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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
DAVID REJES RANGEL
MOVIMENTO ESTUDANTIL E IDEOLOGIA: CURITIBA, 1966.
CURITIBA
2012
DAVID REJES RANGEL
MOVIMENTO ESTUDANTIL E IDEOLOGIA: CURITIBA, 1966.
Trabalho monográfico apresentado ao
Curso de Licenciatura em História, da
Universidade Tuiuti do Paraná, como
requisito avaliativo de conclusão de curso
orientado pela professora Valéria Pilão
CURITIBA
2012
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que me deram apoio e suporte para a realização desse trabalho.
Agradeço à minha orientadora, prof. Ma. Valéria Pilão pela paciência e dedicação. Agradeço ao prof. Dr. Pedro Leão pelos apontamentos valiosos sobre o trabalho, à prof. Ma. Vânia Machado pela amizade, apoio e dedicação sincera. Aos meus amigos, minha família e à Deus.
LISTA DE SIGLAS
AI-1 Ato Institucional n.° 1
CGG Comando Geral da Greve
CGT Comando Geral do Trabalho
CLT Consolidação das Leis do Trabalho
CPC Centro Popular de Cultura
DEE Diretório Estadual dos Estudantes
DOPS Delegacia de Ordem Política e Social
EUA Estados Unidos da América
JEC Juventude Estudantil Católica
JUC Juventude Universitária Católica
M.E. Movimento Estudantil
MRLN Movimento Revolucionário Libertação Nacional – Pr
PCB Partido Comunista Brasileiro
PSD Partido Social Democrático
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
SAPPP Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco
TFP Tradição, Família e Propriedade
UDN União Democrática Nacional
UNE União Nacional dos Estudantes
UPE União Paranaense dos Estudantes
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................5
1. CONTEXTUALIZAÇÃO DO GOLPE MILITAR – 1964: A CLAS SE
BURGUESA ......................................................................................................10
1.1.CONFRONTOS NO CAMPO - AS LIGAS CAMPONESAS........................14
1.2.CONFLITOS NA CIDADE – O MOVIMENTO OPERÁRIO.......................16
1.3.CONTRADIÇÕES DA CLASSE MÉDIA, IGREJA E EXÉRCITO...............18
1.4.O GOLPE DESFERIDO......................................................................20
2.RESISTÊNCIAS Á DITADURA MILITAR ................................................29
2.1.MOVIMENTO ESTUDANTIL 1960 – 1966: COMPLEXO E
CONTRADITÓRIO..................................................................................31
2.2.ELEMENTOS CONTRADITÓRIOS CONTIDOS NO MOVIMENTO
ESTUDANTIL DE CURITIBA....................................................................37
2.3.A COBERTURA JORNALÍSTICA SOBRE O MOVIMENTO ESTUDANTIL:
CURITIBA, 1966....................................................................................49
2.4.APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A IDEOLOGIA CONTIDA NOS
JORNAIS SOBRE O MOVIMENTO ESTUDANTIL.......................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................69
REFERÊNCIAS......................................................................................71
ANEXOS................................................................................................74
10
INTRODUÇÃO
É possível afirmar que a presente monografia teve início com o estágio no
Departamento de Arquivo Publico do Estado do Paraná (DEAP), uma vez que, como
estagiário houve a possibilidade de acessar a documentação da Delegacia de
Ordem Política e Social (DOPS) - o Fundo 004, tanto pela indexação, quanto pela
digitalização dos documentos recolhidos e produzidos pela DOPS. Nesse sentido, foi
possível obter acesso a documentos inéditos, dos mais diversos temas.
Interessado pela Ditadura Militar de 1964, e pelo movimento estudantil, desde
muito tempo, após algumas leituras focadas apenas no eixo Rio-São Paulo, houve o
questionamento inevitável de como havia sido a participação dos estudantes aos
protestos à ditadura militar em Curitiba. Não tendo encontrado produção
historiográfica sobre o tema, iniciamos a pesquisa. Lidando diretamente com a
documentação produzida e recolhida pela DOPS, encontramos a pasta temática
1548.187, que tratava das passeatas estudantis principalmente durante o ano de
1966.
Aproximando-se do período no curso de história da produção da monografia,
fizemos opção por esse objeto de estudo. Fazendo leituras, analisando fontes,
chegamos à definição do objetivo da monografia: analisar o conteúdo ideológico
contido nas abordagens dos jornais sobre o movimento estudantil no ano de 1966
em Curitiba.
Entretanto, apesar da importância da documentação da DOPS para
chegarmos ao nosso objeto de estudo, os principais documentos utilizados neste
trabalho foram exemplares do periódico curitibano Diário Popular, arquivados na
Biblioteca Publica do Paraná, que nos forneceram subsídios para analisar o
conteúdo ideológico presente nas reportagens veiculadas em alguns jornais de
Curitiba.
Muitas vezes nos defrontamos com a necessidade de alterar o projeto, e
repensar a monografia. O trabalho impôs suas demandas tanto por referenciais
teóricos, quanto por referenciais historiográficos e até mesmo o próprio eixo da
monografia que é o objetivo. Assim, para analisar o conteúdo ideológico presente
nos jornais, traçamos objetivos secundários, contextualizando o pré-64, no intuito de
compreender a sociedade brasileira antes do golpe; buscando também demonstrar a
11
heterogeneidade do movimento estudantil na tentativa de apreender suas definições;
e por fim demonstrar como os jornais de Curitiba em 1966 retrataram o movimento
estudantil para compreender a ideologia presentes nos jornais.
Esses três objetivos se entrelaçam no tema, e auxiliam na explicação um do
outro. Assim, se pretendemos analisar a forma de como os jornais retratam o
movimento estudantil, é necessário também apresentar uma perspectiva histórica
desse mesmo movimento estudantil, como base de contraponto a visão dos jornais,
baseado em uma percepção da conjuntura político social, compreendendo a
ditadura militar à luz da sociedade no pré-64 para perceber o processo histórico.
Portanto, para analisar o conteúdo presente nos jornais, uma análise do
movimento estudantil, se faz necessário como contraponto útil para uma visão que
não se encerre em si mesma, ou seja, uma visão de distintos ângulos sobre o
mesmo tema. Para tanto, uma caracterização do movimento estudantil foi feita com
base nos manifestos produzidos por diversas instituições estudantis que
representavam distintas posições políticas, foram colhidos pela DOPS nas
passeatas.
Outra caracterização realizada pelos jornais teve um importante papel na
legitimação de algumas ideias, agindo na formação de opinião sobre o contexto
vivido e sobre os estudantes, revelando alguns interesses. Esse último é nosso
principal foco de análise.
Assim, buscamos identificar nas mensagens veiculadas pelos jornais, qual ou
quais os interesses presentes nas reportagens, a quem beneficiavam, que relação
havia entre os estudantes, os jornais e a sociedade, alvo da informação dos jornais.
Esse portanto é nosso objetivo: analisar o conteúdo ideológico contido nas
abordagens dos jornais sobre o movimento estudantil em Curitiba no ano de 1966.
No decorrer da monografia são utilizados conceitos do arcabouço teórico do
materialismo histórico dialético. Conceitos como: classes sociais, estrutura e
superestrutura, formação social, ideologia e luta de classes foram buscados nas
obras de Karl Marx, enquanto hegemonia e autocracia burguesa são encontrados
em autores marxistas. Além disso, foi realizado não apenas um uso dos conceitos,
mas também empreendido uma tentativa de analisar os objetos através da
metodologia marxista, esboçada na tentativa de compreender a história como
processo dialético, contraditório, numa perspectiva materialista histórica, e sob uma
ótica de totalidade.
12
No primeiro capítulo houve um esforço no sentido de compreender a
sociedade brasileira como uma formação social composta por classes distintas,
observando que uma dessas classes exerce o domínio sobre as outras. Nesse
sentido, iniciamos a abordagem pela classe burguesa, em suas limitações e
contradições.
Essas limitações e contradições são esboçadas principalmente constatando
no seio da burguesia dois grandes grupos: uma burguesia mais conservadora e
associada ao capital internacional; e outra mais progressista, favorável a um
desenvolvimento nacional mais independente.
Esse desenvolvimento nacional mais independente tinha como importante
aliado, a implantação de algumas reformas na sociedade brasileira que
dinamizariam a economia, e diminuiria alguns privilégios da facção da burguesia
mais conservadora e associada ao capital internacional.
Alguns dos setores e classes que reivindicavam essas reformas são objetos
de breve análise nos subitens do primeiro capítulo que aborda os conflitos entre
camponeses e donos da terra, entre operários e patrões, soldados e generais,
clérigos e leigos, estudantes e Estado.
Esses pontos foram abordados para a compreensão do golpe militar de 1964,
que ocorre quando os militares com o apoio das classes dominantes conservadoras
rompem com o regime democrático que não tem mais condições de manter os
privilégios, e não mais impede a participação popular na política. Dessa forma, são
elementos imprescindíveis para compreender o caráter da ditadura militar, contra a
qual os estudantes em 1966 protestavam.
No segundo capítulo iniciamos a abordagem das resistências à ditadura
militar na qual se insere o movimento estudantil, nos aproximando do nosso objeto
através de uma breve análise da trajetória das lutas estudantis desde 1960 até 1966.
Em seguida, nossa análise volta-se para a cidade de Curitiba no ano de 1966,
buscando compreender o caráter do movimento estudantil, buscando identifica-lo em
suas diversas correntes políticas ligadas às instituições a que faziam parte,
principalmente através de manifestos colhidos pela DOPS.
No último item, fazemos apontamentos críticos quanto aos valores ideológicos
dominantes que estava presentes nas abordagens sobre o movimento estudantil por
alguns jornais veiculados em Curitiba durante o ano de 1966, que constitui o foco
principal de nosso trabalho.
13
1.CONTEXTUALIZAÇÃO DO GOLPE MILITAR–1964: A DOMINAÇ ÃO
BURGUESA
Para escrever sobre movimento estudantil, no contexto de oposição à
ditadura militar instituída em 1964 no Brasil, surgem algumas questões que são
necessárias serem esclarecidas para que a análise alcance a totalidade, iluminando
não somente fragmentos, mas jogando luz sobre o todo, sobre os múltiplos fatores
determinantes do processo histórico, possibilitando a análise, não apenas do
movimento contínuo da história, como também as contradições inerentes à
realidade.
Nesse sentido, fazem-se necessários esclarecimentos sobre a sociedade
brasileira, a partir da classe dominante em um modo de produção capitalista: a
classe burguesa. Compreendendo a classe burguesa, que domina a economia e a
política, assim como as ideias dominantes, é possível perceber com mais clareza os
outros sujeitos imersos nessa formação social. Nesse sentido, torna-se mais clara a
compreensão de como os trabalhadores rurais relacionavam-se entre si e com os
donos da terra; perceber como os operários lidavam com a rotina da indústria, suas
organizações, sua relação com a política e seus conflitos com os patrões; assim
como podemos perceber de igual modo, as camadas médias: seus temores, anseios
e contradições.
Compreendendo, portanto, essas classes sociais, a partir do pressuposto de
que existe uma classe que exerce o domínio dessa sociedade, é possível perceber
qual a natureza do golpe que deu origem à ditadura militar e como se deu a
resistência dos estudantes, observando também a mídia, em sua pretensa
neutralidade, desvelando os interesses ali alocados, podendo ainda perceber sua
relação com a política e mais a fundo, com os verdadeiros donos do poder, a classe
burguesa1.
1 É necessário acrescentar, porém, que mesmo no interior da classe burguesa há uma multiplicidade de posições e interesses, muitas vezes com projetos e objetivos que estão em conflito uns com os outros. Nesse sentido, se consolidou no seio da burguesia brasileira principalmente duas posições distintas. Uma determinada a manter uma relação de associação e submissão às grandes potências, principalmente aos Estados Unidos e outra determinada a levar a cabo um projeto de desenvolvimento mais autônomo, como se verá mais especificamente adiante.
14
A compreensão da sociedade torna-se mais acessível estabelecendo para a
perspectiva de análise, a classe dominante em contraste com as classes dominadas.
Entretanto, é necessário também afirmar que as outras classes sociais apesar de
influenciadas e subjulgadas, também exerciam sua influência a toda sociedade,
pressionando-a com suas necessidades, contribuindo na formação contínua do ritmo
da luta de classes.
Dessa forma, se almejamos abarcar nossa análise da sociedade e do Estado
brasileiro numa perspectiva de totalidade, não poderíamos deixar de fazer referência
aos conflitos internacionais que se desenvolveram durante e depois dos grandes
confrontos bélicos do século XX.
Durante a Segunda Guerra Mundial, as nações latino-americanas lograram
estabelecer e consolidar um desenvolvimento capitalista autônomo e soberano
frente às potências em grande desgaste originário do esforço de guerra. Nesse
momento, em alguns países orientais e latino-americanos erigiram governos que
desafiaram o imperialismo e fatalmente sucumbiram2.
No contexto da América Latina, o Brasil enquadrava-se no contexto de uma
sociedade de classes, dependente e subdesenvolvida. Nessa formação social, os
estratos de classe burgueses, desenvolveram relações sociais de apadrinhamento
ou de enfrentamento às pressões sociais que pretendiam reformar a sociedade e
outras que pretendiam transformar radicalmente a ordem social estabelecida3.
Apesar desse “apadrinhamento” de certos movimentos, motivados por uma
consciência do radicalismo burguês, essa facção da burguesia era minoritária e
fragmentada, cujos esforços pela transformação social da revolução burguesa
estavam condenados pela mediocridade (no sentido radical de médio, ordinário) da
2 “A proposta republicana de Sun Yat-sen na China, a modernização da Turquia, liderada por Mustapha Kemal, o Partido do Congresso na Índia, o nacionalismo mexicano de Ernesto Cárdenas, o Estado Novo Varguista, tinham esse sentido: explorar os espaços criados pelo enfraquecimento das potências, ou/e a rivalidade entre elas, para lograr margens de autonomia.” (REIS FILHO, 2000, p. 2). 3 Dentre as pressões reformistas e revolucionárias, havia as que eram nascidas ou controladas pela burguesia, assim como havia as que possuíam inspiração e liderança de origem estritamente popular. Esses movimentos reivindicatórios levavam os anseios populares por mudanças nas questões mais estruturais, os pontos mais críticos das tensões sociais, sendo movimentos de luta pela terra, por moradia urbana, por educação, por saúde, alimentação, segurança, entre outros. Alguns desses movimentos eram “apadrinhados” por uma fração progressista da classe média, que muitas vezes além de fornecer recursos materiais, encabeçavam o movimento, enquanto outros não recebiam sequer ajuda material de grupos externos ao movimento e se desenvolviam com anseios e lideranças essencialmente populares. Alguns desses movimentos se colocavam como reformistas, ou seja, de não rompimento com a ordem estabelecida, enquanto outros assumiam um caráter radicalmente transformador da realidade.
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burguesia brasileira, sem forças de romper os laços de dependência e tomar para si
as bandeiras da revolução burguesa, em um movimento antiimperialista.
Com essa burguesia, quase inválida para sua própria revolução, as pressões
de interesses antagônicos ou semidivergentes oriundas das classes operárias, ou
massas populares com ou sem apadrinhamento de caráter burguês radical não
poderiam continuar ganhando espaço no cenário das ideias sociais (FERNANDES,
1987).
Como resultado da concentração na distribuição de riqueza e poder na
sociedade brasileira subdesenvolvida e dependente, a reação da burguesia foi
justamente o temor e o ódio. Os que se encontravam satisfeitos com a ordem social
eram muito poucos frente aos que viam na realidade uma situação cruel a ser
modificada (conscientemente ou não) que era a grande maioria. Dessa forma, o
resultado dessas relações sociais foi o temor de classe que tornou a inquietação
social, como algo temível e a transformação social um fenômeno abominável.
Essa reação não pode ser analisada como fruto do obscurantismo intelectual
ou político da burguesia, mas sim como tendo origem em um “ultravulnerável temor
de classe”, uma vez que os intelectuais burgueses nunca ignoraram o papel que as
pressões dentro da ordem representavam para a existência de um regime
democrático ou concretamente para retirar a revolução burguesa de um ponto-morto
(FERNANDES, 1987).
Esse temor de classe refletiu-se em repressão sistemática dessas pressões,
ou melhor, desses movimentos, uma vez que era a burguesia quem exercia a
hegemonia num contexto nacional. Para tanto, associou as pressões dentro da
ordem com as pressões contrárias à ordem para reprimi-las com mais vigor, numa
manobra ideológica de visível habilidade. Dessa forma, qualquer pressão social era
vista como uma subversão e até mesmo o próprio radicalismo burguês esclarecido
fora confundido com subversão ou comunismo (FERNANDES, 1987).
No momento em que as pressões sociais reformistas e revolucionárias4, com
ou sem apadrinhamento burguês5, ameaçaram a hegemonia burguesa dos rumos já
4 As pressões sociais eram na maior parte das vezes geradas por movimentos sociais. As pressões sociais reformistas desejavam apenas modificar aspectos pontuais de forma superficial dentro da sociedade e da ordem nela estabelecida, enquanto as pressões sociais revolucionárias desejavam uma transformação radical questionando o sistema social, impondo uma ruptura com a ordem vigente.
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estabelecidos motivados por relações sociais de má distribuição de renda e poder,
engendrados por uma formação social capitalista subdesenvolvida e dependente, foi
necessário para a burguesia romper com as máscaras democráticas e assumir
prontamente as características de uma ditadura de classe, ou no termo de
Fernandes (1987), as características de um modelo autocrático-burguês. O discurso
passou da ameaça à democracia para a ameaça à ordem. Nesse sentido, pode-se
concluir que o regime democrático ameaçou a ordem dependente de um capitalismo
atrasado com uma burguesia associada e submissa ao capital imperialista.
Contraditoriamente a essas características da burguesia nacional, surgem na
política brasileira ideias de um possível desenvolvimento capitalista independente e
autônomo representados por Jânio Quadros e João Goulart, figuras políticas que se
afirmavam como sendo herdeiros de Getúlio, o primeiro governante do Brasil a
fomentar esse modelo de desenvolvimento autônomo e nacionalista, como tentativa
de romper os laços de dependência exclusiva dos EUA (REIS FILHO, 2000).
Durante o governo de Jânio e Jango, o Brasil vivia um momento de grande
efervescência política e social, em grande parte motivada por suas contradições de
ordem econômica. Havia nesse período um movimento camponês forte, que
ocupava e invadia propriedades de norte a sul do país, cujo centro principal era o
estado de Pernambuco com o movimento das Ligas Camponesas. Além disso, um
movimento operário bem articulado agia principalmente em São Paulo, cujos
trabalhadores haviam tomado o controle dos sindicatos e expurgado diversas
tutelas6 apresentando um sindicalismo independente e vigoroso. Havia ainda um
movimento estudantil em processo de rearticulação, reunindo forças na tentativa de
estender sua influência de forma crescente se engajar em lutas de cunho social,
identificando-se com o projeto reformista do governo Goulart (TOLEDO, 1977).
No âmbito das pressões populares reformistas, alguns setores mais radicais e
independentes da burguesia buscavam reformas de base que elevariam o
capitalismo industrial brasileiro a um novo patamar de desenvolvimento, como
exemplo, a famigerada reforma agrária. Esta reforma, ao contrário do que
alardeavam seus opositores, não visava destituir o direito de propriedade no Brasil,
5 Esse apadrinhamento burguês poderia ser radical ou esclarecido. Para um olhar mais específico sobre a burguesia ver: FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro, RJ, Editora Guanabara, 1987. 6 Como a ala trabalhista mais identificada com papel do Estado no controle do sindicalismo, que lutava pela liderança dentro do sindicatos, estendendo as influências do PTB, partido de Goulart.
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mas tão somente criar as condições internas para que o capitalismo pudesse
estender sua área de atuação com o crescimento interno, pois faria “aumentar a
produção de alimentos, de matérias-primas para a indústria e criar no campo um
mercado para os bens manufaturados” (TOLEDO, 1977, p. 36), evitando ainda uma
revolução agrária e dessa forma, protegendo a propriedade.
A hegemonia da burguesia tradicional estava ameaçada por facções
burguesas mais progressistas e nacionalistas e as pressões de ordem popular ou
mesmo operária. Entretanto, o caráter frágil da burguesia brasileira impedia que esta
estabelecesse uma cisão com a dominação estrangeira, dando o principal passo em
direção à revolução burguesa no Brasil, rumo ao patamar das nações capitalistas
desenvolvidas (FERNANDES, 1987).
Além disso, é necessário afirmar que a luta de classes no Brasil estava
inegavelmente mais acirrada nesse período da historia recente, em comparação com
outros períodos da história do Brasil, tanto que liberais e conservadores referem-se a
esse período como um período de caos social, crise, baderna e subversão sempre
atrelando qualquer iniciativa popular ao comunismo, palavra chave que trazia
condenação e depreciação de tudo que a ele pudesse ser relacionado, revelando o
temor e o ódio das classes dominantes, setores médios e mesmo populares, num
movimento ideológico7.
1.1.CONFRONTOS NO CAMPO: AS LIGAS CAMPONESAS
No campo, a efervescência social havia tomado a forma de ocupações,
invasões e mesmo conflitos armados entre camponeses e latifundiários. A base
dessa efervescência era justamente uma formação social em que características
agrárias predominavam no conjunto da economia local8. O Nordeste foi deixado em
segundo plano9 para os investimentos nacionais quando o café passou a ser o
7 Ou seja, de imposição por meios culturais de uma visão de mundo pertencente às classes dominantes na mentalidade das classes dominadas. Segundo Marx, a ideologia faz com que as ideias da classe dominante passem a ser disseminadas e depois assimiladas por toda a sociedade (MARX, 2009). 8 Monocultura para exportação e latifúndio. 9 O Nordeste havia sido o antigo centro econômico do Brasil durante o período colonial e imperial, destacando-se pelo cultivo da cana de açúcar, tabaco, algodão. Esses gêneros eram destinados à exportação, representando a principal atividade econômica no Brasil do séc. XVII ao séc. XIX. (ALBUQUERQUE, 1981).
18
principal produto de exportação da economia nacional e, posteriormente a
industrialização lenta que passou a ser desenvolvida no sudeste, em meados dos
anos 50.
Nesse período desenvolveu-se o movimento dos posseiros de Trombas e
Formoso10 de notável caráter político e social em Goiás, estado com uma economia
baseada na pecuária (IANNI, 1984). Já em 1962, o General Artur da Costa e Silva
ordenava que o exército sufocasse e reprimisse violentamente uma passeata de
camponeses na qual, milhares de lavradores protestavam na Paraíba a morte do
líder camponês João Pedro Teixeira a mando dos fazendeiros da região, ao passo
que multidões famintas saqueavam mercados e armazéns fazendo com que o
Governador Cid Sampaio viesse a desapropriar os estoques de feijão, milho e
farinha, garantindo o abastecimento das cidades (BANDEIRA, 1977).
Apesar desses conflitos estarem presentes, como visto, em várias regiões do
Brasil, a principal organização que agregava o movimento dos trabalhadores rurais
no Nordeste eram as Ligas Camponesas. Nelas havia se destacado como liderança
principal o advogado e deputado federal Francisco Julião, havendo ele organizado
os camponeses e apoiado a ação daqueles trabalhadores contra o domínio e a
exploração dos grandes fazendeiros e latifundiários.
Iniciado como uma associação de ajuda mútua dos camponeses do Engenho
da Galiléia, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco
(SAPPP) que tinha como presidente o patrão, dono das terras. A SAPPP tinha como
objetivo assistencialista suprir a necessidade de um fundo comum para a compra de
caixões para os mortos, uma vez que a miséria dos camponeses os levava a usar
papel ou panos como mortalha, condição humilhante para eles.
Entretanto, os detentores da terra atentaram para o perigo que representava a
união dos trabalhadores rurais, mesmo que fosse para um objetivo tão imediato e de
caráter assistencialista. Mais adiante, certo de que a associação não deveria existir,
o dono do Engenho da Galiléia renunciou ao cargo de presidente da SAPPP e exigiu
seu fim, além de haver anunciado a expulsão dos trabalhadores rurais, tendo ainda
declarado (pretexto ou não) que as terras seriam agora destinadas à pecuária
(MONTENEGRO, 2003).
10 Houve no estado de Goiás uma série de confrontos por terras devolutas na região dos povoados de Trombas e Formoso entre camponeses e fazendeiros. Apesar do Governo enviar tropas para desbaratar a resistência camponesa, esses desenvolveram uma guerrilha que resistiu intensamente às tentativas de expulsão, que acabou por conferir-lhes a posse legal da terra (ESTEVES, 2007).
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Os trabalhadores rurais inconformados passaram a procurar apoio estatal e
após várias negativas, eles encontram no Deputado (na época estadual) Francisco
Julião, um apoio institucional. Este passou a ocupar a tribuna para defendê-los e
passa a utilizar o termo camponês11 para designar aqueles trabalhadores rurais.
Com o auxilio institucional, a associação foi registrada e reconhecida como
movimento social. Com esse respaldo legal, ampliou suas relações em Recife e
entre outras áreas rurais. Passou também a dispor de contatos com outros
intelectuais e políticos e criou uma sede regional do movimento que coordenou as
lutas de outros núcleos do movimento agora reconhecido como Ligas Camponesas
(MONTENEGRO, 2003).
As Ligas com o apoio de Julião ganharam destaque não apenas regional, mas
também nacional, quando o governo cedeu à pressão dos camponeses e assinou a
desapropriação das terras do Engenho da Galiléia, alarmando a mídia nacional e os
latifundiários.
Com o desenvolvimento dos conflitos rurais na intensificação das
mobilizações campesinas e com sua crescente conscientização de sua condição de
sujeito histórico transformador, as Ligas Camponesas ganharam destaque não
apenas nacional, como também internacional, em que veículos midiáticos passaram
a alardear uma possível guerra camponesa, denunciando supostas intenções
revolucionárias e subversivas das Ligas (SINGER, 2004).
Haviam portanto, grandes tensões sociais no campo; tensões em uma
estrutura arcaica do monopólio da terra por parte de uma burguesia latifundiária,
enquanto o restante era compelido a vender sua mão de obra para obter seu
sustento ou migrar para as grandes capitais na busca de melhores oportunidades de
sobrevivência. Entretanto, esses camponeses lograram estabelecer uma união entre
si e desenvolver uma resistência a essa opressão, numa relação conflituosa e
contraditória que daria origem a mudanças, ao menos em suas expectativas.
1.2.CONFLITOS NA CIDADE: O MOVIMENTO OPERÁRIO
11 O termo para designação gerou polêmica na Assembleia Legislativa, tendo uma colega deputada sugerido o termo rurícola, pois segundo a deputada, o termo camponês estaria saturado de carga política e ideológica, o que possivelmente traria incômodo entre os outros deputados, muitos dos quais, representantes de latifundiários. (SANTIAGO apud. MONTENEGRO, 2003, p. 256).
20
Se no campo, as classes oprimidas se agitavam, na cidade não era diferente.
Influenciados pelas ideias de nacionalismo e reformismo, setores da sociedade civil
buscaram exercer uma legítima influência sobre a sociedade divulgando sua
proposta de modernização distributiva, reformas e nacionalismo.
Sua prática concreta em meio ao contexto social levava a uma politização
cada vez maior da população que, apesar de lenta, paulatinamente tomava a política
das mãos das elites e dos políticos profissionais12.
Isto fez com que se desenvolvesse um temor por parte das classes
dominantes em relação a essa crescente politização das massas, em meio a uma
luta firme e constante pela transformação do país e por mais autonomia e influência
das classes populares e progressistas.
Uma parte importante desses setores da sociedade civil eram os
trabalhadores organizados em sindicatos. Gradativamente, nas pautas de
reivindicações dos trabalhadores, aspectos políticos passaram a ter cada vez mais
lugar e importância, dividindo espaço com reivindicações meramente econômicas.
Os operários tomaram a consciência de que sua força era significativa não
apenas para influenciar as relações de trabalho, mas que também havia a
possibilidade de conquistar políticas públicas e mesmo influenciar o projeto de nação
que favorecesse os operários e as demais classes populares.
Aliás, sabemos que sindicatos e partidos políticos sempre estiveram
vinculados na historia do Brasil depois dos anos 1920, período em que a influência
dos anarquistas diminuiu ao passo que a dos comunistas passou a ser cada vez
maior. Os anarquistas defendiam uma organização sindical desvinculada a qualquer
partido político oficial, enquanto os comunistas lutavam para que o Partido
Comunista Brasileiro (PCB) tivesse cada vez mais influência dentro dos sindicatos e
das centrais sindicais.
Com Getúlio Vargas à frente do país, dá-se a criação dos sindicatos ainda na
década de 1930, atrelados ao Ministério do Trabalho, ou seja, em colaboração com
o Estado, em detrimento das demandas dos trabalhadores. Na década de 1940,
ocorre a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que fornece um aparato legal
12 Como se perceberá adiante, houve mobilizações políticas em muitos setores populares ou de esquerda, como os camponeses, os operários, os estudantes, soldados e sargentos e intelectuais. Engajaram-se nessa tomada de consciência política e na politização de outros setores, núcleos partidários como o PTB e PCB, divulgando os ideais nacionalistas e desenvolvimentistas com base no projeto das reformas empunhado por Jango (TOLEDO, 1982).
21
para as relações trabalhistas, angariando o apoio de boa parte dos trabalhadores
(FERREIRA, 2003).
Nesses sindicatos, havia toda uma dinâmica própria de funcionamento, para
atender as demandas da categoria e definir os rumos tomados pelo sindicato, em
permanente conflito entre o atrelamento às diretrizes do Estado e uma autêntica
política de defesa dos interesses dos trabalhadores.
Nessa batalha pela direção do sindicato, os mecanismos de poder eram
disputados por diferentes correntes políticas, que tinham como objetivo estender e
consolidar sua influência sobre o sindicato e dessa forma controlar os rumos da
política sindical e até mesmo estender sua influência ao âmbito político-partidário.
Já na década de 1950, era notável a forte influência no movimento operário
por parte dos trabalhistas, ou seja, dos sindicalistas vinculados ao Partido
Trabalhista Brasileiro, criado por Getúlio Vargas. O PCB sentiu nesse período a
necessidade de constituir uma sólida aliança PTB – PCB, unidos pela convicção de
que o Brasil deveria superar o estágio de subdesenvolvimento, por meio da
estratégia desenvolvimentista-nacionalista13.
Em 1960 o PCB oficializava essa postura teórica reformista e
desenvolvimentista em seu V congresso. Essa tese foi oficializada baseada na
leitura histórica segundo a qual a revolução brasileira deveria ser anti-imperialista e
antifeudal (NEVES, 2004).
Dessa forma nos anos 1960, após a aliança com os trabalhistas, o PCB
constituía uma das maiores influências entre os operários, adotando a política
reformista, convergente com o PTB e com a política de João Goulart.
1.3.CONTRADIÇÕES DAS CLASSES MÉDIAS: IGREJA, EXÉRCI TO E
ESTUDANTES.
13 Em 1956 ocorreu o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, na qual Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stálin, fazendo a crítica ao culto à personalidade, tratando dos erros da condução do movimento comunista internacional. Isso fez com que os partidos comunistas submetidos à influência da URSS, passassem por um forte abalo. No Brasil não foi diferente. Na reunião do Comitê Central, a direção do Partido foi fortemente criticada e erige uma nova direção com um projeto político diferente. Nessa nova linha política, foi reconhecida a possibilidade da chegada ao poder por uma linha pacífica, de aliança com a burguesia nacional e progressista contra o imperialismo e a fração burguesa que a ela se tinha aliado (MAZZEO, 1999).
22
As classes médias estavam divididas entre o apoio entusiasmado das
reformas, que constituíam os grupos mais progressistas e nacionalistas e o profundo
medo das mudanças14, somado a um sentimento de superioridade às classes
populares que haviam despontado na participação política nas últimas décadas.
Uma parcela da classe média alinhada à direita e que recusava as reformas
estava dentro da estrutura burocrática das Forças Armadas. A reivindicação dos
soldados e sargentos por direito de voto, entre outras reivindicações15, alimentava o
temor por parte dos militares conservadores à ascensão desses aos cargos e às
promoções destinadas apenas aos militares “de família”16. Entre eles havia o
argumento de quebra de hierarquia, mas na realidade havia um profundo medo de
que as relações de poder dentro das Forças Armadas modificassem-se e que
viessem a perder seus privilégios.
Outra parcela da classe média conservadora estava dentro de outra estrutura
bem mais antiga que o exército brasileiro: a Igreja. Os altos escalões da Igreja
sentiram-se ameaçados por leigos e clérigos ligados aos setores populares,
envolvidos num movimento que mais tarde influenciariam uma corrente teológica
duramente reprimida nas décadas de 70 e 80: a Teologia da Libertação17.
14 Num movimento ideológico de transferência de visão de mundo, as classes dominantes cujos privilégios extravagantes eram de fato ameaçados pelas reformas, estendeu esse medo da perda dos privilégios e essa ameaça às classes médias, já portadoras de um preconceito pequeno-burguês contra os operários e camponeses, somado ao medo de sua crescente politização (FERREIRA, 2003). 15 Havia dentro das forças armadas setores identificados com o projeto reformista de Jango. Estes, oriundos da classe operária e camponesa, compunham os postos de soldados, cabos e sargentos que constituíam a massa do exército, ou seja, a maioria oprimida por regras obsoletas e maus tratos não questionados. Esses soldados reivindicavam questões pontuais de puro senso humanitário e democrático, como direito de voto, direito de livre associação, melhoria da alimentação, fim de castigos físicos, etc. Na reforma eleitoral, estava contida uma das reivindicações mais pertinentes e significativas para os soldados: o direito de voto. Não obstante, suas origens populares colocavam a mentalidade da caserna em conflito direto com sua realidade social e de suas famílias que sofriam dos problemas enfrentados por operários e camponeses: o problema da alimentação, da saúde, da moradia, etc. Para aprofundamento desse tema ver: MORAES. João Quartim de. A esquerda militar no Brasil. 2 ed. rev. São Paulo. Expressão Popular. 2005. 16 Aqueles militares que possuíam uma tradição familiar dentro das Forças Armadas, compondo uma elite que formava e defendia uma relação comparável a um monopólio dos quadros da oficialidade, detendo o controle da hierarquia militar. 17 De uma forma sintética, (uma vez que o autor faz uma contextualização de mundo e teologia para chegar a esse trecho no final do livro) essa citação isolada não explica, mas ajuda a iluminar alguns pontos básicos da Teologia da Libertação “A teologia da libertação é resposta à problemática pastoral da Igreja, especialmente colocada no contexto latino-americano, em que a luta pela libertação constitui uma exigência fundamental do Evangelho e uma antecipação do Reino de Deus.”(CATÃO, 1989, p.63) e aborda principalmente três aspectos fundamentais: “duas maneiras de encarar a religião, duas maneiras de ler a bíblia e o diálogo entre marxistas e cristãos.” (CATÃO, 1989, p.10). Ver: BOFF, Leonardo. Teologia do cativeiro e da libertação, ed. 2, Petrópolis, Vozes, 1976.
23
Entretanto, como anteriormente dito, nem toda a classe média era contrária
às reformas. Entre os estudantes havia não somente um apoio, mas também uma
luta efetiva pelas reformas. Setores representantes do nacionalismo e do reformismo
vinculados à Igreja Católica, a Juventude Estudantil Católica (JEC) e a Juventude
Universitária Católica (JUC), foram resultado da relação entre o existencialismo
cristão com o nacional-desenvolvimentismo de cunho reformista constituindo um
agrupamento denominado, muitas vezes, como esquerda cristã.
Esses grupos conquistaram a liderança do movimento estudantil não apenas
secundarista, como também universitário, comprometendo-se nos anos 60 com as
reformas que Jango empenhava-se em levar a cabo.
1.4.O GOLPE DESFERIDO
Em meados dos anos 1960, a economia brasileira capitalista,
subdesenvolvida e dependente, com face de democracia política estava entrando
em colapso. Havia o problema da inflação18, o recrudescimento das lutas de classes,
a dívida externa e muitos outros agravantes que faziam com que economia do país
estivesse em condições de elevada agitação, sob um véu de incertezas.
Dois modelos de desenvolvimento apresentavam-se com mais força: o
modelo nacional desenvolvimentista e o de modernização conservadora. O PTB,
partido de João Goulart e antes de Getúlio Vargas era defensor do nacional
desenvolvimentismo, partidários de um desenvolvimento autônomo que rompia com
a dependência exclusiva dos EUA, logrando mais autonomia e diversidade em suas
relações. A União Democrática Nacional, a UDN19 e outros setores da classe
dominante conservadora era partidária de uma modernização que se mantivesse a
18 O problema da inflação não se iniciou no governo de Jango, pelo contrário, vinha desde o governo de Juscelino Kubitschek, agravado ainda mais com Jânio Quadros e veio como uma indesejável herança para Jango. O problema era de tal modo grave, que os índices de crescimento o denunciavam de forma clara: em 1961 o crescimento nacional havia sido de 7,7%, em 1962 de 3,1%, em 1963 de 2% e em 1964, o país viveria o primeiro decréscimo dos últimos 25 anos. (BASBAUM, 1977). 19 A União Democrática Nacional, partido político conhecido como UDN, era composta por um grupo de homens das classes dominantes unidos por um ideário, um conjunto de ideias e convicções básicas que orientavam e serviam de base ideológica às suas ações ou pronunciamentos resumidos em decágolo: 1) Anticomunismo. 2) Defesa da iniciativa privada. 3) Anti-nacionalismo. 4) Antipopulismo. 5) Filiação à civilização cristã e ocidental. 6) Intocabilidade da terra. 7) Defesa do bi-partidarismo. 8) Sindicalismo controlado. 9) Paternalismo. 10) Poder civil (BASBAUM, 1977).
24
sombra dos Estados Unidos, desejosa de uma intensificação de uma suposta “ajuda
e cooperação” entre os países que, na realidade, exigia da parte do Brasil
submissão aos interesses estadunidenses, enquanto esses concediam algumas
migalhas em forma de pequenos privilégios.
Nesse sentido, segundo o projeto político seguido e aprimorado por João
Goulart, era necessário desenvolver o Brasil economicamente, isto é, industrializar
ainda mais o Brasil, potencializar sua economia sendo, para isso, necessário deixar
de lado a subserviência brasileira tanto econômica como diplomática, difundindo
ideias nacionalistas e soberanas.
O projeto segundo o qual essas mudanças se transformariam de ideias em
realidade concreta era o projeto das Reformas de Base. Era o projeto de um novo
Brasil, com uma economia mais livre dos entraves coloniais e estruturas arcaicas,
que abria espaço para o crescimento e dinamismo econômico e político.
Essas reformas contemplavam praticamente toda a sociedade, regulando a
área tributária, eleitoral, administrativa, urbana, bancária, universitária, cambial e
finalmente agrária que, sem dúvida alguma, era a que mais gerava polêmica entre
os setores conservadores, pois muitos entre eles eram latifundiários.
Os partidos, entretanto, não eram os únicos a estarem no jogo político. A
frágil democracia instituída em 1946 possibilitava uma crescente participação
popular, em que camponeses, operários e estudantes, compartilhavam ideias
políticas, enquanto setores conservadores e liberais se alarmavam perante os
trabalhadores acordados para a política.
A política em nossa república estava de fato tornando-se coisa pública20,
coisa do povo e o que a população representada pelos operários, camponeses e
estudantes (entre outros), exigiam eram as reformas de base, elemento constitutivo
do projeto nacional desenvolvimentista encabeçado por Jango.
No entanto as classes dominantes também se mobilizavam. Empresários,
militares de carreira e setores conservadores da Igreja Católica se uniram para
combater a execução das reformas e a politização das massas.
20 Política para os gregos eram todos os assuntos referentes a polis, naquele caso específico a Cidade-Estado, de forma mais abrangente ao coletivo, ao comum, enquanto República tem um significado de coisa do povo. No Brasil em meados dos anos 1960, a Política e a República uniram-se trazendo as discussões sobre o comum, à sociedade a todo o povo, isto é, tirou a política do exclusivo interesse das elites abrindo espaço a toda população num movimento inédito no Brasil democratizante de fato.
25
Essa oposição à Jango inicio-se antes mesmo de assumir a presidência,
podendo ser observado no que foi conhecido como “Campanha da Legalidade”.
Nessa ocasião, tendo Jânio Quadros renunciado em 1961, seu vice, João Goulart,
encontrava-se na China Popular em viagem de relações comerciais e por saber que
Quadros havia renunciado, decidiu interromper a viagem e retornar ao Brasil para
sua efetiva e legal nomeação de Presidente da República. Entretanto, no Brasil, a
mídia alardeava a oposição dos Ministros militares ao retorno de João Goulart e as
ameaças das Forças Armadas de detenção de Jango já no aeroporto.
Tanta oposição e histeria davam-se por conta de sua relação política com
Getúlio Vargas e seu antigo cargo de Ministro do Trabalho, tendo fama entre a
direita liberal e conservadora de “demagogo sindicalista” e “corrupto negociante”
devido ao seu apoio às manifestações grevistas dos trabalhadores (TOLEDO, 1982).
Entretanto, nem todos eram favoráveis ao veto militar à posse de Jango.
Governadores e parlamentares, sindicatos e associações de empresários,
estudantes e alguns setores militares eram favoráveis ao cumprimento constitucional
que garantia à João Goulart o cargo de Presidente da República em caso de
renúncia de Quadros.
O centro da resistência legalista foi Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul
que era governada por Leonel Brizola. Este mobilizou toda a população para
defender de armas na mão o cumprimento constitucional, com o apoio do III Exército
sob comando do Gal. Machado Lopes. Utilizou dos recursos governamentais para
criar a Rede da Legalidade por meio da radiodifusão em que era possível acessar
informações e articular um movimento nacional antigolpista (TOLEDO, 1982).
No restante do país houve também significativas manifestações a favor da
posse de João Goulart. Expressivos setores militares posicionaram-se contra o
golpe, o CGG (Comando Geral da Greve - embrião do CGT21) decretou greve geral
decorrente de inúmeras greves políticas de diversos setores e a União Nacional dos
Estudantes (UNE) decretou greve nacional em apoio à posse de Jango.
Em suma, representando a vontade popular, o congresso nacional rechaçou a
investida golpista militar, enquanto setores políticos de direita (UDN e PSD)22 já
articulavam um novo golpe. Esses partidos conservadores propunham uma
alteração do sistema de governo de presidencialista para o sistema parlamentarista,
21 Comando Geral do Trabalho. 22 União Democrática Nacional e Partido Social Democrático.
26
apesar da manobra política ser ilegal, uma vez que a constituição proibia qualquer
reforma constitucional em clima de insurreição.
Em votação, o “golpe branco” venceu e João Goulart aceitou ser empossado
presidente da República, num parlamentarismo às avessas23. O governo
parlamentarista não conseguiu atenuar as tensões sociais, pelo contrário, atava as
mãos da direita e da esquerda, agravando ainda mais a situação do país. No
referendo programado para que a população reiterasse ou rechaçasse a forma de
governo parlamentarista, Jango obteve uma vitória política. Com expressiva maioria,
a população optou pela forma presidencialista, de tal forma que o presidente João
Goulart passou a ter diante de si o desafio de dar uma solução ao caos econômico,
sendo que as classes dominantes esperavam que Jango atenuasse as tensões
sociais, reprimindo as massas (TOLEDO, 1982).
O governo de Jango apresentou para isso um plano para a solução da crise
econômico-financeira. Este foi denominado “Plano Trienal de Desenvolvimento
Econômico-Social: 1963-1965”, havendo sido formulado por Celso Furtado, Ministro
do Planejamento em parceria com San Thiago Dantas, Ministro da Fazenda.
O Plano Trienal tinha a função de satisfazer interesses antagônicos das elites
e dos setores populares, dos proprietários e dos que nada tinham para sua renda
além da força de trabalho, com uma fórmula que combatia a inflação sem sacrificar o
crescimento econômico, ao passo que caminhava em direção à atenuação das
desigualdades regionais.
Ao mesmo tempo, o governo pedia que houvesse por parte da sociedade bom
senso e moderação: aos empresários era requisitado que moderassem seu apetite
por lucros cada vez maiores, ao passo que aos trabalhadores assalariados era
requerido que suportassem com paciência a precarização de seu trabalho e suas
condições de vida, adiando suas greves e paralisações (TOLEDO, 1982).
Logo surgiram críticas por parte das organizações sindicais questionando a
manutenção dos “lucros fabulosos do capital estrangeiro, dos latifundiários e dos
grandes grupos econômicos nacionais, [enquanto] impunha, por outro lado, maiores
sacrifícios às classes populares e trabalhadoras.” (TOLEDO, 1982, p.47).
23 “De acordo com a emenda parlamentarista, o Poder Executivo passava a ser exercido pelo presidente da República e por um Conselho de Ministros (Gabinete Parlamentar), a quem caberia a “direção e a responsabilidade da política do governo, assim como a administração federal”. Ao presidente competiria nomear o presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro) ou chefe do governo e, por indicação deste, os demais membros ministros de Estado.” (TOLEDO, 1982, p.20).
27
O Plano resultou num fracasso, não tendo nem impedido a inflação, nem
aumentado o crescimento, enquanto fez com que tanto os grupos de direita, como
de esquerda demonstrassem descontentamento como resultado da política ambígua
de Jango.
Se por um lado, seu governo se propunha a realizar as reformas,
aproximando-se dos setores das esquerdas e nacionalistas, afastando-se da direita,
tanto a de caráter liberal quanto a conservadora, por outro, não realizava medidas
populares, afastava institucionalmente personalidades de esquerda do governo e
reprimia setores independentes (não pelegos) no sindicalismo.
O efeito dessa política ambígua numa tentativa conciliatória foi o isolamento
político decorrente de uma desconfiança por parte da direita e da esquerda. No
discurso a política era uma, na prática outra. Outro fator que potencializou o
isolamento político de Jango eram os boatos sobre manobras de cunho continuísta,
isto é, de tentativa de alteração da constituição para possibilitar a reeleição,
afastando o apoio de políticos como Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola e
Magalhães Pinto (TOLEDO, 1982).
Nesse momento, a mídia alardeava discursos inflamados sobre uma república
sindicalista que Goulart tentava implantar no Brasil, quando não tecia demagógicos
discursos sobre a comunização do país e sobre uma guerra civil preparada para
implantar o caos e a desordem. Não era rara ou incomum uma ou outra apelação à
intervenção das forças armadas.
Por fim, vendo-se isolado, Jango efetuou uma guinada à esquerda, numa
desesperada tentativa de obter apoio político, no comício de 13 de março de 1964, o
“Comício das Reformas” que visava pressionar o legislativo para a aprovação das
reformas de base.
Compareceram nesse comício 200 mil pessoas portando cartazes que
expressavam o elevado grau de politização das massas com dizeres: “Reformas ou
Revolução”, “Forca para os gorilas!”, “Yankee, go home”, “Defenderemos as
Reformas à bala!”, “Legalidade para o PCB”, “Reeleição de Jango!”. Tamanha
politização trouxe grande temor às classes médias e burguesia (TOLEDO, 1982).
Jango correspondeu com um discurso inflamado de 3 horas em que atacava a
“democracia dos monopólios nacionais e internacionais”, as “associações de classes
conservadoras”, a “mistificação do anticomunismo”, a campanha dos “rosários da fé
contra o povo”, os “privilégios das minorias proprietárias de terras”, encerrando o
28
discurso com o anúncio da promulgação de dois decretos: o da nacionalização das
refinarias particulares de petróleo e o da desapropriação das propriedades de terras
com mais de 100 hectares que ladeavam as rodovias e ferrovias federais e açude
públicos federais (TOLEDO, 1982).
Afastado, portanto, do apoio das forças políticas de direita e de esquerda,
Jango isolou-se das possíveis bases de sustentação, logrando manter-se na
presidência com o apoio popular. Essa última radicalização esboçada nos comícios
encerra praticamente sua vida política pois, logo em seguida, o golpe foi desferido
com as manobras militares24.
Como apresentado anteriormente, a sociedade brasileira no início dos anos
1960 se agitava com distúrbios econômicos amplos e gerais dentre os quais a
inflação e em conflitos sociais com os setores populares que movimentavam-se
tanto no campo, como o exemplo das Ligas Camponesas, quanto na cidade, como o
Sindicalismo, o Movimento Estudantil, parcelas nacionalistas e populares das Forças
Armadas e Clérigos e Leigos vinculados à Igreja Católica mais ligados aos
movimentos populares.
Essa parcela significante da sociedade reivindicava nos marcos da
democracia legal, uma aplicação de seus direitos e alguns setores mais radicais
propunham uma extensão do limite do direito, ou seja, lutavam para que seus
direitos fossem ampliados e que a legislação desse o respaldo do Estado para a
consolidação de suas conquistas como era o caso, por exemplo, do movimento dos
soldados pelo direito de voto.
Entretanto, uma fração expressiva da burguesia brasileira estava intimamente
ligada à burguesia imperialista (principalmente estadunidense) e essa ampliação
democrática era desinteressante tanto para essa burguesia nacional, pois significaria
a perda de alguns privilégios e risco à sua dominação crua e inquestionada, quanto
para a burguesia internacional, pois representaria um avanço no desenvolvimento do
país, que implicava na dinamização da economia brasileira, resultado da
concretização do projeto de reformas, assim como a politização da população
poderia levar a um nacionalismo perigoso para esse imperialismo, como, por
24 A partir da iniciativa golpista do gal. Mourão Filho, que ordenou na madrugada de 31 de março a movimentação de suas tropas em direção ao Rio de Janeiro, uma série de outras movimentações militares se seguiram, enquanto o Governo Federal, encabeçado por Jango, fez muito pouco para que fossem detidos (TOLEDO, 1982).
29
exemplo, na aprovação da lei de remessas de lucro, que limitava a quantidade de
capital exportado para o país sede da multinacional25.
Dessa forma, os interesses de setores dominantes prevaleceram tendo por
representantes partidos políticos como a UDN e PSD, principais partidos opositores
a Jango, além da mobilização de grupos de oficiais das Forças Armadas que tinham
se associado ao capital multinacional26, a mídia, portadora de um discurso golpista27
e finalmente grupos conservadores da Igreja Católica, promovendo marchas e
missas28 que culminaram na ação golpista que destituiu o presidente João Goulart.
É evidente e inegável que o ocorrido no dia 1° de Abril de 1964, foi uma
violação à frágil democracia instituída em 1946. Enquanto os militares afirmam terem
feito uma revolução, há praticamente um consenso na historiografia de que a
ascensão dos militares ao poder foi um golpe de estado.
Ora, se havia alguma revolução por acontecer não estabelecia relação
nenhuma com a tomada de poder pelos militares. Ouve-se ainda hoje que o golpe
militar ocorreu para que não se concretizasse uma revolução que estava por vir à
tona. Se de fato havia alguma revolução em curso, não era, em hipótese alguma,
uma revolução de caráter comunista. Era uma revolução democrática que lograva
25 Entre 1947 e 1960 entraram (empréstimos e investimentos) US$ 1.814 milhões e “saíram no mesmo período... US$ 2.459 milhões sob a forma de remessas de lucros e juros, deixando um saldo negativo da ordem de US$ 650 milhões” que, “acrescidos de US$ 1.022 sob a rubrica Serviços, ou seja, remessas de lucros clandestinas perfaziam um total de US$ 1.667 milhões. Em suma, num período de 13 anos, um volume considerável de dólares foi transferido do Brasil para os EUA. Rigorosamente, exportávamos muito mais capitais do que recebíamos” (TOLEDO apud BANDEIRA, 1977, p. 50). 26 “Alguns oficiais militares eram diretores importantes e acionistas de corporações privadas como o General Riograndino Kruel e o General James Masson (Eletrônica Kruel S.A.), General Paulo Tasso de Resende (Moinhos Rio-grandenses Samrig S.A. – grupo Bung & Born), Brigadeiro Eduardo Gomes (Kosmos Engenharia S.A.), General Joaquim Ribeiro Monteiro (Cia. Carbonos Coloidais, C.C.C. – grupo Wolney Attalla), General Edmundo Macedo Soares e Silva (Volkswagen, Mesbla S.A. – Schering Corporation e grupo Assis Chateaubriant), General Moziul Moreira Lima (Máquinas Moreira S.A.) e Almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (Rupturita S.A. Explosivos – Sociedade Financeira Portuguesa).” (DREIFUSS, 1981, p.78). 27 “Através da mídia audiovisual organizava um extraordinário bombardeio ideológico e político contra o Executivo. Procurava também moldar opiniões dentro das Forças Armadas, infundindo o senso de eminente destruição da “hierarquia, instituições e da nação” estimulando uma reação quase histérica das classes médias que, por sua vez, fortaleciam a racionalização militar para a intervenção.” (DREIFUSS, 1981, p. 243-244). 28 “Entre estas manifestações civis, destacou-se a ‘Marcha da Família com Deus pela Liberdade’, realizada em São Paulo, no dia 19 de março, reunindo cerca de 500 mil pessoas. [...] Como observou um estudioso, tais demonstrações públicas tinham o propósito de ‘criar clima sócio-político favorável à intervenção militar, bem como de incitar diretamente as forças armadas ao golpe de estado’ (Décio Saes, “Classe Média e Política” in: Brasil Republicano, vol. 3). Estas manifestações civis – onde praticamente era inexistente a presença popular e operária – nunca foram “espontâneas”; além de se inspirarem em campanhas anticomunistas realizadas em outros países, sempre foram estimuladas e incentivadas pelos conspiradores na área militar.” (TOLEDO, 1982, p. 99-100).
30
transformar nossa frágil democracia representativa (que apenas mantinha as antigas
relações de poder das classes dominantes) em uma democracia de participação
direta, com ampla mobilização popular, executando um projeto que era popular, o
projeto das reformas que retirava os entraves da economia, que nada mais eram do
que privilégios das classes dominantes associadas ao capital internacional, ao passo
que concedia melhores condições de sobrevivência ao operário e ao camponês.
Nesse sentido Fernandes (1981) discorda do termo revolução para o ocorrido
em 1964, uma vez que:
A palavra revolução tem sido empregada de modo a provocar confusões. Por exemplo, quando se fala de "revolução institucional", com referência ao golpe de Estado de 1964. É patente que aí se pretendia acobertar o que ocorreu de fato, o uso da violência militar para impedir a continuidade da revolução democrática (a palavra correta seria contra-revolução: mas quais são os contrarevolucionários, que gostam de se ver na própria pele?) (FERNANDES, 1981, p.1).
Fazendo referência ao uso do termo revolução para o golpe de 1964,
Fernandes ressalta a intencionalidade do uso das palavras que expressam uma
relação de dominação:
Se um golpe de Estado é descrito como "revolução", isso não acontece por acaso. Em primeiro lugar, há uma intenção: a de simular que a revolução democrática não teria sido interrompida. Portanto, os agentes do golpe de Estado estariam servindo à Nação como um todo (e não privando a Nação de uma ordem política legítima com fins estritamente egoístas e antinacionais). Em segundo lugar, há uma intimidação: uma revolução dita as suas leis, os seus limites e o que ela extingue ou não tolera (em suma, golpe de Estado criou uma ordem ilegítima que se inculcava redentora; mas, na realidade, o "império da lei" abolia o direito e implantava a "força das baionetas": não há mais aparências de anarquia, porque a própria sociedade deixava de secretar suas energias democráticas). No conjunto, o golpe de Estado extraía a sua vitalidade e a sua autojustificação de argumentos que nada tinham a ver com "o consentimento" ou com "as necessidades" da Nação como um todo. Ele se voltava contra ela por que uma parte precisava anular e submeter à outra à sua vontade e discrição pela força bruta (ainda que mediada por certas instituições). Nessa conjuntura, confundir os espíritos quanto ao significado de determinadas palavras-chave vinha a ser fundamental. É por aí que começa a inversão das relações normais de dominação. Fica mais difícil para o dominado entender o que está acontecendo e mais fácil defender os abusos e as violações cometidas pelos donos do poder (FERNANDES, 1981, p.9).
Após o golpe de Estado, o Brasil, aliado dos Estados Unidos em plena Guerra
Fria, manteve seu capitalismo dependente atrasado e radicalmente desigual. Seu
regime político, agora configurado como uma ditadura de caráter militar, ocultando
uma ditadura da burguesia, incitava protestos de uma parcela da população que
sabia que a república havia sido violada. As reformas desejadas por amplos setores
31
da população, cada vez mais politizados e conscientes de seu poder, haviam
ameaçado os privilégios de antigas elites que desde o período colonial dominaram o
cenário político econômico brasileiro, somado ao assombro provocado pelo fim da
apatia da população.
[...] No momento em que o povo passou a exigir uma democracia mais real, uma democracia que atingisse a maioria da população, grande parte dos beneficiários do antigo regime assustou-se e o verdadeiro autoritarismo veio à tona. Como resposta àquilo que ficou conhecido como a radicalização de 1963/64, grande parte da nossa burguesia e a burguesia internacional aqui instalada decretou que nossa restritíssima democracia estava se tornando perigosa para seus interesses. A máscara democrática foi guardada com cuidado (pois ela sempre poderá encontrar utilização no futuro) e os militares tomaram o poder: o regime autoritário sem disfarces iria garantir os interesses da burguesia. (SPINDEL, 1985, p.36).
A tão louvada democracia, brandida pelos arautos do liberalismo apenas tinha
valia quando essa ordem era controlada pelas elites. A partir do momento em que a
democracia ameaçou deixar de ser apenas um discurso vazio e passou a ser prática
efetiva e instrumento para a emancipação dos trabalhadores, ela não serviu mais.
No fim da década de 1950, a democracia no Brasil lentamente deixava de ser
meramente instrumento de dominação burguesa e passava a ter num horizonte
mesmo que distante a perspectiva de uma outra democracia com intensa
participação popular. Dessa forma, quando o regime democrático deixou de ser
interesse das classes dominantes, pôs-se sobre ele uma carapuça vermelha,
transformando-o em um “regime comunizante” mesmo que não portasse em si a
defesa da abolição da propriedade privada e sua consequente socialização.
Spindel (1985) explora o caráter classista da ditadura militar brasileira
afirmando que Estado constitui elemento de dominação social de uma classe sobre
as demais. Segundo ele:
Como sabemos, todo regime político responde aos interesses de uma determinada classe social; o Estado é a instituição que permite a uma das classes exercer seu poder sobre as demais classes da sociedade. Por este motivo, o poder do ditador não emana de sua própria figura e nem é irrestrito; na verdade, ele emana de uma determinada classe social e só é irrestrito dentro dos limites estabelecidos pelos interesses econômicos desta classe social da qual ele é o representante (SPINDEL, 1985, p.8).
Nesse sentido, o poder dos militares estava baseado na manutenção da
ordem e no favorecimento das classes dominantes, enquanto seus privilégios
permaneciam intocados, em detrimento dos interesses da população que
reivindicava uma maior participação no pré-golpe.
32
2.RESISTÊNCIAS À DITADURA MILITAR
Desde o momento em que as tropas golpistas foram às ruas, Goulart já havia
decidido não resistir, uma vez que recebeu o telefonema, nas primeiras horas do
golpe,29 dos generais Peri Beviláqua e Amauri Kruel, oferecendo-se para servirem
de mediadores entre ele e os golpistas, desde que Jango se comprometesse a fazer
algumas concessões políticas, negadas por ele.
Em seguida, Jango foi para Porto Alegre. Lá encontrou-se com o general
Ladário Teles, que trabalhava na consolidação de uma base territorial para
resistência ao golpe.
Isso é muito significativo, pois o controle do III Exército era fundamental para
uma resistência, tanto pelo que era, quanto pelo que representava, uma vez que,
quando impedido de tomar posse do cargo de presidente, ainda em 1961, fora o III
Exército que forneceu subsídio à “campanha da legalidade”, liderado pelo então
governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola.
Dessa forma, o III Exército representava uma base forte e segura para a
resistência aos golpistas, uma vez que já tinham obtido sucesso em outra ocasião.
Entretanto, o general Ladário Teles não obteve permissão de Jango para uma
efetiva resistência (QUARTIM DE MORAES in TOLEDO, 1997, p. 125).
Assim, como a resistência ao golpe não se tornou efetiva, o general Humberto
Castelo Branco foi escolhido por uma junta militar como o presidente do Brasil, sem
que na sociedade civil, houvesse alguma resistência expressiva ou mesmo efetiva
ao autoritarismo praticado.
Mesmo havendo uma preocupação de preservar uma máscara democrática,
houve inúmeras cassações, prisões e sequestros com o decreto do Ato Institucional
1, o AI-130.
29 Quando as tropas do general Mourão Filho se deslocavam de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. (TOLEDO, 1982). 30 “De acordo com o Ato institucional n.°1, que dava ao governo revolucionário o direito de cassar mandatos ao seu livre critério e suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos, por dez anos, sem necessidade de justificação, sem julgamento, sem querer ouvir os condenados e menos ainda dar-lhes direito de defesa, começaram as prisões e perseguições logo no dia seguinte ao da instalação do novo poder. E as cassações também.” (BASBAUM, 1977, p. 141).
33
Houve de fato, no início, muita euforia, manchetes sensacionalistas nos
jornais, havendo nas pessoas mais politizadas, ou melhor informadas, uma suspeita,
uma desconfiança, um temor causado pela incerteza do que viria.
E o que veio foi o terror, nos termos de Bandeira (1977):
As Ligas Camponesas desapareceram, os sindicatos ficaram reduzidos às suas quatro paredes, os comunistas se evaporaram e se recolheram aos seus buracos subterrâneos, por ordem do Comitê Central, os jornalistas, com pouquíssimas exceções, calaram e os deputados emudeceram. A paz dos cemitérios fora instalada no País (p.144).
A repressão foi violenta. Houve intervenções nos sindicatos, muitas delas com
prisões e sequestros. A greve dita de solidariedade ou política fora proibida, as
manifestações públicas reprimidas.
Entretanto, o que a ditadura militar desejava não era o simples fim dos
sindicatos, mas o fim de um tipo específico de sindicalismo. Os militares tinham
interesse em pôr um fim em um tipo de sindicalismo autônomo e combativo,
perseguindo seus líderes e colocando em seus lugares, sindicalistas mais afinados
com os interesses do Estado.
Houve, em verdade, um estímulo nas políticas paternalistas para tornar mais
atrativa a participação no sindicato sob rédeas, oferecendo benefícios, de forma que
fosse totalmente preenchida essa área de mobilização social, não com luta sindical,
nem questionamento, mas com recreação e assistencialismo31.
Esse movimento sindicalizante atingiu não apenas a cidade, mas no campo
também foi marcante essa política. E no campo, contribuiu para desmobilizar os
camponeses dos movimentos sociais aos quais estavam inseridos, alterando as
pautas políticas e fornecendo benefícios de caráter meramente assistencialista.
No exército, o movimento dos sargentos foi duramente reprimido com
transferências, prisões e outras punições. Ocorreram diversos expurgos de oficiais
nacionalistas ou legalistas que demonstraram apoio à Jango, colocando-se contra o
golpe e por isso sofreram a perseguição do Estado.
Nesse contexto de grande repressão às mobilizações sociais, o movimento
estudantil prosseguiu em seu processo de rearticulação e apresentou na segunda
metade da década de 1960, uma forte oposição à ditadura militar.
31 Sobre o sindicalismo no período ditatorial militar, ver: SANTANA, 2008.
34
2.1.MOVIMENTO ESTUDANTIL 1960 – 1966: COMPLEXO E CO NTRADITÓRIO.
Na concretização da proposta de análise referente ao movimento estudantil
do ano de 1966, foco dessa pesquisa, não basta apenas partir do golpe militar para
um encadeamento coerente do processo de lutas, pois um dos grandes movimentos
grevistas dos estudantes dá-se em 1962, tendo grande importância tanto por seus
objetivos imediatos, quanto por sua capacidade de mobilização.
Na década de 1960, os estudantes defrontavam-se com um modelo
universitário excludente e ultrapassado, que contribuiu para a mobilização estudantil
e no engajamento em uma luta para modificar o então modelo vigente.
Esse sentimento de insatisfação culminou na criação do 1° Seminário
Nacional de Reforma Universitária, em 1960, promovido pela UNE, em Salvador,
Bahia32. Desse seminário resultou a chamada Declaração da Bahia, na qual os
estudantes declaravam a necessidade de uma reforma na Universidade brasileira.
Contendo três títulos, “A realidade brasileira”, “A Universidade no Brasil” e “A
Reforma Universitária”, essa declaração fazia uma leitura histórica sobre o Brasil, a
Universidade e o papel da universidade. Já no início do texto, essa consciência
histórica do papel da Universidade no país era apresentada:
Incumbe-nos esboçar a missão de uma Universidade existencialmente entendida, comprometida com as necessidades concretas do povo brasileiro. Universidade historicamente datada e sociologicamente situada na segunda metade do século XX, num País em fase de desenvolvimento. (POERNER, 1979, p. 190)
Percebiam, portanto, a realidade brasileira como uma sociedade desigual,
classista, com um capitalismo em desenvolvimento, que mantinha, entretanto, uma
estrutura agrária e denunciavam inclusive a exploração estrangeira. Quanto à
Universidade no Brasil, declaravam-na como falha por reproduzir as desigualdades
sociais, apontando-a como excludente, ficando aquém cultural, profissional e
socialmente.
32 Antes do seminário, os estudantes baianos deflagraram uma greve que deu destaque ao debate sobre a necessidade de uma Reforma Universitária no País.
35
O modelo Universitário do Brasil, apresentava-se para os estudantes, como
atrasado e insuficiente, não coerente com a realidade brasileira. Propunham,
portanto, uma reforma universitária em alguns aspectos:
1) a luta pela democratização do ensino, com o acesso de todos à educação, em todos os graus; 2) a abertura da Universidade ao povo, mediante a criação de cursos acessíveis a todos: de alfabetização, de formação de líderes sindicais (nas Faculdades de Direito) e de mestres-de-obras (nas Faculdades de Engenharia), por exemplo; 3) a condução dos universitários a uma atuação política em defesa dos interesses operários (POERNER, 1979, p. 192).
A Declaração da Bahia, dessa forma, fazia uma leitura lúcida do presente e
apresentava propostas de mudanças coerentes. Entretanto, não apresentava um
caminho a ser trilhado para que seus objetivos fossem alcançados e essa questão
ficou clara para a UNE após essa declaração, motivando dois anos depois, o 2°
Seminário Nacional de Reforma Universitária, realizado na cidade de Curitiba,
Paraná.
Esse seminário aprofundou as considerações sobre a análise da conjuntura
nacional e, mais especificamente, da Universidade inserida nesse contexto,
apresentando, entretanto, basicamente dois elementos inovadores: 1) Inseriu a
Reforma Universitária no âmbito das Reformas de Base defendidas por Jango; 2)
Como meio para influenciar diretamente os rumos da Universidade, foi estipulado
uma porcentagem da participação dos estudantes em suas instâncias
administrativas em um terço, uma vez que, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional33 assegurava a participação estudantil.
Desencadearam, assim, caravanas de alcance nacional que foram
denominadas “UNE-Volante34”, realizando uma massiva campanha de propaganda,
utilizando inclusive o teatro popular do CPC35. A perspectiva de obter uma
participação mais direta e eficaz nas instituições de ensino, encontrou amplo e
rápido respaldo entre os estudantes, enquanto as caravanas afirmavam cada vez
33 Lei Federal n° 4.024, de 20 de dezembro de 1961. 34 “[Realizaram] cerca de 200 assembleias universitárias, ao mesmo tempo em que levava 50 mil estudantes às apresentações do teatro popular do CPC.” (MARTINS FILHO, 1987, p. 56). 35 “O Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE levava às favelas e subúrbios um teatro de esclarecimento, protesto e denúncia – no qual a juventude descobria nova trincheira. [...] Através da UNE-Volante, o CPC levou sua mensagem cultural a todas as capitais do País, onde plantou as sementes dos CPCs estaduais, como o da Bahia, foco de onde se irradiou, graças também a isso, o movimento de renovação da música popular brasileira.” (POERNER, 1979, p. 199).
36
mais a presença e a unidade da UNE, que visitou quase todos os estados, tendo
como lema “A UNE veio para unir” (MARTINS FILHO, 1987, p.56).
Após o trabalho de base, a UNE decretou greve nacional, com ampla
participação entre os estudantes, sendo que a maior parte das 40 Universidades
aderiram à greve. Entretanto, a greve iniciada em fins de Março não atingiu seus
objetivos principais, tendo seu fim em meados de agosto, num recuo da direção da
UNE.
Apesar de fracassar nos objetivos principais, a greve por 1/3 serviu para
expressar concretamente o anseio que tomava conta dos estudantes pela renovação
da Universidade, sendo um dos meios para isso, a participação estudantil na
administração universitária aliada à luta pelas reformas de base que continha a
Reforma Universitária.
Houve em sequência um refluxo do movimento estudantil, originado pelo
desgaste da UNE no esforço de greve, e o golpe de 1964 encontra o movimento
estudantil ainda no final desse processo de refluxo, esboçando ensaios tímidos de
recuperação.
Entretanto, a UNE foi atingida em cheio pela ditadura militar nas agremiações
que se destacavam por uma militância mais próxima da esquerda, enquanto as
organizações estudantis mais pautadas pela posição liberal e elitista sobreviveram
relativamente intactas e são justamente essas ultimas que vão protagonizar os
primeiros acenos de resistência às iniciativas do governo ditatorial militar (MARTINS
FILHO, 1987).
No momento do golpe, a UNE encontrava-se desarticulada, em processo de
recuperação e reorganização, sendo que apenas uma tímida e localizada reação foi
esboçada por estudantes em defesa da legalidade, enquanto outros setores
estudantis apoiaram passivamente o golpe.
A repressão ao movimento estudantil, entretanto, foi mais propriamente pela
força do que politicamente. Diferente do que havia feito no movimento sindical e
camponês, a ditadura não pode avançar além do uso brutal e indiscriminado da
força36, isto é, não pôde usar de mecanismos de controle interno nas agremiações
para conter desde a base, toda e qualquer oposição.
36 Embora o uso da repressão física (prisões, assassinatos, sequestros e ameaças) foi mais violento nos movimentos operário e camponês.
37
Cabe mencionar que o movimento operário e camponês estavam ligados a
instituições sindicais sob controle do Estado, estando passivos a esse tipo de
manobra no interior de seus órgãos de representação, enquanto que a UNE, apesar
de ser regulamentada pelo Estado, e dele receber verbas, sua estrutura não abria
margem para que o Estado efetivasse um ataque estrategicamente interno e
portanto, reduzia os efeitos desses ataques institucionais para desmobilização
política dos estudantes.
Logo, estando o órgão de representação estudantil em âmbito nacional além
das alterações internas em seus estatutos e direção por parte do executivo, os
estudantes tiveram um espaço maior para se mobilizar. Assim, a ditadura,
reconhecendo na UNE essa distância da interferência estatal, se esforçou, portanto
para destruí-la e substituí-la.
Essa distancia institucional entre a UNE e o Estado fez com que no governo
do Marechal Castelo Branco fosse promulgada a Lei n° 4.464, de novembro de
1964, conhecida como Lei Suplicy de Lacerda37, que realizava um esforço para
trazer o movimento estudantil à sombra estatal, criando novos órgãos passíveis de
influência direta, sendo um para substituição da UNE em âmbito nacional e outros
para substituir os órgãos estaduais filiados ao órgão nacional. O objetivo era que por
meio desse novo sistema o governo ditatorial pudesse mais facilmente impor suas
diretrizes e ampliar sua influência. Assim,
A Lei Suplicy de Lacerda visou, especialmente,à extinção do movimento estudantil brasileiro. Para acabar com a participação política dos estudantes, a Lei procurou destruir a autonomia e a representatividade do movimento, deformando as entidades estudantis, em todos os escalões, ao transformá-las em meros apêndices do Ministério da Educação, dele dependentes em verbas e orientação. (POERNER, 1979, p. 231).
37 O nome da lei fazia referência a seu autor, Flávio Suplicy de Lacerda que havia sido escolhido por Castelo Branco para o Ministério da Educação. Havia sido Reitor da Universidade Federal do Paraná e antigo integralista. Segundo Basbaum, “[...] O mesmo que mandara arrancar algumas páginas de livros de Eça de Queirós, Emílio Zola e outros por considerá-las obscenas. Guindado ao poder esse expoente da cultura revolucionária [golpista], seu primeiro ato foi denunciar o perigo de <<certos livros>>, estimulando a polícia e alguns capitães do exército a eliminá-los. Milhares de livros, de nome suspeito ou de capa vermelha, foram apreendidos aqui e ali, por todo o país, nas livrarias e nas editoras e, em algumas cidades, como em Florianópolis, foram muitos queimados em fogueiras revolucionárias enquanto outros eram simplesmente apreendidos para serem subrepetíciamente revendidos às livrarias e aos <<sebos>> pelos intelectuais da polícia.” (BASBAUM, 1977, p. 169)
38
Após a repressão física38 aos estudantes e às lideranças de esquerda,
colocou-se como necessidade substituir a estrutura independente e autônoma dos
estudantes por outra vinculada ao estado subordinada às suas diretrizes.
Criava-se, portanto, um novo órgão de agremiação estudantil nacional e
outros estaduais, entretanto, com um caráter de vinculação estreita com o Estado,
dependendo não apenas de suas verbas, mas também de sua orientação, por meio
do Ministério da Educação.
O governo ditatorial, entretanto, não apresentou esforços adicionais no
sentido de impor um fim à UNE e seu funcionamento, provavelmente por acreditar
que com um novo órgão de representação dos estudantes e com os desvios das
verbas estatais para esse último, faria a UNE definhar e morrer sem o apoio da
categoria e sem recursos estatais.
Nesse período não houve outros ataques do Estado além do corte de verbas,
que, segundo as expectativas do governo, faria o órgão máximo dos estudantes ter
seu fim. Entretanto, as lutas estudantis encaminhadas pela UNE, principalmente pela
greve por 1/3, agiram como aglutinador da categoria estudantil, colaborando no
sentido de tornar a representatividade desse órgão muito mais efetiva,
estabelecendo, fortalecendo e ampliando laços de pertencimento entre os
estudantes e a entidade que os representava nacionalmente.
Como anteriormente afirmado, a greve por 1/3 gerou um esforço muito grande
na categoria estudantil e uma derrota dos seus objetivos imediatos enfraquecendo o
potencial de luta política no cenário nacional. Apesar disso, houve uma vitória junto
às bases do movimento que nada mais era do que a consolidação do consenso de
que o órgão máximo representativo dos estudantes era a UNE e nenhum outro. Ou
seja, houve de fato um auto-reconhecimento dos estudantes na UNE.
A perspectiva praticamente nula de participação estudantil nas universidades
e o voto obrigatório nas eleições das novas entidades criadas com a Lei Suplicy,
serviram como catalisadores da oposição à essas novas organizações estudantis,
cerrando fileiras em torno da UNE (MARTINS FILHO, 1987) uma vez que a
participação estudantil na reorganização da universidade e nas decisões sobre a
38 Repressão física ou direta, aqui é entendida como todo tipo de violência, brutalidade e perseguição por parte do Estado aos movimentos sociais neste caso, á estudantes que faziam parte principalmente de Diretórios Acadêmicos de “esquerda”, enquanto repressão política, institucional, ou indireta, são as medidas administrativas empreendidas pela ditadura para minar desde a base toda articulação e mobilização dos movimentos sociais de forma prévia.
39
universidade eram necessidades sentidas pelos estudantes e o voto obrigatório agia
como expressão do autoritarismo ditatorial.
Essas medidas fizeram com que correntes estudantis tanto de esquerda (que
sofriam fortemente a repressão e a violência do Estado) quanto de cunho liberal
elitista, percebessem-se lutando em defesa de uma bandeira comum, a defesa da
UNE. Os setores estudantis de direita, apesar de se debaterem internamente com as
diretrizes da UNE, não eram propriamente contra ela especificamente, mas contra o
seu controle pelos setores de esquerda39, mais propriamente a Ação Popular40.
Nessa nebulosa reorganização, definição de rumos, resistências e repressões
sem uma marca expressiva de posições transcorreu o ano de 1965. Apesar disso, o
que se pode afirmar, é que a UNE sobreviveu à esse ano num contexto não apenas
de repressão física, mas também do fim da liberação de verbas nacionais à UNE
que realizou nesse ano, apesar dessas dificuldades, seu último congresso legal,
passando a partir de então à atividade clandestina.
Apesar desse aparente imobilismo estudantil durante 1964 e 1965, os órgãos
de representação estudantil, tanto locais e regionais quanto em âmbito nacional,
encontravam-se em uma intensa convulsão, na qual predominavam as muitas
tentativas de avaliação da realidade, dos debates de ideias e de reorganização
interna em meio à repressão física e política.
Dessa forma, o ano de 1966 apresentou como sínteses dessas intensas
contradições, conflitos e pressões, um ano de intensa atividade dos estudantes e
uma repressão ainda mais brutal, de forma que as reivindicações estudantis
passaram a ser em sua maioria de autodefesa e de solidariedade estudantil.
Já em março iniciaram-se as mobilizações estudantis partindo de Belo
Horizonte, MG, após a repressão policial violenta a uma passeata feita por calouros
portando cartazes de protesto contra a ditadura. Assim, organizada a passeata
contra a repressão policial, a polícia mineira reprimiu de forma brutal. Segundo
Poerner (1979), chegou-se mesmo a invadir templos católicos, para espancamento
de estudantes e mulheres lá refugiados da reação policial à passeata. A repressão
39 Além da Ação Popular, na esquerda do movimento estudantil estavam o PCB e suas dissidências, além da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (POLOP). 40 A Ação Popular, fundada em 1963, era uma organização política intensamente militante criada no seio da Igreja Católica, que representava a esquerda cristã. Tornou-se muito influente no meio estudantil e veio a obter a direção da UNE em diversos momentos (MARTINS FILHO, 1987).
40
foi tamanha que ganhou destaque nacional e foram irradiados em âmbito nacional
protestos e passeatas em solidariedade aos estudantes mineiros.
Nesse clima de tensão entre passeatas e repressões, foi organizado o 28°
congresso da UNE em Belo Horizonte, realizado no interior do Convento dos Padres
Franciscanos (POERNER, 1979). Poucos dias depois, realizou-se congresso da
União Estadual dos Estudantes paulistas e a polícia militar invadiu o local
dissolvendo o congresso e prendendo 178 estudantes.
Iniciara-se após esses acontecimentos uma série de protestos conhecidos
posteriormente como “Setembrada”, culminando na data 22 de Setembro, “Dia
Nacional de Luta contra a Ditadura” que foi o clímax das ondas de protestos em
1966, com ampla e intensa participação nacional.
2.2. ELEMENTOS CONTRADITÓRIOS CONTIDOS NO MOVIMENTO
ESTUDANTIL DE CURITIBA.
Em Curitiba, o movimento estudantil não se omitiu, nem permaneceu fora
dessas manifestações. Na realidade ele apresentava contradições bastante similares
com as quais convivia o movimento estudantil em outras regiões.
Segundo Martins Filho (1987), há uma tradição historiográfica que tende a
analisar o movimento estudantil como uniforme, possuindo um caráter imutável,
sendo que na maior parte das vezes atribuiu-se aos estudantes uma aura
revolucionária absolutamente radical, embasando-se ora na condição de juventude,
ora na categoria estudantil, ou mesmo na relação do jovem de classe média em
contato com o mundo do trabalho.
Entretanto, ele afirma que não é possível conferir esse caráter imutável ou
uniforme ao movimento estudantil, visto que no seio dessa categoria encontram-se
contradições e divergências de posições políticas.
Isso pôde ser confirmado em Curitiba, onde era possível reconhecer
basicamente três principais instituições no movimento estudantil: 1) Um órgão oficial
para a agremiação estadual dos estudantes, o Diretório Estadual dos Estudantes
(DEE) criado pela Lei Suplicy, que não contava com apoio dos estudantes e lutava
contra essa falta de representatividade; 2) a União Paranaense dos Estudantes
(UPE), órgão que efetivamente representava os estudantes paranaenses, mas que
41
entretanto, não representava a posição política de uma boa parcela dos estudantes
curitibanos e, por fim; 3) centros e diretórios acadêmicos que se identificavam com a
posição da UNE clandestina.41
Jornais da época apresentam muito bem esse posicionamento triangular na
política estudantil, (derivada das instituições citadas) em Curitiba. Em uma
reportagem intitulada: Presidente da UPE esclarece mais alguns pontos sobre DEE,
veiculadas no Diário Popular (Figura 1), as posições são claramente demarcadas
numa declaração da UPE para a mídia. Com relação à UPE-DEE:
Novamente voltamos a esclarecer a posição da UPE, em relação aos problemas universitários. [...] E fomos a classe levar a realidade das coisas, pois o único motivo, porque a UPE, não recebe as verbas a que tem direito é a existência do DEE órgão criado pela lei 4.464 [Lei Suplicy]. Por essa razão nós nos levantamos contra aqueles que tentam prejudicar o estudante, para friamente cumprir a lei, sem pensar nos prejuízos enormes que estão acarretando à classe universitária [...] (DIÁRIO POPULAR, 23 de abril de 1966, p. 3).
Por esse trecho é possível perceber a relação conflituosa entre os dois órgãos
que se destinavam a representar os estudantes paranaenses, sendo que em
Curitiba a UPE tinha uma influência moderada sobre os estudantes, enquanto o DEE
tentava se consolidar, tendo todo o apoio institucional, inclusive as verbas estatais,
embora sem muito sucesso.
Em outro momento do mesmo artigo, podemos verificar a posição da UPE-
UNE, revelando mais uma vez o conflito:
Ainda queremos apregoar, que a tradição da UPE, não é a mesma tradição da UNE, tanto é assim, que a União Paranaense dos Estudantes, não foi fechada no período revolucionário [golpista] e nunca houve qualquer tentativa de empanar42 sua glória e decência (DIÁRIO POPULAR, 23 de abril de 1966, p. 3).
41 Vale ressaltar que essas três correntes da política estudantil antagonizavam-se mutuamente. 42 Empanar nesse sentido se refere a esconder, ofuscar, obscurecer.
42
Como afirma Martins Filho, os primeiros protestos contra a ditadura se dão
por parte de órgãos estudantis que apoiavam o golpe de 1964, contra principalmente
a política educacional e mais especificamente à Lei Suplicy. Ao mesmo tempo,
negavam relação com as posições políticas da UNE43, com sua diretoria nesse
momento adotando posições de esquerda, vinculados com a Ação Popular.
Figura 1: Artigo que estabelecia relação entre UPE E DEE.
DIÁRIO POPULAR, 23 de abril de 1966, p. 3
A UPE, portanto, afirmava ser contra a Lei Suplicy e contra outras políticas da
ditadura militar. Entretanto divergia da forma como a UNE estabeleceu a tática de
43 Conforme afirmado anteriormente, trata-se de uma recusa da posição política da UNE, sob controle da esquerda, não propriamente uma oposição à entidade em si (MARTINS FILHO, 1987).
43
luta: As passeatas. Essa postura pode ser vista no artigo “Manifesto da UPE contra a
baderna” (Figura 2). No artigo a UPE declara:
1 - Somos contrários as atitudes inconsequentes de uma pretensa liderança estudantil que pretende unicamente a agitação e a exploração política em nome dos universitários Paranaenses realizando passeatas e correrias sem o beneplácito da maioria dos diretórios e sem consultas a entidade máxima [...] (DIÁRIO POPULAR, 24 de setembro de 1966, p.7).
Apesar de serem contra as passeatas, ao menos em discurso eles
apresentavam reivindicações que representavam o anseio dos estudantes, como é
possível perceber na mesma declaração um pouco adiante:
3 – Afirmamos nosso ponto de vista e reivindicamos junto ao governo, por meio (sic) inteligentes nossos direitos e de nosso povo, de protestarmos livremente contra falhas fundamentais de nossa atual estrutura. Conclamamos os universitários do Paraná a cerrarem fileira em torno da União Paranaense dos Estudantes na luta por: a) – Realização de eleições diretas em todo Território Nacional; b) – Revogação da lei 4.464 (lei Suplicy); c) – Eleições para a formação da Constituinte; d) – Realização de Plebiscito em todo Território Nacional para aprovação da Nova Constituição; e) – Realização da Reforma Educacional, promovendo maior democratização do ensino; f) – Cessação das violencias (sic) e arbitrariedades das autoridades constituidas; g) – Contra a cobrança de anuidade escolares; h) – Reforma Universitária (grifo meu) (DIÁRIO POPULAR, 24 de setembro de 1966, p.7).
E por fim, apresenta a forma como a UPE faria valer sua palavra e
“reivindicaria de forma inteligente” as propostas apresentadas à toda sociedade e
especialmente aos estudantes universitários:
[...] Por essas razões colegas, ponderando longo tempo junto aos universitários traçamos a diretriz da UPE: Exigimos diálogo imediato por parte do Governo, sob pena de medidas extremadas serem adotadas. A Diretoria Curitiba, 22 de setembro de 1966 União Paranaense dos Estudantes (DIÁRIO POPULAR, 24 de setembro de 1966, p.7).
Ora, em síntese, a UPE condenava as passeatas como forma de protesto,
tomava todas as reivindicações apresentadas pelos estudantes nas passeatas e
propunha como forma inteligente de protesto a negociação e o diálogo com o a
44
ditadura militar, que nesse ponto já havia baixado dois atos institucionais. Por fim, de
forma contraditória ainda ameaçava adotar medidas extremadas44.
Tudo indica que o objetivo dessas declarações era justamente esvaziar as
passeatas e ignorar os anseios estudantis, uma vez que não havia um método tático
eficiente para demonstração de força dos estudantes, o que seria fundamental para
conquistar os objetivos propostos.
Figura 2: Artigo que estabelecia relação entre UPE e UNE.
(DIÁRIO POPULAR, 24 de setembro de 1966, p.7)
44 Que medidas extremadas seriam essas não se sabe, uma vez que condenavam até mesmo passeatas como forma de protesto (conforme as fontes).
45
Na realidade, essa postura da UPE tendeu a ser favorável à ditadura militar
uma vez que o próprio delegado do DOPS chega a assumir em relatório sobre os
motivos do movimento não obter sucesso. Segundo o relatório (Anexo A ):
As principais razões que impediram o sucesso, até o momento, das lideranças dos estudantes, foram as seguintes; [...] 4) – Neutralidade da UPE, importantíssima sob qualquer ponto de vista.45(PT 1548.187. p. 4).
Dessa forma, é possível concluir que até mesmo segundo os próprios órgãos
de repressão do movimento estudantil a UPE constituía-se um empecilho aos
estudantes em suas lutas, mantendo-se “neutra”, isto é, possuindo uma retórica que
apresentava uma preocupação com as questões estudantis, e na prática
desmobilizando os estudantes, propondo a negociação com um governo ditatorial
que não prezava pelos princípios democráticos, apresentando assim, uma prática
incoerente com o discurso.
Entretanto, o movimento estudantil em Curitiba não apresentava apenas
essas três posições. Havia em seu seio diversas tendências, sobretudo
contraditórias entre si. A seguir serão analisados diversos manifestos, recolhidos na
passeata do dia 22 de setembro de 1966, dia nacional de combate à ditadura, que
tanto corroboram a visão dos estudantes vinculados à UNE, como tendências de
esquerda revolucionária, e também de ultraconservadoras.
O manifesto intitulado “UNIVERSITÁRIO PARANAENSE VEM À RUA”
(ANEXO B ) representa a tendência geral dos estudantes curitibanos que
compareceram às passeatas em setembro de 1966. Trata-se muito provavelmente
da posição dos estudantes ligados à UNE.
O manifesto é uma explicação dos motivos das passeatas. Em primeiro lugar
é destacada a revolta pela violência sofrida pelos estudantes a nível nacional. Em
segundo lugar, pelas medidas adotadas que “antidemocratizariam” o Ensino
Superior no Brasil, como por exemplo o pagamento de anuidades.Em terceiro lugar
à má distribuição dos recursos estatais, de acordo com as prioridades do governo
ditatorial que enviava quantidades exorbitantes de recursos para a defesa, em
detrimento da educação e saúde públicos. E por fim explica que a manifestação é
45 Relatório redigido no dia 30 de setembro de 1966.
46
silenciosa (ou seja, não agressiva, desorganizada, baderneira) e que visa expressar
essa insatisfação do estudante paranaense perante o estado de coisas.
Não há de forma alguma teor revolucionário, radical. São estudantes que se
colocam contra a forma pela qual o governo ditatorial estava gerenciando o país,
especificamente nos marcos educacionais.
O segundo manifesto “SALVE 22 de SETEMBRO DIA NACIONAL DE
PROTESTO CONTRA A DITADURA” (ANEXO C) qualifica o governo como sendo
um “regime de opressão e violência” e em seu desenvolvimento qualifica como se dá
essa opressão e violência estatais no quotidiano. Em primeiro lugar, cita aspectos
sociais envolvendo operários e lavradores. Em segundo lugar, aborda elementos
culturais, sendo eles intelectuais e religiosos. Em terceiro lugar, é relembrada a
morte de um militar que resistiu ao golpe de 64. E por ultimo, nos itens de 6 a 10,
são apresentadas as reivindicações sobre aspectos legais do Estado de Direito,
como podemos ver a seguir:
6- com a imposição de uma nova constituição autorgada (sic) por uma minoria militar desligada do povo; 7- com a manutenção de interventores golpistas em 11 estados, impostos pelo Govêrno (sic) Federal; 8- com a cobrança de anuidades nas Universidades; pois o governo precisa de 1,145 trilhões para a Defesa e Segurança da opressão; 9- com a imposição, pela força, de um novo representante da ditadura – mal.Costa e Silva; 10- com os estudantes que, por erguerem seu protesto contra toda essa opressão e violência vem sendo seguidos, presos e torturados (PT 1548.187. p. 121).
Ora, a maioria das reivindicações é estritamente de ordem legal. Se
contarmos os aspectos da opressão cultural46, esse número torna-se ainda mais
expressivo.
Como vemos portanto, apesar de ser um manifesto mais ousado, não
carrega ideias revolucionárias, de transformação radical da sociedade, apenas um
retorno à ordem democrática rompida em 1964.
Outro manifesto, este dos estudantes de Engenharia Química (ANEXO D),
corrobora a visão dos estudantes vinculados à UNE, visto que, como os outros já
analisados, ele não propõe uma transformação radical da sociedade, nem ao menos
denuncia de forma clara a opressão às classes populares.
46 A opressão cultural mencionada se trata da perseguição de intelectuais, censura de livros, invasões de igrejas para espancamento de clérigos e leigos envolvidos em manifestações ou abrigando manifestantes, etc.
47
Protestam contra a agressão aos universitários, pela falta de diálogo entre
governo e estudantes, contra a cobrança de anuidades nas universidades, pela
política estudantil que impede uma condição de vida humana aos universitários de
classe média, pelo cerceamento da livre expressão dos Universitários, pelo
desmembramento de órgãos estudantis, o direito de reunião, a falta de estrutura e
apoio aos estudantes e órgãos estudantis, incluindo a desunião implantada no seio
do movimento estudantil, o desprezo à cultura, o desrespeito à constituição e a
criação de “entidades fantasmas”.
Como se pode perceber são objetivos imediatistas e conservadores. Não
possuem um questionamento radical. É um protesto nitidamente pequeno-burguês.
Há apenas a preocupação com o Estado de Direito e com a qualidade de vida da
classe média.
Nos documentos anteriores até pode se notar a menção às classes
populares, como operários e lavradores, entretanto, o eixo dos protestos são os
aspectos legais e a manutenção dos privilégios da classe média, que luta pela
manutenção de sua condição de vida humana?
O manifesto do Centro Acadêmico Hugo Simas (ANEXO E), do curso de
direito, sintetiza o caráter legal dos protestos. Entretanto, apesar disso, ele trás uma
crítica mais lúcida, pois não tem ilusões de que o governo dialogue, e também mais
severa, pois o ceticismo em relação à mudança espontânea e voluntária do governo
ditatorial abre consequentemente as portas do que chamam de “meios escusos”.
Essa crítica severa também se manifesta no reconhecimento firme da
completa e total ilegalidade do governo e na recusa de diálogo com essa ditadura
implantada e mantida pela força.
É interessante notar que, assim como os outros manifestos, ele reconhece a
ilegalidade do governo. Entretanto, muito mais radicalmente que os outros, tanto é
que, enquanto os outros manifestos são diálogos voltados ao público, ou seja, com o
governo e com a população, esse manifesto é estritamente voltado aos outros
estudantes. Recusam-se a falar com esse governo, embora suas reivindicações
ainda sejam os marcos legais da democracia burguesa47.
47 O termo democracia burguesa é entendido aqui como uma forma de governo em que há participação popular na escolha dos representantes, dentro de um sistema eleitoral que beneficia a classe burguesa, que além do domínio político, exerce também o domínio econômico fazendo com que haja o predomínio de latifundiários, coronéis, grandes industriais e empresários. A eleição de representantes populares é uma anomalia nesse sistema.
48
De forma aparentemente contraditória, é nesse manifesto, em que mais é
denunciada a ilegalidade do governo ditatorial que se apresenta de forma sutil, um
pequeno traço do caráter revolucionário de uma pequena parte do movimento
estudantil Isso pode ser percebido no seguinte trecho:
CONSIDERANDO, que a sistemática dessas arbitrariedades, premem o estudante a procurar caminhos escusos ao não se lhe abrirem as portas da legalidade; (PT 1548.187. p. 125).
É justamente a quebra da legalidade que vai justificar entre alguns
universitários, a radicalização da luta contra a ditadura. Agora, isso sim se mostra
contraditório: na luta pela democracia burguesa, uma pequena parcela dos
estudantes de classe média, radicaliza uma luta pequeno-burguesa contra uma
forma de governo imposta pela parcela mais conservadora da burguesia, ao passo
que esse governo percebe nessa luta pequeno-burguesa como uma radicalização
revolucionária chamando-a de comunista.
A única revolução que almeja esse pequeno grupo, é a revolução burguesa
nacionalista, ou seja, da luta contra a burguesia imperialista, na consolidação do
capitalismo nacional e na afirmação da democracia burguesa. Essa é a luta desse
pequeno grupo estudantil da classe média.
Esse outro manifesto “BRASILEIROS” (ANEXO F), é refletida outra posição
dentro do movimento estudantil. Apesar de também denunciar a ilegalidade do
governo denunciado como ditadura, o tom da reivindicação é a liberdade, valor bem
mais amplo do que a legalidade, restrita ao cumprimento da constituição de 1946.
Num tom bem mais explícito e quase agressivo, as autoridades são
denunciadas como os “gorilas verdes48”. Denunciam as prisões e espancamentos
realizados pela DOPS, assim como alguns manifestos anteriores (embora aqui de
forma bem mais explícita), mas simultaneamente, convocam a “todo o povo
brasileiro” a saírem às ruas e extravasarem seus sentimentos, seu ódio e desprezo
pelo governo ditatorial, convocando mesmo, à uma luta popular contra o “fracassado
ditador”.
A linguagem é aberta, franca e direta; carregada de sentimento e heroísmo
altruísta e juvenil. Segundo o documento:
48 Gorila era o termo para caracterizar os militares brasileiros submissos e associados aos Estados Unidos.
49
Sigam o exemplo dos povos dominicanos, um povo humilde mas herói que soube conquistar sua liberdade, embora às custas de muitas vidas e sofrimentos – pagaremos com sangue o preço da liberdade mas mesmo assim devemos a exigir – teremos que pagar um preço alto pela glória , porque para findar com a ambição e o fanatismo deste ditador porco sujo e oportunista teremos que lutar, e sofrer mas nossos sacrifícios serão coroados de gorilas – eles nos chamam de comunistas de subversivos de agitadores, mas porque seu egoísmo não o deixa falar a verdade pois se a dissessem diria: este povo humilde querem (sic) apenas a liberdade que eu tão covardemente os roubei (grifo meu). (PT 1548.187 p.120).
Salta aos olhos o auto sacrifico, a disposição de dar a vida pela causa e a
vontade de pagar qualquer preço pela liberdade. Nesse caso, nos defrontamos com
uma parcela minoritária do movimento que era de fato revolucionária, o próprio
documento é assinado como sendo da autoria do Movimento Revolucionário
Libertação Nacional – Pr (MRLN).
Entretanto, há outras posições ainda reveladas pelos manifestos. O manifesto
a seguir é da organização católica de extrema-direita chamada Tradição, Família e
Propriedade (TFP) (ANEXO G).
Esse manifesto lançado por estudantes pertencentes ao grupo
ultraconservador católico TFP, demonstra boa parte do discurso da direita golpista
anterior ao golpe.
Traz inclusive, as mesmas concepções pelas quais enxergam nas passeatas,
o perigo do plano subversivo para a transformação radical do Brasil, incluindo forte
referência à Cuba. Já no título do manifesto se pode ler:
A NOSSOS COLEGAS UNIVERSITÁRIOS EM FAVOR DO DIÁLOGO E CONTRA OS MANEJOS CUBANOS NO BRASIL (grifo meu). (PT1548.187 p.122).
Conforme o manifesto, as passeatas estudantis eram vistas por esse
segmento do movimento estudantil como parte de um plano cubano para a
subversão do Brasil. É perceptível a força naquele momento da Guerra Fria, fazendo
com que Cuba no âmbito das Américas, fosse considerada o principal inimigo da
ordem burguesa nos outros países.
Em seguida traça o plano subversivo posto em prática no Brasil pelos agentes
de Cuba:
1ª fase: Dá-se ênfase a uma ou algumas questões universitárias autênticas, e pouco depois, se procura criar, a propósito delas, um conflito entre os estudantes e as autoridades educacionais.
50
2ª fase: Promove-se manifestações tumultuosas e aproveita-se qualquer excesso na repressão para deixar num segundo plano as questões universitárias e transformar o movimento em luta política contra o governo. 3ª fase: Nas declarações anti-governistas feitas em nome da Classe estudantil começa a aparecer o palavreado comuno-janguista, manifestado em investidas contra o regime econômico-social vigente, baseado no direito de propriedade, em favor das reformas de base socialistas e confiscatórias : reforma agrária, reforma urbana e reforma de empresa (como é sábio, foi através de reformas tais que o populismo esquerdista de Fidel Castro descambou para o comunismo). 4ª fase: Com êsse palavreado tem-se o intuito evidente de sublevar o operariado urbano e rural para que este, em união com os estudantes, venha a derrubar o Governo, e com ele o presente regime econômico-social, para a proclamação de uma república sindicalista (grifo meu). (PT 1548.187 p.122).
Ora, há todo um esquema montado na pressuposição de que os estudantes
que organizavam e incentivavam as passeatas desejavam transformar radicalmente
o “regime econômico-social”.
Assim como a UPE, eles eram contrários às passeatas, e se diziam
favoráveis ao diálogo com o governo sem apontar os meios para que pudessem ser
ouvidos.
Os Militantes universitários da Tradição, Família e Propriedade apelam a seus colegas para que defendam desassombradamente seus direitos, mas se recusem a apoiar esse processo sorrateiro de insurreição bolchevista . Pedindo um diálogo franco com as autoridades, mas se recusando a dar apoio a greves e manifestações de rua que possam tomar um caráter político e desviar a Universidade de seus fins, cumprirão o seu dever para com o nosso querido Brasil (grifo meu). (PT 1548.187 p.122).
É interessante perceber que não há consenso nem dentro do mesmo
manifesto sobre quem são os subversivos. Ora são os comunistas, ora os comuno-
janguistas, ora os bolchevistas, ou mesmo os cubanos. Não há sequer definido o
que se pretende instalar no Brasil. Fala-se na implantação de uma exótica república
sindicalista, que como apontou um estudioso, nunca se definiu exatamente o que
seria isso.
Esse discurso confuso, alarmante, obscuro, é típico das frações das classes
dominantes e classes médias que foram contra Jango e suas reformas. Não há aí
uma ruptura e sim uma continuidade. A continuidade do conservadorismo e
preconceito das classes abastadas que não apenas negavam a ruptura com a
dependência aos EUA, como também não se conformavam com a melhora de vida
para os setores populares.
51
Há portanto, uma multiplicidade de posições dentro do movimento estudantil
que não se limita a uma só posição. Há desde as intimamente ligadas ao governo
ditatorial, como o DEE, às posições favoráveis aos interesses dos militares, embora
suas organizações mantivessem uma distância do governo, como a UPE e
estudantes vinculados à TFP, todos esses contrários às passeatas tidas como
subversivas. Há ainda os reformistas de classe média vinculados à UNE, desde os
que não denunciavam claramente a ilegalidade do governo, como os estudantes de
Engenharia Química, até os que denunciam radicalmente a ilegalidade, e sutilmente
estabelecem relação de causa e efeito entre essa ilegalidade governamental e
meios escusos para se opor a essa ditadura, como o Centro Acadêmico Hugo
Simas. E por fim, há finalmente a posição revolucionária do MRLN, que apesar de
ser minoritária era tão alarmantemente denunciada como sendo a massa estudantil.
Não há como alardeado, um predomínio da esquerda revolucionária nas
passeatas dos estudantes e sim um predomínio das posições moderadas em torno
da UNE, no combate a um sistema que se sabia ser inconstitucional, autoritário e
violento.
Dentro do M.E., contando com os que não concordavam com a participação,
havia ainda posições não somente conservadoras como a UPE e DEE, mas também
ultraconservadoras como TFP, disputando influência com as posições reformistas
em torno da influência da UNE, assim como um pequeno grupo do MRLN. Isso
demonstra um pouco do caráter contraditório do movimento estudantil que assim
como os outros movimentos sociais anteriores ao golpe, debatiam-se entre as
pressões reformistas e revolucionárias.
O predomínio da posição reformista dos estudantes vinculados à UNE nas
passeatas revela bem uma continuidade da configuração política presente na
maioria dos movimentos sociais que lutavam pelas reformas janguistas do pré-
golpe49.
São posições de certa forma conservadoras, que não questionam a fundo a
ordem dominante, mas visam modificar superficialmente aspectos da realidade como
a submissão aos EUA, os privilégios extravagantes das classes dominantes que
49 Apesar de compararmos as relações no interior dos movimentos sociais em 1963 e 1966, buscando reconhecer um elo de continuidade, há que se destacar que os períodos também apresentam características bastante diversas em vários pontos, principalmente na definição dos grupos políticos dominantes, na força e possibilidade de atuação de uma oposição organizada, e da participação popular (ou ausência) na vida pública, entre outros.
52
atrasavam o desenvolvimento do país, e outras reformas que criassem uma
diminuição nas desigualdades sociais, dinamizando o capitalismo brasileiro.
Dessa forma, não fazia parte desse projeto uma transformação radical e
profunda como alardeavam os conservadores antes e depois do golpe, mas era
necessária essa associação para um combate mais eficiente dessas posições, sem
que possamos negar a possibilidade de interiorização dessa propaganda pelo
próprio Estado.
2.3. A COBERTURA JORNALÍSTICA SOBRE O MOVIMENTO EST UDANTIL:
CURITIBA, 1966.
As passeatas estudantis realizadas no ano de 1966 sintetizaram a oposição
da classe média contra a “autocracia burguesa” nas palavras de Florestan
Fernandes (1987), ou seja, revelaram o desejo dessa classe social pelo retorno das
relações democráticas que possibilitava a ela uma maior participação social50.
A classe média ficou dividida no pré-golpe, no sentido de que alguns setores
colocaram-se ao lado das reformas em apoio ao projeto nacional
desenvolvimentista, enquanto outros setores cerraram fileiras com os
conservadores, nos quais houve uma absorção elevada da propaganda
anticomunista que era disseminada (MARTINS FILHO, 1987).
Dessa forma, partindo da premissa de que grande parte da leitura que se faz
da realidade é influenciada pela posição social de quem realiza essa interpretação,
constatamos que foram feitas diferentes leituras das greves, protestos e passeatas
estudantis que se desenvolveram durante o ano de 1966.
Apesar disso, há um fenômeno social que faz com que a consciência das
classes dominantes seja transmitida às demais classes no interior de uma
sociedade, sobrepondo a “visão de mundo” dessas classes dominadas pela das
classes dominantes, com a gradual substituição das ideias formadas na prática
50 Entretanto, não se trata aqui de determinar estaticamente uma ligação mecanicista entre os estudantes e suas motivações com seu vínculo de classe, mas de perceber em sua classe uma das fortes influências que puderam agir na composição de forças que os levaram a empreender suas lutas. Nessa composição de forças influenciada pela origem de classe desses estudantes, houve também influências por ideias liberais elitistas, ou mesmo conservadoras, somando-se a essas influências ideias do nacionalismo desenvolvimentista e em menor grau, ideias propriamente socialistas.
53
social popular, na medida da aceitação e interiorização da “visão de mundo”
dominante que nasceu no seio da classe dominante, a burguesia51.
Isso ocorre por uma grande diversidade de meios. Entretanto, um dos meios
mais privilegiados para esse movimento chamado por Marx de Ideologia, é a mídia
de massas, como o próprio nome denuncia, uma mídia voltada à comunicação, à
informação e à formação de opinião das massas.
Na década de 1960, um dos principais veículos midiáticos nas cidades era o
jornal escrito. Concentrado nas mãos das classes dominantes, eles divulgavam as
ideias que eram pensadas em seu meio social e que eram de seus interesses que
fosse pensado assim por toda sociedade.
[...] Dado o fato de que a comunicação depende, cada vez mais, de aparelhagem sofisticada e bastante cara, torna-se inevitável que os meios sejam controlados por pessoas e grupos da classe economicamente mais forte. Eles os utilizam exclusivamente para a difusão das ideias e opiniões que lhes são favoráveis, não permitindo que se propaguem ideologias contrárias ou fatos que contestem seus interesses. A população fica, desse modo, impossibilitada de ter acesso à maior parte dos aspectos de sua realidade e, assim, impedida de compreender exatamente sua posição e seus interesses, termina por ser envolvida na única ideologia que lhe é apresentada. A censura oficial, realizada por órgãos governamentais, também é um instrumento de controle ideológico. Através dela se definem os limites do que pode ou não ser divulgado, neutralizando-se as possibilidades de manifestações contrárias aos valores defendidos pelos governos. Sem acesso às informações que lhe possam fornecer uma visão dos diversos aspectos do mundo em que vive, a população acaba tendo uma visão deformada da realidade, que a conduz a se comportar dentro dos estritos limites traçados a partir dos interesses da classe dominante. (GARCIA, 1982, p.53,54).
Nelson Jahr Garcia, estudioso da área de comunicação, nos fornece
subsídios para compreender melhor a natureza da disseminação da ideologia nos
meios de comunicação, que pode em nosso caso, ser aplicada como uma forma de
compreender a atuação dos jornais em Curitiba, com vistas à compreensão de como
foi pensada a atuação dos estudantes em uma conjuntura na qual as liberdades
democráticas não existiam e a censura exercia o controle do que se dizia e do que
se pensava.
51 Classe dominante é tratada como singular nesse contexto por mero fim didático e expositivo. Entendemos como classes dominantes os grupos vinculados às diversas formas do capital, desde o capital financeiro, o capital industrial até o capital agrário, também chamado de agronegócio. Cada setor tem interesses não só comuns entre si, mas também diversos e contraditórios.
54
Podemos concluir, portanto, que toda informação está repleta de ideologia,
pois ela é escrita por alguém, ou algum órgão, sob um determinado ponto de vista,
objetivando repassar uma mensagem específica. Esse emissor da mensagem está
localizado em determinada posição social e é fortemente influenciado pelo meio
social de onde parte sua mensagem. Assim, podemos afirmar que nenhuma
informação é neutra52, isto é, a informação corresponde a certos interesses
concretos.
Não se trata, entretanto de justificar determinada mensagem, ou mesmo
condenar um emissor, mas revelar que interesses e influências estão por trás das
informações divulgadas pela mídia curitibana sobre as passeatas de 1966.
Dessa forma, em março, com a retomada dos protestos estudantis em âmbito
nacional, tendo como motivação principalmente a solidariedade aos estudantes
mineiros, os estudantes curitibanos não se isentaram das lutas estudantis que
ocorriam pelo Brasil.
Essa efervescência social causada pelos estudantes que estavam saindo às
ruas protestar contra os desmandos da ditadura militar, fez com que algumas
parcelas da sociedade os vissem com receio, enquanto outras se empolgassem e
apoiassem essa iniciativa.
Entretanto, os jornais pediam passividade e denunciavam quem discordasse
do governo como impatriotas e antibrasileiros. Segundo o Diário Popular do mês de
março (Figura 3):
Sua gestão [Marechal Castelo Branco] precisa de absoluta tranquilidade. [...] Mas entremeio nas multidões urbanas e mesmo rurais há gente cochichando, maldando, insinuando, atacando o Governo. Ora essa gente por processos escusos procura lançar confusão nos nossos meios sociais. Esses grupelhos é que são impatriotas. E tudo o que fazem e dizem trazem (sic) esse estigma de antibrasileirismo53 (DIÁRIO POPULAR, 13 e 14 de março de 1966, p. 2).
É possível perceber nas entrelinhas as mensagens que se deseja passar. O
movimento estudantil estava retomando suas forças após uma reordenação interna
pelo qual havia passado após os esforços no ano de 1962 e apenas quatro anos
depois era possível dizer que os estudantes ganhavam força realmente expressiva
52 Principalmente no jornalismo que não apenas forma a própria opinião, mas com ela, pretende informar toda a sociedade. 53Segundo as fontes, no dia 17 daquele mesmo mês, os estudantes curitibanos realizaram uma passeata em solidariedade aos estudantes mineiros que sofreram a violência numa passeata em que calouros portavam cartazes de protesto.
55
no cenário nacional. E a respeito da nova movimentação, a mídia afirmava que o
governo precisava de tranquilidade. Aqueles que agitavam, que ousavam perturbar a
passividade, desejavam na realidade criar confusão e por isso eram inimigos do
país, não amavam a pátria e eram por isso, antibrasileiros. Sabe-se que o apreço
pelos sentimentos nacionalistas e cívicos54 é maior nos meios militares,
possibilitando supor que até mesmo órgãos civis passavam a adotar o novo conjunto
de normas e valores mais apreciados.
Ser patriota e entusiasta do Brasil, portanto, era nesse período uma das
melhores qualidades de um cidadão brasileiro e o que ajudava a defini-lo era sua
passividade e apoio incondicional às violações, à liberdade, à legalidade e ao
alinhamento automático do Brasil em relação às grandes potências, mais
precisamente aos Estados Unidos.
54 Ao menos superficialmente, visto que depois do golpe de 64, o Brasil fez grandes concessões econômicas e políticas aos EUA, em detrimento da soberania nacional, como o escândalo da compra da AMFORP, cujo maquinário da empresa foi comprado pelo Brasil, por um preço muito superior do que as estimativas, por se tratar, segundo especialistas, de tecnologia superada, constituindo nada além de sucata (BANDEIRA, 1977).
56
Figura 3: Artigo que incentivava apoio à Ditadura.
(DIÁRIO POPULAR, 13 e 14 de março de 1966, p. 2)
Os jornais colaboravam ainda para não somente a criação, mas também a
manutenção de uma ampla sensação de medo e pânico nos leitores (Figura 4) ao
associar um estudante que distribuía jornais da UNE no centro da cidade, com a
subversão e ao porte de um manifesto de oposição à ditadura, com um material
“considerado altamente subversivo tanto pelas autoridades militares como policiais”
(DIÁRIO POPULAR, 6 de abril de 1966, p. 1).
57
Figura 4: Artigo alarmista.
(DIÁRIO POPULAR, 6 de abril de 1966, p. 1)
Em outra reportagem (Figura 5) nota-se a inversão de perspectiva na ideia de
democracia e são feitos diversos ataques na tentativa de liquidar influência da UNE
clandestina no seio estudantil paranaense. Na reportagem intitulada “Posição
Estudantil” (PT 1548.187 p. 58), como os próprios termos insinuam, o objetivo é
informar qual a posição dos estudantes em relação a ditadura e às eleições para
senadores e deputados que ocorreriam em novembro.
A reportagem então se inicia da seguinte forma: “Os meios estudantis
paranaenses não estão dando muito crédito aos boatos de que a extinta União
Nacional dos Estudantes estaria disposta – e com meios – a promover uma
campanha nacional de abstenção às eleições proporcionais de 15 de novembro.”
(PT 1548.187 p. 58). Sobre que bases afirma essa postura dos estudantes
paranaenses? Afirma com base na suposição que o DEE e a UPE adotariam a
postura do incentivo ao comparecimento às urnas. Dessa forma, sem ao menos uma
declaração formal por parte desses órgãos é que afirmavam a posição do estudante
paranaense.
58
Figura 5: Reportagem tratando de uma posição estuda ntil nas eleições.
(PT 1548.187 p. 58)
Além de inventar uma postura dos estudantes sem base concreta, na visão
dos jornais, a ditadura militar instituída com o golpe de 1 de abril de 1964 (que violou
incontestavelmente a legalidade), era na realidade um processo de
redemocratização iniciado na “revolução de 31 de março”, cuja segunda fase se
fazia em 1966, por ocasião das votações para senadores e deputados. Apesar
disso, os estudantes vinculados à UNE propunham a abstenção ao voto, ou ao voto
em branco como forma de repudiar a ditadura instituída.
59
Os jornais expressavam ainda uma visão do estudante de uma forma
paternalista, sendo a ditadura militar um pai que ama seu filho rebelde (os
estudantes), mas que não consegue comunicar-se com ele. Percebemos isso na
análise da reportagem com título “Auxiliares do presidente culpam professores:
Greve” (DIÁRIO POPULAR, 20 de setembro de 1966, p. 6). Nessa reportagem
(Figura 6) o governo atribui parte da culpa do sucesso do movimento estudantil (em
parar as universidades naquele mês de setembro e chamar a atenção da sociedade
à oposição dos estudantes e à repressão sofrida por eles) aos professores que não
se manifestavam.
A reportagem compara o diálogo entre Ministério da Educação e estudantes
com a relação entre reitores e estudantes:
O mesmo tem ocorrido quando reitores tentam o diálogo direto com alunos, esquecendo que a própria diferença de idade e mentalidades conspira contra qualquer entendimento [...] [e aponta a solução:] [...] É necessário que os professores acordem para a realidade, abandonem sua posição cômoda de dar a aula e ir para a casa e ajudem o Governo a conversar com os estudantes, ou pelo menos digam ao governo o que está errado e precisa ser corrigido (DIÁRIO POPULAR, 20 de setembro de 1966, p. 6).
Essa última parte, principalmente o uso da expressão “pelo menos digam ao
governo” revela um sentimentalismo próprio de alguém que se importa, que quer ver
um fim da má relação. Não me é possível deixar de fazer a comparação com um pai
que deseja avidamente fazer as pazes com seu filho.
60
Figura 6: Artigo que transpassa imagem paternalista da ditadura.
(DIÁRIO POPULAR, 20 de setembro de 1966, p. 6)
Essa mesma relação paternalista é apresentada sutilmente em outra
reportagem sob o título: “Órgão dará apoio a estudante: Progresso” (DIÁRIO
POPULAR, 20 de setembro de 1966, p. 1). Nessa reportagem (Figura 7) é
anunciada a criação de um novo órgão assistencialista para os universitários.
Porque se insere em um contexto ideológico? A notícia da criação do órgão era um
fato. Entretanto a utilização da palavra progresso no fim do título indica a própria
concepção do escritor sobre a criação desse novo órgão e mais ainda, como ele
deseja que seus leitores interpretem a criação desse novo órgão. Era necessário
passar uma imagem de um governo que se importa com a educação, uma imagem
de progresso educacional em meio a uma tentativa de destruir a autonomia
organizacional dos estudantes e parcerias estrangeiras, entre outras medidas que
tornariam a Universidade ser menos democrática.
61
Figura 7: Artigo sobre criação de novo órgão do gov erno.
(DIÁRIO POPULAR, 20 de setembro de 1966, p. 1)
Nesse sentido também, embora bem mais expressivo, é outra reportagem
(Figura 8) que trata dos projetos da ditadura em relação à educação. A reportagem
“Reforma do Ensino Universitário Em Todos os Seus Angulos: Projeto” (DIÁRIO
POPULAR, 21 de setembro de 1966, p. 6) traz informações a respeito das reformas
que pretende fazer no âmbito universitário, fazendo parecer que cumpriria uma
modernização aspirada pelos estudantes, enquanto afirma muitas das causas que
levavam os estudantes a protestarem.
Entretanto, o foco de nosso interesse está nos últimos parágrafos, no
fechamento da reportagem, no qual está a mensagem que deve permanecer na
mente do leitor ao fim da notícia: “Outro problema focalizado pelo ministro da
Educação foi a questão do livro técnico, que segundo o próprio ministro, preocupa
62
demais o presidente da Republica.” É impressionante a emotividade passada pelo
texto. O próprio “presidente da Republica” se “preocupa demais” com aspectos
específicos relacionados à educação.
Figura 8: Artigo que afirmava a preocupação de Cast elo Branco com a Educação.
(DIÁRIO POPULAR, 21 de setembro de 1966, p. 6)
Nessas mensagens, apreendidas das reportagens veiculadas pelos jornais
curitibanos, é perceptível um forte caráter paternalista, na figura do governo que não
consegue com seus esforços dialogar com os estudantes, padece sem conhecer
seus anseios e ainda na figura do governo que se importa e se preocupa com a
educação direta e indiretamente, ou seja, numa angústia que se revela ora na
criação de órgãos para prestar assistência aos universitários, ora na própria figura
comovente de Castelo Branco “preocupado demais” com que livro técnico irão os
estudantes obter.
Essa imagem paternalista é muito fortemente percebida na leitura dos jornais,
entretanto não é a única. O pensamento dominante não é uniforme, monolítico,
63
encaminhado por uma só via. Pelo contrário, assim como a própria classe dominante
é diversa e os donos dos meios de comunicação situam-se em diversas posições
dessa classe dominante, ela sofre distintas influências e parte de variados sujeitos,
muitas vezes, em contradição com outros sujeitos de sua classe.
Nesse sentido, se a imagem paternalista apresentada anteriormente
apresenta uma certa passividade ou permissividade senil, a imagem apresentada a
seguir não corresponde à anterior. Trata-se de uma visão mais crua da natureza
ditatorial.
Dessa forma, exploraremos outra imagem apresentada pelos jornais à medida
que se aproximava o “Dia Nacional de luta Contra a Ditadura”, 22 de setembro de
1966. É importante ressaltar que nesse momento no Rio de Janeiro, São Paulo,
Recife, Salvador e Goiânia, os estudantes encontravam-se nas ruas em protesto
contra a ditadura e os protestos prosseguiram ainda mais fortes no dia seguinte com
a adesão de Florianópolis, Belo Horizonte e Curitiba, somando-se às outras capitais
já mencionadas com passeatas e greves, culminando naquele dia com uma greve
geral decretada pela UNE clandestina (MARTINS FILHO, 1987).
Isso é muito significativo uma vez que no Brasil, os estudantes eram
praticamente os únicos a levantarem-se contra a ditadura militar nesse momento.
Não havia mais movimentos de sargentos e soldados, nem dos camponeses, nem
do sindicalismo operário. E não por satisfação desses setores, mas pela
desarticulação forçada pela ditadura à base de repressão física e institucional.
Num Brasil calado, os estudantes eram os únicos que quebravam o silêncio
mórbido que reinava na sociedade e não é difícil perceber a ameaça que isso
representava para a ditadura militar.
E essa ameaça não era apenas percebida pela ditadura militar, mas por toda
a sociedade, causando um inconformismo em setores da classe dominante
perceptível na reportagem intitulada: “Crise não enfraquece governo” do jornal
ESTADO DO PARANÁ do dia 22 de setembro de 1966, (PT 1548.187. p.65). Ora,
podemos perceber nessa negação o desespero institucional, do contrário, não seria
necessário afirmar o que seria óbvio, se de fato o fosse (Figura 9).
Na reportagem o redator da matéria comenta um pronunciamento de um
deputado representando a posição oficial de Castelo Branco sobre o movimento
estudantil. Segundo o jornal: “[...] [O deputado Raimundo Padilha] sustentou que os
acontecimentos promovidos por estudantes estão vinculados a um programa
64
comunista de orientação Internacional.” Chegou mesmo a qualificar os estudantes
que participavam das passeatas de “comunistas – mirins” e asseverou que a
“desordem organizada não voltará ao País” (PT 1548.187. p.65).
Hoje é praticamente consenso de que em 1964 Jango não pretendia instalar o
comunismo no Brasil, entretanto essa foi a justificativa dos golpistas para o
rompimento da ordem democrática. Dessa forma, a negação do retorno à “desordem
organizada” refere-se ao governo de Jango que possibilitava a expressão de grupos
até então fora da política55.
Nesse sentido, a manifestação dos estudantes fazia as classes dominantes e
os militares associarem essas passeatas com a quase onipresente manifestação
popular nos tempos de Goulart, gerando ódio e temor.
Figura 9: Artigo afirmando força do governo ditator ial.
55 No período de governo de Jango, como se sabe, houve intensa participação popular na vida política do país, o que se mostrou inadmissível nos marcos da democracia burguesa dependente. Nesse sentido, quando as classes dominantes se pronunciavam, era a ordem sendo mantida. Quando porém as classes dominadas tomavam a palavra era a desordem, o caos, a subversão.
65
(PT 1548.187. p.65)
O ódio dava-se por conta da associação das manifestações dos estudantes,
com a participação popular do pré-golpe, mesmo que os estudantes não fossem de
camadas populares. A simples reivindicação pública de seus interesses fazia com
que angariassem o ódio dos militares que estavam no poder para garantir que nada
mudasse no âmbito econômico e social.
O temor apresentava-se na media em que o poder dos militares não se
assentava na legitimidade e sim na força. A ditadura militar então instaura o medo
em todos os âmbitos sócias, lançando suspeitas de subversão em seus adversários
e eliminando até mesmo fisicamente os que se opunham frontalmente.
Dessa forma, num regime controlado pela força com auxílio do medo
onipresente, a perspectiva do enfrentamento massivo dos estudantes à ditadura,
representou uma ameaça à dominação, ou seja, houve um sério temor da perda do
controle social, embora não seja descartada a crença da interiorização da própria
propaganda de associação dos estudantes ao comunismo. Assim, ao lado da
imagem paternalista que apresentava-se a ditadura, há também a figura do ódio e
do temor em relação aos estudantes.
2.4 APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A IDEOLOGIA CONTIDA NOS
JORNAIS SOBRE O MOVIMENTO ESTUDANTIL.
66
Conforme visto, sob o controle das classes dominantes, sob a censura e
coerção militar, os meios de comunicação expressaram uma visão da sociedade que
correspondia à visão oficial, ou seja, a visão de quem exercia o domínio.
Nesse sentido, foram passadas imagens correspondentes às ideias do
governo ditatorial, que dentre algumas, destacaram-se principalmente duas: a
imagem paternalista e a imagem de temor e ódio.
A primeira oferecia à sociedade como um todo, uma imagem de um governo
preocupado com a educação dos jovens, um governo que não sabia como dialogar
com a juventude rebelde mergulhada num fenômeno de adolescência irracional.
Por outro lado, paralela a essa imagem, era oferecida, também por meio do
jornal a imagem dos estudantes como sendo subversivos, revolucionários, enquanto
temiam também sua capacidade de opor-se frontalmente ao governo perturbando a
camada de passividade que pairava sobre a sociedade, deixando-a na expectativa
do que viria.
Enquanto isso, vimos que nos aparelhos repressivos da ditadura militar,
principalmente na DOPS, essa última visão correspondeu ao pensamento interno
dos agentes que ali trabalhavam na vigilância social, apresentando de forma
bastante similar à imagem de temor e ódio passada pelos jornais, reproduzindo até
mesmo os conflitos internos intrínsecos a essa ideia.
Entretanto, além dos agentes da DOPS que exerciam a vigilância social,
atentos à tudo o que fosse “estranho”, reprimindo qualquer tentativa de protesto
contra o governo ditatorial, a mídia colaborou no sentido de criar um consenso a
favor da ditadura.
A mídia de massas tem um papel muito importante não apenas de informar,
mas também de formar opiniões. Dessa forma, a mensagem que nela se veicula,
atinge muitas pessoas e se espalha por entre a sociedade.
Os jornais analisados durante o ano de 1966, agiram no sentido de
desmobilizar os estudantes e abafar seu movimento, veiculando ora mensagens que
afirmavam o caráter benfeitor do governo ditatorial, ora atacando os estudantes.
Essa postura dos jornais era bastante interessante para a ditadura militar uma
vez que, a brutalidade e violência com que atacava as passeatas e perseguia os
estudantes, não eram suficientes para acabar com seu movimento.
Com as ideias transmitidas pelos jornais, a favor do governo e contra os
estudantes, era possível moldar a opinião dos diversos sujeitos imersos em suas
67
classes sociais para uma postura também contra os estudantes e a favor do governo
ditatorial.
Apesar do controle do Estado pelos militares, os verdadeiros detentores do
poder eram os que exerciam o domínio econômico, que constituíam uma das
principais forças responsáveis pelo golpe de 1964, quando a democracia ameaçou a
ordem econômico-social dependente do Brasil.
Nesse sentido cabe retomar o caráter da burguesia brasileira discutido no
primeiro capítulo. Havia além de uma facção burguesa progressista, disposta a
empreender uma cisão com as relações imperialistas, havia o grupo dentro dessa
classe social que detinha a hegemonia, que era a burguesia conservadora e
associada da burguesia estrangeira que mantinha com a economia brasileira,
vínculos imperialistas concedendo pequenos privilégios a quem a ela se associava.
As forças dispostas a empreender uma reforma ampla e superficial na
estrutura e superestrutura brasileira que eram a burguesia progressista, os
movimentos sociais, e setores políticos progressistas, não conseguiram romper com
a hegemonia da burguesia conservadora, que não conseguindo manter a ordem
democrática da estrutura capitalista, incentivou sua violação, lançando aos militares
a função de “salvar a ordem” (ordem dependente de um capitalismo atrasado).
Estando a ordem política do Estado brasileiro sob o controle dos militares, foi
possível sufocar mudanças criadas pelo atrito social da luta de classes e o projeto
nacional reformista de João Goulart que agregou várias demandas sociais existentes
em um único programa de governo modernizador.
Esse controle autoritário da política pelos militares trazia vantagens para a
classe burguesa, uma vez que mantinha seus privilégios intocados e afastava as
reformas que poderiam diminuir alguns dos seus privilégios, bem como, poderia
desenvolver no Brasil uma economia menos dependente e mais dinâmica.
Como parte da burguesia brasileira era associada à burguesia estrangeira e
imperialista representadas pelas multinacionais, uma revolução burguesa de cunho
nacionalista e desenvolvimentista representou um risco ao imperialismo, que por sua
vez, representou um risco aos privilégios da burguesia brasileira conservadora que
repudiava as reformas, preferindo a relação parasitária.
Dessa forma, a derrota dos militares que estavam no controle do Estado,
representava uma derrota da burguesia mais conservadora, assim como a ameaça
dos estudantes ao governo ditatorial, era também uma ameaça à essa burguesia.
68
Nesse sentido, dado o vínculo entre o poder político e o domínio econômico,
as ideias formadas no interior de um (político) correspondiam em grande parte às
ideias do outro (econômico). Ou seja, as ideias dominantes, a imagem paternalista
do governo ditatorial e a imagem de temor e ódio em relação aos estudantes, eram
não apenas útil para os militares, mas também para a burguesia mais conservadora
constituindo, portanto, a mensagem transmitida pelos jornais, num movimento
ideológico.
Esse fenômeno da ideologia, que garante a ordem estabelecida, como no
caso brasileiro pós-1964, pode ser melhor compreendido observando alguns
apontamentos de Karl Marx:
As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes; ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo seu poder espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios para produção material dispõe assim, ao mesmo tempo, dos meios para produção espiritual, pelo que lhes estão assim, ao mesmo tempo, submetidas em média as ideias daqueles a quem faltam os meios para produção espiritual. As ideias dominantes não são mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais concebidas como ideias; portanto, das relações que precisamente tornam dominante uma classe, portanto as ideias de seu domínio. Os indivíduos que constituem a classe dominante também têm, entre outras coisas, consciência e daí que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o conteúdo de uma época histórica, é evidente que o fazem em toda a sua extensão e, portanto, entre outras coisas, dominam também como pensadores, como produtores de ideias, regulam a produção e a distribuição de ideias do seu tempo; que, portanto, as suas ideias são as ideias dominantes da época (MARX, 2009, p.67).
Esse trecho da obra A ideologia Alemã56 que se tornou muito conhecido, em
virtude de sua expressividade no pensamento de Marx, pode nos fornecer auxílio na
compreensão de nosso objeto de estudo.
Marx afirma nesse trecho, que as condições concretas de dominação, ou
melhor, a dominação econômica e política, por determinada classe social, possibilita
também uma dominação no âmbito das ideias, o que ele chama de dominação
espiritual, uma vez que a classe dominante forma em seu interior seus próprios
intelectuais e esses criam, organizam e sistematizam as ideias de sua classe.
56Publicado postumamente em 1933.
69
Além disso, a ideologia não é única, assim como não é uniforme a classe
dominante. A ideologia também não se constitui como ilusão ou superstição, como
afirma Mészáros:
Na verdade a ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal-orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada. Como tal, não pode ser superada nas sociedades de classe. Sua persistência se deve ao fato de ela ser constituída objetivamente (e constantemente reconstituída) como consciência prática inevitável das sociedades de classe, relacionada com a articulação de conjuntos de valores e estratégias rivais que tentam controlar o metabolismo social em todos os seus principais aspectos. Os interesses sociais que se desenvolvem ao longo da história e se entrelaçam conflituosamente manifestam-se no plano da consciência social, na grande diversidade de discursos ideológicos relativamente autônomos (mas, é claro, de modo algum independentes), que exercem forte influência sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo social (MÉSZÁROS, 2004, p. 65).
Dessa forma, é possível perceber que a ideologia é algo que se constitui a
partir do desenvolvimento do processo histórico relacionado a interesses que se
entrelaçam de forma conflituosa no interior da sociedade. Ou seja, a ideologia é algo
produzido no seio da sociedade e é resultado dos processos materiais concretos; se
forma e é formada a partir da prática social diária, vinculada diretamente com as
classes em luta.
Dessa forma, por derivar da sociedade de classes em constante conflito, a
ideologia assume um caráter também beligerante, mesmo que não abertamente
agressivo, mas aspirando a hegemonia em estreito vínculo com os conflitos
concretos, práticos e diários dos quais emergem a luta de classes. Nesse sentido,
Mészáros compreende a ideologia sempre em relação com as lutas econômicas e
sociais, por isso entende que a:
[...] [A] orientação conflituosa e estruturalmente determinada da ideologia não é de modo algum eliminada pelo discurso pacificador da ideologia dominante. Esta última deve apelar para a “unidade” e para a “moderação” – a partir do ponto de vista e em defesa do interesse das relações de poder hierarquicamente estabelecidas – precisamente para legitimar suas reivindicações hegemônicas em nome do “interesse comum” da sociedade como um todo (MÉSZÁROS, 2004, p.67).
Mészáros afirma portanto, que a ideologia dominante tende à reforçar as
ideias de unidade, moderação, coesão, sempre em vista da defesa do interesse na
70
manutenção de uma ordem social vigente, assim como vimos na posição da UPE,
do DEE, da TFP, enfim, dos universitários conservadores e dos jornais.
Quando o golpe de 1964 é levado a cabo, nenhuma nova classe substitui a
que exercia a dominação anteriormente. Em outras palavras, não há uma nova
classe dominante e, portanto, não ocorre uma revolução. O que muda é que a
máscara democrática é guardada com cuidado, mas a burguesia continua a deter o
poder do Estado sobre as outras. A salvaguarda da ordem é apenas a salvaguarda
da ordem burguesa tal qual estava. Não que o Brasil fosse se tornar comunista, mas
que o caráter dependente, atrasado e associado do sistema político-econômico-
social brasileiro ao capital estrangeiro estava em risco.
Não era interessante para a classe que estava lucrando com o estado de
coisas, que a situação se alterasse, sem saber como seria o novo equilíbrio de
forças. Não se sabe como seria o Brasil em relação à correlação de forças, se
naquele momento fossem empreendidas as medidas reformistas que tinham por
objetivo à viabilização de um capitalismo mais dinâmico e independente.
Dessa forma, o capital estrangeiro se sentiu ameaçado e os setores a ele
ligado da mesma forma foram ameaçados. Na compreensão das classes
dominantes, suas forças já não podiam controlar o processo histórico que as
condições materiais haviam criado, e a manutenção da sociedade foi consolidada às
custas da democracia burguesa.
Instaurou-se, portanto, uma ditadura militar, que manteve a população refém
do medo. Esse medo era disseminado pela mídia e levado à cabo pelas mãos do
Estado por meio de vários agentes, principalmente a DOPS, encarregada de vigiar a
sociedade, para garantir ao novo governo, uma passividade da população sem
oposição alguma.
A mídia que não se submeteu ao Estado foi censurada e reprimida. O
restante se dobrou às novas regras e realizou o jogo do Estado. Nesse clima de
repressão e terror dos primeiros anos da ditadura militar, uma das poucas vozes a
se oporem frontal e abertamente à ditadura militar foi dos estudantes.
Entretanto, apesar de não se oporem de forma radical, de aspirarem apenas a
valorização da educação e o retorno ao regime democrático burguês anterior ao
golpe, ambições em certo sentido conservadoras, foram taxados de subversivos,
inimigos da ordem, comunistas, bolcheviques e revolucionários.
71
A mídia por sua vez, divulgando a ideia de um estado paternalista, colaborou
para que a ditadura militar pudesse impor um consenso, dessa forma reafirmando
sua hegemonia, uma vez que, veiculava uma imagem positiva do governo, mas
paralelamente transmitia uma ideia de temor e ódio57 do Estado em relação aos
estudantes, correspondendo à prática do estado na vigilância e esboçando
praticamente as mesmas concepções.
Apesar da diferença entre os períodos, pode-se perceber certa noção de
continuidade entre o início dos anos 1960 e o meio dessa mesma década, tanto nos
setores políticos reformistas quanto ao posicionamento moderado e superficial das
classes médias sempre questionando elementos pontuais e superficiais da realidade
sem nunca alcançar a raiz do problema. Essa continuidade é percebida também nos
argumentos dos conservadores e liberais elitistas, que alardeavam o perigo
revolucionário castrista, guevarista, ou bolchevique em prol ora da anarquia, ora do
regime comunista, e em outras ocasiões, uma república sindicalista.
57 Temor de que a oposição levantada por eles pudesse abrir caminho para outras formas de oposição e ódio pela manifestação e participação política aberta e pública, características do período pré-64 para os militares e a classe dominante.
72
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No período anterior ao golpe de 1964, as lutas de classe no Brasil se
acirraram. Movimentos sociais, estratos da classe média, e uma burguesia mais
progressista reivindicavam reformas com implicações sociais, políticas e
econômicas.
Entretanto, a burguesia brasileira associada e dependente do capital
imperialista era o grupo que exercia a hegemonia e apoiou os militares a romperem
com o regime democrático, impedindo as reformas sociais que colocariam em risco
alguns privilégios das classes dominantes conservadoras por serem associadas ao
imperialismo.
Houve em seguida ao golpe militar de 1964, uma forte repressão aos
movimentos sociais, inclusive ao movimento estudantil. Entretanto, boa parte do
movimento estudantil não tinha um caráter radical e sim conservador, ou liberal
elitista. Na tentativa de desmobilizar os estudantes que aos poucos foram se
reorganizando, o governo ditatorial criou órgãos oficiais, e colocou a UNE na
ilegalidade, o que gerou muitos protestos.
Os estudantes passaram então a protestar com mais intensidade, assim como
a repressão policial foi se tornando cada vez mais brutal em muitas regiões do
Brasil. Grande parte dos estudantes que participam das passeatas em Curitiba, não
eram revolucionários ou comunistas, apesar do que se dizia entre as parcelas
conservadoras do movimento estudantil, ou pelos jornais.
Ao contrário do que se afirmava, o movimento estudantil não tinha um caráter
único, imutável, e nem mesmo era revolucionário. Haviam sim, diversas correntes no
interior do movimento, dentre elas, as que apoiavam o governo ditatorial de forma
aberta, as que apoiavam de forma tímida, as que se omitiam, as que denunciavam
de forma moderada, e as que se colocavam radicalmente contra a ditadura militar.
Dessa forma, é possível afirmar com base nas fontes, que o movimento
estudantil não era de forma alguma uniforme e imutável, mas sim contraditório e
heterogênio. Ele era formado por muitas instituições que adotavam posições
políticas muitas vezes divergentes e conflituosas entre si.
Isso não quer dizer que não havia uma organização, ou que não possuíssem
interesses em comum dentro do movimento estudantil. Quer dizer que apesar de
constituir um movimento é possível percebê-lo em suas contradições.
73
No decorrer do trabalho, foi possível perceber que os jornais transmitiram
mensagens de conteúdo ideológico favorável ao governo ditatorial pedindo
passividade e apontando aqueles que faziam uma crítica à ditadura como
impatriotas. Apresentavam também a imagem de um governo preocupado com a
educação, tentando demonstrar que os protestos realizados por todo Brasil era um
reflexo da uma rebeldia imatura dos estudantes, sem motivos concretos.
Em outros momentos a crítica aos estudantes era mais agressiva: Apontavam
os estudantes vinculados à UNE como comunistas-mirins, subversivos, que,
recebendo orientação de Praga e Havana, trabalhavam para a volta da “desordem
organizada”, numa referência à participação política de grande parte da sociedade, a
conjuntura do pré-64.
Veiculando essas ideias, os jornais ajudaram a formar a opinião de muitos,
prejudicando os estudantes, uma vez que a associação dos estudantes à uma
orientação internacional em prol da revolução imediata e radical da sociedade agia
no sentido de evitar o apoio da sociedade ao movimento estudantil, e fazer com que
fossem vistos no mínimo como adolescentes imaturos, vândalos e baderneiros,
quando na realidade reivindicavam muitas vezes apenas contra a política do
governo ditatorial para a educação, e outras vezes questionavam a quebra da
democracia, denunciando os militares.
Por fim, cabe mencionar que o assunto não foi esgotado, há muitas fontes
que podem ser exploradas, entrevistas a serem feitas, e outras formas de
abordagem sobre esse tema tão interessante, e inexplorado até o presente
momento.
74
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