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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP Mylène Goudet Urbanismos barrocos e espaços comunicacionais: entre o formal e o informal em São Paulo e na América Latina DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Comunicação e Semiótica, sob orientação do Prof. Doutor José Amálio Pinheiro. SÃO PAULO 2010

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC – SP

Mylène Goudet

Urbanismos barrocos e espaços

comunicacionais: entre o formal e o

informal em São Paulo e na

América Latina

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo como exigência parcial para a

obtenção do título de Doutor em

Comunicação e Semiótica, sob

orientação do Prof. Doutor José Amálio

Pinheiro.

SÃO PAULO

2010

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

Ao Amálio, por compartilhar conhecimentos vivos.

Ao Max, por tudo que fizemos juntos até agora.

Ao Zeca e ao Chico, porque esse amor é motor.

Ao Marcelo Min, pelo olhar-imagem que atravessou

a minha escrita.

Ao Jura, por compartilhar edifícios.

À CAPES, por viabilizar esta pesquisa.

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Resumo:

Resumo:

Em São Paulo, as ocupações informais da cidade, tais como comércio ambulante, favelas e movimentos sociais pró-moradia, aparecem na grande mídia como entraves para o cumprimento de planos urbanísticos de recuperação de áreas degradadas da cidade. Porém a hipótese desta pesquisa seguiu na contramão desta idéia e investiu na possibilidade de que o urbanismo de São Paulo nutre-se justamente do diálogo semiótico entre o formal e o informal para configurar-se, sendo a informalidade um dos elementos catalisadores na assimilação e na interação entre textos aparentemente distantes que compõem o mosaico cultural da cidade. O presente estudo tem como objetivo verificar em que medida as relações dialógicas entre a formalidade e informalidade nos espaços urbanos produzem aumento no volume cultural, principalmente em metrópoles cujas séries culturais tendam a se dar nos espaços abertos, nas ruas e espaços públicos. O conceito inicial para a abordagem dos espaços analisados foi o de fronteira, de Iuri Lotman, autor fundamental nos estudos da semiótica da Cultura, por meio do qual foi possível entender a fronteira como campo de diálogo e tradução, e não como separação ou limite. Também foram aproveitados conceitos de autores que analisam relações não binárias da cidade, tais como Amálio Pinheiro, Boaventura Sousa Santos, François Laplantine, entre outros. A cidade de São Paulo apresentou-se como corpus principal de análise por sua representatividade no continente latino-americano, além da proximidade tanto afetiva como geográfica da pesquisadora, permitindo imersões constantes nos ambientes escolhidos para análise. Outra questão específica é a proposição de mescla analítica entre procedimentos do barroco literário latino-americano e as configurações urbanísticas de São Paulo. Autores como Severo Sarduy, Alejo Carpentier e José Lezama Lima esclarecem que o barroco latino-americano, mais que um procedimento estilístico, é considerado como modo não-binário de operar conexões e sintaxes no ambiente informacional difuso e descentralizado do nosso continente. Além do estudo de campo e registros fotográficos, a pesquisadora realizou pesquisas para um documentário de televisão sobre edifícios modernistas em metrópoles brasileiras, prática que revelou-se fundamental na aproximação entre teoria e objeto. Verificamos que a habilidade em transitar entre o formal e o informal estão definitivamente incorporadas como relações comunicacionais nos espaços urbanos de São Paulo, e que estes trânsitos se dão mais por aptidões culturais do que por razões socioeconômicas. Entendemos que estas conclusões possam ser verificadas, com variáveis desejáveis, em outras cidades da América Latina.

Palavras-chave: América Latina; cidade informal; espaços comunicacionais; São Paulo; urbanismo barroco

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Abstract:

In Sao Paulo, the city's informal occupations such slums and social movements pro-

dwelling appear in mainstream media as objection to the implementation of urban plans

for recovery of degraded areas of the city. But the hypothesis of this research proposes

the opposite of this idea and invested in the possibility that the urbanism in Sao Paulo

is fueled by the semiotic dialogue between the formal and informal, and the informality

is the catalytic element in the assimilation and interaction between apparently distant

texts in the cultural mosaic arrangement of the city.

This study aims to verify how dialogical relationships between formality and informality

increases cultural capacity, mainly in cities whose cultural series tend to be given in

open spaces, streets and public areas.

The study is based on the approach of the concept of border, proposed by Yuri

Lotman, author of fundamental studies of the semiotics of culture, through which it was

possible to understand border as a field of translation and dialogue, and not as

separation or limit . Also recovered were the concepts of authors who analyze no-

binary relations in urban spaces, such as Amalio Pinheiro, Boaventura Sousa Santos,

François Laplantine, among others.

São Paulo was chosen as the main body of analysis due its relevance as Latin America

metropolis, besides the emotional and geographical proximity to the researcher,

allowing for diligent immersion in the environments chosen for analysis.

Another specific issue is the possibility of combining analytical procedures of the

Baroque Latin American literary and urbanist settings. Authors such as Severo Sarduy,

Alejo Carpentier and José Lezama Lima propose that the Latin American baroque,

more than a stylistic procedure is considered as non-binary syntactical system

appropriate for the diffuse and decentralized information environment of our continent.

In addition to field research, and photographic records, the researcher worked on

interviews for a documentary about living in modernist buildings in Brazilian cities, a

practice that has proved instrumental in the rapprochement process between theory

and object.

Based on the analyses undertaken, it was possible to understand that the ability to

move between the formal and informal relationships are definitely incorporated as

communication in urban spaces in São Paulo, and that these transits occur more by

cultural skills than by socio-economic reasons. We believe that these findings can be

verified with desirable variables, in other Latin American cities.

Keywords: Latin America; informal city; semiosphere; São Paulo; baroque-urbanism.

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Sumário

Introdução: códigos barrocos para operar nas fronteiras 1

Capítulo 1:os barrocos

1.1 Contextos Barrocos: Europa e a crise do pensamento clássico 7

1.2 Barroco americano, barroco europeu: aproximações e distinções 11

1.3 Barroco americano: (oni)presença da natureza 15

1.4 Brasil: urbanismo barroco ou paisagem barroca? 17

1.5 O urbanismo anônimo latino-americano: alternativa ao racionalismo urbano centro-europeu 25

1.6 Contextos latino-americanos: cenários urbanos 31

1.7 América Latina: Paisagem é cultura 35

1.8 A América Latina segundo a imagem de Lezama Lima 38

1.9 O maravilhoso na América Latina é o assombro do real 44

1.10 Sintaxes no ambiente barroco: as artes do engaste 52

1.11 Séries Culturais: prerrogativas deslizantes na América Latina 57

1.12 Acontecimento: a destruição do hábito e a profanação 59

Capítulo 2: arqueologia do Império

2.1 Agenciamento: um conceito para desmontar identidades 65

2.2 Fronteira: navegação por cabotagem 74

2.3 Uma folha Antiga: a ausência de poder central na fronteira 79

2.4 Cidade empresa: crueldades urbanas 81

2.5 O modelo neoliberal e o Estado mínimo 83

2.6 São Paulo: polis x urbs 87

2.7 São Paulo: o abismal 93

2.8 Um olhar estrangeiro: o outro 97

2.9 Casas Bahia e Bradesco vão se instalar na favela

Paraisópolis, em São Paulo 106

2.10 Os nenês famintos 110

Capítulo 3: vida nas ruas

3.1 Ética para olhar o informal 116

3.2 Em primeiro lugar a rua:

fronteiras mestiças do urbanismo barroco 119

3.3 Edifício Copan

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3.3.1 Dias de pesquisa de personagens para o documentário

3 Edifícios, de Jurandir Muller. 121

3.3.2 Ruas do Copan: modernismo e o “comum” 129

3.3.3 Rua Unaí: o comum na sarjeta 133

3.4 Edifício Pedregulho: o modernismo e o sol, naufrágio intensivo 138

3.4.1 A desfiguração do ideal: monumentalidade à deriva 141

3.4.2 Varanda barroca: os cobogós 142

3.5 Favela Vila Praia

3.5.1 Vila Praia: a véspera do amanhã 149

3.5.2 Situação 1: o fogo 151

3.5.3 Situação 2: o íntimo alargado.

Usos impertinentes de espaços públicos 155

3.6 Rua 25 de março

3.6.1 Trabalho, festa e guerrilha nas ruas 162

3.6.2 Cidadania latino-americana: a nódoa móvel na cidade 166

3.6.3 A rua-bazaar: o oriente somos nós 168

3.6.4 O Socorro da Alegria: grátis, nas ruas 173

3.6.5 Fim de expediente, ainda dá tempo... 174

Conclusões 178

Bibliografia 181

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1

Introdução:

Códigos barrocos para operar nas fronteiras

Uma discussão recorrente no campo do urbanismo tem sido a

problemática em torno da dicotomia entre a cidade planejada e a não-

planejada, entre a cidade ideal e a cidade real. Esta separação binária aponta

para uma grande cisão urbana, na qual o elemento informal é

progressivamente alijado do campo do urbanismo para ser tomado como um

problema exclusivamente social.

Mas a informalidade produz mais do que problemas. A América Latina

tem larga tradição na produção de manifestações culturais urbanas, que

acontecem nos espaços públicos. As ruas e praças constituem o espaço

protagônico da vida cotidiana da América Latina, desde o período pré-colonial

até os dias de hoje. Estas atividades culturais - as festas, procissões e feiras

livres - têm a rua como território principal. Mas também pertence à rua

atividades cotidianas tais como ―(...) o trânsito veicular e de pedestres, o

encontro social, as manifestações políticas, a oferta sexual, a cata de papelão,

a vagabundagem e a venda ambulante, entre outras‖ (DÍOS, 2004). Todas

estas atividades apropriam-se do espaço público, e podem ser tanto previsíveis

e planejadas como erráticas e descontroladas, formais ou informais.

Enquanto a cultura prolifera, o Estado se esforça em metrificar e regular

estas diversidades em nome de uma ordenação urbana. Mas como na América

Latina a produção de cultura é um fluxo irrefreável, o Estado nunca será capaz

de criar uma forma única de representar a cidade. A informalidade apresenta-

se, portanto, como uma usina de formas de vida para sobrevivência nestas

realidades, o que significa conviver simultaneamente entre os enquadramentos

do Estado e a extrema informalidade.

Mas, como observa Torroja, não há uma separação clara entre

formalidade e informalidade, porque nunca será a pobreza e a informalidade de

um lado e a riqueza e a legalidade do outro, mas o trânsito incessante entre o

formal e o informal, o que ‖põe em evidência que os processos de

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informalidade e formalidade não sejam substanciais, mas sim relacionais, e de

que não possam ser localizados definitivamente‖ (TORROJA, 2005, p. 65).

Este trânsito é desejável, bem como a variabilidade que engendra. Para

que o trânsito seja mais produtivo é necessário que se constele um tipo

específico de espacialidade, de ambiente poroso e permeável, que alargue a

linha divisória, transformando-a em um ―campo‖. Não é suficiente que nessa

linha alargada compareçam multiplicidades e múltiplas variáveis; para que os

embates e trânsitos entre o formal e o informal produzam espaços

comunicantes, há que existir uma ampla capacidade de sintaxe entre os

elementos em jogo. Neste ponto é que o barroco torna-se recurso para analisar

o nódulo comunicacional entre o retificado e o descontrolado nos espaços da

cidade, públicos ou não.

Para falar de barroco como recurso analítico será necessário discriminar

no mínimo dois aspectos importantes. O primeiro é que o barroco histórico

americano, aquele que nas Américas coincide com o ciclo aurífero, não é uma

imitação tardia e insuficiente do barroco histórico centro-europeu. Autores que

estudaram o barroco brasileiro do ciclo aurífero, tais como Affonso Ávilla,

Giovana del Brenna, Jorge Alberto Manrique, entre outros, souberam perceber

que nosso barroco nasceu e foi forjado no continente americano, fruto da

confluência impactante de civilizações e temporalidades muito distintas, tendo

como cenário a paisagem americana. No lugar do cansaço filosófico-religioso

europeu, que reclama algum estilo sucessório que restabeleça a ordem

perdida, aqui no continente não há ordem para a qual voltar. Nossa cultura

nasce, portanto, em estado de crise e tensão permanente.

O segundo aspecto que destacamos é que, para nós, o barroco latino-

americano não é um estilo histórico-temporal. Defenderemos que o barroco

latino-americano é um sistema operatório sofisticado que pode surgir em

situações complexas, atuais, nas quais a saída não seja uma solução única,

mas a composição de vários ―possíveis‖. Como disse Lezama Lima (apud

PINHEIRO, 2007, p. 70) ―não foi o barroco um estilo que devia ser valorizado

em presença ou ausência do gótico, mas como um húmus fecundante que

misturava cinco civilizações‖.

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Lezama Lima, Alejo Carpentier e Severo Sarduy foram autores que,

através da literatura, fundaram o continente barroco latino-americano. Sua

literatura é toda feita a partir da indizibilidade do objeto América. Suas

traduções da paisagem cultural são barroquizantes, não chegam a uma síntese

nem modelo de cultura. Os autores criam nódulos de sentido, mas não se

propõem a simplificar a problemática das Américas. Nascemos da confluência

cultural inédita, que explodiu tradições, antes incomunicáveis, e disponibilizou

seus fragmentos para novas combinações, até então inconcebíveis. Como

disse Lotman (1996, p. 101) ―em momentos de explosões culturais (ou, em

geral, semióticas), são incorporados os textos que, desde o ponto de vista do

sistema dado, são os mais distantes e intraduzíveis (ou seja,

incompreensíveis)‖. Nestas traduções nunca teremos de volta os textos iniciais,

mas em troca disponibiliza-se uma multiplicidade de traduções (LOTMAN,

1996, p. 68).

A fronteira, para o barroco, não é um obstáculo, é um espaço ―entre

coisas‖. É a dilatação da linha divisória, que se alarga como campo para o

encontro; é um espaço no qual podem ser captados os fragmentos disponíveis

para combinações novas. O barroco é capaz de, simultaneamente, coordenar

e irradiar excedentes do cotidiano urbano, da rua: o deslocamento labiríntico, o

bombardeio visual e sonoro da cidade. Quando há um excedente de

significantes, a tendência do continente americano é compor sinuosamente,

―nem uma reunião, nem uma justaposição, mas o nascimento de uma

gagueira, o traçado de uma linha quebrada que parte sempre em adjacência‖

(DELEUZE, 1998, p. 38).

Sousa Santos (2009, p. 357) nos relembra que a fronteira é um lugar

onde as hierarquias são mais fracas e o poder do Estado é menos

determinante nas relações e, para o autor, a ―fraqueza‖ do centro na América

Latina está manifesta na mestiçagem, ―tão enraizada nas práticas culturais

desses países ao ponto de ser considerada a base de um ethos cultural

tipicamente latino-americano‖, ainda que nunca se torne um discurso

politicamente dominante. Na verdade, coloca o sistema formal em questão,

tornando ―irrisória qualquer noção de influência, de pertença, de herança ou

mesmo de transmissão‖ (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 85).

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Porém, o trânsito e as traduções na fronteira não são amigáveis nem

justos. Os modelos de cidade atualmente repetem nos espaços, segundo a

cartilha neoliberal, na qual a cidade - que antes era uma fábrica - é uma

empresa. No modelo de cidade-empresa, a agenda do desenvolvimento social

não existe, o Estado cuida do social como problema.

José Humberto da Silva (2009, p. 30 - 39) constata que o modelo

neoliberal tem suas bases fundamentadas na diminuição da presença do

Estado nas decisões estratégicas de desenvolvimento social. O Estado figura

como ineficiente e pesado demais para reagir às solicitações do mercado,

repassando para a iniciativa privada importantes decisões estratégicas, que

giram em torno da jurisprudência e da economia. Nesta nova agenda, a do

Estado Mínimo, o desenvolvimento social está fora. Solá-Morales (2002, p. 26)

verifica que, assim como nos demais campos da política, a cidade passa a ser

vista a partir de análises de base econômica, que apontam conveniências e

oportunidades mercadológicas, ―vocações‖, facilidades produtivas que são

logo capturadas e promovidas pelo chamado ―marketing das cidades‖. O

indivíduo também passa a ser considerado uma peça ―livre‖ para atuar no

mercado, porém sem a garantia dos direitos sociais inalienáveis, nem o acesso

às instituições públicas que garantem o exercício deste direito. ―[A] letalidade

do neoliberalismo no Brasil se dá, sobretudo, pelo atrofiamento da esperança,

da utopia e da resistência social popular organizada‖ (SILVA, 2009, p. 45).

Flusser (1983, p. 73 - 79) ilustra a falência desse modelo de cidade,

flagrando o ciclo dos migrantes nordestinos pela cidade. O autor flagra a

reação de horror e insegurança da classe média que não se reconhece mais

na cidade onde vive. Como resposta à invasão da cidade por hordas de

famintos e maltrapilhos, a cidade mercadológica expulsa os migrantes e os

canaliza na periferia. O revide é que não se pode segurá-los na periferia, nem

conter sua circulação pela cidade. Eles estão por aí, ocupando os espaços

públicos, invadindo praças e viadutos, habitando buracos e montando

trincheiras de lixo e sujeira, desmontando o senso burguês de cidade.

Deleuze-Guattari alargam o movimento que Flusser percebe em São

Paulo, explicitando que não se trata apenas de um movimento circular, do

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centro à periferia e da periferia ao centro. Os controles impostos pelo Estado

vêm de todos os lados e não param de ser transgredidos, mas a cidade informal

também exige tradução, precisa ser inscrita na cidade formal. O que resiste são

as passagens, as alternâncias e as sobreposições de uma e de outra forma de

cidade.

Solá-Morales encontra em Deleuze-Guattari um respaldo filosófico para

incorporar à cidade as espacialidades que se desdobraram destes aumentos de

complexidade urbana que percebemos nas cidades.

Termos como dobra, brechas, nomadismo, plataforma ou platôs são não somente metáforas geográficas e geológicas como também uma tentativa de organizar a diversidade espacial. Instalação, fluxo, produção ou intempestivo são também termos que procedendo das experiências estéticas contemporâneas se convertem em verdadeiras categorias filosóficas.1(SOLA-MORALES, 2002, p. 72)

Lançando mão destes parâmetros literários, sociológicos e filosóficos,

afirmamos que o que torna o urbanismo das metrópoles latino-americanas

objeto de estudo relevante é sua extrema mobilidade e capacidade de conectar

os fragmentos em sintaxes monstruosas, de difícil compreensão, utilizando-se

da acumulação exagerada dos elementos ou do alastramento a perder de vista,

diluindo qualquer compreensão de alguma totalidade.

São Paulo e Rio de Janeiro foram pontos de partida para análises de

fronteiras urbanas barrocas, mas escolhemos pontos nodais, que não se

colocam como representação sintética da cidade. Não se trata de encontrar na

parte nenhuma síntese do todo, mas sim um ponto de variação dinâmica com

esse ―todo‖ que é a cidade. Os quatro lugares escolhidos para análise - Edifício

Copan, Edifício Pedregulho, Favela Vila Praia e Rua 25 de março – levam as

dinâmicas entre o formal e o informal, entre o projetado e o vivido ao extremo,

mantendo a tensão que os torna interessantes enquanto urbanidades

1Termos como plegamiento, greta, nomadismo, plataforma ou platôs non son solo metáforas

geográficas y geológicas sino um intento de organizar la diversidad espacial. Instalación, flujo,

producción o intempestivo, son también términos que procediendo de lãs estéticas

contemporâneas se convierten em verdaderas categorias filosóficas.

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perfeitamente atuais. A forma de análise das imagens, entrevistas e leituras

resultou em mini-epopéias urbanas, narrativas e reflexões que não esgotam os

objetos para deixá-los abertos para proliferar outras definições.

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Capítulo 1: Os barrocos

Contextos Barrocos:

Europa e a crise do pensamento clássico

Trata-se de uma afinidade contraída em torno da experiência

da infinitude, associada ao pathos, às vezes trágico, do logro

da vida, do caráter ilusório do mundo sensível e da existência

terrena. (NUNES, 1982/1983, p. 25).

Estudos bibliográficos apontam o barroco na Europa como um evento

que durou desde a segunda metade do século XVI até o final do século XVIII.

Benedito Nunes (1982/1983, p. 23), assim como outros historiadores

estudiosos do barroco, diagnostica este período como uma fase de profundas

mudanças no pensamento centro-europeu. Segundo este recorte, o

acontecimento do barroco coincide com o declínio do absolutismo monárquico

e com a estréia das irrefreáveis alianças entre o novo poder estatal e o

capitalismo originário do impulso mercantilista das viagens marítimas para as

Américas.

À crise política, Nunes (NUNES, 1982/1983, p. 23 - 29) soma a

avalanche de descobertas científicas, que além do incremento tecnológico,

provocaram o desmonte das hierarquias e da organização clássica do universo

até então conhecido. A astronomia de Kepler, a filosofia de Spinoza e a

matemática de Leibniz abalaram definitivamente as ordenações da razão

renascentista, ―ligando a ordem sobrenatural e a ordem natural, a lei divina e o

cosmos, a moção providencial de Deus e o movimento finalístico das

criaturas‖. (NUNES, 1982/1982, p. 23). Ao homem europeu coube entender-se

com sua insignificância num cosmo infinito e descentrado.

A dispersão infinitesimal das partículas do universo leibniziano, agora

sem o centro magnético do ser supremo, só consegue unidade na

convergência de partículas independentes – as mônadas - não determinadas a

permanecerem unidas senão por contingência, contraponto e atração. Nunes

(NUNES, 1982/1983, p. 24) apresenta a dualidade experimentada pelo homem

barroco como um sentimento de exaltação das possibilidades humanas e do

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aprofundamento da subjetividade, o que não acontece sem a dor do

sentimento de abandono e desamparo que, paradoxalmente, essa súbita

liberdade gera. O infinito e as leis da natureza foram incorporados à

experiência mundana, interrompendo a homologia entre o homem e Deus num

plano superior e divino.

O Barroco europeu traduz os paradoxos da época como um revide ao

clássico. Não há mais espaço para a lei áurea garantir o equilíbrio das

relações entre Deus e o homem. O mundo barroco perdeu a estabilidade do

universo e propõe, no lugar da clareza clássica, uma arte extremamente

voltada para a visualidade, cuja representação da realidade resulta em

montagens engenhosamente artificiais. As composições são hiperbólicas,

assimétricas, com contornos difusos; os elementos da natureza e os

elementos profanos engastam-se aos temas sacros num grande êxtase

imagético.

O exemplo mais impetuoso citado por Nunes (1982/1983, p. 24) é a

Igreja Gesú in Roma, cujo interior

tem decoração profusa e ilusionística, em que sobressaem

elementos naturais – nuvens, rochas e conchas circundando

retábulos, alinhados lado a lado de uma nave convidativa – um

suntuoso salão de Deus – desimpedido na direção do altar

mor, e para onde se transportou o fausto mundano.

O mármore vira pano, vira planta, vira carne que o êxtase religioso faz

tremular, aprovado pela teatralidade promovida pela Igreja da Contra Reforma.

O objetivo é emocionar e para tanto o barroco europeu não mede esforços,

permitindo-se capturar elementos de outros movimentos estilísticos como o

gótico e o românico para chegar ao arrebatamento formal, como explica

German Bazin (1997, p. 19). O autor enxerga na profusão desmedida de

significados do barroco uma manobra para disfarçar o enfraquecimento do

significante. Ou seja, o homem barroco europeu encontra-se perturbado pelos

questionamentos do sagrado, tanto monárquico como religioso, perdendo o

status de mimese divina, central na paisagem sagrada da fé, para existir como

um dramático ―nada‖ diante dos mistérios do universo infinito e descentrado.

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Teto da igreja “Gesú in Roma”

Êxtase da beata Ludovica Albertoni, de Bernini. Foto sem autor.

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Mas vale lembrar que todos esses abalos históricos acontecidos na

Europa Central se deram em janelas temporais seculares, e não de uma hora

para outra, de forma seqüencial. A partir de Lotman (1996, p. 161), é possível

afirmar que a Europa é uma cultura que se desenvolve de modo lento e

gradual, pois se fundamenta em textos criados por ela mesma, portanto

resistente à entrada de textos estranhos aos textos dominantes, desacelerando

processos tradutórios, que são os catalisadores de novos textos.

Lotman identifica momentos nos quais a cultura se desenvolve como

que por descargas elétricas brilhantes, e que, não raro, nestes momentos,

ocorre um movimento das margens para o centro, ―de periferia da área cultural,

em centro dela‖ (1996, p. 160-162). Porém, longe de querer fixar esta posição

central, o autor percebe que o que está em jogo é a intensidade e velocidade

das culturas produzidas nestas situações. Neste caso parece bastante claro

que as Américas são um caso explícito de culturas de caráter rápido.

Ou seja, simplesmente: culturas que no seu interior abrigam

um número maior e crescente de culturas têm de aumentar sua

capacidade de tradução, acelerar a imbricação entre códigos,

textos, séries e sistemas, afinar a complexidade estrutural, a

sintaxe combinatória das intersemioses. (PINHEIRO, 2007, p.

70 - 71)2

O volume imenso de textos e memórias díspares, repentinamente em

colisão, sem haver um texto dominante, disparou cascatas tradutórias jamais

vistas.

(...) o volume da memória aumenta muito mais rapidamente do

que as possibilidades de desciframento dos textos, depois

começa uma explosão, e a nova formação de textos adquire

um caráter extraordinariamente impetuoso, produtivo.

(LOTMAN, 1996, p. 161)3

Portanto, as transformações nas Américas aconteceram e acontecem

em períodos condensados e sem antecedentes. As implicações desta

2 Revista Eletrônica Ghrebh, edição de número 06/2004, ISSN: 1679-9100. Disponível em:

<http://www.revista.cisc.org.br/ghrebh6/artigos/06amalio.htm>. Acesso em: junho de 2010. 3 Livre tradução: el volumen de la memória aumenta com mucho mayor velocidad que las

posibilidades de desciframiento de los textos, después comienza uma explosión, y la nueva formación de textos adquiere um caracter extraordinariamente impetuoso, productivo.

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velocidade na ocasião dos descobrimentos determinaram condições

completamente diferentes para o surgimento do barroco americano.

É só lembrar que na península Ibérica - que se lançou ao mar em busca

das terras novas - não aconteceu o Renascimento, e obviamente este

fenômeno nem afetou as verdejantes Américas. Portanto o cansaço clássico e

o medo do vazio deixado no centro do universo, motores do barroco centro-

europeu, não formularam paradigmas para o acontecimento do nosso barroco,

e sim o vertiginoso encontro entre civilizações tão completamente diferentes

que até hoje não esclarecemos quem descobriu e quem foi descoberto.

Barroco americano, barroco europeu: aproximações e distinções

(O barroco americano) não é um estilo degenerescente, mas

plenário, que na Espanha e na América espanhola representa

aquisições de linguagem, talvez únicas no mundo, móveis para

a vivenda, formas de vida e de curiosidade, misticismo que se

prende a novos módulos para a prece, maneiras de saborear e

de tratar os manjares, que exalam um viver completo, refinado

e misterioso, teocrático e ensimesmado, errante na forma e

arraigadíssimo nas suas essências. (LIMA,1988, p. 79)

Mas quando afirmamos que determinada igreja ou praça ou rua

localizada na Américas são barrocas, é porque nos abrigamos sob a imensa

sombra proporcionada pelo termo barroco europeu. Universalizamos tanto o

termo que, sem os devidos cuidados teóricos, estendemos o fenômeno cultural

da Europa às Américas, como contigüidade colonial.

Porém essa contigüidade não é consensual entre os teóricos

americanos. Entre os discordantes podemos citar Jorge Alberto Manrique

(1997, p. 173) que defende que o termo ―barroco americano‖ é utilizado na

falta de outro que explique melhor o fenômeno artístico e cultural que

aconteceu por aqui. É evidente que haja pertinências entre os dois barrocos, o

da Europa e da América Latina, porém não por adjacências cronológicas nem

contextuais, mas para que possamos falar no assunto a partir das

semelhanças entre os dois fenômenos. Mantivemos assim o termo ―barroco

americano‖. Isto sem contar que mesmo na América Latina há vários barrocos

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diferentes, pois suas manifestações são peculiares em cada região onde

ocorreu.

Quando dizemos ―barroco americano‖, não estamos somente

nos referindo às obras de estilo barroco produzidas na

América, nem só dando saída à nossa necessidade

nacionalista regional. Estamos indicando, mais ou menos

conscientes, de que se trata de um barroco que não é igual ao

que supõe seu modelo conceitual, mas é de tal modo peculiar

que nos vemos forçados a qualificá-lo de americano para

podermos continuar a chamá-lo de barroco. (MANRIQUE,

1997, p. 174)

Apesar de intimamente conectado ao barroco europeu, o nosso barroco

não pode ser simplificado como a metamorfose de um estilo herdado. A idéia

de que pudemos moldar um novo barroco - símbolo de resistência aos

impérios, creditando ao estilo a semente tropical de nossa luta por

independência - é muito sedutora, porém preferimos a opinião de Manrique

(1997, p. 176), que afirma que o barroco americano nasceu e foi forjado nas

Américas, não apenas como insubordinação colonial, co-dependente das

grandes afirmações estilísticas européias, mas como uma conseqüência dos

contextos próprios e inéditos constelados no continente. Estes contextos

podem ser descritos como a aproximação e convivência inédita de civilizações

pertencentes a temporalidades diferentes no mesmo espaço e a natureza

onipresente. As Américas foram constituídas a partir de uma tensão

permanente entre o primitivo e o extremamente sofisticado. Tradições foram

quebradas, sagrados foram misturados. As conseqüências deste processo

civilizatório ímpar não foram momentâneas, mas pautam nossa cultura até

hoje.

Através do barroco não desejamos explicar, justificar ou exaltar nossos

problemas sócio-culturais por meio de uma estética, mas torná-los visíveis

num campo cultural complexo. Para isso, neste trabalho, contamos com um

conjunto heterogêneo de autores que têm em comum a proximidade com as

realidades do continente e a produção de pensamento crítico sobre a América

Latina a partir dela própria, ou seja, perseguimos desgarrar-nos de

comparações que consideram nossas especificidades socioculturais a partir da

idéia de atraso e de insuficiência em atingir equivalência aos países de

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―primeiro mundo‖. Acreditamos ser possível pensar que o barroco americano

surja em períodos ou situações nas quais seja impossível determinar uma

única solução, dada a complexidade do momento. O barroco é uma

composição e não uma imposição. Portanto não podemos considerá-lo um

movimento estilístico aprisionado nos oitocentos.

Por eso no creeremos nunca que el barroco es una constante histórica y una fatalidad y que determinados ingredientes lo repiten y acompañan. Y los que quieren estropear una cosa nuestra, afirmando que en la cultura griega hubo un barroco y otro en el medioevo, y otro en la China, creen estaticamente que el barroco es una etapa de la cultura y que se llega a eso, como se llega a la dentición, a la menopausia o a la gengivitis, ignorando que para todos nosotros, en el descubrimiento histórico o en la realización, fue una arribada, un desembarco y un pasmo de maravillas. Pues [já] en España no fue el barroco un estilo que había que valorarlo en presencia o lejanía del gótico, sino como un humus fecundante que evaporaba cinco civilizaciones. (LIMA apud PINHEIRO, 2007, p. 70)

Para nós, o barroco é um sistema cultural sofisticado, recorrente, liberto

de causalidades estético-temporais, porém com estratagemas operatórios

extremamente precisos. Nem tudo é barroco na revolução.

Apesar de sua ligação inegável e permanente com o velho continente,

Manrique entende que entre os barrocos da Europa e da América colonial há

uma relação de concomitância, com algum atraso de nossa parte, mas o

principal é que foram desenvolvidos processos artísticos próprios para operar

barrocamente os tempos e ritmos deste continente. Portanto, os estilos de

barroco americanos não foram (...) ―um ―vazio‖ à espera de modelos e sim um

―cheio‖ com suas regras e particularidades.‖ (MANRIQUE, 1997, p. 177)

Certamente os modelos europeus não estão ausentes, mas o

barroco americano – ou os barrocos americanos, se preferir,

usa estes modelos, os aceita ou rechaça-os, na medida em

que lhe são úteis: aproveitáveis no contexto dos modos e na

dinâmica que esse mesmo barroco já possui. (MANRIQUE,

1997, p. 176)

Não é difícil, contudo, entender porque muitos teóricos, ao comparar o

barroco americano com o barroco centro-europeu, imediatamente tendem a

dizer que o nosso é inferior, um arremedo mal-acabado do outro, que na

Europa os edifícios são muito mais impressionantes em tamanho,

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detalhamento e riqueza arquitetônica. São muito extensas as discussões a

este respeito e este trabalho não tem a ambição de introduzir nada de novo na

defesa do nosso barroco. Partimos do princípio de que são barrocos

diferentes, que podem ser aproximados, mas não mensurados

comparativamente, não imaginando que haja um barroco ―melhor‖ que o outro.

Colunata da basílica de São Pedro, em Roma. Obra de Bernini.

E porque acreditamos nessa premissa não tememos a verificação de

que o barroco europeu se destaca pela sua incomparável grandiosidade.

Como os monumentos do barroco europeu eram construídos nas apinhadas

cidades medievais, os ornamentos – colunatas, volutas, nichos e ondulações,

côncavos e convexos – das fachadas tinham como função gerar o desvio, a

diferenciação no emaranhado urbano. Já existia uma malha urbana intricada e,

a mando da Igreja da Contra-Reforma, abrem-se grandes rasgos na massa

existente gerando tridimensionalidades surpreendentes.

Fontana dei Quattro Fiumi, em Roma. Obra de Bernini

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Como a natureza estava definitivamente banida do espaço urbano

europeu, a tridimensionalidade forjada no barroco evocava os aspectos da

natureza através dos ornamentos.

(...) e aí já se incluem as fontes de Bernini, que brotam de

rochas naturais para subirem a finos obeliscos, geométricos, as

colunetas e as escadarias exteriores, os terraços de relva ou de

água, os repuxos de arbustos ou de espuma líquida, os

patamares, os peitoris e até anfiteatros ajardinados.

(MACHADO, 1973, p. 107 - 109)

O fato é que a monumentalidade transferida para os edifícios na Europa

está presente gratuitamente na paisagem americana. Não haveria igreja

magistral que suplantasse a magnitude dos mares de morros de Minas Gerais.

Também aqui foi impossível delegar ao gesto urbanístico o domínio espacial

através da perspectiva. Ouro Preto faz elevar os olhos ao céu, mas não por

meio de arruamentos determinados pela geometria. A presença da natureza

nos faz entender que o nosso barroco é compositivo e que sua escala é,

portanto, adequada ao entorno no qual se encontra.

Barroco americano: (oni)presença da natureza

A igreja barroca de Minas deveria ter uma fachada linear,

simples e grandiosa, de cor clara e contrastante com a verdura

circundante, cuja eventual ornamentação deveria acompanhar

esse caráter severo, imponente, mas regrado, que constitui a

única maneira de destacar a obra do homem no seio de uma

natureza ciclopicamente barroca. (MACHADO, 1973, p. 110)

Machado (1973, p. 107 - 109) diz que o Brasil desta época, ao contrário

da Europa, era quase que unicamente paisagem, e que nossos monumentos

barrocos nunca precisaram concorrer em grandiosidade com as modestas

recém fundadas cidades. As igrejas eram construídas em espaços abertos e

quase sempre podiam ser contempladas de todos os lados, pois eram

construídas em solitários platôs cada vez mais altos e singelamente próximos

ao céu.

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Ouro Preto, sem autor

Em Ouro Preto, sente-se que cada igreja busca sua plataforma

no cume de um morro e que, segundo certos indícios, essa

plataforma dominava todo o casario no momento em que se

rasgaram os alicerces. A Igreja ficava, pois, solta no conjunto

do burgo e, desde que as moradas começavam a cercá-la,

mais adiante e mais acima haveria uma nova plataforma à

espera da nova Igreja. (MACHADO, 1973, p. 108)

Os exteriores magníficos das igrejas do barroco europeu aqui talvez

parecessem igualmente pequenos diante da soberba paisagem americana.

Luz e sombra, fundo e figura, tridimensionalidade, tudo isso estava à

disposição no mundo americano. As igrejas e monumentos barrocos no Brasil

comungavam com a natureza, não se propuseram a domesticá-la.

O olhar já acostumado à desordem das florestas, às cores das flores e

plantas, à convivialidade entre as árvores nativas e as plantações cultivadas,

sabe que aqui não se imita a natureza, nenhuma representação pictórica

supera o bulício vegetal circundante. Aproveita-se da ordem e da estrutura da

arquitetura e da edificação para constringir a natureza em forma de

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representação, não por ausência dela, mas reverenciando-a como presença

imperiosa.

Ouro Preto, sem autor.

Brasil: urbanismo barroco ou paisagem barroca?

Na obra coletiva da cidade americana, o trabalho do arruador

vai dar o caráter barroco à estrutura organizada em torno dos

poucos monumentos. Mais do que urbanismo barroco

português na América deve-se falar em paisagem urbana

barroca das cidades brasileiras nos séculos XVII e XVIII. (José

Pessôa)4

Tornou-se usual dizer que a colonização portuguesa no Brasil produziu

espaços urbanos qualitativamente inferiores aos espaços de colonização

hispânica. Segundo Giovanna Rosso Del Brenna (1982/1983, p. 140 - 146)

essa afirmação pautou-se na idéia de que o traçado xadrez hispânico fora

mais desenvolvido, com mais intenção urbana, do que o traçado orgânico,

quase casual das cidades brasileiras na época colonial. A colonização

hispânica demonstrava seu poder excluindo qualquer vestígio das civilizações

4Artigo eletrônico. Disponível em:

<http://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documentos/089f.pdf>. Acesso em:

02 de junho de 2009.

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vencidas, intervindo em dimensões urbanas através da tabula rasa,

construindo a partir do zero suas cidades planejadas.

O urbanismo luso-brasileiro, por entender-se de modo complementar

com sua paisagem, foi constantemente subavaliado como desleixado e

contingencial, e nesse sentido aproximado do urbanismo tardo-medieval da

Europa. A autora sugere (DEL BRENNA, 1982/1983, p. 143) que, no lugar de

urbanismo tardo-medieval, adotássemos o termo urbanismo orgânico –

―resultado coerente e de alta qualidade visual, de todo um sistema de vida‖.

Segundo Foucault (2009b, p. 412) o espaço medieval é o espaço da

―disposição e da localização‖, no qual cada coisa tem seu lugar fixo,

hierarquicamente determinado por uma cosmologia dicotômica: existe o local

sagrado e o profano, o rural e o urbano, natureza e artifício, corpo e mente, e

assim por diante. No lugar da disposição, o espaço urbano que desenvolvemos

por aqui foi o da composição, o que não impede a presença de dicotomias no

jogo cultural, mas que certamente impossibilitou a aderência completa dos

valores binários em nossa cultura.

Mas se pensarmos no termo tardo-medieval em relação à cultura,

podemos afirmar, em alguma medida, que o Brasil viveu um período

comparável ao medieval, se esta comparação for restrita ao medieval luso-

ibérico, pois, segundo Laplantine,

o que é específico do Andaluz medieval é muito mais do que

um clima de simples tolerância entre comunidades que

coexiste respeitando-se. Não se trata, contudo, da fusão das

diversidades culturais numa identidade, antes, de uma

acareação permanente que não apenas religa como

transforma uns e outros. (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 46)

A civilização medieval da península ibérica, em especial a andaluza,

tanto acolheu como transmitiu cultura e cada civilização convivendo neste

crisol (judeus, cristãos e árabes), ainda que em relação, conservam traços de

suas tradições sem a negação das contribuições e traduções dos outros. Com

certeza a imensa contribuição árabe no Brasil amplificou nossa aptidão

inclusiva.

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Rosso, no entanto, ao rechaçar a herança medieval, centra-se nos

traçados do urbanismo espontâneo ou semi-espontâneo da região aurífera,

que pôde alcançar resultados altamente cenográficos, confirmando seu

barroquismo em sua teatralidade. No caso do Brasil a escala monumental que

define a qualidade do barroco na Europa não está evidentemente presente no

edifício ou no urbanismo, mas a qualidade está no dinamismo que nossas

cidades barrocas alcançam através da inserção de elementos em composição

estratégica com a paisagem que jamais aconteceu nas cidades muradas da

Europa.

Daí por exemplo, a colocação de igrejas e chafarizes nunca com a

função de fechar, definir, concluir o espaço urbano, mas sempre

com a função de dilatá-lo, de abrir novos eixos perspectivos, de

acentuar ou complicar o policentrismo já existente na estrutura

urbana, de relacionar cenograficamente seus elementos. (DEL

BRENNA, 1982/1983, p. 144)

Se considerássemos a constituição dos espaços urbanos do século

XVIII no Brasil segundo os critérios da academia, não poderíamos falar em

urbanismo barroco. A escala monumental das intervenções barrocas na

Europa, como abordado anteriormente, tem como pano de fundo a crise nas

matrizes do poder político-religioso do pensamento clássico. A transferência da

monumentalidade das edificações-símbolo da nobreza, tais como palácios e

castelos, para o universo da burguesia mercantil-comercial demarcam uma

mudança de poder orquestrada pela Igreja e pela monarquia.

Formalmente, os espaços barrocos europeus tendem ao fechado

através de um cerco de edificações de alturas regulares que circundam um

vazio, conduzindo didaticamente o olhar em direção ao coroamento do edifício

apoteótico - uma igreja, por exemplo. Para obter o efeito de coroamento

magistral, o conjunto de edifícios circundantes constitui uma totalidade, mas

separados não têm valor arquitetônico individual. São casas de comércio,

blocos de moradia, colunatas, símbolos do poder financeiro, político e

religioso. Enquanto o barroco na Europa promovia rasgos de grandes

dimensões nos tecidos urbanos das cidades medievais seculares, no Brasil

nossas vilas aguardariam o século XVIII para serem promovidas a cidades.

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Ouro Preto, sem autor

Aqui os interesses comerciais exploratórios antecederam a urbanização

dos aglomerados humanos, portanto, para o máximo aproveitamento com o

mínimo de investimento, nossas cidades começavam com a casa da moeda, a

igreja, a prisão e algum entreposto comercial. Só depois, quando a vila

adquiria aspectos de permanência, o arruamento era feito, adaptando-se ao

construído, com alguns ajustes topográficos para dar unidade ao conjunto. Os

traçados das praças raramente eram regulares e tendiam ao aberto, suas ruas

eram enviesadas, contornavam os acidentes geográficos. Mas, ao contrário de

um simples desleixo colonizatório, a implantação das Igrejas e edifícios

importantes tirava partido da topografia e lucrava com a colaboração da

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paisagem. Toda imprevisibilidade da paisagem foi aproveitada para gerar

surpresas e efeitos visuais nunca explorados na Europa.

Lourival Gomes Machado (1973, p. 108 - 109) diz que o urbanismo e a

arquitetura da região aurífera nunca se opuseram às montanhas. Os edifícios e

as ruas solidarizam-se à dificuldade topográfica das Minas Gerais e as

soluções se tornaram primores cênicos.

O vestíbulo barroco de Santa Efigênia é a Ladeira do Vira-Saia

e jamais um arquiteto do barroco italiano imaginou jogar o adro

de sua igreja sobre um precipício como aconteceu em São

José. (MACHADO, 1973)

Del Brenna (1982/1983, p. 142 - 143) acredita que a compreensão das

especificidades e da autonomia do nosso barroco frente ao europeu se dá na

medida em que afrouxamos os rigores classificatórios da academia, que são

evidentemente pautados em parâmetros que não nos cabem. Tal comparação

reduz a importância do fenômeno no Brasil pela insistência na comparação

com a escala dos monumentos das cidades seculares da Europa.

Em Minas Gerais, por exemplo, as vilas tornaram-se cidades em menos

de cem anos, e apesar da modesta escala das edificações, o resultado é

surpreendente, interessante e dinâmico, mas não pode ser comparado às

cidades muitas vezes milenares da Europa Central.

Mas, por outro lado, se pensamos nas operações e jogos de luz e

sombra do barroco, como não pensar em Ouro Preto como paisagem barroca?

A luz dura da tarde incide sobre as fachadas brancas criando planos

fortemente iluminados, enquanto outras partes mergulham no breu das

sombras criadas por empenas e telhados, confundindo-se com o verde escuro

da natureza circundante. Esse tipo de situação urbana retrata que a

dramaticidade barroca está impressa no DNA do brasileiro, mesmo naqueles

que não conheçam Ouro Preto, que não saibam o que é o barroco e vivam

numa favela do Rio de Janeiro.

Ao olharmos com cuidado para as manifestações discretas de

condições locais nas quais o barroco se dá, tais como incidência da luz,

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espontaneidade dos traçados, construções em diálogo com a topografia,

perseguimos os enlaces e engastes que passam ao longe de serem exemplos

denominados pelas categorias clássicas ou epocais do urbanismo, mas que,

no entanto, nos fornecem pistas, germens dos modos atuais de constituir

nossas cidades, nossos espaços públicos.

Bittencourt (1982/1983, p. 247 - 249), ao estudar composições urbanas

em Sabará, Minas Gerais, nos mostra que a ocupação das terras mineiras

pelos imigrantes por ocasião do ciclo aurífero do início do século XVIII, época

de afloramento do Barroco no Brasil, também não foi regida por apenas

ordenações superiores do reino ou por necessidades meramente funcionais.

Há na espontaneidade do urbanismo do ciclo do ouro uma relação orgânica

entre natureza, homem e urbanização.

Quando em 1704, Pascoal da Silva, mascate português

enriquecido no rio das Velhas, meteu-se de posse das catas

abandonadas pelos Camargos, iniciou a mineração pelo

processo de desbancar o terreno por levadas de água.

Sucedeu que no flanco da serra onde por hoje passa o

caminho das Lajes, deu com um veeiro riquíssimo. Ali o metal

era como terra... Ouro podre! Esse ouro excelente e tão fácil de

colher foi quem verdadeiramente fundou a futura Vila Rica,

povoando-a de forasteiros ávidos.

O movimento foi tão rápido e tão intenso, que sete anos

depois, em 1711, os primeiros arraiais de catadores eram

erigidos em vila (...) (BANDEIRA, 2006, p. 19)

O ouro da região de Sabará era de aluvião, sua exploração era fácil,

portanto aventureiros e oportunistas, comerciantes e traficantes chegavam em

hordas vorazes, disputando à unha as terras mais próximas ao rio de onde se

tirava o metal. Moravam ali mesmo, portanto os lotes não eram extensos e o

casario quase sempre térreo. A ocupação foi veloz, intuitiva e promoveu

pouquíssimas interferências corretivas na topografia irregular da região. As

ruas nasceram condicionadas pela proximidade ao ouro e pela topografia. Ouro

Preto foi se formando como um conjunto de arraiais auríferos ligados a partir de

uma estrada para entrada e saída do circuito de mineração.

Baeta considera que a região de Vila Rica, que veio a ser a capital

econômica do Brasil no século XVIII, desenvolveu-se como a primeira

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sociedade eminentemente urbana da colônia, ―sendo difícil imaginar uma

topografia menos adequada para a ereção racional de uma cidade, mas mais

significativa no que se refere à organização dramática do espaço‖.(BAETA,

[s/d], p. 979)5. Ao mesmo tempo, segundo o autor, nunca houve o gesto de

criar um traçado dominante através de grandes massas construídas. O

urbanismo de Ouro Preto foi disperso, pulverizado. Os edifícios importantes

eram pontuais, não chegavam a definir uma massa urbana considerável, e foi

através do arruamento que se deu a liga entre a estrutura inicial das vilas,

bastante simplórias, e os edifícios representativos da autoridade política e

religiosa, tais quais igrejas, palacetes, etc. Mas nem por isso deixamos de

perceber que há intencionalidade na dramaticidade barroca do conjunto.

Aproveita-se da paisagem e da geografia exuberante para gerar um número

surpreendente de pontos de vista. A idéia de uma perspectiva que não dirige o

olhar a um único foco e que, ao contrário, através de artimanhas e artifícios, faz

um jogo de esconder-revelar uma multiplicidade de vistas-surpresa até a visão

apoteótica daquilo que se pretende revelar.

Assim, a organização artística do espaço atinge uma habilidade

de criar cenários poderosos nunca antes vista. Um conjunto

imenso de imagens espetaculares são derramadas por todo

ambiente citadino. O transeunte transforma-se imediatamente

em espectador e protagonista de uma encenação teatral

quando, inesperadamente, após longa preparação e um

sentimento de tensão e suspense, se depara com

acontecimentos dramáticos pontuais espalhados por toda a

cidade. (BAETA, [s/d], p. 977)6

Este jogo barroco parece ser mais relevante do que as teorias (ao

menos no que diz respeito ao traçado urbano) que defendem nossas heranças

do urbanismo tardo-medieval.

Ainda que não tenha havido um plano urbanístico pré-concebido nas

nossas cidades, a intencionalidade não está ausente. Havia o objetivo claro de

surpreender, tanto no aproveitamento das singularidades topográficas como na

5 BAETA, RODRIGO ESPINHA. Ouro Preto, Cidade Barroca. Disponível em:

<www.upo/es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documnetos/077f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009. 6 BAETA, RODRIGO ESPINHA. Ouro Preto, Cidade Barroca. Disponível em:

<www.upo/es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documnetos/077f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009.

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localização ímpar dos monumentos, no posicionamento dos chafarizes e na

estruturação dos espaços públicos.

Apesar dos largos e retilíneos rasgos urbanos que constituem a cidade

barroca na Europa, Baeta afirma ―que o que transforma a cidade medieval em

barroca é justamente o contraste entre esta nova ordem com o fundo pré-

existente irregular e com a construção e restauração estratégica de praças e

monumentos‖ (BAETA, [s/d], p. 982)7. Portanto, no continente americano, a

condição primeira do barroco - o contraste de diferenças em co-existência - é

um dado, tanto pela condição natural como pela confluência civilizatória. A

complexidade ímpar e o dinamismo de nossa cultura não herdaram a falência

de uma filosofia - pulamos o cansaço clássico que a Europa sofreu. ―A única

coisa que cria cultura é a paisagem e isto nós temos em monstruosidade

magistral, sem que nos percorra o cansaço dos crepúsculos críticos‖. (LIMA,

1988, p. 62)

O americano fez existir um mundo descentralizado que, mesmo sem ter

consciência, compartilhava da idéia de infinito de Galileu que, segundo

Foucault (2009b, p. 412), foi quem primeiro desvelou, através da observação

da órbita terrestre ao redor do sol, a constituição de um cosmo infinitamente

aberto, ―o lugar de uma coisa já não era nada mais do que um ponto em seu

movimento, tanto quanto o repouso de uma coisa não era mais que seu

movimento indefinidamente desacelerado‖. (FOUCAULT, 2009, p. 412), Além

da comparação redutora do nosso urbanismo ao urbanismo tardo-medieval, o

olhar do estrangeiro sobre nossa não-ortogonalidade urbanística e cultural

rendeu outros inúmeros registros pejorativos, como observado por Robert

Smith, (SMITH apud DEL BRENNA, 1982/1983, p. 141), o que nos leva a

perceber a imensa dificuldade da cultura centro-européia em estabelecer

relações com as terras novas que não fossem comparações realizadas a partir

da suposta defasagem das Américas em relação à Europa.

A ordem era ignorada pelos portugueses como assinalavam

deliciados os viajantes. As suas ruas, ironicamente chamadas

7 BAETA, RODRIGO ESPINHA. Ouro Preto, Cidade Barroca. Disponível em:

<www.upo/es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documnetos/077f.pdf>. Acesso em: novembro de 2009.

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de direitas eram tortas e cheias de altibaixos, as suas praças

ordinárias irregulares. As casas agarravam-se às vertentes

alcantiladas das colinas em torno de uma teia de caminhos

escuros, escadas e passadiços, tendo os andares superiores

salientes como na Europa... Nada inventaram os portugueses

no planejamento de cidades nos países novos. Ao contrário

dos espanhóis que eram instruídos por lei a executar um

gradeado regular de ruas que se entrecruzam em torno de uma

praça central, os portugueses não mantinham regras, exceto a

antiga, da defesa através da altura. Suas cidades cresceram

pela vinculação gradual de núcleos isolados, formados pela

fundação individual e arbitrária de capelas, casas e mercados.

A posição destes edifícios ditava as trajetórias irregulares

seguidas pelas ruas que os uniam. (SMITH apud

BITTENCOURT, 1982/1983, p. 248)

O interessante é que o urbanismo descentrado das nossas cidades

coincide com a forma de poder que Portugal incidia sobre suas colônias. Ainda

que estivéssemos submetidos ao poder monárquico do além mar, sempre

houve possibilidades não determinadas por este poder. Manter o ouro nas

mãos da coroa não foi, portanto, nada fácil. Junto com os caminhos do ouro

para Portugal nasceram concomitantemente os caminhos para o desvio do

ouro e esta profanação da ordem causava tanto indignação por parte dos

poderes centrais como uma euforia sobre a inédita opção por não obedecer

tais poderes.

O urbanismo anônimo latino-americano: alternativa ao racionalismo

urbano centro-europeu

O afã higienista despertado pelo desenvolvimento fabril na Europa do

sec. XIX promove os urbanistas à categoria de autoridade, poder legítimo na

ordenação e regulação dos fluxos humanos e urbanos das cidades. O impacto

de suas intervenções nas velhas cidades européias é tão determinante e

duradouro que temos a impressão de que nunca houve urbanismo antes dos

higienistas. O urbanismo é então elevado à categoria de ciência. As

intervenções urbanas têm valor de lei na questão das desapropriações e

revitalizações de áreas degradadas. O centro medieval de Paris, por exemplo,

cai para dar lugar aos bulevares, que têm como centro geométrico o Arco do

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Triunfo, um marco arquitetônico de poder. Viena foi outra capital européia que

teve seu traçado revolucionado por grandes avenidas planejadas.

Traçado urbano do higienista Barão Haussmann, que botou abaixo a Paris medieval

Já no século XX, o urbanismo do ―noveau espirit‖ transforma a regulação

levada a cabo pelos higienistas em metáfora da mecânica industrial da época,

aproximando a cidade e o homem da idéia de máquina funcional. Ou seja, na

cidade estão transcritas a idéia de reprodutibilidade, de funcionalidade, de

controle e de universalidade das soluções técnicas. O respaldo do governo e o

apoio intelectual da época referendam o planejamento urbano como questão

de segurança e de saúde pública nas metrópoles industriais, que se tornaram

espelho do ritmo frenético do desenvolvimento econômico da época.

Plan Voisin, projeto urbanístico para Paris, de Le Corbusier

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O urbanismo de Le Corbusier levava muito pouco em conta as questões

urbanas locais, pois visava atender as grandes massas que se instalavam

rapidamente nas cidades, e esse processo, assim como a irreversível

industrialização, era, em sua opinião, universal. Seus principais instrumentos

operatórios foram o traçado geométrico de proporções grandiosas e a

setorização funcional da cidade: indústria, comércio e moradia e as artérias de

circulação viária ligam os setores.

Porém, se nos transportarmos para Cuba na mesma época, a

funcionalidade maquínica da cidade moderna emperra com os ares de maresia.

Segundo Alejo Carpentier (1982, p. 11 - 13), o poeta inglês Humboldt, ao visitar

Havana, notou que o traçado irregular de suas ruas obrigava as pessoas a

deslocarem-se em ritmo mais lento e por caminhos tortuosos. O poeta insinuou

que Havana fosse uma cidade menos importante no cenário mundial porque

seu traçado era semelhante ao das cidades mais antigas da Europa que não

absorveram a forma de metrópole, ou seja, as cidades ―menos desenvolvidas‖.

Carpentier, no entanto, ressalta uma qualidade urbana em Havana que o poeta

europeu não soube apreciar por não compreender as premissas do

―americanismo primordial – os desígnios tropicais de jugar al escondite com el

sol, burlándole superfícies, arrancandoles sombras, huyendo de sus tórridos

anúncios de crepúsculos, com uma ingeniosa multiplicación de aquellas

esquinas del fraile...‖ 8 (CARPENTIER, 1982, p. 12).

Os musharabis, os vitrais e as colunatas públicas brindam o transeunte

com brisas e sombras-surpresa, pois tais dispositivos enganam o sol sem bani-

lo. Na lentidão no percurso a percepção da natureza é aumentada na

experiência diversificada do traçado urbano. Aumenta-se o prazer no

deslocamento, que é mais rico e mais livre que nas grandes cidades

planejadas para o automóvel. É também importantíssimo salientar que tal

composição simbiótica entre cidade e natureza não foi outorgada por nenhum

doutor, foi-se constituindo aos poucos, com sabedorias dos equinócios, dos

ventos e das marés.

8 Livre tradução:(...)americanismo primordial – os desígnios tropicais de brincar de esconder

com o sol, trapaceando as superfícies, lhes arrancando sombras, fugindo dos seus tórridos anúncios de crepúsculos, com uma engenhosa multiplicação daquelas esquinas do frade.

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Vista do Capitólio em Havana, foto de Jerome Baner

Esquina de Havana, foto de Jerome Baner

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Essa sabedoria não foi levada em conta na implantação reticular de

cidades planejadas, pois enquanto, nas palavras de Carpentier, o sol aparece

como um astro livre das leis astronômicas ao brincar de esconder com os

transeuntes, nas avenidas terraplenadas o sol é obediente e estará sempre

preso ao arco do céu, e os cidadãos se moverão apenas em eixos

ortogonais,assim como os ventos, que trafegam encanados nas artérias

urbanas retilíneas das cidades planejadas. O urbanismo latino-americano

visitado por Carpentier a partir de Havana abre a perspectiva do traçado

anônimo, avesso à tabula rasa moderna, como estratégia interessante na

constituição das cidades do nosso continente. Instauram-se necessidades de

várias ordens além da ordem funcional. O autor enxerga a composição

anônima e iletrada não somente no urbanismo como também na arquitetura e é

justamente essa característica que inscreve Havana urbanisticamente no

mundo. Se Havana fosse quadricular, seria tão interessante?

La vieja ciudad, antaño llamada de intramuros, es la ciudad em

sombras, hecha para la explotación de las sombras – sombra,

ella misma, cuando se la piensa em contraste com todo lo que

le fue germinando, creciendo, hacia el Oeste, desde los

comienzos de este siglo, em que la superposición de estilos, la

inovación de estilos, Buenos y malos, más malos qui buenos,

fueran creando a la Habana esse estilo sin estilo que a la larga,

por proceso de simbioisis, de amalgama, se erige em um

barroquismo peculiar que hace las veces de estilo,

inscribiéndose en la historia de los comportamientos

urbanísticos. (CARPENTIER, 1982, p. 13 - 14)9

9 A velha cidade, antigamente chamada de intramuros é a cidade em sombras, feita para a

exploração das sombras – sombra, ela mesma quando se pensa em contraste com tudo o que

nela foi germinando, crescendo em direção ao oeste, desde os começos deste século em que

a superposição de estilos, a inovação de estilos, bons e maus, mais para maus do que para

bons, foram criando demoradamente para Havana esse estilo sem estilo, em processo de

simbioses, de amalgama, que se ergue em um barroquismo peculiar que faz as vezes de estilo,

inscrevendo-se na história dos comportamentos urbanísticos.

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Janela de Havana, foto de Jerome Baner

Havana , foto de Jerome Baner

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Contextos latino-americanos: cenários urbanos

A cidade européia murada contraposta ao território rural

envoltório não encontrará semelhança com nenhuma das

ocupações nos territórios americanos então existentes, os

grandes, impérios asteca e inca, tinham os seus centros

monumentais construídos numa relação direta com a

paisagem envoltória, sendo cidade e território pensados de

uma maneira única.10(José Pessôa, [s/d])

Muitas vezes desconsidera-se a natureza como parte da vida urbana.

Devemos esclarecer que as manifestações da natureza não significam uma

reserva exclusiva da vida rural, dos campos e florestas de que somos servidos no

continente. Nas metrópoles as manifestações da natureza se impõem através dos

regimes de luz, de chuvas e de ventos, além da insistência vegetal. Essas

manifestações sobre a cidade são determinantes no estabelecimento de práticas

urbanas bem próprias e diferenciadas do restante das metrópoles do mundo. O

regime de forças naturais nos apresenta a hipertrofia, o descontrole e o caos

como partes constituintes e ativas na conformação de nossas cidades.

Alejo Carpentier (1969, p. 17 - 29) reúne em certas idéias inter-

relacionáveis em combinações que o autor considera auxiliares no

entendimento das realidades americanas. A esses conjuntos de idéias ele

chamou de ―contextos cabalmente latino-americanos‖ (CARPENTIER, 1969, p.

19),circunscrevendo campos culturais que só poderiam se configurar nas

Américas, por nossa capacidade de agrupar o disperso e de acolher

fragmentos culturais de culturas distantes. Através de seus ―contextos‖ o autor

procura ambientar o homem americano em seu habitat e fornecer leituras

universalmente inteligíveis desses contextos ainda não inscritos na história

mundial, mas o mais importante não é a vontade de inscrever o latino-

americano nos compêndios literários universais, como se fosse uma espécie

de promoção, mas sim a contextualização do americano em sua própria

10

Artigo eletrônico disponível em:

<http://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documentos/089f.pdf>. Acesso em:

02 de junho de 2009.

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paisagem, realidade que Carpentier pôde ajudar a traduzir para o restante do

globo.

chuva em São Paulo, foto de Edilson Dantas para “O Globo” em dezembro de 2008

foto de Nelson Kon, Heliópolis, São Paulo

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Entre estes contextos o autor inclui a natureza abismal do nosso

continente, que se impõe em manifestações furiosas, rememorando a Pangeia

– furacões, vulcões, ciclones, secas, inundações em escalas imaginárias do

além-tempo. Do mesmo modo, as dimensões, as proporções dos espaços, as

distâncias entre lugares, os vazios - as matas infinitas, os rios, as cordilheiras,

florestas, desertos gelados e quentes e o sertão - nos impedem de conter as

paisagens em um único quadro, e nos desaconselha qualquer síntese

pitoresca como recurso descritivo. As insurreições cataclismáticas das

Américas contrastam com a tranqüilidade geológica do velho continente, pois

aqui sabemos que o incontrolável da força da natureza está incluído em nossa

cultura e espiritualidade.

(Na Europa) o raio deixou de ser uma manifestação da

ira divina desde que Benjamim Franklin o caçou com um

pára-raios. E a chuva torrencial foi substituída, há

tempos, pela garoa que encharca lentamente, por

persuasão, os transeuntes que nada fazem para evitá-la

nas ruas de suas cidades. (CARPENTIER, 2006, p. 106)

Porém aqui a coisa é diferente, pois:

A América ainda vive sob o signo telúrico das grandes

tempestades e das grandes inundações. Sempre haverá

algum boletim metereológico, de Miami, de Havana, da

ilha de Gran Caimán, para nos lembrar que nossa

natureza ainda não é tão ―gentil‖ nem tão ―pacificada‖

como Goethe gostaria que fosse a do mundo inteiro – à

semelhança de sua romântica Alemanha.

(CARPENTIER, 2006, p. 107)

Nas Américas, as tempestades, citadas por Shakespeare e outros

dramaturgos europeus, ainda não deixaram de surpreender o mundo. Existem

persistentes ciclos anuais de chuvas, furacões, ciclones e terremotos,

manifestando forças impossíveis de serem domesticadas e moduladas pelo

homem.

A distância é dura e tantálica, por isso mesmo que cria

imagens-espelhismos que estão fora dos alcances musculares

do contemplador. A desproporção é cruel porquanto se opõe

ao módulo, à euritmia pitagórica, à beleza do número, ao corte

do ouro. (CARPENTIER, 1969)

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Carpentier (1969, p. 22 – 23) alarga o significado do substantivo

desmesura agregando a ele outro substantivo: americana. Americana-

desmesura significa, no contexto de Carpentier, uma imensidão somente

conhecida a partir do descobrimento do continente americano.

Não foi possível ao homem da América portuguesa dominar todo o

entorno aplicando a geometria régia e cortando a pedra no ângulo reto. Foi

preciso ir contornando, negociando com a geografia, ancorando cidades na

beira dos mares e dos morros. Para Carpentier, ―o homem latino-americano e

suas cidades estão em constante mutação, nunca prontos‖. (1969, p. 16)

A imensidão geográfica das terras do continente está transcrita de forma

direta em metrópoles como São Paulo, nas quais seus limites territoriais são

inapreensíveis ao olho humano. Dependemos de dispositivos abstratos, tais

como imagens de Satélite e mapas para intuí-los e para mensurá-los.

Instante de São Paulo em fevereiro de 2010, no site www.panoramio.com

Na foto acima, cada quadradinho colorido sobre a imagem híbrida entre

satélite e mapa corresponde a miniaturas de registros fotográficos do local

sobre o qual ela está ―colada‖. As fotos são enviadas pela internet por qualquer

pessoa que se interesse em contribuir e interagir com o site. Ao clicarmos

sobre a miniatura, a imagem é aumentada. O site nunca está pronto, sempre

recebe atualizações de usuários e as fotos podem ser substituídas. Às vezes

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um mesmo ponto tem mais de um registro armazenado. É interessante notar

que, não raro, as fotos são de locais sem nenhum atrativo arquitetônico

especial, e sim registros de vivências e interesses pontuais, de repercussão

ínfima, mas que em conjunto estabelecem um registro móvel, dialógico e

anônimo, em mosaico, de uma cidade única, naquele instante.

América Latina: Paisagem é cultura

(...) a primeira palavra americana que passou para o idioma

universal, agarrada pelos náufragos dos descobrimentos, é

furacão. (CARPENTIER, 1969, p. 22)

Através da frase, o autor fisga um instantâneo do complexo processo de

colonização do continente latino-americano, lembrando-nos de que, ainda no

caminho para o novo mundo, as realidades indomáveis se apresentam aos

navegantes em forma de vendavais, tornados, maremotos e calmarias,

antevendo aos viajantes os vigores selvagens da terra desconhecida da qual

se aproximam.

Não há relevância se a afirmação do autor é ou não confirmável, pois o

que interessa é o campo imagético criado por ele. Carpentier rastreia e

recupera a intensidade de um acontecimento distante da história utilizando

uma imagem poética. Para evocar a exuberância cultural do continente

americano, Carpentier nos relembra do caráter pangéico dos fenômenos

naturais que ocorrem por aqui, e, desse modo, em uma única frase, consegue

aproximar opulência natural e fartura cultural, aproximação esta que a história

oficial tende a separar.

O processo de ocupação das terras novas se desdobrou em outras

tantas intensidades contíguas aos acontecimentos das viagens marítimas.

Naufrágios e furacões são acontecimentos decisivos na constituição do

homem enxertado na encruzilhada da colonização das Américas. O europeu

que chega aqui é, portanto, naturalmente um náufrago, que tem à sua frente a

americana-desmesura das distâncias geográficas e atrás de si o oceano

transcontinental e nenhum barco para voltar.

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E os desembarques continuaram a acontecer espalhando pelo

continente grandes quantidades de portugueses desterrados, religiosos em

missão, árabes expulsos da península ibérica, escravos e aventureiros de toda

espécie. Ao chegar, não bastando o desterro, as legiões de estrangeiros

encontraram a mata embaralhada de indígenas diferentes com costumes

complexos, integralmente estranhos aos dos viajantes. A velocidade com que

todas essas civilizações foram postas em contato gerou conseqüências

socioculturais somente comparáveis aos fenômenos naturais tropicais, tais

como os furacões dos quais falava Carpentier.

Como seria possível pensarmos em harmonia e unidade numa

sociedade formulada a partir dos escombros dos naufrágios e dos

desembarques desastrados em nossas praias? Porém o que ainda hoje

observamos é que tudo o que encalhou nas nossas areias foi aproveitado e re-

arranjado. Os elementos locais mesclaram-se àqueles vindos de longe. Aquilo

que no princípio foi o improviso pela emergência da sobrevivência náufraga,

torna-se uma qualidade comum ao continente ameríndio.

Um puro acaso.

Vieram homens perseguidos pela tempestade...

Saíram homens do mar...

Vieram homens...

Brancos.

Portugueses.

«Crescei e multiplicai-vos», dizem as Escrituras.

De outro modo: Safai-vos!

Foi o que eles fizeram. (CENDRARS, 1996, p. 51)

Porém esse encontro inédito de civilizações não gerou nenhuma síntese

definitiva, nenhuma nova raça. Não houve a fundação de uma nova identidade

nem qualquer cristalização cultural bastante duradoura para nos assegurar de

que não haverá mais ventos encrespando as águas da nossa história.

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Como disse Laplantine ([s/d], p. 79 - 80), no Brasil o que existe, ―(...)

sem dúvida mais do que noutros lugares, são espaços de manobra em todas

as acepções do termo, não o saturado do homogêneo, mas espaços com

aberturas, vazios, entremeios‖. Aberturas estas que mantêm a necessária

distância, mesmo que muitas vezes mínima, entre ―eu‖ e o ―outro‖, que evitará

a fusão homogeneizante entre ―eu‖ e o ―outro‖, permanecendo como relação

tensionada entre dois infinitos.

Na América Latina não importa tanto a diferença entre as partes que compõem

nosso mosaico cultural. O grande salto está na arte da marchetaria, na

engenhosidade ostentatória no modo de compor com as diferenças. Quanto

mais heterogeneidade, mais sofisticada a capacidade compositiva.

A Marchetaria e o barroco: Nada menos fluido, menos fundido,

mais abrupto do que a visão que aí se exprime. É certo que o

Universo aí oferece em primeiro lugar uma profusão de cores,

de substâncias, de qualidades sensíveis e é pela sua riqueza

que provoca espanto ao primeiro contacto; mas depressa as

qualidades se organizam em diferenças, as diferenças em

contrastes e o mundo sensível polariza-se segundo as leis

estritas de uma espécie de geometria material. (GENETTE

apud SARDUY, 1988, p. 132)

Nosso trabalho fino é o de ultrapassar - sem o falso problema da

superação e da eficiência - as urgências da sobrevivência, em direção ao

complexo e sofisticado processo sintático que maneja a instabilidade viva da

América Latina.

É preciso, contudo, incorporar a incerteza nas artes do engaste. E isso

não acontece sem o abandono de algumas cristalizações teóricas, como, por

exemplo, aceitar que nossos procedimentos conectivos não são fiéis a uma

única ideologia, e que as sintaxes resultantes são acima de tudo provisórias,

pois os sistemas culturais estão em constante movimento e por isso mesmo as

conexões apresentam-se como formulações frágeis de sentido. Duram

enquanto houver tensão entre suas partes. A qualquer instante outro elemento

pode agregar-se ao conjunto ou desistir dele, traindo qualquer ilusão de

unidade e permanência que se possa ter.

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A América Latina segundo a imagem de Lezama Lima

Que es la sobrenaturaleza? La penetración de la imagen en la

naturaleza engendra la sobrenaturaleza. En esa dimensión no

me canso de repetir la frase de Pascal que fue uma revelación

para mí ―como la verdadera naturaleza se há perdido, todo

puede ser naturaleza‖; la terrible fuerza afirmativa de esa frase,

me decidió a colocar la imagen en el sitio de la naturaleza

perdida de esa manera frente al determinismo de la naturaleza

del hombre responde con total arbítrio de la imagen. Y frente

ao pesimismo de la naturaleza perdida, la invencible alegria en

el hombre de la imagen reconstruída. (LIMA, 1971, p. 177 -

178)

Contar a história do continente americano é para Lezama Lima nunca

alcançar a verdade, por ser o fato histórico, em si mesmo, uma ficção. A

História clássica almeja a cientificidade na reconstrução de uma totalidade

comprovada pela ordenação cronológico-causal dos acontecimentos, e a re-

afirmação de uma origem normativa dos fatos. Dadas as inúmeras matrizes

culturais que nos constituíram - e que continuam a aumentar em pluralidade –

escancara-se o real multiforme, assimétrico e mutante do continente

americano, tão difícil de ser apreendido pelas formas clássicas da ciência

ocidental. Assumindo a impossibilidade americana em se encaixar nas

verdades históricas consagradas, o autor sugere ao historiador desviar sua

buscar de uma verdade científica para uma verdade poética (CHIAMPI, 1988).

Aconselha o uso da imaginação e da criação a partir da rede de imagens

instaladas no imaginário universal, imagens estas tanto eruditas como

populares, encontradas nas lendas do mundo todo, nas epopéias gregas e

também nos compêndios históricos oficiais. E que o historiador não se esqueça

de que a paisagem americana não é mero pano de fundo para as peripécias

humanas e sim produtora de cultura (CHIAMPI, 1988, p. 17 – 27).

Lezama montou barrocamente possibilidades histórico-poéticas através

do engaste dos fragmentos de imagens emprestadas e inventadas, para no

final obter uma imagem magistral, o esplendor formae, porém esta imagem

nunca alcança um absoluto do ser, por ser concebida a partir de

uma coordenada de irradiações, de metamorfoses, de

prolongamentos, de interposições - pois é inegável que entre a

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jarra e a vareta de marfim existe uma rede de imagens,

participadas pelo poeta quando as concebe dentro de uma

coordenada de irradiações e de desigualdades entre o ser e a

imagem (LIMA, 1996)

Assim como Lezama, Deleuze também afirma a realidade como invenção:

A realidade é irrepresentável, a realidade é rebelde àcognição,

a realidade é puro sentido, puro devir, puro acontecimento. Não

posso representar a realidade, só a ficção é real. (...) Eu existo

como ficção. O acontecimento não cria nada de fixo 11

Severo Sarduy exemplifica como Lezama encarnava o recurso de cascatas

metafóricas cotidianamente. Em um encontro com o mestre, na saída de uma

apresentação do balé Bolchói, Sarduy se aproximou de Lezama, que fumava

solenemente um charuto, rodeado de pupilos e admiradores, para saber sua

opinião sobre a apresentação de dança. A resposta veio da seguinte maneira:

Olhe jovem, - e impostou sua voz gravíssima, sentencioso, aspirando uma baforada de ar, arquejante, como que se afogando - Irina Durujanova, nas variantes pontuais do Cisne, tinha a categoria e majestade de Catarina a Grande, da Rússia, quando passeava em seu alazão pelas margens congeladas do Volga... – e voltou a tomar ar. (LIMA apud SARDUY, 1979, p. 88)

Sarduy comenta a fala do mestre:

Lezama jamais viu o Volga, e menos ainda congelado; a comparação com a imperatriz que juntava à sua obesidade a magnitude de panóplia czarista era mais do que duvidosa, e, entretanto... nenhuma analogia melhor, nenhuma equivalência da dança mais textual, mais própria que essa frase.(SARDUY, 1979, p. 88)

Ou seja, uma personagem obesa da história russa, Catarina a Grande,

referendava a magnitude de uma bailarina esquálida através de sua majestade

implícita, e ainda, como último recurso de convencimento, Lezama recorre ao

alazão em cavalgada para assegurar a altivez da dança.

11

Transcrição de parte da palestra proferida por Daniel Lins, disponibilizada na internet. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/video/morte-como-acontecimento-daniel-lins>. Acesso em: julho de 2010. Publicado em 21/04/2010.

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Severo Sarduy diz que aquele que ler Lezama Lima para flagrar seus

erros já não o leu, pois o que importa em suas páginas corre longe da

veracidade comprovável de suas fontes.

Se sua História, sua Arqueologia, sua Estética são delirantes,

se seu latim é irrisório, se o seu francês parece o pesadelo de

um tipógrafo marselhês e para seu alemão se esgotam em vão

os dicionários, é porque na página lezamesca o que conta não

é a veracidade – no sentido de identidade com algo não verbal

– da palavra, mas sua presença dialógica, seu espelhamento.

Conta a textura francês, latim, cultura, o valor cromático, o

estrato que eles significam no corte vertical da escritura, no seu

desdobrar de sapiência paralela. (SARDUY, 1979, p. 89)

Um dos recursos que Lezama utiliza para obter ―la imagen possible‖ é a

―prova hiperbólica‖, que consiste em selecionar e combinar instantes históricos

privilegiados pela imaginação universal que transcenderam a linearidade

temporal, sem submissão cultural, geográfica ou aderência aos nexos sócio-

econômicos vencedores. Aliás, o autor geralmente é impreciso nas citações,

isso quando não as manipula e interpreta livremente, ajustando a história

oficial, os mitos e relatos para melhores engastes na formulação da imagem

final.

O autor submete a rede de imagens díspares, fragmentadas e

descoladas de seus contextos originais ao aumento de ―calor‖ provocado pelas

proximidades inéditas entre tais fragmentos, para que, uma vez em estado

―vaporoso‖, as imagens, antes apartadas pela temporalidade e geografia,

agitem suas moléculas, liberando-as para enlaces outrora impossíveis.

Traços, partículas, fragmentos de textos são extraídos de

uma totalidade – como numa tomada sinedóquica – para

serem analogados com outros retalhos de uma outra

totalidade. A idéia é de compor, com esses saltos e

sobressaltos, uma espécie de constelação supra-histórica, em

que os textos dialogantes exibem o seu devir na mutação

dessas partículas. (CHIAMPI, 1988, p. 25)

Lezama entende ‖(...) a imagem como a última das histórias possíveis‖

(CHIAMPI, 1988, p. 25). A história americana é para ele um paradigma

contínuo que, assim como sua poética literária, segue ziguezagueando entre

zonas de legibilidade e a pantanosa dificuldade em fazer sentido.

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Em seus romances, o autor faz conversar personagens celebrados pela

história oficial com outros completamente anônimos, colocando-os ombro a

ombro, dando-lhes voz amplificada de um modo raro. Deste modo o autor alivia

a história de ser o irradiador único de narrativas oficiais, confirmando que

nossas fontes vêm das diversas camadas civilizacionais, de suas também

diversas temporalidades em convivência, que aparecem entrelaçadas na

cultura - nos modos de cantar, de escrever, de comer, de festejar, de rezar, de

morrer.

Ao rebaixar a narrativa histórica ao alcance dos barbeiros, padres,

escravos libertos, anões, prostitutas e travestis, Lezama cria uma massa

sonora, um ruído que a História oficial teima em não considerar. O autor

quebra a tentativa de unidade almejada pela História e no lugar dela cria uma

tensão, quase sempre perturbadora. O residual histórico, o anônimo e o

popular constituem para Lezama a matéria prima do americano na constituição

da sua riqueza cultural.

Chiampi (1988, p. 124 - 125) observa que o interessante nas hipérboles

semânticas de Lezama Lima é a brecha que ele encontra para transformar a

História da América Latina em ―crônica poetizável de imagens‖. (CHIAMPI,

1988, p. 124 - 125)

A igreja pode situar-se abaixo do órgão, ou como afirmam alguns

teólogos protestantes, a única fé diferente em cada indivíduo pode

desgarrar o espanto, e no espanto construir-se a torre. Na visão

última é a torre ou o poema? Enquanto o vislumbramento da torre

na última visão é incomunicável, a certeza da existência do poema

é contínua e imediata, pois no poema a imagem mantém o fogo

de proporções, e na poesia, a metáfora, não no sentido grego de

verdade como desvelamento, mas no poético de obscuridade

audível, adquire seu sentido de metamorfose que justifica seus

fragmentos. (LIMA, 1996, p. 147)

As metáforas são para o autor instrumentos auxiliares para o

conhecimento, e não ornamentos de linguagem, visto que para ele as

descrições e narrativas lineares não são suficientes para ambientar as

realidades do continente. O autor recorre às metáforas em proliferação para

alcançar a imagem para a qual faltam sinônimos imediatos que a esgotem

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como representação. Segundo Severo Sarduy (1979, p. 89), na metáfora

Lezamesca - que para o autor é a metaforização barroca por excelência – a

distância entre o significante e o significado é ampliada ao máximo através da

proliferação metafórica, que assume o risco radical da perda da

correspondência. Sua leitura exige um leitor aberto às experiências de leituras

labirínticas. O encadeamento metafórico cria uma teia de aproximações que

suplanta o que se deseja descrever. No lugar da verdade fica a imagem.

O que parece uma perda de sentido é, no entanto, uma aguda precisão.

Sua exatidão absoluta é formal, e não de conteúdo, por isso não almeja a

correspondência verificável e deixa os leitores – aqueles ávidos pela narrativa

linear com desdobramentos causais - desconcertados. O autor revela seu

objeto com a colaboração do erro, da recriação indevida de referências,

portanto é inútil decantar e dissecar todos os extratos que estão difundidos em

seu texto. O melhor a fazer é degustar a imagem.

Seus procedimentos literários afirmam o barroco americano como

processo crítico-analítico próprio do continente, em acordo com o

entrecruzamento de temporalidades, culturas e paisagem. O processo de

montagem em mosaico de suas imagens faz nosso barroco desgarrar-se da

órbita do barroco europeu, ainda considerado por muitos como a ponta seca do

compasso da produção artística das Américas.

(...) primeiro há uma tensão no barroco (americano); segundo

um plutonismo - fogo originário que rompe os fragmentos e os

unifica; terceiro, não é um estilo degenerescente, mas plenário,

que na Espanha e na América Espanhola representa

aquisições de linguagem, talvez únicas no mundo, móveis para

a vivenda, formas de vida e de curiosidade, misticismo que se

prende a novos módulos para a prece, maneiras de saborear

os manjares, que exalam um viver completo, refinado e

misterioso, teocrático e ensimesmado, errante na forma e

arraigadíssimo nas suas essências. (LIMA, 1988, p. 79 - 80)

Este americano apresentado por Lezama Lima é um homem de viver

sofisticado, desde que se entenda sofisticação como a habilidade em colocar

em diálogo cotidianamente a natureza e o rumor das culturas que re-fundaram

nosso continente. A paisagem já lhe pertence. Para o autor, o americano se

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estabelece em suas varandas quando já não há o ―tumulto do parcelamento

das terras coloniais: é o Senhor Barroco que trança e multiplica a linguagem ao

desfrutá-la: o degustar de seu viver lhe cresce e fervoriza‖ (LIMA, 1988, p. 81).

O desfrute lezamiano do Senhor Barroco tem lugar para acontecer.

Precisa haver o sol refletido nas pratas da sala de almoço, mas delicadamente

filtrado pelo movimento de folhagens enroscadas nos alpendres enquanto a

mesa é posta com regalias de frutas, de tigelas e de cheiros.

Feira Livre de Pium, Natal. Banco de dados da UFRN

O Senhor Barroco em sua varanda pode, numa primeira visada, parecer

pertencer a uma realidade idealizada e caricata de um passado colonial dos

senhores e feitores, mas não é assim. A varanda barroca é metáfora perfeita

do completo domínio da paisagem cultural americana por parte dos latino-

americanos e não privilégio dos ricos, que muitas vezes são fóbicos aos

elementos locais. Nem mesmo as fazendas daquela época eram tais quais nos

apresentaram os livros da história oficial, que investiu mais nos estudos das

opressões do que na arqueologia das composições culturais que se sucederam

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no continente. Desde o nosso ponto de vista, o mais importante é a percepção

de que mesmo nas situações de sujeição sofrida pelas minorias, havia e há

espaços importantes de produção de cultura não determinados pela

dominação.

Lezama recupera através da imagem justamente a persistência e a

insurgência do desfrute barroco no cotidiano do latino-americano, mesmo nos

centros urbanos nos quais vivemos atualmente, onde o tempo parece escasso

e caro. O senhor Barroco não é assunto de antigamente nem é um pálido

reflexo dos costumes de outrora, pois a fartura nos modos de viver que ele

representa é atualizada diariamente nas ruas e nas casas brasileiras e da

América Latina, independentemente do sucesso econômico, pois a abundância

do continente é tátil, visual e sonora.

O maravilhoso na América Latina é o assombro do real

Foto de beijo de casal morador de rua, sem crédito.

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(...) lo maravilhoso comienza a serlo de manera inequívoca

cuando surge de uma inesperada alteración de la realidad(el

milagro), de uma revelación privilegiada de la realidad, de uma

iluminación inhabitual ó singularmente favorecedora de las

inadvertidas riquezas de la realidad, de uma ampliación de las

escalas y categorias de la realidad, percebidas com particular

intensidad em virtud de uma exaltación del espíritu que los

conduce a um modo de ―estado limite‖ (...) (CARPENTIER,

1985)12

Os sentidos se entrelaçam nas vidas desde o modo de se passar um

café na padaria até na espera no ponto de ônibus. Os excessos naturais e os

artifícios composicionais deles derivados desde a colonização do continente

catalisaram variações das experiências sensoriais e nos aparelharam com

sentidos mais complexos e habilitados a traduzir o bombardeio intertextual das

nossas ruas.

Alejo Carpentier13 sabe que na América não há como querer dominar

completamente a natureza, é preciso compor com ela. Se o sol cubano é quem

castiga as casas, é também quem transmuta tudo em ouro ao fim da tarde.

Assim também é o sol do Ouro Preto e, porque não, de São Paulo. O latino-

americano dialoga com o sol, negocia com sua intensidade, usa de artimanhas,

de filtros, pátios, mas do mesmo modo que resiste também sabe ceder às

forças telúricas. É um cortejo sensual da natureza, tomamos dela o que

12

Trecho extraído do prólogo de Carpentier para seu livro O reino deste mundo, no qual faz uma diferenciação histórica entre o surrealismo europeu e o realismo fantástico latino americano e serve como um manifesto para que os escritores do continente voltem-se para o mundo americano como fonte de literatura. Livre tradução: (...) o maravilhoso começa a sê-lo de modo inequívoco quando surge uma inesperada alteração da realidade ( o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação inabitual ou singularmente favorável às inadvertidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com intensidade particular em virtude de uma exaltação do espírito que os conduz a um modo de estado limite.lo maravilhoso comienza a serlo de manera inequívoca cuando surge de uma inesperada alteración de la realidad(el milagro), de uma revelación privilegiada de la realidad, de uma iluminación inhabitual ó singularmente favorecedora de las inadvertidas riquezas de la realidad, de uma ampliación de las escalas y categorias de la realidad, percebidas com particular intensidad em virtud de uma exaltación del espíritu que los conduce a um modo de “estado limite”.

13 Apesar da ênfase do autor no acontecimento do barroco na Espanha e na América

Espanhola sem que faça a inclusão da América Portuguesa no trecho em destaque, os

conceitos por ele desenvolvidos abrangem o Brasil, pois a confluência de culturas diversas

ambientadas na natureza se deu no continente como um todo. O autor cita o barroco brasileiro

e seus artistas a todo o momento, principalmente as manifestações na arquitetura e na arte

escultórica de Aleijadinho.

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queremos sem deixar de ceder e aceitar seus caprichos. Para Carpentier, a

arquitetura moderna não sabe jogar, não tem este molejo, pois quer dominar a

natureza através do controle de suas manifestações.

Mas cabe assinalar aqui, ao mesmo tempo, que o brise de

soleil de Le Corbusier não colabora com o sol, quebra o sol,

rompe o sol, aliena o sol, quando o sol é, em nossas latitudes é

uma presença suntuosa, à miúdo incômoda e tirânica, porém

sempre há que tolerar-se em plano de entendimento mútuo,

tratando-se de acomodar-se com ele, de domesticá-lo quando

for possível. Porém, para entabular um diálogo com o sol há

que brindá-lo com os espelhos adequados.14 (CARPENTIER,

1982, p. 73 - 74)

A sofisticação do americano que nos interessa nesse trabalho não é

sinônima daquela que se obtém a partir do sucesso financeiro ou das

tecnologias de ponta, embora possa perfeitamente se beneficiar destes

aspectos. Procuramos compor com os autores que melhor traduziram nossa

fartura cultural, na qual a cultura popular é, na maior parte das vezes, aquela

que melhor coordena a abundância. O pesquisador bem intencionado não pode

se furtar da constelação de materiais culturais que se apresentam

cotidianamente nas ruas, nas casas, nas festas, nas igrejas. Manejá-los requer

criação e desenvoltura, da cozinha à ciência, da ciência à cozinha.

É nas ruas, no centro do furacão intertextual, que a cultura encontra-se

menos anexada ao progresso tecnológico e científico como premissa de

desenvolvimento cultural. A realidade cotidiana possui muito mais dinamismo

do que as teorias que a explicam. As idéias não têm condição de representar o

vivido. A cultura independe do homem teorizante. À ciência cabe a

simplificação da realidade através de procedimentos lógicos e algorítmicos,

pois uma teoria é mais bem sucedida quanto mais comprovável for e, para ser

comprovável, seu resultado deve ser unívoco e até universal. A cultura, ao

contrário, desenvolve-se melhor em ambientes mais complexos, que não

obedecem a um único modelo ou algoritmo prévio. Segundo Lotman (1996, p.

14

Livre tradução: Pero cabe señalar aqui, de paso, que el brise-soleil de Le Corbusier no colabora com el sol, quiebra el sol, rompe el sol, aliena el sol, cuando el sol es, em nuestras latitudes, uma presencia suntuosa, a menudo molesta y tirânica, desde luego, pero há de tolerarse em plano de entendimento mutuo, tratando de acomodarse com el, de domesticarlo cuanto sea posible. Pero, para entablar um dialogo com el sol hay que brindarle los espejuelos adecuados...

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67), o texto que representa maior valor cultural é o menos adaptado para

transmissão, ou seja, o mais complexo obriga à criação tradutória, que sempre

será plural, ambígua e contraditória. Na América Latina podemos dizer que a

realidade é esse texto complexo que acelera a produção de cultura.

A platibanda mexicana, a madeira boliviana, a pedra

cusquenha, os cedros, as lâminas metálicas alçavam a riqueza

da natureza sobre a riqueza monetária. De tal maneira que,

ainda dentro da pobreza hispânica, é a riqueza do material

americano, da sua própria natureza, o que forma parte da

grande construção para reclamar um estilo, um esplêndido

estilo surgido paradoxalmente de uma heróica pobreza. (LIMA,

1988, p. 101)

Porém há que se tomar cuidado para que a riqueza cultural do

continente não seja automaticamente análoga à pobreza econômica, como se

houvesse uma legitimidade cultural pautada na carência de dinheiro. Não se

trata disso. A economia e a cultura se desenvolvem independentemente,

embora estejam profundamente conectadas. O fato de um país ser

economicamente pobre não significa que sua cultura não possa ser sofisticada.

Esta preocupação fundamenta-se na constatação de que os sistemas

econômicos dominantes tendem a produzir (patrocinar) processos culturais nos

quais os elementos culturais locais limitem-se ao papel de matrizes formatadas

para serem financeiramente vencedoras e, por isso, reproduzidas à exaustão.

A este aspecto massificante do capitalismo é possível contrapor o barroco

como político e revolucionário, porque concentra na matéria ―inculta‖ um tipo de

sabedoria que viscosamente impede que o discurso político-econômico

dominante se fixe como coordenador exclusivo dos sistemas culturais. A

literatura de Lezama Lima contém esta semente revolucionária.

É uma espécie de segurança que parte da sobremesa, da

despedida, do bem entrar na oficina impiedosa, do dormir com

o reconciliado signo da morte, e por outro lado um desejo de

expressar-se no barbeiro, que lê e escuta, mas que fica a meio

do caminho, porque a religiosidade média que o impulsiona a

chegar ao formal não é a porção misteriosa que dá uma

vocação levada pela continuidade dos anos, mas pelo saber

que está numa região central do fogo com os olhos muito

abertos. (LIMA, 1988, p. 138)

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Os ―incultos‖, que no texto de Lezama estão representados pela figura

do barbeiro, que escuta os doutores atentamente, e que, embora não

compartilhe de seus conhecimentos letrados, sabe que pode aproveitar algo

daquilo em benefício próprio, editando informações, recompondo e conectando

dados. Sua subordinação ao dominante é apenas parcial, frequentemente

financeira, porém sua atenção conectiva não tem patrão nem senhorio.

O barroco é capaz de, simultaneamente, coordenar e irradiar

excedentes do cotidiano urbano, da rua: o deslocamento labiríntico, o

bombardeio visual e a progressão decibélica15 dos sons da cidade. O que

significa que quando há um excedente de significantes, a tendência do

continente americano é compor, ou seja, operar com um dispositivo agregador,

o ―E‖ 16, cuja diretriz é a conciliação de pelo menos dois elementos

considerados irremediavelmente distantes. Trata-se de juntar e não de

circunscrever territórios. Há uma somatória, o “E”, no lugar da subtração do

“OU”, que exclui o outro.

A característica do ―E‖ é a sinuosidade, pois contorna o dilema evitando o

confronto final da escolha por exclusão, ―(...) nem uma reunião, nem uma

justaposição, mas o nascimento de uma gagueira, o traçado de uma linha

quebrada que parte sempre em adjacência‖ (DELEUZE, 1998, p. 38), mesmo

que uma das partes não esteja satisfeita com a composição, pois o Barroco

não assegura nenhuma justiça igualitária ou moral, apenas imanta as partes

conferindo-lhes um sentido, ainda que não duradouro.

O interesse pelo encontro com o outro implica em abertura sensível, intelectual

e ética aos campos mais problemáticos, o que possibilita, segundo Deleuze, o

acontecimento. O ―E‖ é o interesse por experiências de risco, localizadas no

limiar de nossos arquivos conhecidos, o objetivo é o encontro com o outro sem

a preocupação com sua filiação, origem ou categoria. Nos encontros limiares,

15

Sarduy (2000, p. 195) usa a expressão progressão decibélica para falar sobre o texto de Reinaldo Arenas que, segundo Sarduy, realiza através de sua escrita um precioso trabalho de escuta da paisagem sonora de Cuba.

16Anotações da aula do professor Luis B. Orlandi em 24 de março de 2004, na PUC/SP.

Citação consentida pelo professor.

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as tradições e as identidades não regulam as relações. A idéia de fronteira

para o barroco é dilatada, pois aquilo que era linha divisória alarga-se como

campo para o encontro.

Mastaï, um tanto aflito pelo fracasso da missão, conheceu os

estremecimentos telúricos de dois terremotos que, sem

causar-lhe danos, lhe fizeram padecer a indizível angústia de

sentir sua estabilidade perdida. (CARPENTIER, 1987, p. 35)

A novidade e o deslocamento do encontro com o outro podem ser tão

violentos que o sujeito entra em crise, o que pode ser muito interessante ou

assustador demais. Em sociedades muito universalistas, o sujeito que vivencia

tal encontro tende a romper seus limites de suportabilidade e diante do

assombro empreende uma cruzada contra a diferença ou mantém distâncias

fóbicas daquilo que não compreende. São culturas com maior tendência aos

deciframentos unívocos que temem profundamente a perda de unidade

interna. ―La imantación del desconocido es por el costado americano más

inmediata e deseosa. Lo desconecido es casi nuestra única tradición.‖ (LIMA,

1971, p. 35)

No entanto, o sobressalto do encontro pôde, no continente americano,

ser produtor de inúmeros textos culturais, pois nunca houve unidade anterior

para a qual voltar.

Nascemos de uma confluência cultural inédita, que aproximou à explosão

textos e subtextos culturais,17 contrastantes e autônomos. Como disse Lotman

(1996, p. 101), ―em momentos de explosões culturais (ou, em geral,

semióticas), são incorporados os textos que, desde o ponto de vista do

sistema dado, são os mais distantes e intraduzíveis (ou seja,

incompreensíveis)‖. Os encontros entre heterogeneidades colocam os textos

culturais em grande dinamismo cultural, pois rompem a ―estática infantil‖ (dos

17

Consideramos, segundo Lotman, a cultura como um grande texto: La cultura en su totalidad

puede ser considerada como un texto. Pero es extraorndinariamente importante subrayar que

es um texto complejamente organizado que se decompone en uma jerarquia de textos en los

textos y que forma complejas entretejeduras de textos. Puesto que la própria palabra texto

encierra en su etimología el significado de la entretejedura, podemos decir que mediante esa

interpretación Le devolvemos al concepto texto su significado inicial (LOTMAN, 1996, p. 109).

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novos textos ainda balbuciantes e sem tradução) e ―senil‖ (dos textos da

tradição, ensimesmados). Nestas traduções nunca teremos de volta os textos

iniciais, mas em troca disponibiliza-se uma multiplicidade de traduções.

(Lotman, 1996, p. 68).

O (assombro) de Colombo diante da América beira

freqüentemente o delírio: quando se aproxima da

desembocadura do Orenoco pensa que descobriu um dos rios

que vêm do paraíso;

(...) Por sua vez, os índios não entendiam esse animal

centáurico composto por homem e cavalo; maravilharam-se

quando um conquistador desceu de sua cavalgadura: um ser

que se divide em dois!

(...) Pois bem: esse assombro recíproco é o ovo de onde sairá

a cultura latino-americana, toda sua arte criativa. (MORENO,

1972, p. XX - XXI)

Insistimos no barroco como um mecanismo de pensamento criador

importante do continente latino-americano por sua alta capacidade tradutória, o

que significa o alastramento de novos enunciados a partir dos textos de

partida, sem algoritmos pré-estabelecidos, sustentando aquilo que Lotman

(1996, p. 79) chama de ―contraditoriedade da dinâmica cultural‖. O autor

explica que o dinamismo cultural tem a ver com um duplo e contraditório

movimento semiótico: o de aumentar a coerência interna - ou seja, de manter

os textos dominantes - ao mesmo tempo em que subtrai a importância destes

textos através da introdução de textos estranhos, que aumentam a

heterogeneidade cultural.

Mas o barroco não recusa os textos dominantes, apenas não insiste na

―reprodução do mesmo‖ (Laplantine). O barroco atua na manutenção da

tensão relacional entre os textos dominantes e os textos novos, ou

parafraseando Lotman, na manutenção da tensão entre ―(...) a tendência à

integração – a conversão do contexto em texto, (...) e a tendência à

desintegração – a conversão do texto em contexto‖ (LOTMAN, 1996, p. 79).

Em Severo Sarduy, o aspecto revolucionário do barroco está na

impossibilidade do Logos absoluto, da verdade. A frase barroca de Lezama

Lima assume e incorpora o erro, a imprecisão no enxerto textual, oscilação e

queda do sentido, enfim, a celebração de um mundo sem centro e da

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habilidade em compor com o caos. É a organização sintática dos desperdícios

sem querer constituir-se como centro. ―(...) barroco onde se recusa qualquer

instauração, onde o que se metaforiza é o fato de a ordem ser discutida, o

deus julgado, a lei transgredida. Barroco da revolução‖. (LIMA, 1988, p. 97)

Atualizando os processos náufragos da ocupação européia para os dias

de hoje enxergamos seus desdobramentos numa grande aptidão inclusiva, ou

seja, uma cultura com pendor nato para a mestiçagem.

A mestiçagem, segundo Laplantine ([s/d], p. 80), nos ajuda a entender

nossa aptidão para a soma e nossa dificuldade em excluir. O autor ([s/d], p. 80,

98 - 99) diz que a mestiçagem não é um conhecimento da ordem do

enunciado, nem é um adjetivo, escapa do ter proprietário e do ser identitário. A

mestiçagem é, para ele, a inteligibilidade de um determinado real percebido

como camadas de múltiplos aspectos entretecidos, que a verdade não se

instala na duração, e a vida não é imobilizada no conceito, tendendo antes

para o equívoco infinito (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 99).

Em 1517, o padre Bartolomé de las Casas sentiu muita pena

dos índios que se consumiam nos penosos infernos das minas

de ouro nas Antilhas e propôs ao Imperador Carlos V a

importação de negros para que se consumissem nos penosos

infernos das minas de ouro das Antilhas. A essa curiosa

espécie de benfeitor devemos fatos incontáveis: os blues de

handy, o sucesso que obteve em Paris o pintor e doutor

oriental dom Pedro Figari, a boa prosa do também oriental

dom Vicente Rossi, a grandeza mitológica de Abraham

Lincoln, os quinhentos mil mortos da Guerra da Secessão, os

três mil e trezentos milhões gastos em pensões militares, a

estátua do imaginário Falucho, a inclusão do verbo linchar na

décima terceira edição do Dicionário da Academia, o

impetuoso filme Aleluya, o pesado ataque de baioneta feito no

Cerrito por Soler à frente de seus Pardos e Morenos, a graça

da senhorita de Tal, o mestiço que matou Martín Fierro, a

deplorável rumba El Manisero, o napoleonismo audaz e

reprimido de Toussaint Louverture, a cruz e a serpente no

Haiti, o sangue das cabras degoladas pela faca do papaloi, a

habanera de que nasceu o tango, o candombe. E ainda mais:

a culposa e magnífica existência do cruel redentor chamado

Lazarus Morell. (BORGES, 1998, p. 21)

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Ficou impossível nas Américas, poucos séculos depois dos

descobrimentos, determinarem de qual cultura de partida certos elementos

culturais vieram, ou como diz Laplantine, ―se torna inútil perguntar a que rio

principal pertencem os diferentes afluentes – e isso é essencial porque a

cultura para onde vamos se sobrepõe à cultura de onde viemos‖

(LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 30).

Manoel Bandeira (2006, p. 15) exemplifica esse processo de camadas

culturais formando um tecido de trama anônima com a disposição tradicional

da mobília da sala de visitas brasileira: ―o sofá com duas linhas

perpendiculares de cadeiras. A observação superficial atribui logo esse hábito

ao gosto primário da simetria, quando em verdade é uma sobrevivência tenaz

de costumes árabes herdados por intermédio dos portugueses.‖

Informações como essas não têm outro interesse que não o da

curiosidade e nos comprazem com a verificação de nossa capacidade

compositiva, de incorporação do estrangeiro, de forma visível ou não.

Sintaxes no ambiente barroco: as artes do engaste

Casa da Favela Jardim Edite, removida para a obra da Ponte Estaiada em São paulo. Foto e grafite de Mundano, no flickr.com

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Carpentier quer inscrever a América na história do ocidente como o espaço

do encontro prodigioso de díspares culturais, históricos, temporais e naturais e o

termo que encontra para definir a paisagem cultural que o rodeia é o Realismo

Maravilhoso, que não deve ser confundido com uma projeção idílica, mas com um

derramamento informacional explosivo, difícil de ser descrito ou classificado.

Como ressalta Irlemar Chiampi (1980, p. 31 - 39), Carpentier cunha o termo ―para

designar, não as fantasias ou invenções do narrador, mas o conjunto de objetos e

eventos reais que singularizam a América no contexto ocidental‖.

O autor avisa que em seu romance O Reino desse Mundo, narrativa sobre

a independência do Haiti, a sucessão dos fatos extraordinários narrados pode ser

checada nas fontes oficiais quanto à cronologia, veracidade dos personagens

principais e até mesmo secundários, locais dos acontecimentos, etc., mas o

maravilhoso de Carpentier não tem nada a ver com o belo simétrico e harmônico,

nem mesmo com a ancoragem no verídico-histórico. É na crueldade, na tirania,

na violência emaranhada na paisagem fenomenal e na confluência de matrizes

culturais em temporalidades diversas que se localizam a percepção do

maravilhoso no real, no cotidiano. Viver na América é conviver com a

impossibilidade de verdades absolutas, e a história é suplantada pelo simples

existir sem tempo da imersão em tais realidades.

En ese tiempo sin tiempo, o más bien, en esse logos sin autoridad ni rescate final, leo hoy a Arenas. El tiempo envolvente y denso de la siesta, a la luz (inventada, en este lugar que pintó Corot y que siegue fiel a esta paleta apagada, a esse gris mustio; aciago amanecer del otoño en el estanque sin reflejo) de um medio punto colonial: punzó, amatista, azul cobalto, azul del caribe. Uma raya morada marca el canuto de la caña, el poliedro del anón. Olor a llovizna fresca. Manzanas quemadas para um dios. El tiempo se há retraído. La Historia es uma farsa seria. Despliegue em presencia: inunda las cosas, excessivo, burlón casi, desbordante en su elocuencia, el ser. (SARDUY, 2000, p. 195)

Sarduy vale-se, no fragmento acima, da frase de outro escritor, Reinaldo

Arenas (Porque el hombre es, em fin, la metáfora de la Historia, su victima, aun

cuando, aparentemente intenta modificarla y, según algunos, lo haga.), para

criticar a linearidade cronológica da história clássica e nos fazer ver um tempo

quebrado, oferecer cores e cheiros em paletas cheias de significados

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embutidos e conectados, que, em conjunto, formulam o caráter atemporal da

paisagem americana.

Favela de Taboão da Serra, foto de Marcelo Min

Não temamos o barroquismo, arte nossa, nascida das árvores,

de lenhos, de retábulos e de altares e retratos caligráficos e até

neoclassicismos tardios; barroquismo criado pela necessidade

de nomear as coisas (...) (CARPENTIER, 1969, p. 32)

Alejo Carpentier, Severo Sarduy e José Lezama Lima incorporaram

através da literatura a missão de inscrever as Américas na História Universal,

longe do exotismo e do folclorismo tropical. Todos eles, mesmo com distintas

escrituras, tratam da dificuldade diante da indizibilidade do objeto América.

Há uma urgência lingüística em encontrar palavras cabais nas obras de

Carpentier; em Lezama há a proliferação nebulosa de significantes no limite da

perda do foco do objeto para, no final, criar uma imagem magistral; Severo

Sarduy, perseguindo a precisão barroca, discrimina seus procedimentos

operatórios, que no lugar de restringir, torna mais elaborada a sintaxe barroca.

Estes autores reclamam nossa riqueza cultural ofuscada pela razão ocidental,

insistente em nos disponibilizar uma posição cultural subalterna, na qual a

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―primitividade‖ americana localizar-se-ia num nível abaixo da ―civilidade centro-

européia‖, sem que sejam consideradas todas as matrizes culturais do continente

americano, o que inclui, sem dúvida, os diálogos culturais proveitosos com a

própria razão centro-européia. A literatura e os ensaios de altíssima qualidade

produzidos pelos autores citados dialogam com os discursos oficiais, agregando

elementos poéticos que não pertencem à história, mas que complementam com

perspectivas mais saborosas, mesmo que não comprováveis, e talvez, por isso

mesmo, como aberturas potentes de ―possíveis‖. Isto se dá porque a

engenhosidade da linguagem textual destes autores transborda os limites da

literatura para entrar em relação dinâmica com as outras séries culturais, tais

como a dança, o vestuário, a comida, a festa.

Sarduy (2000, p. 174 - 175), por exemplo, estabelece conexões entre duas

séries culturais diferentes, a língua castelhana e as arquiteturas barrocas, para

dizer que as matrizes culturais do continente estão em constante conexão e

movimento. Para demonstrar que a cultura americana se faz por soma, por

ploriferação de signos de várias culturas, ele emprega, no texto abaixo, três

sinônimos - engastaron, engarzaron, injertaron - para falar que a marchetaria

cultural é um procedimento que ocorre entre todas as séries culturais e que tem a

ver com a proliferação de matrizes culturais das Américas:

La lengua de los conquistadores, el castellano, es como la

fachada de uma iglesia barroca en la Habana, en Taxco o en

Minas Gerais: las líneas generales, la composición, incluso los

aleros y volutas son sin duda europeos, pero los índios trajeron de

las minas o de las plantaciones donde trabajavan o de sus aldeas

a orilla del mar, pequeños detalles, cosas bellas, llenas de

colorido, decorativas que engastaron, engarzaron, injertaron en

esas fachadas. Por eso se pode hablarse em América de um

barroco minero o azucarero. Em todo caso, la fachada, a fuerza

de añadiduras se converte em taracea, em ploriferación de

signos, em reflejo de cores y formas. Lo mismo se sucede com la

lengua. Desde la conquista y hasta nuestros dias se le injertan

nuevos ornamentos, palabras y giros antes no usados.18

(SARDUY, 2000, p. 175)

18

Livre tradução: A língua dos conquistadores, o castelhano, é como a fachada de uma igreja

barroca em Havana, em Tazco ou em Minas Gerais: as linhas gerais, a composição, inclusive os

aleros e volutas são sem dúvida europeus, mas os índios trouxeram das minas ou das plantações

onde trabalhavam ou de suas aldeias, a concha do mar, pequenos detalhes, coisas belas, cheias

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Os procedimentos barrocos criam nódulos de sentido, mas não simplificam

a problemática. Quando Sarduy utiliza uma das infinitas paletas de cores das

Américas, ele não deseja retratar uma paisagem calma e idílica do Caribe, porém

problematizar o tempo histórico clássico. Para isso a paleta de cores de Sarduy

torna-se uma ferramenta, pensada ao modo de Guattari para articular a crítica.

Forjar un lenguaje significa inventar palabras, palabras-claves,

palabras-equipaje, en el mejor de los casos, palabras-

herramientas capaces de abrir una problemática, de movilizarla y

de articularla em campos diversos. No creo ni en la literatura ni en

la filosofia universal, sino más bien en las virtudes de las lenguas

menores. (GUATTARI, 2008, p. 179)

Através da literatura, estes autores souberam, barrocamente, em jogos de

luz e sombra, ora revelar nossas realidades sob sol a pino ora cobri-la de véus,

re-atualizando os mistérios e mitos enredados em nosso cotidiano telúrico, os

estados reais que, mesmo não atuais, continuam possíveis.

A nossa arte sempre foi barroca: desde a cultura pré-

colombiana e dos códices até a melhor novelística atual da

América. Passando pelas catedrais e mosteiros coloniais do

nosso continente. Até o amor físico se torna barroco na

encrespada obscenidade do guaco peruano. Não temamos,

pois, o barroquismo no estilo, na visão dos contextos, na visão

da figura humana enlaçada pelas trepadeiras do verto e do

tectônico, metida no incrível concerto angélico de certa capela

(branco, ouro, vegetação, intrincados, contrapontos inauditos,

derrota do pitagórico). (CARPENTIER, 2006, p. 75 - 76)

Ao explorarmos os procedimentos barrocos temos em vista esclarecer a

sua precisão operatória evitando associá-lo a qualquer situação de mistura

desordenada de elementos. Deve haver um cuidado em não entendermos o

barroco como reação a alguma perda indesejável de coesão, de identidade, de

unidade. A dificuldade está em perceber que o barroco americano não é

conseqüência da desordem, e sim um sistema capaz de compor com ela, ou

de cor, decorativas que engastaram, engarzaron,enxertaram nestas fachadas. Por isso se pode

falar em América de um barroco mineiro ou azucareiro. Em todo caso a fachada, à força de

añadiduras se converte em taracea, em ploriferação de signos, em reflexo de cores e formas.

O mesmo se sucede com a língua. Desde a conquista até nossos dias são enxertados novos

ornamentos, palavras e giros nunca antes usados (Sarduy, 2000, p. 175).

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seja, é altamente capaz de coordenar o disperso em sintaxes complexas. São

recursos que se tornam mais recorrentes quanto maior a dificuldade em

aproximar o significado do significante, quando o objeto está imerso na

superabundância verbal e visual do continente.

É importante reforçar através destes procedimentos o desprezo pelo

original, pelo Uno, visto que o barroco tende sempre à proliferação e à

hipérbole - signos do descontrole da razão – mas para que a sintaxe ocorra há

estratégias composicionais. O simples fato de dispor diferenças lado a lado não

significa que houve uma sintaxe barroca.

Podemos destacar do universo operatório do barroco algumas de suas

palavras-ferramentas: erotismo, reminiscência, colagem, decalque, artifício,

polifonia, lúdico, mosaico, labiríntico, lista díspar, aglutinação, enxerto,

plutonismo, tensão, desmesura. Tomamos estas palavras dos procedimentos

barrocos de Sarduy e de outros autores como pistas para análises espaciais

das nossas metrópoles, pois acreditamos que apesar da aparência caótica e

fragmentada delas, há vetores organizativos inteligíveis, mas que jamais se

encaixarão nas definições clássicas do urbanismo. O barroco à luz da literatura

latino-americana será considerado, neste trabalho, como um fio condutor das

ligações interessantes entre as assimetrias e as ortogonalidades das

realidades urbanas da América Latina, especialmente de São Paulo.

Séries Culturais: prerrogativas deslizantes na América Latina

Não se pode pensar a televisão e o jornal, no Brasil, por

exemplo, sem passar pelas histórias dos processos tradutórios

que envolvem a cultura do cotidiano (visual, oral, corpóreo-

táctil), performances urbano-espaciais, rádio, teatros de revista,

cinema, romance-folhetim, e muito mais. (PINHEIRO, 2007)

Séries culturais são conjuntos de sistemas com códigos próprios, mas

com delimitações frágeis, tais como as religiões, as feiras, as festas, a moda, a

culinária, etc. Na América Latina, esses sistemas são deslizantes, suas

fronteiras são tênues e os códigos de uma série invadem e intercambiam com

os de outra, significando que a interconexão de todos os elementos do espaço

semiótico não é uma metáfora, mas sim uma realidade (LOTMAN, 1996, p. 35).

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Pinheiro (2007) diz que esses deslizamentos criam encaixes entre as séries

culturais através de nexos recíprocos: ―(...) relações entre natureza e cultura,

entre o dentro e o fora, entre a casa e a rua‖.

Do micro ao macro, várias combinatórias podem ser montadas,

a partir de séries culturais em processo: por exemplo,

oralidade, culinária, louçaria, mobiliário, arquitetura, espaço

urbano.

Retículas luminosas permeiam sistemas culturais

intermediários como mercados, ruas e igrejas, com conexões,

engastes e labirintos que se renovam nas pedrarias e

arabescos de prateiros e ourives ou então nas constelações de

sílabas, em corpúsculos pictóricos, nas diagramações de jornal

ou nas telas de vídeo ou cinema. (PINHEIRO, 2007, p.67)

Como os objetos da cultura são muito abundantes e as fronteiras

extremamente móveis, sobejam fragmentos celibatários que, deslocados de

seus contextos originais, estão liberados para o encontro com outros

fragmentos, igualmente livres. Ao invés de hierarquia e subordinação, o que os

conecta é uma pressuposição recíproca (DELEUZE, 1988, p. 42 - 43) que

ocorre no encontro entre, no mínimo, dois sistemas.

Estes enlaces não geram encaixes perfeitos ou fusões, ao contrário.

Pela divergência entre os materiais culturais em relação, o que se desenvolveu

por aqui foi uma engenhosidade compositiva ímpar. Limar, costurar, preencher,

grampear, substituir, calçar, abusar dos artifícios para fazer surgir da madeira o

brilho do ouro e a dureza do mármore.

A mestiçagem resultante das confluências não é gentil. Há eletricidade e

tensão nas ligações. Nos pontos de articulação entre as séries diferentes são

produzidas as relações complexas, desvios, e, portanto novos textos surgem

da necessidade de deciframento dos textos estranhos. Quanto mais rápida a

cultura, mais potência criadora de novas memórias, pois lança mão tanto dos

textos dominantes quanto dos textos quase esquecidos, depositados nos

estratos mais profundos.

Segundo Lotman (1996, p. 161), o conjunto de textos que saturam a

memória da cultura são de gêneros (séries) diferentes, que mudam e são uns

pelos outros. Percebemos a irrupção recíproca de códigos da pintura na

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literatura, na poesia, na música, no teatro e na vida cotidiana quando os textos

dominantes entram em relação/conflito com outros estados atuais da cultura. O

estado atual não é, portanto, a única forma possível de realidade, já que os

vários estratos da memória cultural permanecem latentes, em virtualidades que

podem emergir a qualquer instante, re-atualizados pelos encontros.

Um dia, ia eu pela floresta. Cem passos adiante, erguia-se um

tronco a meio de uma vereda. Um tronco estranho, dir-se-ia

peludo, com um vago perfil de animal. E então o tronco se

mexeu.Mas era absurdo, um tronco não se mexe! Então o

tronco transformou-se em bode. Mas como pode um tronco

transformar-se em bode? Era preciso que a mola saltasse. E

saltou. O tronco desapareceu e até retroativamente. Sempre

houvera um bode. Mas e o tronco? Tornara-se uma ilusão de

óptica, a vista defeituosa de Robinson. (TOURNIER, 1991, p.

88)

Acontecimento: a destruição do hábito e a profanação

As questões de identidade — em múltiplos planos, como o

político e o cultural — levantam-se em geral com um

pressuposto equívoco: que a instância do poder (colonizador,

económico, estatal) faz perder uma essência ―étnica‖ qualquer,

dada uma vez por todas (a identidade). Não se vê que se ela

se perde é porque já não tem capacidade de transformação

própria. O pior que uma colonização pode fazer a uma cultura é

fixá-la, ―gelá-la‖ irremediavelmente nos traços que tinha num

certo momento. Por isso declina. Há sempre problemas de

identidade quando se esgota a capacidade de mutação e devir.

A força e a saúde de uma cultura medem-se pela sua aptidão a

transformar-se; pela sua plasticidade, pela sua apetência em

devir, evoluir, provocar grandes mudanças internas. (GIL, 2000,

p. 177)

Mas não basta a aproximação de elementos de séries culturais

diferentes para que um novo texto se produza. O acontecimento ao modo de

Deleuze (1998, p. 83), parece explicar de que forma certos encontros

produzem o novo. Para o filósofo, o acontecimento

(...) é uma multiplicidade que comporta muitos termos

heterogêneos, e que estabelece ligações, relações entre eles,

através das épocas, dos sexos, dos reinos – naturezas

diferentes. (...) O que é importante não são nunca as filiações,

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mas as alianças e as ligas; não são os hereditários, os

descendentes, mas os contágios, as epidemias, o vento.

O acontecimento coordena uma entre inúmeras sínteses possíveis – o

agenciamento - naquele lance único. Reúne os díspares e os disparates em

coexistência.

A agitação molecular denuncia um determinado calor que a provoca e

faz reverberar os elementos, as séries, as moléculas que ele atinge. Tal

reverberação faz desmontar as estruturas cognitivas e libera os fragmentos

que, atabalhoados, juntam-se em um outro algo. Altera-se o estado das coisas,

mas antes do momento disruptivo, a mudança já se anuncia no próprio

ambiente. Percebemos que a tempestade se aproxima na medida em que

signos preparatórios se apresentam. São possibilidades de variação, tremores

a partir de reverberações entre séries diferentes que se coagulam nos

acontecimentos.

Uma qualidade do acontecimento é a destruição dos hábitos. Sua

ocorrência gera uma violenta passagem dos elementos culturais da margem

para o centro, distendendo o ambiente no qual insurge. Aquilo que é

dominante na cultura deseja manter sua soberania, o que significa colocar-se

em uma esfera separada, em especial indisponibilidade (AGAMBEN, 2007, p.

65). Por isso, o mais interessante do acontecimento não é o elemento marginal

ocupar subitamente uma posição central, mas sim o movimento ocasionado

pelas trocas de posição, fato que oxigena e dinamiza o fluxo tradutório entre

centro e margem, desmontando as bases totalitárias e quebrando clichês

(CALABRESE, 1987, p. 105 – 109). Daniel Lins19 esclarece que o

acontecimento, ao modo de Deleuze, ―não cria nada de imortal, não cria nada

de fixo. A eternidade do acontecimento se prova intensivamente mas no

instante da imortalidade. É isso o acontecimento. O instante todo o tempo

como imortal. Não sou eu que sou imortal, é o instante‖.

O acontecimento profana a soberania do central, o que significa, para

Agamben (2007, p. 65 - 68), que a profanação neutraliza o sagrado, retirando-o

19

Transcrição de parte da palestra proferida por Daniel Lins, disponibilizada na internet. Disponível em: <http://www.cpflcultura.com.br/video/morte-como-acontecimento-daniel-lins>. Acesso em: julho de 2010. Publicado em 21/04/2010.

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de sua aura intocável, devolvendo aquilo que estava separado e indisponível

ao uso comum. Porém o autor observa que este re-uso não será funcionalista,

nem oposto ao uso inicial, mas incongruente a ele.

Ninguém ignora, e seria impossível ignorá-lo dada a evidencia

do disfarce, a nitidez do artifício, que Manuela é um bailarino

gasto, um homem dissimulado, um capricho. O que Manuela

mostra é a coexistência num só corpo, de significantes

masculinos e femininos: a tensão, a repulsa, o antagonismo

que entre eles se forma.20 (SARDUY, 1979, p. 49)

Se a combinação das disparidades for extrema e resultar em um

apinhamento obsceno, que rebaixa, desloca ou anula totalmente valores

pertencentes aos discursos dominantes, o resultado pode ser o abjeto,

segundo a definição de Kristeva (apud VILLAÇA, 2006), o abjeto é repulsivo

porque manifesta uma confusão de limites, que pontua, fratura e fragmenta a

suposta unidade(...) dos sujeitos hegemônicos e do corpo político da nação

(VILLAÇA, 2006). 21

O abjeto que nos interessa é aquele que revela algo que contraria as

estruturas de legibilidade, pois é da ordem do ingovernável. Neste sentido, o

abjeto é a profanação do regrado, o que significa existir em uma condição

política sem se estabelecer como estrutura de poder. O abjeto, ao profanar o

corpo simétrico, não age como oposição à beleza, mas como resistência a ela,

como variação e produção de diferença. Algo interessante se dá quando sua

presença é devastadoramente sísmica a ponto de destruir a idéia de totalidade

que o sujeito faz de si mesmo, flagrando sua própria falta de sentido e a

impossibilidade em assegurar sua posição. O mundo torna-se estranho e

inexplicável, mas ao mesmo tempo o monstruoso torna-se fascinantemente

necessário para o homem crer-se humano, (n)o entanto, o monstro não se

situa fora do domínio humano: encontra-se no seu limite. (GIL, 2000, p. 170)

20

Comentário de Severo Sarduy sobre uma personagem do livro do autor guatemalteca José Donoso, El lugar sin limites.

21 VILLAÇA, Nízia. Revista Eletrônica LOGOS 25: Corpo e Contemporaneidade. Ano 13, 2º

semestre 2006. Disponível em: <http://www.logos.uerj.br/PDFS/25/07_Nizia_Villaca.pdf>.

Acesso em: maio 2010.

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O monstruoso traduz a confluência de dois vetores latentes, que se espremem

e se alternam conflituosamente dentro do ser, mas que não se manifestam

simultaneamente a não ser na redenção do seu acontecimento: uma tendência

à metamorfose e ao horror, o pânico de se tornar outro (GIL, 2000, p. 170).

Ficaram à mostra os traços de um grande tumulto, a geologia

corporal de sismos esboçados, catástrofes em estado

avançado e subitamente terminadas. Talvez por isso os signos

da monstruosidade se prestem a servir de augúrios: eles

anunciam, deixando em aberto os acontecimentos que

inauguraram; o que vier efetuará o apenas em parte formado.

Por isso também há sempre no excesso do corpo monstruoso

a privação: falta um corpo àquela dupla cabeça ou outra

cabeça àquele duplo tronco. (GIL, 2000, 178)

O grotesco não é oposto ao belo estético, mas resistente a ele, pois sua

forma é desprovida das qualidades simétricas da beleza aristotélica: social,

moral e ainda celestial (SODRÉ; PAIVA, 2004, p. 17 - 20). A tensão que

mantém os elementos dessemelhantes pode ter tal potência e plenitude que,

com algum risco, pode conter o belo. Nos permitimos concluir que o belo

gerado pela tensão entre diferenças é político, pois ―(...) suprime a oposição

entre o racional e o real e introduz a vicissitude da diferenciação histórica no

que é permanente e estável― (SODRÉ; PAIVA, 2004, p. 20).

O barroco inclui o grotesco como procedimento por sua capacidade de

síntese transbordante de significados, de profanação daquilo que é regrado e

também porque resiste à legibilidade através daquilo que não tem tradução.

Qualquer aparição monstruosa ocupa mais espaço do que a sua exterioridade,

porque através de "sua presença escapam significados não recogniscíveis

naquele conjunto. O grotesco funciona como produtor de catástrofe. Trata-se

da mutação brusca, da quebra insólita de uma forma canônica, de uma

deformação inesperada.‖ (SODRÉ; PAIVA, 2004, p. 25)

Alejo Carpentier, ainda que não qualifique as cidades latinoamericanas

como configurações urbanas do grotesco,descreve-as valorizando

sobremaneira a tendência barroquizante à proliferação de referências díspares

e outorga à patina do tempo o amansamento das ferocidades estéticas

resultantes do conjunto extremamente diverso. O autor introduz, entre o belo e

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o feio, um elemento espaçador que mantém a cultura latinoamericana numa

cadência distinta das reduções totalitárias do gosto: os elementos mestiços,

mesmo aplainados pelo tempo, resistem alinhavando traduções impuras de

estilos considerados puros com elementos locais.

As nossas cidades não têm estilo. E no entanto começamos a descobrir agora que possuem o que poderíamos chamar um terceiro estilo: o estilo das coisas que não têm estilo, como as rocalhas do rococó, os gabinetes de curiosidades do século XVIII, as entradas do metro de Paris, os cavalos de carrossel, os negrinhos vienenses, barrocos, portadores de mesas ou portas, os quadros catastróficos de Monsú Desiderio, a pintura metafísica de De Chirico, as arquiteturas de Gaudí ou a atual pop-art norte-americana. Com o tempo, esses desafios aos estilos existentes foram-se tornando estilos. Não estilos serenos ou clássicos pelo alargamento de um classicismo anterior, mas sim por uma nova disposição de elementos, de texturas, de fealdades embelezadas por aproximações fortuitas, de encrespamentos e metáforas, de alusões de ―coisas‖ a ―outras coisas‖, que são em suma, a fonte de todos os barroquismos conhecidos. (CARPENTIER, 1969, p. 15 – 16)

Interessa-nos a percepção do autor de que nossas cidades são mais

fascinantes quanto mais conseguem juntar ―coisas‖ distintas em uma

determinada síntese. Os amontoados desconcertantes de imitações de estilos

europeus convivem inesperadamente com os elementos culturais locais. Para

legitimar como estilo próprio da cidade latinoamericana o assombro diante da

mistura, Carpentier vale-se da própria escrita, cheia de metáforas e imagens,

tão díspares como os estilos arquitetônicos que descreve em Havana.

Ligamos o barroco ao grotesco em sua capacidade convulsiva e

transgressora, capacidade esta que desejamos verificar em São Paulo, nas

ocorrências urbanas, nos discursos entre a cidade idealizada e a cidade real.

Se por um lado São Paulo não é dotada de beleza vitruviana, por outro

apostamos que sua força é estético-política e emana do transbordamento

enérgico de significados, o que pode ser considerado estético-poético.

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Capítulo 2: Arqueologia do Império

Agenciamento: um conceito para desmontar identidades

Homem revistado pela polícia no centro de São Paulo. Foto de Marcelo Min

As identidades são o produto de jogos de espelhos entre

entidades que, por razões contingentes, definem as relações

entre si como relações de diferença e atribuem relevância a

tais relações. As identidades são sempre relacionais, mas

raramente são recíprocas. A relação de diferenciação é uma

relação de desigualdade que se oculta na pretensa

incomensurabilidade das diferenças.

Na história do capitalismo, quem tem tido poder para declarar

a diferença tem tido poder para declará-la superior às outras

diferenças em que se espelha. A identidade é originariamente

um modo de dominação assente num modo de produção de

poder que designo por diferenciação desigual. (SANTOS,

2006, p. 249 - 250)

Na América Latina os discursos identitários provaram-se muito

importantes nas conquistas emancipatórias de grupos de minorias tais quais

negros, mulheres, pobres, homossexuais, etc. São formas de luta pela

regulamentação de seus direitos. Estas identidades de resistência se formam

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para tentar diluir a diferença que as torna subalternas a outras identidades

emanadoras de poder. As identidades minoritárias, chamadas assim por não

seguirem a tendência dominante, se produzem enquanto discurso e

visibilidade para que as injustiças que sofrem tornem-se também visíveis.

Enquanto não se organizam como grupos não existem e não têm direitos

legitimados, pois a legitimação desejada se dá através das garantias das leis,

que por sua vez são produzidas nos centros de poder.

Porém, ao mesmo tempo em que as identidades das minorias

fortalecem os grupos nas suas lutas, também reforçam sua inferioridade em

relação às identidades centrais, que produzem e balizam tais diferenças contra

as quais lutam. O problema de tais discursos é que reproduzem o senso

comum, reafirmando quem é dominante e quem é subalterno, mesmo quando

o objetivo é gerar visibilidade para as injustiças impostas.

Por isso, apesar de entendermos a importância destes discursos,

esperamos que tais identidades subalternas não se cristalizem, mas que se

dissolvam assim que seja percebida a integração conectiva daquelas

diferenças que as tornam minoritárias, para poderem ―ser‖ outras coisas não

subalternas.

Como alternativa à identidade, encontramos em Guattari e Deleuze

(GUATTARI, 2008, p. 183 – 184) o conceito de ―agenciamento‖ porque

―diferentemente de um estrato, um agenciamento comporta uma outra direção,

uma direção informal de devires‖ (MENEZES, 2006, p. 77)22. O agenciamento

de Guattari/Deleuze funciona como uma espécie de ―química conceitual‖

(MENEZES, 2006, p. 77),especialmente a química pensada a partir da

instabilidade e precariedade dos arranjos, pois as condições externas

apresentam-se sempre particulares e não universais. Basta aumentar um

pouco a pressão ou a temperatura e os arranjos caem por terra. As condições

conhecidas universalmente como normais são produzidas em ambientes

controlados, não existem de forma permanente ou natural.

22

MENEZES, RODRIGO CARQUEJA DE. Devir e Agenciamento no pensamento de Gilles Deleuze.2006. Revista Eletrônica COMUM. Disponível em: <http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum26/artigo3.pdf >. Acesso em: junho de 2010.

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Tomemos a noção de classe ou de lutas de classes. Esta

implica que há objetos sociológicos perfeitamente delimitados:

burguesia, proletariado, aristocracia..(...) pois bem, a noção de

agenciamento pode ter aqui alguma utilidade, pois mostra que

as entidades sociais não mantém uma oposição bipolar. Os

agenciamentos complexos põem em relevo outros critérios de

raça, de sexo, de idade, de nacionalidade... Os cruzamentos

interativos implicam outras lógicas que as das classes opostas

de maneira dicotômica. Importar essa noção de agenciamento

ao campo social não exime pois, necessariamente, de sutilezas

teóricas gratuitas, mas quem sabe permita elaborar meios de

localização, de cartografias, ajudando-nos a detectar e

desmontar algumas concepções simplistas relativas às lutas de

classe. (GUATTARI, 2008, p. 183 – 184)23

A solidez dos monólitos dominantes, portanto, não impede o surgimento

de alternativas para seu desmanche. Arriscaríamos dizer que é internamente à

sua própria rigidez que se formulam as linhas de fuga dos estigmas

classificatórios. Há sempre algo inclassificável que colide com o senso comum,

abalando-o, minando sua integridade.

No momento da descoberta das Américas, por exemplo, o idílio da

natureza em estado puro e divinal do primeiro encontro colide violentamente

com a existência do canibalismo. O desassossego dessa ambivalência já está

presente, segundo Sousa Santos, nos primeiros relatos dos europeus sobre a

América colonial. Neles as imagens paradisíacas, utópicas da natureza não

podem ser separadas das ―crueldades‖ dos nativos na prática do

canibalismo24.

23

Livre tradução:Tomemos la noción de clase, de lucha de clases. Ella implica que hay objetos sociológicos perfectamente delimitados: burguesía, proletariado, aristocracia… (...)Ahora bien, la noción de agenciamiento puede tener aquí alguna utilidad, pues muestra que las entidades sociales no mantienen una oposición bipolar. Los agenciamientos complejos ponen de relieve otros criterios de raza, de sexo, de edad, de nacionalidad… Los cruces interactivos implican otras lógicas que las de las clases opuestas de manera dicotómica. Importar esta noción de agenciamiento al campo social no exime pues, necesariamente, de sutilezas teóricas gratuitas, pero quizás permita elaborar medios de localización, cartografías, ayudándonos a detectar y a desmontar algunas concepciones simplistas relativas a las luchas de clases. 24

O interessante é observar os trânsitos e trocas entre disparidades: divino e cruel ligados na

mesma realidade, sem que um princípio elimine o outro, mesmo que em composições

litigiosas, intranqüilas e efêmeras. Sousa Santos, ao citar Mario Klarer, esclarece que as tais

relações praticadas pelos selvagens das Américas não eram tão distantes do ―mundo

civilizado‖ já que estavam contidas simbolicamente no mito cristão. ―[E]nquanto os canibais

devoram os estranhos para restabelecer a unidade do sujeito e do objeto, os cristãos comem o

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Sousa Santos nos relembra que Portugal, diante da Europa do Norte,

era considerado um país periférico, menos desenvolvido e que essa

inferioridade está presente em diversos relatos de comerciantes, padres e

intelectuais da França e da Inglaterra que visitaram Portugal. Seus

comentários jocosos definem o português como um povo subdesenvolvido,

sensual, indolente, violento, sem higiene, às vezes dócil e afável,

supersticioso. Portugal, assim como suas colônias, dizia a Europa do Norte,

havia sido contemplado com uma natureza maravilhosa que produzia frutos e

riquezas sem a necessidade do esforço de seu povo preguiçoso. Esta

constelação de características que rebaixa Portugal diante de um centro mais

forte parece ter sido retransmitida diretamente para o Brasil, numa relação de

causa e efeito da insuficiência de Portugal como país e como colonizador.

Ainda hoje ouvimos estrangeiros e até mesmo brasileiros comentarem

pejorativamente nossa cordialidade, preguiça e sensualidade como

conseqüências culturais ruins da colonização de Portugal.

Sousa Santos escolhe um comentário de Lord Byron, que lamenta que

o povo bruto de Portugal tenha herdado, sem merecer, uma natureza

estonteante, para ilustrar a imagem que se fazia de Portugal na época:

―Porque desbarataste, ó natureza, as tuas maravilhas com semelhante gente?

Eis que em vário labirinto de montes e vales surge o glorioso éden de Sintra‖

(BYRON apud SANTOS, 2006, p. 254). Fica claro que para os países de

cultura dominante, o patrimônio natural e cultural dos países ―periféricos‖ é

considerado praticamente como ilegítimo, abrindo um flanco para a

dominação, sob o pretexto da manutenção de princípios ―universais‖ de

racionalidade e de consensos dos quais a cultura dominante sente-se

portadora.

Segundo o autor, os relatos e narrativas de viajantes que passavam por

Portugal percebiam, mas não compreendiam a ambigüidade dos portugueses

que,

corpo e bebem o sangue de Jesus enquanto unidade utópica entre os homens e seu Deus‖.

(SANTOS, 2006, p. 250)

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tanto foram racistas, tantas vezes violentos e corruptos, mais

ligados à pilhagem do que ao desenvolvimento, como foram

miscigenadores natos, literalmente pais da democracia racial,

do que ela revela e do que ela esconde, melhores do que

nenhum outro povo europeu na adaptação aos Trópicos.

(SANTOS, 2006, p. 256)

Com dificuldade em permanecer próximo do centro do poder europeu

ou soberano em sua marginalidade, Portugal, embora pioneiro na expansão

ultramarina e com o reinado mais longo sobre suas colônias, não conseguiu

manter por muito tempo sua supremacia na Europa, vendo-se freqüentemente

economicamente subalterno à Inglaterra. O colonialismo português, em

relação ao colonialismo normativo de modelo anglicano, foi considerado, pela

Europa Central, insuficiente e informal demais.

No entanto nos parece interessante que Portugal tenha sido colônia (da

Inglaterra) e colonizador ao mesmo tempo ou, ainda, que tenha alternado

posições antagônicas, confirmando-se como cultura fronteiriça, localizada

entre a Europa e o sul, ora mais ao sul, ora mais ao centro. ―Com isto, a

semiperiferia deixou de ser o elo de uma hierarquia global para se tornar num

modo de ser e de estar na Europa e Além-Mar‖ (SANTOS, 2006, p. 232).

Entender que a mobilidade de Portugal impede o país de fixar-se na posição

de dominado ou de dominador é ingrediente importante para desenvolver

outras opções interpretativas das nossas culturas, americana e ibérica.

Apesar de ser verdade que não há descoberta sem

descobridores e descobertos, o que há de mais intrigante na

descoberta é que em abstrato não é possível saber quem é

quem. Ou seja, o ato da descoberta é necessariamente

recíproco: quem descobre também é descoberto, e vice-versa.

Por que então é tão fácil, em concreto, saber quem é

descobridor e quem é descoberto?

(...) É a desigualdade de poder e de saber que transforma a

reciprocidade da descoberta na apropriação do descoberto.

Toda descoberta tem, assim, algo de imperial, uma ação de

controle e de submissão. (SANTOS, 2006, p. 181)

Ao recontextualizar a posição flutuante de Portugal, Sousa Santos

empreende um enorme esforço na conscientização de que um trabalho crítico,

político, artístico ou intelectual deve, atualmente, perseguir a interrupção dos

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discursos hegemônicos ocidentais, os quais, através da modernidade, da

ciência e da tecnologia justificaram, racionalizaram e normatizaram as

desigualdades entre raças, sexos, povos, etc.

O autor explica que a desigualdade, assim como a exclusão, ―são

sistemas de pertença hierarquizada‖ (SANTOS, 2006, p. 280 - 284), nos quais

as culturas, através de um determinado discurso de Verdade, criam a linha

divisória que estabelece que tudo o que está além dela é transgressão. Aquilo

que está para além da linha divisória é centrífugo ao pertencimento.

Sousa Santos diferencia exclusão de desigualdade, embora reconheça

que ambos os sistemas são processos regulatórios muito reforçados pelos

dispositivos classificatórios de qualificação/desqualificação adotados pelas

ciências sociais. No sistema da desigualdade, a inclusão é desejável, desde

que a integração se dê pela subordinação sócio-econômica. A subalternidade

de alguns é indispensável no funcionamento deste sistema. Já nos sistemas de

segregação, a pertença se dá pela não-pertença, ou seja, o segregado é

incluído pela denominação de sua exclusão sócio-cultural: sem teto,

delinqüente, menino de rua, louco, etc. É importante ressaltar que tais

condições de segregação são paradoxalmente espaços de produção

barroquizante por excelência, ainda que seja extremamente desejável não

reproduzir a miséria na qual tais populações vivem. A instabilidade nestes

modos de vida explode a legibilidade dos espaços urbanos, transformando-os

incessantemente. Não é apenas que transformem o público em privado e vice-

versa, mas que inventem novas formas de convivialidade e de existência,

produzindo objetos ―inúteis‖, estruturas não duráveis. Um revide ao controle.

A necessidade científica de definir o lugar e a especificidade de cada

diferença, mesmo que sem a intenção de segregar, impede ou dificulta a

possibilidade de que estas diferenças sejam definidas de outros modos, como

sistemas diferentes daquele que os define como segregados. Desta forma, o

que não é marginalizado ou periférico nas diferenças, ou melhor, aquilo que

pode ser emancipatório, não tem como ser percebido e valorizado, a não ser

como resistência, como discurso identitário. (SANTOS, 2006, p. 235 – 237)

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Sousa Santos (2009, p. 26) diz que as faces das dominações são

muitas e conseqüentemente são múltiplas as resistências, porém não é

possível uma teoria comum que representasse todas as lutas, pois o

conhecimento totalizante é aquele que em nome da ordem impede a

emancipação das diferenças. O autor diz que a teoria emergente deverá ser ―a

teoria de tradução, que torne diferentes lutas mutuamente inteligíveis e permita

aos atores coletivos conversarem sobre as opressões a que resistem e as

aspirações que os animam.‖ (SANTOS, 2009, p. 325).

O autor identifica que a passagem da emancipação moderna à

regulação se deu já no século XIX, na Europa, por conta da forte convergência

entre modernidade e capitalismo. É a miragem de emancipação, prometida

pelo desenvolvimento econômico. Sabemos que esta idéia ainda está

instaurada como paradigma dominante e que as alternativas para o

pensamento único passam pela consciência de que vivemos em sociedades

simultaneamente libertárias e autoritárias (SANTOS, 2009, p. 26).

No entanto, para a América Latina, o paradoxo da simultaneidade entre

dominação e emancipação não parece ser exclusivo da transição do fim do

moderno, mas sim um traço constante na história do nosso continente, no qual

vivemos desde sempre a simultaneidade de rupturas e continuidades,

liberdades e autoritarismos. Por isso o pós-moderno é um conceito difícil de

ser utilizado na América Latina sem inúmeras ressalvas e explicações. Na

Europa e nos Estados Unidos o pós-moderno foi empregado à exaustão para

explicar o quadro sucessório do moderno, em evidente declínio. No continente

americano sabemos que o moderno nunca foi um processo estrutural, por isso

não faz muito sentido falarmos em superação de algo que não se completou

ou que nunca tenha acontecido de fato. Por esse motivo não consideramos

tarefa desse trabalho descobrir o verdadeiro sentido do pós-moderno, o que

não nos impede de aproveitar o elenco de sintomas que Ihab Hassan

(HASSAN apud SANTOS, 2005, p. 102) montou com o objetivo de tentar

circunscrever em que condições o pós-moderno se manifesta. São eles:

―indeterminação, fragmentação, descanonização, descentramento e

superficialização, irrepresentatibilidade, ironia, hibridização, carnavalização no

sentido de Bahktin, desempenho e participação, construcionismo, imanência‖.

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Esta lista chamou atenção por conter condições muito familiares no cotidiano

do continente americano, não como conseqüência dos insucessos do

universalismo abstrato do moderno, mas como vivência concreta do nosso

cotidiano movediço.

Sousa Santos (2009, p. 357) diz que a colonização da América Latina

por ―centros hegemônicos fracos‖ é um aspecto interessante que pode ter

facilitado a mestiçagem, tão ―enraizada nas práticas sociais desses países ao

ponto de ser considerada a base de um ethos cultural tipicamente latino-

americano‖(SANTOS, 2009, p. 357). A mestiçagem latino-americana traduz a

crise entre os cânones clássicos e aquilo que foge deles, e o autor percebe

que é no seio dessa relação conflituosa que reside a invenção ―de um outro

lugar, uma heterotropia, se não mesmo uma utopia‖(SANTOS, 2009, p. 359).

Ou seja, a mestiçagem latino-americana inspira o projeto pós-moderno de

Sousa Santos justamente por seu caráter inacabado, descontínuo, formado

por linhas de força. ―O paradigma emergente é feito de continuidades e

descontinuidades‖(SANTOS, 2009, p. 360).

A contribuição valiosa de Sousa Santos que aproveitaremos de seu

―projeto pós-moderno de oposição‖, independentemente das nomenclaturas

adotadas, é a aposta na reciclagem das realidades atuais. O autor constata

que o moderno descartou soluções sociais, embrionárias ou desgastadas, que

ainda podem conter disparadores de novas oportunidades. As alternativas que

apontam são escavadas no conhecimento produzido na realidade, imerso nela,

repleto de localismos e de contingências (SANTOS, 2005, p. 102 – 105).

Nesse ponto, é importante salientar a diferença que o autor encontra

entre combater as instabilidades e incorporá-las na construção daquilo que ele

chama de ―subjetividades emergentes‖ ou ―transição paradigmática‖. Para o

autor, a construção do ―paradigma emergente‖ deve incluir a indeterminação, o

inacabado, o erro e a pluralidade de alternativas, atenta em amplificar

conhecimentos que nunca se cristalizaram como sistemas científicos

rigorosos. Estes conhecimentos e desvios sempre estiveram à nossa

disposição como material cultural; para o autor, que é português, fica mais

canônica a descrição da importância de tais elementos no desenvolvimento

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cultural, mas mesmo com a pequena ressalva para a idéia de ―emergente‖, é

muito relevante sua ênfase nos conhecimentos não doutos, pertencentes à

sabedoria popular.

As grandes disciplinas do conhecimento, em nome deste rigor científico,

preocupam-se em encontrar as origens e os términos dos pensamentos –

quando começou e quando terminou o moderno e o que veio a seguir, por

exemplo - estabelecendo uma transição suave entre as temporalidades, uma

linearidade entre passado e presente. Ainda que a história se debruce sobre

os conhecimentos imperfeitos, as escritas menores, os heróis anônimos e as

ciências populares, ela sempre realizará o que é próprio ao conhecimento

oficial: o movimento das margens para o centro. O objetivo da ciência é

encontrar o momento ―emocionante‖ da gênese de um determinado

pensamento, como ele deixou de ser uma dispersão de conhecimentos e

temporalidades das margens para aglutinar-se como pensamento do centro.

Segundo Foucault (2009a, p. 156), a história das idéias

descreve sem cessar – e em todas as direções em que se

efetua – a passagem da não filosofia à filosofia, da não

cientificidade à ciência, da não literatura à própria obra. (...)

Gênese, continuidade, totalização; eis os grandes temas da

história das idéias, através dos quais ela se liga a certa forma,

hoje tradicional, de análise histórica.

A utopia pós-moderna de Sousa Santos reside, de certa maneira, na

diferença que permuta o desejo pela realidade inverossímil da tábula rasa pela

escavação arqueológica das realidades existentes, pois

sua forma de imaginar o novo é parcialmente constituída por

novas combinações e escalas daquilo que já existe, e que são,

na verdade, quase sempre meros pormenores, pequenos e

obscuros, do que realmente existe. (SANTOS, 2009, p. 332)

Viver a utopia ao modo de Sousa Santos, portanto, exige estar

verdadeiramente neste mundo conhecendo-o profundamente a ponto de incluir

em suas composições aquilo que oprime, sem a ilusão de que tudo possa dar-

se sem o diálogo com as dicotomias. O autor reafirma que a utopia é

trabalhosa, consiste em desmontar as opressões, o tempo todo, sem

descanso, porém sem uma fórmula vencedora. Enquanto a opressão se

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multiplica, devem multiplicar-se as formas de superá-la. A opressão só pode

ser desmontada quando aproximada e descanonizada. Ignorá-la é fortificá-la,

aproximá-la demais pode ser incorporá-la como discurso. A utopia de Sousa

Santos inclui necessariamente o risco destas distâncias. A produção do ―novo‖

não está no outro e nem na manutenção do mesmo, mas no zigue-zague entre

o outro e o mesmo.

Fronteira: navegação por cabotagem

"The flat earth". Arte de Lothan Osterburg

Os que descem ao mar em navios, os que comerciam nas

grandes águas, esses vêem as obras de Deus e suas

maravilhas no abismo. (Salmo CVIII)

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Sousa Santos sabe que viver no Além-Mar não é como viver em exílio

ou diáspora, pois não temos uma origem para a qual voltar. Também não

sabemos o que está por vir, portanto saber viver neste Além–Mar pode conter a

alegria e o cansaço de um náufrago ao chegar à terra firme. No entanto não

afirmamos que a cultura das Américas é um conhecimento sobre naufrágios,

porém um conhecimento constituído a partir do olhar náufrago.

Sousa Santos (2009, p. 348 - 354) compara a vida nas fronteiras à

navegação de cabotagem, muito utilizada até o século XVI na Europa, que

consistia na manutenção do contato visual entre barco e terra firme, ainda que

mediado pelo olhar telescópico. A linha tênue do horizonte terrestre define o

quão longe se pode ou se arrisca ir. Quanto maior a distância da costa, menor

sua interferência na navegação, porém abandonar o horizonte terrestre é abrir

novas rotas ou perecer no caos destrutivo, no fim do mundo.

A vida na fronteira é difícil e interessante. É não chegar ao porto seguro,

não ter ninguém conhecido esperando, não saber o que acontecerá a seguir,

mas, ao mesmo tempo, é estar de olhos bem abertos para novas

oportunidades, afinal de contas foi por isso que o náufrago enfrentou o ―fim do

mundo‖ e chegou às Terras Novas.

Segundo Sousa Santos, na fronteira aproveita-se das tradições trazidas

do ―centro‖ somente o que for oportuno para resolver impasses e emergências.

Mantém-se aquilo que serve e descarta-se o que não serve; escolhe-se o que

preservar e o que se esquecer do passado. A fronteira é o lugar da invenção de

socialidades e solidariedades, e também de novas formas de autoridade, pois a

distância em relação ao centro enfraquece as antigas hierarquias, abrindo

oportunidades para outros poderes se definirem.

Na fronteira, quando dois textos culturais se chocam, os consensos se

desmancham para formar um terceiro texto. É o que Lotman (1996, p. 25 - 35)

chamou de fronteiras semióticas, ou espaços de tradução. São zonas de

permeabilidade entre (no mínimo) dois sistemas heterogêneos, que afrouxam

sua coesão liberando elementos que conseguem se recombinar de outra

forma. Lotman diz que essas zonas de contato ocorrem com maior intensidade

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e velocidade nas margens dos sistemas centrais, por sua frouxidão, por serem

menos imantados às estruturas nucleares. Por outro lado, os sistemas centrais,

por terem maior rigidez estrutural, mudam mais lentamente, tendem à

manutenção das tradições. Porém o que interessa não é a hierarquia de

valores entre o rápido e o lento, e sim a combinação entre o dinamismo

deslizante dos sistemas periféricos e a lentidão dos sistemas centrais, suas

velocidades e lentidões variáveis em movimento de fuga ou de fluxo, gerando

vetores culturais, como os encontros de águas frias e quentes geram correntes

marítimas ao redor do globo.

Dizíamos a mesma coisa para os devires: não é um termo

que se torna outro, mas cada um encontra o outro, um

único devir que não é comum aos dois, já que eles não

têm nada a ver um com o outro, mas que está entre os

dois, que tem sua própria direção, um bloco de devir, uma

evolução a-paralela. É isso a dupla captura, a vespa ―e‖ a

orquídea: sequer algo que estaria em um ou em alguma

coisa que estaria no outro, ainda que houvesse uma

troca, uma mistura, mas alguma coisa que está entre os

dois, fora dos dois, que corre em outra direção.[...] sempre

‗fora‘ e ‗entre‘. Seria por isso, uma conversa. (DELEUZE;

PARNET, 1998, p. 14)

A fronteira é uma zona de embate e freqüentemente há casos de

dominação de uma determinada estrutura/cultura sobre a outra, mas na

fronteira mestiça não existe a anulação do mais fraco por parte de um mais

forte. Há a dilatação do campo das trocas. Ali as linhas de força - tanto as

―linhas de fuga‖ quanto as ―linhas de dominação‖ (Deleuze) - tornam-se

instáveis, não mantém seu status inicial, são tomadas pelo meio.

As máquinas binárias já não têm poder algum sobre o

real, não porque o segmento dominante (determinada

classe social, determinado sexo...) mudasse, tampouco

porque mistos do tipo bissexualidade, misturas de classes

se impusessem: ao contrário, porque as linhas

moleculares fazem correr, entre os segmentos, fluxos de

desterritorialização que já não pertencem nem a um nem

a outro, mas constituem o devir assimétrico de ambos,...

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Não se trata, é claro, de uma síntese entre os dois, de

uma síntese de 1 e de 2, e sim de um terceiro que vem

sempre de outra parte, e atrapalha a binariedade de

ambos, não se inscrevendo nem em sua oposição nem

em sua complementaridade. (DELEUZE; PARNET, 1998,

p. 152)

A natureza da fronteira, segundo Lotman, não é apenas permeável como

também bilíngüe. É preciso saber pertencer aos dois sistemas

simultaneamente, ziguezagueando entre um e outro. No lugar de limite entre

dois espaços semióticos, a fronteira definida por Lotman é um espessamento

que faz da linha de separação um campo poroso para captar elementos dos

dois espaços que se articulam naquele ambiente, sem que algum deles

submeta o outro a uma ordem de importância. Surge um terceiro ―texto‖,

também móvel e aberto, que ainda preserva memórias e fragmentos de seus

textos de partida, embora seja totalmente diferente deles.

Mas o ponto alto para o processo de semiotização são as

fronteiras da semiosfera. A noção de fronteira é ambivalente:

ao mesmo tempo em que separa, une. Ela é sempre margem

de alguma coisa e portanto pertence às duas culturas

fronteiriças, às duas semiosferas contíguas. A fronteira é

bilíngüe e poliglota. A fronteira é um mecanismo de tradução

de textos de uma semiótica alienígena para ‗nossa‘ linguagem

(...) (LOTMAN, 2000, p. 136)25

Laplantine ([s/d], p. 84 - 85) confirma a fronteira como ambiente da

mestiçagem, por ser espaço de agitação permanente, ninho da inclusão

complexa. Só a fronteira pode propiciar ambiência adequada para que as

25

Livre tradução: ―But the hottest spots for semioticizing process are the boundaries of the

semiosphere. The notion of boundary is an ambivalent one: it both separates and unites. It is

always the boundary of something and so belongs to both frontier cultures, to both contiguous

semiospheres. The boundary is bilingual and polylingual. The boundary is a mechanism for

translating texts of an alien semiotics into ‗our‘ language―...

Vale explicar que Semiosfera é um conceito formulado pelo semioticista russo Iúri Lótman para designar as relações entre os diversos sistemas de signos nos espaços culturais. O ponto de partida desta formulação foi a necessidade de compreender encontros culturais movidos pelas mais diferentes causas: choques civilizacionais, expansão de códigos, linguagens, emergências. Nesse sentido, trata-se de considerar não apenas as relações como também as conexões que aproximam os diferentes sistemas. Com isso é possível pensar mecanismos básicos da constituição do espaço semiótico tais como irregularidade, heterogeneidade, fronteira, transformação da informação em sistema de signos. Disponível em: <http://semiosfera.iv.org.br/portal/index1_html>. Acesso em: fevereiro de 2005.

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multiplicidades se conjuguem, prerrogativa dos sistemas mestiços. A

mestiçagem, então, assume os riscos das alianças entre ―estados menores‖

(Deleuze), que constituirão ligações inéditas através de mecanismos que não

priorizam a filiação identitária das partes envolvidas. A mestiçagem arremata a

contingência, com o avulso, para realizar sintaxe. Assim sendo, a mestiçagem

nunca se tornará um discurso dominante, ao contrário, coloca-o em questão ao

criar alternativas diferentes do puro.

Para Laplantine a mestiçagem

existe na variação, na conjugação, na derivação, ou melhor, na

reconfiguração a partir de um estado menor, que transforma,

metamorfoseia e torna irreconhecível o que era ao ponto de

tornar irrisória qualquer noção de influência, de pertença, de

herança ou mesmo de transmissão. (LAPLANTINE; NOUSS,

[s/d], p. 85)

O autor percebe que a mestiçagem, mais do que estabelecer diálogos

entre diversas culturas, dá formas aos encontros, portanto não significa

confusão ou mera convivialidade multicultural, mas complexas traduções.

Laplantine ([s/d], p. 28 - 29) encontra na Umbanda um exemplo excelente da

nossa facilidade devoradora do ―outro‖, no sentido de Oswald de Andrade,

quando diz que na cerimônia religiosa um indivíduo em transe pode

―incorporar‖ todas as ―divindades‖ da religião, incluindo personagens populares

do Brasil como, por exemplo, Ayrton Senna, bem como pode incorporar

personagens de culturas e tempos distantes, como Joana d‘Arc ou Ghandi. É a

experiência emblemática do ―outro em mim‖, do distante no próximo e vice-

versa.

O autor (LAPLANTINE; NOUSS, [s/d], p. 30 - 33) percebe que o

pensamento racional, motriz cultural da Europa Central, não incorpora outras

maneiras de construção além das dualidades racionais, tais quais: branco e

preto, tradição e modernidade, civilização e barbárie, público e privado, puro e

mestiço, pobre e rico, etc. O autor não quer dizer, contudo, que na América

Latina não pratiquemos o pensamento da exclusão, que tudo é mestiçagem

democrática. Muitas das nossas instituições, sindicatos e mesmo organizações

não governamentais em torno das minorias são fundamentadas no mesmo

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pensamento unívoco que criticamos neste trabalho. Apesar de todo talento

compósito que dispomos na nossa cultura, verificamos diariamente os

componentes de culpa, de dominação, de identidade, de racismo e de revolta,

que ressurgem e negam a mestiçagem, afirmando-a como acidente, como

perda do essencial. Mas tudo isso é material barroquizante do continente, pois

o barroco moderno, o neobarroco, reflete estruturalmente

uma discordância: a ruptura da homogeneidade, a

ausência de um logos absoluto, a carência em vez do

fundamento como episteme. Neobarroco do desequilíbrio,

reflexo estrutural de um desejo que não pode alcançar seu

objeto. (SARDUY, 1988, p. 86)

Quando abordamos a cidade a partir da lógica barroca é por desejar

maior visibilidade às estruturas não ortogonais do pensamento latino-

americano. As teorias do barroco e da mestiçagem acolhem sintaticamente o

excesso de contingência das nossas cidades, compreendendo-as como

sistemas nos quais a coerência entre as partes é aberta, e efetivada com

sofisticadas teias que as mantém conectadas com o todo cultural.

Uma folha Antiga: a ausência de poder central na fronteira

As grandes rupturas, as grandes oposições são sempre

negociáveis, mas não a pequena fissura, as rupturas

imperceptíveis, que vêm do ―sul‖. (DELEUZE; PARNET, 1998,

p. 153)

Kafka (1990, p. 19 - 21) traduz o encontro de duas culturas que se

chocam, ainda sem tradução e conversa possível, em seu conto ―Uma Folha

Antiga‖. Os bárbaros e o povo chinês não se reconhecem e o império, metáfora

do centro estável de poder, se desmonta irreversivelmente a partir do

acontecimento da ocupação da polis por uma urbs estranha e indesejável: os

bárbaros ocupam a praça do comércio.

É como se muita coisa tivesse sido negligenciada na defesa da

nossa pátria. Até então não havíamos nos importado com isso,

entregues como estávamos ao nosso trabalho; mas os

acontecimentos dos últimos tempos nos causam

preocupações.

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(...) Mal abro a porta no crepúsculo da manhã e já vejo

ocupadas por homens armados as entradas de todas as ruas

que confluem para cá. Mas não são soldados nossos e sim

nômades vindos evidentemente do norte. De uma maneira

incompreensível para mim eles penetraram até a capital que,

no entanto, fica muito distante da fronteira. (KAFKA, 1990, p.

19 – 21)

Eles vêm de longe e transformam a pacata praça em ―uma autêntica

estrebaria‖. Não há como estabelecer um diálogo com eles, pois se comunicam

entre si com gritos e recusam qualquer tentativa de comunicação por gestos.

―Para eles nossa maneira de viver, nossas instituições são tão

incompreensíveis como indiferentes‖. Não são violentos, nem precisam ser,

pois ―[a]quilo de que precisam eles pegam‖. Do açougueiro levam tudo e como

ele tem medo dos bárbaros, não lhes interrompe o fornecimento de carne.

Todos os vizinhos juntam dinheiro para ajudá-lo, pois talvez tendo a carne que

querem, eles não incomodem os demais. Porém, atacados diretamente ou não,

todos viveram em extrema tensão, em estado de estranhamento, nos quais

todos os laços anteriores ao fato dos bárbaros ficaram em suspensão.

De qualquer maneira quem é que sabe o que lhes vai ocorrer,

ainda que recebam carne diariamente? Não faz muito o

açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço

do abate e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se

repetir. Fiquei bem uma hora estendido no fundo da oficina

com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em

cima de mim para não ouvir os mugidos do boi que os

nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os

dentes os pedaços de sua carne quente. (KAFKA, 1990, p. 19

– 21)

Kafka mostra o abandono da sociedade civil à própria sorte, pois em

momento de tamanha crise o poder imperial transfere-lhes a responsabilidade

de lidar com esta situação completamente nova e indesejável. O fracasso do

poder central em manter a integridade e grandiosidade do império é

representado pela Muralha da China, insuficiente na defesa da soberania de

suas fronteiras.

Porém o que a população não entende é que a chegada dos

estrangeiros sempre esteve prevista, sempre rondou os piores pesadelos do

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imperador. Não há como evitar sua chegada. Uma brecha qualquer, um

pequeno trecho interrompido na muralha, uma distração momentânea de um

guarda, qualquer coisa já seria suficiente para a invasão dos bárbaros.

O imperador observa cabisbaixo, impotente, o que ocorre com seu povo

da janela do palácio. Os civis não sabem o que vai acontecer e quanto tempo

suportarão esta situação sozinhos, sem a proteção do imperador. Foram

ligados involuntariamente aos estrangeiros e não se reconhecem mais. Os

portões do palácio permanecem fechados e os desfiles coreográficos da

guarda imperial foram interrompidos. ―A nós, artesãos e comerciantes, foi

confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas,

(...) É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar‖. (KAFKA, 1990, p. 19

– 21).

Assim como o imperador, o Estado falha em promover estruturas de

proteção social aos mais pobres e já nem mesmo consegue garantir sua

segurança. Deste modo as diferenças entre quem vive dentro e fora do ―palácio

imperial‖ ficaram mais gritantes, ou seja, o poder hegemônico provê para

poucos privilegiados enquanto aqueles que vivem nas margens do sistema,

tanto por opção como por falta de opção, recorrem a mil táticas e alianças de

sobrevivência. O palácio imperial está prestes a ruir...

Cidade empresa: crueldades urbanas

Única casa que restou do Jardim Edite. Foto Marcelo Min

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A crítica apaixonada é a verdadeira crítica. A outra crítica,

aquela que não é apaixonada, é a crítica dos funcionários

públicos. (Lina Bo Bardi)

O autor Ignasi de Solà-Morales nos aponta que atualmente a questão

urbana é abordada a partir de diversos discursos científicos bastante

específicos. Uma só ciência, a saber, o urbanismo, não abarcaria a complexa

problemática que a cidade apresenta. Hoje em dia, segundo o autor, há na

academia a

geografia urbana, a economia urbana e a antropologia urbana,

estudos que tornam crível a hipótese de que o urbano é uma

categoria cultural suficientemente específica para gerar

campos de investigação e reflexão separados de outras áreas

disciplinares (SOLÁ-MORALES, 2002, p. 25).

A crítica cabível nos estudos urbanos é que, guardadas as

singularidades de cada caso, os parâmetros de investigação tem sido os

mesmos para todas as cidades. Os atributos que as qualificam são retirados do

discurso econômico, que se torna baliza analítica do social, e quando o

discurso econômico ampara decisões de cunho social na cidade há o perigo de

aproximar demais a idéia de diferença da idéia de desigualdade e exclusão,

achatando importantes elementos da cultura urbana em favor de sua eficiência

ou ineficiência econômica. Diferenças na distribuição de renda, na distribuição

de recursos, nas tipologias das habitações, distinções entre centro e periferia

são índices que se utilizam dos discursos de base econômica para determinar

as geografias humanas das cidades. Se por um lado os diagnósticos da

economia e geografia urbana nos instrumentalizam para determinar a origem

das injustiças sociais e assim combatê-las, por outro corremos o risco de

sempre entendermos diferenças culturais como deficiências e,

conseqüentemente, cometeremos outra injustiça, a da homogeneização

cultural advinda do discurso único de cidade.

Solá-Morales (2002, p. 26) verifica que a análise de base econômica das

cidades se converte em análise social no momento em que as tendências

econômicas da cidade apontam conveniências e oportunidades

mercadológicas que podem ser consideradas ―vocações‖, facilidades

produtivas que são logo capturadas e promovidas pelo chamado ―marketing

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das cidades‖. Ainda que estas vocações sejam inclinações reais da cidade

mercadológica, são aspectos apenas parciais da cidade, cuja valorização é

amplificada em prol da prosperidade econômica. Portanto, como observa Albert

Hirschman, o capitalismo neoliberal, (HIRSCHMAN apud SANTOS, 2005, p.

102) não pode ser demonizado por seu caráter repressivo, alienante e

unidirecional, porque era o que se esperava do sistema. Tornou-se importante,

naquele momento, reduzir a variedade humana, produzir realidades menos

multifacetadas e mais previsíveis para atender um maior número de pessoas

com as mesmas demandas. Há mesmo um caráter utópico na racionalidade do

capitalismo moderno, que, ao diminuir a imprevisibilidade, almeja a distribuição

mais justa do trabalho, do tempo, da tecnologia e do lazer. Esse era o objetivo

moderno, ao menos no campo do urbanismo, no qual temos Le Corbusier

como ícone. A razão universal, imbuída da tarefa de reduzir variações, foi o

pilar da emancipação moderna e agora se verifica que a razão, ―arma

emancipatória‖, tornou-se o ―pilar da regulação‖ (SANTOS, 2009, p. 29 - 37).

O modelo neoliberal e o Estado mínimo

Segundo José Humberto da Silva (2009, p. 30 - 39), houve em todas as

nações de governo capitalista, pobres ou ricas, uma modificação profunda na

atuação do Estado a partir da década de 70, que vai desencadear a

instauração do modelo neoliberal como modelo de governabilidade. Essa

transformação foi a reação à crise econômica desencadeada pela decadência

do modelo fordista de acumulação capitalista. Apesar do modelo neoliberal já

ter se desdobrado em formas mais sofisticadas, ainda mantém sua base

fundada na diminuição da presença do Estado nas decisões estratégicas

acerca do desenvolvimento destas nações.

Na América Latina a crise do milagre econômico encabeçado pelo

desenvolvimentismo encontra-se estruturalmente desmontado já nos anos

1980. O horizonte pós-ditadura aponta o neoliberalismo como uma alternativa

para driblar a crise. As teorias neoliberais saem dos círculos acadêmicos e

passam a orientar decisões governamentais importantes. Uma destas decisões

foi a reforma dos Estados Nacionais, que com o discurso da flexibilização para

atender às demandas de um mercado em perigo, transferem para as grandes

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corporações privadas as estratégias políticas, econômicas e jurídicas. É o

discurso da ―liberdade‖, que gera agilidade para reagir ao mercado.

Segundo Silva o ideário da ―liberdade‖ se disseminou rapidamente pelo

mundo todo porque as mudanças nos resultados materiais apresentaram um

dinamismo que parecia justificar a sua pertinência num momento de crise e

estagnação econômica;

ao mesmo tempo, significou uma não menos intensa dinâmica

de reconstrução discursivo-ideológica da sociedade, processo

derivado da enorme força persuasiva que tiveram – e estão

tendo - os discursos, os diagnósticos, as estratégias

argumentativas e a retórica, elaborada e difundida por seus

principais expoentes intelectuais. (SANTOS, 2009, p. 33)

O neoliberalismo, segundo o autor, instaura e dissemina um Estado

mínimo26 para um máximo desenvolvimento econômico e, contando com a

aprovação da categoria ―pensante‖ do país, as pautas centrais no Novo Estado

são os acordos financeiros nos quais o investimento social está ausente. Neste

sistema, a crise social é um reflexo da ineficiência do Estado. Habitação social,

educação, saúde, passaram a figurar no horizonte mercantil das leis de

mercado visando eficiência: redução de custos, maior controle sobre o

―produto‖. Não só isso - os indivíduos também são reduzidos ao funcionamento

mercadológico.

Os pobres são culpados pela pobreza; os desempregados,

pelo desemprego; os jovens pela violência e os professores,

pela péssima qualidade dos serviços educacionais. O

neoliberalismo privatiza tudo, inclusive o êxito e o fracasso

social. (SILVA, 2009, p. 43)

A democracia neoliberal, segundo este ponto de vista, apóia-se no

indivíduo competitivo e ―livre‖ para fazer escolhas no mercado, mas sem

garantir os direitos sociais inalienáveis e as instituições públicas que garantam

o exercício destes direitos. ―[A] letalidade do neoliberalismo no Brasil se dá,

sobretudo, pelo atrofiamento da esperança, da utopia e da resistência social

popular organizada‖ (SILVA, 2009, p. 45).

26

Não é que o Estado deixe de intervir, mas as intervenções passam a depender profundamente das exigências do setor privado.

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No Estado rarefeito, as infinitas ONGS que surgiram a partir dos anos 90

funcionam como substitutivos do seu papel social e se reorganizaram para

obter financiamentos nas parcerias, segundo a cartilha neoliberal, público-

privadas com o Estado que, ausente do papel de traçar programas nacionais,

transferiu para as ONGs a tarefa de cobrir com programas locais, ou no

máximo regionais, demandas emergenciais do campo social. O resultado tem

se apresentado como um conjunto de infinitos modelos singulares, provisórios,

incapazes de cobrir as demandas do imenso contingente pobre do país. Mas o

discurso da solidariedade tem apelo fortíssimo e tenta convencer através da

difusão midiática de resultados individuais de comovente sucesso: meninos

cegos que têm uma profissão e com isso ganham independência, garota da

favela que tocou piano em Viena ou que ganhou bolsa de estudo para dançar

ballet na Alemanha. Todos estes indivíduos são divulgados como emblemas da

vitória por conseguirem escapar da violência e da exclusão - a que estavam

virtualmente destinados - através das iniciativas solidárias. São premiados por

serem o que são, mas a medalha tem o patrocínio do governo e apoio da ONG.

Com tristeza percebemos que a terceirização apropriou-se até da esfera do

íntimo, dos sucessos e dos fracassos pessoais como emblemas de mobilização

social.

É muito importante lembrar que, durante a ditadura militar, não eram as

organizações não-governamentais que lutavam pelos direitos cidadãos, e sim

os movimentos sociais. Porém as organizações tinham um papel fundamental

no apoio à resistência civil. Segundo Silva (2009, p. 72 - 73), estas

organizações civis, que ainda não tinham sido cunhadas com o nome de

ONGs, existiam de modo importante e foram talvez a única forma de

agenciamento possível na época para a sobrevivência dos movimentos sociais.

Essas organizações tinham por ―missão tanto contribuir para a melhor

organização interna como para a articulação entre os movimentos sociais, além

de transferir para estes os recursos captados de organismos estrangeiros‖

(SILVA, 2009, p. 72).

O que Silva denuncia é a falta de crítica diante da ausência do Estado e

pede atenção quanto à atuação das ONGs que priorizam a constante

solidariedade de causas sociais emergenciais, pois os recursos repassados

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pelo Estado a estas organizações poderiam estar sendo empregados nas

eclipsadas políticas públicas. As ONGs orgânicas e os movimentos sociais são

apontados pelo autor como as formas realmente capazes de provocar

mudanças institucionais e o alargamento dos direitos civis. As ONGs não

pretendem, em sua maioria, esta mudança, ainda que Silva reconheça nelas

uma alternativa para as inúmeras demandas do quadro assustador de

deterioração social que vivenciamos27.

Os desdobramentos do Estado Mínimo e o impacto nas políticas

públicas destinadas aos problemas urbanos estão estampados na cidade, tanto

nos projetos urbanísticos como naquilo que escapa deles. A cidade neoliberal é

hoje ―antes de tudo um empreendimento de comunicação e promoção‖. Tudo é

mercado, tudo é cultura. A isca é neoliberal: a ―parceria entre o setor público e

a iniciativa privada, encarregada por sua vez de alavancar investimentos

privados com fundos públicos‖ (ARANTES, 2000, p. 22) para a

espetacularização do urbano com o intuito de impulsionar o desenvolvimento

através dos lugares.

Se no movimento moderno a lógica urbana era a da fábrica – a cidade

―funcionaria‖ como uma linha de produção, com o máximo de racionalidade,

economia e eficiência -, atualmente a metáfora da cidade é a empresa, ou seja,

o administrador tem um olho na competitividade mercadológica dos lugares e

outro na especulação, e um dos dispositivos mais recorrentes da especulação

urbana é a revitalização de espaços públicos através das parcerias público-

privadas.

27

Para não cometer injustiças em relação à seriedade e qualidade do trabalho de algumas ONGs, Silva (2009, p. 80 - 84) discrimina dois tipos de organização: as ONGs orgânicas e as ONGs mercantis. As orgânicas são aquelas que ―direcionam sua práxis para uma dimensão contra-hegemônica. [...] São ONGs que têm como finalidade melhorar ou fortalecer a própria sociedade civil‖, e a sua missão é criar bases para devolver ao Estado a responsabilidade social; Por outro lado, o autor defende que as ONGs mercantis, que são justificadas pelas ações filantrópicas de alívio de sofrimento dos pobres, desejam preencher as lacunas do Estado, embora o façam através de isenções fiscais provenientes do dinheiro público. Estas ONGs enxergam a solidariedade no campo da emergência e, ainda que tenha boa intenção, não opera no campo do fortalecimento do cidadão ou na criação de laços coletivos em prol da cidadania. Sobre as ONGS mercantis o autor ainda denuncia que [...] seu cotidiano revela a (re)produção de modelos dominantes e oportunistas quanto à captação de recursos, transformando-se em verdadeiras “fábricas de projetos” a qualquer custo. Ou seja, visam o lucro e não o fortalecimento da cidadania.

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(...) quando, nos dias de hoje, se fala de cidade (pensando em

estar ―fazendo a cidade‖...), fala-se cada vez menos em

racionalidade, funcionalidade, zoneamento, plano diretor, etc.,

e cada vez mais em requalificação, mas em termos tais que a

ênfase deixa de estar predominantemente na ordem técnica do

Plano – como queriam os modernos – para cair no vasto

domínio passe-par-tout do assim chamado ―cultural‖ e sua

imensa gama de produtos derivados.(ARANTES, 2000, p. 15)

E é por meio das revitalizações e de seu apelo cívico de recuperação do

patrimônio que o apoio consensual da população é angariado. Não é difícil

para a classe média entender que o correto é a cidade limpa, segura, com

prédios conservados e culturalmente pulsantes. O que não é fácil perceber é

que este discurso não transforma a cidade, apenas decide o que deve ser ou

não visível. A pobreza tende a ser encarada como paisagem indesejável.

Quando nos damos conta de que o discurso neoliberal já se naturalizou

consensualmente parece difícil enxergar que haja outra cidade dentro desta,

que escape da dominação total do discurso financeiro. Apesar dessa sensação

desanimadora sabemos que sempre há alternativas ―ali onde a mercantilização

do espaço público está sendo contestada, ali onde os citadinos investidos de

cidadania politizam o cotidiano e cotidianizam a política, através de um

permanente processo de reconstrução e reapropriação dos espaços públicos‖

(VAINER, 2000, p. 101), pois a urbs encontra as brechas na cidade e trata de

alargá-las.

São Paulo: polis x urbs

Se por desenvolvimento se entende o crescimento do PIB para

assegurar mais bem estar às populações, é hoje fácil mostrar

que o bem-estar das populações não depende tanto do nível

da riqueza quanto da distribuição da riqueza. A falência da

miragem do desenvolvimento é cada vez mais evidente, e, em

vez de se buscarem novos modelos de desenvolvimento

alternativo, talvez seja tempo de começar a criar alternativas ao

desenvolvimento. (SANTOS, 2009, p. 28)

O arquiteto-urbanista e economista João Whitaker Ferreira (2007, p. 45 -

47) esclarece que a cidade de São Paulo sempre atendeu e respondeu a

demandas econômicas em detrimento de seu desenvolvimento social mais

justo e igualitário. Até aí nenhuma novidade desde os tempos da colônia. O

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que vai se transformando ao longo do tempo são os discursos que vestem os

interesses dominantes. Whitaker ressalta que desde os anos noventa, a marca

que a cidade vem construindo como slogan é a de que São Paulo está pronta

para ser uma cidade-global, como New York City e Tóquio. O autor diz que o

slogan de cidade global é encabeçado pela iniciativa privada, principalmente do

setor imobiliário, e apoiado pelo poder público. Esta aliança implica em

direcionamentos de investimentos e planejamentos de grandes dimensões com

conseqüências sociais e urbanas quase nunca condizentes com a realidade

mais ampla da cidade. Estes discursos procuram preparar setores específicos

através das chamadas melhorias e requalificações urbanas para catalisar

recursos vindos de investidores de fora do Brasil.

O autor chama atenção para o fato de que São Paulo vale-se dos

atrativos dos discursos desenvolvimentistas da modernidade e da globalização

para re-afirmar o velho discurso conservador, visivelmente interessado em

manter a hegemonia interna de suas elites financeiras.

A naturalização da idéia de que São Paulo já é uma cidade global é

difundida pelo poder público e pela Academia, antes de uma reflexão crítica

sobre o que significa globalização, se o termo globalização pode ou não ser

transfusionado para a América Latina. Como observa Whitaker,

a força dessa conceituação é tanta que até mesmo intelectuais

de orientação abertamente crítica ao papel predador do capital

sobre a produção do espaço urbano paulistano a incorporam

com certo automatismo, talvez caindo na armadilha ideológica

que o mito da cidade global impõe (FERREIRA, 2007, p. 29).

Mais de uma década antes da discussão das cidades globais, Ángel

Rama, escritor uruguaio, revela mecanismos latino-americanos de manutenção

do poder das classes dirigentes, desde a época da colônia, através da

produção e da naturalização de certos discursos cuja característica mais

notável é a capacidade destas elites permanecerem no poder, ainda que

mudem as ideologias. Rama nos lembra que a elite dirigente da colônia era a

elite letrada e que nasceu por ordem do rei, com a função de dirigir a sociedade

com vistas nos interesses da coroa e da igreja.

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Os séculos da Colônia mostram reiteradamente a

surpreendente magnitude do grupo letrado que em sua maioria

constitui a frondosa burocracia instalada nas cidades a cargo

das tarefas de comunicação entre a metrópole e as sociedades

coloniais, portanto girando no alto da pirâmide em torno da

delegação do rei. (RAMA, 1994, p. 43)

Neste momento outorgam-se poderes a toda uma ―nova geração de

administradores (os prefeitos) e à proliferação de profissionais, mais

peninsulares que mestiços‖. Embora possam modificar o conteúdo de suas

mensagens, estes funcionários continuam servindo aos propósitos das classes

dominantes, e perduram, tendo como centro administrativo a cidade, pois, ―[n]o

centro de toda cidade, conforme diversos graus que alcançavam sua plenitude

nas capitais vice-reinais, houve (sec. XVI) uma cidade letrada, que compunha o

anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos,

administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores

intelectuais‖. (RAMA, 1994, p. 43)

E a colônia, segundo Rama, imitava os costumes metropolitanos do

além-mar. No entanto, como a distância geográfica entre elas era muito

grande, a colônia almejava a sofisticação de uma metrópole que, de fato,

existia somente no imaginário colonial. Os esforços imitativos, portanto,

sobrepujavam com folga em luxo e opulência a riqueza real da Europa.

A desproporção deste luxo combinava-se com a indisfarçável

primitividade da natureza e das culturas locais, que escapava por detrás dos

cenários cosmopolitas montados para o teatro social colonial. Não é difícil

imaginar porque a saturação de elementos, o grotesco e a teatralidade sejam

até hoje componentes vivos da nossa cultura.

É possível identificar, talvez, certa vocação da América Latina à

megalomania e ao desperdício, que positivamente pensada é proveniente da

abundância cultural que tanto prezamos, mas que também revela a tendência à

adesão inapropriada aos discursos estrangeiros, quando está ausente a

reflexão crítica sobre a aplicabilidade de tais discursos às nossas realidades.

O arquiteto-urbanista estaria, segundo as observações de Angél Rama,

entre os profissionais produtores de dispositivos de manutenção do poder

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dominante através de seu conhecimento régio, ou seja, ao outorgar-se ao

profissional o papel de condutor de uma ordem e de um conhecimento que

garanta o bem estar da maioria através do diagnóstico, do projeto e da

construção de uma ordem espacial, com o objetivo de criar estruturas

duradouras de legibilidade na cidade, o que atende ao princípio do Estado, a

saber, a permanência. Os dispositivos de legibilidade são as estratégias que

disciplinam as práticas na cidade, de modo a conter o ingovernável, aquilo que

desmonta a durabilidade e permanência: fluxos, funções, horários, etc. Há,

portanto, segundo este ponto de vista, um cruzamento estratégico entre os

saberes do arquiteto e o poder do Estado. Convém entendermos, portanto,

quais interesses do Estado tornam-se discursos da arquitetura e do urbanismo.

Segundo Agamben (2009, p. 28 - 29), é a partir da idéia de dispositivo

de Michel Foucault que pudemos entender como o poder lança mão de

elementos tão diversificados para firmar seu discurso. Segundo o autor,

Foucault percebe que mais do que determinar quais elementos são utilizados,

importa como se relacionam para formar uma rede coesa para assegurar

determinado discurso.

O dispositivo é, antes de tudo, um conjunto absolutamente

heterogêneo que implica discursos, instituições, estruturas

arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas

administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,

morais e filantrópicas, em resumo: tanto o dito como o não dito,

eis os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se

estabelece entre estes elementos. [...] Assim, o dispositivo é:

um conjunto de estratégias de relações de força que

condicionam certos tipos de saber e por eles são

condicionados (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2009, p. 28).

Para Foucault, as arquiteturas institucionais, tais como escolas, prisões,

monastérios, são exemplos recorrentes dos dispositivos de controle do Estado.

Naquele momento da história, as estratégias de comando e de obediência

materializadas nas instituições tinham como objetivo reformular, ou modelar, as

subjetividades sociais através

de uma série de práticas e de discursos, de saberes e de

exercícios, à criação de corpos dóceis, mas livres, que

assumem a sua identidade e a sua liberdade de sujeitos

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no próprio processo do seu assujeitamento. (AGAMBEN,

2009, p. 46 – 47)

O exemplo escolhido pelo autor para aprofundar a idéia de dispositivo é

a disciplina penitencial. No lugar do eu pecador, a sociedade disciplinar

oferecia, como compensação pela correção, o ―novo eu‖; uma vez superado o

erro, o sujeito estava ―livre‖, mesmo que dócil. Sua remodelagem era feita a

partir de um conjunto de estratégias – dispositivos - na qual a arquitetura

disciplinar teve seu papel, assegurando e sendo assegurada pelo modelo

moderno de poder.

Mas o problema filosófico e político apontado por Agamben (2009, p. 47)

é que, atualmente, os dispositivos de poder não oferecem mais nenhuma

contrapartida de subjetivação ao sujeito pela aderência a eles, como acontecia

nas lutas de classe, ou no exemplo da disciplina penitencial. ―Na não-verdade

do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade‖(AGAMBEN, 2009). A

política pressupunha ―sujeitos e identidades reais – o movimento operário, a

burguesia, etc.‖. Atualmente os dispositivos se multiplicaram e se

especializaram tecnicamente, esquadrinhando detalhadamente o cotidiano dos

sujeitos. Contudo, os sujeitos não se enquadram em uma única categoria de

controle e podem aderir passivamente aos inúmeros dispositivos disponíveis,

por isso o controle tornou-se impossível para o Estado, o que corresponde

dizer que todos nós somos possíveis inimigos e o que rege a multidão é a

imprevisibilidade. A governabilidade está ameaçada:

a vigilância por meio de videocâmara transforma o espaço

público das cidades em áreas internas de uma grande prisão.

Aos olhos da autoridade – e, talvez, esta tenha razão – nada se

assemelha melhor ao terrorista do que o homem comum.

(AGAMBEN, 2009, p. 46 – 47)

Condizente com Agamben, Solá-Morales (1999, p. 108 - 109) sabe que

os seres não se agrupam nem se consideram conforme categorias e

identidades fixas. E, portanto, a arquitetura dos dias de hoje deve ser

perfeitamente consciente de sua modesta tarefa, mediante a impossibilidade de

representar, como aconteceu no movimento moderno, um projeto coletivo,

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transmissor dos valores racionais do progresso e proponente da emancipação

coletiva através da paisagem urbana.

E qual seria esta tarefa, uma vez que a arquitetura não pode mais ser

portadora de valores universais nem construtora de uma realidade absoluta?

Solá-Morales (1999, p. 60 - 61) encontra a resposta na idéia de

fragilidade, de Gianni Vattimo, que diz que a experiência estética que as artes e

a arquitetura promovem é uma forma ―forte‖ de uma construção ―frágil‖ de

realidade, porque não se pretende normativa, não se pretende um sistema

organizador.

Acumulação, reiteração, diferença e desconexão são alguns dos substantivos freqüentemente repetidos na discussão da arquitetura entendidos como aqueles que propusemos como representativos da nossa situação atual. Não é só que as fontes de nosso relacionamento com o mundo se estenderam e se multiplicaram. É também o fato de que, conforme isso se deu os ideais de integração, coerência e síntese que presidiram a produção artística do passado tornaram-se claramente inatingíveis. Com o desaparecimento desses ideais, a prática de arquitetura apresenta-se como uma tarefa humilde, frágil, uma aproximação permanente, insuperavelmente provisória.28(SOLÁ-MORALES, 1999, p. 23 – 24)

Para o autor é certo afirmar que a arquitetura não é a cidade, e sim está

na cidade. Ao contrário do postulado do urbanismo moderno, que creditava à

arquitetura o papel regulador e organizador da unidade urbana, a realidade de

nossas ruas demonstra que as grandes cidades amalgamam suas arquiteturas

num conjunto informe, na qual ilhas organizadas, ou enclaves de organização,

se destacam em meio ao urbano homogêneo e indiferenciado.

Bem distante da idéia de gerar multiplicidade através da fragilidade das

certezas, a arquitetura que o autor critica é aquela que produz ―uma cidade de

objetos singulares, repleta de episódios emocionantes perdidos no magma

28

Livre tradução: Accumulation, reiteration, difference, and disconnection are some of the substantives most frequntly repeated in discussion of architecture such as those we have proposed as representative of our present situation. It’s not only that the sources of our relationship with the world have extended and multiplied. It’s also the case that, as they have done so, the ideals of integration, coherence, and synthesis that have presided over the artistic production of the past have become patently unattainable. With the disappearence of these ideals, the pratice of architecture presents itself an undertaking that is humble, fragile, a permanet approximation, insuperably provisional.

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cinza da produção comum. A cidade dificilmente poderia suportar a

concentração de experiências sublimes‖ (SOLÁ-MORALES, 1999, p. 24),

porque não há espaço para tudo ser espetacular. Esse tipo de evento

arquitetônico pressupõe um entorno cuja importância não deve ser maior que

um pano de fundo, para que sua singularidade seja uma experiência

magnânima.

As ilhas de organização são uma tendência mundial. Criam-se edifícios

de escala urbana, geralmente projetados pelos escritórios do star system, que

reorganizam determinados entornos, revitalizando-os. Transformam-se em

ingresso de inclusão das cidades na categoria de cidade global.

O arquiteto-urbanista será, nesta perspectiva, o personagem que vai

administrar as grandes obras, revitalizações de grandes áreas decadentes.

Não que ele planeje a cidade, sua atuação é mais parecida com a de um

gerente - um manager, para usar a terminologia neoliberal - dos investimentos

das mega-incorporadoras. Ou ainda cumprirá as tarefas de um produtor-

administrador-cultural, porque as cidades sofrem (como não usar esse verbo?)

revitalizações urbanas para entrar no mundo dos negócios e a senha, segundo

Arantes (2000, p. 30 - 31), é a Cultura, ―essa nova grife do mundo fashion, da

sociedade afluente dos altos serviços a que todos aspiram‖. O grau de

consumo cultural de uma sociedade é o termômetro dos negócios. As

multidões atraídas para as ofertas culturais ostensivas multiplicam o consumo

do qual a cidade é agora protagonista. Vale para os investidores colocarem

dinheiro numa cidade culturalmente fervilhante.

São Paulo: o abismal

Vi beija-flores. E uma vez mais, durante horas e horas, olho

para esta natureza monótona e estes espaços imensos; não se

pode dizer que sejam belos, mas colam-se à alma de uma

forma insistente. País em que as estações se confundem umas

com as outras; onde a vegetação inextricável torna-se

disforme; onde os sangues misturam-se a tal ponto que a alma

perdeu seus limites. Um marulhar pesado, a luz esverdeada

das florestas, o verniz da poeira vermelha que cobre todas as

coisas, o tempo que se derrete, a lentidão da vida rural, a

excitação breve e insensata das grandes cidades – é o país da

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indiferença e da exaltação. Não adianta o arranha-céu, ele

ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta, a imensidão,

a melancolia. São os sambas, os verdadeiros, que exprimem

melhor o que quero dizer29. (CAMUS, 1978, p. 132 - 133)

Nas metrópoles da América Latina, conforme visto anteriormente, a

natureza atravessa a organização da cidade através da incidência solar, de

ventos, chuvas, além da insistência vegetal sobre o construído e da

incontinência de córregos e rios que não conseguem permanecer retificados. O

regime de forças naturais a que somos submetidos é sempre da ordem do

excesso e da incontinência, o que torna os latino-americanos habituados a

certo grau extremo de variabilidade.

A desmesura é aspecto ativo na conformação de nossas metrópoles,

como forma e como processo de configuração dos espaços. A natureza nos

relembra, através de sua ingovernabilidade, a inexorabilidade da variação,

manifesta no corpo, na cultura e na cidade. Portanto a natureza telúrica do

continente inspira outros regimes de força com os quais contamos para lidar

com as variáveis.

Em São Paulo, o diálogo com a cidade pode acontecer de forma

positiva, quando criamos, a partir de certos critérios, mosaicos analíticos. Por

exemplo, para falar de seu traçado urbano e de sua arquitetura, só podemos

contar com fragmentos de traçados urbanos e de períodos arquitetônicos

retratados em edifícios aqui e acolá, sem que se constituam grandes conjuntos

epocais significativos, que determinem uma supremacia de uma época

histórica sobre outra ou de um estilo sobre outro. É quase impossível

estabelecer análise crítica a partir de estilos ou de categorias urbanas

clássicas. Os traçados de São Paulo, de modo geral, reservam aos resíduos

urbanos do passado a função de peças de um mosaico móvel, que, destituídas

de aura e nostalgia, emergem e são re-aproveitadas dentro do contexto vivo e

mutante da cidade.

Pertencem ao campo do urbanismo forças coletivas que ocupam

edifícios abandonados, espaços públicos ou mesmo a lenta e irrefreável

29

Albert Camus, em visita ao Brasil volta de uma viagem de carro a Iguape, litoral sul de São Paulo, com Oswald de Andrade em 1949.

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insistência das favelas e ocupações, que se enquistam em áreas privilegiadas

da cidade, incomodando, tornando claro que o embate entre os poderes

oficiais e a informalidade é passível de ser solucionado através de retificações,

mas que deve ser negociado em ambas as partes.

Na França, quando pensamos no infinito, são sempre

metáforas que vêm à mente. Mas em São Paulo o infinito é

tomado ao pé da letra. Ei-nos aqui, nós, que fomos formados

no senso da medida, no espírito das idéias claras e distintas,

para quem os contrastes são mais frequentemente graduações

imperceptíveis, ei-nos confrontados com o gigantismo, as

misturas, as contradições absolutas.

(...) O que faz ainda a especificidade de São Paulo tão

radicalmente oposta à ponderação e à temperança francesas,

às nossas pequenas cidades sob a pátina dos séculos de

história, aos nossos pequenos hábitos, é essa estrita relação

entre o primitivo e o moderno, essa espantosa capacidade de

produzir mestiçagens, ou seja, de juntar o que nós separamos.

(LAPLANTINE; OLIEVENSTEIN, 1993, p. 15 - 16)

Laplantine percebe que a cidade de São Paulo confronta o comodismo

historicamente respaldado do francês médio, acostumado à poeira secular

sobre seus pequenos vilarejos imutáveis, com a agitação desmedida da nossa

cidade. O nervo óptico do latino-americano está acostumado a

receber/transmitir grandes quantidades de informação e o simples fato de

andar a pé pela cidade já pode ser considerado como o exercício da

aproximação entre mente e corpo, separados pelo pensamento ocidental

clássico ao longo de séculos.

Como observou Laplantine, o termo infinito, para uma cidade como São Paulo,

não é uma idéia que exprime um estado da alma de um filósofo diante da morte

ou do mistério divino. Experimentamos a infinitude na enervação cervical,

quando nos locomovermos de carro pela cidade durante horas sem jamais

apreender seus limites geográficos.

Contudo, essa capacidade de conviver proximamente com ”aquilo que é

inteiramente fora de nós‖ (BLANCHOT, 2001, p. 95) não acontece sem alguns

problemas. Há que se levar em conta a resistência dos redutos mantenedores

das distâncias entre as diferenças a fim de proteger seus valores próprios da

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contaminação do estranho. As manifestações culturais mais interessantes do

mosaico móvel muitas vezes parecem situações indesejáveis, pois nos obrigam

a deslocar nossos modos de ver e de viver na cidade.

Um olhar estrangeiro: o outro

Eros ainda é o desejo nostálgico da unidade perdida, um

movimento de retorno ao Ser verdadeiro. O desejo

metafísico é o desejo daquilo que com o que não se foi

nunca unido, desejo do eu, não somente separado, mas

feliz com sua separação que o faz eu e, no entanto, tendo

relação com aquilo de que ele permanece separado, do

que ele não tem nenhuma necessidade e que é o

desconhecido, o estrangeiro: outrem. (BLANCHOT, 2001,

p. 101)

No continente americano foram produzidos, tanto por estrangeiros como

por artistas nacionais, inúmeros relatos literários e artísticos em resposta ao

espanto diante dos transbordamentos do real que saturam nosso cotidiano.

Alguns destes relatos literários e visuais nos ajudam a recuperar o

estranhamento, a retomar a consciência do teor fantástico das ruas, do

emaranhado de simultaneidades paradoxais, tornadas imperceptíveis pelo

costume.

O artista espanhol Dionísio Gonzalez30, por exemplo, fotografou favelas

do Brasil e com elas fez uma montagem em forma de foto panorâmica, como

se fosse um instantâneo. Sobre essa montagem o artista insere, aos poucos,

intervenções eletrônicas virtuais, substituindo ou colando elementos

arquitetônicos sobre a foto do ―existente‖, que também é uma montagem. Nem

a montagem nem a colagem têm a intenção de organizar o caos visual da

favela e sim compor com sua estética saturada. O olhar corre entre o possível

e o impossível, e aos poucos a favela torna-se um local desejável, quase real,

quase impossível, utópico. O artista subverte o enquadramento da favela como

lugar de miséria, de violência e de criminalidade, dando em troca aberturas

30

FLOREZ, F. C. (2009). DIsponível em: <www.dionisiogonzalez.com.es/txt/texto_folkwang_fcas.pdf>. Acesso em: 24 de abril de 2010. Para ver mais sobre o trabalho do artista nas favelas do Brasil, consultar o sítio: http://video.google/videoplay?docid-.148880578921304#

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para realidades inventadas, sempre com base no real, que não é dado, mas

inventado.

Fotomontagem da favela Roberto Marinho em São Paulo, de Dionísio Gonzalez

Fotomontagem da favela Roberto Marinho em São Paulo, de Dionísio Gonzalez

Nas montagens de Gonzalez (FLOREZ, 2004, p. 3) as favelas persistem

como táticas de resistência à correção, à retificação do habitar. Para ele a

favela deve resistir como ―um sistema insurrecional do olhar, algo que

sobrevive e desconstrói o imaginário arquitetônico contemporâneo‖ através de

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hibridações do precário. Gonzalez evidencia que acontecimentos urbanos, tais

como as favelas e as ocupações, requerem novas categorias críticas, que des-

universalizem a vitimização da pobreza, para que não sejam usadas como

instrumento de sublimação estética do terrível, mantendo-o como alteridade,

porque desta forma a segregação funciona como margem de segurança para a

manutenção da exclusão: o terrível é o outro. Gonzalez inclui o inacabado e o

precário como parte do cotidiano, como constituinte do urbano como um todo.

O artista quer mostrar que todos nós habitamos, não só os favelados,

demolições de sentidos, vivemos em meio às catástrofes.

Os arquitetos são versados nas técnicas do habitar, enquanto as

favelas empreendem a técnica do abrigo, diz Paola Berenstein Jacques (2001,

p. 23 - 26) estabelecendo as diferenças entre as duas formas de morar. A

habitação é planejada para dar abrigo e algo mais - conforto, proteção contra

intempéries, privacidade; o abrigo é a proteção emergencial que vem depois

da vestimenta, é a terceira pele. Enquanto a habitação é planejada e depois

construída, o abrigo é determinado pelo acaso do conjunto de materiais de

segunda mão recolhidos dos descartes da cidade oficial. A habitação pode ser

reproduzida infinitamente porque domina a topografia através do corte, da

fundação; o abrigo é único, negocia e compõe com a topografia e com os

vizinhos; partes de um abrigo precisam apoiar-se no abrigo vizinho, passagens

e acessos são compartilhados e tudo é negociado caso a caso.

As pedras! As pedras são a couraça da rua, a resistência que

elas apresentam ao novo transeunte. Refleti que nunca

pisastes pela primeira vez uma rua de arrabalde sem que o

vosso passo fosse hesitante como que, inconscientemente, se

habituando ao terreno; refleti nessas coisas sutis que a vida

cria, e haveis de compreender então a razão porque os

humildes limitam todo o seu mundo à rua onde moram, e

porque certos tipos, os tipos populares, só o são realmente em

determinados quarteirões. (DO RIO, 2007, p. 37)

Jacques diferencia as duas técnicas pela idéia de completude. O papel

do arquiteto é conduzir a obra do projeto ao seu término, quando é

considerada completa. O abrigo parte das contingências e nunca está pronto,

continua aberto ao acaso, à coleta permanente e à substituição de partes por

fragmentos destituídos de sua função original. O resultado é sempre

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intermediário, defasado, sempre pronto às interferências, ampliações e

ajustes. O favelado é, para Jacques, o construtor que sabe que ―o acaso é

parte integrante da idéia de bricolagem; é o incidente, ou seja, o pequeno

acontecimento imprevisto, o micro-evento, que está na origem do movimento.

Bricolar é, então, ricochetear, enviesar, zigue-zaguear, contornar‖ (JACQUES,

2001, p. 24).

E pelo inacabamento do abrigo configura-se a permanência que o torna

habitação. Embora transformar o abrigo de madeira em alvenaria seja um

objetivo, ele não determina nunca o final da obra. Sempre tem uma nora ou um

neto que vem para morar e o barraco cresce.

Em seu livro, Jacques nos guia através da imersão de Helio Oiticica no

morro da favela de Mangueira, movimento que vai revolucionar sua vida e obra

artística. Oiticica é tomado pela realidade extraordinária do morro e percebe

rapidamente que o valioso da cultura brasileira não é feito nas academias e

nas vanguardas artísticas, mas na construção anônima do monumento

cultural. A partir daí toda sua experiência na favela torna-se obra e vida:

samba, o morro, a arquitetura das favelas ―e principalmente das construções

espontâneas, anônimas, nos grandes centros urbanos - a arte das ruas, das

coisas inacabadas, dos terrenos baldios, etc.‖ (OITICICA, 1968)31.

Oiticica traduz no Parangolé a intensidade de sua vivência na favela: seu

compromisso como passista da Mangueira, a experiência do espaço

fragmentário e labiríntico da favela, as subidas e descidas das ladeiras e

escadas, o jogo de corpo necessário para locomover-se; da estética em

mosaico dos materiais descartados e revitalizados nas fachadas e interiores

dos barracos, tudo foi aproveitado.

No vídeo ―Quando o passo vira dança‖, dirigido por Jacques32, a câmera

faz foco no andar gingado dos moradores, produzido pela topografia e situação

labiríntica da favela. O andar ali é um acontecimento. Os pés tateiam os

31

Helio Oiticica, Tropicália, artigo de 04 de maio de 1968. Disponível em:

<http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_gg_objetividade2.php>. Acesso em: abril de

2010

32 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=7I6CDo-Z70Y>. Acesso em: abril de 2010.

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caminhos menos acidentados, evitam tropeços saltando sobre os obstáculos,

redirecionando o passo a todo o momento com a habilidade da ginga,

enquanto os chinelos de dedo estalam marcando o compasso da

irregularidade geográfica dominada pela habilidade da ginga. Os eixos de

orientação são múltiplos, há várias opções para percorrer o mesmo trajeto. O

mover-se no morro provoca acordos com as interdições e relevos.

Quero fazer voltar o Parangolé ao gênio anônimo coletivo de

onde surgiu, e com isso jogar fora os probleminhas de estética

que ainda assolam nossa vanguarda em sua maioria,

transformando a pequenez deste problema em algo maior [...]

nas escolas de samba ninguém sabe quem fez isso ou aquilo;

o importante é o todo onde cada um dá tudo o que tem. Minha

experiência como passista da mangueira é fundamental para

que eu me lembre disto: cada qual cria seu samba com

improviso, segundo seu modo e não seguindo modelos; os que

o fazem seguindo modelos não sabem o que seja o samba ou

sambar. (OITICICA apud JACQUES, 2001, p. 30)

O vídeo nos conduz ao entendimento de que o andar favelado

agencia e é agenciado pela cultura rítmica, só possível no espaço composto

por favela- morro-Rio de Janeiro-chinelo. O samba é a representação da

experiência de andar na favela e por isso Jacques diz que é natural que uma

criança do morro aprenda o samba antes de saber andar direito.

A diretora opta pela cartografia rítmica da favela, eclipsando aspectos

sociais difíceis, como a violência e a pobreza, que não compõem nenhum

primeiro plano do vídeo. No entanto acreditamos que esta escolha é política e

nada leviana. Não se trata de estetizar a pobreza através do viver exótico e do

molejo sensual das populações faveladas, nem de mascarar a terrível violência

em meio à qual vivem os favelados, mas de ampliar a potência cultural destas

populações e, através dessa ampliação, desejar outras definições mais

emancipatórias para esta situação urbana. O aspecto labiríntico e

multidirecional da favela são acolhidos como desejáveis, como produtores de

cultura, produzidas pela dupla corpo/espaço. Sua proposta não tem intenção

de intervenção sobre a espacialidade das favelas, mas revela riquezas que a

análise de critérios de pobreza não contempla.

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Frames do vídeo "Quando o passo vira dança”, direção de Paola B. Jacques

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Ao se sair da escala de abrigo para aquela do conjunto de

abrigos, do espaço deixado livre entre os barracos que formam

as vielas e os becos das favelas, a figura do labirinto aparece

quase que naturalmente ao "estrangeiro" que penetra os

meandros da favela pela primeira vez. Além de formar

realmente um labirinto formal, os caminhos internos da favela

provocam a sensação labiríntica ao visitante principalmente

pela falta de referências espaciais urbanas habituais, pelas

perspectivas sempre fragmentárias que causam um

estranhamento (...)33 (JACQUES, 2001)

De qualquer forma há o momento no qual o urbanismo deverá entender-

se com esta poética e vice-versa. Ações tais como escolas de dança, de artes,

de música, atendimento às mulheres, empreendidas por instituições em

favelas incidem melhor sobre esta poética cultural do que muitas vezes faz o

urbanismo, talvez por ser o urbanismo a disciplina que se preocupa em criar

legibilidade para as cidades, na ânsia por controle e proteção contra toda a

contingência da vida na favela, voltada ―perigosamente‖ ao ―fora‖, sem limites

claros entre o público e o privado.

A legibilidade consiste nos traçados viários claros, crescimento e

zoneamento controlado além da disponibilização de serviços públicos e infra-

estrutura. Todas estas benesses do urbanismo são desejáveis, fazem parte

dos direitos de cidadania, embora por si mesmas não sejam suficientes para a

promoção de opções que traduzam e amplifiquem a cultura fervilhante das

favelas. Por funcionarem de modo diametralmente oposto aos postulados do

urbanismo clássico, as favelas são consideradas enclaves34 de informalidade e

descontrole indesejáveis ao planejamento estratégico de qualquer cidade.

No entanto, a própria existência da disciplina urbanística

tradicional, como estratégia, é ainda em grande parte

orientada para a caça aos labirintos, ou seja, para a ordenação

33

Estética das favelas , de Paola Berenstein Jacques. Junho de 2001. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.013/883>. Acesso em: abril de 2010 34

A palavra enclave, segundo o dicionário eletrônico Michaelis, pode ter dois significados,

sendo um deles geográfico: território ou trato de terra de um país, encerrado no território de

outro; e o outro biológico: substância destacada de sua conexão normal e incluída dentro de

outro órgão ou tecido. No caso das favelas a idéia de enclave é lapidar e os dois exemplos

parecem traduzir sua situação diante da cidade oficial. Disponível em:

<http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-

portugues&palavra=enclave>. Acesso em: abril de 2010.

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formal e racional do espaço urbano, de forma a impedir a

experiência labiríntica. (JACQUES, 2001, p. 97)

Há urbanistas que optam pela remoção das favelas como solução

urbana definitiva, por considerá-las enquistamentos indesejáveis na malha da

cidade. Outros optam por planejamentos de urbanização das favelas que

imitem ou aproximem-se o máximo possível do padrão dos bairros formais,

desejando supri-las de infra-estrutura, o que é importante, além da instauração

do controle urbano mais eficaz, e eficiência é uma palavra que faz as vezes de

um enunciado, encobrindo outras possibilidades de relação com o ambíguo e

complexo.

A grande questão da habitação é a construção da cidade.

Se você considerar uma cidade como as nossas, com mais de

cinco milhões de habitantes, não pode fazê-la inteira pensando

em palácios, museus, teatros. Isso são adereços

indispensáveis à cidade. Mas ela é feita de milhões de casas,

que têm de saber conviver com o comércio, com acesso à

saúde, à educação, ao transporte público. Portanto, é um

problema muito mais complexo do que simplesmente fazer um

determinado número de casas, no caso um milhão. Esse

contra senso de se afastar das áreas centrais é até explicável

pela ideologia das classes mais ricas. Mas a cidade bem feita

é sempre um espaço democrático. Isso apavora esse pessoal

que gosta de morar afastado. Não percebem que, com isso,

destroem a sua própria cidade, a sua própria moradia. Eu não

sei como é que se faz para educar os filhos na adolescência

em condomínios fechados. Estão produzindo monstrengos35.

No Rio de Janeiro, a proximidade obrigatória entre a população ―do

morro‖ e a população ―do asfalto‖ gera um clamor popular acerca das questões

de moradia e de urbanização, talvez mais visível do que em outras capitais do

país, pela localização geográfica das favelas e suas relações com a beleza

natural da cidade. Abramo e Faria (1998) contam que na história urbanística

do Rio de Janeiro houve duas formas de abordar a questão das favelas: a

remoção e a urbanização.

A remoção, que visava extinguir uma favela de uma

determinada área, transferia os moradores para conjuntos

35

Entrevista do arquiteto Paulo Mendes da Rocha para o caderno Cotidiano do jornal Folha de São Paulo em 19 de abril de 2009 sobre o plano de financiamento de habitação proposto pelo governo Lula, Minha Casa, Minha Vida.

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habitacionais da COHAB (Companhia de Habitação)

localizados nas periferias, e provocando descontentamento da

população devido aos efeitos negativos de tais remoções como

o afastamento do local de trabalho, e o rompimento dos laços

sociais de solidariedade existentes nas favelas de origem, o

que levou muitas famílias a retornarem às favelas do núcleo da

cidade. (ABRAMO; FARIA, 1998, p. 11)

A remoção de favelas tem por objetivo a renovação urbana e a

revalorização de áreas degradadas, fazendo girar novamente o capital nestas

regiões. Os que não podem mais pagar pelos imóveis revalorizados são

obrigados a partir em busca de estoques imobiliários mais acessíveis,

aumentando a movimentação intra-urbana.

Já a urbanização de favelas quer fixar as populações em seus locais

através de melhorias urbanas, tais como a regulamentação dos lotes, o

fornecimento de infra-estrutura urbana e a gradual aproximação dos bairros na

qual está inserida. Este movimento foi retomado recentemente no Rio de

Janeiro pelo Programa Municipal Favela-Bairro, que se estende além da

questão da moradia, propondo a retomada da problemática social das favelas,

do resgate da cidadania, etc. Não se pode, no entanto, negligenciar a força de

interesses políticos agindo sobre o Programa. Alinhado com outros projetos em

andamento de revitalização urbana, o Favela-Bairro também é fruto do esforço

de situar a cidade do Rio de Janeiro entre as cidades globalizadas e, para

tanto, os números crescentes de moradores de favela - indicadores do

aumento da pobreza - dificultam a inclusão da cidade no patamar desejado.

Porém o programa exclui a faixa da população mais pobre, que recebe menos

de três salários mínimos, e impulsiona o processo velado de expulsão destes

por conseqüência do aumento do valor negociável dos imóveis que,

beneficiados pelo programa ou próximos das áreas valorizadas, passam a

custar mais caro.

A favela, que era uma saída para que estas populações deixassem de

comprometer a minguada renda familiar com aluguéis, passa agora a participar

de modo mais mimético dos jogos imobiliários da cidade formal. ―Isso significa

que combater o mercado informal pressupõe, obrigatoriamente, a adoção de

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políticas públicas massivas de ofertas de moradias para a população que

recebe abaixo de três salários mínimos‖, defende Abramo36.

A movimentação migratória intra-urbana que resulta desse novo

movimento desmonta as estratégias de sobrevivência dos mais pobres que,

menos do que a qualidade e tamanho das moradias, fazem suas escolhas

valorizando as relações de vizinhança e de parentesco nas táticas de

sobrevivência no cotidiano. (ABRAMO; FARIA, 1998, p. 9 – 10)

No entanto o estudo ainda revela que as redes sociais de solidariedade

são também estratégias de grande importância dos menos pobres, que

procuram moradias próximas à família e às vizinhanças da mesma faixa de

renda, fato que explica e reforça a segregação sócio-espacial a partir de fatores

econômicos. Criam-se manchas de pobreza nas áreas ricas e também

manchas de riqueza nas favelas.

Apesar da fragilidade das estruturas de sobrevivência, os mais pobres

não são passivos nos jogos imobiliários da cidade. Estão atentos e especulam

com o que podem. Melhorias na habitação, localização próxima a bairros e

comércio, além da inserção em programas de revitalização urbana, são

moedas valorizadas na comercialização das moradias ―ilegais‖, fortalecendo o

mercado imobiliário informal, atualmente sob a mira do capitalismo formal por

sua vitalidade e números expressivos. Em matéria do jornal Diário de São

Paulo observamos o movimento do formal em direção ao informal.

Casas Bahia e Bradesco vão se instalar na favela Paraisópolis, em São

Paulo

Grandes redes de varejo e bancos estão investindo em uma

das maiores favelas da cidade de São Paulo, a Paraisópolis. A

inauguração da primeira loja da Casas Bahia está prevista para

agosto, no Dia dos Pais. A obra já entrou na fase final, faltam

apenas piso, pintura e acabamento. Cerca de 60 moradores

serão contratados pela loja e outros 40 já estão em atividade,

na construção.

36

Marina Ramalho em artigo de 31/08/2006. Disponível em: <http://www.faperj.br/boletim_interna.phtml?obj_id=3093>. Acesso em: abril de 2010

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A Marabraz e o Bradesco também aprovaram a abertura de

unidades lá. Ambos estão buscando terrenos para dar início às

obras. Segundo o banco, a inauguração deverá sair ainda

neste ano.37

A matéria de Maria Cristina Fernandes sobre a mesma inauguração da

loja Casas Bahia publicada no site do Valor Econômico explicita com mais

abrangência o quanto as relações entre o informal e o formal deixam de ser

unidirecionais, ou seja, não só os favelados saem para trabalhar no ―asfalto‖

como também centenas de funcionários do setor formal vêm trabalhar dentro

da favela. Embora esta tendência abra vagas de emprego formal para a

população da favela, outros cargos são preenchidos por pessoas de fora da

favela, com maior qualificação profissional.

No dia em que foi aberta, em novembro do ano passado, a loja

das Casas Bahia na favela de Paraisópolis vendeu mais do que

qualquer outra unidade em São Paulo. Desde sua inauguração,

que atraiu cobertura do ‗Financial Times‘, seu volume de

vendas mantém-se superior ao de muitas das lojas que o grupo

mantém em shoppings, o que animou a direção a abrir

unidades semelhantes nas maiores favelas de São Paulo e do

Rio – Heliópolis e Rocinha. 38

A favela de Paraisópolis tem uma inserção atípica na malha urbana de

São Paulo, por estar encravada em um bairro de mansões, o Morumbi, e não

nas periferias da cidade. A maioria da população da Paraisópolis busca

empregos no bairro. São babás, domésticas, motoristas, seguranças, garçons,

pedreiros, jardineiros que têm a oportunidade de trabalhar perto de casa, ao

invés de enfrentar as desgastantes jornadas de três a quatro horas diárias de

trânsito até os locais de trabalho.

37

Matéria publicada em 01/07/2008 no diário de São Paulo por Mariana Sallowicz Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sp/mat/2008/07/01/casas_bahia_bradesco_vao_se_instalar_na_favela_paraisopolis-547045899.asp>. Acesso em: abril de 2010. 38

Reprodução da matéria de Maria Cristina Fernandes para Valor Econômico em 13/02/2009 Disponível em: <http://ohermenauta.wordpress.com/2009/02/13/quer-pagar-quanto/>. Acesso em: abril de 2010. A foto da inauguração está no site THE ECONOMIST, que foi acessado na mesma data: <http://www.economist.com/specialreports/displayStory.cfm?story_id=13063298&source=hptextfeature>.

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A localização da favela também facilitou a implantação de diversas

parcerias com ONGs ofertantes de serviços de saúde e educação de primeira

qualidade. O hospital Albert Einstein, o colégio Porto Seguro, entre outros.

A associação dos moradores avalia que atuação de mais de 50

organizações governamentais atenda à metade da demanda

local. Avalia-se que, apesar das quatro escolas municipais e

quatro estaduais da região, haja 5 mil crianças e 1 mil jovens

desmatriculados, além de 15 mil analfabetos. O ensino médio

abriga apenas 20% da população elegível. Apenas 0,5% dos

jovens entre 18 e 24 anos estão no ensino superior”.39

Estes dados evidenciam, segundo a reportagem da jornalista, a

insuficiência das parcerias com o setor privado em redimir a ausência do

Estado ―na assistência a uma legião de excluídos espremidos entre as bolsas

de estudo disputadas a tapa em colégios de elite e o crediário em 48

prestações‖. 40

Atualmente, a favela de Paraisópolis passa por uma reurbanização na

qual estão compreendidas remoções e re-assentamentos, além da construção

de uma avenida que corta a favela com o objetivo de aliviar o tráfego da

avenida Giovanni Gronchi, quase que única via responsável pelo escoamento

dos veículos desta área densamente ocupada por condomínios de edifícios de

classe média alta.

No tecido urbano, o encontro entre o bairro ―formal‖ e a favela,

observado a partir de uma vista aérea41, já demonstra que a relação entre

estas duas formas de ocupar o solo não pode ser nada menos que litigiosa. A

classe média não quer morar perto das favelas, e seus imóveis localizados

muito próximos delas têm seu valor diminuído além de serem difíceis de

vender. Na contramão da classe média, os imóveis nas favelas têm grande

39

Reprodução da matéria de Maria Cristina Fernandes para Valor Econômico em 13/02/2009 Disponível em: <http://ohermenauta.wordpress.com/2009/02/13/quer-pagar-quanto/>. Acesso em: abril de2010 40

Reprodução da matéria de Maria Cristina Fernandes para Valor Econômico em 13/02/2009 Disponível em: <http://ohermenauta.wordpress.com/2009/02/13/quer-pagar-quanto/>. Acesso em: abril de2010 41

foto da favela Paraisópolis em São Paulo, sem autoria, copiada do blog Disponível em: <http//www.tijolaço.com>. Acesso em: abril de 2010. Postagem de 02/04/2009.

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liquidez justamente pela proximidade estratégica de um bairro formal que

disponha de infra-estrutura, de comércio e de possibilidades de emprego.

Com programas municipais de urbanização de favelas, este encontro se

intensifica, pois a relação estabelecida, ainda que desconfortável, havia sido

estabelecida gradualmente até a implantação dos programas municipais. As

melhorias aceleram a ocupação das áreas que se situam exatamente entre o

bairro e a favela, as chamadas áreas lindeiras.

À espera das benfeitorias prometidas pelos programas, chegam os

comércios sem alvará e multiplicam-se as ocupações clandestinas,

pressionando os moradores de classe média ou alta dos bairros vizinhos. A

classe média reclama e tenta se organizar, como pudemos ver no manifesto

de indignação de Maria Lúcia Massot, moradora de uma área de classe média

no Rio de Janeiro, que teve subitamente seu muro de fundo como única

separação entre sua casa de classe média e a favela, desde a aprovação do

Programa Favela- Bairro, em 1990: ―As áreas próximas às favelas são

consideradas áreas favelizadas, aonde tudo é permitido em nome do social e

as favelas continuam a crescer até atingirem os muros das construções

legalizadas da classe média que passam a ser seus limites‖.

Ela prossegue fazendo seu diagnóstico e contabilizando as perdas que

sofreu com a implantação do projeto Favela-Bairro na sua vizinhança.

Pelo contrário, visando exclusivamente o lucro fácil,

aproveitadores iniciaram um processo de favelização dos lotes

lindeiros, até então ainda não atingidos pelas favelas, e a

fiscalização da prefeitura é inoperante. Invade-se tudo: morros,

canais, ruas, praças, propriedades particulares, sítios

tombados, surgem loteamentos clandestinos e favelas da noite

para o dia, às escâncaras, sem qualquer fiscalização.

Aguardam o Favela-Bairro e a urbanização prometida pelos

governantes.42

Maria Lúcia percebe que os mais carentes brevemente serão expulsos

com a valorização dos imóveis nos Favelas Bairro, que passarão a ser

42

Manifesto de Maria Lúcia Massot. Disponível em <http://favelabairro.orgfree.com/page3.html.>. Acesso em: junho de 2010.

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comercializados como imóveis de classe média. Ela diz que desde a aprovação

da lei orgânica em 1990 pululam ―comércios sem alvará, quartos e lojas de

aluguel, pertencentes sobretudo a aproveitadores que vivem fora das favelas‖

porque a população já percebeu as oportunidades de negócios que ainda

burlam a formalidade, por estarem localizados entre a formalidade e a

informalidade, na fronteira entre legalidade e ilegalidade, servindo-se desta

situação transitória.

A isenção de pagamento de impostos desta população de

―aproveitadores‖ costuma irritar a classe média, sempre sobrecarregada com

os tributos que são impostos pelos governos e a moradora percebe que se

encontra no limite da habitabilidade quando o muro de sua propriedade

estancou a favela, no lugar da intervenção do Estado, apenas uma pilha de

tijolos a separa da assustadora informalidade habitacional.

A classe média novamente se vê expulsa. Imóveis são

vendidos a preço vil. Alguns privilegiados conseguem morar em

condomínios fechados. A maioria não tem opção. Ou aceita a

favelização ou procura outro lugar para morar. É entretanto a

classe social que mais impostos paga, obrigada a descontar IR

na fonte, pagar as prestações intermináveis do SFH, o IPTU, e

quando constrói é obrigada a seguir a legislação, caso

contrário é penalizada com multas e embargos.43

Os nenês famintos

Nos anos 70, Vilém Flusser (1983, p. 20 - 22) faz predições deste futuro

instável testemunhado por Maria Lúcia, no qual a segurança dos lares

burgueses deixaria de existir. O primeiro sintoma de instabilidade que o autor

identifica são as migrações de nordestinos em direção ao sul do país,

especialmente para São Paulo, e a conseqüente aparição massiva dos

migrantes na paisagem urbana. Flusser refere-se aos migrantes como ―nenês

famintos‖, por serem submetidos ao tratamento assistencialista por parte do

poder público, que investe na canalização dessas populações para a periferia

43

Manifesto de Maria Lúcia Massot. Disponível em <http://favelabairro.orgfree.com/page3.html.>. Acesso em: junho de 2010.

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como estratégia de controle e proteção da cidade incluída. O que Flusser

flagra é justamente o movimento dessa recente população na cidade, e

profetiza precocemente que os ―nenês‖ não permaneceriam nas periferias e

que, descontentes com as distâncias dos centros financeiros e da falta de

infra-estrutura, retornariam para o centro da cidade para ocupar os espaços

públicos e alterar definitivamente a paisagem da cidade. O autor recomenda

que todos, não só os marginalizados, captem esse movimento como parte

inexorável da urbanidade a partir de então.

Está se processando profunda modificação da forma como moramos. Modificação comparável apenas àquela no início do neolítico, quando passamos ao estagio sedentário. Estamos abandonando a forma sedentária de vida. Estamos de mudança, indivíduos e grupos. Observador distanciado da atualidade terá imagem de formigueiro espantado por pé transcendente. (FLUSSER, 1983, p. 22)

Atualmente podemos verificar que o refluxo dessas populações para o

centro de São Paulo aconteceu e acontece diariamente e a luta pelo centro

está cada dia mais acirrada. Os ―nenês famintos‖ competem - tribos contra

Estado - com a especulação imobiliária e a revitalização dos centros das

grandes cidades, promovida pelo poder público em consórcios com a iniciativa

privada, para a possível recuperação das áreas centrais como pólo atrativo de

produção de capital.

Flusser, mesmo reconhecendo que ―lar‖ não é necessariamente um

lugar fixo, e que perdê-lo não significa ter que sair ou ser expulso, continua

ameaçando ironicamente a segurança do seu leitor - o paulistano da classe

média dos anos 70, já bastante dilapidado de seus bens pelas políticas

desenvolvimentistas empreendidas pelo governo Federal. O autor deseja

mostrar a fragilidade do território sagrado do ―lar‖ burguês e a dificuldade da

classe média em lidar com sua parcela de responsabilidade pelas migrações. A

cidade burguesa se vê profanada por hordas de subdesenvolvidos

maltrapilhos. O autor destrói o sentido do lar burguês, subitamente frágil, diante

das novas realidades, o que significaria o mesmo que ―ter que viver em

ambiente inabitual, portanto inabitável‖. (FLUSSER, 1983, p. 24)

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Foto de Michel Filho para "O Globo"

Segundo Delgado (2007, p. 52), ―logo se descobriu que aquele interior

doméstico também estava afetado pelas inclemências das quais as vítimas do

mundo moderno procuravam se proteger a qualquer custo. Também nesse

dentro fracassado se reproduziam a mentira e a insegurança de fora‖. E esse

fora incerto - que invade a fé na família como unidade mínima de socialização -

é traduzido na perda da cidade pela dissolução em um urbano desconhecido,

em uma cidade de vários centros difusos, bairros de periferia ligados ao

restante da cidade apenas por neutras autopistas.

A família teve sua porta arrombada e por isso, ―empurrou o indivíduo

para um auto-aquartelamento em sua reserva natural de autenticidade, (...)

último refúgio para uma verdade inabalável‖ (DELGADO, 2007, p. 56). O

externo ameaça a consistência interna, tomada como o bem maior que

devemos defender. O ―dentro‖ que se pode garantir neste mundo descentrado

é o ―eu‖, individualizado em grau máximo. Uma comunidade funcionará

enquanto tal apenas na medida da causa comum da defesa do direito de ser

―eu‖, que foi o que parece ter sobrado do desmanche social.

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Está aí o resultado do individualismo impresso na cidade: as

segregações definem territórios por preponderância de influências e por

consumos categorizados. Classes solventes constroem ilhas de segurança

com redes de serviços intramuros, exclusivos e proporcionais ao recurso

sócio-econômico. São os condomínios, os shopping centers, os centros

empresariais e até mesmo ruas de comércio, nas quais os muros construídos

não existem, mas a segregação se dá a partir da seleção de um público-alvo

consumidor daquele espaço, portanto, de qualquer modo, os ―excluídos‖ não

têm porque estar ali. São segregados pela recusa - escancarada em seus

corpos, roupas e pertences - do controle previsto nos planos urbanísticos

modernos. Os moradores de rua, ocupando espaços de maneira insolente,

denunciam direta ou indiretamente o insucesso dos urbanistas que, distantes

das micro-narrativas do cotidiano, reportam-se à sociedade como

especialistas, ou seja, profissionais que garantem a segurança do patrimônio e

dos cidadãos através da organização clara dos espaços e de suas funções.

Se os pobres não conseguirem permanecer migram segundo duas

lógicas: ou buscam no centro melhores preços em habitações decadentes, tais

como cortiços e ocupações, ou fixam-se nas periferias que, se por um lado

impõe-se a falta de infra-estrutura, por outro favorece a autoconstrução e a

―liberdade urbanística‖ em lotes clandestinos, distantes do interesse e da

supervisão do poder público. (ABRAMO; FARIA, 1998)

Pulsões de valorização, desvalorização e revalorização do solo urbano

contribuem para a circulação dispersa dos ―nenês‖ pela cidade, que seguem

resistindo à força centrífuga que os empurra para fora das fronteiras da cidade.

Movem-se como ―navegantes nômades‖ (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p.

186)44. Por mais que essas populações nômades sejam vigiadas e a cidade seja

esquadrinhada pelos radares da polícia e pelos diagnósticos sociais, a

permanência dos ―nenês‖ nos centros superpõe-se à organização imposta pelo

Estado. O controle não extingue sua navegação errante.

44

Deleuze e Guattari citam a navegação nômade, empírica e primitiva, guiada por ventos, ruídos, cores e sons do mar, anterior às determinações da longitude e da astronomia. (2002, p. 186).

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Termos como dobra, brechas, nomadismo, plataforma ou platôs são não somente metáforas geográficas e geológicas como também uma tentativa de organizar a diversidade espacial. Instalação, fluxo, produção ou intempestivo são também termos que procedendo das experiências estéticas contemporâneas se convertem em verdadeiras categorias filosóficas.45(SOLA-MORALES, 2002, p. 72)

A cidade libera buracos e trincheiras como formas de resistência

nômade, são ―imensas favelas móveis, temporárias, de nômades e trogloditas,

restos de metal e de tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados pelas

estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação. Uma miséria explosiva...―

(DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 189). Os controles impostos não param de ser

transgredidos, mas a cidade também abriga sistemas que exigem tradução, e

para além da migração centro–periferia–centro-etc., o que resiste são as

passagens, as alternâncias e as sobreposições.

O espaço liso e o espaço estriado, - o espaço nômade e o espaço sedentário, - o espaço onde se desenvolve a máquina de guerra e o espaço instituído pelo aparelho do Estado, - não são da mesma natureza. Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os dois tipos de espaço, outras vezes devemos indicar uma diferença mais complexa, que faz com que os termos sucessivos não coincidam inteiramente. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p.179-180)

O conceito de liso e estriado de Deleuze e Guattari (2002, p. 185 - 188)

nos ajudam a entender como as relações entre o Estado e o informal operam

em jogos para além das oposições. Para os autores, o espaço estriado é

comparável às tramas de um tecido urdido no tear. Há o lado direito e o avesso,

a trama se desenvolve em direções ordenadas. O espaço estriado entrecruza e

organiza os elementos fixos e variáveis, vertical e a horizontal, portanto

assemelha-se à máquina do Estado. Já os espaços lisos são comparáveis ao

feltro, um aglomerado coeso de filamentos, um sólido flexível que não tem lado

direito nem avesso, desenvolvendo-se igualmente em todas as direções. O

espaço liso aproxima-se do espaço do informal pois ―dispõe sempre de uma

45

Termos como plegamiento, greta, nomadismo, plataforma ou platôs non son solo metáforas

geográficas y geológicas sino um intento de organizar la diversidad espacial. Instalación, flujo,

producción o intempestivo, son también términos que procediendo de lãs estéticas

contemporâneas se convierten em verdaderas categorias filosóficas.

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potência de desterritorialização superior ao estriado‖ (DELEUZE; GUATTARI,

2002, p. 187), porém as relações, segundo os autores, não se dão apenas no

sentido da ocupação da organização diabólica do estado (estriado) sobre as

potências em devir do liso (informal). Os autores ressaltam a importância não da

polarização, mas da passagem de um estado a outro, ou, em outras palavras,

trata-se da tradução. Traduzir para Deleuze-Guattari é a passagem do liso ao

estriado que consiste, certamente, na compreensão, o que significa domar,

codificar e metrificar o liso, mas a intromissão da estriagem, ao mesmo tempo o

que propaga, renova e estende o liso. ―A ciência maior tem perpetuamente

necessidade de uma inspiração que procede da menor; mas a ciência menor

não seria nada se não afrontasse às mais altas exigências científicas, e se não

passasse por elas‖. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p. 195)

Os dois tipos de espaços operam na cidade em jogos ―dessimétricos‖, ou

seja, distintos, mas não opostos, ambos existindo graças às misturas entre si: o

espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o

espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso

(DELEUZE; GUATTARI, 2002, 185).

Os ―nenês famintos‖, os ambulantes, os moradores de rua, escancaram

na existência nômade na cidade como um revide à força da estriagem. Ser

nômade não significa necessariamente o eterno ir e vir, podendo mesmo

significar uma permanência, resistir aos estriamentos dos espaços justamente

por não migrar.

São nômades por tentarem manter um espaço de intensidades, no qual

―prossegue o afrontamento entre o liso e o estriado, as passagens, a

alternância, e superposições‖. A urbanidade comprova a todo instante a

ineficiência da classificação, do rastreamento das populações nômades e da

circunscrição de seus espaços ―lisos‖, como estratégia de proteção. É que a

cidade continua sendo esburacada pela vida urbana, abrindo brechas apesar e

por causa da ―estrialização‖. Uma ―cidade menor‖ introduz-se numa ―cidade

maior‖, ou seja, esses movimentos insistindo em acontecer.

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Ao mesmo tempo em que resistem aos sistemas de controle pela

permanência, reivindicam a tradução de sua marginalidade, provocando mais

deslocamentos. Novamente podemos enxergar esses fluxos urbanos como as

correntes marítimas, que acontecem a partir do encontro de diferentes calores

das águas, trazendo na correnteza elementos de longe ou do fundo,

esquecidos.

Há como viver sem temer ser esmagado pelo ―pé transcendente‖ de que

fala Flusser? É preciso entender que a ―cidade menor e a cidade maior‖

(Deleuze-Guattari) não param de se influenciar, isto é, a cidade maior inspira-

se na cidade menor e vice-versa. A cidade é espaço de tradução da

urbanidade, suas brechas são fronteiras tradutórias das quais podem sair

novos textos urbanos ou a vitória (transitória) da cidade maior sobre a menor. A

questão que Flusser apresenta é um contraponto ao cinismo do urbanismo

atual: é impossível e ineficaz represar e neutralizar os nenês nas periferias e

não se render ao território-desterritório da vida urbana.

Quando esbarramos em carrinhos de catadores de papelão

transformados em dormitórios provisórios e ambulantes sob viadutos e

marquises, somos tomados por consternação, mas também podemos aceitar,

se nos dispusermos a tanto, o convite à edição de nossos sensos de

permanência e transitoriedade, de público e privado na cidade.

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Capítulo 3: vida nas Ruas

Ética para olhar o informal

Não se trata de estetizar a miséria, a pobreza dos outros, de forma alguma,

mas de destacar o que há de vivo, de intenso nas configurações do informal e

extrair dessas intensidades o que há de político, de invenção de vida. Foi assim

que terminou nossa conversa depois de olharmos as fotos que o Marcelo havia

feito.

Marcelo Min, o fotógrafo que realizou o ensaio fotográfico deste capítulo,

narrou as impressões de sua viagem ao Haiti, antes do terremoto de 2010. Na

ocasião de sua visita ao país, foi organizado um passeio monitorado aos

jornalistas na enorme favela de Porto Príncipe, a Cité Soleil, que mergulha na

escuridão ao cair do dia porque não há luz elétrica. Marcelo contou que o calor

é extremo e que somente ao entardecer a temperatura ameniza um pouco. A

comunidade que durante o dia se arrasta letargicamente, ganha uma vida

pulsante durante a noite. As populações vão para fora dos barracos e

mergulham na escuridão com olhos de gato. Comércio, banho, trabalhos,

música, tudo é feito na escuridão, que só é quebrada pelas luzes de velas e

fogueirinhas aqui e ali. A vida é radicalmente vivida nas ruas. As pessoas

encostam-se em qualquer lugar para dormir no chão, direto no asfalto. Às

vezes delimitam áreas do chão com cadeiras para fazerem dormir os bebês,

também direto no asfalto.

odemos dizer que a ausência do Estado Haitiano na proteção e cuidado

de seus cidadãos determina esse modo assustadoramente precário de vida,

que inclui fome, doença, violência e miséria, que em conjunto constitui-se como

a realidade menos desejável do mundo. Porém, ao mesmo tempo, há aspectos

que desviam da miséria justamente por divergir de qualquer intervenção

retificadora que o Estado possa promover, que é a do uso coletivo dos

espaços, porque ali a vida só se sustenta em conjunto. A rua, espaço público

por excelência, é apropriado pelo haitiano para usos que, no Brasil, por

exemplo, acontecem na esfera do privado e do íntimo: banho, alimentação,

repouso. Em países nos quais o estado ainda tem a função de regular tais

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usos, a apropriação do espaço público é reprimida em nome das normas de

segurança urbana e da dignidade humana, pautadas na idéia de que moradia é

um direito.

Foto de marcelo Min no Haiti, favela Cité Soleil, antes do terremoto

No Haiti a vida na rua é resultado da miséria, mas também é cultura.

Não cultura miserável, o crivo não pode ser comparativo. Mas a vida voltada

para fora é uma tendência forte no continente e, ainda que a habitação seja um

direito constitucional, viver a rua como espaço de usos coletivo é uma

configuração que não se assenta exclusivamente na pobreza. A composição

poderia ter sido outra não fosse o calor insular, a sobrevivência coletiva, a

ausência do Estado, etc. Ocupar a rua é tudo isso, mas tudo junto, operando

em zigue-zague.

Apropriar-se de uma coisa não significa possuí-la, mas reconhecê-la como própria, no sentido de apropriada, o que equivale dizer, apta e adequada para algo. Por isso, ao menos conceitualmente, a rua ou praça, enquanto espaços públicos, não podem reconhecer senão usuários, ou seja, indivíduos que se apropriam delas ao usá-las e somente enquanto o fazem. Então, esse princípio de livre acessibilidade, do qual depende o

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exercício da natureza deste espaço como sendo público, se vê matizado na medida em que quem arroga sua titularidade – a Administração, que entende o público como o que lhe pertence – pode considerar inaceitáveis e inadequados – o que equivale dizer inapropriados – certos usos que não se ajustem às suas expectativas modeladoras do que deveriam ser os cenários sociais por excelência. (DELGADO, 2005)46

Esse aspecto vibrante que Min experimentou no Haiti é cotidianamente

vivido também em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Havana. Persiste nestas

cidades a sensação de que a ―realidade é irrepresentável, puro devir, puro

sentido‖ (Daniel Lins) e por isso mesmo o que conseguimos formalizar foi a

narração de mini-epopéias urbanas, nas quais foi possível, momentaneamente,

habitar demolições de sentido. As fotos não são ilustrações ou representações

do terrível e da miséria para provocar um choque que nos tire da inércia dos

sentidos. Desejamos uma composição, um mosaico intensivo de potências

geradoras de sentido, muito mais fortes, onde o radar do poder central falha.

Mas se o poder central falha em determinados lugares, há que se

lembrar que o mesmo radar, por insistência, detecta e captura aquilo que

desejava desbaratar: as potências do informal. É o movimento, do centro às

margens e das margens ao centro, uma correnteza necessária para a

constituição da urbanidade. Trataremos então não tanto de quem venceu o

embate, mas do conjunto de forças que estão em jogo em determinados

nódulos urbanos. Forças centrífugas e centrípetas constituindo redemoinhos

nos fluxos que se desejam regulares e redemoinhos sendo apaziguados por

conseqüência da regularização dos espaços e das relações. São zigue-zagues

deleuzeanos, fronteiras mestiças e naufrágios urbanos.

Os territórios escolhidos para serem olhados tiveram como critério

primeiro a importância da arquitetura e do urbanismo nas relações e usos,

porém esta importância determina mais do que a funcionalidade dos espaços 46

Livre tradução: Apropiarse de una cosa no es poseerla, sino reconocerla como propia, en el sentido de apropiada, es decir apta o adecuada para algo. Por ello –al menos conceptualmente– la calle o la plaza, en tanto que espacios públicos, no pueden conocer sino usuarios, es decir, individuos que se apropian de ellas en tanto que las usan y sólo mientras lo hacen. Ahora bien, ese principio de libre accesibilidad, del que depende la realización de la naturaleza de ese espacio en tanto que público, se ve matizado en la medida en que quienes se arrogan su titularidad –la Administración, que entiende lo público como lo que le pertenece– puede considerar inaceptables e inadecuados –es decir inapropiados– ciertos usos que no se adecuan a sus expectativas de modelación de lo que deberían ser los escenarios sociales por excelencia.

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ou o cumprimento do programa original. São os usos funcionais (abrigar-se,

locomover-se, etc.) mesclados ao intrincado, noduloso, tumoroso, proliferante,

insolente da informalidade.

Em primeiro lugar a rua: fronteiras mestiças do urbanismo barroco

A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo

universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada

detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e

dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de

lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono

e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de

felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais

sabida e cética do que os velhos de setenta invernos, mas cuja

ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos

potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede

como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir,

francamente, depois de ter conhecido todos os males da

cidade, poeira d'ouro que se faz lama e torna a ser poeira - a

rua criou um garoto! (DO RIO, 2007, p. 27)

Entre as instituições e os territórios estruturados da cidade, as ruas e os

espaços públicos configuram-se como os lugares mais dinâmicos; só neles a

sociabilidade urbana é plena. A rua contrapõe-se à cidade, pois ainda que

possa ter um traçado regular, sua vivacidade não é exclusivamente

determinada por ele. A cidade, ao contrário, é representada pelo que há de

estável nela – o construído. A rua é alimentada pelo acontecimento e pelo

instante ao passo que a cidade deseja a perenidade da pedra.

Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes que ficam sem pinga de sangue... (DO RIO, 2007, p. 30)

O excesso de contingências, próprio dos acontecimentos da rua, trata

de torná-la lugar dos desvios e do descontrole, enquanto a cidade deseja o

contrário, o espaço do apaziguamento e da clareza. ―Porque (as ruas) são

zonas de difícil ou impossível vigilância, tornam-se com frequência, cenários de

todos os tipo de deserções, desobediências, desvios ou insurreições, tanto

massivas quanto moleculares‖ (DELGADO, 1999, p. 178).

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A rua torna impossível a realização do desejo autoritário de

planejamento pleno da cidade, pois os usuários não se contentam em seguir o

programa proposto nos projetos. O desenho é o pano de fundo sobre o qual a

sociedade urbana vai ―amaciando‖ as linhas duras do desenho, traçando rotas

movidas por infinitos e insondáveis apelos, que o traçado idealizado jamais

contemplará totalmente. Há um labirinto de ruas que só a aventura pessoal

pode penetrar e um labirinto dos signos que só a inteligência racional pode

decifrar (...) (RAMA, 1984, p. 53).

Para Delgado (1999, p. 181 – 183) a cidade contém duas expressões

paradoxais: uma é a cidade planejada, resultado da determinação política do

planejamento. Seus sistemas urbanos são inteligíveis e funcionais. A outra é a

cidade praticada, na qual o sujeito é que determina como vai mover-se na

trama, propondo novas rotas além das planejadas pelo desenho,

destacando que essa codificação alternativa que o usuário faz da rua não gera algo parecido com um continente homogêneo e ordenado, mas sim um arquipélago de microestruturas fugazes e mutáveis, descontinuidades mal articuladas, incertas, embaralhadas, contestáveis, impossíveis de subjugar. (DELGADO, 1999, p. 182)47

A rua é a superfície complicada, na qual os monumentos são resíduos

fugazes dos acontecimentos que ela protagoniza.

Delgado parece ter percebido a efemeridade das relações que

transcende a materialidade da cidade, ainda que na Europa as cidades sejam

centros mais atrelados aos componentes de perenidade - dado que aquelas

cidades são milenares. É mais penoso para o europeu lidar com a efemeridade

dos eventos cotidianos descontrolados do que no Brasil e no restante da

América Latina, onde a efemeridade é vivida como um processo intenso e

ininterrupto de constituição em palimpsesto da urbanidade.

No urbanismo latino-americano fronteiras se estabelecem e se diluem

tão rapidamente que para captá-las devemos seguir as pistas mínimas dos

47

A destacar que esa codificación alternativa que el usuario hace de la calle no genera algo pareceido a um continente homogéneo y ordenado, sino um archipélago de microestruturas fugaces y cambiantes, discontinuidades mal articuladas, inciertas, hechas um lío, dubidativas, impossibles de someter.

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eventos efêmeros, insignificantes e informes. São narrativas cotidianas que dão

conta da vida nestas cidades, mas que certamente não pertencem ao universo

do êxito ou do sucesso formal. São os urbanismos duvidosos, incompletos,

sub-urbanismos, proto-urbanismos...

Edifício Copan

Dias de pesquisa de personagens para o documentário 3 Edifícios, de

Jurandir Muller. 48

Vista aérea de São paulo com o edifício Copan. Foto sem autoria em fotosedm.hpg.ig.com

48

A pesquisa de personagens para o documentário-instalação do diretor Jurandir Muller consistiu em visitas diárias ao edifício durante dois meses para a abordagem de moradores. O objetivo era, através da gravação de entrevistas com moradores em seus apartamentos a fim de perceber de que modo a arquitetura moderna e seus discursos sobreviveram até hoje. O documentário se estruturou num mosaico de 24horas ininterruptas de gravação nas quais foram gravadas entrevistas e escolhidas paisagens arquitetônicas do edifício e do entorno que mostrassem a realidade atual do prédio concebido sob os postulados do modernismo. Foram três edifícios modernistas documentados do mesmo modo: o Copan em São Paulo, o JK em Belo Horizonte e o Pedregulho no Rio de Janeiro. A experiência de levantamento de personagens no Copan durou cerca de dois meses até o dia da gravação. No edifício Pedregulho, do arquiteto Eduardo Reidy, somente participei da gravação de 24 horas como assistente de produção. No JK não participei de nenhuma ação. A captação das entrevistas se deu entre setembro e novembro de 2009

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Há como falar que o edifício Copan é barroco? Há aproximação possível entre

uma igreja de Ouro Preto e o prédio modernista?

Não queremos provar que um objeto é ou deixa de ser barroco, mas

desejamos as possibilidades quando certa realidade é observada a partir do

barroco. Se a diferença se afirma demais, ela se torna identidade e o olhar

barroco não deseja a essência, mas a existência.

“Os físicos referem-se a esse ―mínimo barroco‖ – mínimos de variedade e complicação – que qualquer sistema vivo requer para sobreviver‖ (DELGADO, 1999, p. 104).

―O Copan é um navio encalhado em São Paulo, uma mistura de Arca de

Noé com Circo Vostok ―(Geraldo Anhaia Mello). Encalhou precocemente, na

fase do projeto, porém mais de duas mil pessoas habitam a velha nau. Oscar

Niemeyer pulou do navio prevendo o encalhe quando o Bradesco assumiu a

massa falida da CNI, que construiria o Copan. A intervenção do banco salvou a

construção do prédio residencial, mas truncou a construção do hotel em terreno

anexo, que contaria com piscinas e o teto jardim, integrando-se ao Copan

através de uma marquise. O Bradesco se apropriou da área prevista para o

hotel para construir um prédio administrativo do banco, que não dialoga em

nada com o edifício modernista. Uma vez mutilado o programa inicial do

complexo residencial e hoteleiro, Niemeyer entregou a execução da obra para

Carlos Lemos. Depois de sua saída do projeto, os blocos E e F também

tiveram suas tipologias alteradas, passando de espaçosos três quartos para

tipologias quitinetes e quarto-sala. Esses apartamentos menores, junto com o

bloco B, atenderiam a demanda de moradia no centro a baixo custo numa

época em que o centro velho era ocupado pela aristocracia paulistana.

Outra séria modificação no projeto original foi a compra pela Companhia

Telefônica da área destinada ao jardim suspenso do Copan, no pavimento

acima das lojas do térreo. Os pilotis ali existentes, que sustentam a laje de

transição de três metros de altura, estão encobertos por vidros causando "uma

mutilação estética", como enfatiza Carlos Lemos. Mas apesar de todas estas

mudanças no projeto, foi tarde demais para Niemeyer abandonar o Copan, sua

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marca foi mais forte do que a desfiguração promovida pelo Bradesco, além do

que, a passagem do tempo reafirmou a dignidade do casco do edifício. Como

em todo naufrágio, novas vidas floresceram nos escombros das idealizações e

o velho edifício continua vibrante.

O edifício, um dos cartões-postais paulistanos, já teve momentos de

glória, de decadência e de recuperação. O Copan vive atualmente o resultado

de uma longa administração condominial de pulso forte, que eliminou

atividades tais como prostituição e venda de drogas explícitas, principalmente

nos corredores do bloco B, tendo como contrapartida a recuperação do valor

econômico dos apartamentos. Os moradores, principalmente os mais antigos,

apóiam incondicionalmente o síndico atual. Morar no Copan, hoje, pode ser

sinal de status social, e o edifício é um símbolo ―cult‖ dos paulistanos. Porém

não são todos os que concordam com as medidas retificadoras do condomínio

e há vários focos de resistência que, no entanto, não conseguem, e talvez nem

desejem, retirar o síndico do cargo. Do mesmo modo o síndico percebe que

tem poder para reprimir, mas não vai conseguir eliminar os feixes de desvios

que correm pelos corredores do edifício. Há informalidade suficiente para não

deixá-lo seguro demais de sua posição.

O Sr. Affonso, o síndico, está há mais de 15 anos no comando da

administração do edifício. Seu escritório funciona como uma mini-prefeitura e,

para tanto, assume poderes polêmicos que alcançam a esfera da vida privada

dos moradores, sempre em nome das leis do Copan. Por exemplo, travestis e

prostitutas podem morar no prédio desde que ―trabalhem‖ fora do edifício e não

circulem ―montadas‖ pelos corredores. Suas roupas devem ser decentes,

―normais‖. A venda de drogas dentro do edifício é reprimida, embora não possa

ser extinta, já que a demanda interna é alta. A tolerância está condicionada à

invisibilidade das transações. Geraldo Anhaia Mello nos dizia que há traficantes

morando no edifício, mas tudo isso é velado com um ar de lenda urbana; todos

sabem, mas ninguém dá os contatos.

No edifício sobram histórias poéticas e outras duras, algumas

nitidamente fantasiosas e por fim as escatológicas, e todas constroem

ininterruptamente a história do Copan. As lendas começam já nos números de

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habitantes do prédio. Céticos dizem que a população é de cerca de dois mil

moradores, mas a estimativa preferida são de cinco mil pessoas, o que tornaria

o Copan um verdadeiro cortiço vertical... Mas esperamos que muitos dos casos

contados não sejam nunca averiguados ou interpretados. Devem permanecer

―nas fronteiras da história não realizada, da história possível: nelas vemos como situações imaginadas engendram – por força do potens49 - uma germinação, cujo valor não cede pelo fato de viver na margem da história orgânica, poderosa; nela nos esperam as surpresas do absurdo criador histórico, tão valiosas como os momentos verificados nos anais do mundo objetivo. (PRIETO, 1988, p. XXIV)

O Copan transcende a poética de suas narrativas particulares para

constituir-se como uma massa móvel de temporalidades ativas, no ―tempo

poemático‖ (Lezama Lima) que acolhe o que não pôde configurar-se como

tempo clássico – a linha dura da cronologia - mas como ―esferas de tempo

negadoras do tempo‖ (PRIETO, 1988, p. XXIV), ou temporalidades paralelas e

concomitantes às dos ―tempos dos grandes relatos‖ (Severo Sarduy), mas no

―contínuo da imagem‖( Lezama Lima).

En cuanto espacio próprio de lo poético, no solo puede configurarse en el texto; tambien en el mundo objetivo, algunas peculiares confluências de elementos diversos suelen fundar uma zona de mistério, uma zona de poesia: son las llamadas coordenadas poéticas. ―uma mágica, imponderable combinatória espacial, tocada apenas(...) por una temporalidad reverente llegada como um halo‖ es capaz de procrear uma situación poética, absolutamente extraliterária. (PRIETO, 1988, p. XXI)

O edifício não é só palco das histórias, como também colaborador na

constelação de situações tão excepcionais que ―penetram no invisível poético‖

(Lezama Lima) das realidades que ali se apresentam. Arquitetura e poética se

aproximam no Copan, são ―com-possibilidades‖ (Deleuze) de vínculo com o

mundo.

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O potens, ou potência é uma das chaves do pensamento poético de Lezama, segundo Abel Prieto (Lezama Lima: 1988, XXIII). Trata-se de aniquilar a dualidade homem x história para complicar de vez esta relação. Para Lezama, a supra-história, essa ―outra‖ história, cujos elementos estão cristalizados na memória poética do homem oferece a infinita possibilidade de recombinar fatos geográficos e temporais distantes em jogos mágicos, livres e absurdos, subvertendo a obediência à história realizada, clássica e formal. Ele clama pela invenção da história O potens lezamiano se aproxima sobremaneira da idéia de virtualidade em Deleuze. O virtual para Deleuze não é o que não existe, mas é o real em forma de potência.

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A funcionalidade modernista está embutida em sua estrutura edificada e

o fracasso da utopia que ronda o edifício é, não obstante, o gatilho de sua

vitalidade. O modernismo do Copan é espectral, cuja ideologia não está no

vivido, mas ecoa na materialidade do construído, em forma de escombro e

poesia.

Fachada Copan. Foto de Regina Kalmann

Fachada posterior Copan. Foto Tuca Vieira

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Os brises de soleil do prédio, elementos que identificam e tornam o

Copan mundialmente famoso são também o cenário de inúmeros casos de

suicídios e de quedas acidentais ali protagonizadas. Depois de tantos objetos e

pessoas arremessados ou despencados pelas janelas, ficou expressamente

proibido limpá-las pelo lado de fora dos apartamentos ou sentar-se nos brises

para apreciar o fim da tarde, e faz parte das lendas do Copan acreditar que o

síndico tenha mandado colocar câmeras de vigilância em pontos externos, nos

edifícios frontais à grande onda, a fim de controlar, identificar e multar aqueles

que desobedecerem à regra de segurança.

O edifício representa a desmesura de São Paulo nas dimensões e no

número de moradores. Sua população é equivalente a de uma pequena cidade,

tanto que os Correios decidiram designar para o condomínio do edifício um

CEP especial, 01066-900. E porque as tipologias dos apartamentos são muito

variadas, a população também é bastante diversa, tanto em termos

econômicos como em tipos de agrupamentos, familiares ou não. Há seis blocos

de apartamentos com portarias separadas. A famosa fachada com os brises de

soleil é a fachada principal do prédio. Os elementos horizontais amenizam o

gigantismo da massa construída. Como o centro da cidade é muito

densamente ocupado, não há vista frontal com afastamento suficiente da

fachada que permita a um transeunte observar dentro dos apartamentos. O

brise filtra esta visão, uniformizando a fachada.

No entanto a fachada dos ―fundos‖ do edifício, voltada para a Rua

Augusta é um vertiginoso mosaico de cores. A ausência dos brises engendra

movimentos muito mais variados do que a horizontalidade da onda frontal do

prédio. A face descarnada do edifício despe-se da máscara de ícone

arquitetônico, oferecendo a pulsação dos moradores que os brises escondem.

São as janelas dos quitinetes do populoso bloco B, apelidado como ―ala

psiquiátrica‖ por Anhaia Mello, que dizia que o número de doidos por andar é

altíssimo e que neste quesito ele se incluía, portanto era congruente que

morasse no bloco. Os apartamentos deste bloco podem ser ―quitinetes‖ ou

tipologias quarto-sala, com brises. Já no bloco D (D de Dollar, como diz o

morador Paulo) os apartamentos têm até 220m2.

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O elevador do bloco B atende a dois andares por parada e entre seus

pavimentos há uma enorme rampa. O vão que se forma entre os andares ecoa

a movimentação nos corredores e os barulhos abafados vindos de dentro dos

apartamentos. O bloco B emite um estranho som intermitente de vozes,

passos, máquinas e TVs, além do encanamento, muito antigo, que solta

―gemidos‖ metálicos como se fosse realmente habitado por fantasmas. E para

completar, os corredores curvos do bloco B reproduzem a arquitetura

hospitalar, ―panóptica‖ (Foucault). São incontáveis as portas dos dois lados,

intercaladas em espaçamentos pequenos como de celas, que acompanham o

formato curvo da onda do edifício. Se estivermos no meio do corredor, não

temos a visão das pontas, o que gera uma sensação de estar sendo vigiado. O

efeito é realmente de um espaço disciplinar.

Portas, (...) assim também a delimitação encontra sentido e dignidade pela primeira vez naquilo que o movimento da porta faz perceber: a possibilidade de sair a qualquer instante dessa limitação para a liberdade. (SIMMEL apud DELGADO,1999, p. 29)

O síndico ameaça colocar câmeras de vigilância nos corredores, mas ainda

não foi possível instalá-las em tão grande quantidade. A vigilância no bloco B

restringe-se aos halls dos elevadores. A limpeza também é outra forma velada

de controle do síndico sobre a vida dos moradores, porque está associada à

cruzada moral empreendida no início de sua gestão quando - nos anos 80 e 90

- o lixo ocupava os corredores do bloco B. A vitória sobre a prostituição e o

tráfico explícito de drogas também eliminou o lixo dos corredores. Limpeza e

moralização tornaram-se sua bandeira de re-eleição. Os corredores são

lavados com máquina de pressão duas vezes por semana. Se alguma porta for

pichada, pintada de outra cor ou adesiva da será imediatamente restaurada na

cor amarelo pastel de todas as outras. O máximo que os moradores podem

fazer para personalizar suas portas é um tapete diferente ou um pequeno

enfeite, desde que não altere o padrão geral.

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Corredor do Bloco B. Foto de caio Guimarães no flickr.com

No bloco B, os zeladores são menos formais do que nos outros blocos, pois,

acostumados com acontecimentos descontrolados e numerosos, tendem a ser

menos exigentes na liberação do acesso de visitantes, cujos dados são

anotados em um caderno. Eles conhecem os moradores, suas histórias de

amor, seus desafetos, seus problemas com o síndico e até costumam intervir

em brigas, quando chamados.

Os quatro elevadores que servem ao bloco são maquinários antigos,

datam da inauguração do edifício em 1966, com caixas revestidas de uma

fórmica ordinária, mas os metais cromados na cor dourada polidos com

capricho, a lentidão dos elevadores e os solavancos nas paradas, contribuem

para a atmosfera mitológica do Bloco B. A troca por maquinários novos com

seus inevitáveis painéis com botões digitais em aço inox, de efeito pobre e

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hospitalar, está prevista, mas o dourado ainda enriquece as narrativas do bloco

mais instigante do edifício.

Ruas do Copan: modernismo e o “comum”

A urbanidade consiste nessa reunião de estranhos, unidos pelo impedimento, anonimato e outras películas protetoras, expostos às intempéries, e ao mesmo tempo, protegidos, camuflados, mimetizados, invisíveis. (DELGADO, 1999, p. 35)

Existe um interesse em comum por parte dos moradores em torno do

morar no Copan? Melhor dizendo, o edifício é capaz de juntar em torno dele

um coletivo ou uma espécie de ―endereço‖ social, uma congruência própria e

consciente dos moradores?

O que pudemos perceber nas entrevistas é que há uma consciência

geral de que habitar o Copan é uma experiência de urbanidade ímpar e

sentimos nas falas que o orgulho de morar no edifício é presente. Há também

uma disposição geral em conceder entrevistas e abrir a casa para visitações,

tendo em vista a massiva presença de estudantes de arquitetura e de

profissionais da mídia no local. Todos se admiram da vista de São Paulo que

se tem das janelas e parecem entender o valor arquitetônico do edifício. Muitos

apreciam a diversidade de pessoas que habitam o prédio.

Segundo Delgado50, o pensamento moderno pôs em circulação a idéia

de que entre espaço público e espaço coletivo há uma coincidência, a vontade

imperativa de conviver. Ou seja, ocupar o espaço público é ter interesses em

comum com os demais usuários daquele espaço e, mais, é ter interesse por

aquele ―outro‖ que ali se encontra.

Ora, para o consenso fabricado pelo modernismo se materializar, tanto a

arquitetura como o urbanismo prestaram-se à redenção do ideal da

comunidade perdida, aquela sempre pronta a se relacionar, mas que se

encontra impossibilitada de exercer essa ―característica natural‖ por uma

desordem espacial das cidades.

50

Delgado, Manuel. Lo común y lo colectivo, [s/d]. Disponível em: <http://medialab_prado.es/mmedia/0/688/688.pdef>. Acesso em: agosto de 2009.

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Mas será que o exercício da urbanidade é a arte do encontro por

natureza? Quando andamos nas ruas passamos a maior parte do tempo

evitando proximidades e desviando de obstáculos, atentos à preservação de

nossa integridade física e do nosso anonimato em meio à multidão.

Delgado(1999, p. 183) diz ―o espaço urbano não é um lugar, mas é um ter lugar

momentâneo e reconfigurante do corpo‖. Como o instante urbano é efêmero,

não há como associar a urbanidade ao êxito duradouro, ―mas aos micro

sucessos: acidente, incidente, micro-espetáculo – emergência arbitrária‖ que

mais se parece com performances imprevistas encenadas não por atores, mas

por atuantes (DELGADO, 1999, p. 187).

Robinson Crusoé, o náufrago de todos os tempos, percebeu, devido à

sua imensa solidão na ilha Speranza que o ―outro‖, mesmo que em mini-

encontros contingenciais é aquele que ―nos arranca ao pensamento atual‖ e

que ―a simples possibilidade de seu aparecimento lança um vago luar sobre um

universo de objetos situados à margem da nossa atenção, mas capaz de a

todo o momento de se lhe tornar o centro‖. (TOURNIER, 1991, p. 32)

Percebemos no Copan atual ecos do desejo regulador modernista, na

qual a arquitetura deveria facilitar as relações de sociabilidade através da

racionalidade dos espaços. Por exemplo, o síndico tentou emplacar o uso do

teto como local para caminhadas, atividades ao ar livre, na tentativa de

reembolsar os moradores da ausência do jardim suspenso, mas o ambiente da

cobertura é árido e inadequado; o chão de cimento é transpassado por

encanamentos altos. Há muita interferência de micro-ondas por conta das

antenas de telefonia, além das casas de máquinas e das zeladorias que

impedem a continuidade do espaço, a todo momento interrompido por algum

destes obstáculos. Embora a vista 360º da cidade seja estonteante, a

atmosfera é de ficção científica e não esportiva.

Além de todos estes inconvenientes espaciais, há a limitação do acesso

ao piso pelos moradores, pois foram fixados horários nos quais a freqüência ao

teto é liberada e nesses períodos a vigilância é constante para evitar acidentes

e usos ilícitos. Fora dos horários estabelecidos, as portas permanecem

trancadas e as chaves ficam em poder dos zeladores. Segundo Anhaia Mello,

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antes da revitalização sindical do Sr. Affonso, o teto era usado para churrascos,

consumo de drogas e banhos de sol de travestis e prostitutas seminuas.

Evidentemente o controle dos acessos visa evitar estes tipos de ocupação, que

Anhaia afirmava ser muito mais interessante do que encontrar o síndico

vestindo roupas esportivas fazendo seu jogging burocrático.

Outro vestígio de memória modernista é a integração do térreo do

Copan à paisagem urbana de São Paulo, que subsiste e cumpre seu papel

previsto. Se não é exatamente um aglutinador de sociabilidades, ao menos

integra a cidade ao edifício através dos serviços comerciais abertos à

população em geral, moradores ou não. As portarias dos blocos também são

acessadas por estas ruas internas. Niemeyer lançou mão desta conformação

espacial, imaginando que, em conjunto com o jardim suspenso, estariam

garantidas as condições de sociabilidade nesta arquitetura de escala quase

urbana.

A rua interna reuniria serviços, na perspectiva de que certas atividades

deveriam ser retiradas da esfera íntima da casa, liberando tempo para o lazer e

aumentando as áreas de estar nas células habitacionais. A ausência de

lavanderias na planta dos apartamentos é conseqüência desta idéia. O Copan

teve uma lavanderia coletiva no térreo, mas o serviço não vingou por muito

tempo, embora o ponto comercial tenha sido sucessivamente alugado por

comerciantes donos de lavanderias até os dias de hoje.

Barbearia e cabeleleiro mais antigo do Copan. Frame do documentário 3 edifícios.

Imagem de Marcelo Lacerda

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Segundo os comerciantes donos de pontos, tais quais restaurantes,

lavanderia, locadora de vídeo, lan house e salões de beleza, mais da metade

do faturamento vem de clientes dos arredores do Copan, o que comprova que

a rua de serviços é uma forma muito interessante de garantir a permeabilidade

entre o prédio e a cidade, mas não como local de encontro. A locadora de

vídeo é um caso exemplar. O edifício fechou um acordo com uma distribuidora

de canais de TV a cabo em troca do espaço do teto para a instalação de

antenas. Todos os condôminos têm acesso gratuito à TV por satélite. Para quê

alugar filmes?, reclama o dono da locadora, que também assiste à TV gratuita

do Copan no estabelecimento. Ele atende mais os moradores da vizinhança.

Até a lavanderia Uósh - que nos pareceu ser um ótimo negócio num edifício tão

grande no qual a maioria dos apartamentos não possui área de serviço51 - tem

seu faturamento vindo de clientes de fora. Segundo a proprietária, seus clientes

são na maior parte os hotéis e flats da região, ―porque os moradores do Copan

não têm dinheiro para pagar lavanderia e se viram como podem dentro de

casa‖.

Mas um comerciante que trabalha bastante para os moradores e que

conhece muitas histórias do prédio é o discreto chaveiro do Copan. Ele

comenta que presta muitos serviços de arrombamento em casos de

falecimento e também em brigas de casais, quando as fechaduras são

trocadas na ausência de um dos cônjuges, que chega à casa e não consegue

entrar porque a fechadura foi trocada à surdina. Geralmente a polícia precisa

ser envolvida no imbróglio, para que ele não seja agredido.

Apesar da sensação de desconexão entre os moradores, separados por

portarias diferenciadas, há uma rede de solidariedade, de informações e de

notícias que corre de boca em boca e transcende os blocos. Os grandes

personagens do edifício são conhecidos, seja por conta dos problemas que

causam à ordem geral, seja por afinidades, ou por acaso, no elevador ou nos

51

Como dissemos antes, no projeto original a lavanderia deveria ser um serviço coletivo, não situado individualmente nos apartamentos. Esse é um dos postulados modernos que não tiveram aderência no Brasil. Parece importante para os agrupamentos familiares que a roupa seja lavada em casa. Essa diferença cultural não foi prevista em muitos projetos da época e, portanto, a lavanderia é improvisada dentro dos banheiros nos apartamentos menores e nos maiores muitos moradores executaram uma reforma para acomodar a área de serviço. A mesma coisa aconteceu com o edifício Pedregulho, de Affonso Eduardo Reidy, no Rio de Janeiro.

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bares. O síndico e os porteiros também têm conhecimento das pessoas idosas

ou com necessidades especiais que vivem sós nos apartamentos e praticam

algumas verificações rotineiras para checar se estão todos bem, se precisam

de algum apoio.

Rua Unaí: o comum na sarjeta

Rua Unaí. Foto de divulgação do bar e restaurante Dona Onça.

―Se o poder político se ocupa do distante, do projeto, da perfeição, a massa se ocupa do cotidiano, do estruturalmente heteróclito‖. (DELGADO, 1999, p. 93)

Mais um território imprevisto parece ser o eleito para momentos de lazer

e de encontro: a Rua Unaí, conformada entre o Copan e o Bradesco. Essa rua

externa parece se encaixar como alternativa para a área da praça, playground

que faltou no projeto de Niemeyer, embora não disponha de nenhum

equipamento para atender tal demanda – todos sentam na sarjeta - a rua é

ponto de encontro de mães, avós, crianças e principalmente de cães e seus

donos. Os animais são mais numerosos do que as crianças. Perguntamos ao

síndico-prefeito porque os animais eram permitidos num edifício com regras

internas de limpeza e silêncio tão rígidas. Ele respondeu que não permitir é

impossível, pois seriam inúmeros os processos contra a administração

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alegando dependência psicológica dos moradores em relação aos animais e

―isso é causa ganha pelos moradores‖.

Cachorros e donos na rua Unaí à noite. Foto de Geraldo Anhaia Mello

Rua interna de comércio. Frame do documentário 3 difícios. Imagem de Marcelo Lacerda

Cachorro na Rua Unaí. Sem autoria, no site www.dipity.com

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A animação em torno dos bichos é intensa. O badalado estilista Walério

Araújo, que mora no edifício e tem uma loja-atelier no térreo, ajuda a promover

um desfile de modas para os cães do Copan - ele mesmo tem uma cadelinha

de raça que é modelo das roupas caninas que costura para o evento – junto

com a veterinária, que trabalha em uma das lojas petshop do térreo. Ela milita

na campanha de adoção pelos moradores do prédio de animais abandonados

no centro, e afirma que o grande número de casais gays e de idosos solitários

são os responsáveis pelo enorme número de cães de estimação no prédio.

A Rua Unaí é uma zona escorregadia entre o ―fora‖ e o ―dentro‖ das

delimitações do Copan. Apesar de ser pública para pedestres, essa rua ainda é

imantada pelas forças do edifício, que se derrama sobre a calçada. A rua é

engolfada pelo prédio, pela sombra da marquise, pela curva possessiva da

grande onda, tornando difícil a definição do que é público ou coletivo ali.

Os bares e comércios do térreo do edifício voltados para a calçada garantem

movimentação pública durante o dia todo. A rua também oferece acesso às

portarias dos blocos, servindo como atalho para quem vem de fora acessar

rapidamente os blocos desejados.

Embora prevaleça um ambiente neutro, de passagem, há momentos

específicos do dia em que os moradores fazem uso da rua como espaço de

lazer e de encontro. Nestes momentos é muito importante a visibilidade. Os

moradores desejam ser vistos e reconhecidos. Ali o síndico pode vigiar,

diagnosticar, controlar horários através das leis urbanas do silêncio, mas não

pode banir a ocupação. A Unaí funciona como adro do edifício, um grande hall

entre a efervescência do velho centro e os mistérios dos apartamentos.

No último blackout em São Paulo, em novembro de 2009, tivemos a

oportunidade de verificar a rápida re-configuração da Unaí como espaço

comum aos moradores. Naquele início de noite, o vai e vem era de moradores

voltando do trabalho para casa e do ―happy hour‖ nos bares. Quando a queda

de energia se prolongou por mais de uma hora, muitas pessoas confirmavam

pelos celulares que o blackout havia sido um evento em nível nacional. Saímos

do bar AMAM, localizado ao lado do Copan, em direção à entrada do café

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Floresta na rua Unaí, onde já começavam a se acumular moradores. Como o

edifício conta com gerador para os elevadores, centenas de pessoas desceram

de seus apartamentos para observar a cidade no escuro. A rua foi ficando

cheia de gente e muitos se sentaram nas sarjetas compartilhando cervejas,

falando nos celulares em busca de notícias e olhando a confusão de faróis de

carros e buzinas no breu inédito da cidade. Até o síndico estava lá, sempre

vigilante, numa roda de conversa com uma senhora e um jovem transexual de

minissaia branca e prata, atrasado para seus compromissos.

Nos espaços públicos e semi-públicos, segundo Delgado (2007, p. 189),

em boa parte das relações impera a ―desatenção cortês: os princípios de

reciprocidade simétrica, nos quais os que se intercambia podem ser

perfeitamente o distanciamento, a indiferença e a reserva‖. Mas em situações

singulares ou emergenciais a indiferença transforma-se rapidamente em ―ajuda

mútua e cooperação espontânea. Para que isso ocorra é indispensável que os

atores sociais ponham entre parêntesis seus universos simbólicos particulares

e posterguem para melhor ocasião a proclamação de sua verdade‖

(DELGADO, 2007, p. 189).

A voz do Copan é ouvida ao longe como um coro sem solistas, sem

destaques, mas quanto mais perto e maior a infiltração no cotidiano do edifício,

mais nítido é o entrelaçamento das narrativas particulares com a arquitetura

onipresente do prédio. Não é uma voz em uníssono, mas uma intrincada

massa sonora. Foi mais fácil perceber o quanto a arquitetura e as realidades

particulares se entretecem depois de passar uma noite em claro perambulando

por elevadores e corredores, entrando nas esferas íntimas das casas para as

entrevistas, sempre em companhia do barulho da boate vizinha - a Love Story,

que funciona com grande estardalhaço de terça a domingo até ás 10 da manhã

- e ao amanhecer, perceber a inclemência do sol dentro dos apartamentos,

pois não há cortina blackout que impeça a luz de entrar pelas imensas janelas

de vidro, isso tudo depois de ouvir 24 horas de vozes singulares impregnadas

pelo edifício, que formam juntos, voz e arquitetura, um tecido cuja trama não

tem avesso.

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No final das 24 horas, na última entrevista, o Copan fez encontrar em mim a

solidão pessoal de cada entrevistado. Vazava uma melancolia amplificada pelo

cansaço da noite em claro e a permanência da imagem, não do naufrágio

arquitetônico, mas do morar náufrago, como o Robinson de Tournier, que teve

que re-inventar sua humanidade a partir dos escombros do navio, brindando o

―outro‖ a partir de sua ausência.

Frame de documentário 3 Edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda.

Sei agora que todos os homens trazem em si – e dir-se-ia, acima de si – uma frágil e complexa montagem de hábitos, respostas, reflexos, mecanismos, preocupações, sonhos e implicações, que se formou, e vai se transformando, no permanente contato com seus semelhantes. (...) O próximo, coluna vertebral do meu universo... Todos os dias meço quanto lhe devo, ao verificar novas fendas no meu edifício pessoal. (...)Quando um pintor ou um gravador introduz personagens numa paisagem ou na proximidade de um monumento, não é por gosto do acessório. As personagens dão a medida e, o que é ainda mais importante, constituem pontos de vista possíveis que, ao ponto de vista real do observador, acrescentam indispensáveis virtualidades. (TOURNIER, 1991, p. 47)

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Edifício Pedregulho: o modernismo e o sol, naufrágio intensivo

Do nosso ponto de vista mais disciplinário como arquitetos urbanistas, o que nos interessa especialmente é o aspecto vital do informal. Aquilo que se manifesta como uma enorme energia de interação social, apesar da desordem visual e funcional, produto de sucessivas crises econômicas, da corrupção governamental e a falta de políticas públicas para suportar os acontecimentos. 52Jorge Mário Jaurégui

Foto por satélite do edifício Pedregulho, encontrada no sítio Google Earth

Uma moradora contou que a mãe usava a rua comum do térreo para

estacionar seu fusca. Um dia, ao invés de brecar a mãe pisou no acelerador e

o fusca arrebentou o guarda-corpo, lançando-se quase 10 metros abaixo,

caindo na mata. O pai foi avisado e veio correndo do trabalho, temendo pelo

pior; mas qual não foi a surpresa ao encontrar sua esposa bem, até demais,

tomando café na sala com as amigas. “Prejuízo mesmo foi o fusca”, conta a

52

Desde nuestra perspectiva, mas disciplinaria, como arquitectos-urbanistas, lo que nos interesa especialmente es el aspecto vital de lo informal. Aquilo que se manifesta como uma enorme energia de interacción social, a pesar del desorden visual y fucional producto de sucesivas crises econômicas, la corrupción gubernamental y la falta de políticas públicas para encalzar los acontecimientos JAURÈGUI, JORGE M.. La ciudad en devenir: economías informales / espacios efímeros. Disponível em: <http://www.ciutatsocasionals.net/textos/textosprincipalcast/jauregui.htm>. Acesso em: junho de 2009.

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filha, carregando nos “s” cariocas, o que tornava a narrativa mais saborosa e

irreverente.

Nada de milagres nem metafísica no Pedregulho. Trata-se da existência levada

às últimas e inevitáveis conseqüências. Mas os moradores contam que quem

cai do prédio por acidente, não morre. “Já os suicidas... disse a moça, nunca

escaparam”.

O Pedregulho, cujo nome oficial é Conjunto Residencial Mendes de Moraes, foi

inaugurado em 1950 por Affonso Reidy como um emblema da solução da

demanda habitacional de baixa renda do Rio de Janeiro, que na ocasião ainda

era a capital federal do Brasil. O residencial introduz no mínimo duas novidades

na questão da habitação popular: ―habitar em apartamentos e a moradia de

aluguel com desconto direto em folha de pagamento.‖ (Silva, Helga:2006,26)

Sua concepção arquitetônica segue os preceitos do modernismo funcionalista:

espaços flexíveis, serviços e espaços de lazer coletivos, arquitetura

monumental, padronização dos espaços internos da moradia a partir de

modulações, produção em série dos elementos construtivos que acarretariam

numa redução de custos e velocidade de produção para atender a crescente

população urbana no país.

Mas o norteador de toda radicalidade do conjunto residencial é a crença

na mudança da sociedade através da arquitetura e do urbanismo, que passa a

ter um caráter normativo e pedagógico, pois o Homem Novo (Le Corbusier)

ainda precisava ser educado para viver nas cidades do ―amanhã‖. Para tanto,

além da moradia, o conjunto contava com os serviços coletivos, tais como a

escola, o ginásio de esportes, o serviço gratuito de lavanderia, posto de saúde,

etc. A rua de pilotis mais uma vez entra no cenário arquitetônico para a

promoção da convivialidade, dos jogos e do lazer.

Interessante lembrar que os apartamentos, com diversos tamanhos, eram

cedidos aos moradores segundo o tamanho da família e não de acordo com a

renda. Um garagista com sete filhos recebeu uma moradia com quatro quartos,

um solteiro recebeu um quitinete.

As moradoras mais antigas contam sobre a presença constante das

agentes sociais que eram, em sua maioria, mulheres. Estas agentes atendiam

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os moradores em qualquer tipo de problema, desde vazamentos até brigas de

casal. É notório que através do cuidado com os moradores as agentes sociais

mantinham um grande controle sobre o cumprimento das normas do edifício,

inibindo a sublocação ou modificações nas tipologias dos apartamentos através

de reformas, o que era proibido.

Segundo depoimento de uma moradora mais antiga (SILVA, 2006, p. 75), até a

companheira de Reidy e engenheira de obras, Carmen Portinho, visitava os

apartamentos e palpitava na decoração, orientando as moradoras que não

enchessem os apartamentos com muitos móveis, o que tinha mais a ver com

os ideais de Le Corbusier do que com a cultura carioca. Carmen esqueceu-se

que o homem que habitaria os conjuntos residenciais modernistas ainda

guardava quinquilharias, enxoval de casamento, toalhas de crochê, estátuas de

santos e tantos outros tantos objetos inúteis que não combinavam com o

apartamento de linhas retas e limpas.

Toda essa regulamentação do cotidiano era parte de um projeto

totalizante, pedagógico e grandioso, mas tanto controle não resultou no

desejado homem clean, despojado de excessos e de ornamentos inúteis.

Quando a produção do documentário 3 Edifícios pesquisou um apartamento

maior, de quatro dormitórios, para a gravação, encontrou um domicílio ocupado

desde a inauguração do prédio pela família de numerosos filhos de um músico

da banda da prefeitura federal. O apartamento está impecavelmente

conservado e da enorme família restaram no apartamento apenas a esposa e

dois dos sete filhos. Ali foi possível perceber a qualidade espacial projetada por

Reidy. A luz, a ventilação cruzada, os armários embutidos na cozinha, uma

inovação para a época... Mas o mobiliário da família não tem nada de

modernista, os lustres da sala são de pingentes de cristal e de porcelana. As

louças e taças finas são guardadas em uma cristaleira rococó, com vidros

bisotés. A mesa de jantar tem pés torneados e as cadeiras de espaldar alto são

de veludo, sem contar os arranjos de flores artificiais e o cortinado de tule

bordado. Tudo neste apartamento destoava tanto das linhas limpas do prédio e

do modo de morar proposto por tal arquitetura, como também do estado geral

dos outros apartamentos visitados, já bastante desfigurados e subdivididos.

A desfiguração do ideal: monumentalidade à deriva

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A idéia de monumento que eu desejo apresentar é aquela que podemos encontrar no objeto arquitetônico: ser uma abertura, uma janela para uma realidade mais intensa, ao mesmo tempo que sua representação é produzida como um vestígio, como a badalada de um sino que reverbera após ter cessado de tocar; assim deve ser constituído como resíduo, como recordação.53 (SOLÁ-MORALES, 1999, p. 71)

Rua de pilotis do Pedregulho durnate a noite. Frame do documentário 3 edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda

Apesar da inauguração em 1950, o edifício residencial só ficou pronto

em 1962, quando a capital federal já havia sido transferida para Brasília e

Carlos Lacerda já havia assumido o governo. O terreno no qual foi construído o

Pedregulho era da prefeitura municipal e foi comprado, na época, pela

prefeitura do Distrito Federal do Rio de Janeiro. Com a transferência da capital

para Brasília, o terreno passou a fazer parte do patrimônio da União Federal.

Assim que Lacerda assumiu, apartamentos vazios foram distribuídos como

moeda de troca política para qualquer um, desrespeitando a regra condominial

que garantia que os moradores fossem antecipadamente apresentados aos

novos moradores que ganhavam a concessão de usos do apartamento. Os

critérios passaram a ser favorecimentos políticos, gerando a desmobilização

dos moradores, que eram agora vizinhos contingenciais. Já estava extinto o

53

Livre tradução: the idea of monument that i want to bring in here is that which we might find in an architectural object: for all its being an opening, a window on a more intense reality, at the same time its representation is produced as a vestige, as the tremulous clangor of the bell that reverberates after it has ceased to ring; as that which is constituted as pure residuum, as recollection.

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interesse do poder público pelo Pedregulho e pelos ideais utópicos que ele

representava. A administração do Conjunto passou de mão em mão até cair no

descaso.

Os apartamentos não pertencem aos moradores e ainda foi encontrado

um caminho legal para criar-se um condomínio de usuários ou moradores, o

que resulta na impossibilidade da manutenção predial. Em alguns pontos, a

estrutura de concreto começa a demonstrar fadiga pela umidade, e a

conservação das fachadas, a troca das janelas e a substituição dos elementos

cerâmicos é feita pelos moradores sem que haja unidade nos acabamentos;

cada um faz o que pode. O varal é na janela, melhor lugar para secar a roupa.

Varanda barroca: os cobogós

Em Le Corbusier, a promenade architectural não é uma diversidade, mas um itinerário que inclui a possibilidade de controle54. (SOLÁ-MORALES, 1999, p. 68)

Varanda do pedregulho com substituição de cobogós por tijolos baianos.

Frame do documentário 3 Edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda

De longe o edifício apresenta-se como uma ruína magnífica, magnética

e imponente, mas nada tem da frieza museificada dos monumentos

patrimonializados; a vida está instaurada e vaza pelas janelas que perderam as

venezianas de madeira ao longo das décadas. O que se mantém é o traço

arquitetônico magistral do arquiteto, concretizado na dignidade dos espaços de

54

Livre tradução: ―In Le Corbusier, the promenade architectural is not a diversity, bat an itinerary that admits the possibility of control‖.

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morar. Há uma força na arquitetura que mantém a coesão, e a qualidade

espacial é sensível e desejável pelos moradores.

No Pedregulho não há o fantasma do modernismo que assombra através da

vontade de manutenção do ―original‖, fato que ocorre no edifício Copan, em

São Paulo55. O Pedregulho afirma-se como experiência estética atualizada pela

fragilidade das construções de sentido que ali habitam. Não há espaço para a

nostalgia da pretensa solidez do modernismo - sistema que acreditava que sua

estética era portadora de uma experiência cervical - porém nos interessa sua

escavação, pois o espólio do Pedregulho é dos mais ricos possíveis, pois

continua recriando realidades sobre as ruínas ideológicas do moderno.

De acordo com Solá-Morales,(1999, p. 60 - 61) a apreensão estética é,

atualmente, um esforço prometeico; Quando achamos que é possível

apreender uma forma, é quando a perdemos, no instante antes da

compreensão; estamos sempre aquém da apoteose do encontro apaziguador

da unidade. A apreensão estética só pode ocorrer, segundo o autor, se for uma

experiência periférica, fragmentada, diluída nos acontecimentos comuns.

É somente dessa posição periférica que a estética continua a exercer sua influência sedutora, sua potência desveladora, sua capacidade de implicar, mais do que de constituir a apreensão intensiva da realidade‖. 56(Solá-Morales, 1999, p. 61)

55

Não queremos afirmar que a restauração do edifício não seja importante e que a precária informalidade em que vivem os moradores seja desejável. Desejamos iluminar o fato de que certas apropriações espaciais dos moradores repercutem diretamente, e de forma positiva, no edifício e que não podem ser descartadas em troca de um ideal formal do moderno. Há um uso bastante real que compõe a força estética atual do edifício e que deverá ser considerado no projeto de reforma e recuperação da construção. Como diz Sousa Santos (2009, p. 333), ―Nenhuma transformação paradigmática será possível sem a transformação paradigmática da subjetividade.‖ 56

It-s only from this peripheral position that the astetic continues to exercise its seductive influence, its power to unveil, its capacity to imply rather than to constitute the intense apprehension of reality.

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Foto da fachada com mosaicos de cobogós improvisados pelos moradores. O Globo, sem autoria

Contudo a vida no Pedregulho não virou as costas para o modernismo contido

no construído, forte demais para ser ignorado. Deu-se, de fato, uma conversa

com proveitos e concessões mútuas. Ali o modernismo já não se deseja centro,

portanto a conversa entre a utopia modernista do Pedregulho e as ocupações

informais do edifício é uma conversa entre margens.

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Trata-se da escavação das utopias (tratada no capítulo 2) como explica

Sousa Santos (2009, p. 332). Para o autor, as utopias chamam atenção para o

que não existe como contraparte excluída do existente em determinada época.

Ao mesmo tempo, Sousa Santos ressalta que o novo imaginado pela utopia só

pode estar atrelado ao que já existe, ―e que são, na verdade, quase sempre

meros pormenores, pequenos e obscuros, do que realmente existe‖ (SANTOS,

2009, p. 332). Dessa forma, a informalidade estava já contida no modernismo

do Pedregulho, naquilo que foi pensado para evitá-la.

O impressionante edifício, que desde os anos 70 já denunciava o descaso na

manutenção predial, foi vitimado por corrupção política e abandono e sobrevive

num grau de informalidade altíssimo, porém não há como chamá-lo de favela

vertical, mesmo porque a horizontalidade de sua linha é preponderante em

seus duzentos e sessenta metros de extensão para 06 pavimentos de altura. A

horizontalidade é ainda reforçada pela rua de pilotis - acesso aos blocos de

apartamentos – que corta o edifício pelo meio. São quatro pavimentos para

cima e dois para baixo, sendo que os quatro andares de cima são de

apartamentos duplex. O máximo que se sobe para chegar aos apartamentos

são três andares, o que excluiu a necessidade do elevador.

A ocupação real do prédio revolucionou completamente a cartilha

modernista, mas partes da utopia resistem. As varandas, antes corredores de

circulação, viraram propriedade coletiva, mas ao contrário do que desejavam

Reidy e Portinho, a área foi parcelada em alas. Cada ala tem um portão

chaveado e até campainha. Os moradores dizem que não é por medo de

violência de fora, porque o ambiente do edifício é seguro e tranqüilo, mas é por

causa das crianças, que usam a varanda para brincar e o portão trancado

ajuda no cuidado e assim as portas dos apartamentos podem ficar abertas o

dia todo.

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Portões das que limitam acesso público às varandas. Foto de Helga Silva

Esse parcelamento nos parece uma iniciativa importante, que apesar de

macular a idéia de circulação desimpedida do modernismo, agencia uma rede

de solidariedade importante para a vida do edifício. As crianças são

aglutinadores da coletividade do Pedregulho. Os pais e avós revezam-se no

cuidado de todas as crianças da ala, extrapolando as organizações parentais

tradicionais. Na varanda se aproveita do sol, os velhos colocam cadeiras e

mesas, as crianças correm e muitas portas dos apartamentos ficam abertas o

dia todo. Há a manutenção de uma sociabilidade solidária, necessária para

viver em conjunto, que se acomodou confortavelmente na varanda, usufruindo

da luminosidade fantástica que atravessa pelos cobogós.

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O cobogó, cabe explicar, é um elemento cerâmico vazado, provavelmente

inspirado pelos musharabis árabes, que foi muito utilizado na arquitetura

moderna brasileira para amenizar o calor, vedando sem fechar, contribuindo

com a desejável circulação cruzada do ar e filtrando a luz nas horas mais

incisivas. Os desenhos dos elementos criam mosaicos riquíssimos e sombras

não menos surpreendentes. O cobogó é um elemento barroquizante,

incrustado definitivamente na cultura brasileira, assim sendo, reafirmamos o

que Carpentier (1982, p. 12) dizia ser um pendor americano para uma relação

sensualizada com a natureza (esconder, revelar) e que Lezama (1988, p. 81)

nos faz desfrutar através do Sr. Barroco, no pleno domínio da paisagem latino-

americana, coincidentemente através de sua varanda. Dessa forma, assimilada

sua eficiência em apaziguar os rigores da luz e do calor tropical, os rendilhados

que produzem são da ordem da poesia e tanto a arquitetura modernista

brasileira como a arquitetura anônima e popular souberam tirar partido dela.

Podemos encontrar cobogós em fachadas de monumentos públicos do Brasil

inteiro como em casas interioranas e nas áreas de serviço dos prédios, etc.57

Muitos dos cobogós do Pedregulho, pela falta de manutenção predial,

estão soltos da fachada e os pedaços que caem são grandes, abrindo buracos

nas fachadas e se esborrachando nas áreas circundantes do prédio, o que é

bastante perigoso para as crianças que brincam nas varandas (que podem

despencar junto com os grumos cerâmicos) e para as pessoas que circulam

pelo lado de fora do edifício, que podem ser atingidas pelos destroços.

Os cobogós de Reidy, fabricados especialmente para o edifício, não

existem mais. Os moradores, no entanto, sabem apreciar a maravilhosa

qualidade da luz filtrada pelos elementos cerâmicos, e improvisam substituindo

os pedaços que caem por materiais semelhantes, com um custo viável. Os

moradores poderiam fechar com vidros, emparedar totalmente parcelas de

varanda, mas não o fazem. O material escolhido pelos moradores é o tijolo

57 Apesar da palavra cobogó parecer de origem indígena é, na verdade, o conjunto das iniciais

dos sobrenomes dos três engenheiros de Recife que conjuntamente idealizaram o elemento vazado, originariamente feito em cimento: Amadeu Oliveira Coimbra, Ernest August Boeckmann e Antônio de Góis.

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baiano, que tem a mesma cor e textura dos cobogós e do jeito deles tentam

preservar o que é bom. Reconstituir a fachada do Pedregulho com os

elementos originais será importante, mas não há como não admirar os

mosaicos criados a partir dos tijolos baianos, empilhados de modos diferentes,

provocando sombras e texturas diversas, em diálogo com o antigo.

Vista da rua de pilotis. Frame do documentário 3 Edifícios. Imagem de Marcelo Lacerda.

No final da noite, um pouco antes do amanhecer, a equipe do documentário,

exaurida de tanto percorrer os duzentos e sessenta metros de edifício, subindo

e descendo escadas, teve um sobressalto. Três rastros de luz, quase

simultâneos, traçaram zunindo linhas paralelas ao edifício, na altura da rua de

pilotis. Eram balas das armas de fogo dos traficantes contra os policiais, ou

vice versa, não importa. Corremos para nos esconder atrás dos pilotis,

agachados, com medo de bala perdida.

Ao amanhecer, o resultado do confronto entre o tráfico e a polícia era a

paisagem panorâmica vista do alto do morro, no parapeito da rua de pilotis: três

colunas de fumaça. Foram dois ônibus queimados e um helicóptero da polícia

derrubado por armas militares em posse dos traficantes. A Avenida Brasil

estava interditada pela polícia e pelos bombeiros. No entanto, a violência

parecia estar longe dali, a atmosfera domingueira do prédio era tranqüila, como

sempre, e o confronto entre a polícia e os traficantes era apenas notícia.

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A equipe tomou café da manhã vendo simultaneamente a repercussão dos

acontecimentos pela janela e pela televisão. Ao terminarmos a gravação,

exatamente ao meio-dia, não tínhamos vontade de ir embora. Ficamos

bastante tempo sentados, comendo juntos, trocando impressões sobre o prédio

e conversando com os moradores. Recolhemos os equipamentos sem pressa,

com pena de perder aquele gosto bom, inexprimível.

Favela Vila Praia

Vila Praia: a véspera do amanhã

Foto de Marcelo Min desde a Avenida Luis Migliano.

A constatação da emergência de revoluções sociais que distribuam de

forma menos desigual as riquezas materiais tem sido paralisante para mim,

porque fica evidente que a máquina da organização socioeconômica,

onipresente como macroestrutura mundial, tem como verdadeiro e potente

motor a manutenção dessa desigualdade. É frustrante conviver com a

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impossibilidade de se alterar o estado das coisas em escala sensível. Todas as

grandes revoluções urbanísticas do passado, hoje, parecem pequenas e

insuficientes para resolver as emergências humanas mais básicas, que já

deveriam ter sido superadas dado o estágio tecnológico e intelectual em que a

humanidade se encontra.

No entanto, a produção acadêmica em torno das questões relativas aos

desdobramentos das pobrezas é infindável e se parece com a multiplicação do

―mesmo‖. Na angústia de querer mover algo em outra direção, aqui estamos

nós, no mesmo fluxo acadêmico, mas, honestamente, desejando enxergar não

o que deve ser feito, mas em como pode ser pensado o objeto favela Vila Praia

a partir de seus aspectos potentes, germinais, de urbanidade.

Quando escrevemos acima a palavra pobreza no plural foi por

acreditamos que a pobreza não seja única, uma idéia genérica da qual se

possa falar no singular. Há diversas pobrezas, diferentes umas das outras.

Torná-la uma idéia geral é achatar suas variações, tratando todas da mesma

forma. De modo análogo, as questões que se avizinham da pobreza também

são coladas a ela como desdobramentos ―naturais‖ de sua ocorrência. A

violência é um exemplo evidente desse mecanismo redutor. Dessa forma o

pobre será sempre e somente pobre, além de potencialmente violento.

Lícia Valladares58 (VALLADARES, [s/d], p. 17) diz que, assim como a

pobreza, as favelas também são tomadas como uma identidade espacial, ou

seja, uma unidade que representa o território da pobreza por excelência, não

importando nem o local de sua ocorrência nem sua população específica. Uma

vez que áreas sejam classificadas como favelas, elas permanecem favelas

mesmo que suas questões fundiárias e de infra-estrutura recebam melhorias

significativas. ―O que era inicialmente definido como um tipo de estrutura

urbana permanece favela por causa de sua identidade social, supostamente

permanente, como favela‖. (VALLADARES, [s/d], p. 22)

58

VALLADARES, LÍCIA. Social science representations of favelas in Rio de janeiro: a historical perspective. Disponível em: <http://lanic.utexas.edu/project/etext/llilas/vrp/valladares.pdf>. Acesso em: agosto de 2010.

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A autora (VALLADARES, [s/d], p. 11) diz que o meio acadêmico

participou ativamente na concepção desta idéia, visto que a Universidade

brasileira, tradicionalmente sensível à situação política, envolveu-se fortemente

na busca de explicações para a evolução do crime e da violência nas cidades

brasileiras ao longo das últimas três décadas. Valladares ([s/d], p. 15 - 18)

realizou uma pesquisa detalhada sobre a produção acadêmica em torno do

objeto favela no Rio de Janeiro, ao longo dos últimos trinta anos, que, segundo

a autora, foi profusa em temas e disciplinas envolvidas; mas os trabalhos

acadêmicos concentraram-se em um número restrito de favelas. São várias as

hipóteses que a autora levantou para explicar a causa dessa preferência por

um determinado grupo de favelas, mas o dado que nos chamou a atenção foi

que, segundo suas observações, a favela é mais estudada tanto maior a

notoriedade da ocorrência da violência das batalhas em torno do tráfico de

drogas. Ao mesmo tempo a autora (VALLADARES, [s/d], p. 13) percebe que

nos estudos acadêmicos analisados por ela, o interesse por assuntos ligados

às características demográficas e sociais específicas dos residentes das

favelas foi se tornando cada vez mais raro.

Uma das conclusões a que podemos chegar é que a academia pode ter

colaborado com o reforço da identidade negativa do objeto favela e uma das

causas desse resultado é a longa tradição comparativa nos estudos

promovidos pelas universidades brasileiras. Segundo Valladares ([s/d], p. 24),

mesmo quando, por exemplo, a abordagem sociológica de uma favela tem em

vista a valorização de aspectos positivos tais como a participatividade dos

moradores, suas habilidades políticas, as relações de solidariedades entre as

vizinhanças, o contraponto é geralmente através da denúncia da ausência

destes aspectos positivos em outra favela. Afirma-se a positividade de um

através da consolidação imperativa do contrário do que se quer apresentar: a

idéia de que a favela é o lugar próprio – no sentido de apropriado - do pobre. E

o que pensamos é: como foi possível uma comunidade ou pessoa “ser boa”

nessas condições?

Por esses motivos escrever e emitir juízos sobre a favela Vila Praia

exige um compromisso que vai além da narrativa do observável nesta pequena

favela, localizada no bairro do Morumbi, em São Paulo. Temo usurpar uma

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situação extremamente singular, que é a vida na Vila Praia, para fazer um

encaixe - talhado com minhas próprias expectativas - que entrelace a teoria

com a vida. O desafio está em verificar em que medida e de que modo as

conexões, das quais me servi até agora, entre autores, vindos de variados

campos do conhecimento (literatura, semiótica, antropologia, filosofia) se

sustentam – ou não se sustentam - em situações de incerteza, como é o caso

do momento atual da Vila Praia.

Situação 1: o fogo

Favela Praia, miolo do quarteirão devastado pelo fogo. Foto Marcelo Min

A favela em questão sofreu um incêndio em junho deste ano que, apesar

de não ter afetado materialmente a parcela que eu desejava abordar nesse

capítulo, modificou as relações nas quais eu apostava: a relação dos

moradores da favela com a Avenida Luis Migliano, local onde a favela faz

fronteira com a cidade formal. O fogo consumiu o miolo da favela, que era

constituído por barracos de madeira ou de construção mista. As demais casas,

que fazem uma divisa compacta com a avenida, pouco sofreram. A destruição

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só é visível para quem adentra a favela pelos corredores constituídos entre os

barracos.

Nesse momento da vida da Vila Praia, as forças que parecem ter poder

para selar o destino da favela são aquelas conseqüentes do recente desastre59;

são as forças desmobilizadoras, as mais visíveis diante da destruição e das

determinações do poder público.

A prefeitura logo deu as cartas, aproveitando-se da destruição de 25%

da favela, que está situada numa área de interesse imobiliário bastante

aquecido. A prefeitura proibiu os afetados pelo incêndio de reconstruir no local,

por ser uma área alagada pelo deságüe de uma mina vinda do terreno ao lado.

Foi prometida a canalização da água e a construção de uma área de lazer para

as inúmeras crianças da favela. Foram pagos R$ 1.800,00 por família

desabrigada mediante a assinatura de um recibo de ajuda de aluguel de três

meses, mas não há previsão de realocação das pessoas em programas

habitacionais existentes na região. Os desabrigados estão dormindo por lá

mesmo em casa de parentes e amigos, em bares ou mesmo nos corredores e

vielas.

O entulho está concentrado no centro da favela e virou pátio para as

crianças, que brincam em meio aos destroços de suas próprias casas e da

água imunda. A prefeitura alega que para limpar a área precisaria derrubar

duas ou três casas que fazem divisa com a avenida para poderem entrar com

as máquinas, já que não há acesso largo o bastante para a passagem de

tratores e caminhões. O curioso é que a favela, de cerca de apenas 2.000

metros quadrados, faz divisa com um enorme e valioso terreno desocupado.

Para a entrada das máquinas bastaria derrubar o muro que os separa e depois

reconstruí-lo. Não faz muito sentido desalojar mais três famílias ao invés de

reconstruir um muro, a menos que o interesse seja de abrir um flanco para a

59

Há um estudo em andamento que contabiliza, de janeiro de 2008 até agosto de 2010, mais de 176 incêndios em favelas de São Paulo, de acordo com o Corpo de Bombeiros. O jornal Folha de São Paulo afirmou (caderno Cotidiano, sábado, 14 de agosto de 2010) que seus jornalistas apuraram em abril do ano passado que moradores de favelas( grifo meu) colocam fogo para receber dinheiro da prefeitura.

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demolição completa da favela. Apesar de ninguém ter falado ainda a palavra

―remoção‖, a ameaça paira no ar.

Vila Praia depois do incêndio. Foto Marcelo Min

Favela Vila Praia após o incêndio. Foto Marcelo Min

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A relação dos moradores com a avenida esfriou. Desconfiança,

insegurança e medo acompanham certo esvaziamento das ocupações de vida

na avenida. A Vila praia não se organizou em torno de uma liderança ou de

movimento pró-moradia; até agora não sentiram necessidade de lutar em

conjunto, ou separadamente, por nenhuma melhoria ou reivindicação, a não

ser por uma rápida manifestação, que gerou bastante mídia, bloqueando a

avenida depois do incêndio para cobrar apoio da prefeitura. Assim que

receberam o dinheiro, o compasso tornou-se o da espera.

Situação 2: o íntimo alargado

Usos impertinentes de espaços públicos

Vila Praia. A calçada é lavanderia e quintal. Foto Marcelo Min

Ainda que a diminuição da vitalidade na ocupação da Avenida Luis Migliano por

parte dos moradores da Vila Praia seja a camada de realidade mais

imediatamente sensível (mais visível quanto maior a comparação com o

período anterior ao fogo), a implantação entrincheirada da favela em uma

antiga praça, com as fachadas alinhadas diretamente com o asfalto da avenida,

ainda é uma imagem muito potente que atiça a discussão acerca das fronteiras

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entre espaço público e privado e as apropriações que subvertem estas

relações, transformando os espaços em territórios.

A sarjeta é salão de beleza. Favela Vila Praia. Foto de Marcelo Min.

Lavanderia na beira do asfalto. Favela Vila Praia. Foto Marcelo Min.

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Fachadas das casas da favela Vila Praia. Foto de Marcelo Min.

Varal na calçada oposta. Foto Marcelo Min

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Localização da favela Vila Praia em relação aos prédios de alto padrão. Disponível no site Google Earth

O Entulho foi organizado por moradores no meio do terreno, mas não tem por onde ser retirado.

Prédios de classe média alta ao fundo. Foto de Marcelo Min

Os vizinhos da Vila Praia são edifícios de classe média alta do bairro do

Morumbi, empoleirados no alto dos morros e que espiam de cima a

movimentação da favela. Estes prédios de alto padrão são ilhas de segurança

e lazer concebidos dentro dessa lógica, basta ver a foto aérea - formatados

segundo a cartilha neoliberal, que estimula a privatização do solo em políticas

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não participativas. As justificativas para remoções de favelas são a renovação

urbana e a segurança, tanto para os ―favelados‖ como para os ―incluídos‖.

Os empreendimentos imobiliários atuais apostam em afirmar uma cidade

fora dos muros que não vale a pena. Com as promessas dos condomínios

fechados – segurança 24hs, ―lazer de clube‖ - não será mais necessário

relacionar-se com a cidade, além da garantia de simetria nas relações

intramuros, determinadas pela homogeneidade dos padrões socioeconômicos.

Não se vende apenas um apartamento, mas uma idéia de mundo, atrelado a

certo padrão de consumo.

Muitas moradoras da favela trabalham nesses prédios, na função de

empregadas domésticas, faxineiras, cozinheiras, etc. Uma delas nos contou do

desespero de ver o fogo consumir sua casa da janela do apartamento da

patroa. Hoje ela se aperta com suas duas filhas pequenas na casa do filho

casado, que também teve o segundo andar de sua casa, feito de madeira,

consumido pelo fogo.

A cota das casas da Vila Praia raramente ultrapassa o segundo andar.

Pela foto aérea podemos observar a alta densidade da ocupação horizontal

antes do incêndio. Não havia ruas internas visíveis, nem pátios. A circulação se

dava por corredores que se formam passando praticamente por dentro dos

barracos - e agora há aquele imenso pátio de destroços e água suja. Mas a

textura que se vê da avenida é a de um casario simpático, quase cenográfico,

de pequenas casas de alvenaria, muitas coloridas, outras com soluções

construtivas curiosas, alguns bares, carros velhos estacionados e roupa lavada

pendurada por toda parte.

As casas foram se amontoando sem recuos até a beirada da via pública

e, se houve anteriormente uma faixa destinada ao passeio, ela foi

paulatinamente ocupada por ampliações dos espaços das moradias. Tornaram-

se lavanderias, salas, espaços para guardar bicicletas. E os moradores que

possuem veículos os estacionam em frente às suas casas, roubando um pouco

mais do espaço viário. É interessante notar que a circulação de pedestres pela

rua obedece a uma faixa invisível de asfalto, regulada apenas pelo bom senso,

tanto dos motoristas quanto dos pedestres. Os carros passam sempre a partir

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dessa linha invisível por onde circulam pessoas e muitas crianças.

Estabeleceu-se uma margem de segurança através de um acordo tácito de

respeito aos pedestres. Uma calçada direto no asfalto.

Outra peculiaridade deste tipo de favela em beira de vias públicas é que

a fronteira entre os espaços íntimos e o espaço público são as finas paredes.

Ao passarmos de carro pela Avenida Luis Migliano, podemos observar as

atividades mais prosaicas, que normalmente se inscrevem dentro dos espaços

estritamente privados do lar. No final de semana as faxinas, o ócio, a vaidade

escapam pelas portas. Os homens lavam os carros, as mulheres lavam e

penduram roupas no varal, fazem da sarjeta salão de beleza, ponto de

encontro e muitas portas permanecem abertas o dia todo. Há uma

permeabilidade muito maior entre o fora e o dentro, o que também implica em

uma maior vivência festiva da coletividade e dos espaços externos do que na

contrição da cidade formal.

As forças que a Vila Praia coloca em campo são práticas urbanas que

merecem atenção, não no sentido do perigo que a cidade formal denuncia, mas

naquilo que a cidade murada desaprendeu sobre a cidade vivida e que, aos

poucos, foi assimilando os atritos naturais da experiência da urbanidade como

fatores de risco e de medo.

Mas o desafio que está posto é o estabelecimento de um espaço ―entre‖

as duas cidades, uma fronteira no sentido de Lotman, na qual textos estranhos

entrem em contato para a criação de um terceiro texto, não uma síntese, mas

uma conversa.

Ao observar durante anos a inserção da favela naquele local, o objetivo

era a escuta e a amplificação dos aspectos positivos das urbanizações

informais, tais como a coletividade, a ocupação da rua e as relações espaciais

voltadas para o aberto, acreditando que há forças politicamente ativas que

desmontam as retificações do estado com ações simples, tais como portas

abertas para uma avenida - que teve sua velocidade reduzida pela simples

percepção de uma espacialidade singular. O que nos leva a pensar que estas

ocupações perduram não apenas por descaso do governo, mas porque há um

―comum‖ a ser defendido - o direito de habitar, o direito à cidade e ao usufruto

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dela, para além dos espaços públicos hiper-codificados, tais como praças,

parques e locais de consumo cultural. Favelas como a Vila Praia são espaços

não reclamados por nenhum projeto de cunho social, mas que desperta

interesse comercial por localizar-se em ilhas urbanas de solo valorizado, com

sólidos investimentos da construção civil. A favela é um impedimento, mas

pode ser uma grande oportunidade para investidores, por ser pequena e

facilmente removível.

Mas depois do incêndio parece que a escuta captou uma emergência: a

Vila Praia ainda não despertou para o risco de seu desaparecimento. Há a

necessidade imediata de refazer a conversa com a ―cidade maior‖. Será

preciso que se organizem em torno de um objetivo político, aprender sua

jurisprudência, lutar pela permanência.

Porém, ainda que permaneça, o que deverá ser negociada é a forma de

permanência. A política neoliberal prevê que o direito à cidade consolida-se

através do direito de posse do solo urbano, mas entendemos que a

propriedade não garante a permanência e valorização de certos mecanismos

importantes da informalidade, que não vão desaparecer nem ter sua

importância diminuída pelo simples fato da posse da casa.

O primeiro destes dilemas consiste em como fazer para integrar, formalizando, um tipo de espaço urbano cujas características aparecem totalmente imbricadas com uma economia popular que prospera e se reproduz com a marca da informalidade, quando não, da ilegalidade no sentido forte do

termo.60

(DUHAU, 2003, p. 9)

Há naquela clareira gerada pelo fogo signos, tanto do fim da favela como

de seu fortalecimento. Ainda é cedo para saber.

Em tempo: O fotógrafo Marcelo Min me enviou um email ontem, 17/08/2010,

dizendo que os bares da favela continuam a ser lacrados pela prefeitura: ―O

pessoal da Vila Praia me ligou hoje. Disse que a prefeitura estava

lá, com força policial e tudo para fechar todos os bares (e as casas

que ficam em cima)”. As casas que ficam em cima são residências, mas o

60

DUHAU, EMILIO. La ciudad informal: el orden urbano y el derecho a la ciudad Disponível em: <http://free-books-online.net/LA-CIUDAD-INFORMAL-EL-ORDEN-URBANO-Y-EL-DERECHO-A-LA-CIUDAD-pdf>. Acesso em: agosto de 2010.

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morador, para entrar em casa, precisa necessariamente passar pelo bar. Como

é que vai ser agora?

O comércio da Vila Praia atende somente a população da favela, que é

bem pequena, situação bastante diversa da favela Paraisópolis, bastante

próxima dali, onde o comércio florescente atraiu prestadores de serviços do

mercado formal para dentro da favela, comportando empresas tais como o

banco Bradesco, Casas Bahia, posto de saúde do hospital Albert Einstein e

muitas ONGs. A concessão de áreas para estas atividades regulares tem que

ser negociada, pois a situação fundiária ainda é informal. A grande diferença

entre as duas favelas está no poder de atração que a economia informal pode

gerar para a economia formal. Neste caso é verificável a hipótese de Torroja,

que diz que61(...) ―o informal pode muito bem surgir e ser criado inclusive a

partir do formal e supostamente já estruturado, e talvez o formal só possa

mesmo existir como parte da informalidade generalizada‖. (2005, p. 65)

Rua 25 de março

Trabalho, festa e guerrilha nas ruas

Na rua dos sentidos é somente andar, olhar, ouvir, cheirar. Será interessante

arriscar-se em elevadores antigos, pequenos e sacolejantes, com portas

pantográficas de uma São Paulo vestigial para comprar toda espécie de

miçanga, vidrinhos coloridos e artigos religiosos, maquinários de relógios,

ponteiros e tantas outras partes para montar coisas. Nada se vê do antigo porto

fluvial que justificou o nome da rua contígua, a Ladeira do Porto Geral, fica

difícil imaginar pra onde foi tanta água. O formigueiro humano que se configura

diariamente naquela região próxima ao Mercado Municipal é um enclave de

festim urbano na cidade de São Paulo.

O Estado muda as táticas de controle do comércio informal e da pirataria

diariamente, pega daqui, escapa dali. Os ambulantes reagem com

solidariedades momentâneas na hora do rapa. São diariamente reprimidos,

mas também diariamente reinventam a ocupação da rua. Não adianta colocá-

los em áreas separadas e planejadas. Eles reclamam a permanência na rua, a

despeito da precariedade e do desamparo social.

61

TORROJA, PÍO. Cinzento público americano. Publicado em 2005. Disponível em: <http://www.seacex.es/Spanish/Publicaciones/POST_IT_CITY_CIUDADES_OCASIONALES/Post-It%20City.%20Occasional%20Urbanities.pdf>. Acesso em: maio de 2005.

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As fotos de Marcelo Min feitas na Rua 25 de março no final do dia estendem o

olhar para depois do caos dos pregões e rapas. Novas configurações

acontecem a partir do cair da tarde.

Os ritmos exprimem o desigual, como apresenta Richard Pinhas: ―é o ritmo impulso desigual e complexo que efetua a simbiose da música e dos elementos. O ritmo ou desigual torna sensíveis as vibrações‖. Porém, Deleuze adverte que o caos não é o contrário do ritmo, ele será o meio dos meios. ―O que há de comum ao caos e ao ritmo é o entre-dois, entre dois meios, ritmo-caos, ou caosmos: entre a noite e o dia, entre o que é construído e o que cresce naturalmente, entre as mutações do inorgânico ao orgânico, da planta ao animal (...) O ritmo é crítico, liga a passagem de um meio a outro e trabalha por blocos heterogêneos. Os esgotamentos e as intrusões do caos sobre os meios ganham ritmos e estes se produzem entre dois meios, são devires. É no meio que o ritmo é produzido. O meio, então, se constitui de uma repetição produtora‖. Rodrigo Carqueja de Menezes62

Uma crônica publicada por Rubem Braga63 ilustra como em 1935 o embate

entre ambulantes e comerciantes, proprietários e despossuídos, entre a força e

a astúcia já estava instaurado. A narrativa tem os desfavorecidos

representados pelos engraxates, figuras então muito presentes nas praças,

marquises, galerias e barbearias do centro. Já os donos de barbearia

representam o comércio formal incomodado com os ambulantes.

Rubem Braga nos faz percorrer com ele um trecho central muito conhecido da

cidade, conduzindo o leitor até o lugar do conflito entre ambulantes e

comerciantes.

A São Paulo, Avenida São João. A vida em São Paulo está

barata. Vemos ali sandwiches de queijo ou de presunto a

duzentos réis. A avenida é larga, é bella, cheia de gente e de

barulho. Desçamos no meio da turba. Na praça do Correio

existe a estatua mais feia da America do Sul. É de Verdi. Amo

este trecho entre a praça do Correio e o largo Paissandu.

Vinde ver os engraxates. Aí, engraxates de São Paulo! Aí,

62

Rodrigo Carqueja de Menezes. Revista Eletrônica COMUM num. 26. Disponível em: <http://www.facha.edu.br/publicacoes/comum/comum26/artigo3.pdf>. Acesso em: junho de 2010. 63

BRAGA, Rubem. Engraxates de São Paulo: Folha da Noite, domingo, 14 de abril de 1935. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/almanaque/rubembraga1.htm>. Acesso em: 17 de out. de 2009.

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sobretudo engraxates volantes de São Paulo! Engraxates

civis, engraxates militares.64

(BRAGA, 1935).

Então Rubem Braga entra numa barbearia da época para nos mostrar um

mundo que não existe mais. São oito os barbeiros e mais ao fundo duas

manicures. Ao lado delas um homem com a importante tarefa de renovar,

limpar e lavar chapéus. À frente, quase na calçada, os engraxates contratados,

quinze ao todo, os tais que o autor chama de ―engraxates militares‖, com o

uniforme da casa. Embora sejam tão miseráveis quanto os ambulantes

perseguidos pela polícia, os ―engraxates militares‖ sentem alívio por não

estarem, pelo menos naquele dia, na pele dos miseráveis ambulantes.

Os ambulantes são os engraxates volantes, os chamados ―engraxates civis‖

pelo autor, que trabalham de cócoras, que vestem farrapos. São aqueles que

(...) estão na rua, e sabem a technica do combate de rua. Sabem jogar pedra, jogar xingamentos, provocar, fugir, voltar, vaiar, atormentar. O homem [o dono da barbearia, que contrata os engraxates militares] teme a concorrência dos engraxates volantes. Além de tudo - affirma - elles não pagam licença. De modo que um commerciante honesto que paga a sua licença fica prejudicado por esses vagabundos. (BRAGA, 1935).

Rubem Braga conclui que a vida não é justa, e que os engraxates de todos os

tipos, todos vivendo miseráveis vidas, deveriam unir-se. E pensa revoluções,

enquanto seus sapatos são engraxados pelos ―engraxates militares‖, sempre

esperando gorjetas que dêem sentido à miséria de suas vidas.

É humilhante. Humilhante? Quem foi que disse, poeta, que isso é humilhante? Humilhante é a vida. Será que não ha um meio de concertar a vida? Deve haver. Tenho meditado sobre esse assumpto. Nós faremos muitas coisas pouco recomendáveis e contra os sentimentos do povo brasileiro, que em sua enorme maioria é catholico, ordeiro e syphilitico. Com excepção dos tuberculosos e de outros. As balas das metralhadoras ferirão os caules das rosas suaves. Mas agora não. Agora o melhor é mandar engraxar os sapatos enquanto se medita. (BRAGA, 1935).

64

A grafia da época foi mantida.

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Engraxates no centro de São paulo. Foto de Deltafrut, no flickr.com

Mas os ―civis‖ foram vencidos pelos ―militares‖? Todos foram vencidos pelas

evoluções do capitalismo. As grandes barbearias foram vencidas pelas

multidões sem paletós, usando sapatos nobuck, tênis esportivos, sem gravatas

nem chapéus, que fizeram encolher a presença dos engraxates do centro. Os

―engraxates militares‖ foram para o ―olho da rua‖, literalmente. Há atualmente

algumas cadeiras de engraxate localizadas na praça D. José Gaspar, que

existem graças à luta da Associação dos Engraxates em Vias Públicas no

Município de São Paulo, porém com um detalhe - os engraxates devem

trabalhar em cadeiras padronizadas. Os ―engraxates civis‖ continuam pobres,

em geral são ainda crianças, circulam com caixas improvisadas.

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Cidadania latino-americana: a nódoa móvel na cidade

Homem descansa em canteiro durante uma passeata do MSTC , movimento social pró-moradia no centro de São Paulo. Foto Marcelo Min

Um território debilmente governado não significa, a priori, que seja uma terra de ninguém, mas sim que os sistemas de registro mais interligados e densos, os estatais e os legais, deixam vazios, ou seja, não quer dizer que haja uma ausência de lei ou de sociedade, mas sim que se trata de lugares e situações onde os sistemas de registro apresentam zonas de ligação fracas,...65 Pío Torroja (2005, p. 65)

A cidade, pensada de acordo com Manuel Delgado (Sociedades

Movedizas), é tudo o que existe de estável no urbano, logo podemos pensar

que a cidade dedica-se à permanência do seu patrimônio construído, mas

também à manutenção das instituições que regulam a vida de seus

moradores. O Estado coloca-se então no papel de representante-mor da

cidade, pois é quem traz para si a tarefa de criar e por em andamento os

dispositivos reguladores que faz a cidade perdurar. (TORROJA, 2005, p. 64).

65

TORROJA, PÍO. Cinzento público americano. Publicado em 2005. Disponível em: <http://www.seacex.es/Spanish/Publicaciones/POST_IT_CITY_CIUDADES_OCASIONALES/Post-It%20City.%20Occasional%20Urbanities.pdf>. Acesso em: maio de 2005.

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Torroja diz que a cidadania - um tema complexo e inesgotável, somente

apontado aqui como um prelúdio às questões da informalidade - indica uma

inserção do habitante em um território através de sua inscrição em diversos

dos sistemas regulamentadores do Estado. Existe a chamada ―luta pela

cidadania‖, o que significa lutar por existir na cidade, mas o que o autor afirma

é que na América Latina a cidadania não pode ser facilmente definida, pois não

é nem mesmo definitiva.

Isto é importante, uma vez que grande parte da população latino-americana não é cidadã no sentido tradicional, o seu registro é cinzento: gradual, ambíguo, contraditório e intermitente. (...) Nesse ponto, se quisermos entender como o público se manifesta na América, teremos de ter a precaução de evitar o juízo comum de que este caráter gradual e contraditório seja um defeito. A idéia de um cinzento, de um caráter gradual, põe em evidência o fato de que os processos de formalidade e informalidade não sejam substanciais, mas sim relacionais, e de que não possam ser localizados definitivamente. (TORROJA, 2005, p. 65)

O autor dá o nome de zona cinzenta para a cidadania latino-americana, como

se esta fosse um dégradé, melhor dizendo, uma passagem gradual de um tom

para outro, de um estado para outro. Essa comparação suaviza demais a idéia

da cidadania latino-americana, tão interessante que o autor nos traz. Ora, mais

do que um dégradé, a imagem da mancha contém todos os quesitos para

representar nossa cidadania amorfa e móvel, resultado contingencial do

derramamento de informalidades. De novo é o movimento do maior para o

menor, ―entre a vida no território e a vida dentro do Estado‖ (TORROJA, 2005,

p. 65), do formal para o informal e vice-versa. Mas o autor avisa que as

transações entre o ―formal e o informal‖ não são reflexos apenas da pobreza e

da exclusão. Nunca será, segundo Torroja, uma separação radical: pobreza e

gagueira civil de um lado e riqueza e legalidade de outro.

A mancha cidadã instaura-se nos territórios geometrizados do

Estado através de mini-governanças relacionais: solidariedades homem-a–

homem, alianças fracas pelas emergências e às vezes até através da pequena

corrupção: excluídos, invisíveis, pactuam-se com funcionários e fiscais de

menor categoria, vizinhos, ativistas e pastorais. Estes pactos, muitas vezes,

salvam só o dia.

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Está claro que nosso modelo de Estado, ao menos na América, não

determina as representações do ―público‖, embora seja um dos atores mais

fortes. ‖É um dos peões principais, mas não é um tabuleiro‖ (TORROJA, 2005,

p. 65). O ―público‖ na América Latina é, para o autor, uma emergência, o

imprevisível que se mantém como crítica viva e mutante ao projeto, ao

planejamento.

A rua-bazaar: o oriente somos nós

Rua 25 de março. Foto de Sérgio Alberti, no flickr.com

[o barroco] assume o caráter inquieto do contexto social, via linguagem, fazendo do tecido estético um ícone da loucura que vivemos. Nessa operação, recupera a fala do Outro, do excluído, do marginal. Cláudio Daniel66

A tradição urbana de comércio ambulante é, segundo Díos (2004), parte

da América profunda que se apropria de ruas e de praças para viver e

sobreviver na cidade. Esta tendência, já presente nas culturas ameríndias de

colonização espanhola, juntou-se às contribuições coloniais ibéricas e

mozárabes. Segundo Díos (2004), os colonizadores que chegaram ao

66

DANIEL, Cláudio. A escrita como tatuagem. Disponível em: <http://www.elsonfroes.com.br/cdnbaroc.htm>. Acesso em: agosto de 2010.

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continente nos primeiros tempos já se deparam com um forte comércio de rua,

feiras ao ar livre que posteriormente equiparam-se com barraquinhas à moda

das feiras de Medina. Bernal Diaz Castillo comentou o mercado de Tlateloco,

no México; Pedro de Cieza y de León comenta animado sobre a feira de

Potosí.

A través de las ferias de Medina del campo o de las granadinas se transmitió a América, a su vez, la tradición moura del comercio ambulante, com sus caballetes, sombrillas, toldos y tenderetes que coexistiron com las mantas, petates y huacales indígenas. De alguna manera, se compartia así la fruición de lãs callejuelas de la casbah de Túnez o de Argel, com los vendedores de dátiles, túnicas y baratijas, com los que leen el Coráno el diário a las ruedas de vecinos analfabetos, com los bebedores de te verde y los fumadores de narguile. (...)Qué distancia trazar entre ambular por allí y caminar hoy las calles densas, morenas de Cartagena de Indias, com las pregoneras de papaya e ciruela verde, las de cocada de piña y panela, los vendedores de loteria, los cafés y el Portal de los Escribanos que redactan cartas de amor y declaraciones de impuestos? Cuan distintas se nos puedem presentar la plaza-mercado de Djema‘a el-Fna en Marrakech, tan maravillosamente descripta por Juan Goytisolo y la Chichicastenango en Guatemala? 67 (DÍOS, 2004)

Toda esta textura de personagens urbanos e materiais culturais, que Díos faz

conviver e traduz, não discrimina o que é ―alto‖ do que é ―baixo‖ na cultura,

porque quer evidenciar que a cultura é o conjunto que se arranja a partir destas

diferenças e, portanto, quanto mais heterogêneos os elementos, mais ricas as

sintaxes, as traduções. Assim é o barroco no urbanismo de nossas cidades.

―Traduzir/deglutir alteridades próximas e distantes, transitar entre um

cosmopolitismo sem fronteiras e um americanismo feito de matizes e rizomas‖

67

Livre tradução: Qual distância traçar entre perambular por aí e caminhar nas ruas densas, escuras de Cartagena das Índias, com as ―pregoneiras‖ de papaya e de ciruela verde, as de cocada de abacaxi e de bolchachinhas, os vendedores de bilhetes de loteria, os cafés e o Portal dos Escrivães que redigem cartas de amor e declarações de impostos? Quão distintas podem apresentar-se a praça-mercado de Djema‘a el-Fna em Marrakech, tão maravilhosamente descrita por Juan Goytisolo e a Chichicastenango en Guatemala?

(...)Através das feiras de Medina del Campo ou de Granada foi transmitida para a América, por sua vez, a tradição moura do comércio ambulante, com cavaletes, guarda-sóis, toldos e barracas que coexistiram com mantas, capachos e ―huacales‖ indígenas. De alguma maneira, compartilhava-se assim a fruição dos becos da casbah na Tunísia ou a de Argel, com vendedores de tâmaras, roupas e bijuterias, tanto com quem lê o Corão diariamente como com a rodas de vizinhos analfabetos, com bebedores chá verde e fumantes de narguille

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(MACIEL, [s/d])68. Em São Paulo, os paradoxos que nos arremessam

instantaneamente da era digital para a barbárie, em uma simples parada no

semáforo, parecem favorecer as sintaxes barrocas. As pontes e costuras que o

barroco faz entre fragmentos proliferantes são frágeis e efêmeras, bem como

os sentidos que formulam. O barroco permite a existência fluente entre

sistemas de valores diferentes e às vezes opostos, ―oscilando entre as culturas,

mas pertencendo a todas, indissociavelmente‖ (GRUZINSKI, 2001, p. 27). Para

o autor, as contradições latino-americanas apresentam-se como dobras,

avesso e direito de um mesmo tecido.

Mas a alegria de termos herdado - não só nas nossas feiras livres e

festividades, como na cultura como um todo – as habilidades necessárias para

a vida transbordante e a convivência com o excesso de variação não ressoa

com a mesma vibração e simpatia quando o assunto é o planejamento urbano.

Frúgoli (2000, p. 63) transcreve uma entrevista em 1997 com o ex-

prefeito da cidade de São Paulo, Olavo Setúbal, que faz uma autocrítica

arrependendo-se do seu plano de revitalização do centro através dos

calçadões quando prefeito. Setúbal diz que foi uma ilusão pensar que em São

Paulo, megalópole de um país pobre como o Brasil, o calçadão teria o mesmo

resultado de sucesso que teve em cidades da Europa. Ele diz que, ―o calçadão

virou no Brasil um permanente problema69 de mercado persa‖.

É até engraçado observar como por meio de uma expressão popular para

significar baderna (mercado persa), o ex-prefeito trouxe à tona a inesgotável

facilidade cultural em viver a variabilidade da rua ao mesmo tempo em que

escancarou a enorme dificuldade das classes dirigentes em validar estas

particularidades culturais das cidades que governam. Ao suscitar o ―mercado

persa‖ como sinônimo pejorativo do comércio informal instalado em São Paulo,

o ex-prefeito esqueceu-se de nossa tendência cultural ao espaço aberto, à

proliferação sensorial de elementos visuais, táteis e sonoros, muito próximos

realmente dos mercados orientais e que essas características são, ao contrário

68

MACIEL, MARIA ESTHER in Ocidente/Oriente: uma conversa com Haroldo de Campos. Disponível em: <http://www.revistazunai.com/entrevistas/haroldo_de_campos.htm>. Acesso em: agosto de 2010. 69

Grifo meu.

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170

de sua afirmação, sinônimos de riqueza cultural, o que obviamente não

significa ignorar os problemas relacionados à inevitável precariedade do

mercado informal, problemas estes extensamente observados tanto pela

academia quanto pelas instituições do poder.

Rua 25 de Março. Foto de Marcelo Min

Rua 25 de março em São Paulo. Foto de Deltafrut, no flickr.com

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171

Lixo, desordem, vagabundagem, degradação: essas são as palavras

associadas aos camelôs e aos moradores de rua. Isso porque praticam a

violação das distâncias confortáveis entre os corpos e entre as coisas. Criam

pontos na trama da cidade que são como defeitos, porém desbancam leis e

sistemas dominantes, gerando outras centralidades, complicando e

multiplicando os contextos marginais, que se tornam realidades policêntricas.

São realidades marginais-centrais, mas nunca homogeneamente uma coisa ou

outra, vagando entre situações. As atividades ambulantes e nômades

pertencem exclusivamente à rua e são responsáveis por sua vitalidade.

Ambulantes, vagabundos e roleiros são sistematicamente contidos, reprimidos

e expulsos em nome da reconsagração dos espaços centrais como espaços

legítimos das populações solventes, que se não são mais os aristocratas de

São Paulo, são as multidões de sequiosos consumidores culturais, sequiosos

por cultura, depositada no patrimônio arquitetônico urbano histórico.

Já as populações que ocupam as ruas do centro e que tiram dali o

sustento têm em comum o fato de terem um dia migrado; mesmo que vivam há

décadas na cidade, com filhos e netos nascidos e criados aqui, sempre serão

vistos como migrantes, como ―nenês famintos‖ (FLUSSER, 1983).

Mas estas mesmas populações que vivem da informalidade, que criam ricas

texturas urbanas, um burburinho alegre e vital, sem o qual as ruas pereceriam

(...)camelôs, engraxates, desempregados, aposentados,

―plaqueiros‖, vendedores de ervas, de bilhetes de loteria, de

churrasquinho, pregadores religiosos, videntes, prostitutas,

travestis, homens e menores de rua, artistas de rua, rolistas,

batedores de carteira, trapaceiros e muitos outros. (FRÚGOLI,

2000, p. 59)

As ruas, cuja efervescência é essencial para a vitalidade dos jogos

sociais, tornam-se referências para convivências de diferenças em situações

onde não se acreditaria que poderia florescer alternativas interessantes. São

interessantes justamente porque lidam com a existência para além das

idealizações, criam estratégias para escapar das retificações, mas para

sobreviver e não para superfaturar a idéia de vida. São alternativas para

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sobreviver sem a proteção da cidadania clássica que não os inclui. Na verdade

criam manchas de cidadania, cidadanias falsificadas, partes de cidadania.

O Socorro da Alegria: grátis, nas ruas

Alagamento na região do Minhocão, em São Paulo. Foto Marcelo Min

Um mau humor totalitário me tomava por completo numa tarde ensolarada na rua

25 de março. Eu desbravava, à força de cotoveladas, as calçadas lotadas com o

único objetivo de comprar um tecido e voltar correndo para o estúdio de T.V, a fim

de evitar mais uma madrugada em claro, montando uma cenografia difícil.

Andando vigorosamente, de cabeça baixa, não olhava nada nem ninguém.

De repente ouço uma voz forte acompanhada de um cheiro pestilento e imediato.

Olhei para frente e a menos de dois passos estava um mendigo muito alto, escuro,

fedido e esfarrapado, de braços abertos para mim, repetindo: vem cá, me dá um

abraço!!!

Abaixei rapidamente, passei por baixo daqueles braços enormes, e quando olhei

para trás ele sorria com dentes inacreditavelmente brancos, destoantes da sua

sujeira ancestral. Ele disse: ah, não foi dessa vez!

Seria ele um anjo ou escapei do abraço da morte? O fato é que sorri e o mau

humor foi embora. Olhei em volta e os seguranças de porta de loja, os desviantes

do mau cheiro do meu anjo, todos prontos para testemunhar o abraço, sorriram

também...

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O estranho é que, entretanto, a alegria permanece, embora suspensa em nada e privada de qualquer base. E é esse extraordinário privilégio da alegria: essa aptidão para perseverar quando sua causa é ouvida e condenada, essa arte quase feminina de não se render à razão alguma, de ignorar alegremente tanto a adversidade mais manifesta quanto a contradição mais flagrante. Pois a alegria, tal qual a feminilidade, permanece indiferente a qualquer objeção. (ROSSET, 2000, p. 8)

Nas formas de existir dos moradores de rua, dos sem teto e dos ambulantes,

falar do acontecimento da alegria não é uma ilusão apaziguadora das culpas

sociais, nem é ingenuidade acreditar nas suas manifestações. Embora nesses

contextos a crueldade da vida se sobreponha a todo o resto, a alegria se dá

não importa onde, excêntrica aos mecanismos de captura capitalista do desejo

e de ilusões idealizadas de mundos sem sobressaltos. Entretanto a alegria se

apresenta em condições inconcebíveis e é inclemente contra tudo aquilo que

desaprova a vida. Seu paradoxo vital é a capacidade de compor-se com o

trágico. A alegria conecta-se com o trágico, cuja presença é paradoxalmente

necessária e invariavelmente ignorada para que a alegria aconteça. ―Rimos

porque sabemos que vamos morrer‖. (PINHEIRO, 1994)

O humor que interessa, segundo Pinheiro, é o riso do traído, cujas

convicções foram subitamente canceladas e não tem outra coisa a fazer além

de conviver com a crise do descentramento. Este riso é o flagrante da nossa

desproteção diante do estranho com o qual ainda não entramos em relação.

Desta forma os discursos oficiais e o consenso se desnaturalizam e tornam-se

novamente estranhos.

(...)só há comunicação dialógica e diferencial se nela está contida algum elemento de choque pelo riso, de consciência binária em fricção, de morte. Só se pode educar, só se pode informar com a morte, pois ela aparece sempre que qualquer setor do que pretendíamos como natureza é abalado. (PINHEIRO, 1994, p. 35 - 40)

Onde não há contraste a alegria se amorna. Pinheiro diz que o riso

crísico é a festa de quem sabe que vai morrer. Este é o riso que festeja a vida

da alegria sem pretensão nem ironia. A ironia deseja-se superior àquele do

qual se distancia. O humor não se localiza nas causas, mas nos efeitos, sem

jogos de palavras, mas criador de acontecimentos.

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Fim de expediente, ainda dá tempo.

Rua 25 de Março ao entardecer. Fim de expediente. Foto Marcelo Min

Rua 25 de Março ao entardecer. Os catadores em ação. Foto Marcelo Min

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Rua 25 de Março ao entardecer. Comerciantes e últimos clientes aproveitam as últimas ofertas do dia.

Foto Marcelo Min

Rua 25 de Março ao entardecer. Comerciantes juntam-se para jogar. Foto Marcelo Min

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Descontração de fim de expediente. Fotos Marcelo Min

Foto Marcelo Min

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Conclusões

Meninos no centro de São Paulo. Foto Marcelo Min

Custamos a nos livrar da idéia de que todo sistema possuiria uma espécie de estabilidade original a que ele tenderia inexoravelmente. (GRUZINSKI, 2001, p. 59)

Há décadas observamos a luta pela revitalização do centro histórico da

cidade de São Paulo. Porém, na última gestão da prefeitura, a revitalização

tornou-se uma bandeira, uma luta com a assinatura pessoal do prefeito. Seu

projeto de centro histórico para a região da Luz enquadra-se nos modelos

neoliberais de cidade, que transformarão a região num parque cultural,

recebendo investimentos de empresários da construção civil e distribuindo

concessões de comercialização, de negociação direta das desapropriações,

etc. Foram feitos inclusive seminários com urbanistas estrangeiros

responsáveis por uma revitalização similar, a de Barcelona, que, segundo

alguns urbanistas espanhóis, foi um ―urbanicídio‖.

A região da Luz é ocupada por populações não só não previstas na

agenda neoliberal como indesejáveis para qualquer governo. São as

populações de rua e os consumidores de crack; por isso a região é conhecida

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178

como cracolândia70. O que vemos a prefeitura empreender na região é uma

verdadeira cruzada, não contra as drogas e a exclusão, mas contra os

―drogados‖. Apesar das incursões midiatizadas de ação policial na região, não

só a cracolândia persistiu, como houve a dispersão dos consumidores de crack

pelo centro, alcançando bairros de classe alta como Higienópolis.

O projeto de revitalização avança e empaca, recua e avança novamente.

E este movimento incerto começou a incomodar os investidores, que por

enquanto tiraram a mão do bolso, mas não o olho.

Verificamos que o paradoxo da simultaneidade entre dominação e

emancipação, liberdades e autoritarismos é um traço constante na história do

nosso continente e que se torna materialmente presente nas cidades.

Atualmente observamos que o neoliberalismo submete às leis intransigentes do

mercado financeiro questões do desenvolvimento social, tais como a habitação

social. Este processo induz à definição de cidadania a partir da capacidade de

inclusão no mercado de trabalho e de consumo, fato que aumenta muito a

segregação entre quem está dentro e fora do sistema financeiro. E, justamente

através da segregação, o neoliberalismo alimenta o aumento da informalidade,

tanto para aqueles que precisam sobreviver sem cidadania como para aqueles

que aproveitam-se da ausência do Estado como centro para tirar vantagens,

tais como concessões de uso do solo, privatizações, etc. Portanto, a

informalidade não é apenas fruto da pobreza social, mas um mecanismo que

facilita apropriações quando o poder central é fraco, no sentido de não ser

densamente determinante, de ter brechas e vazios que podem ser ocupados

por vetores de força alertas às possibilidades.

O exemplo da luta entre a prefeitura e os meninos da cracolândia

é uma ilustração de um caso de insubordinação radical às estriagens do

Estado, mesmo sob a saturação da vigilância que os governos empreendem.

Tanto quanto a favela Vila Praia e a rua 25 de março, que analisamos no

terceiro capítulo.

70

Antes da revitalização a região era ocupada pelas prostitutas que faziam ponto na Estação da Luz. Hoje em dia, apesar da existência da prostituição, a cracolândia é a irregularidade que mais chama atenção da mídia.

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Quanto mais os dispositivos se difundem e disseminam o seu poder em cada âmbito da vida, tanto mais o governo se encontra diante de um elemento inapreensível, que parece fugir... (AGAMBEN, 2009, p. 50)

Agamben nos mostra que a insubordinação não nos dá a esperança de

uma revolução, nem nos indica um modo de frear a máquina governamental,

mas, para o autor (2009, p. 51), o ingovernável ―é o início e o ponto de fuga de

toda a política‖. Na América Latina, elementos de ingovernabilidade e

governabilidade se mesclam, num trânsito alucinado entre profanações e

institucionalizações.

Quando analisamos as arquiteturas modernistas através do edifício

Copan em São Paulo e do Edifício Pedregulho no Rio de Janeiro, já as

compreendemos como o resíduo, embora ativo, de um sistema estético-político

que já não emana forças do ―centro‖ para as ―margens‖, do idealizado para o

vivido. Se o modernismo ainda reverbera, é através de vestígios, ora através

de um piloti, ora através de um fragmento da promenade architectural.

Portanto, o que o modernismo entabula com o informal nestes dois edifícios é

uma conversa, mas entre margens - nenhum é determinante sobre o outro.

No entanto, o que talvez interesse mais aqui seja demonstrar

como essa experiência restabelece o vínculo do homem com o

mundo. Não se trata de um outro mundo, de um além do

mundo, mas deste mundo, o nosso mundo... (LEVY, 2003, p.

92 - 93)

Assim como verificamos que o trânsito dialógico entre o formal e o

informal está definitivamente incorporado nas urbanidades de cidades como

São Paulo e Rio de Janeiro, entendemos que estas hipóteses poderão ser

verificadas, com variáveis desejáveis, em outras cidades da América Latina, ou

até mesmo em cidades de países de cultura que tendam ao aberto, tais como a

Turquia e a Grécia, recentemente incluídas no bloco da União Européia,

portanto sujeitas a novos poderes em jogo. Acreditamos que a continuidade

deste trabalho se daria no sentido de verificar nódulos tradutórios entre as

exigências do capitalismo avançado e vetores culturais já instalados e em

relação nestes territórios, além de estender a verificação do barroco como

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ferramenta analítica em espaços comunicacionais da cidade que exijam

sintaxes complexas.

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