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urbanóides

zander catta preta

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Atribuição – Uso Não-Comercial – Não a obras derivadas 2.0 Brasil

Você pode: copiar, distribuir, exibir e executar a obra sob as seguintes condições:

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Esta obra está protegida por licença da

foto capa – escultura de Vigeland Open Air Museumzander catta preta – arte capa e miolo

revisão – Gabriela Graça

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Agradecimentos

À Catar ina Botel ho Cat ta Preta que se reve-

la um anjo que me renova a esperança no ser humano. Se

não por mérito (a inda), então pela presença e possibi l idade.

Agradeço também à Mariana Blanc pela rev isão inicia l e pelo

apoio constante, Luciana A rraes que conseguiu transfor-

mar bits e by tes em átomos, car inho em rea l ização, Gabr iela

Graça que arduamente rev isou os inúmeros erros desse apren-

diz aqui, Lia A mâncio que me convenceu de que eu sou capaz

de fazer mais que caçar megatér ios e, f ina lmente, à comuni-

dade de amigos, leitores e “moradores” do sít io de comunidade

Mu ltiply (www.multiply.com) que, com cr ít icas, elogios ou sim-

ples presença, est imularam e impulsionaram essa modesta obra.

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SumárioFilosóficas

Pale blue eyes ...........................................................................................15Hoje tive um sonho ruim ...................................................................... 19O país dos covardes ............................................................................... 21Somos legião ......................................................................................... 23

InfânciaE assim se passaram sete anos ...............................................................27Jão com medo ........................................................................................ 33A menina que pulava os anos ................................................................ 35A moça dos dentes ................................................................................ 37O mistério do copo vazio ......................................................................39

Tipos solaresSunday morning ..................................................................................... 45Uma crônica de Marte e Luna ............................................................. 49Wouldn’t it be nice ................................................................................... 53The ghost of you ....................................................................................... 59I’m waiting for the day ............................................................................65Dois velhos bêbados .............................................................................. 71

Trinca de nerdsO sexo é o alento ...................................................................................79As funções da sarjeta ............................................................................. 85Dos problemas corporativos e das putas ................................................ 91Como ser inconspícuo em três lições ....................................................97

UrbanóidesSobreviventes da maratona .................................................................. 105De prêmios Nobel e sonhos em azul ................................................... 109Historinha ............................................................................................ 113Toes across the floor ................................................................................. 115The sky is a landfill .................................................................................119Skin and bones .......................................................................................123Rua Siqueira Campos, 143 ....................................................................125Uísque e chope .................................................................................... 129Ne me quite pas ......................................................................................133

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The murder mystery ............................................................................... 139Three imaginary boys ............................................................................. 143Horizonte roubado .............................................................................. 147That´s life ............................................................................................... 151You little fool .......................................................................................... 155Vernissage ............................................................................................161Sweet little sixteen ..................................................................................165Linhas tortas ........................................................................................171

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“(...)Quem me dera ouvir de alguém a voz humanaQue confessasse não um pecado, mas uma infâmia;Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó principes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?(...)“

Poema em linha Reta - Fernando Pessoa

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Filosóficas

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Pale blue eyes– pós Velvet Underground

Diziam que ele era o rapaz perfeito: inteligente, hábil, bonito, educa-do. Era obediente e levado, sabia instintivamente quando podia for-çar uma situação ou quando poderia deixar o destino cuidar da si-tuação. Era excelente na escola, notas à perfeição. Achava que tinha o mundo em suas mãos.

De fato tinha.

Um dia, encontrou um par de olhos azuis. Eram os primeiros olhos azuis que via. Pele branca, cabelo negro e olhos como bolas de gude. Encantou-se por eles e decidiu que queria acordar ao seu lado o resto de sua vida. Que queria ter filhos com esses olhos. Que envelheceriam juntos e ficariam vendo o tempo passar quando se aposentassem. Com-prariam um café em Paris. No primeiro piso o café, no segundo livros e doces. E isso era bom e certo.

Mas ele sabia que estava escrito que não ficariam juntos. Ela lhe passa-ria ao largo da vida. Nunca mais se lembraria do seu nome ou que sen-tava a uma carteira na segunda série. Até porque ele adotaria um outro nome para si quando chegasse à maioridade. Um nome mais curto que o da chamada, um apelido mais forte. Por sua vez, ela mal se lembra-ria do franzino de franjas que lembrava uma menina. E ele ainda usa-

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va um nome curto. Não forte, nem feroz. Apenas infantil, um apeli-do de criança.

E ele tinha lido o livro de sua própria vida várias vezes.

Numa noite acordou, vagou pela sala vazia e sentou-se no sofá. Acen-deu um abajur e começou a ler um gibi de terror qualquer. Teve um pouco de medo de andar descalço de volta para a cama: “A Mão vai me pegar!” diria duas semanas mais tarde para a mãe que lhe proibiria café, açúcar e gibis de terror.

“Não compro mais gibi de terror para você. Super-heróis pode! Môni-ca também!” “Mônica é de menina, mãe!” “E aquele de dinossauros?” “Esse é legal! Quero o do Tio Patinhas também!” “Tá bem!”

Mas esse diálogo se daria apenas duas semanas depois de sua primeira virada. Leu o gibi de cabo a rabo duas vezes e só conseguiu pregar os olhos quando o sol raiava.

Antes de amanhecer decidiu.

“Não quero ganhar a vida. Vou ser ganho por ela.”

Sempre sabia o que os outros iriam dizer, advinhava o que lhes encan-taria mais, sabia que aos onze trocaria de escola, aos dezessete entraria numa faculdade, aos vinte e cinco terminaria o seu mestrado, aos trin-ta dominaria o mundo, aos noventa morreria odiado, sem filhos, sem legado mas imprimiria a sua marca indelével na história. Cem anos de-pois de sua morte, a humanidade encolheria para um sexto mas teria sua expectativa de vida aumentada em quatro vezes. Teríamos Lua e Marte

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colonizados, andaríamos em carros voadores e trabalharíamos três horas por dia apertando botões. Mas antes passaríamos por sua ditadura que expurgaria as fronteiras e as liberdades. Seria um senhor terrível e po-deroso nos sessenta anos de seu reinado mundial.

“Não quero ser rei. Quero ser um pai.” Falou para a sombra que o ze-lava do umbral da porta.

Ela fechou os livros que carregava ao mesmo tempo em que ele se calava.

“Teu sangue herdará o mundo de uma forma que poucos jamais con-seguiram. Serás um deus entre os deuses, uma lenda entre as lendas. O maior dos homens.” Disse a sombra.

Decidiu que não queria o mundo mesmo. Os olhos azuis valiam mais.

Foi para a escola, olhando com cuidado para os cantos escuros do ca-minho para ver se A Mão não aparecia para pegar a sua perna.

“Você não vai comer mais açúcar! Que é isso! Menino dessa idade vi-rando a noite!”

Não deu bola para a vó que o levava. Parou na banca, comprou figuri-nhas. Dividiu em dois pacotes. Uma para as repetidas e a outra com as que não tinha colado no álbum, entregou para a vó.

“Tó!”

Esperaram o portão abrir e entrou para as aulas. Sabia o que a profes-sora iria dizer antes mesmo de vê-la. Encontrou o Capitão Asa cantan-

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do Sideral e guardou na memória a letra da música. Subiu para a sala e sentou-se atrás dos olhos azuis que nem por relance o fitavam.

Ao chegar em casa recebeu a notícia que iriam se mudar do Méier no meio do ano. Ele teria de sair da escola e iriam para Copacabana.

Num átimo o seu mundo caiu. Tudo aquilo que tinha lido no livro de sua vida, todos os planos futuros, a certeza das coisas que ocorreriam, não serviria mais de nada e agora via, ainda que desmanchando no ar, os restos dos fios que ligavam suas mãos e pés ao nada. Ainda era uma marionete do destino, mas não sabia mais qual o seu papel na peça.

Chorou um pouquinho.

“Não quero ir para a outra escola.” “Mas lá tem praia, dá para catar ta-tuí e você gosta tanto.” “Quero ficar na vila com as amendoeiras e a pipa e o jogo de bolinhas de gude.” “A escola de lá é melhor.” “Eu que-ro essa aqui!” “Não tem jeito, filhinho.”

Chorou mais um bocado.

As férias o fizeram esquecer as aulas e mudou-se no meio de julho. Ao entrar na nova escola não sabia o que a professora lhe diria mas encon-trou um par de olhos verdes sentados na segunda fila.

Sorriu por fim.

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Hoje tive um sonho ruim

Achei que não via mais caminhos à minha frente, que não havia mais motivos de caminhar. Queria me entregar ao tempo, envelher cem anos por hora, me tornar pó antes do meu tempo.

Ser passado, nem presente nem futuro.

Queria que todos me esquecessem, os bancos, os cobradores, a família, os amigos, os inimigos… Queria me tornar uma coluna, dórica ou jôni-ca, vertebral ou não… apenas servir de decoração à paisagem da vida.

E aí você me veio.

Aliás, nessas horas de tristeza, de verdades absolutas, quando o uni-verso resolve mostrar ao homem o quão pequeno ele é, nessas horas em que o desespero se senta na cadeira atrás de você, quando as cores per-dem intensidade e o gris parece atraente, você vem, sem vir, aparece, sem se mostrar e abre as janelas da minha manhã mal dormida.

Quase como se cantasse um blues, eu resolvo escrever por ti, apenas por ti. Pequena, dos cabelos descacheados. Você é a minha pequena musa, é o meu rumo de cada manhã, as outras pessoas da minha vida são só um complemento da minha rotina. E tenho a certeza que acordarei

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amanhã, ainda triste, pois a maldade dos adultos ainda dói o meu co-ração de criança, mas certo que viverei o dia.

Ainda sou um garoto aprendendo a usar os óculos…

Queria ter aprendido nesses trinta e poucos anos a ser um homem me-lhor e maior. Talvez você me ensine isso.

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O país dos covardes

Não abro mais a minha porta sem olhar pela câmera, falar pelo interfo-ne e pedir RG e CPF. Não olho as pessoas na minha rua, no meu pré-dio, sequer encaro meu filho adolescente. Não compro uma arma por-que ela pode se voltar contra mim. Não ligo para a polícia porque pos-so “me sujar com o movimento”. Fico amigo dos bandidos para que eles não me batam muito.

Não voto. Não dou esmola. Não ajudo. Não ligo, nem retorno as liga-ções. Não namoro mais. Não trepo. Não saio. Não peço pizza, DVDs, água ou comida. Sou um escravo do meu medo. E pior, não estou só.

Que tipo de humano me torno quando opto por morar perto dos meus iguais, mas distante do meu próximo?

Que tipo de vida eu pretendo ter, que tipo de cidade eu quero para mim?

Isto era para ser um texto curto sobre a revolta que eu sinto, de como nos transformamos em números, deixamos de ser pessoas para sermos coisificados, mas hoje, já não sei se me importo mais.

Todas as vezes que tentei fazer algo diferente e achava que era digno e justo, ganhei a alcunha de otário. Me sentia um estranho, alienígena,

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um estrangeiro no meu próprio país. Se defendo o que é justo, me cha-mam de sonhador, se brigo pelo que é certo, me chamam de baguncei-ro, se cobro de quem tem de tomar atitudes, me mandam calar. Eis a expressão de quem se instala no poder, no poder de fazer calar.

Mas ainda tenho um sonho: não sou o único aqui que acha que esse chão é para mim e meus filhos e os filhos destes; que acha que a me-lhor forma de viver é em cooperação com os outros, sem me aprovei-tar das fraquezas alheias; que existem outros como eu e que esses que me mandam calar são apenas invasores, eles alienígenas de um passa-do que deveria já ter morrido.

Mas creio que a minha nação é de covardes.

Covardes porque não berram, como berram esses fanfarrões; covardes porque não lutam, não matam, como fazem esses assassinos, bárbaros; covardes porque não cobram, com medo.

Creio que sou mais um desses.

Nas lendas que aprendi a gostar e escutava desde pequeno, sempre havia alguém que vestia as roupas de guerra de seu povo e lutava pelos choros mudos, pelos gritos calados, pelas liberdades básicas negadas. E a esse chamávamos de herói. Mas somos adultos, e sabemos que heróis não existem, a Terra dos Bravos é uma bazófia. Que faremos então? Não sou herói, nem o seu bardo, nem vou vestir as armas de quem me oprime.

Só estou cansado de ter medo.

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Somos legião

Eu sou de uma força de resistênca de poucos (talvez de apenas um). Sou de uma cepa que se recusa a admitir que somos apenas bundas, risos, pratos rasos, suor, números e dívidas em bancos ou cartões de crédito.

Acho que sou mais que minha refeição diária, que minha luta eter-na em sobreviver e garantir que minha linhagem permaneça, mais que um propagador de um gene.

Penso que sou maior que os meus atos, menor que minhas consequên-cias, tão grande quanto o meu querer.

Mas o cansaço me drena o querer, sobreviver é mais difícil que nos meus sonhos, minha linhagem pode me trair, negando minhas essências, e os números que resumem minha alma, cada vez mais se avermelham.

Então, como cidadão escarlate, quero me divorciar do casamento com o estado. Pois este não me quer, e como amante não compreendido, quero achar um novo parceiro.

Quero querer mais, me livrar do desejo do sono e do descanso da mente.

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ilustração:

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Infância

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E assim se passaram sete anos

“Sobe que tem recado para você!”

Subi as escadas correndo do subsolo onde tomava um café expresso, no esquema 0800 da Chefia, no restaurante japonês até a sobreloja onde trabalhava no Bureau. Estava na minha hora de almoço. Evento por si só bem raro dada a natureza caótica e feroz do meu antigo emprego.

“Tua mulher ligou, disse que está com quatro centímetros de dilatação e a médica já a encaminhou para o hospital.” “Ela está no consultório? Já pegou um táxi? O que mais ela disse?” “Ainda está no consultório, mas disse para você ficar tranqüilo, ela está bem e indo para a maternidade.”

Desci pro subsolo, avisei ao chefe que chegara a hora da Mãe pocar a Catarina. Parti, correndo, para a Avenida Rio Branco e peguei o pri-meiro táxi que passava. Besteira minha. Melhor ter pego o metrô. Eu saltaria a quatro quadras do consultório e a doze do hospital.

Toca o celular (emprestado, é claro! Celular era coisa cara. Aliás, ainda é!).

“Cheguei no hospital, vou para o quarto…” Interrompo-a. “Me espe-re aí! Não ouse subir sem mim.” “Não, mané! Passa em casa e pega as coisas da Catarina. Trouxe algumas roupas tuas já esperando a inter-

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nação, mas deixei as dela lá.” “Ok. Péra! Ok não! Vou para aí. O negó-cio deve demorar um bocado, então peço à minha mãe para pegar as bolsas. Além disso, é ela quem vai ver o parto mesmo. Você sabe que eu desmaio nessas horas…” “É. Eu sei. Então vem prá cá que a Médi-ca está ‘dando entrada’ aqui.” “Ok, ok e ok.”

O carro se move com a letargia típica de uma quarta-feira, meio-dia, no centro do Rio de Janeiro. Parece que nunca vai sair da… Opa! ga-nhamos o Aterro do Flamengo e partimos para Botafogo. Puta que pariu! Botafogo engarrafa sempre. Que merda! Não vai dar tempo! que bosta… Opa! Chegamos na Mena Barreto! Agora é só um pulo.

Pago. Saio. Desço. Encontro.

“OI!!! VOCÊ TÁ LEGAL?” “Calma. Tô bem sim.” “E as contra-ções?” “Eu achava que eram gases. Tá bem fraquinho mesmo.” Daí, foi internação. Banho. Limpeza interna. Eca! Minha mãe chega. Combi-namos todos no quarto que a Mãe iria ver o parto, que eu não iria. Que estava certo e tal. Chega a enfermeira: “Está pronta, Mãe?” Referiu-se à que iria parir, não à que iria acompanhar. “Tô sim. Vamos.” “Está pronto, Pai? Você tem de vestir a roupa.”

Pois é. Assim como as mulheres têm um firmware instalado que as fa-zem saber tudo o que se relaciona a bebês no momento que eles nas-cem, algo em mim brotou. Algo inédito, coisa que nunca havia sentido antes. Acho que foi coragem. Ou burrice, dá na mesma.

“Tô sim. Vamos.”

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Mãe e a Mãe Futura se olham. Não senti pingo de confian-ça vindo desses olhares. Com a coragem (ou privação temporá-ria dos sentidos) que recém recebera, parti para A Roupa Verde e A Máscara. Roupa Verde! Máscara! YEAH!

Daí rola uma espera. Médica mede dilatação. Espera mais um pouco. Mede de novo. Um “é, acho que já dá” seguido de um “dá a injeção an-tes”. Injeção? É, injeção. Ok, ok, ok, ok. Não vou desmaiar.

Não era injeção de verdade. Era uma agulhinha de nada, coisinha à toa.

“É só isso?” “Não. Essa é só para preparar para a peridural.” “Ah! bom.”

Quando o Anestesista saca o trabuco… Péra lá! Você não leu direito. Era um TRABUCO! Se fosse uma pica, seria o Long Dong Silver. Quando o Anestesista saca o trabuco, eu começo a ver o mundo girar. O Pediatra, que sabiamente se posicionara a meu lado, me dá um “abraço” de apoio. E eu NÃO desabo! U-hú! Deixa eu sair daqui correndo!

“Sabe que a maioria dos pais sempre desmaia quando a mulher toma a peridural?” “Verdade?” “Não. Mas quis apenas te consolar um pouco.” “Mesmo que um pai desmaie, não dá muita dor de cabeça aos médicos, né?” “Nem. Só teve uma vez que um cara caiu na mesa de instrumen-tos e se cortou todo. Mas foi só uma vez.”

Nota mental: ficar LONGE da mesa de instrumentos. Como assim ins-trumentos. Burro! Vão cortar a Mãe toda e depois costurar de volta. Eca!

Bom, Mãe não pode mais ficar de pé mas não tem dilatação suficiente. Médica me expulsa do quarto de espera e fecha a porta.

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“Acho que estão amarrando um pedaço de ferro no pé da cama e mijan-do na porta enquanto acendem umas velas no corpo.” “Hein?” “Nada, deixa. Tô uma pilha.” “Você fuma?” “Não.” “Pena.”

Toda a equipe médica fumava. E estavam vendo novela. E um deles dormia. Filhos da puta. Sem consideração. Sem empatia. Ainda me davam tapinhas nas costas. Parecia que eu era um estagiário ou uma forma ainda mais baixa de vida.

Pronto. Tava na hora. Mesa de operações, ou de parto, ou de eutaná-sia. Não sei. Tudo igual nessa hora. A mãe começa a fazer força. Muita força. E berra. Mais que o normal. Menos que a vez que eu a deixei es-perando umas seis horas em casa enquanto fui tomar um pileque com o pessoal do trabalho. Menos ainda que quando eu gastei uns 500 dóla-res em figurinhas de Magic, the Gathering, coleção The Dark, esgotada, uma caixa fechada. Mas ainda berrava muito. O médico faz um “rolo de massa” com o braço esquerdo e pressiona dos peitos para as pernas, como se espremesse a criança para fora. Mãe berra ainda mais e a ca-beça começa a aparecer. Já era Catarina.

Dez minutos (se tudo isso) depois, chega a baixinha por inteiro. Pe-quena, imunda. Nojenta mesmo. Mas linda. Nem enrugada estava, mas ainda parecia um joelho. O joelho mais amado da face da Terra. Me a colocam no colo. Ela nem chora (já haviam limpado-a com um aspirador de melecas placentais). Opa. O que acontece atrás de mim? Outro parto? ah! é a placenta. Puta que pariu! É outro parto… Bom… ao menos o pessoal pode puxar com menos delicadeza.

“Pai, deixa eu ver… Você contou os dedos? ela tem dez dedos?” “Claro pô! Você acha que eu sou o Homer Simpson? (hoje, mais careca, gor-

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do, burro e atolado, eu penso se isso não foi uma profecia) Tá com dez dedos sim! Olha só.. é linda… e nem é um joelho.”

Levamos a baixinha para a estufa, ou caixão da Branca de Neve, como eu prefiro contar à ela. Eu e o Pediatra que faz o teste do pezinho.

“Você tem filhos?” “Quatro.” “E você viu o parto de todos eles?” “Ló-gico, né? Economizei uma grana… hahaha” “Mas não enjoou no quar-to?” “Não. Chorei em todos eles.”

Da estufa, os avós, do outro lado do vidro davam adeus.

Fomos pro quarto. Mãe dormiu. Eu acho que chorei um pouco. Mas guar-dei a lembrança desse dia, bem calada no peito. Abro só um pouquinho, quando chega essa data. Ou quando acho que nunca fiz nada direito.

Catarina, não sei se você um dia lerá isso, mas agora faz sete anos que eu me senti uma pessoa melhor, maior e mais humana. Você agora tem os dentes moles, caindo aos poucos, e outros tomarão o lugar deles (es-pero!). Nesse quarto de Saturno, você saiu da infância-bebê e vai co-meçar, cada vez mais rápido, a virar gente grande. Vai ser uma pré-adolescente, uma adolescente (que invenções bestas da nossa socieda-de), uma jovem adulta e uma mulher. Mas não deixará nunca de ser o bebê que eu coloquei no colo, nos primeiros momentos de sua vida.

E eu te amo.

Beijos do pai (que não desmaiou!!)

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Jão com medo

Jão tinha muitos medos, eram tantos que dava para fazer uma coleção deles. Uns grandes, outros pequenos, uns escuros, outros claros, uns azuis, outros cinza. Tinha tantos que tinha medo de ter medo e assim vivia escondido dentro dele mesmo, sem vontade de sair de seu peque-no mundo medroso.

Um dia, um medo pequeno, pequenino mesmo, conseguiu passar por entre os poros da casca de ovo de Jão e ficou à espreita. Quando Jão passou em frente, ele pulou e disse: “Bu!”

Jão, é claro, se apavorou e ficou pasmo, apalermado mesmo, defrontado com um medinho à toa desses. “Como pode isso? Eu sou maior e mais forte e mais esperto e mais bonito. Não é para ter tanto medo assim!”

Decidido, Jão resolveu deixar a cara de bobo apavorado em casa e saiu com uma coragem nova. Quer dizer, uma coragem meio usada que en-contrara numa gaveta do quarto. Mas servia.

Mal botou o pé fora da sua caixa de fósforos, se assustou novamente. O medinho chamou uma turma grande, uns cinco ou seis, e estava lá es-perando uma bola chegar. Sem bola, não tem jogo.

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Jão ficou atônito. De pé, de frente, encarando meia dúzia de pequenos medos, mais ou menos da altura de Jão. Tão rotos e encardidos e espe-rando uma bola qualquer que nunca chegava.

Um medo, maior que os outros, passou em frente e perguntou: “Quer jogar conosco?” Jão, sem pestanejar, disse: “Não sei jogar!” E eles: “A gente ensina!”

De bola em bola (que afinal chegou), de pé em pé, Jão ficou tão roto e encardido como os outros medos (pequenos, grandes) e teve muito medo de si mesmo. Voltou para a sua concha fechada e ficou esperan-do os medos, o tempo, a vida passar.

Já velho, ele põe o pé para fora. Os medos pequenos cresceram e nem estavam mais rotos e encardidos, até gravata igual a de Jão usavam e ti-nham os seus pequenos medos com quem andavam de mãos dadas.

E estes ex-medinhos andavam em carros, com suas janelas fechadas, com medo de falar com os medinhos que pediam dinheiro em sinais, ou que botavam navalhas nos pescoços ou que jogavam bolinhas de tê-nis pro ar ou que carregavam medos ainda menores nos colos, peque-nos medos que geravam outros…

Jão havia feito isso antes… de tanto ter medo, não quis arriscar em viver.

E os medinhos que jogaram bola com Jão agora eram outros Jãos, cada um em sua forma e jeito. Jão sentou no chão da rua, perto de outro que fedia e chorou porque sempre foi Jão Com Medo, nunca se deixou ser Jão Sem Medo, Jão Valente ou mesmo Jão Gente.

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A menina que pulava os anos

Catarina era uma menina nos seus anos. Nem mais velha, nem mais moça. Ou melhor, às vezes era mais velha, ou mais moça.

Ela pulava os anos.

Tinha 4 ou 6, 3 ou 5, 1 ou 9, 5 ou 8, ninguém nunca sabia ao certo. Todo ano era um ano novo, mas novo mesmo. Às vezes nem ano era, basta-va ser um aniversário.

Não é que ela não soubesse contar, mas dessa forma era mais divertido e ela ficava maior ou menor quando pulava os seus anos para mais ou para menos. Velha, moça, criança, bebê, nem uma nem outra.

Brincava com os anos e com as horas também. Para ela, entrar no colé-gio era como sair; na hora de brincar, estudo; na hora de estudar, lan-che e no lanche, papel e lápis, elástico e corda, bola e areia.

Tudo em volta de Catarina também a acompanhava nessa brincadeira esquisita. O pintinho que ganhou, virou ovo e depois galinha e, de re-pente, um dinossauro de penas que saiu voando pela janela.

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Os colegas de amarelinha envelheciam a olhos vistos, casavam-se, ti-nham filhos e filhas e seus filhos tornavam-se pais e avós, continuando sempre crianças. Criança-adulto, criança-pai-e-mãe, criança-criança.

As horas do dia brincavam com ela, sempre 12, ou 24 ou 36. Às vezes 6, 20 ou 3. De 3 em 3 horas, o remédio que tomava quando estava boa, e cuspia quando estava doente. Ninguém entendia bem, mas ela se jo-gava assim, ficando confuso e divertido ao mesmo tempo com os anos, as horas e as eras pulando à sua volta.

Mas teve um dia (manhã, tarde ou noite, sei lá!) que tudo ficou muito mais estranho. Ela ficou grande e pequena, velha e nova e seus amigos de tempos não mais a reconheciam.

Não era mais menina, criança. Mas não era aduta, nem moça-mulher. Era isso tudo e nenhuma das coisas. Os anos já não pulavam em volta dela e ela não queria brincar mais com eles. Era já uma mocinha. De-cidiu ser assim daqui por diante.

Só que os anos, as horas e os minutos, acostumados a ouvir a voz agu-da da menina, não reconheceram a mulher-moça que estava a lhes fa-lar. Não a escutavam mais.

E o tempo passou a andar como anda para todos nós, tomando dela o que sempre foi seu. Só a memória de Catarina é que pulava os anos, de bebê a mulher, de filha a mãe.

Tempos depois, seus netos bricariam com os dinossauros e as netas, en-tre as estrelas.

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A moça dos dentes

Catarina me veio com mais essa. Disse que a Fada dos Dentes é muito pão dura, muquirana mesmo. E um tanto quanto distraída.

Botou um dente debaixo do travesseiro, como manda a tradição dos fil-mes, seriados e desenhos animados norte-americanos, e foi dormir.

Quando acordou, encontrou lá o dente, intacto. Meio que decepciona-da, ligou a televisão, comeu o café da manhã, se arrastou para fazer um xixi, viu mais televisão, brincou com as bonecas e se lembrou do dever de casa 3 minutos antes de sair para a aula de inglês.

Chegou da aula de inglês, fez o dever (os dois que estava devendo, na verdade) se arrumou para a escola e foi ter mais aulas.

No recreio, foi comprar um Porcalitos® (Luis Eduardo Ricon®2004) e encontrou uma moeda de cinqüenta centavos na sua carteira. Ficou fe-liz, é claro, e comprou duas balas a mais com a moça dos acepipes. Mas matutou bastante sobre o ocorrido.

Quando caiu o outro dente dela, correu para a Mãe para mostrá-lo.

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“Mãe, caiu mais um.” “O que você vai pedir para a Fada dos Dentes, Catarina?” “Não é Fada, mãe. Fada é rica e essa moça dos dentes me deu só cinqüenta centavos.”

A Mãe ficou um pouco envergonhada, pois o mês tinha sido aperta-do e mesmo que não fosse, não fazem moedas de dez reais, né? Mas emendou rápido: “Então, o que você vai pedir para a Moça dos Den-tes?” “Vou pedir para ser mais esperta! E no próximo para continuar sendo feliz!”

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O mistério do copo vazio

“Pai, como se faz para esvaziar um copo?”

Catarina inventando novamente… Tá certo que está na idade da razão mas isso não faz muito sentido pra ela. Vocês já sabem que ela pula os anos, né? Mas ela me veio como se tirasse as idéias da cartola, do nada mesmo. Não parecia ter pulado ano algum.

“Anda Pai… como se faz para esvaziar um copo?” “Uai, Catarina, o copo aí tá vazio.” “Tá não pai. Toda vez que coloco água, ele enche de água; se eu coloco suco, ele enche de suco; e se eu tomo o suco ou a água, ele se enche de ar. Como se esvazia um copo?”

Eu poderia explicar a ela que é só colocar numa câmara de vácuo e… entendi que ela estava falando de outra coisa. Não tinha nada a ver com copo, suco ou água. Fiquei na dúvida se ela tinha pulado muitos anos de uma vez só ou, pior, se era um extra-terrestre que tinha tomado o corpo da baixinha, com planos de dominação mundial.

Por vezes vinha um ou outro tentar uma coisa dessas. Não dava muito certo porque eles não têm um extenso e vasto conhecimento de Bone-cas Barbie® e desenhos animados como toda criança na idade de Cata-rina tem de ter. Mas eles poderiam estar tentando novamente né?

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“Catarina, é você mesmo que está aí?” “Claro, né Pai. Você acha que é quem? Um marciano-japonês ou um inca-venusiano? Como se esva-zia um copo, Pai?”

Eu peguei o copo. Olhei para dentro. E só tinha ar. Tentei assoprar e nada. Botei de cabeça para baixo e nada.

“Desisto Catarina.” “Então vem cá que eu vou te ensinar.”

Ela colocou o copo “vazio” na pia e deixou a água enchê-lo até a boca. Até entornou um pouco. Mas tavam lá um copo, a água do copo, uma pia molhada, uma Catarina com um sorriso maroto e um Pai com cara de bobo.

“Cacá… não entendi.” “Pai. Taí! Será que você não vê? O copo nun-ca tá vazio. Não dá para esvaziar o copo. Só tem de encher ele com uma outra coisa. Se ar não tem gosto, vamos encher de mate, sorve-te e chocolate. E o doce e o mate tiram o ar sem gosto de dentro dele. É tão fácil, papai…”

A danada tem o dom de adivinhar o que a gente sente, né?

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Tipos solares

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Sunday morning– pós Velvet Underground

Chegara em casa às duas da madrugada, passando as chaves na porta-ria com cuidado para não acordar o porteiro. Não queria que fosse des-coberto assim, sorrindo à toa, como se estivesse feliz ou coisa parecida. Mas sabia que estava com uma cara de moleque que quebrou vidraça ou que ganhou bola nova ou que tirou palito premiado no picolé.

Estava com um sorriso tal que engoliria um sol.

Entrou no elevador. Olhou no espelho. Viu um cara diferente do que ti-nha deixado ali, no reflexo. A barriga ainda era flácida, mesmo que a contraísse ainda que involuntariamente. Os cabelos já eram ralos na ca-beça, entradas fundas. O que era grisalho antes, nas têmporas, era qua-se branco agora. Mas ainda e tão somente nas têmporas. A barbicha bem cuidada não tinha pelo branco. Aliás. Tinha sim. Mas ele os pinçava.

E o sorriso ofuscava quaisquer outros defeitos que tivesse.

Apertou o nono andar. Subia como um cágado manco, andar a andar. Encostou na parede do espelho e tinha em si uma certeza, uma firmeza de caráter que nunca encontrara antes. Olhava os andares a passar um a um, contando os segundos para chegar em casa. Playground, terceiro

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andar, quarto andar. Mmmm vontade de mijar. Quinto, sexto. Chega logo, cacete. Sétimo, oitavo. Anda! Anda! Nono!

Abriu correndo a porta, correu pro novecentos e onze. Puxou a chave no caminho e selecionou a certa insistivamente. “Merda! Não é mijo! O corvo tá bicando a cueca!” Abriu a porta de sopetão e se jogou no ba-nheiro com o caminho ainda em breu.

Aliviado, fechou a porta de casa, acendeu a luz da sala. Diminuiu o brilho no dimmer. Pousou o celular no carregador, em frente ao compu-tador. Ligou o monitor e viu as mensagens que recebera na noite. Cen-tenas de mulheres deixavam recados! Não, milhares! Duas!

Fechou o programa de mensagens instantâneas. Verificou as descargas de arquivos. Foi à cozinha. Preparou um sanduíche de feijão com ge-léia de morango e shoyu e sentiu falta do queijo parmesão ralado. Sen-tou no micro para ler emails e sentiu que iria se aborrecer. Nada estra-garia o seu sentimento agora. Encarou os emails e confirmou que, se fosse em um outo momento, talvez umas duas semanas atrás, surtaria e pegaria o celular para ligar para pessoas que não queriam mais ser li-gadas a ele. Assentiu e consentiu com o desejo alheio e deixou escapar singelamente: “Vaca!”

Navegou um pouco na internet, descobriu sensacionais sites inúteis, desprovidos de qualquer informação relevante. Abriu o tradicional site de putaria e não ficou animado a descer qualquer um dos vídeos ama-dores que lá estavam.

Acabou com o sanduíche e se perguntava por que comia aquela merda todas as noites. Deveria variar de vez em quando. Trocar a geléia por

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mostarda e o feijão por lentilhas. Achou que não era boa idéia. Já tinha problemas suficientes com gases e flatulência. Mas toparia uma pizza de alho e óleo. Fazia tempo que não comia em respeito às pessoas que dividiam o mesmo ambiente que ele.

Ligou na Discovery que anunciava um documentário sobre o sistema solar. Riu baixinho para si mesmo e colocou um DVD. Faziam oito meses que não assistia Manhattan novamente e achou que estava mais que na hora de revê-lo.

Ao acabar, se pegou choramingando mas ainda com aquele diabo de sorriso na cara. “Porra! Vou ser sacaneado se sair na rua assim ama-nhã!” Levantou, tirou o DVD e colocou um CD do Suede bem baixi-nho. Cantou Trash para si mesmo com lágrimas nos olhos e resolveu amanhecer. Já eram dez para as seis, né? Já tava de bom tamanho!

Abriu a janela e se espreguiçou. Sabia que ele seria um bom doze de setembro.

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Uma crônica de Marte e Luna

A menina estava disponível e ele também. Já se conheciam de outros carnavais e já fizeram aquele caminho outras vezes. A bem da verdade, eram outros tempos e outras intenções. Hoje, eles eram adultos: expe-rimentados, maduros, resolvidos e sabiam bem o que queriam um do outro.

Ou assim pensavam.

Passearam pelo Arpoador de mãos dadas. Emocionaram-se com a Lua que nascia em Copacabana e com o Sol que se punha em Ipanema. Pensaram ouvir ao longe os aplausos do Posto 9 mas, dada a distân-cia, os aplausos estavam em suas imaginações. Como se elogiassem a si mesmos subconscientemente.

Conversaram bastante, a ponto de acabar a saliva no meio de uma con-versa. O assunto era recorrente. Se comentavam da Lua, do Sol ou do cheiro de mijo das pedras, era apenas para dar uma pausa para tomar fôlego ou para embasar o tema principal. A paisagem se tornara uma metáfora para relações mal-acabadas. Mal-acabadas para eles, diga-se de passagem, porque o “outro” estava muito bem da vida. Sorrindo como nunca antes ao lado deles. Se divertindo como idem. Transando como nunca antes transaram em suas patéticas vidas.

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Pois é.

Durante o cair da tarde ele só falava da ex-noiva e ela, do ex-namorado. Os ex-outros eram o tema principal e o único assunto que os unia na-quela tarde. Talvez essa fosse a forma que encontraram para dizer que estavam sendo o mais verdadeiro e sincero possível. Não haveria enga-nação, sentimentos dúbios ou ilusões que não fossem consentidas por ambos, conscientemente. Sabiam o porquê de estarem ali e essa con-versa só reafirmava isso.

Passearam até a noite se firmar e sentirem que a saudade já se manifes-tava por dentro das suas calças. Era tanta saudade que já davam vexa-me público e evitavam os olhares invejosos de quem caminhava casta-mente pelas pedras.

Já em casa, nus, cometeram uma dúzia de erros fatais.

Amaram com sofregudão, mal dando tempo para os preparativos. Pre-liminares? Ora, estavam nas preliminares há meses. E ficaram ali por horas praticando o antigo esporte bretão.

Mentira! Mal durou dez minutos!

Ela, por cima dele, controlava a situação como sempre sonhara fazer com o seu amado e ele cometeu o erro de chamá-la pelo o nome erra-do por três vezes.

“Me desculpe, eu não queria…” “Não… tudo bem… eu te entendo!” “Como assim entende?” “Deita aí e imagine que sou ela!” “Não! Pera lá!” “Faça isso! Anda!”

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No décimo-primeiro minuto já estavam satisfeitos, e se contemplavam. Ele, procurando algum tipo de carinho. Qualquer carinho. E não en-controu. Ela, tentando inventar um amor que não teria como existir naquelas condições.

Se vestiram, tomaram a rua, pegaram um táxi. Ele foi deixá-la em casa. Na volta, não se conteve e pediu para o motorista passar por uma rua que não passava fazia tempo.

“O caminho por aqui é mais longo.” “Tudo bem. Pode até pegar a praia depois. Não tô com pressa!”

A rua estava vazia e o motorista não se demorou o tempo que ele espe-rava. Procurou um tipo de emoção dentro de si e não achou. Não vie-ram as lágrimas nem a auto-comiseração. Achou que estava pronto.

Saltou em frente ao Othon Palace. Foi até a praia. Tirou os sapatos e pisou na areia com calma, como se quisesse sentir cada grão roçando os pés. Olhou em volta para ver se havia perigo e foi calmamente an-dando até a água.

A Lua estava ali, lhe esperando.

“Então. Como foi?” “Não sei. Tudo é muito estranho. Há um vazio agora. Não tenho mais raiva, ou paixão.” “Duvido. Você ama ser rejei-tado.” “Mentira!” “Ama sim. Vai negar que a ama agora mil vezes mais que antes?” “Não nego.” “Então?” “Talvez você tenha razão. Talvez eu seja um maldito masoquista.” “Não fique assim.” “Não?” “Não é pro-dutivo isso.” “Você tem razão novamente.”

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Sorriu para ele e o chamou para si.

“Não posso ir agora. Você deveria ficar aqui também.” “Não sei se devo…” ela titubeou “…não sei se conseguiria viver uma vida de carne e osso.” “Você mesmo quem me recomendou isso!” “Mas tenho medo. Já me magoei muito antes.” “Olha só a rota falando do esfarrapado!” “Eu sei, eu sei. Mas você é Marte. Você está apto para a guerra, para os ferimentos da batalha. Se eu me ferir, me desfaço em água, vou com as marés.” “Querida, você é a maré! Vem. Desce do teu pedestal e seja feliz.”

Ela olhou com o olho mais doce e depois com o olho mais vil.

“Você sabe que sou terrível e divina. Sou mãe e bruxa. Sou o teu prazer e teu sacrifício e…” “Blá, blá, blá… Luna e Hecate, yadda yadda yadda. E eu sou Marte e Ares, sou Medo e Terrror, sou Libido e Potência… Porra! Sou um ser humano, caralho!” “Eu sei!” “E é em cada queda que aprendemos a andar, a sermos seres melhores. Você fica aí, num altar, cortejada pelos pobres, poetas e melancólicos e se esquece que, quando envelhecer, vai ser deixada de lado. Tua corte procurará outra Lua. E eu, deverei aposentar minhas armas, vou procurar um canto para criar meus livros e plantar meus discos. Cansei da Guerra, do Bom Comba-te. Quero sossego.” “Então está combinado.”

Ela desceu do pedestal e, antes de ir para São Paulo, disse no ouvido dele: “Tudo muda.”

E ele: “Nada mudará.”

E era belo e verdadeiro, assim no alto, como embaixo.

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Wouldn’t it be nice– pós Beach Boys

Saltou na Barata Ribeiro como se descesse da ante-sala do Inferno, en-fim liberto das agruras e torturas diárias a que se submetia. Vendia coi-sas que não importavam a pessoas desinteressantes e tentava convencer outras pessoas desinteressantes que as coisas que vendia eram impor-tantes e seus clientes eram interessantes. Mas nada disso tem impor-tância, exceto o simples fato que ele descia do 127 Praça Mauá – Copa-cabana como se deixasse o Inferno após pagar o todo o seu suplício.

Ao atravessar a rua, lembrou-se que não cumprira todos os ritos a que estava acostumado.

“Bah! Voltar pra quê? Amanhã eu passo lá.”

Namorava um som há dois anos. Obviamente não era sempre o mesmo aparelho, mas fazia planos em comprar um para si desde o falecimento do anterior. Ficava olhando pelas vitrines, comprava revistas, lia tudo que saía publicado e trocava o modelo de seus sonhos de acordo com as dívidas e os lançamentos.

“Que falta faz a Som Três…”

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Ele cumpria esse ritual diário religiosamente. Saltava antes da Santa Clara, paquerava o som pela vitrine da Modern Sound, eventualmen-te comprava um CD ou uma camiseta por lá mesmo. Sabia que pode-ria pagar a metade do preço de qualquer um desses ítens se comprasse no centro, mas achava que assim pagaria um dízimo de fidelidade nes-se templo do estilo e culto à boa música, como um clube de milhagem no céu dos aparelhos de som de alta sofisticação e sensibilidade.

Após a oração no templo, partia na sua perigrinação, no seu caminho de São Tiago pessoal. Da Barata Ribeiro, descia pela Santa Clara, pa-rava na banca de jornais na esquina com a Nossa Senhora de Copa-cabana, procurava por uma publicação nova ou algum artigo em uma outra revista. Quando achava tentava ler ali mesmo, de pé. Se não conseguia, planejava economizar em um almoço ou dois para comprá-la no fim de semana. Ia andando até a Domingos Ferreira, passando por livrarias decadentes e bares idem. Comia um croquete ou um pas-tel quando tinha um troco e chegava em casa cansado e baldado, mas sempre esperançoso.

Mas nesse dia, não cumprira o seu pequeno ritual.

“Bah! Voltar pra quê? Amanhã eu passo lá.”

Ao atravessar a Santa Clara – para trocar de calçada – notou um despa-cho na encruzilhada. Nada demais até aí, sempre tem alguma macum-ba espalhada nas árvores de Copa. Notou o ebó. Dois pombos.

“Epa hei!” Disse para si mesmo. “Axé, meu pai!”

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Uma trovoada vibrou o céu em cima da cabeça dele e o dia virou noi-te de relance.

“Tá certo. Eu nunca trago um guarda-chuva mesmo. Tinha de cho-ver hoje.”

Correu para a marquise enquanto o ar tornava-se mais úmido que um urinol. No tempinho que esperava a chuva de verão passar, olhou com um pouco mais de interesse para o pote com farofa e duas pombas mortas. Lembrou-se que os pombos eram usados como sacrifício para os judeus, no dia do corte do prepúcio, se não estava enganado. E va-cas para Odin no equinócio de inverno, ou no solstício de verão, não estava bem certo disso.

Sentiu-se cercado pelos deuses do passado e imaginou fadas mercuriais passando pelos fios de cobre dos postes, criaturas feéricas habitando os esgotos, espíritos construtores nos alicerces dos prédios e sílfides etére-as nos aparelhos de som.

Tomado por um medo ancestral, atravessou as ruas no meio da chuva, correndo entre os carros e voltou no seu templo de dedicação para pros-tar-se na vitrine e admirar as relíquias que queria trazer para sua casa.

Caixas de som de mogno. “Salve os espíritos da madeira e os padroei-ros das montadoras!”

Auto-falantes alemães. “Salve os gnomos importadores e os deuses do magneto!”

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Amplificador francês… “Oi. Você vem sempre aqui, não é? Por que não entra?”

Virou-se e deparou-se com uma mulher alta, de cabelos escorridos, como se estivessem molhados. Dã! Estava chovendo, né? Linda ela, não? E que olhos profundos. Parecia que varavam sua alma. Ela fe-chou o guarda-chuva que usava, limpou os pés, digo, a sola dos tênis que usava no carpete de entrada da loja e dirigiu-se a ele.

“Vai entrar ou não? Vamos! Eu te pago um café! Tem um café aqui, né?”

Beliscou-se. “Salve os demônios dos feromônios.”

Falou baixinho e ela não conseguiu conter um riso debochado. Senta-ram-se e conversaram um bocado. Seis cafés e dois sanduíches depois ele descobriu que ela estava de mudança para São Paulo mas ainda iria ficar umas duas semanas no Rio.

“Preciso do Sol e do Mar. Aquele me faz falta e este precisa de mim.” “As marés né?” “É.”

A chuva passara mas a conversa no café não. Ele contou do trabalho in-sosso e frustrante que tinha e dos sonhos e da vida inócua, medíocre.

“Não é ruim ser medíocre.” “Como assim não é ruim?” “Não é ruim. É médio.” “Verdade.” “As pessoas é que querem ser reis o tempo inteiro. Não dá, né?” “Qual o seu signo?” “Câncer.” “Óbvio, né?” “Sim.” “Você é de Peixes, não é mesmo?” “Sim.”

Ela passou a mão no rosto gelado dele.

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“Que besteira a minha! Aqui está um frio danado.” “O café esquenta.” “Mas não cura a gripe que você vai pegar.” “Não fico doente.” “Nem eu, mas isso não é desculpa.” “Vou pra casa agora que a chuva passou.” “Está bem. Você tem o meu telefone?” “Agora sim.” “Me liga. Vou em-bora no fim da semana que vem.”

Ele assentiu e se levantou para ir para casa.

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The ghost of you– pós The Tears

“Quando eu digo que Manhattan é o meu filme, ou melhor, o filme da minha vida, as pessoas não entendem de prima. Mas quando explico que o filme trata de escolhas erradas, de atitudes exageradas sem sentido, de bad timing genético, aí que elas discordam mesmo de vez. O problema é que elas não vestem a minha pele. Não usam os meus óculos. E eu só aprendo quando olho para trás. Mas isso não evita que eu bata novamen-te com a cabeça no poste, quando ando pela rua da vida.”

Ouvia quieto o artista ler o seu ensaio em voz alta. Estava entre ene-briado e intimidado por ficar entre tantas pessoas desconhecidas e se segurava na sua máquina fotográfica como se fosse uma muleta, um escudo. Enquanto fotografava não precisava se apresentar ou justifi-car porque estava olhando atento a um casal ou a um grupo menor no canto. Tinha a desculpa do olhar do fotógrafo, daquele que tenta ver além do que é mostrado, de quem procura o detalhe. No caso, ele ape-nas procurava um canto para se esconder e se deliciar com o espetácu-lo das emoções humanas.

Por vezes cumprimentava um ou outra que o reconhecia do seu site, de uma foto que tinha postado ou de um outro encontro de internautas. Era conhecido por ser esperto e comunicativo, mas hoje estava mais ta-

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citurno que nunca. Nunca tinha estado naquele sebo apertado e lota-do de gente.

O artista terminara sua leitura e outro tomara o seu lugar. Era uma menina. Não. Uma mulher. Linda, linda. Alta, reluzente. Os olhos brilhavam com fúria e tesão. Ele se ajoelhou para achar um ângulo me-lhor. Bateu seis fotos defaut e descansou a câmera no colo. No fim do texto, mal continha os soluços. Não poderia ficar muito tempo no mes-mo lugar que ela. Não com tanta gente em volta.

Saiu desastrado no fim do evento sem se despedir dos conhecidos. Só foi guardar a câmera ao chegar na Siqueira Campos, três quadras de-pois do burburinho da loja. Subiu a rua ainda tonto, embriagado com as próprias emoções. Passou em frente do Bar Pérola e resolveu se en-costar lá mesmo. Não trabalhararia no dia seguinte, então poderia en-cher a cara com tranqüilidade.

Lá pelo décimo chope, viu que um tipo diferente de gente estava entran-do bar adentro. Demorou um pouco para se encontrar no meio da embria-guez mas reconheceu parte do público que estava no evento literário.

“Fala fotógrafo!” Disse um mais animadinho.

“Pronto. Perdi o meu nome.” Pensou.

E no meio deles, lá estava ela.

“Olá.”

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Tremeu dos pés à cabeça. Precisava mijar. Agora! “Já volto.” Foi se ali-viar no banheiro e voltou para o seu ponto de partida mais enxuto. “Olá.” Disse apressado, enxugando as mãos na calça.

“Eu gosto muito das suas fotos, sabia?” “Você disse isso da outra vez.” “Mas não canso de repetir.” “O que você quer de mim?” “Nada.” “É o que eu temia.”

Disfarçou um sorriso amarelo.

“Você é bobo. E eu gosto disso.” “Não sou bobo. Sou mordaz e cínico. Às vezes até mau. Mas você me desmonta, sabe disso.” “Sei. E eu gos-to de te desmontar.” “Mas acho que não quero mais passar por isso. Já passei boa parte de minha vida orbitando em estrelas maiores que ti e me recuso a ficar apagado na tua presença.”

Ela olhou com um quê de doçura e um outro tanto de sarcasmo. Che-gou bem perto. Sussurrou no seu ouvido.

“Querido. Isto é impossível. Meu brilho é maior que o seu.”

Afastou-se com um sorriso aberto, como se fosse uma criança brincan-do de dar foras decorados numa outra.

Desequilibrou-se de dentro para fora. Pagou a conta e arrastou-se para o seu apartamento. Perdeu-se no caminho entre a Siqueira e a Bolívar. Perdeu-se em cada boteco fedido que encontrava no caminho.

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Amanheceu em casa, sem entender direito o que acontecera. A cabeça doía como um parto e ele xingava cada gota de álcool ingerida. Foi até a sala e deparou-se com ela saindo do banheiro enrolada numa toalha.

“O que você está fazendo?” “Me enxugando.”

Não entendeu.

“Você não se lembra? Voltou ao Pérola. Declamou poesias. Cantou Chi-co e Belchior, me carregou no colo e me amou o resto da noite. Meia-bomba, a bem da verdade, mas dou um desconto. Nunca vi homem fi-car bem com tanto álcool no sangue.” “Não lembro mesmo.” “Como assim? Você é o guardião da memória, não é? É aquele que é senhor do raciocínio e do pensamento.” “É o que eu dizia na escola, e só você dava bola para isso. Hoje me esqueço das coisas e quero esquecer o mun-do.” “Você tem a alma do artista, a habilidade do…” “Pára! Você sabe o quão mal isso me faz. Não precisava te encontrar. Não hoje. Larguei tudo para trás quando nós nos encontramos. Deixei estabilidade e vida morna e previsível para cair nos braços de Luna. Enlouqueci porque ti-nha de provar o lado de Hecate, tinha de passar por tudo isso e magoei quem eu não queria e quem eu não podia. No fim das contas, o úni-co que se fodeu fui eu mesmo. E, quando mais precisava do teu lastro, mais precisava do teu porto seguro, você me negou. Agora vem você me tentar novamente? Vai para a sua terra. Me deixa.”

“Seu desejo é uma ordem.” Disse ela vestindo a saia.

Compôs-se com habilidade e destreza de quem estava acostumada a devorar gente como se fosse um McLixo qualquer.

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“Não. Péra.” “Querido, você já é passado. Só queria ter um gosto da tua memória. E, sinceramente, preferia ter esquecido.” Saiu pela porta ele-gantemente.

Sentou-se no sofá e não encontrou o pranto necessário. A cabeça doía demais.

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I’m waiting for the day– pós The Beach Boys

Eram três amigos: o Grande, o Gordo e o Burro. Grande era chama-do assim porque brincava com todos sobre sua estatura. Era pequeno, bem pequeno. Todo miúdo mesmo.

“Eu gosto de armas grandes porque meu pau é curto!” Dizia ao es-colher uma Zweihandder como arma preferida do seu personagem de RPG da semana ou uma M249 no CounterStrike.

Fazia isso de brincadeira, é claro. Daquelas brincadeiras que só três grandes amigos entenderiam. A maior parte do papo deles era essa tro-ca de sacanagens sadias que os entretetinham por horas e horas a fio na mesa de bar.

Gordo era o mais calado e o mais sacana dos três. Seus comentários lacônicos eram devastadores. Quase monossilábico, se expressava me-lhor bebendo, comendo ou rasgando fichas de personagens de RPG. Homofóbico, direitista e antiético, era a lady do trio. De certo, chora-va em propaganda de sabonete com crianças e era o mais empolgado dos três quando saiu da primeira sessão que assitiu do “Sociedade dos Poetas Mortos”. Escondeu lágrimas e soluços no “A Lista de Schind-ler”. Gordo era assim.

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Burro era o falastrão. De prima, diziam que era um gênio. Trabalhava desde os doze anos com programação. Sabia falar de todo e qualquer assunto que pintava em qualquer grupo social. Dizia que não discu-tia: sofismava. Não debatia: praticava a maiêutica. Enciclopédico, cita-va duzentos autores sem se repetir. Normalmente ele inventava as cita-ções e os autores na hora. Estranhos se impressionavam com a verbor-ragia e recolhiam as suas armas no embate verbal.

“Cara, não sabia que você já tinha usado um Macintosh em 82.” “O Mac foi lançado em 84. Eu menti.”

Burro vivia apaixonado. Não aprendia. Mas sempre estava ali, na guer-ra. Não perdia uma saída com as amigas baranguetes para ver se so-brava uma rapa. Um beijinho na boca de uma menina caída de bêbada que fosse. Mas sempre apaixonado por sua musa, Vênus. Cabelos ne-gros, pele bem branca, olhos negros. Boca vermelha. Fazia merda so-bre merda por conta disso, enchia os cornos, pagava paixão em públi-co, cometia poesias. Até pro teatro entrou!

Gordo era um platônico. Apaixonado pela primeira namorada, ain-da quando era mais magro, nunca a esquecera. As outras mulheres podiam sentar no seu colo que ele não reagia. Não se sabia se era por medo, timidez ou por inabilidade. Não interessava. Os outros tinham já o seu veredito. “Veado!” Diziam da boca para fora mas sabiam que, no íntimo, Gordo ainda sangrava aquele amor mal-acabado. E nunca iria passar a dor.

Grande era mais safo com as meninas. Só cantava as lindas, maravi-lhosas, perfeitas e inatingíveis. Portanto o seu fracasso era mais coro-ado de méritos, ainda que sendo derrotado em cada batalha do bom

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combate. Juntava-se com Gordo para sacanear Burro nas tentativas de ficar com as mais desarrumadas, desconjuntadas e disformes, mas sa-bia que Burro tava certo. Ao menos nisso. E sonhava com uma paixão verdadeira, um grande amor.

Cada um foi pro seu canto, ainda que se vissem com regularidade. Gordo foi morar em São Paulo, Burro se formou em Ciência da Com-putação e Grande virou arquiteto e engenheiro civil. Regularmente viajavam para Sampa para zoar Gordo e beber todo o álcool possível daquela cidade e vice-versa.

O tempo foi passando e as viagens do outro começaram a rarear. Gor-do casara.

“Paulista é muito esquisito mesmo, né Grande?” “Pela primeira vez na vida, concordo contigo.”

Cada um foi traçando rumo, trabalhando, estudando, namorando(!) e, eventualmente, saindo para beber.

Nas raras viagens de Gordo de Sampa pro Rio, eles davam um jeito de se encontrar em um boteco novo, previamente aprovado pela seleção de cervejas, petiscos e freqüência feminina, ou apelavam para o bom e ve-lho Sindicato do Chope, na Farme de Amoedo.

“Putaquepariu, caralho. Vocês só vão em bar de veado!” “Porra, o cho-pe lá é bom, e tem história.” “O chope de lá é uma merda, a serpenti-na tem menos de quinze metros, que é o mínimo aceitável para o líqui-do sair a quatro graus centígrados que dá tempo para chegar na mesa a dez. Temperatura perfeita para o consumo.” “Ah! Não fode, Burro!”

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“Burro tá certo. O chope de lá é ruim e só tem veado. Vamos no Bar do Beto.” “Baixo Gávea, então.” “Chope ruim.” “É chope ruim.” “Com gosto de ferrugem.”

Acabavam indo para o Hipódromo mesmo.

Já fazia mais de ano e meio desse último encontro. Muito trabalho para todos e os emails trocados eram só de putaria mesmo. RPG não rola-va mais. Nem com Burro insistindo para jogar “a nova versão do World of Darkness” ou “no relançamento do do Dungeons and Dragons”. Bur-ro criara um blog pros três, mas pouco postavam por conta de trabalho de cada um mesmo.

Numa tarde, Gordo liga pro Grande.

“Tô chegando hoje. Avisa ao veado do Burro que estou na área.” “E a esposa?” “Ex-!” “É ex-posa? HAAHAHAH! Tomou pé no cú, cara?” “…” “Er… bom. Te espero no aeroporto. Me liga quando chegar. Tô trabalhando do lado do Santos Dumont.”

Chegou. Foi pego e fez hora no escritório. Gordo tinha um semblante mais fechado, mais triste que de costume. Falou palavra desde que se alojou na frente de um computador que estava vazio. Grande ligou para Burro que confirmou a reserva no Devassa da Barra.

“Mas tem de chegar antes das nove senão perdemos o lugar. A serpen-tina lá tem vinte e cinco metros e a cerveja stout…” “Tá! Tá! Sete e meia passo aí. Gordo se separou. Tá aqui, macambúzio e sorumbático.” “Pô. Não é melhor marcar na Centaurus?” “Porra Burro!” “Sei lá. Vai que

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ele quer levar seis pra cabine e ficar vendo as meninas correrem peladas dentro do quarto.” “Vamos beber antes. Depois vemos o que rola.”

Chegaram às oito e meia. Mesa boa, dava para ver todo o salão.

“Desce três negras. Vocês vão ver! Parece uma Guiness: cremosa, consis-tente. Uma delícia! Garçom, não deixa o copo secar! Principalmente do meu amigo aqui, esse mais fortinho! Fala alguma coisa, Gordo! Olha lá aquela morena. Ela deve entender do traçado!” “Cala a boca Burro! Por-ra, não tá vendo que o cara tá maus. Fala Gordo. Como foi a história?”

Os dois se calaram e olharam pro Gordo que não tirava a cara inex-pressível de quem joga pôquer com a vida. Secou o primeiro chope numa virada. Abriu o menu.

Apontou pro garçom uma cachaça da lista. “Traz uma garrafa.”

O garçom trouxe e Gordo começou o trabalho.

Fim de noite, Gordo bêbado, Burro bêbado e Grande puto da vida porque tinha de levar os dois para casa.

Eles saindo do Devassa, já quase entrando no carro, param para Gordo vomitar. Burro toma um ar e vê, dentro do bar, dois rostos conhecidos.

“Caralho, Grande!” “Eu vi. Vambora.” “Não. É ela!” “Vambora. Isso não vai te fazer bem. Eu tenho um mau pressentimento.” “Tenho de ir lá! Gordo! É ela!”

Gordo levanta-se, limpa a baba e recupera-se de pronto.

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“Luna!” “Putaquepariu. Isso vai dar merda! Pronto! Já deu!”

Grande ficou olhando Gordo e Burro cambalearem para dentro do bar e sentarem-se na mesa das duas. Luna e Vênus. As duas interrompe-ram o beijo e entre assustadas e divertidas olharam as figuras patéticas se acomodarem. Burro, tentando ser galante apesar do álcool e da his-tória; Gordo, apenas mantendo o cenho cerrado, como se criasse uma barragem entre si e ela.

Grande ficou do lado de fora, procurando o telefone no amigo delega-do, já prevendo alguma confusão com os seguranças. Espantado, viu as duas se levantarem rindo e os dois pedirem algo ao garçom. Elas saí-ram do bar e foram até ele.

Vênus deu-lhe um beijo na boca. Luna sussurrou-lhe: “Quem teme, não goza.”

Ambas pegaram um taxi que se fundiu à noite.

Grande sentou-se à mesa e juntou-se às libações.

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Dois velhos bêbados

O mais novo chegou no Belmonte às três da tarde. Ficara jogando pete-ca na praia desde às onze da manhã e estava com fome e sede. Já era uma espécie de rotina: acordar às cinco, comprar pão, manteiga, presunto e queijo; tomar café da manhã com a esposa e o neto encostado pela Ae-ronáutica às sete. Às oito, banho tomado e academia: correr uma hora e malhação e hidroginástica. Às dez de volta em casa para um lanche rá-pido e colocar a sunga para a praia. Morava na Atlântica, perto da Bolí-var, num prédio antigo, um dos primeiros de Copacabana.

E era isso: praia e depois chope no Belmonte. Costumava chopear no Cabral 1500, mas esse bar novo tinha pastéis de camarão sensacionais e empadas memoráveis e resolvera trocar local do almoço desde a sua inauguração. Não se arrependera e estava lá, nessa quarta-feira, lendo o jornal que o garçom havia pegado e notou que tinha uma outra cabe-ça branca observando-o. Havia sentado na mesma mesa sem pedir li-cença ou se apresentar. Não precisava.

“O senhor é uma vergonha! Não honra as próprias calças!”

Olhou para o mais velho que estava vermelho em fúria contra ele.

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“Nunca vi homem que dignasse o próprio nome fazer tal coisa! O senhor desonra seu nome, tua família, teu posto e tua farda!” “Não uso farda há mais de duas décadas.” “Não interessa! O senhor tem um nome a…” “Um nome a zerar!”

E riu sozinho.

Fazia uns cinqüenta anos que os dois se conheciam. Desde o primeiro momento antipatizaram um com o outro. O mais novo, recém ingres-so na AMAN; o mais velho, no penúltimo ano. Competiam em tudo. Notas, esportes, oratória. E empatavam nas graduações. Só que o mais novo tinha uma vantagem que nunca seria superada. Era muito mais bonito e tinha o dom da sedução, o sex appeal inato que dava larga van-tagem numa área onde o velho nunca conseguiria competir.

Antipatia que se tornou guerra pessoal. Um era comunista histórico. Amigo de Prestes e de Teotônio. Outro, simpatizante do Integralismo, seguidor de Plínio Salgado, adesista de primeira hora no golpe/revolu-ção de 1964. O primeiro perseguido e torturado, depois exilado. Outro, diretor da Light e aposentado aos cinqüenta e cinco. Sempre se encon-traram em todas as quinas de suas próprias histórias. Estavam lá em cada momento decisivo, em cada dor, perda ou escolha. Uma vendetta branca tão marcada em suas personalidades que já não fazia mais di-ferença os motivos, as ideologias, os partidos, as causas ou conseqüên-cias. Já estavam velhos demais para a beleza de um ou outro fazer di-ferença. Os filhos já haviam vindo e ido, deixando alegrias e desgos-tos que usavam para ofender um ao outro. Filhos, netos, política, eco-nomia, futebol e, principalmente, mulheres. Qualquer coisa que desse uma oportunidade para o outro espezinhar era motivo suficiente. Des-ta vez era o turno do mais velho, no seu motivo preferido.

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“É deprimente que o senhor ainda se arraste por rabos de saia que têm menos da metade da tua idade! Sei que é adepto desses remédios que garantem a virilidade momentânea! Vê-se que já sofre os efeitos cola-terais! Não se enxerga mais!” “Inveja! A mais doce das infâmias que poderia lançar sobre mim. Não consegues te acertar com tua prótese, então ficas difamando os que…” “Calúnia! Não existe implante algum em mim!” “…os que ainda despertam algum interesse nas mulheres ainda em plena atividade e prática sexual. Mas te garanto, meu caro, que não sei do que falas. Sabes bem que desde a morte do meu primei-ro filho, me assossego em casa, não tenho mais dessas aventuras.”

O velho sentou-se à mesa, pediu um chope curto e comeu um dos pas-téis. O novo pediu mais um chope para si e um “refil” nos pastéis. Fi-caram ali, em silêncio, se estudando como se fossem dois samurais es-perando a reação um do outro para sacar a lâmina de sua bainha e cor-tar a moral do outro.

O novo faz o primeiro movimento.

“Do que falas, afinal?” “Dessa mulher que o senhor tem freqüentado às quartas-feiras.” “Não é isso que pensas.” “Como não? Sei muito bem como o senhor se coloca frente às mulheres, enganando-as, seduzindo-as.” “Há muito te expliquei que não somos nós que as seduzimos, mui-to pelo contrário: elas que nos convidam e dão o seu aceite. Se brincam de serem cortejadas, é porque lhes é conveniente. A sedução vem de-las para nós, não o contrário.” “Mas meninas, que mal sabem o que é a vida?” “Tu sabes que, hoje ou em mil novecentos e sessenta, as meninas deixam de ser meninas aos vinte. São mulheres em plena flor da ida-de. Não há meninice nisso. Tu, que casastes com uma de quinze, deve-rias ter mais noção disso que eu.” “Não menciona o nome dela assim! A

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boca do senhor não é limpa o suficiente para mencionar Gaia.” “Gaia. Eu pensava que era Géia o seu nome. Já é o tempo me tomando as lem-branças.” “O tempo toma tudo, sei disso.” “Não tenho dúvidas. Mas sempre te surpassei, não? Sempre estive um passo à sua frente.” “Nem sempre.” “Justo. Tem coisas que tirastes de mim que não há como de-volver.” “Fi-lo pela pátria.” “Ou por vingança, ou por ódio, ou por per-versão, sei lá. Não me interessa mais. É passado e é história. Teve a tua cota de vingança e de sangue e eu também. Somos agora dois velhos a nos cutucar enquanto o mundo nos esquece.”

O golpe fora certeiro. O novo sempre fora muito melhor na oratória, mas dessa vez vinha carregada de alguma coisa mais forte. Ele estava com a guarda aberta. Via-se nos olhos que não estava estudando o que falava. Era um homem de setenta e poucos anos, lúcido, saudável que admitia para o seu nêmesis que tudo aquilo que basearam a sua relação de ódio e vingança havia caído por terra, perdido a importância. Era apenas uma birra de dois velhos bêbados. E que isso era um laço mais forte que muita amizade sincera, aberta e verdeira.

Os dois viram os rostos para a menina que se aproximava e que pedia licença para sentar à mesa. Menina não. Uma linda mulher.

Ela se senta entre os dois, à cabeceira da mesa. Ajeita a saia rodada branca e coloca o chapéu, a bolsa e os óculos escuros numa cadeira va-zia. Olha lentamente para o mais velho e com desleixo para o novo.

“Parece que vocês chegaram num campo comum, não é mesmo? Se acertaram?” “Não existe acerto entre mim e o velho. Mas acho que es-tamos colocando os pesos corretos na nossa guerra.” “É verdade. Então é a senhorita a mulher que o novo visita às quartas?” “Sim.”

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Disse Luna, com o olhar incapacitado. Sabia que era poderosa e ma-ravilhosa, que era a segunda da lista, mas sabia que, de perto, os dois eram maiores e mais poderosos que todos os outros. À exceção de Hé-lio, ou Hélius, nunca se lembrava como Ele preferia ser chamado. Já Ela ficava diminuída perto dos dois.

O velho dirige um olhar meio envergonhado, meio compreendendo o mais novo. Pede mais um chope e uma caipirinha de tangerina para Luna que não conseguia manter o porte altivo e imponente. Sentava-se como uma menininha entre dois gigantes.

“Quando partes?” “Não sei mais se parto ou se fico. Tudo é muito con-fuso para mim agora.” “Sabes que tem alguns de nós com quem não deves brincar. Creio que já falastes com todos? Ou não? Existem aque-les que são mais velhos e mais distantes e que não tens acesso. Não de-ves procurá-los. Tua jornada não se expande mais.” “O novo fala a ver-dade. A senhorita tem de saber o seu lugar. Ande à luz do Sol, se qui-seres, mas tem de ter o limite das coisas.”

Ela escutava, discordando mas incapaz de se defender. Sabia que o seu tempo ali havia terminado.

E partiria para São Paulo ainda hoje.

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O sexo é o alento

Burro chegou com uma novidade.

“Comi gente ontem!”

Os dois olharam com a cara de tédio habitual e, antes de fazerem a pergunta default, ele sacou.

“E não paguei por isso!”

Com o interesse dos amigos ativado, ele se derramou em longuíssimas narrativas de como conduzira o flerte por meses a fio, como evitara as tradicionais armadilhas de seduções baratas, como envolvera e seduzi-ra a menina até obter “os favores da linda e querida flor.”

“Flor? Porra! Você comeu gente ou um brócolis?”

Gordo com sua delicadeza habitual cortou o longo, elogioso e enfado-nho relato de Burro.

Ofendido, mas não abalado, Burro revelou.

“Eu a chamo de Minha Flor!”

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Explode uma gargalhada entre copos de chope consumidos no Devas-sa do Leblon. Grande não se conteve. Com dedo em riste, olhos em lá-grimas, tenta falar alguma coisa mas só consegue aumentar os soluços de Gordo que quase desmonta a mesa de tanto se contorcer.

“Essa é a coisa mais engraçada, ever!”

Conseguiu dizer apenas ao domar os risos e as lágrimas.

“Cara, você me deu duas semanas terapia agora! Putaquepariu! Que coisa foda! ‘Minha Flor’ é foda, cara!”

Abalado e ofendido, Burro saca do palmtop as fotos que tirara da me-nina. Linda, linda! Aliás, lindíssima! Morena, olhos negros e fundos, rosto delicado, corpo de vespa. Acintosamente exibe as dos dois se bei-jando e pára ante o olhar estupefato dos amigos.

“Pois é. Mó gata!”

“Qual o preço? É. Quanto você tá pagando para a menina posar de sua namorada.” Pergunta, impromptu, Grande.

“Não estamos namorando. Não quero relacionamento sério.” “Ah! Qualé! Mó gatinha e você não vai amarrar com chave de pica?” “Pois é. Você vai ver. Se a minha teoria estiver certa, vou ficar cercado de mulheres maravilhosas em pouco tempo.”

Dali a dois meses, os amigos mal conseguiram ver Burro. Ou ele saiu com Sicrana ou com Beltrana ou com ambas ao mesmo tempo. Ou era uma terceira, quarta. Já tinham perdido a conta. Só sabiam do histó-

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rico porque Burro informava-os religiosamente das novas conquistas. Foto, dados cadastrais, breve histórico da conquista. Gordo já contava para os seus amigos paulistas o orgulho que tinha do amigo nerd e co-medor. Grande se calava e matutava.

Finalmente combinaram de se encontrar no Belmonte para chope e pastel de camarão. Gordo chegara antes e saúda o Burro ao entrar.

“Como é que tá essa vida de pica-doce?” “Tá ótima! A merda é que não dá para comer todo mundo. Não dá tempo. Ou como ou trabalho, né?” “E tu vai largar o emprego?”

Burro ficou tenso.

“Nunca!” “Qual foi cara? Você odiava o emprego…”

Soltou Grande, já puxando uma cadeira e pedindo um chope e uma Coca-cola.

“Conta aí a teoria que transformou um nerd magrelo, antipático e mal-vestido em um comedor de primeira linha.” “Fui promovido a Geren-te Sênior de Marketing n’A Empresa.” “Porra cara! Parabéns! Parabéns mesmo, mas o que isso tem a ver com aumentar a densidade de mulher boa ao teu redor.” “Cara, mulher sente o cheiro do poder à distância. Sabe que cara com cargo bom dá segurança e estabilidade.” “É. Quem gosta de pica é veado. Mulher gosta é de dinheiro.”

Gordo ri, meio que acabrunhado, dessa afirmativa.

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“Não vou discordar. Mas qual era o lance da primeira menina?” “…” “Fala negão! Conta aí…” “Prometi uma promoção à ela…” “NÃO ACREDITO! TU É UM FILHO DA PUTA!”

Grande realmente ficou preocupado.

“Pois é. Isso vai dar merda, cara. E se a menina te processar por assé-dio?” “Ela já tem a promoção. Já tava certo. E foi para Curitiba. Eu só me aproveitei disso.”

Gordo explode novamente.

“NÃO ACREDITO! TU É UM GRANDISSISSIMO FILHO DA PUTA!” “Não nego. Vi a ficha dela aprovada e só precisava de um OK meu. Nunca negaria, claro. Mas ela se insinuou cheia de charme me pedindo a aprovação. ‘Ah, chefinho… eu faria qualquer coisa para ter esse ok.’ Paguei para ver né?” “Tu é um merda mesmo!”

Grande ficou puto.

“Tu foi é assediado, mané! Gravou a conversa dela ao menos?”

Burro apontou pro PDA e tocou um MP3 de lá. E não é que o veadi-nho não tava mentindo? Ouviu-se com clareza a voz da menina se in-sinuando.

“O que importa é que fiquei com fama de comedor e bom partido. Sei que isso não vai durar, mas vou aproveitar.” “E Vênus, cara?”

Soltou Gordo sem pensar duas vezes.

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“Como é que fica?” “Não fica. Ela não me quer. Se pedir para mim, caio de quatro aos pés dela, mas não vou ficar esperando o tempo pas-sar. E tá divertido para caralho!”

Grande olhou meio de rabo de olho, pediu um caldo verde entre um “suco de pica de Hulk”, “sopa de radiação gama” e outras piadas de cunho nerdístico e comeu em silêncio, ouvindo as peripécias sexuais do Burro. Pra si, matutou: “vai dar merda” e pediu a conta. Foram todos para casa cedo.

Daí a mais duas semanas, foi Burro que chamou os amigos para ir ao Stephanio’s.

“Tô na merda, galera!”

Sempre que o Burro propunha o Stephanio’s, tinha alguma merda para contar. Ou uma dor de corno ou uma desilusão, ou um pé na bunda ou um fora hercúleo. Mas de certo era papo de mulher. Era assim que ele funcionava: Stephanio’s: problema de mulher; Adega da Velha: proble-ma em casa, família; Siri da Barra: problema de trabalho.

Os três se encontraram e de pronto reclamaram entre si da música ao vivo.

“Porra! Não sei porque insiste em vir aqui. Samba, cara! Que merda!” “Porra Gordo! O bolinho de bacalhau daqui é simplesmente sensacional.” “Gordo, senta. Burro, abre o bico. Garçom: duas Bohemias e uma Coca-cola. Quatro copos. Uma porção de bolinhos de bacalhau. Não deixa as Bohemias secarem. Fala, Burro. Qual o galho?” “Cansei.” “Como assim? Cansou? Cansou de que?” “Cansei de putaria. De saco cheio de olhar para o lado e não querer acordar junto daquela mulher. Quero alguém

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para acordar para sempre. Mais ou menos o que o Garcia Marquez dizia: ‘o sexo é o alento de alguém que ainda não encontrou o amor’. Saca?”

Beberam até amanhecer e até cantarolaram um sambinha ou dois.

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As funções da sarjeta

Já tinha quase dois meses que os três amigos não se encontravam. Gor-do estava atolado de trabalho e problemas até o pescoço. Mudança para o apart-hotel. Procurando um novo para alugar. Dividido entre a mu-dança para o Rio e largar definitivamente os projetos que conduziu ou continuar em Sampa e ficar longe da família e dos amigos. Principal-mente dos amigos. Desde que fora para lá, não conseguira qualquer companhia fixa para as atividades boêmias às quais estava acostuma-do “em casa”. Digamos que a combinação casamento com mulher es-petacularmente sexy, uma certa tendência a ser ríspido em demasia com os colegas de trabalho e uma forte propensão ao isolamento social não permitiam que ele criasse os vínculos normais para encher a cara regu-lar e socialmente.

Findo o casamento e terminado o contrato de cinco anos de consulto-ria em Sampa, que poderia ser renovado num estalar de dedos, ele se deparou com o dilema da volta para casa ou ficar rico. Optou pela pri-meira já que tinha amealhado uma boa quantidade de numerário para viver, com alguma moderação, sem trabalhar o resto da vida. E pode-ria fazer um bico aqui e ali para completar alguma extravagância even-tual. Afinal de contas, sempre se precisa de um advogado especializado em direito tributário. Principalmente um com sobrenome de ex-presi-dente e com trânsito no Banco Central.

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Grande estava atolado com os projetos. Rio Cidade. Pan-Americano. Dois hotéis na Barra da Tijuca. Nenhum deles entrou. Tava tudo cer-to, orçamento direitinho, equipe afiada, pedigree de projetos anteriores, putas pagas para as pessoas certas. Nada poderia dar errado. Mas deu. Resumo da ópera? Tava já queimando as reservas e ainda era junho. Pior, sem perspectivas de entrar trabalho grande até outubro. Resolveu sentar na merda e ver o que faria. Não estava a fim de dispensar a ga-lera, mas também não escondeu o jogo. Passava as tardes promovendo campeonatos de Counter Strike no escritório para tentar levantar a mo-ral da turma e cometeu um ou outro excesso orçamentário ao bancar um curso de CAD para um funcionário. Afinal de contas a equipe era enxuta e boa. E sempre estavam ali nas roubadas.

De cabeça quente, resolveu vender o apê de quatro quartos na Atlântica, com vista para a Aires Saldanha. O famoso Sessenta e Nove do Grande.

“Sessenta e Nove, Grande? Não entendi!” “Tu é Burro mesmo! É um meia-nove clássico, cara! A posição é excelente, mas a vista é um cú!”

Num papo com Gordo, este se interessou em alugar o apê. O que seria bom para os dois. Gordo sempre gostara da proximidade do apê com a Help por motivos de conveniência sexual e Grande ia ficar tranqüi-lo que o morador iria manter a tradição de orgias pela madrugada que o Sessenta e Nove tinha.

Então foi assim. Gordo chegou no Galeão, pegou um tê-xis e largou as malas na sala do apê. Exatamente isso. Já tinha a cópia das chaves fa-zia uns dez anos. Aliás todos os três tinham as chaves do apartamento. E da portaria. E nas épocas áureas tinham até dos carros uns dos ou-tros. Nunca se sabia quem poderia precisar de uma ajuda emergencial.

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Fosse pelo álcool consumido, das drogas experimentadas, das namo-radas-casos-encrencas-pretês-que-resolviam-surtar-quando-pegavam-um-ou-outro-pelado-com-umas-e-outras e etecetera.

Esperou Grande chegar com um uísque que tinha trazido num “adian-tamento” da mudança. Se bem que, de mudança mesmo, tinha pouca coisa para trazer de Sampa. As roupas, os livros, os CDs viriam no ca-minhão. Os móveis, vendera por lá mesmo. Tapetes, cortinas, copos, talheres. Não precisaria de nada disso.

Sabia que o apê estava mobiliado por três gerações de herdeiros de Copacabanenses típicos. Ricos, amorais e extremamente poseurs. Só Grande fugia à expectativa da família.

Rico? Sim, de fato, mas não aumentara a fortuna, ao contrário, gasta-ra boa parte na empresa que estava em dificuldades.

Imoral? Pós-moderno seria mais adequado.

Poseur? É. Não tinha como negar o sangue da família de pleibóis.

Grande chegou acompanhado de Burro que entrou já vomitando bullshits.

“… e o sistema novo é mais inteligente, evita aquele absurdo: quanto mais dados você joga, maior a sua chance de tirar um botch o que ferra o conceito dos dots. Pô, se o cara tem vinte dots num skill ele tem 3.456 vezes mais chances de tirar vários uns que o cara que rola apenas dois dados.” “Você inventou esse número, né?” “É claro!” “Mas entendi. E a história, o background? Fala Gordo! Nem me ligou, seu puto!” “Os dois veadinhos sempre juntos! Cueca gosta é de cueca, né?” “Não é bem as-

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sim, Ilmo. Sr. Dr. O. Gordo! Qual a boa? Puteiro? Termas? Cacha-ça?” “Vocês vão me chamar de veado, mas eu quero é encher os cornos hoje!” “Falou o ex-dono da casa. E você manda hoje!” “Simba para um boteco que abriu aqui perto, em Copa mesmo. E deve ter umas ‘meni-nas’ por lá.” “Caraca, Burro, não me adimira que você viva fodido de grana. Gasta tudo numas putas de quinta.” “Gordo, o Burro assusta qualquer mulher que não saiba o cargo dele n’A Empresa.” “Executivo-zinho de merda, você, Burro. Aposto que não tá comendo nem estagi-ária.” “Vamos para a cachaça que o papo aqui tá brabo.”

Desceram os três para a rua e ganharam a noite.

Cinco da manhã, sol nascendo, foram até o quiosque em frente ao Me-ridien, no Leme, para tomar água de coco e tentar entender o que esta-va acontecendo. O mundo não parava de rodar, o Burro tava calado fa-zia duas horas. Gordo estava animado e falante. Grande estava otimis-ta para com o futuro. Algo não fazia sentido.

Pararam para ver o Sol nascer. Cena patética. Três homens no fim dos trinta, sentados num banco de cimento do calçadão do Leme. Dois be-bendo água de coco – Burro estava vomitando as tripas e tentando se hidratar com água mesmo – e todos com olhar idiota para o espetácu-lo que se anunciava.

Um tipo esquisito atravessou a faixa de areia e foi na direção do mar. Não deu para ver direito o rosto do distinto, mas parecia atrasado pelo jeito que corria. Tava de jeans, tênis e camiseta e não parou para tirar nada ao entrar na água. Com o Sol no horizonte, pouco viram e, nesse pouco, perderam o cara de vista.

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Atrás deles, um casal discutia alguma coisa que tinha começado na noi-te anterior e envolvia, um café, uma promessa de se encontrarem e uma besteira que ele dissera sobre mudar as pessoas com quem se convive.

“Mas relacionar-se é mudança. É entender o outro e ceder onde se é necessário. Da mesma forma que o outro cede para que possam convi-ver, dividir o espaço das escovasde dentes, trocar o papel higiênico ou o lado da cama que vão dormir.” “Mas não é mudança. É aceitação do outro como ele é.” “Mas mudança não é negação. Quando um dos dois não aceita abrir mão de nada do relacionamento, tipo a pelada de quar-ta à noite ou o carteado com a rapaziada nos domingos à tarde, ele não está disposto a se relacionar.” “Mas existem limites para esse ceder, a esse mudar. Eu não cedo. Não mudo.” “Te provo que você está enga-nada.” “Não prova.” “Quando você decidiu me encontrar, disse-me que não iria me ter. Ou melhor, que não dormiríamos juntos.” “Verdade, mas não dormimos.” “E me disse que não amanheceria comigo. Tinha muito a fazer no dia seguinte.” “…” “Diga oi para o Sol, meu amor.”

A morena, que parecia ter uns vinte e três anos, olhou encabulada para ele – que tinha uns quarenta por baixo – e deu-lhe um beijo.

Grande olhou para os dois putos ao seu lado e viu que os laços entre eles eram mais fortes que qualquer feromônio. Eram forjados no álcool, na sarjeta, na humilhação mútua, no sarcasmo e tudo mais que enobrece o ser humano. Tudo aquilo que dá sentido para o acordar no dia seguinte. E que um daria o braço direito pelo outro, se fosse necessário.

Grande levantou-se de sopetão e berrou, bêbado ainda.

“O braço sim! Mas o cú não, seus pederastas!”

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Dos problemas corporativos e das putas

Burro andava mais animado do que a média. De lá de dentro de sua baia corporate, voiciferava impropérios em diversas línguas. Não que fosse mestre em alguma delas, sua educação sempre fora improvisada e incompleta na melhor das hipóteses, mas sabia como sobreviver em oito idiomas diferentes.

“Farabuto!”

Tinha feito diversos cursos na Europa e trabalhara em umas três mul-tinacionais antes de ser convidado para A Empresa.

“Sonovabitch!”

Sempre colara nos chefes “importados” para ganhar um pouco mais de prestígo e experiência. Seu alto conhecimento do bas fond cario-ca também ajudava a reforçar a boa imagem do Brasil com o exterior. A imagem de povo pacífico, amistoso e “receptivo” era endossada por Burro sempre que podia.

“FILHO DA PUTA!”, berrou na entrada da baia para todos os fun-cionários.

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“Esse filho da puta me deu o cano!” “Calma chefinho, calma!” “Porra, Rogê! Vai puxar o saco da diretoria que hoje tô com o ovo virado!”

Entrou de volta, bufando. Sentou-se na cadeira. Ligou o laptop e cha-mou a secretária.

“Dona Paula! Traz um café e dois quilos de boa vontade que o dia vai ser longo!” “Ó doutor, o seu Marconi quer falar com o senhor. E ele tava meio puto da vida.”

E lá foi Burro engolindo o café com úlcera que ele consumia todos os dias pela manhã. Subiu os seis lances de escada que separavam-no da presidência e adentrou a sala do Doutor Marconi.

Doutor Marconi estava no Brasil há seis anos, desde a chegada d’A Empresa em Terra Papagalis e Burro tinha conseguido quebrar sucessi-vamente com ele o seu recorde de gafes e comentários inoportunos com pessoas de alto ranking empresarial. A bem da verdade, Burro tinha o dom de dizer a coisa errada na hora mais imprópria, mas o seu carisma o defendia de quaisquer outras conseqüências mais nefastas que ganhar o rótulo de “excêntrico” ou de “distraído do marketing”. Pena que isso não o tinha protegido da bile certeira do Doutor Marconi.

Subiu, conversou e desceu cabisbaixo.

“Tô fodido.”

Confessou ao Gordo quando acabou o expediente. Gordo passara por ali porque sabia que tinha inaugurado uma nova “casa de tolerância”

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em Jacarepaguá e ele queria um companheiro que topasse uma expedi-ção antropológica nessas ermas áreas.

“Mas porque tá fudido? O que você fez de errado agora? Falou alguma merda? Mandou algum arquivo errado? Roubou…” “Não! Isso nun-ca!” “…algum enfeite da mesa do chefão?” “Pior, muito pior.” “Então conta!” “O filho do chefão veio da Itália semana retrasada e foi com uma galera ‘confraternizar’ em Copacabana. Tava toda a gringaiada na Help dançando, bebendo e se esbaldando com ‘as meninas’ quando sa-quei que o moleque tava meio sorumbático, não tava se soltando e tal.” “Era veado, o moleque?” “Porra Gordo! Espera eu terminar de contar a história!” “Tu enrola muito. Era veado ou não?” “Era. Não era. Sei lá, porra. Parece que tá na moda de viadinho ficar em dúvida se vai dar o cú ou não. Porra, no meu tempo ou a bicha era ou não era. Não tinha essa de experimentar ou de não ter certeza. Se não era, mas tinha skill pra isso a galera já zoaria o putinho de tal maneira que não teria ou-tro jeito. Ou ele ia carcar a primeira vagabunda, ou ia dar o rabo des-de cedo.” “E o veadinho do filho do teu chefe?” “Pois é. O moleque ca-tou uma vagaba lá. Porra cara, o menino tem dezoito anos mal com-pletados. Tem um pai que tem a largura de uma lápide de mármore e que deve ter um enorme coração de chumbo. Se o moleque desse pinta ali no meio dos filhos da puta que trabalham com o pai, ele iria man-char o nome da famiglia toda.” “Tá. Tu levou o moleque pro puteiro. Ele carcou uma lá. Qual a merda que você fez?” “Parece que o mole-que gostou do esporte. E como fui eu quem apresentou ‘a menina’, vi-rei o best man nessa nova vida.” “Ainda não entendi qual o problema.” “Péra! Daí o Doutor Marconi me chamou na sala dele. Tava meio ir-ritado porque o menino andava direto na noitada, sem dormir direi-to, sem ir às aulas e tal, mas tava contente porque ‘ despertei o macho si-ciliano que dormia dentro dele’.” “PORRA! E tu diz que tá fodido? Tá

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na maior fita com o chefão e tá reclamando?” “O moleque tá traçando tudo quanto é puta de Copacabana, Gordo. Ou vai pegar doença ou vai ganhar um filho em breve.” “Saquei, daí a culpa vai ser sua, né?” “Exa-tamente!” “É. Tu tá fodido.”

Saíram e foram afogar as mágoas no Devassa da Barra. Lá pelas tan-tas, chega Grande com duas amigas. Velhas amigas. Suzi e Fabi. Eram boas de copo, boas de papo, péssimas de cama. Já tinham ficado com os três nas suas remotas adolescências de milênio passado. Não dera cer-to. Eram “homens de saia” como dizia o Gordo. “Diluidoras do extrato escrotal”, segundo Burro. Tudo inveja, dor de corno e tal. Na verdade, elas eram testemunhas dos fracassos de cada um deles. Fracassos como homens, como gente, como criaturas inventadas.

“Quer dizer que Burro colocou o menino no ‘Bom Combate’ e deu merda? Tu é um merda, Burro.” “Mas Suzi, vai que o menino apren-de o caminho que lhe é de direito.” “Fabi e Suzi, não tem jeito. Quem nunca comeu açúcar, se lambuza com melado.” “Mas não tem jeito, Burro?” “Tem não Grande.” “Tem sim.”

Gordo sempre tinha uma solução. Normalmente era imprópria ou ile-gal. Neste caso era ambas.

“Pega o moleque. Apresenta para aquelas suas amigas que curtem car-ne fresca. Deixa as balzacas ensinarem o caminho para ele. Elas não querem filhos ou já têm os seus e prezam a liberdade que conquista-ram. Na pior das hipóteses vão dar uma chave de buceta no moleque e ele vai ficar apaixonado.” “Boa.” “Pera lá. O menino é bonito?” “É sim, Suzi.” “Pô Burro. Põe na fita.” “Peralá!” “Pô Gordo, põe na fita. Ou eu ou Fabi damos um jeito no moleque. Colocamos ele na linha.”

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Os três se entreolharam com cara amargas e meio que não concorda-ram. Mas sabiam que não teria jeito. As duas quando queriam alguém, nada ficava no caminho. Dali a duas semanas era o italianinho com uma uma na Melt ou com outra na Nuth, com uma na Ploc ou com outra na Soundtrack. Um mês se passou, o moleque voltou para a Itália e os cinco se reencontraram para um chope. Na verdade os três manés foram convocados pelas meninas. Impreterivelmente.

Marcaram num pub novo lá na Paula Freitas. As meninas moravam em Copa e normalmente saíam dos botecos em estado pior que os nerds. Chegaram, chopearam, chopearam mais um pouco, contaram piadas, sacanearam a tudo e todos e só tangenciavam o assunto. Ninguém fa-lava no menino. Nem elas. Obviamente havia algo de errado.

“Porra. Tamos aqui desde cedo rodando o assunto e ninguém fala.” “Deixa quieto gordo. A cerva tá descendo macia e não tô a fim de falar de homem.” “Porra Grande. Então tu veio porquê?” “Vim porque gos-to de beber aqui. Não se nega cerveja boa nem ida a boteco novo.” “Tá bom. Tu tá roxo de ciúmes só porque o veadinho lá comeu a Fabi.” “Pe-ralá! Não põe o meu nome nessa história!” “Como não? Ele te comeu ou não?” “Não, porra!” “Então comeu a Suzi!” “Também não me co-meu.” “PORRA, CARALHO. PUTAQUEPARIU!” “Que foi Gor-do. Tu tá nervoso com o quê?” “…” “Deixa ele quieto, Burro. Gordo, o menino não comeu nem a mim nem a Suzi. Mas não posso dizer das minhas amigas. Elas gostaram bastante do menino.” “!” “Que cara é essa, Gordo. Eu e Suzi até tínhamos a intenção de ‘fazer’ o menino sim. Mas não dava.” “É, meninos. Não rolou.”

Ficaram os três estupefatos enquanto as duas riam e contavam dos ca-sos das amigas. Estupefatos e invejando ter vinte anos e duas amigas

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balzacas para apresentá-los aos prazeres da vida. Puto, depois de horas olhando a cerveja stout esquentar no copo, Burro se levantou.

“Eu sou um merda mesmo. Mesmo não me fodendo, me fodi.”

Em solidariedade, os outros dois se levantaram e foram mijar. Quando sentou de volta, antes dos amigos, Fabi sussurrou-lhe no pé do ouvido.

“Você foi o melhor dos três.”

As duas pagaram a conta inteira e levantaram-se. Sabiam que uma pe-quena mentira sempre seria seguida de outra e nada como uma peque-na verdade para terminar a corrente.

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Como ser inconspícuo em três lições

Grande sempre fora o mais discreto e o mais festeiro da turma. Apron-tava e envolvia-se em tantas ou mais confusões que os outros mas man-tinha um low profile que invejava a todos. Sempre que as mães, namo-radas, amigas ou mesmo conhecidos os criticavam por um vexame ou um comportamento inadequado, tomavam-no como exemplo.

“Nunca que o Grande vomitaria no sofá da sua tia.” “O Grande não fica apalpando as amigas da namorada. Aliás ele apresenta a namora-da, não uma ‘essa é uma amiga’.” “Aquele seu amigo (o Grande né?) tem opinião. É, definitivamente, uma pessoa de caráter.”

Na verdade, Grande media muito bem as palavras que usava e os gestos que praticava. Não que racionalizasse cada gesto, era mais como uma programação em backlog que ele “rodava” na sua cabeça. Era quase que inconsciente o processo de se colocar nos eventos sociais. Ele mesmo dizia apenas que tinha “compostura”. Apenas isso.

Mas, para quem era mais próximo, Grande não era essa flor social toda. Só que, além de Burro e Gordo, apenas um punhado de pessoas poderiam ser chamadas de próximas. Então ele conseguia circular bem entre as mais diversas esferas. Era uma vernissage de um livro de de-signers aqui, uma recepção no Palácio da Guanabara ali, uma inaugu-

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ração de uma obra acolá ou um coquetel de abertura de evento em al-gum museu no Centro do Rio de Janeiro. Acima de tudo, Grande era um Carioca. Sabia estar nos locais certos, com as pessoas exatas, ser visto sem ser destacado, ser comentado sem ser criticado. Era um social monster e tinha, como poucos, a manha da coisa.

Retirado o Manto de Invisibilidade, não era diferente dos demais mor-tais. Pisava na bola, fazia escolhas erradas, dava vexame como qualquer outro. Mas esses “pecados”, mesmo os mais escatológicos, ele conse-guia transformar em um tipo de piada, como se fosse uma anedota de uma outra pessoa, um causo de um terceiro. Não poderia ser o Grande que se esmerdalhara durante uma reunião com o presidente da Coca-Cola. Nunca poderia ser o Grande que vomitara em cima daquela mo-delo de lábios grossos – “lábios superiores! Superiores, Gordo!” – du-rante a festa daquele deputado famosíssimo. Jamais o Grande!

De todas as vilanias possíveis, só uma o Grande nunca praticara. Por isso a turma toda se calou quando Gordo berrou na mesa.

“PORRA, GRANDE! TU TÁ APAIXONADO!” “Caralho, Gor-do, cala a boca!” “NÃO, PORRA! TU TÁ APAIXONADO!” “TÔ PORRA NENHUMA!” “TÁ SIM TÁ BRILHANU US ZOINHO, AÍ! Hahahahahahaha…”

Em plena cantina da Don’Ana, cercado de artistas que saíram do SESC e pseudo-famosos que ficavam moscando os diretores e globais que pa-ravam ali para comer o penne al pesto e lendária torta alemã.

O riso do Gordo morrera aos poucos na medida que viu que a graça da situação só era percebida por ele e por Burro que já tinha corrido para o

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banheiro para não mijar nas calças. Parecia que as pessoas da mesa não entendiam a graça que poderia haver numa pessoa apaixonada.

Ora, sabe-se bem que todos os apaixonados são risíveis, são patéticos. Só quem está apaixonado ou tem um outro tipo de antolho mental é que não percebe isso, não é mesmo? Pois bem, Gordo ficara um pouco constrangido e, em defesa, manda todos à merda, paga a conta dos três e arrasta Burro e Grande dali. Susi e Fabi, que tinham sido arrastadas sob a promessa da presença de dois coreógrafos franceses que termina-ram a temporada de dança, levantaram-se em solidariedade. Queriam trocar umas figurinhas e, quem sabe, arrumar alguma diversão para o fim de noite, já que o papo com os dançarinos franceses não se desen-volveu de forma satisfatória.

Saíram os cinco por fim, pararam no Istambul para papear.

“Contaí dessa paixão, Grande.” “Não tem muito para contar, Fabi.” “Conta esse pouco. Apresenta a menina.” “Não posso Burro, não rola. Ela é inapresentável.”

Os rapazes calaram-se. Já sabiam do que se tratava.

Seis uísques depois, Grande já estava pronto para vomitar a sua história.

“Pois é. Já faz quatro meses que acabamos o namoro e eu achava que iria cair na esbórnia com a mulherada. Achei errado. Andava muxi-bento, sorumbático, macambúzio mesmo. Nada de farras com os in-gleses, nem com os mexicanos. Acabei apelando para uma profissio-nal do ramo…”

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Suzi e Fabi se entreolharam complacentes, se sentido superiores e avil-tadas ao mesmo tempo.

“… liguei para uma que me foi recomendada por um amigo, que é um connoisseur desse tipo de regalia e fui encontrá-la naquele hotel perto da Sães Peña, o VIP. Chegando, me peguei de quatro. A menina era LINDA. Simpática. Elegante. Inteligente. Tava na vida para poder pagar a faculdade de Medicina, já que era formada em letras e enfer-magem. Na cama, um espetáculo. Pendurei-me no lustre e tudo. Es-tou quebrado até hoje.” “Mas até aí não há novidades. Temos dezenas de casos semelhantes. Profissionais que fazem jus a cada centavo gas-to, traduzindo-os em quebra de ATP em ADP e em gozo no final do processo. Legítimas fodas bem dadas.” “Porra Burro, é claro que nisso não tem novidade. O problema é que nos entremeios ficávamos olhan-do-nos um nos olhos do outro.” “Encarou a fera no olho. Não pode.” “É, Gordo, não pode. Mas encarei como encarava antes qualquer ou-tra. E ela me veio com a velha conversa: ‘você é diferente. Você é tão mei-go, tão carinhoso.’ E eu: ‘Você gostaria de sair comigo? Fora de um progra-ma?’ ‘Claro!’ E a merda, a grandessíssima merda é que acreditei lá den-tro em tudo que ela disse. Eu quis acreditar e ainda espero uma ligação dela. Tô apaixonado por uma puta sem nome.”

Os cinco ficaram sem falar um bocado até o garçom trazer a conta.

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Sobreviventes da maratona

Atravessando a Nossa Senhora de Copacabana às oito da manhã, mal notou os tipos que o encaravam. Quando subia a Santa Clara em dire-ção à Barata Ribeiro ouviu um coxixo mal abafado.

“É esse mermu?”

Gelou.

Sentiu as pernas bambearem e tentou despistar entrando no supermer-cado. Fingiu que olhava os preços nas prateleiras e deu uma olhada para fora. Eram três e estavam esperando-o do lado de fora.

“Fudeu!”

Como podia dar um mole daqueles? Sabia que tinha de sair cedo, mas oito horas era quase de madrugada, ou não era?

“Claro que não era! Tem uma porrada de gente na rua desde as cin-co e meia.”

Pensou ao se lembrar das madrugadas em que esperava o 416 para ir para a escola na Tijuca. Pegou uma ou duas coisas na prateleira e ten-

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tou dar uma olhada melhor nos elementos que o esperavam. Não esta-vam mais lá fora.

“Fudeu! E agora? Eles estão mais à frente, é certo. Não dá para sair por aqui. Vou tentar a lateral.”

Saía da fila quando viu um deles empurrando o carrinho com uma ca-chaça e um sorriso na cara. Procurou nervoso os outros dois. Na outra fila. Um com um pão e o outro com raiva. Sabia que não tinha jeito.

Começou a sorrir. Sabia que ia acabar de um jeito violento, a namora-da sempre dizia isso. Não interessava como ela fosse: gorda, magra, loi-ra, morena, ruiva, japa.

Sempre dizia: “Essa vida vai acabar contigo.” “Mas é sempre essa vida que acaba com a gente, não poderia ser outra.”

A maior parte delas não entendia a retórica. Mas uma ou duas até riam meio sem graça. Pena que ele não se lembra mais dos nomes delas.

Também não rezava, nem pedia nada a nenhuma “força acima e além”. Aceitava o que o mundo lhe dava e era grato por isso. Só achava que não devia ter dado o balão no Ajax. Tava cobrando a grana do esquema fazia seis meses. Pena que ele tinha usado a grana para pagar o Dantas, que ti-nha ameaçado capá-lo. Ele sabia que o Dantas era gente boa, até tentou avisá-lo que colocar anúncio na net para vender armas era uma roubada. E ele tinha culpa se a PF tava aprendendo a usar o computador?

“PORRA! ESSA FILA NÃO ANDA!” Berrou em altos brados.

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Começou a chamar a atenção dos seguranças e pegou o inseticida do carrinho, destampou e largou tudo em cima da cara da senhora que es-tava na frente dele. Juntaram quatro seguranças e uma confusão ge-neralizada se formou. Uns seguravam a senhora que estava tendo um choque anafilático – e ele tinha como advinhar que ela era alérgica a inseticidas? – outros tentavam segurá-lo – tarefa difícil, já que tinha quase dois metros e era bem treinado naquelas atividades que os boizi-nhos da Zona Sul praticam na sua ociosidade mental.

Largou a mão no cara da cachaça e pulou por cima dos caixas. Saiu correndo pela Santa Clara. Rindo feito uma criança que acabara de fa-zer uma merda grande como quebrar uma vidraça ou ver as meninas trocando de roupas no banheiro. Caiu no chão antes de ouvir o tiro.

Só sentiu alguma dor quando a cara ralou no asfalto meio quente.

“Lia. Ela entendia a parada.”

Morreu.

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De prêmios Nobel e sonhos em azulpara Andrea Capella

Numa noite de insônia, como tantas outras, ele resolveu dar uma vol-ta na praia. Não morava muito longe, uma quadra e meia da praia que, mesmo às 4h da manhã, estava bem freqüentada pela população mar-ginal de uma cidade turística. E, entre putas, pivetes, traficantes, pe-dintes, população de rua, turistas em busca de sexo barato e bêbados, ele teve uma idéia genial. Aquilo que iria mudar o mundo.

Seriam Vinte Histórias Universais. Daquelas que todos escutam e re-petem, verdadeiros Memes Literários, como Branca de Neve, Sete Sa-murais e O Herói Que Sai De Casa E Volta Maior Que O Mundo.

Apesar disso já ter sido feito várias e várias vezes, o grande diferen-cial seria a magnitude da obra. Em cada país, ele escolheria um escri-tor famoso e um ilustrador cujos estilos combinassem e ambos recria-riam a história. Então não seriam vinte histórias, mas trezentas ver-sões de cada história, recontadas de forma original e ilustradas de ma-neiras nunca dantes vistas. Haveria espaço para o pesquisador, para o neo-beatnik, para o gótico, para o neo-urbanista, enfim, cada um uma meta-obra em si.

Mas isso não era bastante. Em cada nação ele encontraria parceiros que, junto com a Unicef, ajudariam a bancar a produção dos livros que

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seriam vendidos a uma unidade monetária de cada país, a título de aju-da de custo. As tiragens seriam sempre na casa dos milhões e, em pou-co tempo, seria o maior projeto literário do mundo inteiro, desde Gu-temberg. Depois, edições encadernadas em aço, uma para cada país participante, guardariam um exemplar de cada obra em cada idioma, preservando a arte e as histórias por si só, seriam distribuidas, juntan-do-se aos tesouros nacionais. Vinte histórias contadas por todos os po-vos de várias maneiras possíveis, seria uma obra digna de lembrança por gerações a fio.

Depois viriam os louros, a primeira obra global haveria de ser um suces-so, de certo! quem não gosta de Branca de Neve, dos Irmãos Grimm? Seriam 150 línguas diferentes, já que era um embrião de projeto. Al-guns países não botariam fé mas, até no Irã seria publicado. E lá iria ele, receber prêmios e mais prêmios até passar mais tempo nos aviões e aeroportos que em casa, trabalhando.

Haveria uma equipe que selecionaria os textos e as artes, espalhada por todo o mundo. E ele coordenaria os prazos de produção e de entrega e os faturamentos. Mas isso não era o que ele quereria para si então ele delegaria a parte burocrática para a própria ONU e seria um embai-xador dos contos e rodaria o mundo (185 países) na segunda edição, O Rouxinol do Imperador.

Alguém lhe alertaria que não haveriam tantas histórias assim, então ele pediria de antemão uma pesquisa sobre as histórias infantis mais difundidas no mundo e ele descobriria que não eram vinte, mas cem, lá pela sexta edição: A Morte de Arthur. Ainda assim, preferiria ficar nas vinte iniciais e desistiria de rodar o mundo todo, apenas indo nos países que recém ingressariam no projeto. Entraria em países em zo-

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nas de conflito e teria a certeza que estava caminhando com passos que não eram seus mas da humanidade encarnada, sonhando a vida de al-guém.

Nessas viagens, se esqueceria das pessoas que estiveram com ele duran-te toda a sua vida, da família e da filha que lhe inspirara esse projeto global e, dessa saudade de se lembrar dos que amava, ele sentaria numa cadeira de um aeroporto, viraria para a criança que estaria sentada a seu lado e contaria a única história que ele queria todos conhecessem.

“Havia um cavalo azul que pastava nos sonhos das crianças e, quando uma acordava, ele corria e pulava para o sonho de outra para pastar mais sonhos de sorvetes, pés sujos no chão, sorrisos desgovernados, dentes moles e camisas meladas de chocolate.”

Mas ele descobriria que estava apenas tentando contar os seus sonhos. E eles não interessavam às crianças que agora leriam e veriam as maio-res histórias da humanidade. Afinal de contas, o que era ele, senão ins-trumento. Títere de uma força maior que é o legado da humanidade naquilo que ela tem de melhor.

Daí, da praia, ele resolveu comer um cachorro quente, tomar uma coca-cola e voltou para casa, tinha de acordar cedo no dia seguinte e muito trabalho a fazer daí por diante.

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Historinha

Imagine só, a destraída da menina me deu condição e não bobeei, mar-quei ponto e beijei a noite inteira. Daquela noite, fazendo mais duas ou três semanas, ela arrumou namorado. E eu, tronxo, mas firme, esperei até o distinto comer pó de rua.

Eis que encontro, a menina daquela noite que não quis mais beijo: nem com o outro nem comigo. Fico com copo de coração gelado na mão. E tome copo, tome copo.

Quarta, não sou eu, mas esboço de gente que nem se encontra na cama.

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Toes across the floor– pós Blind Melon

Toda sexta ele pegava o ônibus e ia lá para a Ilha do Governador. Saía de Copacabana no 123, 125, 127 ou qualquer um outro que passasse no Castelo e pegava o 324 ou o 326 ou ainda um frescão, quando tinha sor-te. Passava no supermercado, fazia compras, caçava uma ou duas pi-zzas congeladas (muzzarela sempre, a cobertura complementar faria na hora) e ia passar o fim de semana ouvindo Blur, Libertines, The Cure, Black Crowes e Blind Melon. Sonhava com o dia que só iria andar no-vamente de táxi.

Os únicos bens que amealhara na sua vida prévia, em família, eram as extensas coleções de livros, revistas, CDs e DVDs que foram alvo de discórdia, disputa e, de certa maneira, desapego.

“É a única herança que vou deixar pros meus filhos. Vai chegar um dia que vou levá-los ao quarto, abrirei os armários e mostrarei: isso tudo é teu. Leva tudo que puderes, mais deixa tudo aqui para que tenhas quando retornares.”

Era xingado pelos amigos por isso, mas não ligava muito. De certa for-ma, vivia num acetismo bem caro e trabalhava em função dos livros, CDs, revistas e DVDs. Gastava um tanto também com jornais e tal, mas isso conseguia mais barato acessando a internet.

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De quando em vez fazia uma extravagância como um computador me-lhor, uma televisão de plasma, uma caixa de som de ressonância perfei-ta, um armário mais resistente para os livros que pareciam procriar.

“Basta juntar dois livros, um manto seco, trigo num canto úmido do porão que eles se multiplicam. Eles e os kobolds.”

Enquanto isso, o sofá resistia bravamente apesar das manchas indelé-veis que se espalhavam como estampas; a cama que desistira da vida e cometera suicídio seis meses antes por conta de uma estripulia sexu-al mal-finalizada; o banheiro que via limpeza nos meses ímpares, não terminados com 31; a cozinha que era um excelente viveiro de animais quase catalogáveis.

“Acho que deixei um sanduíche aqui, na semana retrasada.”

Desta feita, às sextas-feiras ele corria do trabalho, ansioso por chegar em casa para organizar os filmes que chegavam durante a semana e que metodicamente arrumava do lado do DVD player. Sentava o corpo que já doía e de quando em vez, cochilava. E desses sonhos nasciam histó-rias de saudades, amores e medos.

“Escreve essas histórias, cara. Você é super talentoso.”

Dizia alguma das poucas mulheres que ainda se despiam das suas rou-pas e do seu tempo para ter prazer com o pouco prazer dele e, cacete dos cacetes, escutava as suas pirações literárias.

“Você merece alguma coisa melhor, mais importante que isso.”

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Ou era isso de uma das fodecas, ou eram as ex-esposas que vinham lhe criticar o estilo de vida.

“Você é bom. Só tem de acreditar mais em si mesmo.”

Dizia a mãe do mais novo. A única que se importava com o que acon-tecia com ele e por vezes pernoitava lá.

“Você é um merda!”

Essa era a mãe do mais velho, que tinha comprado três apartamentos em Miami no último mês.

“Você acabou com a minha vida.”

Era a ex-esposa do meio que tinha morrido de overdose há seis anos. Quase nunca pensava nela. Quer dizer, quase nunca sóbrio.

Não adiantava. Ele resmungava e se fechava em copas, guardando para si o universo rico que germinava na sua mente.

Quando morreu, antes de fazer cinqüenta anos, seus dois filhos vende-ram os livros a peso, pegaram um ou dois discos que lhes interessavam e deram os restos das roupas, filmes e revistas para um burro sem rabo que passava por ali.

Foram parar num brechó junto com um caderninho velho: de capa dura, folhas amareladas, com uns textos com uma caligrafia bonita, com letras bem desenhadas de gente culta, e fizeram chorar uma moça que se distraia enquanto o namorado experimentava um coturno de

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um pára-quedista de dois metros de altura que morrera de diabetes num dos acampamentos de sobrevivência.

Ela pagou dois reais pelo caderno.

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The sky is a landfill– pós Jeff Buckley

“Fala, amor. Você fica aí me olhando e não diz nada…” “É que você é tão bonita e os seus olhos verdes…” “Não enrola. Você tá querendo me dizer alguma coisa!”

Ele olhva para as mãos, para a mesa, os malditos olhos verdes que fu-zilam a vontade de falar qualquer coisa, a boca que emoldurou diversos sorrisos que faziam o seu núcleo derreter até chegar o centro da Terra.

“Tem um cara que mora na rua. Você conhece. Já deve ter visto. Às ve-zes ele está de terno, às vezes de moleton. Dorme ali mesmo, na es-quina com a Nossa Senhora de Copacabana. Não pede. Não briga. Às vezes tá de barba e cabelos compridos. Outras, tá com tudo aparado. Como se tivesse passado a noite no Leão XXIII” “Leão XXII, amor” “Sei lá. Só sei que tem alguém que dá comida (acho que a lanchone-te da esquina) e banho eventuais no cara. Ele não perturba e não inco-moda. Também não produz, tampouco consome. O que é esse cara?” “Não sei. O que é?” “Não sei, amor. Só sei que tem vários deles por aí. Nem falo das famílias que vivem de esmola, tráfico ou exploração das crianças. Falo do mendigos ‘legítimos’, se é que existe isso.” “Mas o que tem isso, amor?” “Escuta.” “Ok.” “No caminho daqui para o trabalho, passamos pelo túnel da estrada Lagoa-Barra, certo? Um dia vi lá den-tro um cara com uma barba de Osama, enorme. Com uns sacos de lixo

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amarrados como calça, tanga, sei-lá-o-quê. Segurava um cabo de vas-soura e estava na beirada do viaduto, agachado, esperando a presa, o megatério que ia dar mole e ser a janta da tribo dele, saca? Um verda-deiro homem das cavernas. Caverna essa que é o túnel Zuzu Angel.” “Mas o que isso tem a ver com tudo amor?”

Olhava para o rosto dela e não sabia explicar o assombro que o aco-meteu quando viu aquela figura louca, altiva (apesar de agachada). Era como tivesse encontrado com um ente atávico, algo que o remetesse às reais origens da humanidade. No lixo, o homem encontrava a sua es-sência. Mas tudo isso ainda estava muito cru na sua cabeça, não era uma idéia formulada, só uma impressão que encobria algo muito mais sério.

“Eu queria ser aquele cara, amor.”

Ela olhou com uma cara de ‘outra maluquice dele’.

“Amor, vai começar o filme daqui a pouco. Cadê os ingressos?” “Tão aqui.” “Então vamos? Não quero ficar atrás.” “Quando você vai no ocu-lista, amor?” “Marquei para semana que vem.” “Faz dois anos que você marca ‘para semana que vem’.”

Na bombonière, pediu uma coca e pipoca pequenas e um guaraná diet médio. Ela estranhou, mas não comentou. Estavam juntos tempo o su-ficiente para saber que ele tem disso, que não consegue falar as coisas de forma clara, aberta e honesta quando se trata de seus sentimentos.

Já com os desejos, os ódios e as vontades, era bem diferente. Dizia na cara: “Eu quero!” e brigava com o mundo se fosse necessário. Mas o

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sentir era um terreno inóspito. Não que não tivesse sentimentos. Ela o vira chorar umas três ou quatro vezes e ele não tinha medo de escon-der uma alegria ou um dissabor. Era isso que o tornava encantador: tão transparente e tão fechado ao mesmo tempo.

Ela abraçou o seu amor bem forte no cinema. Deu-lhe um beijo no ros-to assim que as luzes se apagaram e sentiu-lhe as lágrimas salgadas.

“Eu só queria ser livre.”

Ela ouviu-lhe baixinho e conteve um soluço.

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Skin and bones– pós The Sundays

Chovia e não vinha um puto de um táxi. O desgraçado já estava mo-lhado até os ossos e xingava o tempo, Deus, São Pedro e a mãe dos fi-lhos da puta que passavam de carro, quentinhos, sequinhos. O mar de-cidira mudar de endereço justamente naquela noite. Do Atlântico para Botafogo. E trouxera bagagem.

Depois de desviar de três ratos mortos, quatro restos de sacos plásticos, uma centena de latas, garrafas pets e outros objetos de dejeto urbano ele consegue chegar no abrigo de ônibus da Rua da Passagem. Dez mi-nutos que pareciam cem, passa um táxi. Parou. Entrou.

“Pronde, doutor?” “Xavier da Silveira, Copa” “Chuva forte, né?” “É”

“Putaquepariuquefriacadanadatomolhadoegeladoatéosossos!” Pensou.

“O doutor já traiu?” “Hein?” “Tô vendo que o doutor é noivo.” “Doutor não que eu não sou médico, nem advogado, nem tenho PhD!” “O dou-tor é noivo, né?” “Sou.” “Já traiu?” “Por quê a pergunta?” “Por que eu tô traindo a minha mulher. Ela fica lá em casa o dia inteiro e eu, aqui na féria, to me amarrando com uma aí que tripulou mês passado. Não ti-nha dinheiro e me chamou para subir pro apê. Gostosa a dona. Corri-da de Copa pro Méier. É puta, sabe?” “Sei.” “Mas me entende, conver-

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sa comigo. Não me enche o saco, nem me cobra nada. E fode comigo todo dia. Dá até o cu. E goza gritando como se fosse um bicho. Che-ga a acordar os vizinhos. Mas é puta, sabe?” “Sei.” “Cozinha bem pra caralho. Ganhei uns dois quilos.” “E a tua esposa? Já sabe?” “Sabe.” “E ela diz o quê?” “Diz nada. Tá querendo separar” “E você vai separar?” “Não sei. É caro. E ela é puta, sabe?” “Sei.”

O carro pára.

“Dez reais, normalmente seriam sete, mas com chuva, trânsito ruim, sabe?” “Sei.” “O senhor acha que eu devo me separar?” “Não sei.” “O senhor já traiu?” “Sim.” “Mas não era puta, era?” “Não.” “Boa noite!”

Atravessou a calçada, abriu a porta, acordou o porteiro. Subiu os dois lances de escada, abriu a porta do apartametnto, tirou a roupa, entrou no banheiro.

“Filho da puta.”

E chorou como se estivesse revivendo tudo de novo naquele momento.

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Rua Siqueira Campos, 143

Ela procurou em vão um olhar conhecido na turba que pulava. Mal conseguia enxergar com aquelas luzes estroboscópicas e a escuridão repentina e os spots coloridos que insistiam em pipocar no seu rosto. Achou um canto na penumbra, um caminho para o bar, um outro para o banheiro e lá ficou. Esperando um “alguma coisa” acontecer.

“Oi!”

Disse o dublê de Mario, do Mario Bros.

“Você não costuma vir aqui, né?” “Não.” “Quer um chope?” “Não bebo, obrigada.” “Pô. Te achei mó gata.” “Sei.” “Queria levar um papo con-tigo.” “Eu não.”

Saiu trôpego, meio bêbado, meio frustrado.

“Onde vou arrumar uma gatinha para acordar junto? Já são 4h30…” “Oi!”

Disse o rapaz esguio e esbelto, alinhado e fashion que estava meio en-costado no balcão do bar.

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“Você vem sempre aqui, né?” “Venho sim. Mas hoje tá fraco.” “O DJ não tá mandando, né?” “Nem.” “E tá meio vazio. Normalmente aqui é um fervo só.” “É mermo! A essa hora taria impossível subir a escada sem al-guém passar a mão na tua bunda.” “Pois é. Por falar nisso, posso te pagar uma bebida?” “Taí. Se não vou pegar ninguém, melhor encher a caveira.” “Não fale assim, você pode descobrir o amor onde menos imagina.”

Tentou roubar um beijo entre a barba e o boné do George Lucas em miniatura.

“Pô cara. Meu lance é mulher.” “Foi mal, me desculpa aí… é que você me lembrou meu ex.” “Tudo bem cara, mas pô, pega leve aí. Se fosse um jiujiteiro desses que vieram hoje tava te cobrindo de porrada.” “Eu sei. Se bem que eles não gostam daqui. Só os entendidos mesmo que vêm.” “Pô. Eu gosto daqui. As meninas são mais fáceis. Deve ser por isso que os caras tão freqüentando. Cara, vou lá. Tem uma me dando mole. Valeu!”

Ele ficou vendo o Mario Bros ser dispensado por uma outra mariazinha.

“Tem gente que não sabe quando a sorte grande bate à porta!”

Pensou. Rodou a sala e encontrou a amiga que não via desde que fora internada. Os pais a colocaram numa clínica. Era menor e tava com su-jeira dentro da boate. Foi pra cima dela puto da vida.

“O que você tá fazendo aqui, menina? Seus pais tão sabendo?” “Nem. Tô na boa. Não agüentava a fissura.” “Tu tá maluca. Acabou de sair da clínica.” “Não tô nem aí. Quero curtir e deixar um corpo magro e bo-nito.” “Vem comigo. Vou te levar para casa.” “Não quero, tô legal aqui.” “Legal porra nenhuma! Tá toda mijada!” “Ih! Pensei que era cerveja!”

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“Tá vendo? Nem sabe mais ir ao banheiro! Vamos para casa agora! Tô de carro e te levo lá!” “Não quero. Tô com os meus amigos!” “Quem é teu amigo, menina? Quem te dá bala? Quem te dá teco? Algum des-ses putos foi segurar a tua mão quando você tava na falta? Quando tu tava lá estribuchando na casa da tua ex, tu ligou para um desses ‘ami-gos’ daqui? E quem é que vai te arrumar um frila, um teste de casting para pagar as tuas contas com os traficas? Vambora e é agora!” “Deixa só eu dar um beijo no menino ali e eu me vou contigo, tá?” “Tá bem, mas eu vou te buscar se você demorar, viu?”

Ela foi meio que arrastando, meio caindo até os puffs no fim da pista de dança e encontrou o “peguete” já em cima de uma outra menina. Ela se arrumou, tentou disfarçar a urina que já colava entre as coxas e reuniu o resto de brio que lhe sobrara.

“Já tá com essa aí? Nem me deu tempo.” “Tempo pra quê? Vai lá que você não tá se agüentando em pé. Vai com o teu amigo, vai. Não tenho aquilo que você quer.” “Cê tá maluco, queria só dizer tchau. Bonita a tua ami-ga… Eu vou… Eu queria… Eu acho que…” “Vai logo! Some!”

Ela virou as costas e saiu com o amigo que a esperava à escada.

“Não precisava ser grosso com ela!”

Disse a outra, já acostumando com o cheiro de mofo e a fumaça de gli-cerina das máquinas

“Afinal ela tava contigo né?” “Tava. Não tá mais. Agora você tá comi-go.” “Acho que não, viu! Não gosto de troglodita!” “Aí! Sou grosso mas não precisa xingar!” “Me larga, eu vou embora!” “Vai nada! Ficou aí

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me tentando, agora só sai daqui depois que me der!” “Que dar o que, menino! Tá maluco?” “Vai dar sim, ou te quebro o braço!” “Ai! Tá ma-chucando! Me solta! Me solta! Alguém me ajuda!”

Um baixinho cutuca o ombro do cara e, de dentro da barba, boné e ca-misa do Mage, sai um soco que nocauteia de prima o lutador. Sucede-se uma comoção brevemente abafada pelos seguranças. Fim de noite, barba e boné e a menina do início da história sentam-se no meio fio, em plena Siqueira Campos. Padarias abrindo, bares fechando, água suja no meio da calçada de pedras portuguesas. Ele, de olho roxo, ela ainda soluçando no colo dele.

“Não vou poder voltar aqui por um bom tempo. O imbecil deve ter marcado a minha cara.” “Tá doendo muito?” “Só quando respiro” “Sabe qual o melhor da noite?” “Não, linda. Não sei.” “É o sol nascen-do.” “Em Copacabana, com certeza é.” “Tem o meu celular?” “Não. Dá aí.” “Tó.” “Te ligo?” “Claro. Beijo, é meu ônibus.” “Beijo.”

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Uísque e chope

Eram apenas os dois no bar. Ela queria acabar com tudo e ele sabia disso desde o momento que ela lhe ligara dizendo que precisava ter uma “con-versa definitiva” sobre o relacionamento. Disse que topava, mas se arre-pendeu no dia seguinte. Se enrolasse mais uma semana, pensou, ela esque-ceria tudo e voltaria ao que era antes. Estava se enganando, meio conscien-te, meio tentando se agarrar à última nesga de esperança. Afinal de contas, não ficara esperando dezessete anos, metade de sua vida, para ter a primei-ra noite de amor com ela à toa. Lutaria até a última gota de saliva para ten-tar manter o sonho em carne.

Chegou uma hora antes do combinado e começou a beber esperando e re-passando tudo que iria dizer. A cada dose de uísque, a estratégia mudava. Na sexta dose, decidira rasgar as veias e dizer: “sem ti, sou nada.” Muito dramático e sabia que, apesar da dor da perda, sobreviveria. Afinal de con-tas, era o tempo ao seu lado. Ela não caíra em si e descobrira que ele era o cara certo para ela. O único que a amara incondicionalmente. Pois é. Ele jogaria tudo isso na cara dela e não haveria argumentação contra. É TPM, ela realmente te ama, cara. Você foi perfeito, apesar das duas broxadas e de nunca se lembrar do nome da irmã dela. Aliás, que irmã…

Ela entra. Todos no bar param e a olham. É linda. Não tem jeito mesmo. Você foi feito para ela e como ela não se toca disso? Puta que pariu! Tá linda mesmo.

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“Oi.” “Oi.” “Senta aí.” “Brigada.” “Você quer um chope?” “Quero sim. Você sabe o que precisamos conversar.” “Não sei. Só imagino.” “Cara, não dá mais para continuar assim. Você sabe que entre mim e você não tem mais nada. É um erro termos tentado algo depois de todo esse tempo.” “Mas você não pode negar que foi bom enquanto durou.” “Não foi.” “Mas não era o que parecia. Você tremia a meu toque, virava os olhos quando eu te deitava e te amava.” “Sou sinestésica, cara. Você sabe disso. Gozo com o sacolejar do ônibus.” “Mas você sabe que eu sempre fui apaixonado por ti.” “Eu sei. E é por isso que temos de parar por aí. Eu gosto de ti. Mas nun-ca te procurei. Nunca te procurei nesses dezessete anos. Não foi à toa, né.” “Eu sei, mas.” “Mas nada. Não dá. Tentamos, e tal. Você tentou, é verda-de. Perseverou por esse tempo todo, eu sei, é um herói. Mas não dá mais. Não sou a mulher para ti.”

Ele se lembra dos tempos do colégio.

“Mas você não entende. Eu te…” “Não fala. Vai ser pior pros dois.” “Mas eu…” “Quando um não quer, dois não se beijam.” “Mas eu te bei-jei. E muito. E você gostou. E quis mais. E pediu que eu fosse teu ho-mem. E eu fui. Eu era antes de você me pedir que fosse. Antes mesmo de nascer. Mas você quis escutar os outros. Não me deu nem a chan-ce do não. Eu te dizia que ‘nunca acaba’ mas você nunca acreditou em mim. E aqui estou eu, rasgando minhas veias na tua frente. Abrindo o core e derramando uma mágoa e um desejo que nem são mais meus.” “Eu sei. Mas é assim que as coisas são. Te disse uma vez que, se man-dasse no meu coração, me apaixonaria por ti. Mas não é assim que as coisas são. Não te amo. Não te quero. Já até te esqueci.”

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Nos sonhos ela vinha de camisa branca e calças jeans. Batom vermelho. Cabelos negros (com um fio ou dois brancos já na adolescência). Pele alvíssima, apesar da praia.

“Me deixa ser teu amante, teu capacho, teu brinquedo. Quero apenas estar na tua sombra, te acompanhar à baia.” “Não, cara. Você merece algo melhor.” “Não quero algo melhor. Quero você.”

Outro chope. Outro uísque. O primeiro esquenta no copo enquanto o outro some como se evaporasse salgado.

“Não chora, vai.” “Como não chorar?” “Eu sabia que isso tudo era um erro.” “Eu vou ficar legal, tá?” “Vai mesmo?” “Claro que não, porra! Eu te amo, caralho! Você já amou alguém nessa tua vida? Amou mes-mo? De verdade? Porra, você não sabe o que é amar à vera. Amar in-condicionalmente, saca? Tá certo, eu sei que sou um platônico. Que amo mais o amor e a paixão que as pessoas em si, mas é em você que eu deposito as minhas fichas. Muita gente tem medo do jogo da vida, mas eu aposto em ti tudo que eu nem posso arcar e vem do nada e diz que é isso: beijo e tchau?” “Você sabe que não é do nada. Tenho bons motivos para isso.” “Ah é? Que motivos?” “Você sabe melhor que eu.” “Sei nada.” “Pára e pensa.” “Nada a ver isso. Babaquice tua.” “Babaqui-ce? Você cantou minha irmã, seu filho da puta!” “Eu tava bêbado!” “E daí?” “Ela me lembra de você quando bem nova, quando te conheci.” “Pois é. Você é apaixonado por aquela menina secundarista, tímida, re-primida. Eu cresci, porra! Já sou uma mulher!” “Uma mulher linda.” “E canta a minha irmã!” “Eu disse que estava bêbado.” “Explica, mas não justifica!” “Eu sei. Me perdoa.” “Posso até perdoar sim. Mas não dá mais. Acabou o tesão. Acabou.”

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Numa festa ele disse a ela.

“Eu te amo.”

E ela riu. Estava bêbado, como sempre, mas nunca tinha sido tão sin-cero na vida.

Meses depois ela disse a ele: “Isso não acaba?”

Ele disse: “Nunca acaba, menina. Nunca acaba.”

Ela se levanta, tira da carteira cinco reais e deixa para pagar a conta. Ele já é só lágrimas. Ela dá as costas, contendo o choro e o desejo de beijá-lo. Pena é um sentimento horroroso, mas ela não consegue evi-tar. Afinal de contas, em um outro mundo eles teriam se conhecido no colégio, ele teria pedido permissão para namorar e os pais dela teriam consentido. Talvez tivessem casado aos vinte e poucos e teriam três fi-lhos. Morreriam aos noventa. Ele primeiro, ela dois meses depois.

“Adeus.”

Ela saiu. Ele ficou duas horas olhando o copo vazio com o gelo derre-tendo.

“EU TE AMO, PORRA!” Gritou entre os bêbados do bar em San-ta Teresa.

Nunca acaba.

Mesmo.

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Ne me quite pas– pós Maysa

Se conheceram numa festa, dessas que hoje chamam de Ping-Pong® ou Adams® ou coisa parecida. Nada de mais, nenhuma história espe-cial. Era amiga de um amigo de uma ex-namorada de um primo. Tava todo mundo lá e ele quase que não ia. O ficante da menina pipocou an-tes de ir para a festa e sobrou um convite. Ele topou. Tava de bode, cur-tindo uma dor de corno pq a ex-namorada tava já com um outro.

“Porra nem esperou o defunto esfriar!” “Cara, tem três semanas já!” “E daí? Por um acaso saí passando o rodo no dia seguinte?” “Não, seu babaca, tu já tava passando o rodo antes. Uns seis meses antes.” “Por-ra, isso não tem nada a ver!” “Como não? Tu chifrava a menina a torto e direito e agora vem exigir que ela fique de luto pelo fim do namoro? Tu não dava a menor bola para ela e é isso aí. Vem um terceiro e rou-ba. O ladrão tá ali, do lado das meninas para garfar quando malandro dá mole.” “Ah! Num ferra! Tô puto e tá acabado!” “Deixa de ser babaca e vamos na festa! Vai ser maneira!” “PORRA! Como é que uma festa com Paquitas vestidas pode ser maneira?” “Deixa de ser escroto e põe logo uma roupa. Passo aí em 10, beleza?” “Tá bom…”

Chegou, viu a galera, não gostou de cara. Muito cheio, entrada cara, cerveja ruim, muito barulho, não dava para tomar bala.

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“Quer uma cara?” “Olha a sujeira, deixa de ser mané! A festa tá visada para caralho!” “Porra! Já vi que vou ficar puto!”

Foi pro banheiro dar a primeira mijada da noite. Conseguiu um can-to mais discreto e mandou uma meia-estrela pra dentro. Comprou um Red Bull® e começou a quicar na pista. Pisou em vários pés, derrubou uma menina e arrumou três brigas em seqüência. Foi expulso da fes-ta.

Chegou em casa, ligou o computador.

“Caralho! Não vou dormir! Tô muito aceso! Puta que pariu!”

Acessou o Orkut e viu um recado para si.

“Te vi na festa. No início te achei um gato. Depois caiu a máscara e saiu um babaca. Não sei por qual dos dois me encantei mais. Me liga!”

Era a tal da dona do convite. Mal sabia que iria cortar os pulsos muito em breve por não conseguir suportar tanto amor doentio.

Ligou no dia seguinte e marcou um encontro achando que iria encon-trar uma baranga-mor. As fotos não mostravam muito, mas baseou-se no relato do primo do amigo do colega do(a) ex que disse que ela era muito gata. Inexplicavelmente tomou um banho antes de sair de casa e até escovou os dentes.

Pegou o carro, passou na casa dela que era a três quadras dali.

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“PORRA! Tu vai de carro para a casa da menina?” “É que se ele for gata, já arrasto pro motel!” “Caralho, cara. Tu tá pensando o quê?” “Ué. Se ela não sabe o que é, não deve temer; se já conhece, acostumou, né?” “Puta que pariu! Só você mesmo!”

Parou, ligou, buzinou e tava quase indo embora quando a menina sai da portaria três minutos e quinze segundos depois da primeira buzi-nada.

“Você chegou mais cedo.” “Tava ansioso para te ver, minha flor!”

A menina realmente era um espetáculo. Mignonzinha, cabelos negros, escorridos ao longo do corpo, chegavam à cintura. Cintura que, de tão fina, parecia que ia partir numa freada mais brusca do carro. Ancas respeitáveis.

“Boa parideira!” Pensou.

Seios pequenos e firmes e não usava sutiã. Bom. Ia ser uma bela duma foda. E foi uma bela duma foda. A melhor da vida dele. A última.

Duas semanas mais tarde, estava ligando três vezes por dia para a me-nina, catando contatos na internet, deixando scraps, pagando o maior mico digital que uma pessoa conectada jamais poderia pagar. Come-teu uma dúzia de poemas de 1k e gastou uma fortuna em presentes que mandava entregar na casa dela.

Nada movia a atenção da menina.

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Resolveu estreitar os contatos com todos com quem podia para fazer um “cerca lourenço” na vida dela. Os conhecidos todos desapareciam. Os olhos de desespero afastavam qualquer chance de ajuda. Afinal de contas, nunca cultivara uma amizade, apenas conhecidos, kálegas de farra. Já estava no limite quando resolveu acampar em frente da casa dela. Não era difícil, o apartamento dava vista para a entrada do prédio e ele tirou uma semana de férias para ficar de butuca. Ganhou uma de-missão já que nem se concentrar no trabalho conseguia mais.

“Melhor. Dá para ficar mais tempo em casa na vigia.”

Com a grana da recisão comprou um binóculo noturno e um normal. Um frigobar e uma poltrona confortável.

Não precisou esperar muito. Na segunda noite viu a menina se despe-dindo de outra. Com um beijo na boca. Outro beijo. Mais um. O ne-gócio estava esquentando. Subiram.

Desceu como um louco as escadarias do prédio, correu a distância entre os quarteirões num pique só e se prostou na entrada da casa dela. Espe-rou a noite inteira. Viu a outra sair pela manhã mas não se abalou.

Quando ela finalmente saiu – “Linda, linda com a luz da manhã!” – ele a interpelou.

“Por quê?”

Só conseguia dizer isso.

“Patético.”

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Deu um beijo na boca dele com um sorriso malvado e seguiu para o trabalho.

Ele voltou para casa e sabia o que lhe restava.

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The murder mystery– pós Velvet Underground

Acordou cedo, mas perdeu a carona assim mesmo. Antes tivesse dormi-do em casa. Teria tempo de tomar o banho quente, fazer a barba e tro-car uma roupa passada. Correu e pegou o 2016 Centro-Mandala e tentou não congelar enquanto se perguntava por que raios esses ônibus com ar condicionado tentavam virar geladeiras e freezers no inverno gélido do Rio de Janeiro. Tá certo que, se fizesse sol, poderia bater uns trinta graus fácil, mas não era o caso. Enquanto azulava os lábios, viu que marcava dezenove graus no relógio-termômetro da General Osório.

Encostou, abriu o livro do Baudrillard e tentou ler um parágrafo.

“Cara mala.” Fechou e abriu o gibi do Super-homem.

À frente o casal comentava a vida.

“Ele tá na fase dois, né?” “Tá sim. Vai prá guerra e não perdoa nada que use saia.” “Não entendo os homens.” “É que, quando termina um rela-cionamento, os caras têm de aproveitar o momentum de moleza que as mulheres davam para ele até antes de se separar.” “Hein?” “Pois é. Você nunca viu que, quando um cara começa a namorar, começam a apare-cer várias mulheres a fim? Principalmente quando o cara é meia-bom-ba: nem feio nem bonito; nem legal nem chato, quando arruma algu-

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ma foda fixa, as outras ‘concorrentes’ ficam ouriçadas. Acham que per-deram um ‘bom partido’ ou algo que o valha.” “Mas o que isso tem a ver com o momentum?” “Pois é. Quando ele termina o namoro/casa-mento/relacionamento/whatever as mulheres ainda consideram que é um ‘bom partido’ e ainda mantém aquele mole básico. Se o cara não aproveita ele vira mais um solteiro desinteressante. É claro que, se o cara for um canalha, ele não deixa o nível de interesse do sexo oposto cair nunca. Afinal de contas, o mulherio se amarra num filho da puta, né?” “Ah! Não acho que seja assim não. Deve ser outra coisa.” “En-tão conta.” “Acho que o cara tem de se reafirmar como macho mesmo. Os homens também sofrem o mesmo molde social que as mu-lheres e, em sua maioria, também querem ter uma famí-lia, sustentar uma mulher e tal, mesmo comendo geral na rua. E quando a proto-família dele acaba, ele fica meio sem rumo, sem nor-te para tocar a vida e tem de sair pegando geral para provar que ainda está no mercado, que aquilo não foi nada, que fazia parte da vida e tal.” “Mas faz parte da vida o ciclo de nascimento, evolução e fim. É normal em todo relacionamento.” “É, eu sei disso. O problema são aqueles que não sabem ‘morrer’ um relacionamento e fazê-lo renascer com a mesma pessoa.” “E quem sabe fazer isso? Ouço muito a galera falar isso, mas conheço poucos que o fazem. Eles ficam juntos por comodismo mes-mo. Preguiça pura. Ou medo. Sei lá.” “É o nosso ponto. Levantaí.”

Acabou de ler a seção de cartas e mudou para o banco da frente. Ain-da tava quentinho. Olhou a paisagem cacete da Barra da Tijuca e se lembrou do Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. O cara se pré-dispunha a viver tudo de novo com a mesma mulher repetidamen-te. Pensou rapidamente em dois ou três amigos que faziam a mesma coisa. Só que com mulheres diferentes. Sabiam que iam ficar apaixona-dos por dois, três meses, iam mudar para a casa delas ou fazê-las mu-

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dar para a sua casa, iam comprar um cachorro ou um peixe e iam ter-minar antes de fazer três anos de relacionamento.

E faziam a mesma merda de novo. E de novo. Again.

“Filme foda.”

Levantou, saltou no Barra Shopping, lembrou que tinha de comprar um cabo de rede novo para o modem que não funcionava e xingou a conta do banco.

“Preciso arrumar um emprego.”

Rodou por horas o shopping e só tinha achado interessante a tattoo no rego de uma morena linda. Aliás, foda-se a tattoo. Que morena! Tava acompanhada por um pitboy típico que usava uma bermuda da Bad Boy roxa com listras amarelas.

“Ha! Lembra o Coringa.”

“Amor, vamos tomar um sorvete?” “Pô. Queria um açaí.” “Que mer-da de açaí o quê! Tu não gosta dessa merda! Tá todo saúde só porque fez duas aulas de jiu-jitsu! Que merda!” “Pô. Açaí é bom.” “Bom por-ra nenhuma. Tem gosto de merda aquilo.” “Pô. Tu já comeu merda pra saber?” “Ah! Não fode!” “Pô. Num precisa xingar né?” “Caraca! Não acredito que você entrou nessa merda de jiu-jitsu.” “Pô. Precisava fazer um esporte, né? Não dava para ficar parado. Tava enferrujando.” “En-trasse numa academia, sei lá. Essa merda de cheirar saco de homem é coisa de viado.” “Né não. Nem é. E é bom para controlar a agressivida-de.” “Que agressividade, caralho. Eu é que sou o homem do casal. Tu

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não faz mal nem a uma flor.” “Pô amor… num fala assim. Fico mal.” “O pior de tudo é você comprar essas roupas de pleisson que não têm nada a ver contigo.” “Pô. São legais as roupas. O pessoal da academia gosta.” “Gosta é? Olha só aquele ali. Tá pouco se fodendo para que os outros pensam. Tá usando uma camisa do Super-homem e calças ver-melhas.” “Grená. A calça é grená. E a camisa é do Super do Kingdom Come.” “Como é que é?” “Nada não, amor. Nada não. Açaí é bom, mas eu divido um sorvete com você.” “Mmmm assim é que eu gosto. E nada de ver filme cacete, viu?” “Pô. Brilho Eterno é foda.” “Um saco.”

Rodou mais um pouco. Não comprou o cabo. Mas comprou uma edi-ção do Maus do Art Spielgman e riu quando viu o pitboy folheando uma edição velha do Olhos do Gato, do Moebius na livraria do New York City Center.

Que bunda tinha a morena.

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Three imaginary boys– pós the Cure

“Acho que ali vamos botar a bancada para os computadores.” “Mas não vai caber aqui no quarto!” “Cabe sim, olha . . .”

E fazia o desenho no ar da bancada que ainda não existia.

Estavam assim, enroscados e nus, entre os lençóis da cama bagunçada, entre camisinhas usadas, livros lidos pela metade, cds fora de ordem e um sonho desenhado no ar pelo indicador dele.

“Vai dar tudo certo. A cama é boa e o armário também. Bem sólidos. Agüentam a vida inteira.” “Mas e a televisão?” “A gente compra uma de 36 polegadas. Eu vi na loja. Não tá tão cara assim.” “Para que tudo isso?” “Para o centro de entretenimento que vamos montar na sala. Devedê com rometiatre. Gravamos cedês de emipetrês e vai dar tudo certo.” “E a mesa de jantar?” “Quebramos parte da parede da cozinha e fazemos uma janela. Ali servirá de bancada e mesa.” “Mmmmm parece bom . . .”

Se embolaram e gozaram juntos até amanhecer.

Ela deixou o prédio pela manhã, pegou o táxi e foi do Leme até a Glória. Abriu a porta do apartamento velho e viu a zona que as colegas (kálegas) fizeram à noite. As duas semi-nuas largadas na sala. Várias garrafas de

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cerveja espalhadas na mesa, sofá, estantes e em cima da televisão. Duas caixas de camisinhas vazias. Duas cuecas. Peraí, DUAS CUECAS?

“Quem teve aqui ontem?”

Nenhuma resposta.

“Anda!” Disse, chutando uma e sacudindo a outra.

“Quem teve aqui ontem?” “Uai. Eles não foram embora ainda. Tão dormindo no quarto.”

Putaquepariuputaquepariuputaquepariu.

“Puta Que Pariu três vezes!”

Abriu a porta e o viu com o namorado.

“Já disse que não quero ver a tua cara nesse apartamento. Fora daqui e leva o teu bofe junto!”

Chutou os dois pelados apartamento afora e acordou o outro casal de quatro patas que estava dormindo. Levantaram assustados, olharam pela porta aberta e saíram rapidinho abanando os rabos.

“Meus lindos. Só vocês não me decepcionam!”

Chutou mais umas garrafas e roupas e entrou no seu quarto vazio. Jo-gou-se na cama e dormiu o sono dos amantes satisfeitos.

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Os dois se recompuseram no corredor mesmo. Um, mal entendendo o que acontecera, outro se xingando por ser tão burro de voltar ali. Afinal de contas, com ela vivera boa parte da sua recente vida sexual. Não havia completado vinte anos e já morara com duas mulheres e três homens.

“Que foi?” “Ela é uma vaca! Mal comida, mal amada e mal resolvida!”

Desceram as escadas rapidamente e pegaram um táxi até Botafogo. O que estava atônito desce logo na General Polidoro.

“Foi ótimo ontem. Me liga, tá?” “Ok. Motorista, Leme, por favor.”

Fica perdido em pensamentos ainda sob efeito do álcool e das balas que tomara na noite anterior. Chega no prédio. Abre a porta da portaria. Cumprimenta o faxineiro. Sobe os lances de escada e cruza com o mo-reno do quarto andar.

“Olá.” “Tudo bom, cara? Farra boa a de ontem! Tua cara tá ótima!” “Pior que foi mesmo!” “Passa lá em casa depois, tenho novidades para ti. Ela vem morar comigo!” “Porra, que maneiro!” “Você tem de conhecê-la. E as amigas dela também. Mó gatas!” “Pô! Põe na fita!” “Pódeixá!”

Entrou em casa e sentiu que o destino iria lhe pregar alguma peça.

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Horizonte roubado

Dez da noite.

“Moçomedáumtroco?” “Vai trabalhar, vagabundo!” “Moçamedáu-mtrocopelamordideus?” “Tenho não, menino! Me deixa” “Mossu-mtroquinhosópreucompráumpão?” “Tenho aqui, menino, toma esse vale-bóia!” “Brigadumossu!” “Nada. Toma juízo e não cheira cola”

Compra um pão na graxa, coca-cola. Sobra um troco. Compra bala. Na padaria fazem uma quentinha com o frango que tava sobrando no forno e com um pouco de farofa. Vai até a calçada, perto da igreja e es-cuta uma música que sai, quase calada, de um apartamento do segun-do andar do prédio.

“Oh, pedaço de mim/Oh, metade arrancada de mim/Leva o vulto teu/Que a sauda-de é o revés de um parto/A saudade é arrumar o quarto/Do filho que já morreu”

Sem entender bem, o menino se encosta na parede, não briga mais pela comida que os outros moradores de rua teimam em comer. O meni-no não mais tinha fome de bala, pão e cola, mas tinha um vazio dentro de si que não cabia mais em alma alguma. Passa por ele o carinha que lhe deu o tíquete refeição. Passa olhando o chão, desviando do olhar do menino magro que não reconhecia mais.

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Entra na portaria com pressa, preocupado com a segurança, cumpri-menta automaticamente o porteiro que mal o nota, chama o elevador, aperta o quarto andar, depara-se frente ao 403. Respira fundo. Abre a porta. A casa, vazia, cheira a ar fechado. Faz um ano desde que os pla-nos ficaram sem pé nem cabeça, que o sentido das coisas perdera-se num arroubo, num desejo desenfreado. Num querer mais que um po-der fazer. Olha para tudo aquilo que planejara para dois e enxerga ape-nas a si, só, no espelho do corredor.

Abre as janelas, e escuta a música que vinha do vizinho de baixo. Cho-ra baixinho, humilhado pela vida que o atropelara.

Levanta-se, verifica se o gás estava ainda desligado, se o telefone, a luz não. Abre o chuveiro, toma banho frio após a água turva de cano pa-rado cair por dois minutos.

“Que filho da puta tá ouvindo Chico a essa hora?” Pensa um tanto quanto alto, mas não tinha mais nenhuma importância.

A cama estava lá, os lençóis, os travesseiros. Empoeirados, mas arrumados.

“Ela vem aqui uma ou duas vezes por mês.”

Fala para si mesmo. Senta à beira da cama, leva as mãos à face e se es-preguiça. Depois liga para ela do seu celular e desliga antes que ouvis-se a sua voz.

“Idiota! Ele não sabe que existe bina?”

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Ela fala para o atual namorado. Era a oitava chamada desde que saí-ra de casa.

“Esse babaca ainda te procura? Já disse que eu cuido disso para você! Eu dou uma coça nele que nunca mais ele vai pensar no teu nome!” “Não precisa.” “Precisa sim.” “Deixa. É passado para mim. Ele é quem quer que vire presente de novo.” “Não te entendo.” “Nem precisa. Dei-xa.” “Tá bem. Vamos na Bunker hoje?” “Não. Tem hip-hop hoje e tô fora dessa.” “Ok. Pra onde então?” “Sua casa.” “Ok.”

“Esse não dura nem mais uma hora! Cara chato!”

Pensa calada enquanto sobe devagar a República do Peru no Ômega Preto com vidro fumê e neon nos faróis.

“Odisséia? Que tal?” “Olha, se você não me quer hoje, ok, pode falar!” “Que isso, amor, e eu sou de negar fogo?” “Não tô falando disso.” “Tá falando do quê?” “Nada, deixa.” “Se você não falar, não vou saber o que fazer, né? Não tenho como adivinhar.” “Não é você, sou eu. É comigo.” “Ok. Quer que eu te deixe em casa?” “Não. Me deixa aqui na esqui-na com a Barata Ribeiro.” “Uai. Você não mora no Leme?” “Me deixa aqui, Anda!” “Tá bom. Se cuida. Juízo!” “Tchau! Te ligo, tá? Não me liga!” “Ok. Você é quem sabe.”

Ela anda em direção ao prédio quando aquele menino do início da his-tória vira-se para ela.

“Moçaquimúsicaéessaaíassim?” “Música? Acho que é o Chico. Chico Buarque.” “Bunitaamúsicanuncaouvisabia?”

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Ela sorri e caça um dinheiro na bolsa. Quando vê, ele partiu.

Abre a portaria, cumprimenta o porteiro que acena enquanto resmun-ga alguma coisa e cruza com o casal do 201. Apaixonados, via-se de longe. Não desgrudavam um segundo e faziam cena o tempo intei-ro. Uma vez, surpreendeu os dois no elevador num amasso só. Vira e mexe, tinham marcas nos pescoços, braços e sabe-se-lá-mais-onde. Isso ela, que só ia no apartamento uma ou duas vezes ao mês.

Salta no quarto andar. Anda calmamente até o 403. Vê a luz por debai-xo da porta e escuta uma música bem baixa, quase que inaudível. Não vinha do 201. Treme de cima a baixo.

“Ai meu Deus. Ele tá tocando o Chico…” Pensou.

Lentamente coloca a chave na porta. Abre-a. E o vê com o violão no colo. Desaba por dentro ali mesmo. Já não era mais dona de si.

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That s life– pós Frank Sinatra

Embalou a câmera com carinho e cuidado. Colocou-a na bolsa confe-rindo as pilhas. Quatro recarregáveis do lado de fora, quatro embarca-das e um pacote de alcalinas para qualquer emergência. Conferiu mais uma vez a impressora portátil que custara quase o preço da câmera. Conferiu também os cabos, adaptadores de tomada, cartuchos de tinta especial e papel fotográfico cortado em tamanho certinho para os na-morados da orla de Copacabana.

Na primeira parada: Cervantes, balcão da Barata Ribeiro. Quinze mi-nutos, três chopes de pé. Precisava de coragem para virar a noite com equipamento tão caro, a pé, de bar em bar. Olhou para a clientela em busca de alguém que quisesse uma foto.

“Mas não é assim que as coisas deveriam ser? As pessoas se reúnem em torno de um interesse em comum, se juntam para fazer uma coi-sa em prol de um ideal maior.” “Como comer a maior quantidade de gente possível, né?” “Não porra! Como criar espaço para a sua produ-ção, para a sua necessidade de se expressar!” “Expressão de cú é rola!” “Porra! Vocês só pensam em cú e buceta!” “Eu não! Eu gosto de bo-quete também!” “Caralho! Não agüento mais isso, cacete… to falando uma coisa séria. Todo mundo aqui reclama que não consegue espaço para criar, para escrever, que não dão valor às coisas boas, que o povo

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só consome merda, novela das 5, das 6, das 7, das 8. Só escuta lixo, lixo de axé, lixo de pop, lixo de MPB, lixo de samba, lixo de rock…” “Mas rock é só lixo mesmo!” “… lixo de tudo! Porra, e quando alguém vem pelo menos tentar levantar a média, vocês mesmo vêm tacar pedra, jul-gando fulano e beltrano como se esperassem os novos Camus, Joyce, Guimarães Rosa em cada grupinho literário! PORRA! Meia dúzia se juntam para tentar fazer algo e vocês que deveriam ser os primei-ros a dar força, dão as costas!” “Mas sarau é um saco mesmo!” “Deve ser, cara, deve ser. Mas pelo menos os putos lá, pedantes, cacetes, com cara de conteúdo – que vocês me disseram, né – estão tentando fazer alguma coisa. Enquanto isso, eu, você e você estamos aqui bebendo no Cervantes e olhando bunda de puta de 50 reais.” “Cinqüenta não! O programa aqui é mais caro, fofo!”

Desistiu de tirar a câmera da bolsa e saiu dali um pouco mais bolado que antes. Havia desistido de tudo em prol de uma promessa babaca. Jurara para si mesmo que não deixaria qualquer legado, quaisquer he-ranças. Que seria mais uma sombra, passaria à margem do mundo, das pessoas. Juntara o suficiente para comprar um quitinete em Copa (luxo dos luxos), um bom computador e outras coisinhas.

Desceu a Princesa Isabel ignorando as putas e as boites. Não acharia trabalho ali. Chegou à praia e partiu em direção ao Leme. No primei-ro restaurante encontrou três casais diferentes e fez as fotos. Entrou no restaurante. Pediu para usar a tomada e imprimir as fotos. O gerente olhou torto, mas deixou. Pediu um chope e deixou um troco na caixi-nha dos garçons. Entregou as fotos. “Twenty reais, mister. And I can send it to you by email, If you want.” “Thanks. That’s my card!”

Voltou para dentro, pediu um sanduba e mais um chope.

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“Não consigo entender, cara. Não mesmo. Ela nunca me reclamou de porra nenhuma. Sempre tava feliz do meu lado, sempre me procurava para a cama. Fazia planos, dizia que queria ter filhos comigo e tudo.” “Mas é assim a vida, cara. Uma hora ela te quer porque você é inteli-gente, culto, educado. Outra ela quer um cara marombado que anda armado pra cima e pra baixo, que vai dar porrada nela assim que des-cobrir que ela quer dar pro outro que é músico e cantor de samba péla-saco que vai escrever uma canção quando ela o trocar por um professor de capoeira. É assim a vida. Só nos resta chorar os amores quando eles se apresentam para gente.” “Tem razão! AMEI ESSA MULHER E A LEMBRANÇA DESSE AMOR É SÓ MINHA!” “Isso aí. Ago-ra vira essa cachaça que eu te levo em casa.” “Mas queria que ela me li-gasse… só mais uma vez.” “Esquece, cara. Vai ser melhor. Haverão ou-tras, mais belas que te amarão mais e melhor!” “Como na canção do Chico, né?” “Exatamente!”

Olhou os amigos saírem bêbados, abraçados e se lembrou dos amigos. Não ligava para algum fazia meses, ainda que lhe mandassem emails ou papeassem pelos instant messengers da vida. Uns lhe xingaram, ou-tros lhe deviam dinheiro. Sabia que iria esperar que eles os colocassem num backlog emocional e só lembrassem dele em eventos como o ani-versário de um ou quando estivessem sem grana.

Encarou mais um chope, a conta, e seguiu para o resto da noite no rumo do Meridien e de Copacabana novamente. Veio caminhando va-garosamente, entre as putas, os taxistas, os turistas, as diversas criatu-ras da noite que estranhavam aquele homem pequeno com uma mo-chila à frente, como um coala mãe carregando o filho.

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Ficou cansado antes de chegar ao Othon, parou no Cabral 1500, contou o dinheiro. “600 reais, trinta fotos vendidas.” Subiu a Bolívar até a Ba-rata Ribeiro, entrou em casa. Ligou o computador, baixou as mais de seiscentas fotos tiradas naquela noite para o computador. Ligou o pro-cessador de textos e escreveu mais um conto que não seria lido.

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You little fool– pós Elvis Costello

Estavam as três sentadas em torno da mesa de jantar entre excitadas e divertidas, a Ruiva, a Loira e a Morena. A proposta era meio inusita-da. Iriam participar de um tipo de jogo novo, um Imagem e Ação de experimentação sensorial. Ele iria fazer pratos inusitados e elas diriam suas impressões. À mesa: copos d’água gelada, pães (ciabata, de ger-gelim, integral e o bom e velho francês) e quatro pratos para cada uma (entrada, consomé, prato principal e sobremesa). Todas tinham sido suas amantes em alguns momentos da vida dele e faziam parte das vi-das umas das outras desde então.

À cozinha, ele finalizava a entrada: massa de panqueca temperada com pimenta do reino servindo de base para um molho de iogurte integral que fixa alface, cebola, tomates picados, rúcula e agrião. Temperando, ele usa vinagre balsâmico, azeite virgem, sal marinho e uma pitada leve de pimenta branca moída.

“É para dar o duplo contraste do ardido.” “Mais ou menos como você fazia comigo, ao parar logo antes do gozo.” Disse a Ruiva. “Nem tanto. Mas é essa a intenção. Quando o gosto de uma coisa se precipita sobre o todo, interrompe-se. E perceber o limiar torna-se o real prazer.”

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Ele as serve igualmente: a panqueca montada diretamente no prato de salada. Panqueca, creme, salada temperada, salpica-se sal e pimenta. Comem e se servem de água no fim.

“Poxa… um vinho cairia bem! Você tem um tinto aí?” Sugere a mais nova delas, a Loira, no que é ratificada pelas outras duas. “Não! Vinho entorpece o sabor. Comam e anotem mentalmente o que sentiram em cada garfada. Tentem perceber a textura com a boca. Sintam a ardên-cia da pimenta passar por toda a língua. Aspirem o cheiro do vinagre misturado com o agrião e a rúcula. Lembrem-se: isso não é para matar a fome. É um exercício do prazer.”

Ele volta para a cozinha enquanto elas comentam a experiência.

“Não gosto de rúcula.” Disse Morena. “Não gosto da textura, do gos-to, do amargor.”

“Eu adoro. Me lembra algo que vem de dentro, algo biliar.” Diz Loira. “É um prazer amargo. Eu bem queria uma cerveja.”

Chega o consomê. Uma sopa forte e escura, de cheiro marcante. Um pedaço de carne de sol com um ovo misturado.

“Sopa de legumes – abóbora, cenoura, batata e beterraba – com carne de sol e ovo cozido no caldo. Receita velha, mas com um ingediente a mais. Descubram o que é.” “Alecrim.”

De pronto, Morena adivinhara. Sabia dessa nova paixão dele pelo ale-crim e fora fácil acertar. As outras olharam com um pouco de incômodo. Parecia que ela tentava se exibir diante das outras. Era recém-chegada

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ao “clube” e mal tinham dois meses juntos. Mal o conhecia. Ele assen-tiu à resposta correta com um olhar frio e pediu que todas terminassem o prato. Ruiva, ao terminar, descobriu que o ovo era de pata e que tinha conhaque no caldo, mas preferiu calar-se. Sabia que aquilo era um reca-do para ela. Durante sua enfermidade tinha de tomar gemadas de ovo de pata com conhaque regularmente. Uma receita caseira que dera certo. Só faltava a canela, mas ele odiava o gosto de canela na comida.

Levantou-se e foi servir o prato principal.

“Macarrão fio de ovos integral – ou pasta em fio de ovos, como dizem os gourmets – em manteiga de cabra, alho e cebola secos. Três molhos à sua disposição: requeijão integral com curry, molho de tomate com car-ne de sol e tabasco e molho branco especial. Qual deles vocês querem? Escolham um e apenas um.”

As três logo concordadam com o molho branco especial que de espe-cial pouco tinha. Creme de leite salgado, cebola seca, farinha. Insosso. Inhonho. Uma merda.

Ficaram meio constrangidas quando provaram. Loira mal conseguira tocar no molho e se serviu mais do macarrão puro. Morena terminou o prato, mas se serviu de pão para retirar o gosto e descobriu que o mo-lho combinava bem com o ciabata. Ruiva abandonou a tarefa na segun-da garfada. Serviu-se de água como quem queria afogar alguma lem-brança ruim. Mal continha o nervoso do rosto.

Antes de servir a sobremesa.

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“Isso vai demorar um pouco mais. Não terminei o prato e ele tem de vir quente para a mesa. Me dêem uns trinta minutos, por favor. Depois de comermos, podemos beber vinho, pão e queijo se quiserem.”

Levantaram-se todas e foram à saleta, sentar-se nos sofás.

“E se fizéssemos uma brincadeira enquanto esperamos? Que tal listar-mos os três melhores homens de nossas vidas?”

Loira propôs no que foi seguida pelas outras duas. Citaram os nomes dos homens, contaram suas vantagens e defeitos e umas duas histórias engraçadas. Morena falou do trabalho, que anda difícil e escasso. Rui-va falou dos filmes que assistira e das peças de teatro que talvez partici-passe num futuro póximo. Loira falou do doutorado e de Física Quân-tica. Nenhuma mencionou o nome dele vez sequer.

Morena propôs um novo jogo mas foi interrompida pelos barulhos na mesa de jantar. Ele estava retirando os pratos e as travessas antes de servir o dessert.

Três pratos envoltos em papel laminado como se fossem surpresas pra-teadas e doces.

“Abram, comam e me contem o que acharam.”

Era uma receita nova: rodelas de abacaxi assado no sal marinho, cober-to por calda e sorvete de chocolate amargo com uma pimenta verme-lha espetada bem no centro.

Todas comeram como se não houvesse uma outra chance delas na vida.

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“Estávamos fazendo uma enquete. Quais as nove coisas que você gos-taria fazer antes de morrer?”

Disse Ruiva, com interesse e afetação e sem pensar muito entre o olhar de reprovação das outas duas.

“Fácil. Ver meus filhos irem dormir e acordar; ver o sol nascer em Copa e se por em Ipanema; escrever um romance – que eu sei que não dará tempo –; assistir Manhattan, do Woody Allen; ver a mulher que eu sempre amei pela última vez; e preparar um jantar para quem mais me amou nessa vida.”

Antes de irem embora, Ruiva, que ameaçando uma lágrima, disse.

“Me desculpe. Por vezes me esqueço” “Não há problema. É sinal que estou fazendo a coisa certa!”

Constrangidas, as três saíram do apartamento na Bulhões de Carva-lho e o deixaram em paz.

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Vernissage

Ele tinha um hábito irritante de freqüentar vernissages, noites de autó-grafo e outros desses eventos semi-abertos onde se serve o péssimo vinho de importadoras de bebidas que desovam como “patrocínio” ou “apoio cultural”. Chegava a ser uma compulsão, na verdade. Tinha alguns con-tatos de quarta categoria que se divertiam em enviá-lo para os eventos mais esdrúxulos como a reinauguração da placa do centenário do canhão inaugural do forte de Copacabana ou a noite de autógrafos de um blo-gueiro qualquer que conseguiu publicar suas crônicas semanais.

O que ele não revelava às pessoas é que a diversão não era o evento em si, mas ficar nos cantos fingindo que conhecia os proto-famosos, dan-do uns acenos com cabeça e com um ar blasè treinado anos a fio. Ou-tro hobby era ficar ouvindo fragmentos de conversas e tentar ficar ad-vinhando o papo como um todo. Anotava os fragmentos em guarda-napos sujos ou em cadernos-brinde para usar em algum momento im-portante da sua vida.

Numa estréia teatral, ele pega o papo de um autor de peças de teatro com um engravatado aleatório.

“E, recitando um poema de Florbela Espanca, ele a pega como se fosse beijá-la. Ela se desmonta em suas mãos. Ao terminar o poema, ele se vira

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para os outros no churrasco e pede uma cerveja. Ela olha meio puta, meio pidona para ele e, antes que ela pergunte qualquer coisa ele responde: ‘Bei-jo não é para ser esperado. É para ser tomado com o consentimento do outro. Bei-jo é a porta do prazer e se você não tem ciência disso e espera que o prazer lhe seja entregue em bandeja de prata, não merece o gozo’.” “É uma boa cena, mas acho que temos de cortar a parte do poema. Não dá Ibope.” “Mas aí perde todo o sentido. Deixa eu te mostrar o poema.” “Não. Sem poema.”

Ele se dirigiu para o bar para tentar caçar um salgadinho ou mais uma taça de vinho. Quem sabe até teria sorte e coletaria mais alguma história interessante. Achou um casal que debatia sobre o sexo e os homens.

“Ainda acho essa uma posição muito machista, a sua.” “Nem é. É ape-nas factual.” “Ah! Que isso? Essa história de três mulheres… para mim isso é putaria. Safadeza pura.” “Não é bem assim nem bem isso, você trocou as bolas.” “Explica então.” “Ok. Como eu dizia, toda mulher merece uma noite de amor. Todas. Mesmo as mais feias. Mesmo as aleijadas, sem dentes, com mau hálito, as que fedem, as que têm cor-rimento. Todas mesmo. Todas merecem uma noite de paixão, sexo e amor.” “Que coisa mais promíscua!” “Não se trata de promiscuidade, mas de humanidade. Amar uma bela, é fácil e até mesmo simples. Mas amar quem merece, quem precisa do amor do próximo. É o que cha-mo de abnegação.” “Tá. Acho que entendo esse conceito. Não concor-do, mas entendo.” “Algumas mulheres merecem uma segunda noite. São aquelas que despertam algo no homem que ele não compreende de imediato. Algo que desperta o seu limiar.” “Hein? Como assim?” “No sexo, o homem que realmente ama, se encontra perto da pequena mor-te, do início e do fim de tudo. Ali ele pode ter uma revelação sublime, um momento de epifania, de adoração. Mas isso apenas quando ele encontra a mulher com quem se deitará pela terceira e derradeira vez.”

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“Pára tudo. Me perdi agora.” “Pois bem, essa mulher com quem ele se deita pela segunda vez, o faz por dúvida. Lembra-se? A primeira é por abnegação, a segunda pela dúvida, a terceira, para sempre.” “Acho que entendo e começo a concordar.”

Não entendendo bem do riscado, retirou-se anotando no seu caderni-nho as anedotas coletadas. Ainda conseguiu relatar mais um papo in-teressante aquela noite.

Eram dois estudantes, pela pinta. E um senhor bem mais velho, beiran-do os setenta. Todos falavam sobre filosofia, Sartre, Heidegger, concei-tos, conceituação. E o senhorzinho ficava em silêncio, assentindo ou re-jeitando com o olhar. E “processava” várias taças de vinho, não deixando pedra de gelo sobre pedra no debate entre a noite e o seu estado etílico.

“Ninguém é livre. A liberdade é uma falácia.” “Não seja bobo. Você parece aquele matemático que dizia que os números reais são uma ilu-são inventada pelo homem. Que o universo não fala com os núme-ros reais.” “Mas é isso mesmo. Falando da Liberdade: ela não existe. Você não escolhe as suas opções de vida. Elas se apenas se apresentam e, na maioria das vezes, você apenas opta sem se dar conta disso. As-sim como um outro animal qualquer que não tem como saber se ao vi-rar à esquerda vai gerar a extinção de sua espécie.” “A liberdade, cara, tem suas limitações. Assim como a consciência humana, a percepção de realidade e os números reais. O que interessa é que são instrumen-tos…” “Instrumentos imprecisos!” “…para entender o que nos cerca. Para mim é claro que somos apenas um degrau para o além do ho-mem…” “Ah não. Citar Nietzsche é apelação.” “…e que, nesse proces-so, inventamos modelos cognitivos para entender a realidade ao nos-so redor.” “Fato, cara, é que temos de entender as coisas como elas são.

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Senão ficamos tentando estudar as sombras, não a realidade.” “As coi-sas são da maneira que se apresentam. Não existe um Deus por detrás delas. Elas são e se aparentam como são.”

O senhor finalimente se manifestou com a voz embargada, o olhar trô-pego e desfocado.

“Fernando Pessoa era foda!”

Pegou mais uma taça de vinho, aproximou-se de uma menina de um grupo anexo, enlaçou-a na altura da cintura, falou uma ou duas obs-cenidades na sua orelha e levou-a consigo para o resto da noite. Repa-rou, aparvalhado, a reação dos dois proto-filósofos que não consegui-ram manter a compostura ante o velho mestre.

Se aproximou dos dois e falou uma verdade universal. “O mais sortu-do é sempre o mais apto. É ele quem consegue deixar a semente para a próxima geração.”

Saiu à francesa.

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Sweet little sixteen– pós The Beatles

Saíram do cinema abraçados, como se fossem dois namorados. De-ram vexame durante a exibição da fita, quando pararam para tomar um café, antes de entrar no carro, dentro do carro, nos sinais, até mesmo quando ela estacionou para deixá-lo em casa.

“Sobe?” Diz ele ao se preparar para saltar do carro.

“Não posso.” Ela responde sem muita convicção.

“Porquê?” “Você sabe.” “Você pode sim. Não quer.” “Não posso. Ele pode chegar a qualquer momento.” “Dane-se ele! Aliás, dane-se tudo! Você sabe que ele tá comendo meio mundo agora! E a outra metade comeu pela manhã! E você não o ama mais!” “Pára com isso! Aqui no meio da rua! E se um vizinho passa por aqui?” “Melhor! Assim você tem de assumir tudo logo de uma vez e paramos com essa palhaçada. Porra! Fazem cinco anos que saímos quase todo fim de semana. O cara viaja na quinta, sobe pra Petrópolis, Teresópolis, Patópolis, sei lá, e te deixa aqui para eu tomar conta.” “Pára! Você sabe que não é assim! Eu te amo, mas eu o amo também!” “Ama? Como se ama um cara com quem você não transa fazem dois anos e meio?” “Porra. Vamos ter essa conversa aqui, no meio da rua?” “Não. Podemos subir e ter essa conver-sa lá em cima, se quiser. E eu sei que você quer.”

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Subiram tensos os lances de escada até o terceiro andar. Era uma apar-tamento antigo em Botafogo. Daqueles com varanda ampla e salas enormes e cozinhas monumentais. Tinha apenas o inconveniente de não ter elevador mas, melhor, o condomínio ficava mais em conta. Ele tinha alugado-o numa distração do proprietário. Era um esquema de aluguel para conhecidos de conhecidos e ele quase que conhecia al-guém que estava deixando o apê. Deu uma de João-sem-braço e se ofe-receu como candidato à vaga. Sorte que foram com a cara dele e con-seguiu alugar sem que pensassem duas vezes ou pedissem suas referên-cias. Estava lá há três anos e não pretendia se mudar tão cedo dali.

Abriram a porta do apê. Ela se sentia em casa, mas essa era uma sen-sação que lhe incomodava tremendamente. Estava tudo errado. Ela era casada, tinha três filhos lindos e saudáveis. O marido sempre lhe fora carinhoso e atencioso. Até ela o conhecer de verdade. Antes de desco-brir que ele pulava mais a cerca que carneiro rebelde. Daí para ela en-contrar um amante foi um passo fácil. No início se sentia suja, mas aprendeu a gostar da sujeira, de se emporcalhar com o corpo do ou-tro, a se sentir desejada, cortejada, a fazer com que gozassem com o seu gozo e a tomar o suor do outro como quem toma um copo de alma alheia. Comia os amantes como quem faz desejum em hotel. Dava na pinta. Deixava dicas. E ele parecia gostar disso. Devia gostar mesmo, o puto. Não lhe amava. Não sabia lhe dar valor. Não mais lhe beijava em público, tampouco lhe roçava as mãos nas ancas ou nas coxas quan-do se aproximava por trás. A sua nuca já lhe era território virgem nova-mente. Aliás, virgem nada. Ele que se fiava por mapas velhos enquanto outros aventureiros abriam bandeiras por ali. Ela era a fêmea-alfa ago-ra. E ele apenas o provedor dos filhos.

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“São cinco anos que estamos juntos e você nunca mais falou em largar aquele cara. Você já não o ama! E sei que não sou o teu primeiro aman-te. Você mesma disse isso para mim.”

Ele falava como quem implora e isso era o que mais a irritava. De início era bonitinho ter um macho que falava fino quando ela mostrava a que veio, quando se mostrava dona da situação e colocava-o no seu lugar, de consolo que beija e anda. Esse nem era especialmente bonito, forte ou vi-ril. Como dizia, era exatamente isso que ela achava interessante de início. E ele era do tipo medroso, um lucky bastard na escala evolutiva. Fugiu do leão ao invés de enfrentá-lo e sobreviveu para dar cria. Gerou toda uma linhagem de covardes, cagões que não honravam as bolas por conta des-sa cepa ruim, desprovida de brios e amor-próprio.

Com ela não era diferente. Se dissesse para ele passear de mãos dadas em pleno Centro Comercial de Copacabana ele se derretia como criança no dia doze de outubro. Se ela mandasse ele não olhar na cara dela enquanto andavam pelo Fashion Mall, ele se portava como empregadinho subjuga-do. Talvez por isso tenha durado tanto. Cinco anos nessa mesma merda e ele só começou a reclamar agora. Deve ter mulher nova nessa história.

“Eu tô vendo uma outra pessoa. Estou saindo com a Ângela.” “Com quem? Aquela criança? Hahahahahahahaahaha!” “Não fala assim dela. Ela me ama!” “Ama porra nenhuma. É uma mal-comida que tá doi-da para amarrar o primeiro mané.” “Porra! Ela quer ficar comigo. Será que você não sacou que tô de saco cheio dessa vida de piroca de gaveta? Quero acordar do seu lado uma vez na vida. Ou melhor, quero acor-dar do lado de qualquer mulher que me queira.” “Mas, bicho, a Ânge-la? Ela é pagodeira. E vai em micareta. Não tem nada a ver contigo!” “Foda-se! Ela quer dormir comigo, me apresentar aos amigos dela e eu

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a apresentarei aos meus.” “Que amigos, cara? Os coleguinhas de vinte anos dela? PORRA, você é dezesseis anos mais velho que ela.” “Pois é. Dezenove anos e na flor da idade e me quer.”

Isso era o que mais lhe incomodava. Por mais que dividissem os praze-res e as confissões mútuas, ela nunca queria saber de sua vida offline e ele era barrado ao tentar saber mais da dela. A sua defesa era tão adap-tada ao seu modo de agir que ele nem mais tentava forçar uma situa-ção. Não mais se convidava para eventos ou tentava descobrir onde ela iria e com quem. Aceitara que seria chamado quando fosse convenien-te e pronto. De início, isso bastava. Ela era linda, poderosa e se porta-va como uma deusa do sexo. Uma devota de Istar que se erguia gigan-te nos seus quase metro e meio. Um olhar bastava para trazer da inação o mais desanimado dos seres. Mas Ângela não ficava atrás e ela sabia disso. Sabia que dali pra frente ela não seria mais quem guiaria a rela-ção. Ela teria os seus homens e ele as suas fêmeas. “Mais e melhores que você.” Pensou baixinho no verso do Chico Buarque.

“Você não vai aturá-la mais de dois meses.” “Que seja! Mas serão dois meses sensacionais.” “Cara. Você não dirige e ela só pensa em carro, cachorro e samba.” “Eu ensinarei coisas novas a ela. Mostrarei o que a vida tem de bom.” “Vai ensinar o quê? As novas vertentes do Rock In-glês? As composições atonais do Arrigo Barnabé? Filosofia Moderna? A teoria do Inifinintesimal de Hegel?” “Leibnitz. É do Leibnitz. De-finição do limite. ‘Deus está no limite.’” “Ha! Duvido até que ela leia qualquer coisa que você dê a ela.” “Na boa? Prefiro viver um amor fur-tado que isso que temos hoje. Não dá mais.” Ela levantou-se, pegou a bolsa, dirigiu-se à porta. “Babaca.”

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Desceu calmamente a escada. Entrou no carro. Mal conseguiu colocar a chave na ignição de tanto que as mãos tremiam.

“PORRA! Não posso chorar por esse babaca.”

Lentamente o céu se solidarizou com a dor da segunda rejeição de sua vida.

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Linhas tortas

Não era afeito a comemorações anuais. Detestava o próprio aniversá-rio, mas não revelava os motivos para isso. Alguns amigos mais che-gados se lembravam de um ou outro caso que ele não comemorara por conta de um acidente, de uma doença em casa ou por um desamor. Mas o que importava é que o dia dos seus anos não era motivo de festas fazia várias décadas. Normalmente chamava os amigos para um bote-co, bebia até ficar pronto para ser internado e ia carregado para a emer-gência de algum hospital.

Era essa a sua “tradição” e os amigos a respeitavam.

Então era assim, chegava em meados do mês do início do ano e ele co-meçava a se coçar pensando em o que aconteceria. No que a Roda da Fortuna estaria reservando para essa data, desta vez, neste ano. Pen-sava: “Ano passado foi bom. Veio a restituição atrasada e deu para pa-gar as dívidas. Comprei um DVD com o troco. Ainda rolou um bom dinheiro das aplicações e teve aquele bônus inesperado. No anterior foi ruim mas não foi horrível. O caçula quebrou a perna nas vésperas e tivemos de ficar no hospital revezando. Ao menos comemos bolo no hospital e foi engraçado vê-lo se lambuzar na cama. Passamos uma boa semana juntos. No anterior sim, foi horroroso. Desemprego, divórcio, ermitão social.”

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Súbito, uma idéia! Preparou um textinho para anexar a um email e dis-parou na sua lista de contatos. Depois pegou os endereços de verdade de todos que confirmaram a ida e enviou um convite pessoal e intrans-ferível. Chamou a todos: os amigos, os conhecidos, os colegas, os con-tatos de trabalho, os inimigos, os desafetos, aqueles e aquelas que amou e todos os que o odiavam. Conseguiu alugar um salão no clube e fe-chou com um buffet a organização das comidas e bebidas. Aliás, mui-tas bebidas. Um horror de bebidas.

Ao chegar, os convidados eram conduzidos a locais marcados em am-plas mesas elegantemente decoradas. Alguns acharam divertido já que ele era famoso por preferir botequins a restaurantes, puteiros a boates. Normalmente ele mesmo desdenharia de festas tão bem organizadas ou tão requintadas.

Mas lá estavam garçons, maitres, convidados, disk-jóqueis e todo o tipo de fauna que é esperada numa festa deste porte. Menos o perso-nagem principal.

Em off, numa voz metálica, abafada pelas caixas de som, ouviu-se à meia noite:

“Estamos aqui para comemorar o término do meu quadragésimo quin-to ano. E para isso convido a todos a expor o que há de pior em cada um. Pois o bem próprio já é público e notório. Deixemos fora des-se bar todas as convenções sociais e as boas qualidades e maneiras. Já as temos de carregar em todas as nossas relações no dia-a-dia. Nesse evento onde comemoro a morte do ano que se finda, enterremos tam-bém todas as nossas máscaras, todas as nossas apatias, as nossas peque-nenezes, falsidades, dissimulações. Dispamo-nos de nossos preconcei-

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tos, medos e ansiedades. Aguardemos a liberdade que o álcool nos pro-porciona para deixarmos toda e qualquer inibição ir-se com os espíritos que libertamos de suas garrafas. Deixemos Baco falar por nossas bocas e que inspirações dionísicas nos guiem noite adentro. Que a bile seja o nosso juiz, júri e executor nessa madrugada!”

Discretamente o staff retirou-se e as portas foram lacradas. De iní-cio, algumas pessoas surtaram, ficaram nervosas, exigiram sair. Até al-guém notar que no convite impresso estava lá escrito: “Entrada: 21h00. Término: 6h00. Inexoravelmente.” Uns ameaçaram processo, outros de morte. Já os mais conformados abriram as champanhes.

Foi o bacanal do século. Pena que ninguém tirou foto ou fez gravação em fita. Não houve quem não ficasse nú em algum momento da folia.

Ele, de uma sala discreta, com vista privilegiada da orgia, concluiu: “Acho que vai ser um ano bom, no final das contas.”

A gente recebe aquilo que dá.

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7. Terminação

a. Esta Licença e os direitos aqui concedidos terminarão automaticamente no caso de qualquer violação dos termos desta Licença por Você. Pessoas físicas ou jurídicas que tenham rece-bido Obras Derivadas ou Obras Coletivas de Você sob esta Licença, entretanto, não terão

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suas licenças terminadas desde que tais pessoas físicas ou jurídicas permaneçam em total cumprimento com essas licenças. As Seções 1, 2, 5, 6, 7 e 8 subsistirão a qualquer terminação desta Licença.

b. Sujeito aos termos e condições dispostos acima, a licença aqui concedida é perpétua (pela duração do direito autoral aplicável à Obra). Não obstante o disposto acima, o Licenciante reserva-se o direito de difundir a Obra sob termos diferentes de licença ou de cessar a dis-tribuição da Obra a qualquer momento; desde que, no entanto, quaisquer destas ações não sirvam como meio de retratação desta Licença (ou de qualquer outra licença que tenha sido concedida sob os termos desta Licença, ou que deva ser concedida sob os termos desta Li-cença) e esta Licença continuará válida e eficaz a não ser que seja terminada de acordo com o disposto acima.

8. Outras Disposições

a. Cada vez que Você distribuir ou executar publicamente por meios digitais a Obra ou uma Obra Coletiva, o Licenciante oferece ao destinatário uma licença da Obra nos mesmos termos e condições que a licença concedida a Você sob esta Licença.

b. Se qualquer disposição desta Licença for tida como inválida ou não-executável sob a lei aplicável, isto não afetará a validade ou a possibilidade de execução do restante dos termos desta Licença e, sem a necessidade de qualquer ação adicional das partes deste acordo, tal disposição será reformada na mínima extensão necessária para tal disposição tornar-se válida e executável.

c. Nenhum termo ou disposição desta Licença será considerado renunciado e nenhuma viola-ção será considerada consentida, a não ser que tal renúncia ou consentimento seja feito por escrito e assinado pela parte que será afetada por tal renúncia ou consentimento.

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