urbanizaÇÃo e emprego domÉsticourbanizaÇÃo e emprego domÉstico 165 o casamento:um destino...

23
Ao explicar o siginificativo excedente femi- nino nas populações das cidades pré-industriais da Europa Ocidental, Antoinette Fauve-Chamoux (1998) concluiu que era determinante o papel da imigração feminina, sobretudo das domésticas na formação das populações urbanas. No Brasil con- temporâneo, a população urbana caracteriza-se também por um alto desequilíbrio entre os sexos: 94 homens para cada cem mulheres; 1 nas capitais, a desproporção é ainda maior (o número de ho- mens baixa para 91 a cada cem mulheres). Nas zonas rurais, ao contrário, observa-se um consi- derável déficit feminino (109 homens para cada cem mulheres). O desequilíbrio entre os sexos seja entre citadinos, seja entre camponeses, não pode ser atribuído a uma natalidade ou a uma mortalidade diferenciada entre homens e mulhe- res, cuja variação se daria em função da popula- ção ser urbana ou rural. Ele expressa, na verda- de, o caráter sexuado dos movimentos migrató- rios, a saber, uma sobrefeminilidade das trocas entre o rural e o urbano e uma sobremasculinida- de dos fluxos entre o urbano e o rural (Tabela 1). Em outras palavras, o êxodo rural, que alimenta o crescimento da população urbana, é um fenô- meno majoritariamente feminino. No que diz res- peito às domésticas 2 brasileiras, verifica-se que elas participam ativamente do desequilíbrio entre os sexos, pois na população urbana dos diferen- tes Estados do Brasil nota-se uma estreita correla- ção entre o excedente feminino e a presença de domésticas (Gráfico 1). Assim, entre os onze Es- tados que apresentam os maiores déficits mascu- linos na população urbana (Maranhão, Piauí, Cea- rá, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Distrito Federal, Rio de Janeiro), oito registram, também, a maior propor- URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO Christine Jacquet Artigo recebido em maio/2002. Aprovado em abril/2003. RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003

Upload: others

Post on 17-Mar-2020

11 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

Ao explicar o siginificativo excedente femi-nino nas populações das cidades pré-industriaisda Europa Ocidental, Antoinette Fauve-Chamoux(1998) concluiu que era determinante o papel daimigração feminina, sobretudo das domésticas naformação das populações urbanas. No Brasil con-temporâneo, a população urbana caracteriza-setambém por um alto desequilíbrio entre os sexos:94 homens para cada cem mulheres;1 nas capitais,a desproporção é ainda maior (o número de ho-mens baixa para 91 a cada cem mulheres). Naszonas rurais, ao contrário, observa-se um consi-derável déficit feminino (109 homens para cadacem mulheres). O desequilíbrio entre os sexosseja entre citadinos, seja entre camponeses, nãopode ser atribuído a uma natalidade ou a umamortalidade diferenciada entre homens e mulhe-

res, cuja variação se daria em função da popula-ção ser urbana ou rural. Ele expressa, na verda-de, o caráter sexuado dos movimentos migrató-rios, a saber, uma sobrefeminilidade das trocasentre o rural e o urbano e uma sobremasculinida-de dos fluxos entre o urbano e o rural (Tabela 1).Em outras palavras, o êxodo rural, que alimentao crescimento da população urbana, é um fenô-meno majoritariamente feminino. No que diz res-peito às domésticas2 brasileiras, verifica-se queelas participam ativamente do desequilíbrio entreos sexos, pois na população urbana dos diferen-tes Estados do Brasil nota-se uma estreita correla-ção entre o excedente feminino e a presença dedomésticas (Gráfico 1). Assim, entre os onze Es-tados que apresentam os maiores déficits mascu-linos na população urbana (Maranhão, Piauí, Cea-rá, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,Alagoas, Sergipe, Bahia, Distrito Federal, Rio deJaneiro), oito registram, também, a maior propor-

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO

Christine Jacquet

Artigo recebido em maio/2002.Aprovado em abril/2003.

RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003

Page 2: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

164 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

ção de domésticas na população urbana (Piauí,Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba Alagoas, Ser-gipe, Distrito Federal). Por outro lado, sete dosdez Estados com sex ratio urbano mais equilibra-do (Rondônia, Amazonas, Roraima, Amapá, To-cantins, São Paulo, Santa Catarina, Mato Grossodo Sul, Mato Grosso, Goiás) exibem percentuaisde domésticas baixos (Rondônia, Amazonas, Ro-raima, São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso doSul, Mato Grosso). Em Fortaleza, onde foi realiza-da a pesquisa de campo,3 tal ligação pode ser ob-servada ao se levar em consideração a populaçãodos bairros da cidade (Gráfico 2). A proposta des-te artigo é, portanto, estudar as lógicas que presi-dem a emigração das domésticas em direção àscidades. Essas lógicas serão apreendidas como re-sultado de processos nos quais se articulam esco-lhas pessoais e determinantes estruturais. Estes úl-timos, ao definirem campos de possibilidades,condicionam os destinos individuais e circunscre-vem as práticas dos atores sociais; contudo, oefeito coercitivo que possam exercer sobre osmesmos não se aplica indistintamente a todos.Ou seja, os constrangimentos estruturais deixamuma margem de autonomia aos indivíduos. Narealidade, as estruturas constituem “uma condiçãoda experiência e não uma causa dos comporta-mentos” (Terrail, 1990); essa requer, para seridentificada, a exploração do significado que es-tas mulheres dão à sua própria migração.

“Uma mobilidade de prospecçãomatrimonial”

Composta por 95% de mulheres, das quaisdois terços têm entre quinze e 24 anos,4 a popula-ção doméstica de Fortaleza concentra uma taxaelevada de migrantes nativas da zona rural(68,4%).5 A distribuição por faixa etária das domés-ticas no momento de sua migração para Fortalezamostra que 84% deixaram seu município com ida-des entre dez e 19 anos.6 Ora, essas idades coinci-dem com aquelas do ingresso das jovens do cam-po no mercado matrimonial local. Com efeito, nointerior cearense, a prática do casamento precocenão é rara: conforme o IBGE, 42,4% das solteiras

que se casaram em 1991 tinham entre quinze e de-zenove anos: em Fortaleza (Gráfico 3), essa pro-proção alcança apenas 25%; contudo, esses dadosagregam as mulheres das zonas rurais e das zonasurbanas, mascarando, assim, a maior precocidadedas uniões nas zonas rurais. A justaposição dessesdois calendários – migratório e matrimonial – sus-citou a hipótese, a qual analisaremos neste traba-lho, de que o motivo da migração dessas jovens éde ordem matrimonial.

Gráfico 1Correlação entre o Percentual de

Domésticas e a Taxa de Masculinidade daPopulação Urbana Estados do

Brasil, 1991

Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.

Gráfico 2Correlação entre o Percentual de Domésticas

e a Taxa de Masculinidade da PopulaçãoUrbana Bairros de Fortaleza, 1991

Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.

Page 3: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165

O casamento: um destino natural

Não se pode interpretar o sincronismo entreo ingresso no mercado matrimonial local e a mi-gração para Fortaleza como uma fuga diante doprazo para o matrimônio: o casamento está inscri-to nos projetos para o futuro da maioria das do-mésticas, e isso, com freqüência, dá-se muito maisentre as domésticas não-nascidas em Fortaleza(Gráfico 4): 73,4% das migrantes exprimiram von-tade de se casar, ao passo que essa taxa atingeapenas 57,1% entre as nativas da capital. Isso ocor-re mais freqüentemente também entre as migran-tes recém-chegadas em Fortaleza (Gráfico 5), sen-do que o índice das intenções de casamentodecresce com o tempo de residência: a proporçãode domésticas que desejam se casar alcança 81,0%

entre as migrantes presentes na capital há menosde um ano e 70,0% entre as que chegaram há seisanos ou mais. A variação da taxa em função daorigem geográfica, ou do tempo de permanênciaem Fortaleza, não resulta de diferenças de estrutu-ra etária das subpopulações, ou seja, da maior ju-ventude das nativas da capital ou das migrantes aliinstaladas recentemente, uma juventude que po-deria gerar, pelo menos provisoriamente, uma me-nor preocupação matrimonial. Testemunha, aocontrário, maior dependência das jovens do inte-rior para com o casamento, o qual permite seuacesso à posição adulta e para com a instituiçãofamiliar que lhe é subseqüente (Entrevista 1). Éapenas com o prolongamento da estada em Forta-leza que o projeto matrimonial das migrantes seráadiado: o valor do indício das intenções de casa-mento dessas últimas aproxima-se, então, das na-tivas, mas sem atingi-lo.

Como explicar o maior apego das migrantese, entre elas, das migrantes recém-chegadas emrelação ao casamento? O matrimônio e a famíliarevestem-se – tanto para as mulheres como paraos homens – de uma importância econômica esocial fundamental no meio dos pequenos agri-cultores de onde se originam as migrantes. A ati-vidade produtiva, organizada em base familiar,repousa na complementaridade do trabalho femi-nino e masculino, adulto e infantil. Além disso, ocasamento, indissociável da constituição de umadescendência, inscreve cada indivíduo em cor-rentes de trocas interfamiliares, cuja estrutura re-vela a prioridade das relações de filiação sobre asde colateralidade (Entrevista 2); essas correntes

Tabela 1Imigrantes* com Menos de Dez Anos Ininterruptos de Residência no Município

Por Situação de Domicílio e Sexo

Situação do domicílio anterior/

situação do domicílio atual Homens Mulheres Taxa de masculinidade

Rural/Urbano 2.174.647 2.323.743 93,6

Urbano/Rural 974.843 881.124 10,6

Saldo 1.199.804 1.442.619 83,2

* Imigrantes: pessoas não naturais do município.Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.

Gráfico 3Idade de Casamento das Mulheres

Solteiras no Interior do Ceará, 1991

Fonte: IBGE, Registro civil, 1991.

Page 4: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

166 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

de trocas hierarquizadas constituem o suportemesmo da estruturação social das comunidadesrurais. Ademais, o mercado de trabalho femininodos municípios do interior contribui também paraaumentar a dependência das mulheres para coma instituição matrimonial. As poucas oportunida-des de emprego fora do lar, assim como a subor-dinação do trabalho feminino à família – de ori-gem ou de procriação – não autorizam as moçasa encarar a possibilidade de uma carreira profis-sional. A taxa de atividade de mulheres com maisde dez anos residindo na zona rural cearense erade 29% em 1990, ou seja, um nível inferior ao da-quelas que residiam numa área urbana, cuja taxade atividade alcançava 39%.7 Por fim, os empre-

gos oferecidos às mulheres residentes na área ru-ral são muito pouco diversificados: seis mulheresem cada dez trabalhavam quer na agricultura –onde 90% entre elas são recenseadas na catego-ria “responsável ou membro não remunerado dafamília” –, quer no artesanato, atividade desen-volvida, na maioria das vezes, em seu próprio do-micílio. Em função de dados como esses, Fran-çois de Singly (1994) constata que o casamentodesempenha um papel maior na determinação doestatuto feminino, formando um dos fundamen-tos da identidade social das mulheres. Nas entre-vistas, o estatuto de casada outorga à mulher umvalor simbólico expresso em termos de respeito.Solteira, a mulher é somente a “metade de umalaranja”. Casando-se, ela cumpre o seu destino,definido pela “lei da natureza”, e se torna assimuma mulher... completa. Os benefícios da vidaconjugal sobre o valor simbólico das mulheressão revelados, pelo lado negativo, nos casos deseparação, cujos efeitos são diferenciados confor-me o lugar que a mulher separada ocupa na hie-rarquia social, o que mostra a dependência femi-nina desigual em relação ao casamento(Entrevista 3).

Eleunice: Meu maior objetivo na vida é encontrar

a pessoa certa. Meu sonho é ter filhos e acho que

quando a gente encontra a pessoa certa, todo

mundo quer se casar. […] o casamento faz parte da

vida de todo mundo, é o futuro, a gente constrói

uma família, acho que é importante (Entrevista 1).

Nilda: Acho que todo mundo, ou quase todo

mundo, pensa em [se] casar, quer casar. Para

qualquer pessoa normal, é bom casar, ter filhos,

marido e quando eu for velha ter pessoas para

cuidar de mim, não quero ter uma velhice solitá-

ria porque quem sabe se na minha velhice vou

ter meus pais para cuidar de mim. Não sei se

meus irmãos e minhas irmãs vão querer cuidar de

mim, se eu tiver filhos é melhor. Acho que é bom

ter sua casa, seu próprio canto (Entrevista 2).

Evanisa: Se a mulher for separada, tem muitos ho-

mens que não vão dar valor, isso quando ela é po-

bre. Quando é separada, que ela tem seu aparta-

Gráfico 4Percentual das Domésticas que Desejam se

Casar Segundo o Lugar de Nascimento

Gráfico 5Percentual das Domésticas Migrantes que

Desejam se Casar Segundo o Tempo deResidência em Fortaleza

Page 5: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 167

mento, que ela tem seu carro, que ela tem tudo,

que ela tem seu trabalho, aí chove de homens. Ago-

ra se uma mulher for separada e se for pobre, tem

nada, os homens não querem dela. Chegam apenas

com a idéia de fazer sexo e pronto, usá-la, a mulher

não tem mais valor para eles (Entrevista 3).

Em suma, apesar de as domésticas deixaremseu município quando entram no mercado matri-monial local, a coincidência entre esses dois ca-lendários não pode ser explicada por qualquerrejeição ao casamento: as jovens migrantes repre-sentam seu futuro conforme o modelo que defi-ne o acesso das mulheres à posição adulta a par-tir do matrimônio, modelo cujos contornos sãodesenhados pelo meio de origem. Devemos ver,portanto, nestas primeiras observações, a invali-dação da hipótese inicial ou continuar trilhandoo caminho do casamento, interessando-nos, maisespecificamente, pelo estado do mercado matri-monial local? Com efeito, levando em conta aamplitude dos movimentos migratórios que atra-vessam o Ceará, uma hipotética escassez relativade homens, nos municípios de origem das do-mésticas, devido a uma alta emigração masculina,teria como conseqüência obrigar as moças casa-douras a se deslocarem.

O valor social dos rapazes do interior

Quando se compara a taxa de masculinida-de da população rural dos municípios de nasci-mento das domésticas8 e a dos outros municípioscearenses, pode-se observar que os lugares de ori-gem das migrantes se caracterizam por taxas demasculinidade elevadas (Gráfico 6). Em outras pa-lavras, as domésticas freqüentemente provêm demunicípios nos quais, na zona rural, a razão desexo é bastante desequilibrada. Porém, não sãotodos os homens que estão em idade de se casar,e a abundância de idosos ou crianças não pode-ria satisfazer os desejos femininos de conjugalida-de. Nesse sentido, a Tabela 2 apresenta, por faixaetária, a taxa de masculinidade das zonas ruraiscearenses, discriminando os municípios de origemdas domésticas dos demais municípios. Nos pri-meiros, as mulheres encontram-se numa situação

de escassez relativa favorável a seu casamento – onúmero de mulheres é deficitário na faixa etáriaentre quinze e 29 anos. Pode-se perguntar, a pro-pósito, se o excedente masculino, observado nosmunicípios de origem das domésticas, não tornaas uniões mais precoces, já que a questão do ca-samento estaria mais presente para as jovens nas-cidas em municípios com menor número de mu-lheres. Nos outros municípios, a diferençahomens/mulheres, apesar de positiva, está maisequilibrada. Assim, quando se analisa os dados re-lativos aos municípios onde nasceram as domésti-cas, verifica-se que a zona rural destes são pecu-liarmente bem providas de homens em idade dese casar. Portanto, a hipótese de déficit masculinonão explica absolutamente a migração das domés-ticas, ao contrário, há uma ligação entre o exce-dente masculino e a saída dessas jovens. O pro-blema consiste, então, em interpretar esse fato, ouseja, descobrir por que as mulheres que aspiram aum estabelecimento social autonômo pelo matri-mônio deixam seu município, caracterizado poruma taxa de masculinidade alta. De uma situaçãopropícia ao casamento, elas partem para Fortale-za, onde o contingente masculino é muito defici-tário a partir de dez anos de idade, chegando a serbastante significativo entre quinze e 29 anos (Ta-bela 3). Talvez o excesso de homens nos municí-pios de origem não seja o bastante para realizar osprojetos matrimoniais. O que estaria em causa nãoseria então a quantidade, mas a qualidade doscônjuges potenciais disponíveis localmente, ouseja, seu valor social. Ante a desvalorização doshomens daqueles municípios, as mulheres opta-riam por um mercado que oferece maior diversi-dade. Nessa perspectiva, a migração para Fortale-za poderia ser definida como uma “mobilidade deprospecção matrimonial” (Bozon, Héran, 1987).

Uma estratégia de reconversão?

Verificar a validade da hipótese referida im-plica previamente elaborar o perfil dos cônjugespotenciais e, então, circunscrever o campo desuas alianças, dando enfoque às modalidadesde formação dos casais nas zonas rurais.

Page 6: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

168 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

Gráfico 6Distribuição dos Municípios Cearenses, Segundo a Taxa de Masculinidade da População Rural

Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.

Tabela 2Distribuição dos Municípios Cearenses,

Segundo a Taxa de Masculinidade nas Zonas Rurais em 1991

Município de

Faixa etária nascimento Outros municípios

das domésticas

0-4 anos 97,3 97,5

5-9 anos 97,0 97,5

10-14 anos 93,2 94,4

15-19 anos 84,2 88,3

20-24 anos 90,9 98,6

25-29 anos 95,3 97,7

30-34 anos 98,3 103,7

35-39 anos 103,0 104,9

40-44 anos 100,4 106,3

45-49 anos 100,5 103,5

50-54 anos 100,5 104,0

55-59 anos 104,8 106,7

60-64 anos 95,6 98,4

65-69 anos 87,4 91,3

70 anos e + 89,8 89,9

Total 94,8 97,4

Fonte: Base de dados Samba, 2000.

IdadeTaxa de

masculinidade

0-4 anos 103,5

5-9 anos 100,9

10-14 anos 93,5

15-19 anos 80,6

20-24 anos 83,6

25-29 anos 83,6

30-34 anos 83,3

35-39 anos 80,3

40-44 anos 82,5

45-49 anos 80,6

50-54 anos 78,6

55-59 anos 76,1

60-64 anos 71,1

65-69 anos 72,6

70 anos e + 62,7

Fonte: IBGE, Censo demográfico de 1991.

Tabela 3Taxa de Masculinidade por Idade em Fortaleza, 1991

Page 7: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 169

As práticas matrimoniais nas comunidades rurais cearenses

A possibilidade de escolha de um parceiro élimitada por várias “circunstâncias exteriores” (Gi-rard, 1964), entre as quais a extensão do espaço –geográfico e social – no qual vive um indivíduo.Para delinear com precisão as categorias de mari-dos elegíveis, analisaremos, a seguir, as fronteirase a composição social do espaço percorrido pelasmulheres.

O controle parental na formação das alianças

Se as crianças – meninos e meninas indistin-tamente – desfrutam de grande liberdade de cir-culação, quando atingem sete, oito anos, começaa instaurar-se no seio da frátria uma diferenciaçãosexual de tarefas, em que cada um é, então, cir-cunscrito preferencialmente num espaço privadoou público, conforme o sexo. Essa reorganizaçãointrafamiliar é a ocasião em que se aprende os pa-péis e as posições reservados a cada sexo, cujasatividades serão, doravante, muitas vezes separa-das. As meninas, fora do grupo familiar, passam ater uma autonomia limitada. Seus deslocamentose relações serão fiscalizados. As festas da aldeia ouem um perímetro próximo às quais elas são autori-zadas a participar (a partir da idade de doze anos),sob a vigilância de um irmão mais velho ou de umairmã casada, são os principais momentos de en-contro entre jovens. Assim, as moças permane-cem confinadas aos espaços da vizinhança, equando têm a oportunidade de sair, fazem-no sobo olhar de um membro da família. Nessas condi-ções, a extensão da área geográfica na qual secontratam as alianças matrimoniais é muito limita-da e a endogamia comunal chega a níveis eleva-dos. Em outras palavras, a proximidade geográfi-ca é um fator determinante na formação dasuniões. Ora, os espaços da vizinhança que a vigi-lância dos pais permite às moças são, muitas ve-zes, habitados por famílias ligadas pela consan-güinidade ou pela afinidade. Em conseqüência, aschances de se estabelecer relações amorosas – ouamigáveis – com pessoas aparentadas ou aliadassão bastante altas. Os amigos são muitas vezes

parentes colaterais – irmãs, primas ou mesmo tias,quando a diferença de idade as aproximam – e oscônjuges, parentes afins. Portanto, a fiscalizaçãoque exercem os pais nos encontros de suas filhastende a privilegiar o casamento entre parentes, le-vando ao que Tina Jolins, Yvonne Verdier e Fran-çoise Zonabend (1970) chamaram de “reencadea-mentos de aliança”.

Ao controle indireto dos pais na formaçãodas uniões que se manifesta pela vigilância dosdeslocamentos das moças, soma-se um controledireto que intervém menos para impor um futuroesposo do que para proibir um casamento queameace os interesses simbólicos – como no casode Nilda – ou econômicos da família.

Tive um namorado, namorei muito tempo com

ele, comecei quando tinha doze anos e ele tem

três anos a mais do que eu. Tem uma irmã que na

época era casada com meu irmão. Quando meu ir-

mão se separou dela, teve muitas brigas entre eles.

Meu irmão foi embora e sua mulher voltou a mo-

rar na casa de seus pais, aí teve muitas brigas por-

que nossas duas famílias eram vizinhas. Quando

meu irmão se separou, meu pai disse que eu tam-

bém devia terminar com meu namorado mas a

gente não queria, aí continuou a namorar mas es-

condidos e pouco tempo depois engravidei. Quan-

do meu pai soube, ficou com raiva porque pensa-

va que eu tinha feito de propósito mas na verdade

era inocente, sem experiência e meu namorado

também. Aí meu pai disse que sentia pena pelo que

tinha acontecido mas que não dava mais para vol-

tar atrás, que não podia fazer nada porque não que-

ria que eu me casasse com o rapaz mas não

queria também criar meu filho, queria que fizesse

aborto. Meu pai, minha mãe, minha família toda

queria, concordava com eles. Aí fui morar na casa

da minha irmã, fui para Santa Quitéria morar com

ela para que eu e meu namorado não nos vejamos

mais, porque nosso casamento não podia dar cer-

to, meu pai não concordava, seu pai também, nem

minha mãe, ninguém queria que a gente se casas-

se. Aí fui na casa da minha irmã. Na verdade, mi-

nha família me entregou a minha irmã como uma

mercadoria para que ela faça tudo que tinham de-

cido. Se por acaso o aborto não puder ser feito,

Page 8: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

170 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

quando a criança nascer, devia ser dada logo a

uma pessoa que eu não conhecia.

Menos que o nascimento de uma criança ile-gítima, está a derrogação à obrigação de solidarie-dade, que Nilda deveria ter manifestado com seuirmão, deixando de encontrar seu namorado, jáque isso prejudicava a honra familiar.

Contudo, nem sempre as moças se confor-mam à vontade paterna. Nilda continuou, duran-te algum tempo, sua relação amorosa, apesar deproibitiva. E se até pouco antes do nascimentoNilda submeteu-se ao veredicto familiar – nãotendo abortado teria de dar a criança a uma famí-lia “adotiva” –, após o nascimento, ela decidiucriar sua filha, arriscando, com isso, provocar umaruptura familiar.

Disse a minha irmã: “vou te dizer uma coisa que

não vai gostar mas infelizmente para você e feliz-

mente para mim, não vou dar essa criança, vou

ficar com ela, vou fazer o que precisar, vou pedir

esmola se precisar mas não vou dar”. Ela ficou

chateada porque não sabia como dizer a meu pai.

Foi falar com ele dizendo que eu queria que eles

entendessem, que me aceitem com minha filha.

Fiquei lá na casa da minha irmã esperando a res-

posta. Quando voltou, minha mãe tinha manda-

do tudo, fraldas, mamadeira. Nasci pela segunda

vez. Passei ainda 28 dias em Santa Quitéria, aí mi-

nha mãe veio me buscar com minha filha. A gen-

te chegou em casa e meus dois irmãos não que-

riam minha filha. Ficavam zangados porque

achavam que tinha feito uma coisa muito ruim:

ter uma criança sem estar casada e em seguida

criar problemas. Nem queriam que eu me casas-

se com meu namorado, aí ter filho era pior. Aí fi-

caram um mês sem ir na casa dos meus pais. Aí

meu pai chamou eles, explicou que não podiam

me desprezar por causa disso, que podia aconte-

cer com todo mundo, que eu não era a primeira.

Não entravam no quarto da menina, nem olha-

vam para ela mas eu dizia nada. Depois de al-

guns tempos, foram ver a menina e sei que hoje

é o coração da casa, nem uma mosca pode tocar

nela, tem 5 anos e tudo mundo adora ela.

A oposição dos pais nem sempre também ésuficiente para impedir seu casamento. Um meio deforçar o consentimento familiar consiste na fugacom o moço reprovado. Normalmente, quando issoocorre, os jovens buscam o apoio de um membroda família do rapaz – irmãos ou tios –, que os hos-peda provisoriamente e desempenha o papel deintermediário para formalizar o casamento com ospais da jovem que, por sua vez, se sentem na obri-gação de aceitar a união, pois a fuga, nesse caso,equivale à perda da virgindade da moça. Mas che-gar ao ponto de se opor ao casamento não é algorecorrente, nem tão necessário, já que as jovensaprenderam desde a infância a se submeter ao in-teresse familiar garantido pelo pai. Ademais, comoobservou Bernard Vernier (1991) em sua análisesobre a sociedade karpathiota, “a posição social deum indivíduo dependia, antes de tudo, da de seuspais. É preciso levar em conta a extrema depen-dência dos filhos [...] para entender melhor suasubmissão às decisões familiares”. Quando essasubmissão exacerba as tensões no seio da famíliapelos constrangimentos rigorosos que pesam sobreos membros do grupo, à medida que os conflitosintrafamiliares ameaçam a continuidade das rela-ções, há o incentivo a procurar acordos. A irredu-tibilidade do pai de Nilda foi quebrada ao aceitar adecisão de sua filha de ficar com o bebê porque,alguns anos antes, uma de suas filhas, a mais ve-lha, recusando sujeitar-se à sua vontade, fugiu dodomicílio parental com dezessete anos, rompendo,desde então, qualquer contato com sua família.Ora, a pertença a um grupo de parentesco deter-mina não apenas a posição de cada um no seio dacomunidade, mas também sua identidade social.Nas palavras de Martine Segalen (1984):

[...] encerrado na sucessão das gerações, inscritoem redes de colateralidade, referenciado em rela-ção à origem geográfica familiar, cada um reco-nhece seu lugar. As redes dão um sentimento deestabilidade, de pertença, funcionam como umsistema de identificação.

Foi categórica a resposta de uma jovem quan-do lhe foi sugerido a possibilidade de romper asrelações com sua família: “acho que não poderia fi-car sem vê-los, seria como se não tivesse dono”.

Page 9: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 171

Os usos sociais do parentesco

A mobilização dos pais, assim como a dos ir-mãos e das irmãs de Nilda para impedir sua união,testemunha o cuidado que as famílias tomam naescolha dos cônjuges: as alianças não dizem res-peito apenas a dois indivíduos, mas envolvem vá-rios grupos familiares – o que Nilda e seu namora-do tinham ignorado. Na realidade, o casamentorepresenta um dos meios pelo qual as famíliasconstroem ou consolidam toda uma rede de rela-ções seletivas, indispensável à manutenção dosgrupos domésticos. Com efeito, cada unidade deresidência é composta por uma família nuclear.9

Diferentemente do que alguns antropólogos e his-toriadores observaram em várias sociedades cam-ponesas, o casamento, apesar de ser precoce, nãosignifica a coabitação, inclusive temporária, das ge-rações, mas implica a dissociação domiciliar donovo casal. Ora, a família nuclear se realiza plena-mente como unidade de produção autonôma ape-nas quando sua descendência é numerosa e quan-do dela fazem parte adultos, jovens e crianças,constituindo um grupo extenso e auto-suficientede cooperação econômica interna,10 já que em vá-rias fases de seu ciclo de desenvolvimento requerajuda exterior. As comunidades camponesas, estru-turadas a partir de relações estabelecidas entre fa-mílias nucleares na base do parentesco (biológicoou espiritual), conseguem suprir a falta de mão-de-obra familiar para o cumprimento de tarefas coti-dianas agrícolas ou domésticas. Os laços de paren-tesco constituem a melhor garantia para assegurara ajuda imprescindível da vizinhança; o grau deproximidade familiar entre os grupos domésticoscondicionam a amplitude e a estabilidade de seuapoio mútuo. Assim, as alianças são muito poucodeterminadas por estratégias de ordem patrimo-nial. Visam menos a evitar a dispersão dos bens fa-miliares, ou a favorecer sua acumulação, do que acriar redes de solidariedade permitindo a cada umcontinuar sua vida. Max Weber (1985) observouque, numa economia tradicional, “o homem nãodeseja, “‘por natureza”‘, ganhar cada vez mais di-nheiro, deseja simplesmente viver conforme o há-bito e ganhar tanto dinheiro quanto precisa paraisso”. Essa proposta é corroborada por diversos es-

tudos consagrados ao processo de formação e detransformação da sociedade camponesa brasileira(Candido, 1964; Durhan, 1973; Menezes, 1976).Candido, por exemplo, interessado pelas condi-ções sociais que presidiram a constituição da cul-tura caipira, concluiu que a abundância de terrasférteis, associada à precariedade dos modos deocupação das terras e a uma baixa densidade de-mográfica, propiciou o surgimento de um sistemacultural, cuja característica reside na desambição.Para as famílias do pequeno campesinato, o prin-cipal enjeu das trocas matrimoniais não é, então,melhorar a posição de seus filhos no campo social,mas mantê-la. Trata-se de uma manutenção queprecisa recorrer ao auxílio de vizinhos, garantidopela inserção numa rede de parentesco. Daí o con-trole parental na escolha dos cônjuges, privilegian-do as uniões que envolvem duas famílias já apa-rentadas. Esse tipo de casamento é garantidoindiretamente pela pequena autonomia consentidaàs jovens que, além disso, são incentivadas desdecriança a submeter-se ao interesse familiar, vistoque sua posição e identidade são definidas pelopertencimento a um grupo de parentesco. Nessascondições, ao ficar em seu município de origem,elas estão destinadas a desposar homens de sua al-deia; em contrapartida, para ampliar suas opçõesmatrimoniais, necessitam ir embora.

A alteração das condições de reprodução do pequeno campesinato

A estreita dependência entre os campos matri-monial e econômico já foi atestada por numerososestudos de antropologia (Bourdieu, 1972; Segalen,1984; De Singly, 1994). Tal relação sugere a importân-cia de se analisar as condições de reprodução do pe-queno campesinato e sua evolução, sobretudo em setratanto de entender, como no caso da presente pes-quisa, por que há “desvalorização social” dos rapazesna zona rural em questão. Assim, a migração das do-mésticas para Fortaleza, determinada por objetivos deordem matrimonial, poderia ser analisada como umaestratégia de reconversão de sua posição, desenvol-vida pela pressão de mudanças econômicas estrutu-rais que as teriam levado a “mudar para se manter”(Bourdieu, Boltanski, Saint-Martin, 1973). Com efei-

Page 10: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

172 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

to, as transformações socioeconômicas ocorridasdesde os anos de 1950 na agricultura cearense mo-dificaram profundamente o perfil dos parceiros po-tenciais ao alcance dessas mulheres.

O aumento da população agrícola (801.491pessoas trabalhavam na agricultura em 1960, en-quanto em 1995 este número passou para1.170.724) foi associado a uma recomposição in-terna ao campesinato, a qual pode ser apreendidaa partir da evolução da superfície dos estabeleci-mentos agrícolas, por um lado, e dos modos deexploração das terras, por outro. Entre 1950 e1995, o número total de estabelecimentos agríco-las no Ceará foi multiplicado por 3,9, passando de86.684 para 339.217. Mas são as pequenas unida-des produtivas (menos de dez hectares)11 que re-gistraram a maior progressão (de 19.607 para245.312) e sua proporção, no total, expandiu de22,6% em 1950 para 72,3% em 1995. Nessa classe,são os minifúndios com menos de dois hectaresque mais cresceram: o número foi multiplicadopor 34 no correr dos 45 anos estudados, e sua pro-porção no total das pequenas unidades passou de18,1% para 49,6%. Esse incremento realizou-se emdetrimento das unidades de cinco a dez hectares,visto que estas representavam quase a metadedos pequenos estabelecimentos em 1950 e apenas16,0% em 1995. Quanto aos estabelecimentos mé-dios e grandes, seu peso relativo assinalou uma

regressão importante: respectivamente, de 54,1%para 22,5%, e de 23,3% para 5,2%. A fragmentaçãodas unidades está associada à expansão de modosindiretos e inclusive precários de apropriação daterra (Gráfico 7): a curva de evolução da propor-ção de estabelecimentos com menos de cinco hec-tares e a da proporção de arrendatários e ocupan-tes apresentam um movimento similar. Se em1950, 81% das unidades eram dirigidas por pro-prietários, essa taxa atingia somente 47% em 1995;simultaneamente, a proporção de arrendatários eocupantes passou de 8% para 50%. No entanto, aevolução da repartição das superfícies agrícolas,segundo a condição do responsável, indica que aproporção de terras cultivadas por proprietáriospermaneceu, comparativamente, constante no de-correr do período (72%, em 1950, e 64%, em1995), pois a redistribuição dos modos de apro-priação da terra variou muito em função do tama-nho das unidades produtivas. Destarte, a proprie-dade está cada vez menos relacionada aospequenos estabelecimentos que, por sua vez, secaracterizam pela precariedade do sistema de ex-ploração: em 1970, 48% dos pequenos estabeleci-mentos eram compostos por terras próprias; em1995, essa percentagem era apenas de 33%. Nasunidades médias e, sobretudo, nas grandes, ascondições de uso da terra passaram a se apresen-tar, ao contrário, notavelmente estáveis.

Gráfico 7Proporção de Estabelecimentos com Menos de 5 ha e

Proporção de Arrendatários e Ocupantes

Fonte: IBGE, Censos agropecuários.

Page 11: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 173

As importantes mudanças que afetaram asestruturas agrárias cearenses conduziram à preca-riedade da condição e da posição do pequenoproprietário. A exploração de minúsculas parcelasherdadas não possibilita mais a reprodução daeconomia familiar. Para permanecer na agricultu-ra, uma porção crescente de famílias tem de ar-rendar ou ocupar as terras ou procurar atividadescomplementares. Na agricultura, a mão-de-obraprogrediu muito (de 46% entre 1960 e 1995, pas-sando de 801.492 para 1.170.724). Contudo, esseaumento resulta exclusivamente do crescimentodo número de pequenos estabelecimentos explo-rados pelo trabalho familiar. As unidades médiase, sobretudo, grandes, suscetíveis de contratar as-salariados, registram regressão de pessoal ocupa-do (respectivamente -26% e -52% entre 1960 e1995). Então, se a população agrícola cresceu foipor causa, antes de tudo, do crescimento do nú-mero de responsáveis e membros não remunera-dos da família, que representavam 80% da forçade trabalho agrícola, em 1995, e apenas 45%, em1960. O contingente de empregados diminui bas-tante, tanto em valor relativo como em absoluto.Segundo os censos do IBGE, em 1960, 44% daforça de trabalho da agricultura era composta porempregados temporários ou permanentes, em1995, essa porcentagem caiu para 18%. Na realida-de, sob o aparente aumento da população agríco-la, uma dupla mudança se deu, reduzindo conside-ravelmente as capacidades de absorção da mão-de-obra na agricultura: o crescimento da produti-vidade do trabalho nos estabelecimentos médiose grandes e o aumento do subemprego nos pe-quenos. Ora, fora da agricultura, as oportunidadeslocais de emprego são muito restritas. Os municí-pios do interior (zonas urbanas e rurais) apresen-tam uma estrutura socioprofissional pouco diver-sificada. Artesanato, serviços essencialmentepessoais (confecção, sobretudo), pequenos esta-belecimentos comerciais, ensino e cargos político-administrativos, não chegam a oferecer recursoscomplementares suficientes e, ainda, menores op-ções de reconversão. Assim, à medida que noseio do pequeno campesinato a transmissão inter-geracional do estatuto social acontece com muitasdificuldades, as práticas matrimoniais homogâmi-

cas dessa população apresentam grande probabi-lidade de conduzir as jovens oriundas desse meioà desclassificação social e, mais ainda, a uma des-classificação permanente.

A procura dos fatores que determinaram odesprestígio dos homens no meio rural, suscitadapela proposta deste estudo, segundo a qual umalógica matrimonial condiciona o deslocamentodas jovens até Fortaleza, nos levou a verificar orespaldo de uma hipótese formulada em termosde estratégia de reconversão. Notamos que “aschances objetivas de reprodução do grupo”(Bourdieu, Boltanski, Saint-Martin, 1973) perten-cente ao pequeno campesinato são restritas local-mente, o que contribuiu para a diminuição do“valor social” dos jovens nesse ambiente e a con-secutiva migração das mulheres. Todavia, estemodelo, baseado apenas na leitura das estruturaseconômicas, não dá conta da dimensão subjetiva,essencial neste caso, cujo esclarecimento é indis-pensável à compreensão da lógica dos comporta-mentos individuais.

Mobilidade geográfica e mobilidade social: o emprego doméstico

Como sinal de uma melhoria de sua posiçãosocial, as domésticas sintetizam sua ida a Fortale-za com a expressão “mudar de vida”, manifestapor meio do uso de superlativos na evocação dascircunstâncias da migração para a capital:

Matilde: Achava que eu ia ter mais liberda-de aqui, que ia conhecer melhor a vida, lá sabia

de nada, aqui seria diferente.

Lucia: Decidi vir para cá para ter uma vida melhor.

alete: Fortaleza era perto da minha cidade, e era

lá que queria recomeçar.

Raimundinha: Fazia tempo que tinha vontade

de vir. Minhas primas encontraram um trabalho

para mim e vim para questionar a vida, para me-

lhorar minha situação.

Deuslange: Desde criança eu queria vir, queria

ter minha própria vida, sem depender de nin-

guém. Aqui trabalho, ganho meu dinheiro, quan-

do quero um coisa eu tenho. Lá, quando as pes-

Page 12: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

174 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

soas têm um trabalho, ganham uma mixaria e

nunca me conformei com a pobreza.

Entrevista de grupo: Saí de casa porque queria

uma vida melhor e lá não podia ter o que quero

para mim. Aí escolhi mudar de vida, vim traba-

lhar para comprar o que eu quero, o que eu de-

sejo (Entrevista 4).

O desejo de ascenção social, expressado pe-las domésticas entrevistadas, nos permite interpre-tar a migração para Fortaleza como uma “condutade mobilidade social”, no sentido que a definemAlain Touraine e Orietta Ragazzi (1961). A partir deum estudo sobre os operários de origem agrícola,estes autores se propõem a analisar a migraçãocomo uma “conduta orientada e significativa de umator”, que resulta, ao mesmo tempo, “de constran-gimentos ou de estimulações econômicas e [...] deum projeto pessoal”. Eles identificam, do pontode vista analítico, três casos gerais de passagem deemprego de trabalhador agrícola para o de operá-rio da indústria, definidos a partir do “tipo de de-cisão que acarreta a mobilidade”. Em primeiro lu-gar está o deslocamento. Quando numa zona rurala oferta de trabalho aumenta, em função da im-plantação de uma empresa, o trabalhador agrícolapode ser contratado sem deixar sua aldeia, ou ins-talando-se numa aldeia vizinha. Nesse caso, “umaocasião precisa deu forma a uma intenção, talvez emesmo provavelmente latente; a iniciativa não veiodo próprio indivíduo”. Em segundo lugar está apartida. “Sempre querida ou pelo menos aceita”,corresponde à migração para um centro industrial:o trabalhador agrícola “decide ir trabalhar numausina, deixar a terra, tornar-se operário”. Por fimestá a conduta de mobilidade social que supõe que“o indivíduo que deixa seu meio social de origemseja dirigido por uma vontade ou uma perspectivade ascensão”. Esses três tipos de movimento carac-terizam-se por ter objetivos diferentes: a empresa,para o deslocamento, a indústria, para a partida, ea cidade, para a mobilidade social, sendo que ameta, nesse último caso, é “antes de tudo, entrar naeconomia e na cultura urbana”. Passa-se, assim, deobjetivos específicos para gerais e, acrescentamTouraine e Ragazzi, “quanto mais o objetivo domovimento é geral, mais também seus fins cultu-

rais adquirem importância em relação a seus finsdiretamente econômicos“. Tal abordagem, que fazda migração o resultado de um projeto pessoal deascensão social, permite que não nos detenhamosem uma explicação exclusiva e mecanicamentecentrada nos contrangimentos econômicos e na“resignação à necessidade” (Bourdieu, 1979) comofundamentos das práticas populares.

Ambições matrimoniais e seleção do cônjuge

A aspiração de promoção social manifestadapelas jovens se traduz também na concepção quetêm do casamento. Embora as migrantes encaremseu futuro conforme a definição dos destinos fe-mininos vigentes no seu meio de origem, defini-ção segundo a qual o casamento determina, paraas mulheres, o acesso à posição adulta, sua con-cepção do casamento, ao contrário, diverge. En-quanto nas sociedades rurais as estratégias dealiança visam a garantir a continuidade das posi-ções sociais de uma geração para outra, as migran-tes concebem o casamento como um intrumentode promoção social: o modelo da homogamia foisubstituído pelo da hipergamia feminina. Daí ocuidado extremo na seleção do cônjuge:

Nilda: Nunca quis de um homem que sabe de

nada, falo de uma coisa, nem sabe do que estou

falando, pergunto alguma coisa e nem sabe me

responder. Não. Quero alguém que sabe me res-

ponder, que tira minhas dúdivas, não quero de

um homem burro. Gosto das pessoas inteligen-

tes, educadas, que sabem um pouco de tudo,

que sabem conversar, acho que é muito impor-

tante, tem muito valor, quando você conhece al-

guém que conhece as coisas, principalmente que

sabe falar, acho que é bom, aí você deve dar va-

lor a isso (Entrevista 5).

Se o amor não é esquecido, se conjuga per-feitamente com o interesse:

Albanisa: Eu sou pobre, não vou me casar com

um pobre!

Aparecida: Deus me livre de me casar com um

homem pobre. Para sofrer? Claro que eu não que-

Page 13: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 175

ro viver às costas dele, quero ter meu próprio ne-

gócio, se tem dinheiro pode montar um negócio

para mim.

Rita: Vou me casar quando vou ser apaixonada

por um rapaz, quando vou saber que ele me ame,

que eu o amo de verdade, que ele tem um bom

emprego para poder se casar, se não tem um

bom emprego como é que a gente pode sobrevi-

ver? (Entrevista 6).

Do mesmo modo, a diferença que percebementre casamento e concubinato, segundo o esta-tuto socioeconômico do parceiro, testemunha aprocura de uma ascensão social pelo casamento:

Vilma: A gente pode viver juntos com um homem

pobre, mas não com um homem rico. Com um

homem rico, a gente se casa. Se divorcia, a gen-

te tem direitos, a casa, tudo é dividido.

Nilda: Se o rapaz tem mais que a moça, acho que

é melhor casar (Entrevista 7).

Tal concepção do casamento tem forte inci-dência na escolha do marido. Com efeito, en-quanto nas comunidades rurais o controle paren-tal delineia estreitamente o círculo das uniões, osistema de alianças é, apesar de tudo, preferen-cial e não prescritivo, quer dizer, o cônjuge é es-colhido e essa escolha pertence aos filhos. Ora,Michel Bozon (1991) mostrou que a seleção deum parceiro se efetua também “através de julga-mentos que cada um faz sobre os indivíduos queencontra“. Assim, no mercado matrimonial, oconjunto dos capitais que os jovens detêm, querdizer, seu valor social, é objeto de apreciação por

parte das moças; seu resultado dependerá do va-lor social dos homens, por um lado, e das cate-gorias que as moças empregam para julgar essevalor, por outro. À medida que as migrantes es-peram do futuro marido uma melhoria em suaposição social, um rapaz será avaliado em funçãode suas potencialidades promocionais. Nessascondições, a desqualificação dos homens do pe-queno campesinato pode se referir não apenas aseu empobrecimento, que compromete as chan-ces de reprodução do grupo, mas também à re-definição dos critérios de avaliação das moças;aliás é o que confirmam os resultados obtidos apartir do estudo do retrato que as pesquisadasconstruíram de seu futuro cônjuge. Com efeito,François de Singly (1994) constata que as mulhe-res sensíveis a seu sucesso social e casadas comum parceiro de melhor nível cultural, econômicoe social são particularmente propensas a retradu-zir esse valor social superior em valor psicológi-co: “vêem seu parceiro como um interlocutoratento, um confidente, uma pessoa que desem-penha o papel de “‘terapeuta’” e de apoio”. Domesmo modo, conforme as observações de Mi-chel Bozon (1990), as qualidades psicológicas ourelacionais que as mulheres reconhecem, de bomgrado, em seu futuro cônjuge, por ocasião de seuencontro, “remetem à posição social mais eleva-da do homem”. Ao descreverem seu cônjugeideal, 88,9% das domésticas fazem referência asuas qualidades de ordem psicológica (Tabela 4).

Também, segundo elas, são evidenciadassuas capacidades de comunicação conjugal (“es-cuta o que quero dizer”, “conversa comigo”, “meconta seus problemas”), de compreensão (“sabe

Tabela 4Qualidades do Cônjuge Ideal Segundo as Empregadas Domésticas

Qualidades Entrevistas Número % Qualidades psicológicas 40/45 88,9 Qualidades afetivas 19/45 42,2 Qualidades morais 15/45 33,3 Qualidades socioeconômicas 11/45 24,4 Qualidades profissionais 6/45 13,3 Qualidades físicas 2/45 4,4

Page 14: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

176 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

me entender”“) e de proteção (“deve procurar meajudar de todo jeito”, “está sempre do meu ladopara tudo”). O lugar privilegiado que as entrevista-das atribuem a esses critérios pode ser considera-do como o indicador da prioridade que outorgamà superioridade social do homen. É importante as-sinalar que a freqüência com que são citadas asqualidades de natureza psicológica fica estávelqualquer que seja a duração de residência das mo-ças na capital ou no emprego doméstico; em ou-tras palavras, suas ambições matrimoniais não sedesenvolvem posteriormente à sua chegada emFortaleza, mas acompanham sua migração e seuingresso na domesticidade. Portanto, a “desvalori-zação social” dos jovens camponeses resulta, cer-tamente, da transformação das estruturas agríco-las, que promoveu o empobrecimento daquelesque porventura seriam os pretendentes naturaisdas moças, caso tivessem ficado em seu municípiode origem. Este fator, no entanto, deve ser relacio-nado também a mudanças de ordem cultural. Osprocessos ocorrem de maneira simultânea, ouseja, o empobrecimento no meio rural é acompa-nhado pelo desejo de ascensão social que passa adeterminar as ambições matrimoniais das moças, oque contribui para redefinir os critérios de avalia-ção e de escolha do cônjuge. Novas normas pas-sam a determinar o valor matrimonial: um esposonão deve se contentar apenas em manter a posi-ção social de sua mulher, deve também assegurarsua promoção social.

Em suma, apesar de as oportunidades matri-moniais serem mais numerosas nos municípios deorigem das domésticas do que em Fortaleza, a prá-tica homogâmica e a preferência pelo casamentoentre parentes, que, nas comunidades rurais, re-gem as trocas matrimoniais entre as famílias, desig-nam às moças parceiros pouco suscetíveis de aten-der suas expectativas conjugais. O espaço social deseu município de nascimento é, então, descrito emtermos de imobilidade; e como não muda, não ofe-rece oportunidade de mudar:

Maninha: Lá a vida é como parada não tem pro-

gresso, as pessoas vivem da casa para o trabalho,

do trabalho para a casa e é assim, não tem even-

to, nada de novo. O trabalho é sempre o mesmo,

os homens trabalham na agricultura e as mulhe-

res em geral ficam em casa mas tem algumas que

ajudam os homens na agricultura.

Bethânia: Lá não tem jeito para mudar de vida. A

única maneira que você tem de mudar de vida

quando você é uma moça pobre, é encontrar um

rapaz rico mas não tem rapaz rico que quer se ca-

sar com uma moça pobre. Querem juntar o di-

nheiro para ser mais ricos (Entrevista 8).

O controle parental na formação das alian-ças é percebido como um encerramento numacondição da qual as moças querem escapar, e aestreita vigilância de sua conduta, que constitui omeio pelo qual esse controle se exerce, é consi-derado um aprisionamento. Assim, a migraçãodas moças até Fortaleza pode ser analisada comouma “mobilidade de prospecção matrimonial”,mas esta se inscreve numa estratégia de promo-ção social pelo casamento. Deve-se levar em con-ta a dimensão promocional das condutas das mo-ças para se compreender a estreita relação entremigração e domesticidade: mais de 75% das mi-grantes pesquisadas nunca haviam residido emFortaleza antes de trabalhar nesta cidade comodomésticas. Para satisfazer suas expectativas deascensão social, precisam ampliar suas opçõesconjugais, redefinindo a área de recrutamento deseu parceiro e libertando-se da tutela parental edo controle familiar em geral. Ora, como a profis-são de doméstica implica a residência no empre-go, permite às migrantes afastarem-se do domicí-lio parental, libertando-as da ingerência familiar eda influência do meio social de origem que prede-terminam sobremaneira seu destino e sua posiçãosocial. Assim, o deslocamento geográfico marcaapenas o engajamento das moças num processode deslocamento social, cujo objetivo é a constru-ção de uma nova identidade social que o empre-go doméstico deve possibilitar.

Os benefícios do ingresso na domesticidade

Noventa por cento das pesquisadas declara-ram nunca ter trabalhado antes de se tornarem do-mésticas. As atividades remuneradas que exerciamantes de ingressar nesse ambiente foram, freqüen-

Page 15: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 177

temente, omitidas, tanto nos questionários comonas entrevistas. Da mesma forma, quando interro-gadas sobre quando começaram a trabalhar deforma remunerada, muitas indicaram o primeiroemprego doméstico. Na realidade, 25% das do-mésticias entrevistadas já haviam exercido algumtipo de atividade remunerada, o mais das vezes,artesanal, quando residiam com seus pais, e essasatividades inscreviam-se na divisão familiar dotrabalho. O salário das moças fazia parte da eco-nomia familiar: era entregue à mãe, que cuidavada organização (aprendizagem, inclusive) do tra-balho de suas filhas. A lógica das despesas ex-pressava a primazia da família e o lugar residualdeixado ao indivíduo (entrevista 9):12

Helena: Minha mãe fazia chapéus e engomava.

Agora eu nunca aprendi a fazer chapéus, minhas

irmãs sabiam, menos eu. Minha função era engo-

mar e lavar, as pessoas me chamavam e eu dava

o dinhero a minha mãe, ela comprava o que que-

ria, com o que sobrava, comprava roupas quan-

do achava que eu merecia. Eu trazia tudo para

casa, não gastava nada (Entrevista 9).

O emprego doméstico em Fortaleza, por-que pressupõe a saída do lar, permite às migran-tes uma maior autonomia fora desse modelo deatividade subordinado à família. Contrariamentea uma idéia muito difundida por uma concepçãoeconomicista da domesticidade, o emprego do-méstico não pode ser analisado exclusivamentecomo uma estratégia para garantir a renda fami-liar quando os pais inserem as meninas aindamuito jovens nesse universo. Essa análise podeser aceitável apenas para as meninas que ingres-saram no emprego doméstico antes de dez anose, portanto, uma minoria (6,3%). Muitas vezes,elas exercem a atividade de “babá”, que consis-te, sobretudo, em ser companheira de brincadei-ras das crianças dos patrões. A natureza das tare-fas realizadas por essas jovens muda, perdendopouco a pouco seu caráter lúdico, quando, a par-tir de treze anos, passam a guardar para elas mes-mas seu salário até então integralmente mandadoaos pais:

Socorro: Não achava que fosse um trabalho, eu

nem sabia o que era um trabalho, fazia mas para

mim era nada, era como se fosse uma obrigação

que tinha em casa, considerei como trabalho mais

tarde, aos 12-13 anos. [O que você fazia nesta

casa até 12 anos?] Só fazia brincar porque là na

minha casa tinha nada e aqui eles me davam mui-

tas coisas. Vim para brincar, para passar tempo

com o menino. [Depois você cresceu…] Aos 12

anos, comecei a lavar fraldas, dar sopa, ajudar a

preparar a comida, dar os remédios, pequenas

coisas assim. [E em seguida?] Acho que o serviço

cresceu junto comigo, tinha condição de fazer

mais, aí devia fazer, como cuidar deles. Varria a

casa, passava o pano, fazia as compras.

Irene: Vim para brincar, era menina ainda. Aí

quando cresci, ela [a patroa] exigiu mais, cuidava

da casa e quando tive 13-14 anos, a cozinheira foi

embora, aí ela me pediu para fazer o almoço,

gostou da minha comida, aí continuei até agora

(Entrevista 10).

Fora esses casos, o emprego doméstico em

Fortaleza, em virtude da separação residencial, li-

berta as moças da obrigação de participar na eco-

nomia familiar. Assim, apesar de dois terços das

domésticas afirmarem ajudar seus pais, elas parti-

cipam, na realidade, de maneira irregular na eco-

nomia familiar com o envio de dinheiro ou de

bens materiais como roupas e remédios, e isto in-

dependentemente de sua idade no momento da

pesquisa ou do início da atividade doméstica, ou

ainda, do tempo de serviço. As mães reclamam e

as domésticas o confirmam:

[Você manda dinheiro a seus pais?]

Cleoneide: Quando vou lá e que posso dar, dou.

Pode ser todo mês, pode não ser, não tem mo-

mento fixo não.

Fátima: Não. Quando vou em casa, quando levo

dinheiro, eu dou, quando não tenho, eu digo

logo: “vim apenas com o dinheiro da passagem”.

Elsa: Não, ele [seu pai] pede mas meu salário é

pouco pra dar.

Liane: Às vezes, mas não todo mês, às vezes,

quando eu quero (Entrevista 11).

Page 16: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

178 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

O envio sistemático e regular de dinheiro,assim como visitas mais freqüentes à família,ocorre quando os pais ficam cuidando dos ne-tos enquanto as mães trabalham como domésti-cas na capital.

Escapando ao olhar familiar, que limita aexistência individual, as domésticas esperam ter aliberdade indispensável à sua colocação no mer-cado matrimonial de Fortaleza. Existe agora a li-berdade de sair e, portanto, de encontrar pessoas:

Entrevista de grupo: Numa casa de família, eles

[os patrões] não vão ficar preocupados com você

como sua própria família, você é uma pessoa in-

dependente, quase livre. Você trabalha, ganha

seu dinheiro, compra o que você quiser, faz o

que você quiser. Lá em casa, você não pode,

deve dar satisfação à família. Na minha casa, por

exemplo, para sair, tenho que pedir a meu pai e

às vezes ele não deixava.

Evanisa: Posso sair na hora que eu quiser, tenho

os amigos que eu quiser, tenho o namorado que

eu quiser. Vou num lugar, numa festa, sem horá-

rio para voltar. Com meus pais, não tinha tudo

isso, tinha um horário para voltar, tinha que dizer

com quem eu saía, onde acontecia a festa [...]

(Entrevista 12).

Salários baixos ou pagos de maneira irregu-lar é um problema normalmente negociado entrepatrões e empregadas em termos de diminuiçãode carga horária ou de trabalho, mas, ao contrá-rio, o controle rígido de encontros ou a limitaçãodas saídas por parte do empregador torna-se ra-pidamente intolerável para a empregada. A liber-dade de gastar dinheiro também é outro fator im-portante. Maninha, por exemplo, quando residiaem Pacatuba com os pais, trabalhava em casacomo bordadeira. Quando completou treze anospassou a trabalhar como doméstica em Fortaleza:“queria ganhar meu dinheiro, queria comprar eumesma, com meu suor, minhas coisas”. O fato deelas não mais morarem com os pais e estaremdistantes geograficamente da família torna possí-vel a elas decidirem sobre o que fazer com suarenda, já que seu salário não faz mais parte dosrecursos familiares, a não ser de modo bastante

irregular. As “coisas” a que Maninha se refereconsistem sobretudo em vestuário: 57% das do-mésticas entrevistadas consideram ser este oprincipal item de suas despesas mensais (essataxa chega a 72% quando da exclusão das do-mésticas que possuem filhos). Normalmente, asroupas não são compradas em lojas, mas de vizi-nhas ou amigas que vendem a domicílio, ou deuma costureira que as confecciona sob medida,sendo que o pagamento é parcelado. Os cosmé-ticos, ao contrário, representam pouco nos orça-mentos. As domésticas usam, sobretudo, batom eo perfume é, muitas vezes, dado pela patroa. Ra-ramente o salário é economizado. Um terço dasmoças poupam dinheiro, mas de forma irregular,para o caso de serem demitidas ou para compraralguma roupa mais cara. Quando ficam noivas,no entanto, a poupança passa a ser mais sistemá-tica e sua quantia mais elevada; as somas servempara comprar enxoval e louças. Assim, os inves-timentos monetários que realizam são, sobretu-do, de ordem estética. Dando grande importânciaa isso, as domésticas esperam mascarar sua ori-gem e condição, redefinindo, assim, seu lugar nahierarquia social: a qualidade das roupas e suacombinação são indícios que servem para situá-las socialmente, e, em conseqüencia, para seremavaliadas por um eventual cônjuge:

Rose: Quando a gente é bem vestida, pode en-

contrar alguém melhor.

Nilda: Um rapaz que vê a gente bem arrumada,

acha que a gente é da classe média. Os rapazes

são desse jeito (Entrevista 13).

A diversidade do espaço social local

Esse desejo de ascender socialmente, tãotransparente nas entrevistas, mostra que as moçascompartilham sua concepção de vida apenas par-cialmente com seus pais. Se a ambição marca aidéia de futuro dessas mulheres, a desambiçãocaracteriza a concepção dos pais, ou seja, o sis-tema de representações e de valores das domés-ticas não é inteiramente herdado do meio fami-liar. Assim, compreender as condições dedesenvolvimento de suas aspirações é identificar

Page 17: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 179

os fatores que contribuíram para dificultar a trans-missão de valores entre as gerações.

Uma primeira explicação diz respeito ao em-pobrecimento do pequeno campesinato. Se as mo-ças são pouco vinculadas aos valores tradicionais,é porque estes lhes parecem ilegítimos à medidaque se tornaram ineficazes para evitar a desclassi-ficação: os pais não são mais os fiadores de suainserção social. O destino pode, então, ser pensa-do em termos individuais. E é o que manifesta aautodeterminação espontânea nos relatos de emi-gração (“eu não queria ficar lá”, “eu queria sair decasa”, “sou eu que tomei a decisão”, “logo [depoisda minha saída] não deixei mais ninguém mandarem mim, vou onde eu quero”), uma maneira designificar o domínio de seu próprio destino opos-to à submissão ao grupo familiar, domínio que aemigração tornou possível.

Uma segunda explicação está relacionada àconfiguração socioespacial dos municípios de ori-gem das migrantes. Vários autores mostraram opapel determinante que desempenham as caracte-rísticas morfológicas do espaço local nos fenôme-nos de reprodução social. Patrick Champagne(1986) observou que nos municípios isolados geo-gráfica e socialmente os valores tradicionais sãofacilmente conservados e transmitidos, na medidaem que, hegemônicos, impõem-se como evidên-cias. Ao contrário, nos municípios socialmente he-terogêneos e abertos a influênciais exteriores, osvalores tradicionais não estão garantidos. Nessemeio convivem e interagem indivíduos que ocu-pam posições sociais variadas e que, portanto, sãodetentores de valores também diversos, os quaissão referências imprecindíveis para a avaliação dascondições de vida desses indivíduos. A fim de ve-rificar a validade dessa proposição no caso das do-mésticas, tentamos caracterizar a configuração so-cioespacial de seu município de nascimento emrelação aos demais municípios cearenses. Paraisso, elaboramos cinco indicadores13 a partir de da-dos estatísticos disponíveis. Três deles são destina-dos a medir a maior ou menor homogeneidade so-cioespacial dos municípios: proporção dos ativosocupando um emprego fora da agricultura, núme-ro médio de empregados nos estabelecimentosnão-agrícolas e taxa de população urbana. Os dois

últimos indicadores permitem avaliar o isolamen-to geográfico, ou seja, a distância de Fortaleza e ofato de o município ser ou não turístico. A partirdessas variáveis,14 chegamos a um índice cujo va-lor fornece uma escala do encravamento dos mu-nicípios cearenses. Cada modalidade foi afetadapor um coeficiente que vale entre 1 e 3, da seguin-te maneira:

Modalidade Coeficiente• Proporção dos ativos ocupando um emprego

fora da agricultura0-19%..........................................................120-29%........................................................230% e mais.................................................3

• Número médio de empregados nos estabeleci-mentos não-agrícolas

3 e menos...................................................14 e mais......................................................3

• Taxa de população urbanaTaxa inferior à média do Estado …….......1Taxa superior ou igual à média do Estado...3

• Distância quilométrica de Fortaleza450 km e mais…....………………..……....1250-449 km……………………..................20-249 km…………………………………...3

• Município turísticoNão……………………………...................1Sim……………………………………........3

O índice total de um município foi calculadosomando-se os coeficientes atribuídos a cada mo-dalidade das variáveis. Vai de 5, nível máximo deencravamento, a 15, nível mínimo. Os resultadosapresentados no Gráfico 8 mostram a pertinênciadas observações de Patrick Champagne (1986). Operfil dos municípios de origem das domésticas eo dos demais municípios, ante os valores tomadospelo índice, são bastante diferenciados. O primei-ro caracteriza-se por uma sub-representação dosíndices, entre 5 e 7 (5,0% contra 63,6% para osmunicípios onde não há recrutamento de domés-ticas), e uma sobrerepresentação dos índices maiselevados (60,0% dos municípios de origem das mi-grantes têm um índice entre 11 e 15, sendo essataxa apenas de 12,7% para as outras localidades).A atração por Fortaleza é muito pequena em mu-

Page 18: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

180 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

nicípios isolados e socialmente homogêneos, egrande nos municípios que apresentam diversida-de socioespacial.

Em síntese, as aspirações de ascensão social,que levam as jovens a procurar um cônjuge aptoa melhorar sua posição, se desenvolvem sob apressão de transformações internas do pequenocampesinato, por um lado, e da heterogeneidadedo espaço social local, por outro. Se as famíliasnão conseguem mais impor seu sistema de valo-res aos descendentes, é porque não somente setornaram incapazes de assumir seu destino, comotambém porque os municípios, onde residem asfamílias, acolhem populações diferenciadas, queproporcionam aos indivíduos outras escolhas e,então, outras possíveis identidades sociais.

*****

Questionar os fatores que podem predispormulheres jovens a emigrar, trabalhando como do-mésticas em cidades grandes, levou-nos a explo-rar a configuração demográfica de seus municí-pios de origem, que se caracteriza por um grandedesequilíbrio entre os sexos (o número de ho-mens em idade de se casar é maior do que o demulheres). Chegamos à conclusão de que a migra-ção das jovens se inscreve numa lógica matrimo-nial, expressão de uma estratégia de reconversão.Todavia, o pressuposto metodológico adotado,que consiste em articular componentes estuturaise biográficos das experiênciais individuais, reve-lou a dimensão de ascensão social do comporta-mento migratório das jovens, dimensão esta que

as leva a procurar um cônjuge apto a melhorarsua posição social. Infelizmente, os dados da pes-quisa nada dizem a respeito do que se passoucom essas mulheres depois de serem entrevista-das, ou melhor, como seus projetos foram realiza-dos.15 Convém ressaltar, entretanto, que o empre-go doméstico constitui um canal de acesso e deestabelecimento na cidade. Para 88% das domés-ticas entrevistadas em Fortaleza, a migração acon-teceu junto com o ingresso na domesticidade. Asmoças encaram a migração - que representa, paraquase dois terços delas, a primeira experiênciamigratória desde o nascimento - não como modotemporário de estada antes do regresso ao lugarde origem ou de uma próxima partida em direçãoa novo destino, mas como modo definitivo de ins-talação. Setenta por cento das domésticas declara-ram ter vindo à Fortaleza com a pretensão de fi-car. Reconstrução a posteriori? Pouco plausível,uma vez que se sabe que a taxa é quase igualpara as recém-instaladas. As domésticas que ex-primiram uma vontade de voltar à sua região deorigem, ou de prosseguir um caminho que as le-varia até outro lugar, encontram-se preferencial-mente entre aquelas que não têm plano algum depermanência. Assim, as disposições iniciais perdu-ram, pois determinam de forma duradoura os pro-jetos, que se traduzem por uma vontade de enrai-zamento na cidade. E, de fato, é pequeno onúmero de migrantes que retornam à sua regiãode origem para ficar, como o demonstra a baixaincidência de herança profissional entre as mulhe-res que trabalham como domésticas (somente umdécimo das migrantes têm mãe que exerce ou já

Gráfico 8Distribuição dos Municípios Cearenses, Segundo o Índice de Encravamento

Page 19: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 181

exerceu no passado essa atividade). Então, a saí-da das moças é definitiva, conforme suas preten-sões iniciais. Ora, a domesticidade é um empregode juventude e, conseqüentemente, renova-se aum ritmo muito rápido: em 1991, dois terços dasdomésticas brasileiras tinham menos de 25 anos,60,0% delas agrupadas nas faixas etárias com-prendidas entre quinze e 24 anos. Em outras pa-lavras, depois dos 25 anos, muitas jovens deixamo emprego doméstico sem, contudo, voltar à zonarural; destarte, se a proporção de domésticas napopulação urbana feminina do Brasil atingia ape-nas 3,5% em 1995, a das antigas domésticas, infe-lizmente impossível de ser avaliada a partir dosdados disponíveis, deveria ser muito mais alta, oque nos leva a concluir, assim como AntoinetteFauve-Chamoux (1998) em seu estudo sobre ascidades européias do século XVIII, que as domés-ticas participaram ativamente da formação da po-pulação urbana brasileira.

NOTAS

1 Fonte: IBGE, Censo demográfico, 1991.

2 Trata-se aqui das empregadas domésticas que dor-

mem no emprego, ou seja, as que são classificadas

pelo IBGE sob a modalidade “Empregado domésti-

co”,da variável “Condição na família”. As diaristas

estão, portanto, excluídas do presente estudo.

3 Fortaleza é uma das capitais que apresenta não ape-

nas um dos maiores excedentes femininos do Brasil,

assim como uma das maiores proporções de domés-

ticas em sua população (1,5%). A pesquisa de cam-

po consistiu em: Entrevistas individuais semi-dirigi-

das com empregadas domésticas (n = 48), patroas (n

= 13), mães de domésticas de Fortaleza (n = 12). To-

das as mães residiam em Camocim, município do li-

toral norte cearense, de onde eram oriundas muitas

domésticas já entrevistadas; Questionários com do-

mésticas escolarizadas (n = 150); Entrevistas de gru-

po com domésticas escolarizadas (quatro entrevis-

tas, ou seja, 41 domésticas); Exploração segundária

dos dados da pesquisa “Desemprego e subemprego

no município de Fortaleza” realizada em 1991 pelo

SINE, com uma amostragem aleatória estratificada de

2.379 domicílios, o que representa 11.374 indiví-

duos, entre os quais 162 domésticas; Exploração se-

cundária da base de dados Samba, 2000; Levanta-

mento de dados estatísticos do IBGE sobre Fortaleza

e os municípios cearenses.

4 Fonte: Sine, “Desemprego e subemprego no muni-

cípio de Fortaleza”, 1991.

5 Esse resultado agrega os dados das investigações

que conduzimos com as empregadas domésticas, a

saber: questionários, entrevistas de grupo e entre-

vistas individuais (N = 240). A análise a seguir diz

respeito às migrantes cearenses que representam

mais de 80% do total das migrantes; desse modo,

foram excluídas as oriundas de outros Estados.

6 Vale ressaltar que a migração dessas jovens é indi-

vidual e direta entre o município de origem e

Fortaleza.

7 Fonte: IBGE, PNAD, 1990.

8 A fim de reduzir o efeito de flutuações aleatórias,

foram considerados municípios de nascimento das

domésticas somente os que apresentavam, em nossa

amostragem, uma freqüência igual ou superior a

cinco, o que representa um total de 28 municípios.

Entre os dois censos de 1980 e 1991, houve várias

mudanças no recorte administrativo dos municípios

cearenses: 43 distritos tiveram acesso à autonomia a

partir do desmembramento de 31 municípios; as

domésticas entrevistadas, nascidas num município

criado após 1980, podiam declarar como lugar de

nascimento o antigo município ou o novo. Em com-

pensação, entre 1960 e 1980, apenas um município

foi fracionado. Os limites da quase totalidade dos

municípios, portanto, não variaram entre essas duas

datas que constituem o período de nascimento de

95% das domésticas. Por isso, preferimos analisar a

partir das fronteiras municipais de 1980 (ou seja, um

total de 140 municípios). Os diversos dados relativos

aos novos municípios foram incluídos nos dos

municípios iniciais. Trabalhar a partir de unidades

geográficas estáveis permitiu adotar uma perspectiva

dinâmica no sentido de entender as mudanças do

contexto social no qual as domésticas foram criadas.

9 Segundo o censo de 1991, 75,1% dos domicílios

particulares permanentes, localizados numa zona

rural cearense, constam de uma família nuclear.

10 A este propósito, ver Durham (1973).

Page 20: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

182 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

11 Usamos a divisão determinada por Sadi Dal-Rosso

(1980). As pequenas unidades contam com menos

de 10 ha, as médias, entre 10 e 100 ha, e as grandes,

100 ha e mais.

12 A partir de pesquisas com homens migrantes de

origem rural, Eunice Durham (1973) chegou à

mesma conclusão: “o trabalho que o jovem realiza

com seu pai nunca é mencionado na descrição das

atividades profissionais. A atividade agrícola é incluí-

da pelo migrante na descrição de sua carreira apenas

quando é exercida como atividade independante, ou

seja, como trabalho do indivíduo adulto. Isto parece

indicar que as crianças e os adolescentes não são

considerados trabalhadores, mas somente mão-de-

obra familiar”.

13 Todos os cálculos foram efetuados excluindo Fortaleza

das contagens.

14 Cada variável é parcialmente correlata às outras; a

que apresenta os maiores coeficientes de correlação

é a proporção dos ativos ocupando um emprego

não agrícola; a variável que apresenta os menores

coeficientes é a distância de Fortaleza.

15 Tentamos desenvolver uma pesquisa longitudinal

mas, infelizmente, o resultado dessa busca foi decep-

cionante: conseguimos localizar menos de um quin-

to das moças já entrevistadas, tornando impossível

qualquer análise do devir das domésticas.

BIBLIOGRAFIA

ANDERFUHREN, Marie. (1995), “La maison desautres, a casa dos outros: l’emploi do-mestique à Recife”. Actes du colloque“Femmes, villes et environnement”. Ge-nève, pp. 179-188, fev.

ARANTES, Antônio Augusto et al. (1993), Colchade retalhos: estudos sobre a família noBrasil. Campinas, Editora da Unicamp.

BOURDIEU, Pierre. (1972), “Les stratégies matrimo-niales dans le système de reproduction”.Annales esc, 4-5: 1105-1127, jul.-out.

_________. (1974), “Avenir de classe et causalitédu probable”. Revue Française de Socio-logie, XV: 3-42.

_________. (1979), La distinction: critique socialedu jugement. Paris, Les Éditions de Mi-nuit (coleção Le Sens Commun).

BOURDIEU, Pierre; BOLTANSKI, Luc & SAINT-MARTIN, Monique de. (1973), “Les stra-tégies de reconversion: les classes socia-les et le système d’enseignement”.Information sur les Sciences Sociales,XII (5): 61-113.

BOZON, Michel. (1990), “Les femmes et l’écartd’âge entre conjoints: une dominationconsentie. II. Modes d’entrée dans la vieadulte et représentations du conjoint”.Population, 3: 565-601.

_________. (1991), “Apparence physique et choixdu conjoint”. Congrès et Colloques, 7:91-110, PUF-INED.

BOZON, Michel & HEILBORN, Maria Luiza.(1996), “Les caresses et les mots: initia-tions amoureuses à Rio de Janeiro et àParis”. Terrains, 27: 37-58.

BOZON, Michel & HÉRAN, François. (1987),“L’aire de recrutement du conjoint”.Données Sociales, pp. 338-347.

CANDIDO, Antônio. (1964), Os parceiros do RioBonito: estudo sobre o caipira paulista ea transformação dos seus meios de vida.Rio de Janeiro, José Olympio (coleçãoDocumentos Brasileiros).

CARVALHO, José Alberto Magno de & RIGOTTI,

José Ireneu Rangel. (1998), “Os dados

censitários brasileiros sobre migrações

internas: algumas sugestões para análi-

se”. Trabalho apresentado no XI Encon-

tro de Estudos Populacionais da ABEP.

CHAMPAGNE, Patrick. (1986), “La reproductionde l’identité”. Actes de la Recherche enSciences Sociales, 65: 41-64.

DAL-ROSSO, Sadi. (1980), “Composição e mudan-ça do trabalho na agricultura brasileira”.Revista de Ciências sociais, XI (1/2): 81-132, Universidade Federal do Ceará.

Page 21: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 183

DURHAN, Eunice R. (1973), A caminho da cida-de: a vida rural e a migração para SãoPaulo. São Paulo, Perspectiva.

FARIAS, Zaíra Ary. (1983), Domesticidade: “cati-veiro” feminino. Rio de Janeiro, Achia-mé/CMB.

FAUVE-CHAMOUX, Antoinette. (1998), “Le sur-plus urbain des femmes en Francepréindustrielle et le rôle de la domesti-cité”. Population, 1-2: 359-378.

GIRARD, Alain. (1964), Le choix du conjoint, uneenquête psycho-sociologique en France.Paris, PUF-INED, Travaux et Docu-ments, cahier 44.

GRIBAUDI, Maurizio. (1987), Itinéraires ouvriers:espaces sociaux à Turin au début duXXème siècle. Paris, Éditions de l’Écoledes Hautes Études en Sciences Sociales.

GRIGNON, Claude & PASSERON, Jean Claude.(1989), Le savant et le populaire: miséra-bilisme en sociologie et en littérature.Paris, Le Seuil/Gallimard (coleção Hau-tes Études).

JACQUET, Christine. (1999), “As leis do silêncio”.Revista de Ciências Sociais, XXX (1/2):163-175, Universidade Federal do Ceará.

JANUZZI, Paulo de Martino. (1999), “Mobilidadesocial e migração no Brasil: revisão bi-bliográfica e elementos empíricos paraanálise”. Revista Brasileira de Estudos dePopulação, 16 (1/2): 55-82, jan.-dez.,Nepo/Unicamp.

JOHNSON, Allen W. (1971), Sharecroppers of theSertão: economics and dependance on aBrazilian plantation. Stanford, StanfordUniversity Press.

JOLINS, Tina; VERDIER, Yvonne & ZONABEND,Françoise. (1970), “Parler famille”,L'Homme, X (3): 5-26, jul.-set.

KOFES, Maria Suely. (1990), Mulher, mulheres –diferença e identidade nas armadilhasda igualdade e desigualdade: interaçãoe relação entre patroas e empregadasdomésticas. Tese de doutorado, SãoPaulo, USP, datilo.

MENEZES, Cláudia. (1976), A mudança: análiseideológica de um grupo de migrantes.Rio de Janeiro, Imago.

MOTTA, Alda Britto da. (1986), “A relação impossí-vel”, in Relações de trabalho e relações depoder: mudanças e permanências. Forta-leza, Imprensa Universitária, pp. 229-238.

PINTO, Marcello. (1990), “Trabalho doméstico”.Revista da Faculdade de Direito, 31:139-163, Universidade Federal do Ceará.

SABOIA, Ana Lucia. (2000), “As meninas empre-gadas domésticas, uma caracterizaçãosocioeconômica”. Trabalho apresentadono XIII Encontro de Estudos Populacio-nais da ABEP.

SAFFIOTI, Heleieth Iara B. (1978), Emprego do-méstico e capitalismo. Petrópolis, Vozes(coleção Sociologia Brasileira).

SANTOS, Ely Souto dos. (1983), As domésticas:um estudo interdisciplinar da realidadesocial, política, econômica e jurídica.Porto Alegre, Universidade Federal doRio Grande do Sul, mimeo.

SEGALEN, Martine. (1984), Sociologie de la famil-le. Paris, Armand Colin.

SILVA, Maria d’Ajuda Almeida da; CARDOZO, Li-libeth Maria Castro & GARCIA, Mary.(1981), “As empregadas domésticas naregião metropolitana do Rio de Janeiro”.Boletim Demográfico, 12 (1): 26-92.

SINGLY, François de. (1994), Fortune et infortunede la femme mariée. Paris, PUF (coleçãoÉconomie en Liberté).

TERRAIL, Jean-Pierre. (1990), Destins ouvriers: lafin d’une classe?. Paris, PUF (coleçãoSociologie d’Aujourd’hui).

TILLY, Louise A. & SCOTT, Joan W. (1987), Lesfemmes, le travail et la famille. Paris, Ri-vages/Histoire.

TOURAINE, Alain & RAGAZZI, Orietta. (1961),Ouvriers d’origine agricole. Paris, Seuil(coleção Études Sociologiques).

VERNIER, Bernard. (1991), La genèse sociale dessentiments: aînés et cadets dans l’île

Page 22: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

184 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

grecque de Karpathos. Paris, Éditions del’École des Hautes Études en SciencesSociales.

WEBER, Max. (1985), L’éthique protestante et l’es-prit du capitalisme. Paris, Plon (coleçãoAgora).

Page 23: URBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICOURBANIZAÇÃO E EMPREGO DOMÉSTICO 165 O casamento:um destino natural Não se pode interpretar o sincronismo entre o ingresso no mercado matrimonial

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 219

URBANIZAÇÃO E EMPREGODOMÉSTICO

Christine Jacquet

Palavras-chaveMigração feminina; Estratégia matri-monial; Estratégia de reconversão;Mobilidade social.

Ao constatar que as domésticas queresidem no emprego, geralmenteoriundas do meio rural, participamativamente da formação da popula-ção urbana brasileira, este artigo pro-cura analisar as lógicas que presidema migração das mulheres em direçãoàs capitais, a partir do estudo da po-pulação doméstica de Fortaleza. A hi-pótese central desenvolvida é que oingresso na domesticidade urbanaatende a um projeto pessoal de ascen-são social e a um objetivo de ordemmatrimonial, que resulta da “desvalo-rização social” dos rapazes no meiorural, decorrente do empobrecimentodo pequeno campesinato.

URBANIZATION AND DOMES-TIC EMPLOYMENT

Christine Jacquet

Key wordsFemale migration; Matrimonial stra-tegy; Reconvertion strategy; Socialmobility.

Having noticed that the maids wholive in the job place, most of the timenatural of the countryside, have ta-ken an active role in the formation ofthe Brazilian urban population, thisarticle aims to analyze the logics thatdetermine the migration of these wo-men towards the capitals, based onthe study of the domestic populationof Fortaleza. The central hypothesisdeveloped is that the ingression intourban domestiticity is seen both as apersonal project of social ascensionand a matrimonial objective, resul-ting in a “social devaluation” of theyoungsters in the rural area, as a re-sult of the impoverishment of thesmall peasantry.

URBANISATION ET EMPLOIDOMESTIQUE

Christine Jacquet

Mots-clésMigration féminine; Stratégie matri-moniale; Stratégie de reconversion;Mobilité sociale.

Partant du constat que les employésdomestiques, la plupart du tempsoriginaires du milieu rural, partici-pent activement à la formation de lapopulation urbaine brésilienne, l’ar-ticle tente d’élucider les logiques quise réfèrent à l’émigration de ces po-pulations vers les villes. Notre étudese fonde sur l’exemple de la domes-ticité dans la ville de Fortaleza. No-tre thèse centrale est que l’entréedans la domesticité urbaine répondà un objectif personnel d’ascensionsociale et à un objectif d’ordre ma-trimonial, qui résulte de la «dévalori-sation sociale» des jeunes paysans,suite à l’appauvrissement de la pe-tite paysannerie.