kierkegaard: o itinerário dialético entre finito e infinito

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La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura | v. 14 | n. 1 | jan./jun. 2009 157 Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito Inês Helena Madruga Nunes * RESUMO: O artigo reconstrói o pensamento de Kierkegaard (1813- 1855) a partir do caráter subjetivo do conflito articulado nos estados da exis- tência. Uma luta entre corpo e alma em busca da realização do ser espiri- tual que se encontra suprimido em ní- veis de consciências que devem ser ultrapassados. O ser humano compre- endido como o terceiro elemento da relação entre o finito e o infinito, é o Eu constituído que, refletindo sobre si mesmo, não pode ser o que é. A ten- são constante do vir-a-ser, frente às possibilidades, gera o desespero exis- tencial da angústia das incertezas im- plícitas em cada possibilidade. O salto é a dimensão consciente de assumir o desespero com confiança existencial, é a transição entre o estado estético ao ético, do ético ao religioso. O itine- rário dialético proposto pelo autor tem como objetivo conduzir o homem à reflexão de sua realidade espiritual e da contradição entre estado orgânico e psicológico, onde o desespero exis- tencial, como doença do espírito, gera ABSTRACT: The article rebuilds the thought of Kierkegaard starting from the subjective character of the articulate conflict in the states of the existence. A fight between body and soul in search of the spiritual being’s accoomplishment that one finds suppressed in levels of consciences that should be outdated. The human being understood as the third element of the relationship between the finite and the infinite, it is it I constituted that, thinking about him cannot be that is. The come-to-being’s constant tension, front to the possibilities, generates the existential despair of the anguish of the the implicit uncertainties in each possibility. The jump is the conscious dimension of assuming the despair with existential trust; it is the transition among the aesthetic state to the athical, of the ethical to the religious person. The itinerary dialético proposed by the author has as abjective drives the man to the reflection of his/her spiritual reality and of the contradiction among organic and psychological state, where * Acadêmica em Filosofia Unilasalle.

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Page 1: Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito

La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura | v. 14 | n. 1 | jan./jun. 2009 157

Kierkegaard: O itinerário dialéticoentre finito e infinito

Inês Helena Madruga Nunes *

RESUMO: O artigo reconstrói o

pensamento de Kierkegaard (1813-

1855) a partir do caráter subjetivo do

conflito articulado nos estados da exis-

tência. Uma luta entre corpo e alma

em busca da realização do ser espiri-

tual que se encontra suprimido em ní-

veis de consciências que devem ser

ultrapassados. O ser humano compre-

endido como o terceiro elemento da

relação entre o finito e o infinito, é o

Eu constituído que, refletindo sobre

si mesmo, não pode ser o que é. A ten-

são constante do vir-a-ser, frente às

possibilidades, gera o desespero exis-

tencial da angústia das incertezas im-

plícitas em cada possibilidade. O salto

é a dimensão consciente de assumir o

desespero com confiança existencial,

é a transição entre o estado estético

ao ético, do ético ao religioso. O itine-

rário dialético proposto pelo autor tem

como objetivo conduzir o homem à

reflexão de sua realidade espiritual e

da contradição entre estado orgânico

e psicológico, onde o desespero exis-

tencial, como doença do espírito, gera

ABSTRACT: The article rebuilds

the thought of Kierkegaard starting

from the subjective character of the

articulate conflict in the states of the

existence. A fight between body and

soul in search of the spiritual being’s

accoomplishment that one finds

suppressed in levels of consciences that

should be outdated. The human being

understood as the third element of the

relationship between the finite and the

infinite, it is it I constituted that,

thinking about him cannot be that is.

The come-to-being’s constant tension,

front to the possibilities, generates the

existential despair of the anguish of the

the implicit uncertainties in each

possibility. The jump is the conscious

dimension of assuming the despair

with existential trust; it is the transition

among the aesthetic state to the athical,

of the ethical to the religious person.

The itinerary dialético proposed by the

author has as abjective drives the man

to the reflection of his/her spiritual

reality and of the contradiction among

organic and psychological state, where

* Acadêmica em Filosofia Unilasalle.

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O texto aqui estudado, O desespero humano, escrito por Sören Aabye

Kierkegaard, em 1936, reconstrói o que para ele seria a trajetória do eu espiritual

a partir da vida. O desejo de criar formas abstratas, sobretudo através de luta de

consciência, cada vez mais intensa diante da situação do próprio existir, superan-

do a contradição entre organismo e consciência. Ao analisar os estados da vida,

Kierkegaard, preocupado com o caráter individual humano, descreve a contradi-

ção subjetiva entre corpo e alma, e a busca do sentido existencial, e sua concilia-

ção entre estado orgânico (corpo) e estado psicológico (alma). O devir existencial

depende da conciliação de ambos. O desespero move o espírito e o orienta ao

reconhecimento de si mesmo. A realidade antagônica da vida é uma acentuada

relação de liberdade e necessidade em permanente conflito, até o desdobramento

do ser humano, o eu espiritual. Segundo o autor, o eu busca sua existência distin-

ta na consciência simples entre corpo e alma.

Sofre e desespera no desejo de realização, suprimido na dupla força contrá-

ria. No conflito e na força contraditória, o eu desenvolve um movimento que age

sobre o estado orgânico e psicológico. Dessa contradição surgem duas formas de

desespero genuíno. Caso o estado orgânico não influenciasse o estado psicológi-

co, haveria somente uma relação de desespero, e assim a vontade de ser do eu não

existiria. Entretanto, a dependente relação impede o eu de, por si só, conseguir o

equilíbrio para libertar-se. Não havendo conciliação entre corpo e alma, não há

equilíbrio, e o ser humano não pode realizar-se como Eu eterno. O desespero

humano, segundo Kierkegaard, reúne três estados de consciência: entre natureza

finita, natureza infinita e vontade de querer Ser. Negar o desespero é agregar

mais uma relação de discórdia que, agindo sobre si mesma, afeta o estado psico-

lógico do homem.

Ao refletir sobre a identidade do eu, Kierkegaard desenvolve sua teoria dos

três estados de consciência. Para ele, no primeiro estado, o desespero é inconsci-

ente de ter um eu (homem estético); no segundo estado, o homem se desespera

por ter consciência do eu e não quer ser o eu (homem ético); no terceiro estado,

o homem se desespera, deseja ser ele próprio (homem religioso). Na dialética do

desespero, Kierkegaard se apropria do argumento da idéia abstrata da luta do eu

em querer se realizar plenamente, e tece seu pensamento sobre as vantagens que

a incerteza de ser ou não ser cristão.

A crise existencial é o desesperar de

si mesmo, é o reconhecimento de seu

eu infinito se debatendo para realizar-

se como ser eterno.

PALAVRAS-CHAVE: Finito, in-

finito, desespero, angústia, possível, ne-

cessidade.

the existential despair as disease of the

spirit, generates the uncertainty of to

be or not to be Christian The existen-

tial crisis, is despairing of himself, it is

the recognition of yours me infinite

struggling to accomplish as to be eternal.

KEYWORDS: Finite, infinite, des-

pair, anguish, possible, needs.

NUNES, Inês Helena Madruga

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há no desespero humano. Sofrer do desespero é meio para o homem plasmar em

si sua identidade, sua existência; é erguer-se da mediocridade de si mesmo ou não.

E qual vantagem do homem de querer Ser? No pensamento de Kierkegaard,

o homem não está pronto, sua existência está na dependência da mediação entre

o finito e o infinito. O eu quer ser. Para se realizar, precisa libertar-se da oposição

entre organismo e consciência. Em seu contínuo devir, através do desespero exis-

tencial, o ser humano reconhece sua infinita natureza, seu próprio Eu, sua perso-

nalidade eterna.

A vantagem de desesperar amplia o horizonte da consciência e propicia ao

eu conciliação consigo mesmo, o faz transpor do potencial e imaginário para o

atual e concreto. Tomar consciência é abrir-se ao possível,1

é passar do virtual

para o real. Esse é o mover progressivo da ascensão do eu. Caso isso não ocorra,

o desespero em potência no ser é suprimido e esgota-se. Não desesperar é ani-

quilar a possibilidade de ser, é negar a vida.

A existência do homem e sua possibilidade de Ser é o fundamento do itine-

rário filosófico de Kierkegaard, em que o possível, orientado pela oposição de

ser ou não ser, não depende do contingente, mas da vontade do eu. A vida é

movimento contínuo do nascer ao morrer, a existência do homem é luta árdua

consigo mesmo, um inquietar-se sobre o que há de sobrevir. Existir não está na

dependência da necessidade, mas da possibilidade. O homem é “nada além de

possibilidade”.

Contudo, insiste Kierkegaard, o desespero é discordância interna da relação

consigo mesmo e possibilidade de realização do Ser. Assim como o desvario é

uma forma de manifestação da alma, um estado mórbido de desânimo, assim

como o estado de desvario é para a alma, o estado de desespero é para o espírito;

ambos os estados são análogos. Da analogia entre desvario e desespero, manifes-

ta-se o desespero como discórdia constante e dependente da relação em si mes-

mo. Toda vez que a discórdia se manifesta, é preciso remontar cada movimento

do desespero.

Para Kierkegaard, a possibilidade não depende de condições reais; o possí-

vel, em outras palavras, pode ser pensado como uma condição metafísica. A con-

dição metafísica do desespero e seu movimento progressivo derivam do fato de

ser uma categoria do espírito. Então, podemos interpretar o possível como con-

dição do que pode ser não do que é. As múltiplas possibilidades suprimem o

necessário!

Quanto mais o eu é suprimido, mais aumenta o desespero. O desespero não

é o efeito da discórdia: ele é a causa da discórdia. Da discórdia, acrescenta

Kierkegaard, o homem não tem como escapar, pois o eu é constituído a partir da

discórdia que há entre estado orgânico e psicológico em constante devir. O de-

1

“Possível” vem do latim posse, que deriva de potis esse, que significa “ser padrão de”, “ter em seu poder”. O possível

é tudo o que pode ser feito e realizado na experiência. O possível pensado por Kierkegaard remete ao existir do homem.

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sespero como, doença mortal, remete à ideia de agonizar e não poder morrer;

é agonizar e estar morrendo; é estado moribundo, na qual a vida não permite

esperança, em que a desesperança é a impossibilidade da última possibilidade de

morrer:

Estar mortalmente doente é não poder morrer, mas neste caso a vida não

permite esperança, e a desesperança é a impossibilidade da última esperança, a

impossibilidade de morrer. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se confiança

na vida; mas quando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se confiança

na morte. E quando o perigo cresce a ponto de a morte se tornar esperança,

o desespero é o desesperar de quem nem sequer pode morrer

(KIERKEGAARD, 1979, p. 199).

O desespero, doença mortal, um afligir contraditório, enfermidade do eu, é

morrer sem estar morto! Morrer não significa, aqui, o término da vida, mas o

morrer do eu eterno. Em Kierkegaard, o desespero é a manifestação do estado

doentio do espírito por não poder morrer. A enfermidade do espírito é diferente

da enfermidade do corpo. A enfermidade do corpo o consome e mata; enfermi-

dade do espírito não: consome, aflige e não mata; é um morrer continuamente,

um morrer transformado em viver. O que há no eu espiritual não pode ser morto

a golpes de punhal; de igual modo, o desespero, como um verme imortal, comenta

Kierkegaard, permanece no espírito, querendo morrer para se libertar. A doença

do eu espiritual se manifesta como vontade de destruir o desespero para ficar

livre e viver. A impotência da autodestruição do eu eterno é o constante conflito

em sua essência refratária que resiste toda e qualquer influência, não se destrói.

Quando Kierkegaard afirma o desespero como um tipo de força latente no espí-

rito que, envolvendo o sentimento a partir de critérios de escolha levada às últi-

mas conseqüências, culmina no desesperar para superar a contradição. Atingindo

o limite supremo de etapas, o eu espiritual desperta à vida, afirmando as múlti-

plas possibilidades de realizações do ser humano, não somente como ser orgâni-

co, mas como ser espiritual:

Sócrates provara a imortalidade da alma pela impotência da doença da alma

(o pecado) em destruí-la, como a doença destrói o corpo. Pode-se demonstrar

a eternidade do homem pela impotência do desespero em destruir o eu, por

esta atroz contradição do desespero. Sem a eternidade em nós próprios não

poderíamos desesperar, mas caso ele pudesse destruir o eu, também não have-

ria desespero (1979, p. 201).

Entretanto, quando o pecado entra em discussão, Kierkegaard afirma que a

passagem do modo de vida estético para o ético representa etapas conscientes

que definem a passagem ao estado religioso. O malogro da vida ética constitui a

mais profunda contradição entre sentimento de pecado e arrependimento, for-

çando a passagem do modo de vida objetivo e racional à conduta subjetiva e

irracional do absurdo da fé.

NUNES, Inês Helena Madruga

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O absurdo da fé é a concessão infinita e a garantia de vida que o homem tem

sobre si mesmo. Não há homem que viva e não se desespere. Não há saída para o

desespero existencial a não ser pelo salto ao absurdo da fé, aceitando-o como

exigência que suprime a conduta de vida independente de qualquer norma, sim-

plesmente distingue que o desespero é uma forma de ansiedade do sentimento

de pecado que o reconduz a reconhecer sua existência espiritual e decide dar o

salto ao absurdo da fé, porque reconhece que se desespera não dos fatos contin-

gentes, mas de si mesmo. Verifica, em seu desespero, a contínua inquietação e

desarmonia espiritual: é o vazio não preenchido pelos prazeres e os deveres im-

postos à vida. A aceitação da vida espiritual é uma conversão que se dá como um

modo de recomeço aberto a todas as possibilidades.

O homem, por desconhecer-se, receia a adversidade exterior, que é, na reali-

dade, um receio inconsciente de si mesmo. A maior adversidade trava-se no esta-

do psicológico do homem. Da adversidade interior, surge o paradoxo do destino

do homem de construir-se a si mesmo, implicando a intensa experiência da con-

traposição entre incerteza objetiva e certeza subjetiva, culminando no paradoxo

do absurdo da fé! Na concepção geral do desespero o homem pode mascarar o

significado de sua existência revestindo-a com superficialidades, o que é conside-

rado roupagem exterior, ou seja, uma vivência objetivada que nega a certeza da fé

e o essencial, que é a infinitude de Deus que, segundo Kierkegaard são absoluta-

mente reais e incompreensíveis. Por isso, acreditar impõe transformação no modo

de percepção do homem, colocar de lado a razão.

O desespero orienta o homem ao irracional absurdo da fé como movimento

converso que potencializa a vida espiritual. Não ter consciência desse movimen-

to é, em outras palavras, não ter consciência da existência. Desespero, enfermida-

de do espírito, é preexistente. É estado inquietante de espírito e conflito dialético

permanente entre o finito e o infinito.

Conforme Kierkegaard, a dialética do eu desesperado se faz perceber até na

aparente tranquilidade. Estar calmo, afirma o autor, pode ser um sintoma de

desespero. Todos os homens sofrem dessa doença mortal, poucos o sabem, por-

que, no silêncio, no vazio de si mesmo, na recôndita solidão, é que o homem se

reencontra consigo. Não há analogia para descrever com exatidão os sintomas do

desespero do mesmo modo, não há cura imediata desse estado doentio do espí-

rito. Entretanto, o desespero é o meio pelo qual o homem é levado a reconhecer

sua infinita existência de ser humano e seu predestino espiritual como um contí-

nuo voltar-se a Deus. Nesse sentido, não dá para ignorar que o homem é real-

mente predestinado! O eu espiritual se desdobra e eleva-se na plena realização de

si através do binômio dialético. De acordo com o pensamento de Kierkegaard, é

precisamente a inconsciência desse destino infinito da vida, o maior entrave.

O homem se perde de si mesmo, até na aparente harmonia e paz, ali se encontra

o eu desesperado, porque o eu não se realiza na felicidade. Felicidade é o resulta-

do das condições físicas e psicológicas do homem e serve de refúgio para ocultar

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o desespero. Não há lugar mais seguro para o desespero do que a felicidade. Do

mesmo modo, paz e segurança servem de refúgio para a angústia!

O medo do desconhecido, a angústia, em outras palavras, é o medo de arris-

car, de tomar decisão entre múltiplas possibilidades. A apreensão é o excesso de

preocupação que impulsiona o homem a inventar artifícios e neles se refugiar.

Uma forma de fugir da realidade e dissimular o desespero que, neste caso, é o

medo do desconhecido, o risco de uma nova possibilidade que mais apavora o

homem. Trazer o eu radicado no desconhecido ao conhecimento da consciência

de si mesmo, faz-se necessário, segundo Kierkegaard, para que o homem possa

refletir sobre o nada, isto é, esvaziar-se de todos os artifícios. Adquirir consciên-

cia do eu infinito é, de certa forma, crer no que não vê. Na dialética do desespero,

a pior enfermidade é não sentir o próprio desespero, todavia, felicidade é supor-

tar o desespero para alcançar a cura do espírito. Portanto, o desespero serve como

regra para todo aquele que o suporta e reconhece sua origem:

A maior parte das pessoas vive sem grande consciência do seu destino espiri-

tual... e daí toda essa falsa despreocupação, essa falsa satisfação em viver, etc.,

etc., que é o próprio desespero. Mas aqueles que se dizem desesperados, em

regra gerais, uns, é porque tinham suficiente profundidade para tomar consci-

ência do seu destino espiritual, os outros, porque dolorosos sucessos ou vio-

lentas decisões os levaram a aperceber-se dela [...] o que se dizer da angustia

humana [...] existências malbaratadas! Mas só se desperdiça aquela que as ale-

grias e as tristezas da vida iludem a tal ponto que jamais atinge, como um

ganho decisivo para a eternidade, a consciência de ser um espírito, um eu, por

outras palavras, que jamais conseguem constatar ou sentir profundamente a

existência de Deus (KIERKEGAARD, 1979, p. 206).

As muitas experiências frustradas e pensamentos banais envolvem as pes-

soas de tal modo que descuram do ser interior, o eu espiritual! Desperdiçam a

vida real e inventam uma representação da vida. O modo representativo de

vida inventado pelo homem conduz ao engano. Viver a aparente vida exterior

em detrimento da interior é engano dos sentidos que perpassa à eternidade, ou

seja, não conciliar estado fisiológico e psicológico traz prejuízo ao estado espi-

ritual (mental).

Esse engano, afirma Kierkegaard, faz o homem andar em rebanho. Andar

em rebanho, em outras palavras, é ser comum na multidão e não refletir sobre

a própria existência, é afastar-se sempre mais de si mesmo. Reencontrar a vida

infinita é um esvaziar-se de si mesmo, é afastar-se do trivial das opiniões e, no

isolamento de si mesmo, no jardim individual, é possível refletir, é possível con-

quistar a si mesmo. No individual, na reflexão, o homem atinge o único fim que

tem validade de vida eterna. No esvaziar-se de si mesmo, no silêncio de si, o

pior segredo é desvelado: o desespero mascarado em felicidade! Eis aí a felici-

dade, quando manipulada, silencia a dialética do eu e esgota sua possibilidade

de realização.

NUNES, Inês Helena Madruga

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Viver na inconsciência do eu espiritual é impedir a dialética entre vida orgâ-

nica e a psicológica, é negar a possibilidade infinita da vida. Não havendo dialéti-

ca, não há identidade, consequentemente, não há equilíbrio entre ambos os esta-

dos, esgotando, assim, a possibilidade da liberdade do eu. Quando há equilíbrio

dialético, o eu faz a mediação. Quanto maior a consciência de si, tanto mais o eu

se realiza; quanto mais cresce a consciência do eu, mais cresce a vontade de ser.

A vontade cresce na mesma proporção do eu. Em um homem sem vontade, o eu

é inexistente, não há consciência de si, não há vontade de ser!

O eu é o resultado da síntese dialética entre estado orgânico e psicológico em

relação de equilíbrio. Da síntese de ambos, a permanente evolução da existência

do eu segue seu curso e afasta-se sempre mais do finito em direção ao infinito.

Visto que o eu em potência não constitui existência real, e não é senão o que será.

Na dialética do desespero, a síntese se dá a partir da luta entre os contrários, em

que o desespero se define e se constitui no eu real. Ao se definir, sintetiza a

contradição dialética entre o finito delimitado e o infinito ilimitado. Liberto da

contradição, o eu transcende ao infinito.

Certamente, transcender do finito ao infinito depende de conhecimento e da

vontade. A força da imaginação inspira ao homem o sentimento de querer conhe-

cer a si mesmo e ter vontade de refletir sobre si. A imaginação, diz Kierkegaard,

cria no homem o reflexo de infinito:

O que há de sentimento, conhecimento e vontade no homem depende em

última análise do poder da imaginação, isto é, da maneira segundo a qual todas

as faculdades se refletem: projetando-se na imaginação. Ela é a reflexão que

cria o infinito [...] a imaginação é reflexão; reproduz o eu e, reproduzindo-o,

cria o possível do eu; e a sua intensidade é o possível de intensidade do eu

(1979, p. 208).

A imaginação possibilita ao homem transcender ao infinito. Quanto mais

o sentimento se envolve na imaginação, mais o eu evapora-se até tornar-se

sensibilidade impessoal, sem vínculo com o indivíduo: assim, o sentimento

absorvido pela imaginação se inclina sempre mais ao infinito, sem perder as

características de autenticidade, em que o conhecimento se desenvolve para-

lelo à consciência.

Quanto mais o homem conhece, tanto mais o eu se conhece. Do mesmo

modo, a vontade é igual aventura. Conquanto, a vontade é em si mesma concreta

e abstrata, aberta a todas as possibilidades. Quanto mais a vontade transcende,

mais imanente fica. Portanto, a vontade é transcendente e imanente, e sua princi-

pal atividade é correr o risco de cada nova possibilidade do eu perder-se na von-

tade de querer, de conhecer e sentir.

Já no domínio religioso, o eu busca compreender o vazio do infinito. Só há

um caminho para chegar ao vazio do infinito: A fé! Quando mencionamos que o

desespero provém da mediação dialética do eu no conflito entre o finito e o

infinito, podemos perceber que a incompreensão sobre a origem da vida afasta

Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito

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sempre mais o homem de si mesmo. Espiritualmente nos castramos, porque a

estrutura originária está sempre presente, entretanto, o desequilíbrio entre o esta-

do orgânico e psicológico remete o homem à idéia de medo do desconhecido.

O medo de nova possibilidade faz o eu renunciar ser ele mesmo ou não ousar sê-

lo. Entretanto, Kierkegaard pensa que muitos não conseguem a autenticidade em

decorrência das influências dos artifícios que preenchem de tal modo suas vidas

que, nessa ladainha de ocupações se esquecem de si mesmos, distanciando-se

mais e mais de seu próprio ser. Ao afastarem-se de si, se sentem seguros em

assemelhar-se aos outros: é mais fácil ser uma imitação do que correr o risco de

se tornarem autênticos. Assim, o homem extravia-se e corrompe-se! Torna-se

uma ovelha perdida do aprisco da vida, perdida de si. Nessa circunstância,

o infinito já não é mais entrave; sem rumo o desespero oscila em qualquer

direção, isto é, o homem que não reconhece sua natureza espiritual, não discer-

ne sua realidade no mundo, não tem consciência de si. O desespero comenta

Kierkegaard, faz de tal homem um oscilante sem direção, sem regras de pru-

dência, sem entrave:

Se arrisco e me engano, seja! A vida castiga-me para me socorrer. Mas se nada

arriscar, quem me ajudará? Tanto mais que nada arriscando no sentido mais

lato (o que significa tomar consciência do eu) ganho ainda por cima todos os

bens deste mundo – e perco o meu eu

(1979, p. 211).

No corpo, o homem vive uma vida superficial, pode conquistar tudo que

deseja, mas por não reconhecer seu ser humano, vive um vazio existencial, e, no

excesso do egoísmo, constrói sua existência material em prejuízo da vida espiritu-

al. O possível e o necessário são dupla força contraditória em movimento cons-

tante de transformação. A realização do eu depende dessa relação oposta. Em

Kierkegaard, o desespero do possível ou a carência da necessidade, depende da

dialética de ambos. A função do possível é reter o finito e o infinito, limitando o

eu a uma relação. Se o possível repelir a necessidade, o eu precipita-se e perde-se

na necessidade. A necessidade indica as fronteiras internas, ou seja, o eu habita a

necessidade: para realizar-se se desloca da necessidade, ampliando o campo do

possível. Desse modo, o possível tudo abarca e o eu absorvido pela necessidade

arrisca a possibilidade de se realizar. Para haver intensidade de a possibilidade se

fazer real, o instante do possível deve mover-se numa rapidez tal que ao eu tudo

pareça possível: assim, atinge uma dimensão imaginária sem limite. O eu, como

necessidade, precisa do possível; portanto, a necessidade se unifica a possibilida-

de da realidade:

[...] a realidade não se une ao possível na necessidade, mas é esta última que na

realidade se une ao possível. Não é também por falta de força [...] que o eu se

extravia no possível. O que lhe falta, no fundo, é a força de obedecer, de se

submeter à necessidade inclusa no nosso eu, do que se pode chamar as nossas

fronteiras interiores

(KIERKEGAARD, 1979, p. 212).

NUNES, Inês Helena Madruga

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Não se trata, aqui, de defender o individualismo, mas o que o autor pondera

é o problema do modo como o homem pensa e refina a sensibilidade entre os

estado estético, ético e religioso. O mundo é um meio de apreensão, onde o

homem apreende sua existência. Ao tomar consciência de si, percebe que a ne-

cessidade de realizar-se como ser espiritual é uma luta entre multiplicidades e

possibilidades. Sem pretender alterar a condição da fragilidade da natureza hu-

mana, a intuição é o caminho para o reconhecimento concreto, a partir do qual,

o homem decide sobre suas escolhas e a própria identidade. A partir da intuição,

o homem chega à subjetividade da fé e se coloca diante de Deus.

A profundidade da vida espiritual diante da aflição da consciência, da culpa,

do pecado, é o vínculo da relação oposta entre o corpo e a alma. Nessa luta dos

opostos, o homem se desorienta, porém, o desespero sempre o reconduz à reali-

zação da plenitude da vida. Para Kierkegaard, o desespero é meio pelo qual o

homem rompe os limites da possibilidade, amplia sua imaginação para além da

razão e aflora ao sentimento de fé. A passagem da razão finita à infinita, ou seja,

o salto do racional ao irracional possibilita ao homem se autoconscientizar de sua

existência eterna. O eu espiritual livre avança, refletindo um imaginário de possi-

bilidades e age como um espelho que reflete o interior para o exterior. Refletindo

o ser oculto, reflete o homem real. Olhar somente no próprio possível, pensa

Kierkegaard, é semiverdadeiro. O homem deve abarcar-se, compreender-se como

finito e infinito. Desse conflito entre ser e não ser, o homem define-se e ultrapassa

sua existência pessoal, potencializando o sentimento de liberdade transcendente,

em que o espírito se ergue sem fronteira e perpassa a intuição subjetiva no intimo

da fé, na Revelação de Deus!

Quando Kierkegaard fala da Revelação de Deus, instaura-se um paradoxo

racionalmente incompreensível. O paradoxo da verdade subjetiva, a contradição

da vida entre o racional e irracional. A luta dos opostos, na qual a vida no antago-

nismo de forças contrárias se esforça para se realizar e alcançar seu estado pleno!

Existem verdades as quais precisamos compreender a partir do esforço pró-

prio. O em si da vida possui sentido subjetivo, é dimensão individual, na qual o

homem mantém relação consigo como possibilidade para si. A alma agita-se com

as incertezas e limites. Para superar a angústia do desespero e todo esse conflito

entre estado físico e mental, o homem deve encontrar força justaposta como um

meio de libertar-se das incertezas das múltiplas possibilidades de escolhas.

Podemos acrescentar os desvarios como um sentimento que tem sua origem

no desejo dividido entre nostalgia e melancolia. Nesse sentido, a persuasão do

pensamento do autor ao imaginar a angústia como uma possibilidade para en-

contrar esperança à vida. Partindo dessa convicção, Kierkegaard vê na fé um

meio que orienta à certeza irracional. Ter fé é assumir o risco de escolher querer ser,

aceitar as infinitas possibilidades de relação com o mundo; consigo mesmo e

com Deus.

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Nos três níveis de consciência, à existência estética, ética e religiosa, estão em

correlação com as duas zonas-limite: Ironia e humor! A ironia é a zona-limite

entre estética e ética; o humor, a zona-limite entre ética e religião. Os estados se

transformam, e, como num salto, o homem passa de um estado para outro. Não

há síntese, caso houvesse uma síntese dos estados, a existência humana deixaria

de ser, é o homem decide passar de um estado a outro.

Quando o possível se realiza, se desprende da necessidade, mas traz consigo

a angústia. Na angústia encontra-se toda a possibilidade de esperança da vida,

porque, o desejo da realização do possível, faz o eu perder o rumo de regresso a

si mesmo. O melancólico ao perseguir o possível da angústia, afasta-se sempre

mais de si mesmo. Sucumbindo em sua própria angústia, transvia-se por não

querer correr o risco de escolher uma possibilidade.

Esperar um possível, de igual modo, é desesperar. Assim, a espera traz em si

o desesperar. Por ex., se para Deus tudo é possível, significa dizer que, a qualquer

momento algo pode realizar-se. Parece uma expressão deslocada, mas para o

homem que crê é decisiva. Quando os possíveis humanos se esgotam, os possí-

veis da esperança de que para Deus tudo é possível se renovam. À vontade de

realização do homem permite o salto da fé. Porém, crer em algo abstrato, é crer

para compreender. Crer é transcender a própria razão, é transpor os limites da

razão e fazer do irracional um meio para alcançar um fim: Aceitar Deus através

do ato irracional da fé!

A liberdade espiritual, o supremo impossível humano é a luta entre racional

e irracional. A possibilidade é o ato que move o desesperado a renovar forças

para viver, sem esperança de vida, não há possibilidade de crer. Esse é o movi-

mento dialético da fé, um combate entre esperança e provável. O medo de aven-

turar-se a um perigo, cujo risco depende de diversos fatores. O que crê sabe que

corre risco, mas suprime o medo através da esperança. Aquele que espera, espera

o que não vê, e, para esperar o que não vê, precisa acreditar no possível. Ter

confiança de que o possível de Deus é presente na angústia, e, Ele pode sempre!

Essa é a saúde da fé, afirma Kierkegaard, uma fé saudável que resolve contradi-

ções. Assim, a certeza humana se desprende na angústia para encontrar em si a

existência infinita.

Para o homem determinista e fatalista há somente necessidade. Não há rela-

ção entre possível e necessidade. Formar a personalidade do eu espiritual é uma

alternativa que envolve inspiração e expiração para não asfixiar o eu. No caso do

fatalista, ao perder o eu, perde também Deus. Ter carência de Deus é ter carência

do eu. Para o fatalista, a necessidade está acima de Deus. Conforme o autor,

Deus é ausência de necessidade, como o fatalista cultua a necessidade, seu eu

espiritual é mudo, falta-lhe a dialética da fé. Orar é um exercício voltado para o

possível. Para orar é necessário um Deus Absoluto e um eu autêntico. O mover

da oração faz o eu nascer continuamente para vida espiritual e tomar consciência

de que para Deus tudo é possível.

NUNES, Inês Helena Madruga

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Conforme o exemplo do homem fatalista, se houvesse somente necessida-

de, a natureza humana seria sem linguagem, sem dialética. Na dialética da fé,

através da linguagem o homem se comunica com Deus pela oração. Necessida-

de, em outras palavras, é carência de compreensão espiritual. Para o que crê,

seu desespero se refugia no domínio da esperança. Nesse domínio, o desespero

é o desafio entre fraqueza e condensação, é um desespero mais qualificado, de

natureza dialética ético-religiosa, é a idéia de Deus elevando-se na imaginação

do homem.

A contradição dialética da fé relacionada à culpa do pecado perpassa do

psicológico à existência religiosa, uma idéia de desespero resignado, voltado a

Deus. A vida estética é uma soma de erros e desencontros, uma vida onde o

pecado é agregado. Uma relação estética da imaginação entre o bem e a verda-

de, em vez de uma orientação real para construir a própria vida, a identidade do

eu espiritual. O desespero do estético é suprimido pela consciência de estar

perante Deus. Entretanto, como não há dialética de fé, a existência estética é

uma impenetrável confusão. Em seu suplício, só Deus pode salvá-lo, contudo,

o estético ama tanto seu suplício que não quer livrar-se dele, em outras pala-

vras, está muito apegado ao que lhe traz conforto e felicidade. Não havendo

dialética de fé, só lhe resta o espinho na carne como sinal de que ele deve humi-

lhar-se e reconhecer seu ser espiritual e seu lugar natural de homem. Assim, o

estético imita outras pessoas, não reflete sobre sua existência, pensa ser al-

guém, quanto espiritualmente não existe!

As graduações da consciência do eu até o salto do finito ao infinito é um

processo de conscientização que move o homem a desenvolver em si os termos

dialéticos entre um salto a outro, são estados de consciências do ser humano, cuja

mediação é o próprio homem que faz. Quando esse eu humano perante Deus

adquire atributos infinitos, deixa de ser um eu mediado pelo homem para ser um

eu mediado por Deus. A mediação do eu é sempre o que tem diante de si. Por

ignorância, o ser estético eleva o pecado a um infinito de potência, considerando

Deus como que externo ao seu ser pensa que seu pecado jamais é contra Deus:

[...] o eu tem a idéia de Deus, mas isso não o impede de não querer o que Deus

quer, nem de desobedecer. Tampouco nem só por vezes se peca perante Deus

[...] o que transforma um pecado numa falha humana é a consciência de que o

culpado tem de estar perante Deus (KIERKEGAARD, 1979, p. 242).

O desesperado condena-se à proporção da consciência do eu, mas o eu con-

dena-se na mesma proporção da mediação infinita. Há uma reciprocidade entre o

eu finito e o Deus infinito. A ideia de reciprocidade conscientiza o eu de estar

perante Deus, fazendo-o concreto e individual. Desse modo, o egoísmo pagão

não pode ser qualificado como egoísmo cristão. O eu do pagão não tem consci-

ência de Deus, só tem como mediação o próprio humano. Sob o ponto de vista

infinito, Deus ao julgar o homem a partir da eternidade, sabe que o pagão perma-

Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito

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nece no erro por ignorância. Em certo sentido, estar sem Deus no mundo é

leviandade, é a expressão mais adequada para esse tipo de procedimento. A falta

de sentido de Deus traz consigo, a falta de sentido da vida. Não crer em Deus é

viver levianamente, um tipo de mediocridade entre o homem e sua dificuldade de

acreditar para compreender.

O pecado, é desobediência que nega a vida, definindo melhor, é estar em

desconformidade com o eterno. O pecado ganha força na fragilidade e fraqueza.

Depois, desespera-se da fragilidade-fraqueza e se potencializa sempre mais. Na

dualidade da vida humana o pecado é real e nos elos do infinito todas as formas

são agregadas. Crer é transcender na eternidade de Deus. Portanto, o contrário

de pecado é a fé. Tudo que não provém de fé é pecado.2

Portanto, o contrário do

pecado não é a desobediência, mas a falta de fé!

A contradição entre pecado e fé domina e transformar os conceitos éticos,

implica o absurdo e o paradoxo. O cristianismo, definido a partir do escândalo,

“pois é o escândalo que defende o cristianismo contra qualquer especulação”.

(KIERKEGAARD, 1979, p. 243). Se os homens se escandalizam com o cristia-

nismo é porque ele é elevado, não é mediação humana. Ao amputar tal escândalo

ao cristianismo, não podemos ignorar que o próprio Cristo adverte contra o es-

cândalo, sua possibilidade e necessidade. Se a possibilidade é necessária, ela deixa

de ser uma parte infinita e essencial, então, segundo Kierkegaard, “Cristo cai no

contra-senso humano” (1979, p. 246).

A fé por si só é uma realidade subjetiva. Ter humildade suficiente e cora-

gem para ousar acreditar, é uma tarefa que conduz o homem a crer no possível.

Sem coragem e humildade não há fé, só escândalo. Por isso, a expressão “crer”

significa escândalo para uns e loucura para outros. O escândalo é o parente

mais próximo da inveja, uma inveja que se volta contra o próprio ser. O cético,

por ex., pela mesquinhez, suprime a imaginação, fé é algo que jamais passa por

sua mente.

Portanto, para falar sobre fé, a origem do escândalo deve ser analisada como

admiração que se dissimula. Para o infeliz, sua admiração firma-se na inveja e

insinua extravagância. Do mesmo modo como a admiração e inveja é uma rela-

ção entre os homens, adoração e escândalo é o elo entre homem e Deus. O autor

ao se referir sobre o entendimento humano adverte para “não confundir o ouro

com um metal dourado”. Formas distorcidas de reflexões estragam o conheci-

mento. Colocar valor no que não há valor é dimensionar a mediocridade ou in-

correr aos excessos e a mingua do conhecimento. Quando alguém ousa ultrapas-

sar tal mediocridade, os sábios o declaram-no louco! O cristianismo “com um

passo de gigante para além desse nada a mais”, salta até o absurdo. É desse salto

absurdo que o escândalo se origina:

2

BÍBLIA, N.T. Romanos. Português. Bíblia Sagrada: Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. Cap. 14, vers. 23.

NUNES, Inês Helena Madruga

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Vê-se agora que extraordinária tolice se comete defendendo o cristianismo,

como se trai assim o restrito conhecimento do homem, e como essa tática,

ainda que inconsciente, tem, sub-repticiamente, partida ligada ao escândalo,

fazendo do cristianismo uma coisa tão lamentável, que por firme é necessário

advogar a sua causa para o salvar [...] advogar é desacreditar sempre

(KIERKEGAARD, 1979, p. 246).

O escândalo está sempre presente na definição do pecado. Um pagão reco-

nhece a natureza do pecado, mas para o cético, o pecado não existe. Na defini-

ção socrática, pecar é ignorar. O defeito de tal definição está em ignorar o

sentido e a origem do pecado, ou de outro modo, ainda que o pecado seja

ignorância, a partir do conhecimento cristão, pecar é necessidade, de certa for-

ma, o sentido é correto, há em seu significado uma ignorância original. Nada se

sabe de verdade sobre a origem do pecado. Se o pecado é uma ignorância, é

uma ignorância adquirida. Então, o pecado é radical, não na ignorância, mas no

mover que há na origem da existência, “no obscurecimento do nosso entendi-

mento”. Admitir esse defeito a partir da definição socrática reaparece a questão

se o homem possui ou não consciência deste obscurecer do conhecimento. Se

não há conhecimento do pecado, a consciência já havia sido obscurecida antes

mesmo do questionamento?

O problema se renova quando se pensa o contrário. Se “na imanência de

obscurecer a sua consciência, fosse consciente” (KIERKEGAARD, 1979,

p. 247), nesse caso, o pecado não tem sua origem no conhecimento, mas na

vontade. Evidencia-se assim, o problema da perspectiva relação sobre o con-

ceito do pecado. Nessas relações, a definição socrática não atinge a raiz do

pecado. Sócrates, considerado um moralista e o inventor da Ética, sua tendên-

cia intelectual o orienta para a ignorância, para o nada saber que, eticamente, é

outra coisa. Para Kierkegaard, Sócrates não significa a ignorância, ele parte

dela. Certamente, Sócrates não é um moralista cristão dogmático. Esse é o

motivo pelo qual ele não entra na raiz da questão, na antecedência da explica-

ção do pecado original. Sócrates não avança até a radical natureza do pecado,

significando, de certo modo, defeito de expressão. Entretanto, se o pecado pen-

sado por ele é ignorância, sua existência tende a desaparecer. Se crer é admiti-

lo, como Sócrates imagina fazer injustiça, se conhece o conceito justo? Se a

definição do conceito injusto está correta, o pecado não existe. Conforme a

regra cristã, partindo dos conceitos de justo e injusto, é precisamente o concei-

to da “doutrina do pecado” que define a radical diferença da natureza do peca-

do entre cristianismo e paganismo.

O cristão crê que há pecado, mas o pagão ou o homem natural não sabe o

que representa. Há diferença na natureza de ambas as concepções. O que faltou

na concepção socrática do pecado foi a exclusão da vontade e desejo. A intelectu-

alidade grega, extasiada com a felicidade, excessivamente estética e irônica, mali-

ciosamente pecadora para compreender que aquele que sabe o significado do

Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito

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conceito justiça, comete injustiça. Assim, a sabedoria grega dita intelectualidade,

mas desdenha do conhecimento. Por não fazer distinção entre saber e compreen-

der, sua discórdia é grotesca, escapa à possibilidade de compreensão.

A diferença entre as duas formas de compreender passa a ser a salvação da

miséria humana. Para Kierkegaard, a diferença socrática se distancia quando afir-

ma o conceito, mas não entende seu significado. Então, Sócrates tem razão em

dizer que fingir ser justo não é pecado, se não compreende, assim, não pode ser

imputado como pecado, portanto, pecar é ignorar! O defeito socrático evidencia-

se na ausência da qualidade dialética entre compreensão à ação. O cristianismo

parte da dialética, “embate com o pecado, mostra-o na verdade e atinge o concei-

to”, vai à raiz e aplica-lhe o dogma através do paradoxo.

A vida do espírito não tem paragem, tudo é atualidade. Se num dado mo-

mento, por ex., um homem reconhece o significado justo e não o pratica, o co-

nhecimento estanca, porém, o resíduo de tal conhecimento é absorvido pela von-

tade. A vontade determina a natureza interior do homem. A vontade do homem

é a sua fé.3

Mesmo que a vontade rejeite o conhecimento, o conflito entre vonta-

de e conhecer se renova e o conhecer de uma época se obscurece na outra.

A prática do conhecimento deve ser aplicada à apreensão, para que a passagem

do pensamento se realize.

Os conflitos instintivos tende a estancar a vontade, impedindo-a. Quando o

conhecimento e a vontade está em acordo, o conhecimento se obscurece com-

pletamente. O mútuo acordo entre ambos ratifica tudo que a vontade arranja.

Deste modo, muitos vivem insensíveis, obscurecendo seu juízo ético e religioso

que os induz a tomar decisões que até eles mesmos reprovam, desenvolvendo

um conhecimento estético e metafísico, que para o ético é superficialidade.

Compreender é a relação do homem consigo mesmo, mas crer é um exercí-

cio de fé, é relação do homem com o eterno. O conceito de pecado, a partir do

cristianismo, é de fácil compreensão, pois explica o significado da salvação huma-

na. Para o cristão, o pecado está na vontade e não no conhecimento, mas a cor-

rupção da vontade transpõe a consciência e deturpa o conhecimento. Com a

deturpação do conhecimento, para compreender a natureza do pecado, se faz

necessário à relação de Deus para instruir o homem sobre suas origens, porque,

o conhecer da filosofia moderna é um conhecer pagão. Para Kierkegaard, o de-

feito dos modernos foi escamotear o conhecimento socrático ao cristianismo.

Abranger a natureza do pecado, definindo-o a partir da ortodoxia é negação,

fraqueza, ignorância, etc. O conflito acontece entre o crer e o compreender.

A Revelação é um meio para ensinar ao homem decaído. A doutrina do pecado é

um dogma, sendo um dogma passa a ser um paradoxo. Fé e dogma mantêm entre

si um sustentáculo e defesa contra a sabedoria pagã. Quanto à ortodoxia, há um

equívoco dogmático e especulativo de que o pecado é uma afirmação da negação.

3

BÍBLIA, N.T. Mateus, Cap. 9, vers. 29.

NUNES, Inês Helena Madruga

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A duplicidade teológica da doutrina do pecado ligado ao arrependimento desvela

a negação da negação, ou seja, de duas negações surge uma afirmação.

De resto, o percurso da dialética entre o finito e infinito é a possibilidade de

ser do eu espiritual, remete ao princípio cristão de que o pecado é uma oposição,

um princípio não racional, um paradoxo no qual é necessário acreditar para com-

preender. Revelar a contradição no modo de compreender é uma primeira tenta-

tiva para decidir crer ou não. Não é difícil compreender algo que está relacionado

com a vontade do homem. Para compreender os paradoxos cristãos, o homem

estará entre os opostos fé e escândalo. Crer para compreender é um ato da von-

tade. A natureza do pecado se descreve como um desespero que move a vontade

do homem ético ao nível religioso, um processo subjetivo, um ato da consciência

de si.

Referências

BÍBLIA. Estudando a Palavra de Deus. São Paulo FTD; Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2002.

KIERKEGAARD, S. A. O desespero humano. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

VALLS, Á. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

Recebido em 10/07/2008

Aprovado em 10/09/2008

Kierkegaard: O itinerário dialético entre finito e infinito