundo! Cresceu fraco o Patulé Meio a fome e as pancadas Educado pelo eito Hospedado na estrada Morreu cedo o Patulé Sem tomar um bom sorvete Sem carinho de mulher Sem cimento em sua cova Deus perdoe esse poeta Que nunca sentiu a fome Que nunca sangrou no eito Que fala só de ouvir Deus Perdoe a todos nós Escondidos pelos muros E por grades e alarmes Por termos chegado aqui

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15 de fevereiro Posta novamente a mesa do jantar Mergulho lentamente entre os aromas Transitando de leve entre as poltronas A colher teu cheiro que ficou no ar Preso na parede o relógio antigo Segue vigiando a noite avançar Esperando, tranqüilo, a sopa esfriar Intocada, insossa, brincando comigo Mais um pouco e tudo ruirá enfim Preso a outro tempo a procurar teus pés Minha cama fria rir-se-á de mim E quando dormir, alta a madrugada Tu me assombrarás sem dizer quem és Mas te chamarei o nome, minha amada!

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[De] Gradação Calculados todos os quadrantes Reduzidas as variáveis e constantes Os astros, as fadas, os grilos falantes Corta-me o frio dos ventos errantes Listados os genes que dão cor aos olhos Jogados os búzios na mesa da sorte Os dentes caninos da boca da morte Mordem-me os dias sem deixar espólios Somados, por fim, os poucos sorrisos As glórias, mentiras... os ledos pecados A torpe vergonha dos beijos roubados Só restam no asfalto os olhos caídos Fósforos, conhaque... um chicle de menta E o poeta triste que se re-inventa!

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Reciclagem Quando me vem teu nome Pego o telefone Mas não ligo não - Esqueci teu número! Quando recordo teu corpo Caído na cama Não esquento não - Perdi o tesão! Quando lembro do teu aniversário Já passou faz tempo Não reclama não - Poupo-te das rugas! Quando percebo tua ausência Tu já foste embora Não tem galho não - Ficou nossa história!

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Dois tempos Você (de repente) Vendendo o corpo Quebrou meu sufoco - Meu Deus, que loucura! E eu ( que sedento!) Burlei meu relógio Bebi-te num quarto E o quarto restante? Nós dois ( e agora?) E o quarto de hora Já pago e sobrante? Leitor, tu nem sabes Quanto amor cabe Em quinze minutos!

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Biografia do Autor

V. Santana é capixaba de Marechal Floriano. Nasceu em 15/11/1967, no Sítio da Vovó, localidade de Rio Fundo. Viveu toda a sua infância naquela região de montanhas do Espírito Santo, onde fez seus estudos iniciais. No ano de 1999, foi admitido na UFES – Universidade Federal do Espírito Santo para o curso de licenciatura em Letras, após ter alcançado o 1º

lugar no concurso vestibular. Transfere-se então para a Grande Vitória, passando a lecionar Língua Portuguesa e Literatura Brasileira em diversas escolas públicas. Abandona a graduação incompleta e o magistério em 2005, passando a trabalhar no comércio. Publica atualmente pela editora Clube de Autores e mantém um blog no Recanto das

Letras - http://www.recantodasletras.com.br/autores/valmere .