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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

NADIÉGE ALLEIN SILVA

JOANA D’ARC: DO FOGO PURIFICADOR AO PANTEÃO CELESTI AL

CURITIBA

2014

UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

NADIÉGE ALLEIN SILVA

JOANA D’ARC: DO FOGO PURIFICADOR AO PANTEÃO CELESTIAL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de História –

Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em

História. Orientador: Professora Drª. Vera Irene Jurkevics.

CURITIBA

2014

Eu não tenho medo ... Eu nasci para fazer isso.

Joana d’Arc.

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pela oportunidade da realização deste estudo, a

meus familiares pais e amigos, por acreditarem neste trabalho, ao meu noivo por me

acompanhar nesta trajetória cheia de obstáculos, mas muito compensadora.

Agradeço também aos professores do curso de história da Tuiuti, que me

guiaram pelo conhecimento histórico, sempre com muito otimismo e sabedoria. A

orientadora Prof. Vera Irene por sua excelente orientação e aos colegas e amigos do

5

curso de história. A todos que de certo modo contribuíram para a realização desta

monografia.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 5

1 - JOANA D'ARC E A GUERRA DOS CEM ANOS. .............................................. 9

1.1 CONFLITO SECULAR ENTRE A FRANÇA E A INGLATERRA ........................ 9 1.2 JOANA D'ARC ENTRA EM CENA ..................................................................... 13 1.3 AS LABAREDAS DA INQUISIÇÃO ................................................................... 21

2 - JOANA D'ARC SOBE AOS CÉUS . .................................................................... 30

2.1 1456 O PROCESSO DE ANULAÇÃO ................................................................. 30 2.2 1909 JOANA D'ARC SE TORNA BEATA .......................................................... 34 2.3 1920 O PROCESSO DE SANTIFICAÇÃO .......................................................... 42

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 49

FONTES.......................................................................................................................51 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................52 BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................54

5

INTRODUÇÃO

A história da jovem medieval que ouvia vozes divinas e recebeu a missão de

salvar a França na Guerra dos Cem Anos dos invasores ingleses ficou conhecida em

todo o mundo. Joana d’Arc já foi objeto de pesquisa de muitos historiadores e de

outros estudiosos, contabilizando mais de 20 mil obras publicadas, nas mais diferentes

abordagens, com destaque para as do século XIX que a imortalizou como heroína

nacional.

Sua trajetória traz questionamentos sobre diversos assuntos, ao mesmo tempo

em que rompeu com os modelos de conduta de sua época, ela se tornou um novo, tanto

no campo religioso como político. Sua vida parece saída de uma fábula, os

documentos históricos conferem informações suficientes para contar sua aventura, mas

não para desvendar as entrelinhas. Em seu livro Joana d’Arc uma biografia, a

historiadora Colette Beaune apontou que Joana é um mistério mesmo para o

especialista. 1

Todavia há de se destacar que o momento em que Joana surgiu na história é

um dos fatores básicos para entender tamanha repercussão de sua imagem. Era o ano

de 1429, a França jazia no desespero, após sucessivas derrotas na grande guerra contra

a Inglaterra. O próprio rei Carlos VII, ainda não coroado, não acreditava mais em uma

vitória. Do mesmo modo, pronto para acreditar em milagres e profecias, o povo

francês viu, de imediato, em Joana uma santa. Os ingleses a chamaram de feiticeira

associando-a ao sobrenatural, mesmo porque logo se tornou uma figura ativamente

política, interferindo no curso da guerra. Nesse sentido, não fica difícil entender

porque as discussões referentes a ela tiveram início durante sua vida.

Ao longo da história, vários foram seus detratores e dentre eles pode-se citar

dois dos mais conhecidos. Voltaire, que escreveu em 1792 um livro no qual representa

Joana como personagem cômica ou grotesca, e Willian Shakespeare que a tratou como

uma vilã e bruxa.

1 BEAUNE, Colette: Joana d'Arc: Uma biografia. São Paulo: Globo, 2006, p.11.

6

Desde o papel da mulher medieval, até o conceito de nacionalismo, como

também o aspecto de santidade que sua história lhe conferiu, são possíveis diversas

abordagens ao seu respeito.

Para explicar tamanho sucesso que foi lhe atribuído em vida e, sobretudo,

depois de sua morte, é preciso compreender o período em que Joana viveu, buscando o

entendimento dos valores religiosos presentes naquele contexto e as muitas

dificuldades pelas quais toda a sociedade francesa passava. Nesse estudo buscou-se a

compreensão desses elementos a fim de explicar alguns dos motivos que levaram a sua

canonização pela Igreja Católica, em 1920, assim como sua ascensão como heroína

nacional, sua imagem na política e seu misticismo.

Como problemática estabeleceu-se a discussão das características de sua vida

e dos acontecimentos póstumos, a fim de entender que fatores contribuíram para que

se tornasse um símbolo francês, uma personagem ambígua e um mito, levada à

santificação, pela mesma Igreja que, anteriormente, a havia incriminado e a levado à

fogueira da Inquisição.

Tendo por objetivo identificar os aspectos de santidade existentes, que

conferiram a Joana o título de Santa, vamos analisar as transformações de sua imagem

por volta do século XIX, e suas consequências, algumas das quais, presentes ainda

hoje no cenário francês.

Como fontes foram utilizadas principalmente os processos de condenação e

reabilitação da Igreja, sendo o segundo em inglês, por serem consideradas as fontes

principais para compreender a vida de Joana, o que permitiu, de certo modo, trazer

suas próprias palavras para esse trabalho.

A obra Joana d’Arc, de Jules Michelet, demonstra de forma única a

transformação da imagem de Joana d’Arc pelo romantismo e sua associação ao

nacionalismo. Os livros Joana d’Arc uma biografia, de Colette Beaune, e A Fábrica

de Santos, de Kenneth L. Woodward, apresentaram respectivamente importantes

detalhes da jovem camponesa e os caminhos para a canonização dos santos. Maria do

Carmo Peixoto Pandolfo que em seu estudo Joana d’Arc a semiologia de um mito, fez

uma análise da vida de Joana a fim de comprovar a existência dos elementos

necessários para a composição de um mito.

7

Também foram utilizadas teses, artigos e periódicos, a fim de analisar opiniões

e posicionamentos sobre o assunto, além de leituras complementares de obras literárias

como, por exemplo Joana d’Arc de Erico Verissimo, e O Deus na Idade Média de

Jacques Le Goff.

Como referenciais teóricos foram utilizados Andre Vauchez para o conceito de

santidade e Mircea Eliade para o entendimento de sagrado.

Vauchez trabalhou o conceito de santidade desde sua origem, problematizando

a questão, por um viés antropológico que explica o desenvolvimento e os elementos

presentes no processo oficial e no não oficial da santificação. Também indica as

características mais comuns atribuídas a um santo e porque normalmente o são.

Vauchez esteve bastante presente no encaminhamento desta pesquisa, o que permitiu

estabelecer uma constante relação de crenças místicas, já existentes, com a divindade

atribuída a Joana.

Eliade elaborou uma visão comparada das religiões, estudou os mitos e buscou

situar a noção do sagrado no mundo. Para o autor existem duas formas de ser no

mundo: o sagrado e o profano, ambos são opostos e representam diferenças, mas que

também se complementam no universo do homem religioso que vê, o espaço em que

vive, como um mundo cheio de rupturas, que delimitam o sagrado e o profano.

Sua obra foi utilizada para demonstrar a visão do homem religioso e alguns

aspectos relacionados, também para a compreensão do conceito de mito. Para Eliade o

mito faz parte da realidade sagrada, por se tratar de uma nova situação cósmica, que

nos conta como algo ocorreu, e pode ser visto também como uma irrupção do sagrado

no mundo.

O presente estudo encontra-se dividido em dois capítulos. O primeiro registra

o contexto histórico da Guerra dos Cem Anos, com a finalidade de situar a entrada de

Joana na Guerra, conjuntamente foi feita uma narrativa de sua vida, abordando sua

infância, suas vitórias militares e o duro processo que a levou à morte, em 1431, a fim

de apontar a ambiguidade da personagem em vida e as acusações de heresia que

provocaram sua morte.

O segundo capítulo tratou dos acontecimentos relacionados ao processo de

anulação de sua acusação, em 1456, até a atualidade. Dessa forma, foi abordada a

8

transformação de sua imagem no século XIX e a reaproximação da Igreja, explicada

através do processo de canonização e as apropriações políticas de sua imagem pública.

9

1. JOANA D’ARC E A GUERRA DOS CEM ANOS

1.1 .CONFLITO SECULAR ENTRE A FRANÇA E INGLATERRA

A Guerra dos Cem Anos foi um conflito iniciado em 1337, quando o monarca

inglês Eduardo III reivindicou a coroa da França, e só chegou ao fim em 1453, com a

vitória francesa. No entanto, as rivalidades e os embates que marcaram a história

desses reinos antecederam bastante essa prolongada guerra. Ambos tinham uma

relação comercial e cultural de longa data, podemos dizer que desde 1066, quando, o

duque da Normandia, Guilherme, o Conquistador ocupou a Inglaterra. Depois,

monarcas ingleses passaram a comandar vários domínios senhoriais no território da

França, enquanto os soberanos franceses buscavam retomar sua autoridade,

conseguindo algumas vezes, mas o equilíbrio entre esses reinos já estava ameaçado.

A situação se agravou ainda mais em 1259, com o casamento de Eleonora da

Aquitânia com o bretão Henrique II. Desde então, os monarcas ingleses passaram a

controlar a maior parte do sudoeste da França e se tornaram duques da Guiena. No

entanto, conforme o Tratado de Paris (1259), sobre esse feudo, seus depositários eram

incumbidos de prestar homenagem ao rei da França, situação que estava se tornando

incômoda, pois segundo Giordani, “Ainda outro aspecto das relações de vassalagem-

suserania entre o soberano inglês e o soberano francês: aquele via constantemente sua

liberdade de ação cercada pelos laços feudais que o prendiam ao segundo”.2

Dentre as principais causas da guerra estavam envolvidas questões

econômicas e políticas, além do interesse dos dois reinos na região de Flandres, que

detinha no século XIV grande comércio internacional de tecidos. Além disso, também

havia o problema da sucessão ao trono, pois em 1328, Carlos IV, da França morreu

sem deixar herdeiro, e o trono foi reivindicado por Felipe de Valois, sobrinho do rei

morto, entretanto o parente mais próximo era Eduardo III, da Inglaterra3, que não

conseguiu assumir o trono por sua linhagem ser de sua mãe, o que não era permitido

na época, pela Lei Sálica.

2 GIORDANI, M. C. História do Mundo Feudal: acontecimentos políticos. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 625.

3 SPOTO, Donald. Joana D’Arc. São Paulo: Planeta, 2009, p.31.

10

A corte francesa favoreceu Felipe de Valois, coroando-o como Felipe VI, mas

os ingleses pretendiam ser independentes daquela suserania e Eduardo III decidiu

enviar suas tropas para a França em 1337, o que culminou na grande guerra.

Vale destacar que este conflito envolvendo várias gerações de franceses e

ingleses não ocorreu de forma contínua, diversas tréguas e negociações foram

celebradas. No entanto, o que a princípio serviria para que os soberanos entrassem em

acordo, com o objetivo de finalizar os combates, em diversas ocasiões, serviram para

prolongar ainda mais o confronto4, gerando novos desentendimentos, depois de alguns

períodos de relativa paz.

Não podemos esquecer que a Guerra dos Cem Anos não perdeu a

característica de uma guerra de famílias, como quase todas as guerras medievais5, uma

vez que as relações feudais estavam presentes e ligadas ao curso das guerras. Essa

relação de parentesco seguramente foi responsável por diversas tentativas de acordos

entre os monarcas. Em dezembro de 1339, por exemplo, ocorreu um tratado que

favoreceu Eduardo III, da Inglaterra, que obteve apoio das cidades flamengas, e passou

a ser reconhecido como o verdadeiro rei francês, entretanto como os reinos estavam

sem recursos, em setembro do ano seguinte foi estabelecida uma trégua.

Essa suspensão temporária, só serviu para que os monarcas se recuperassem

financeiramente e depois de um tempo a guerra recomeçou. Em 1346, os ingleses já

tinham um bom posicionamento ao norte da França, e como o rei Felipe VI estava

ocioso, Eduardo resolveu agir após uma forte coerção de seus cavaleiros6, período em

que obteve algumas vitórias, entretanto, Felipe VI decidiu reagir o que levou Eduardo

III evitar novos confrontos devido à vantagem numérica dos franceses, e acabou

aguardando, em atitude de defesa.

Foi então que em agosto de 1346, ocorreu a Batalha de Crécy em território

francês, rendendo uma derrota vergonhosa para os franceses. Os ingleses

desembarcaram em território inimigo com novas armas e formas de combater, não

deixando, segundo Baschet, chance aos nobres cavaleiros da França, pois: 4 GIORDANI. Op. cit. p. 620. 5 Id. Ibid. p. 621. 6 id. Ibid. p. 630.

11

A Guerra dos Cem Anos testemunha o fato de que os conflitos armados ganham, na Europa da época uma amplitude nova, mais devastadora do que antes, e afetam mais as populações rurais e urbanas. Não só ela opõe de modo durável duas monarquias poderosas, mas também vê o desenvolvimento de inovações notáveis na arte militar, em particular o uso dos arcos e das bestas, e em breve, das primeiras armas de fogo, arcabuzes e bombardas, que tornam obsoletas as técnicas tradicionais da cavalaria.7

Dois anos após a batalha de Crécy, um grande mal assolou a Europa, a Peste

Negra, responsável por dizimar boa parte da população da Europa, sob terríveis

circunstâncias. Segundo Georges Duby, a doença causou um grande alívio no excesso

populacional e ajudou na repartição dos recursos disponíveis entre os sobreviventes,

facilitando a implantação de um sistema fiscal, que ficava cada vez mais forte, já que a

Guerra dos Cem Anos perdurava8.

Em 1356, ocorreu a Batalha de Poitiers em território francês. O exército inglês

estava sob o comando de Eduardo, o Príncipe Negro, enquanto os franceses tinham

João II, mais conhecido como João, o Bom, no comando mais importante das tropas.

Nessa batalha, o Príncipe Negro usou a mesma estratégia que proporcionou a vitória

em Crécy, conquistando um triunfo absoluto sobre os franceses, já que além da vitória,

houve a captura do rei João. Esta derrota culminou em uma crise francesa nos anos

seguintes9. Sem fundos para pagar o resgate do rei, o reino entrou em um estado de

indigência. De acordo com Hilário Franco Júnior quando os reis precisavam de verbas

para a guerra, exigiam impostos altíssimos e contraiam dívidas que não tinham como

pagar, dado este que ajuda a explicar em parte a crise financeira na França10.

Em meio a esta situação a França reascendeu suas esperanças através do filho

de João, o futuro rei Carlos V11, que buscou tomar atitudes em relação aos fatores

internos da guerra, negociando em 1360, com Eduardo da Inglaterra, por meio do

Tratado de Brétigny que garantiu um período de tranquilidade à população. Mas os

7 BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: do ano 1000 à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006, p. 250. 8 DUBY, Georges. A Idade Média na França (987-1460): de Hugo Capeto a Joana d'Arc. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1992. p. 258. 9 GIORDANI. Op. cit., p. 633. 10 FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. 11 GIORDANI. Op. cit., p. 637.

12

franceses, em vantagem naquele período, desrespeitando o tratado, resolveram atacar o

inimigo e sob a liderança de Carlos V, obtiveram vitórias, e recuperaram territórios

perdidos anteriormente. Em 1380, Carlos V morreu e então os franceses já não

estavam tão animados a lutar.

No final do século XIV, a França enfrentou problemas internos envolvendo

Luís, irmão de Carlos VI, e João sem Medo, nobre da Borgonha, de partidos opostos.

Com essa rivalidade, envolvendo a linhagem real, o Estado se apresentava

dilacerado12, ainda mais que o rei Carlos VI, demonstrava sinais de demência desde o

início do seu reinado, sendo depois denominado de rei louco. Em 1413, Henrique V

ascendeu ao trono inglês e se aproveitando da situação caótica de seus rivais,

continuou sua investida, organizando uma campanha para tomar a Normandia, o que

se concretizou, dois anos mais tarde, quando ocorreu o confronto de Azincourt.

Nessa ocasião os ingleses modificaram definitivamente o combate medieval13,

utilizando a mesma tática presente nas batalhas de Crécy e Poitiers. Os franceses

contavam com um numeroso exército, maior que o dos ingleses, mandando para o

combate, nobres e os melhores cavaleiros, entretanto de nada adiantou. Os ingleses

tiveram uma vitória decisiva, gerando dúvidas entre os franceses: será que Deus estava

do lado dos ingleses?

Devemos nos lembrar da força da fé e da crença da ajuda divina no período

medieval. André Pereira Rocha alerta que prevalecia o entendimento de que “Deus

ajudava os justos e designava quem deveria ser o vitorioso”14. Mas, ainda assim havia

uma dúvida: porque a Igreja não intervinha neste conflito que parecia não ter fim?

A Igreja Romana estava dividida depois que ocorrera o Grande Cisma do

Ocidente. Entre 1378 e 1417, havia um papa em Roma e outro em Avignon, pois

diversos interesses políticos pressionavam pela continuação da divisão da Igreja.

Abalada internamente, era difícil intervir na guerra.

12 BASCHET, Op. cit., p. 269. 13 Id. Ibid.. p. 250. 14 ROCHA, Pereira André. As questões políticas de um processo religioso: A complexidade do julgamento de Joana D'Arc. Trabalho de Conclusão de Curso – Curso de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, 2009, p. 34.

13

Após tantas derrotas, a situação havia ficado difícil para a França. Logo após

Azincourt houve a ocupação de várias regiões ao norte daquele reino, incluindo a

própria capital, Paris. Sem alternativa melhor, Carlos VI acabou assinando o Tratado

de Troyes, em maio de 1420. Nele, o Delfin Carlos VII, “futuro herdeiro perdia o

direito ao trono e a Inglaterra passava a ter direitos sobre o norte da França”15. A

região de Borgonha se aliou aos ingleses, e a França ficou dividida entre os territórios

do norte, e o que sobrou do sul, sempre sob ameaça de novos ataques, já não havia

mais força para lutar, nem condições adequadas, além de enormes dívidas. Segundo

historiadores, Carlos VII havia se entregado ao desânimo e, sem muitas esperanças de

assumir o trono, se asilou em Chinon, próximo à Tours. Ninguém mais acreditava na

França, nem o rei.

1.2. JOANA D’ARC ENTRA EM CENA.

No ano de 1429, a guerra caminhava a favor dos ingleses, enquanto Carlos VII

se mantinha refugiado. Apesar da situação desfavorável, ainda havia os que

acreditavam na vitória dos franceses e não aceitavam a existência de duas monarquias

soberanas16. Nesse contexto ocorreu uma reviravolta inesperada para os franceses, com

o aparecimento, em cena, de Joana d’Arc.

O que se sabe da infância de Joana d’Arc se deve a documentos inquisitoriais

do processo de sua condenação, nos quais ela própria, familiares e companheiros de

guerra deram seus depoimentos.

Joana nasceu, em janeiro de 1412, em Domremy nos limites de Lorena, região

que “não teve muito contato com a guerra” 17. Filha de Jacques d'Arc, coletor de

impostos do vilarejo e Isabelle Romée, tinha quatro irmãos.

A família mantinha boa reputação, eram católicos fieis e cumpriam com suas

obrigações para com a Igreja. Assim, Joana sabia de seus deveres para com seus pais e

15

GIORDANI, Op. cit. p. 647. 16 Id. Ibid., p. 649. 17

DUBY, Georges. Op. cit., p. 270.

14

com a Igreja, ia a missa com frequência, praticava as orações que sua mãe lhe ensinara

e dava esmolas aos mais necessitados 18.

Neste período, a busca pela fé era constante, pois para o homem religioso

Deus presenciava tudo, o que o estimulava a viver experiências religiosas e acreditar

ser parte da criação divina. Segundo Mircea Eliade:

Ele faz parte da Criação dos deuses, ou seja, em outras palavras, ele reencontra em si mesmo a santidade que reconhece no Cosmos. Segue se daí que sua vida é assimilada à vida cósmica: como obra divina, esta se torna a imagem exemplar da existência humana19.

E possível identificar indícios de santidade na vida de Joana muito cedo.

Desde a infância acreditava piamente nos santos e no poder da fé. Como seus

contemporâneos, afirmou em julgamento que recebeu a mensagem divina por volta de

seus treze anos, e, a partir de então, as visões continuaram, por toda sua existência.

Em seus depoimentos, afirmou várias vezes que a mensagem era clara e a

instruía no sentido de que deveria conduzir Carlos VII até Reims, onde seria coroado

rei, e os ingleses deveriam deixar a França. Apesar de não desacreditar da veracidade

da comunicação, conforme relatou aos inquisidores, avaliava que não seria nada fácil,

teria que deixar Domremy, e sua família, mas, segundo o entendimento religioso, o

homem de Deus devia se recusar a viver para si ou mesmo para o mundo, precisava

renunciar a muitas coisas, inclusive aos vínculos familiares para “poder se dedicar

inteiramente à vontade de Deus”, como haviam feito anteriormente os santos20.

No imaginário francês, um salvador era esperado há tempos, fruto de histórias

e profecias. Joana personificava a lenda da Virgem de Lorena21 que previa que uma

jovem casta desta região viria em socorro da França. O povo esperava de certa forma

um herói, um milagre enviado por Deus que os salvaria, e atribuíram a lenda à Joana.

Nesse sentido, Andre Vauchez aponta que:

18 BEAUNE, Colette. Op. cit., p.43. 19 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 80. 20 VAUCHEZ, Andre. Santidade. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,1987. V.12, p. 290. 21 Sobre a lenda ler BEAUNE, Colette: Joana d'Arc: Uma biografia. São Paulo: Globo, 2006 p.40.

15

A santidade atribuída a um indivíduo é indubitavelmente o reflexo de uma experiência interior, mas esta se refere também – e talvez antes de tudo à ideia que os homens de certa época faziam da santidade e à função que esta revestia numa dada sociedade22.

Quando Joana abdicou de tudo que tinha e se dedicou à sua missão, ela

passou, segundo seus biógrafos, para o próximo estágio de uma vida santificada, a de

se colocar em serviço dos homens, prestando socorro a um povo que clamava pela

misericórdia divina.

Dirigiu-se primeiro a Vaucolers, para solicitar a Robert de Baudricourt, uma

escolta para falar com o Delfin23, não foi fácil convencê-lo, somente após certa

insistência conseguiu um salvo conduto e uma pequena escolta. Para chegar até

Chinon foi preciso correr alguns riscos pelo caminho24, Joana passou a usar trajes

masculinos, fato este que trouxe muitos questionamentos referentes à sua missão,

afinal ela não iria apenas transmitir a mensagem de Deus a Carlos, para cumprir sua

missão, ela própria guiaria o exército.

Pela tradição as mulheres não deveriam ir para a guerra, este era o dever dos

homens, elas eram tidas como frágeis e de pouca capacidade intelectual, teoria

proveniente e amparada na teologia da criação, “Com efeito, o homem não foi tirado

da mulher, mas a mulher do homem; nem foi o homem criado para a mulher, mas sim

a mulher para o homem”25. Entretanto como não havia uma lei que proibisse as

mulheres de lutarem, ocorreram casos na Idade Média em que elas chegaram a

defender seus domínios de ataques enquanto seus maridos estavam longe, em guerra,

nesses casos elas assumiam o comando26. Não era muito comum, nem mesmo visto

com bons olhos por todos, mas ocorria.

22 VAUCHEZ, Op. cit. p. 290. 23

Título francês para o herdeiro do trono, antes de sua sagração. 24

DUBY, Georges. Op. cit. p. 272. 25

BÍBLIA , N. T. João. Português. Bíblia Sagrada. Versão de Antonio Pereira de Figueiredo. São Paulo: Ed. Da Américas, 1950. 1 Coríntios 11:8-9 26BROUQUET,Cassagnes, Sophie. Dossiê Mulheres na Idade Média: cavaleiras em combate.Revista História viva. Disponível em:http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/dossie_mulheres_na_idade_media_cavaleiras_em_combate.html. Acesso em 24/09/2014.

16

Quando chegou a Chinon, a jovem foi muito questionada “devido a sua

presunção”, mas para Carlos VII ela trouxe o ânimo necessário que faltava aos

franceses, porém era preciso ter certeza que fora enviada por Deus. Por isso, a

enviaram a Poitiers, sua vida foi investigada, por doutores e teólogos e até exame de

virgindade foi feito para constatar sua pureza. Naquele contexto, a recusa à

sexualidade, era um aspecto importante, uma vez que a mulher sendo mais susceptível

à impureza, a virgindade ganhava força e provava que Joana não havia se corrompido.

Afinal, uma mensageira de Deus deveria buscar se aproximar dele, e se manter longe,

tanto quanto possível, das atividades mundanas.

No interior do cristianismo essa questão era bastante relevante, sendo que os

atos comuns do homem, de forma geral, eram considerados dessacralizados. Aquele

que conseguisse se desvencilhar o máximo possível desses elementos mundanos,

estaria mais próximo do divino. De acordo com Mircea Eliade:

Para o homem religioso, todas as experiências vitais – assim a sexualidade como a alimentação, o trabalho como o jogo foram dessacralizadas. Isto quer dizer antes de tudo que todos esses actos fisiológicos são desprovidos de significação espiritual, desprovidos, portanto da dimensão verdadeiramente humana27.

Ela mesma se intitularia como uma pucelle28 e seria questionada sobre isto

novamente em Rouen, pois a pureza fazia parte do misticismo que a envolvia, pois

para muitos, a virgindade atribuía força e dons sobrenaturais. Os ingleses mais tarde,

ao contrário, passaram a temê-la, acreditando que seus feitos eram obra de bruxaria.

Os religiosos franceses anteciparam essa questão da sua castidade já que constituía

algo de grande importância no mito em que ela estava se tornado. Segundo Beaune:

A virgindade é comparada a um perfume encerrado em um frasco frágil ou ainda a um tesouro mais precioso do que o ouro. Mas e também um conjunto de predisposições morais acentuadas por um modo de vida particular. As virgens são humildes de espírito, desdenham as alegrias deste mundo

27 ELIADE, Mircea, Op. cit. p.176. 28

Virgem, em francês.

17

transitório e progridem em espírito em direção á pátria celeste, evitando toda corrupção, toda palavra vã e toda má ação29.

Os doutores de Poitiers pediram que ela mostrasse um sinal, de que era

enviada de Deus, ela retrucou dizendo que não tinha chegado até ali para revelar

nenhum sinal, apenas pediu novamente soldados fieis, prometendo romper o cerco em

Orléans.30 Ela parecia extremamente determinada a fazer o que as vozes lhe pediam,

um dos aspectos da santidade e da vitória sobre o mal. Por outro lado, os crentes não

desejam longos sermões, nem grandes explicações, eles esperam milagres31.

Após muitas averiguações e questionamentos a consideraram uma boa cristã.

Foi lhe concedido um exército em torno de 10 mil homens, porque talvez fosse a

última esperança da França.

O caminho para Reims estava cercado e a cidade de Orléans que ainda resistia,

se fosse tomada, daria aos ingleses o domínio de todo o sul da França32. Carlos VII

precisava marchar para Reims para ser coroado, antes disto ele não poderia ser

considerado um rei legítimo, pois se tratava de uma importante tradição, como nos

aponta Hilário Franco Junior: “a unção régia. Isto é, o ato de se derramar um óleo

considerado santo sobre o rei que estava sendo empossado. Tratava-se, pois, de um rito

de passagem que sacralizava o monarca, tornava-o um eleito de Deus”33.

Joana partiu para Orléans em fins de abril de 1429, apesar de que não era “um

grande cavaleiro” e também não ter conhecimento militar, mas, foi lhe concedido um

estandarte, e uma armadura,34e conforme sua solicitação empunhava uma espada que

mandou buscar na Igreja de Santa Catarina, em Fierbois, região central da França.

Orléans tinha uma importância especial para os ingleses e a notícia que a

Virgem de Lorena estava chegando à cidade causou as mais diferentes reações. Desde

seu encontro com Carlos, fora associada a diversas lendas e profecias, e este era um

29 BEAUNE, Colette: Op. cit. p.134. 30

MICHELET, Jules. Op. cit. p. 46. 31

VAUCHEZ, Andre. Op. cit. p.292. 32 GIORDANI. Mário C. Op. cit.. p. 649. 33 FRANCO JUNIOR, H. Op. cit., p.64 34

BEAUNE, Colette. Op. cit., p.153.

18

dos principais motivos de sua presença causar grande admiração por parte do povo,35

Joana configurava a imagem de herói salvador, se tornando um ícone importante na

guerra, pois ela trazia uma renovação na esperança de uma vitória. Para Mircea Eliade

o mito em construção traz um novo cenário, nova narrativa sobre determinados fatos, e

algo novo que se apresenta aos homens mostrando um modelo a ser seguido36. Joana

d’Arc, naquele cenário, representava um modelo de conduta exemplar.

Maria do Carmo Peixoto Pandolfo sinalizou que a história pessoal de Joana

d’Arc podia ser considerada como modelo exemplar, desde sua vida oculta no vilarejo

de Domremy até sua trágica morte em Rouen. No conjunto dos fatos, teria os atributos

necessários para compor um mito, e por isso inspirou o exército à vitória.37 Apesar dos

questionamentos devido a seu sexo e idade, os soldados estavam preparados para

apoiar sua missão divina e seguir seu exemplo, pois:

Quanto mais o homem é religioso, tanto mais dispõe de modelos exemplares para os seus comportamentos e ações. Por outras palavras, quanto mais é religioso tanto mais se insere no real, e menos se arrisca a perder-se em ações não exemplares, ‘subjetivas’, e em suma, aberrantes.38

Em maio de 1429, ocorreu a libertação de Orléans39 e, desde então, tudo

parecia possível. A vitória significava a confirmação da missão de Joana, ela havia se

tornado uma heroína de guerra, e ocorrera o milagre que todos esperavam. Isto

também confirmou para muitos que se tratava de uma profetisa, afinal tudo parecia

ocorrer conforme ela havia afirmado. O Delfin teria o direito à coroa, e nenhum

homem poderia contrariar isto, pois segundo o povo, era a vontade de Deus40. Assim,

Carlos VII foi coroado rei em julho daquele ano, na Catedral de Reims, ocasião em

que Tratado de Troyes perdeu sua validade, já que a França tinha finalmente um rei,

após sete anos de indecisões.

35

ROCHA, Pereira André. Op. cit., p. 93. 36

ELIADE, Mircea, Op. cit., p. 108. 37

PANDOLFO, Maria do Carmo P. Joana d'Arc: semiologia de um mito. Rio de Janeiro: Grifo, 1997. p. 40. 38

ELIADE, Mircea, Op. cit., p. 109. 39

GIORDANI, Op. cit., p. 652. 40

DUBY, Georges. Op. cit., p. 272.

19

Nem todos, porém acreditavam em Joana. Havia muitas dúvidas acerca das

vozes que ela dizia ouvir e os ingleses já a chamavam de feiticeira, não porque visões

divinas fosse algo impossível, pelo contrário, visionários na Idade Media existiam em

profusão, mas Joana havia entrado em uma disputa política, afinal “será mesmo que

Deus queria que Carlos VII fosse o rei da França?” Muitos o achavam despreparado e

fraco, incapaz de consolidar o reino e derrotar os adversários. Mas também havia a

questão que o povo francês que há muito tempo sofria com a guerra, no entanto isso

não era suficiente para afastar as suspeitas que os monarcas tinham em relação a ela.

Gradativamente, com as vitórias militares ela foi se consolidando como

heroína, e sua obstinação em unir a França fez surgir no povo um sentimento de

pertencimento à França, “um sentimento de patriotismo (que já aparece bem nítido na

época de Joana d’Arc) e de fidelidade aos reis vai fortalecendo a unidade nacional.”41

Na época de Joana d’Arc, o conceito de nação ainda não era bem

compreendido, mas talvez já fosse possível se considerar francês, e não pertencente,

apenas, a determinado partido ou região. Jules Michelet fortaleceria futuramente a

ideia de amor à pátria em seu livro sobre Joana: “Recordemo-nos sempre franceses,

que nossa pátria nasceu do coração de uma mulher, de sua ternura e de suas lágrimas,

do sangue que ela verteu por nós”42.

Para alguns pesquisadores, Joana foi responsável pelos primeiros indícios de

nacionalidade francesa, ela teria despertado o entusiasmo necessário, além de

contribuir para a ascensão da monarquia:

Joana d'Arc é importante para Michelet porque depois da Guerra dos Cem Anos a França caminha para a unidade nacional. A partir disso ela é a representante do povo que coloca o legítimo rei no poder. O povo é a unidade francesa, não uma classe subalterna. A aparição de Joana representa uma França que escolhe seu próprio destino, é a França desejando ser a própria França43.

41 GIORDANI, Mário C. Op. cit., p. 652. 42 MICHELET, Jules. Op. cit., p.31. 43 AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, 221 fs. Tese do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 79.

20

Surgiram questionamentos se a missão de Joana terminara logo após a

coroação, por isso, Carlos VII decidiu negociar novamente com os adversários para

manter um “período de paz’’, já que a guerra não havia acabado totalmente. Para

muitos, ocorrera uma reviravolta favorável aos franceses, mas não uma vitória

completa e várias cidades ainda estavam sob domínio inglês. Joana dizia não ser a

favor das negociações do rei, deixando claro que para ela a missão era expulsá-los

todos e unir toda a França. Sua intromissão causava problemas aos interesses do rei,

que desejava manter a coroa sem correr maiores riscos, por isso, a relação entre ambos

começou a se abalar. Apesar de Joana “ser a enviada de Deus”, na condição de súdita,

naturalmente deveria respeitar a autoridade real.

Georges Duby sinalizou que Joana teria decidido, por conta própria, atacar

Paris sob a determinação de retomar a capital, mas lá não era Orléans. A cidade estava

repleta de borgonheses, aliados dos ingleses, e cercada de interesses pessoais destes

senhores, que haviam conseguido vantagens políticas e financeiras com a guerra e não

pretendiam morrer44 por uma causa que não consideravam deles. Foi uma grande

derrota, Carlos VII havia prometido enviar tropas para ajudar, mas não enviou, a

situação era clara, o rei preferia negociar.

Depois desse fracasso, a sorte de Joana se inverteu, com um número pequeno

de soldados, ficou muito difícil continuar. O povo ainda sofria com a fome e os

ataques repentinos de soldados em várias regiões. Compiégne, se viu ameaçada pelos

borguinhões45 e pediu socorro à donzela46, que decidiu partir para aquela cidade, com

alguns poucos companheiros de armas, Derrotada, foi capturada pelos borgonheses, e

feita prisioneira de guerra. Ainda sob custódia, ela tentou escapar, sem sucesso, sendo

transferida, logo depois, para o Castelo de Beaurevoir.

Não houve manifestação por parte de Carlos VII em resgatar Joana,

provavelmente nem tivesse recursos para isto. A jovem foi vendida para os ingleses,

pelo preço de dez mil peças de ouro, ficando nas mãos do inimigo. Precisavam julgá-la

culpada, os ingleses já a chamavam de feiticeira e diziam que seus feitos eram obra do 44

DUBY, Georges. Op. cit., p. 275. 45

O mesmo que borgonhês. 46

GIORDANI. Mário C.Op. cit., p. 653.

21

demônio, por isso decidiram transferir seu julgamento para uma jurisdição eclesiástica.

Se fosse considerada herética, Carlos VII seria desacreditado como rei47. Michelet

descreveu a reação de Joana pouco antes de sua captura em Compiégne:

Não era difícil prever que ela pereceria. Ela própria suspeitava disso. Desde o começo, dissera: ‘Devo aplicar-me com ardor; só durarei um ano, ou pouco mais’. Várias vezes, dirigindo-se ao seu capelão, frei Pasquarel, ela repetiu: ‘Se for preciso que eu morra em breve, dizei de minha parte ao rei, nosso senhor, que ele funde capelas onde se ore pela salvação dos que morreram pela defesa do reino48.

1.3. AS LABAREDAS DA INQUISIÇÃO.

O processo de Joana d’Arc teve início em 9 de janeiro de 1431, no Castelo de

Rouen, na diocese de Beauvais, na região da Picardia, no norte francês. Ele foi

dividido em três fases, sendo a primeira de preparação ou ofício, a segunda do

processo ordinário, e a última demandava a relapsia49 da acusada 50.

Inicialmente ela era uma prisioneira de guerra, mas não bastava condená-la à

morte, era preciso que fosse realmente esquecida, se conseguissem provar que se

tratava de uma herege, seus feitos não teriam nenhum valor, assim se iniciou o

processo inquisitorial.

Tais processos seguiam as normas criadas pelo papa Gregório IX, desde o

século XIII, a fim de identificar a heresia, e “salvar o homem do pecado”. Para a

Igreja, o mais importante era a salvação da alma e não do corpo e como os tribunais da

Inquisição não podiam condená-la diretamente à morte, exigiam o arrependimento de

seus crimes contra a fé, caso contrário, seria entregue ao braço secular, que

normalmente sentenciava pela morte51.

O processo teve como juiz inquisidor o bispo Pierre Cauchon, presidido por

Jean La Maistre, e mais sessenta assessores. Os soldados que guardavam Joana na

47 Id. Ibid p. 654. 48

JULES, Michelet. Op. Cit., p. 70. 49

Reincidência de erro ou de pecado. 50

TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Joana d'Arc: processo de condenação. São Paulo: Riddel, 1996, p.31. 51 Id. Ibid., p.22

22

prisão também eram ingleses e, apesar de ser um processo inquisitorial, Joana não

ficou em uma prisão eclesiástica, mas em uma cela no Castelo de Rouen, o que era

considerado irregular. O processo era também político, afinal se ela fosse

desmoralizada, Carlos VII também seria, por isso era importante que fosse visto

apenas como um processo de heresia, em que Joana teve a “chance de se redimir de

seus erros por intermédio da Igreja”52.

O processo de condenação e reabilitação é uma das fontes mais importantes

para estudar a vida de Joana d’Arc, existem duas cópias que mais se aproximaram do

original, são conhecidos como Manuscritos de Urfé de Orléans, eles têm as palavras de

Joana registradas no francês falado naquela época53.

No entanto, a versão que se tornou amplamente conhecida foi editada e

publicada por Jules Quicherat em 1841-49, através da Sociedade de História da

França. Podem existir questionamentos acerca da originalidade dessa publicação, mas

não se pode negar que trouxe uma nova visão sobre a história de Joana. Quicherat

publicou uma edição completa dos processos, e se preocupou em apresentar o maior

número de fontes possíveis em relação à acusada54.

Um processo para identificar a heresia buscava a confissão do réu antes de

qualquer coisa, mas Joana se tornara difícil de entender. Desde o início dos

interrogatórios, se negou a prestar o juramento de responder a verdade sobre todas as

coisas, o que era um grande problema já que em casos de heresia o “pecado estava

mais nos pensamentos que nas ações”, Joana poderia ser uma santa ou feiticeira, mas

era difícil identificar a diferença em curto prazo, segundo Collete Beaune:

Na verdade, há pouca diferença entre uma santa, uma maga ou uma feiticeira. Todas são mulheres, particularmente sensíveis à palavra divina e mais favorecidas do que os homens pelas aparições. Elas consagram a Deus (ou ao demônio) seus corpos e suas almas. Ao voto que liga a santa a Deus corresponde ao pacto que liga a feiticeira ao demônio55.

52

TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p. 24. 53

Id. Ibid., p 32. 54

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX. 2012, 221 f, Tese- – Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p.172. 55

BEAUNE, Colette. Op. cit. p.310.

23

Os inquisidores de Joana, certamente, eram homens de seu tempo. Durante o

processo faziam perguntas detalhadas sobre as aparições, como por exemplo, se os

santos tinham braços e pernas, demonstrando serem extremamente supersticiosos, e

acreditavam tanto ou mais que a própria ré em suas visões. As feiticeiras também

tinham visões, era necessário provar que as de Joana eram malignas, o que não foi tão

fácil. O processo durou seis meses, foi composto de doze audiências, as seis primeiras

foram públicas, e o restante ocorreu somente entre os envolvidos no processo.

As visões foram alvo de muitos questionamentos, afinal de onde elas

provinham? Somente na quarta audiência pública Joana revelou que “eram Santa

Catarina, santa Margarida e também São Miguel Arcanjo que lhe falavam”56. Ela

acreditava ouvir suas vozes e as associava ou as personificava nos santos que lhes

eram mais próximos e comuns em vida. Segundo relatos, a região de Lorena era

cercada de imagens de São Miguel e, quanto à Santa Catarina, Joana conhecia sua

história muito bem, sua própria irmã tinha esse nome. Catarina também representava

uma mulher forte que havia defendido a palavra de Deus em público, e podia ter sido

uma inspiração a Joana, pois se tratava de uma santa que, exaltava de certo modo, a

imagem da mulher, ao mesmo tempo em que defendia a Igreja57.

Segundo o processo de condenação, e possível perceber que quase todas as

respostas de Joana, eram muito breves e desafiadoras, não passava de uma camponesa

iletrada. Assim, vale perguntar: Como conseguia tamanha coragem diante de homens

poderosos e muito mais instruídos que ela? Ela sempre remetia suas palavras e ações a

Deus, isto poderia ser uma forma de manter-se longe do pecado do orgulho, ou

simplesmente por medo de não saber responder aos inquisidores. O fato é que, de

acordo com Andre Vauchez, uma das características do homem santo é sempre devotar

suas ações a Deus pois,

O homem de Deus esta frequentemente numa posição difícil: dotado de um poder que não desconhece, não pode recusar-se a servir-se dele em beneficio

56

TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit. p. 51. 57

BEAUNE, Colette. Op. cit. p 291.

24

de quem lho implora, mas esforça-se por fazê-lo apenas por justa causa, após um ato de fé e remetendo sempre para Deus o mérito do prodígio, uma vez realizado, que os beneficiários gostariam muitas vezes de atribuir-lhe a ele58.

Joana não se deixava condenar, havia aqueles que tinham medo de suas respostas,

afinal não sabiam com o que estavam lidando exatamente, o fato era que havia nela

algo que não lhes era possível compreender. Ela se negava a respeitar a ordem da

Igreja militante, representante de Deus na terra, e por outro lado, se devotava a suas

vozes e visões, o que para eles era incompreensível. Quando lhe perguntaram se estava

na graça de Deus ela respondeu:

Se não estou, que Deus me ponha nela; Se estou, que Deus nela me conserve. Eu seria a criatura mais infeliz do mundo se soubesse não estar na graça de Deus. Se eu estivesse em pecado não creio que a voz viesse a mim. Eu desejaria que todos a ouvissem como eu mesma59.

Muito questionado no processo foi o traje masculino que Joana usou, tanto em

batalha, como em outras ocasiões, além do cabelo curto, que sugeria, aos olhos

inquisitoriais à renuncia a seu sexo, além, é claro, de uma grave ofensa a Deus.

Perguntaram os juízes, como Deus mandaria que ela renegasse seu próprio sexo? Em

resposta ela lhes disse que era necessário, e que tinha sido muito bem aconselhada60.

Joana na realidade, de acordo com suas respostas no processo de condenação

nunca se disfarçou de homem, mas o fato de se vestir como um, causava

estranhamento não somente aos seus adversários como a seus companheiros, porém

como estava quase sempre em companhia masculina, o traje poderia significar

proteção ou uma forma de impor respeito, visto que a roupa feminina era frágil e

inadequada naquelas circunstâncias.

O tribunal abordou por diversas vezes uma questão séria que envolvia a

conduta de Joana, e sua imagem pacífica, no processo ordinário que se iniciou em

58

VAUCHEZ, Andre. Santidade. op. cit. p.294. 59 TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit. p. 46. 60 id. ibid.p.39.

25

março de 1431. No artigo XXV foi constatado que: “Ela se diz enviada de Deus para

casos que provocam a efusão de sangue humano”61.

Durante o processo a ré deu a entender que nunca havia matado ninguém em

combate. Argumentou que “preferia quarenta vezes mais seu estandarte do que sua

espada”62. No entanto, era difícil acreditar que não havia matado ninguém diretamente

em um campo de batalha. Vários estudiosos estão de acordo que Joana agia mais como

uma figura de destaque, incentivando os soldados, já que nunca foi oficialmente um

General, pois não se daria, na Idade Média, este posto a uma mulher. No entanto, na

visão dos inquisidores, o próprio apoio que ela dava aos soldados poderia ser

considerado um incentivo a morte em nome de Deus.

Entretanto, acerca de questões da guerra, a Igreja já se esforçara por tentar

esclarecer séculos antes, uma vez que envolvem sempre interesses políticos e pessoais.

Assim, a Igreja precisava justificar de uma forma que não fosse, ela mesma,

prejudicada. Bom exemplo foi o que Santo Agostinho escreveu no começo do século

V que: “Entre os verdadeiros adoradores de Deus até mesmo as guerras são pacíficas,

pois não são feitas por cobiça ou crueldade, mas numa preocupação de paz, para

reprimir os maus e socorrer os bons”63.

Sendo assim o que tornaria a guerra uma ofensa a Deus era a paixão pela

vingança e atos maus, interesses puramente mundanos, destituídos de qualquer vínculo

com a defesa de Deus.

Por isso, existem segundo Santo Agostinho as “guerras justas” que podem

ocorrer quando um povo negligente merece ser castigado,64 quando é defensiva e não

de conquista, ou se realiza em defesa do bem e de Deus.

No caso em estudo, foram os ingleses que, atravessaram o Canal da Mancha e

se estabeleceram em território francês, caracterizando tratar-se de uma guerra de

conquista, portanto, injusta porque visa tomar o que era de outros. Mas “guerra

61 Id. Ibid.,p 124. 62

TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit. p.56. 63 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica – Volume V, São Paulo: Loyola, 2004. p 518. 64 Id. Ibid. p.517.

26

defensiva ou para libertar um povo estaria plenamente conforme os ensinamentos de

Jesus”, isto claro era uma tentativa de justificar as ações humanas.

Joana, porém, se intitulava a mensagem de Deus na terra, deixando de

responder várias perguntas no processo, o que poderia ser considerado audácia e

orgulho por parte dela, mas os heróis normalmente agem assim. Na avaliação de

Maria do Carmo Peixoto Pandolfo:

O herói prefere morrer a renegar-se; mas a sua morte não é a negação de tudo: se recusa a viver neste mundo tal como é, afirma ao mesmo tempo a existência de princípios outros, sem os quais a vida nada lhe significa. Todo não do homem que se revolta implica em um sim a um valor diferente por cuja causa ele aceita morrer.65

Nessa linha, a ré justificava que Jesus a mandou em “defesa da França” e que

Ele jamais a castigaria por isto.

E mais ainda Joana, reafirmando suas convicções, ameaçou Cauchon e os

ingleses, prevendo que em sete anos a Inglaterra perderia toda a França para uma

grande vitória66. Nesse sentido, destaca-se outro aspecto em Joana, do que deveria ser

o comportamento de um santo, que deve enfrentar seus adversários, e se defender

“usando seus dons”. Conforme aponta Andre Vauchez:

Neste combate, a primeira vista tão desigual, empreendido por um homem aparentemente desarmado, este utiliza duas armas diferentes mas igualmente eficazes: em primeiro lugar, o próprio poder taumatúrgico que lhe permite manifestar a sua superioridade sobre os adversários, em seguida, os seus dons proféticos; a segunda arma, não menos importante - ou seja, a capacidade de ler nos corações dos homens e de anunciar o que lhes acontecerá...67

Não conseguindo respostas mais claras, o Tribunal decidiu em 9 de maio de

1431, tentar obter algo por intermédio da tortura, mas tudo não passou de uma

65 PANDOLFO, Maria do Carmo Peixoto. Op. cit. p.68. 66 TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit. p.62. 67 VAUCHEZ, Andre. Op. cit. p. 292.

27

tentativa. Após Pierre Cauchon fazer exaustivas perguntas, declarou que devido à

obstinação da réu, a tortura pouco lhe serviria68.

Apesar de sua postura inabalável, Joana também demonstrou medo,

principalmente quando o processo estava chegando ao final e seu destino parecia cada

vez mais certo, segundo Maria do Carmo Peixoto Pandolfo: “O homem-Jeanne tem

medo, medo de ser torturada, medo de ser queimada. É preciso que sua coragem

conheça este momento de fraqueza para que ela assuma integralmente a condição

humana”69.

Então, em final de maio, ocorreu o que colocou em dúvida a missão de Joana,

a abjuração. Nela Joana negou suas vozes e pediu perdão por seus pecados, aceitando a

sentença proferida de prisão perpétua. Não existem provas de como ocorreu à

abjuração, apenas teorias que buscam explicar a mudança do comportamento de Joana.

Um dos principais interesses era que Joana admitisse seus erros, muitos

queriam sua morte depressa, mas temiam que ela se tornasse uma mártir, mas a

abjuração seria uma forma de destruir sua imagem e fortalecer os interesses políticos

dos adversários. A conclusão era que, a jovem interferia demais na estrutura vigente, e

por isso não poderia continuar livre e influenciando os interesses políticos70.

Em meio a tudo isso, é preciso se levar em conta a pressão, o sofrimento e a

solidão da jovem enquanto esteve em cativeiro e as perguntas repetidas inúmeras

vezes, em diferentes momentos, e que, feitas de tal forma que chegavam a “orientar”

as respostas. Na visão de Beaune:

Hoje, é-se mais sensível a um problema diferente: ao longo dos interrogatórios e das semanas, as perguntas criam as respostas, em particular a respeito do espinhoso problema das vozes: entre os dias 21 de fevereiro e 31 de maio, Joana não tem a mesma consciência de si própria e suas vozes são diferentes. A pergunta leva a explicitar, a depurar, a completar, mas ela também orienta71.

68 TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit. p. 154. 69 PANDOLFO, Maria do Carmo Peixoto. Op. cit. p. 65. 70

ROCHA, Pereira André. As questões políticas de um processo religioso: A complexidade do julgamento de Joana D'Arc. 2009, 96 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Curso de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto/Minas Gerais, 2009, p.78. 71

BEAUNE, Colette. Op. cit, p. 19.

28

Joana assinou a abjuração, o que pouco durou. Alguns dias depois, os

inquisidores a encontraram vestindo novamente roupas de homem. Em outras

declarações, afirmou que esperava não mais ficar acorrentada e, ao ser interrogada

sobre o fato, respondeu que não compreendeu que estava negando suas visões, pois

que abjurar era uma traição72. Por essa ocasião não havia mais dúvida, Joana era

relapsa73 e herege, sendo assim, “a Igreja não poderia mais ajudá-la” e a entregou ao

braço secular.

Se ela tivesse mantido a abjuração, não teria sua imagem “consagrada pelo

martírio”. Segundo Beaune, sua morte ampliou seu misticismo, pois:

Ao messianismo triunfal dos anos 1429 sucedeu a imagem da sofredora e depois da mártir. O campo oposto insistiu, então, na imagem da herética, da maga, isto é, da feiticeira. Joana roubava, dizia-se; é por parentesco com os anjos ou com as secretárias de Satã? A morte de Joana não acalmou a efervescência mítica, muito ao contrário74.

A morte de Joana ocorreu na manhã 30 de maio de 1431, na praça do mercado

velho em Ruão. Estavam presentes os juízes responsáveis pelo julgamento, dignitários

da Igreja e do governo inglês, enquanto isso, Joana aguardava a sentença. Nicolas

Midy, um dos assessores do processo falou, com a intenção de justificar sua

condenação: “Se um membro sofre, todos os outros sofrem com ele” 75.

A Igreja não queria ter a responsabilidade da morte de Joana, por isso era tão

importante sua confissão, o fato de ter aceitado morrer em nome de “uma causa”,

colocou um fim dramático em sua curta, mas significativa trajetória de vida. Nesse

sentido, vale lembrar que o martírio tinha grande importância para o homem medieval,

que cultivava sua espiritualidade com muito ardor, no sentido de garantir a salvação da

alma. Vauchez aponta que:

72 TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p. 167. 73

No sentido de, segundo o processo, reincidir em seus erros e pecados. 74 BEAUNE, Colette. Op.cit. p.14. 75 TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p. 171.

29

Essa convicção universalmente difundida levava as almas apaixonadas pela perfeição à procura do martírio que proporcionava, com a certeza da salvação, os méritos necessários à Igreja e aos fiéis falecidos. Se não havia perseguidores, infligia-se o martírio a si mesmo76.

Durante o processo, Joana não tinha certeza de sua morte, declarou apenas que

os santos lhe prometeram que seria libertada por uma grande vitória77. Nesse caso

então, a libertação seria deste mundo, pois para o religioso morrer significa passar a

outra dimensão, e um novo começo, o início de uma vida plenamente espiritual. Como

analisou Mircea Eliade:

A vida humana não é sentida como uma breve aparição no Tempo, entre dois Nadas; é precedida de uma preexistência e prolonga se numa pós-existência. Muito pouco se conhece acerca desses dois estágios extraterrestres da Vida humana, mas sabe se pelo menos que eles existem. Para o homem religioso, portanto, a morte não põe um termo definitivo à vida: a morte não é mais do que outra modalidade da existência humana78.

A morte de Joana aumentou a admiração que a população tinha por ela, e

nesse cenário, os ingleses começaram a perder sua vantajosa posição na guerra. Os

franceses gradativamente recuperaram seus territórios e, assim, se considerou o final

do conflito, em 1453, com a vitória da batalha de Castillon.

No final do ano de 1449, Carlos VII foi a Ruão, teve acesso ao processo de

Joana d’Arc, e pretendia revê-lo, já que as instruções normativas condenavam como

herética aquela que lhe havia ajudado por ocasião de sua sagração como rei, portanto,

não poderia permitir que sua coroação fosse desonrada79. Desta maneira pediu que a

condenação de Joana fosse novamente investigada, sugeriu que a Igreja pudesse

reconhecer que talvez tivesse ocorrido um equívoco, de tal forma que sua imagem

fosse preservada. No entanto, este foi, possivelmente, o primeiro passo para a ascensão

de Joana d’Arc rumo à santificação.

76 VAUCHEZ, André. Op. cit , p.52. 77 TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p. 96. 78 ELIADE, Mircea, Op. cit., p. 73 79 TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p. 186.

30

2. JOANA D’ARC SOBE AOS CÉUS

2.1. 1456: PROCESSO DE ANULAÇÃO.

O nome processo de anulação é recente. Entre os anos de 1841- 49, foi

publicado por Jules Quicherat como “processo de reabilitação”, mas conforme

explicou Beaune seu objetivo era apenas anular a sentença proferida a Joana em 1431,

que a declarou herege80. As providências para a realização do processo tiveram início

quando, em 1450, Carlos VII designou um de seus conselheiros e doutor em teologia,

Guillaume Bouillé, para investigar a morte de Joana81, o que só foi possível devido à

vitória dos franceses na guerra. Para conseguir abrir o processo, um recurso foi o apelo

da família de Joana ao papa, sobretudo de sua mãe Isabelle Romée, conforme

descreveu Beaune: “a reparação pela reputação de uma inocente, aniquilada por um

processo iníquo”82.

Era muito raro a Igreja voltar atrás em suas decisões, os papas por volta do

século XV, não eram compassíveis com o Concílio de Basiléia nem com a

Universidade de Paris, visto que desejavam se aproximar de Carlos VII. Desde 1438, o

rei lhes impusera a sanção de Bourges, que permitia a intervenção direta nas eleições

eclesiásticas.83 Do mesmo modo, a Igreja não poderia deixar que a santidade

prosperasse fora dela. Desde o século XIV ocorria uma preocupação em reconquistar a

opinião do povo, que nutria crenças nos visionários e místicos, se intitulando “porta

vozes” do alto que trariam “respostas” às aflições e às aspirações religiosas84.

Joana era uma visionária, um dos motivos de sua condenação foram suas

“visões”, mas, por outro lado, era extremamente atípico uma simples camponesa ser

uma mensageira de Deus, uma vez que já havia uma instituição e seus membros

responsáveis por esta mediação. Referente a isto Andre Vauchez descreveu:

80

BEAUNE, Colette. Op. cit., p. 21. 81

TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p. 186. 82

BEAUNE, Colette. Op. cit., p. 23. 83

Id. Ibid. p.21 a 22. 84

VAUCHEZ, André. O santo. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). O homem medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p.221.

31

[...]para além de todos o motivos inirentes a cada caso particular-á desconfiança que os clérigos sentiam em relação a essas mulheres que, ao afirmarem que a união com Deus era possível na terra, mediante a fusão das vontades através do amor, podiam vir a desapossá-los da sua função de intermediários necessários entre os homens e o Além85.

O início oficial do processo teve início em dezembro de 1455, no Acerbispado

de Rouen, quando foram ouvidas 116 testemunhas, entre eles conhecidos amigos e os

familiares mais próximos a Joana, mas os responsáveis pelo processo, em 1431, já

haviam falecido não sendo possível interrogá-los.86 As questões abordadas se referiam

à infância de Joana, sua vida militar e o julgamento de 1431.

O processo de 1456 teve maior destaque na publicação de Jules Quicherat,

considerado pela Sociedade da História da França de maior importância por revelar

com mais detalhes a vida de Joana87. Devido aos diversos depoimentos prestados,

trouxe detalhes importantes. Era necessário comprovar a boa conduta de Joana, e para

isto todas as informações eram valiosas, as testemunhas vieram depor em sua defesa, e

também fizeram diversas acusações ao processo de condenação, visto que a intenção

era invalidá-lo. Logo nas primeiras investigações Maître Jean Massieu88 declarou: “Eu

acredito que, pelo que eu vi, que o processo foi cheio de ódio e de forma a humilhar a honra

do rei da França a quem ela serviu, vingar-se e levá-la até a morte, e não de acordo com a

razão e pela honra de Deus e da fé católica” 89.

As denúncias remetiam a culpa pela morte de Joana aos inquisidores da época

“que movidos por interesses políticos e ódio” julgaram-na herege. Entretanto não se

pode negar que o processo de anulação foi movido, também por interesses políticos,

visto que Carlos VII precisava ter sua imagem reabilitada após a guerra. 85

Id. Ibid. p 221. 86BEAUNE, Colette. Op. cit, p.23. 87

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX. 2012, 221 f, Tese- Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p.166. 88 Cura de uma das divisões da Igreja Paroquial de Saint-Caudres em Rouen, anteriormente decano da cristandade de Rouen. Depoimento feito no primeiro inquérito, entre 1449/1450 antes do inicio oficial do processo. 89 QUICHERAT, Jules. Procès de condamnation et de réhabilitation de Jeanne d'Arc, dite la Pucelle, Also known as Nullification or Rehabilitation. [p.irreg].Disponivél em: http://www.jeanne-darc.info/p_trails/trial_03_nullification/000_contents_.html. Acesso em 15/10/2014. Tradução livre da autora.

32

Os depoimentos do ano de 1455 que se referiam à infância de Joana e sua vida

em Domremy repetiram diversas vezes sua “boa conduta cristã”. Em depoimento,

Beatrix90, segundo as fontes consultadas, afirmou:

Jeanne foi devidamente instruída na fé católica, como outras jovens de sua idade. Até sua partida, ela foi devidamente fiel; Ela era uma donzela casta e de hábitos modestos. Frequentou com grande devoção, igrejas e lugares ‘sagrados; e, após a vila de Domrémy ser queimada, ela deixou os dias de festa para assistir à missa em Greux. Ela se confessou voluntariamente, principalmente na Festa da Santíssima Páscoa, a ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo. Eu acho que não houve alguém melhor do que ela em nossa aldeia91.

As testemunhas, disseram repetidas vezes as mesmas informações, como por

exemplo que “ela ia muito a Igreja” e que se “confessava com frequência”.

A ideia transmitida era que se Joana era verdadeiramente devota a Deus, e não

poderia ser uma herege, ela sabia distinguir “os juizes injustos”, da Igreja, e fora

julgada de forma inadequada. Se considerarmos atentamente esses depoimentos

veremos que também defendiam a Igreja.

As maiores referências sobre a vida militar de Joana, foram encontradas neste

processo, vários companheiros de guerra depuseram sobre as batalhas e a libertação de

Orléans, retratando o cenário em geral e a liderança da acusada. Padre Jean

Pasquerel92, exemplificando narrou o final da batalha de Orleans:

Em seguida, ela voltou a toda pressa para o ataque, gritando. "!Glasdale Glasdale”. Você que me chamou de prostituta, eu tenho muita pena de sua alma, e de seu povo." Neste momento Glasdale, totalmente armado dos pés à cabeça, caiu no Loire, onde se afogou. Joana, teve piedade diante desta visão, começou a chorar pela alma de Glasdale, e para todos os outros que, em grande número, foram afogados, ao mesmo tempo que ele. Neste dia, os Inglêses, que estavam do outro lado da ponte foram capturados e mortos.93

90 No processo Beatrix foi identificada como “Viúva de Estellin, trabalhador, de Domrémy”. 91 QUICHERAT, Jules. Op. Cit. [P.Irreg].Tradução livre da autora. 92 Pertencente à Ordem dos Frades Eremitas de S. Agostinho, que viviam em seu convento, em Tours, em 1429, e posteriormente em Bayeux, em 1456. 93

QUICHERAT, Jules. Op. Cit. [p.Irreg].Tradução livre da autora.

33

Nos referidos depoimentos, em várias ocasiões, mesmo quando se referiam aos

combates Joana era associada a manifestações divinas, ou a um comportamento

imcomum aos demais, a maioria dos soldados que combateram ao seu lado, viam nela

algo de sobrenatural, sentimento nada incomum para a época. Para o homem religioso

é possível ver manifestações do sagrado em tudo que o rodeia, quando os pensamentos

estão voltados para a representações divinas. Segundo Johan Huizinga: “A simples

presença de uma imagem visivél das coisas santas bastava-lhe para estabelecer a verdade”94.

Deste modo seu mundo pode ser sacralizado como defende Mircea Eliade:

Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, a sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Por outros termos, para aqueles que têm uma expêriencia religiosa, toda a Natureza é susceptível de revelar-se como sacralidade cósmica95.

Mesmo em combate, de acordo com os depoentes, Joana “chorava pelas almas

dos ingleses”, já que para Deus todos eram irmãos. Relatos como estes lhe comferiram

um bom caráter, e não sinalizavam ódio em suas ações.

Finalmente em julho de 1456 Joana foi declarada inocente e o processo de

condenação fora anulado, sobre a sentença proferida cabem as seguintes palavras:

Nós dizemos e pronunciamos e declaramos que o dito processo e a sentença, eivados de dolo, de calúnia, de iniquidade, de contradição, de erro manifesto de fato e de direito, nisso compreendia a abjuração, os atos executórios e suas consequências, foram, são e serão nulos, inválidos, sem valor e sem autoridade96.

Os dois processos estão dentre as fontes mais valiosas para se estudar a vida

de Joana d’Arc, segundo Colette Beaune, pois ambos são magníficos e os tribunais da

época deixaram para a posteridade um belo processo97.

No final da Idade Média ocorreu um grande aumento nos cultos a visionários e

santos, simbolizando para alguns o enfraquecimento do cristianismo pelo mundo, mas

94

HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Lisboa/Rio de Janeiro: Ulisséia, [s. d.]. [p.irreg]. 95

ELIADE, Mircea, Op. cit., p.26. 96

TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p. 187. 97

BEAUNE, Colette. Op. cit., p.25.

34

segundo Vauchez, a ampliação destas crenças foi responsável por difundir

significativamente o culto aos santos 98.

2.2. 1909: JOANA D’ARC SE TORNA BEATA.

Mesmo considerada inocente de seus crimes, Joana d’Arc só seria reconhecida

pela Igreja Católica no início do século XX, quando o papa Pio X a beatificou. Sua

imagem foi alvo de diversas disputas ideológicas e políticas. Sua vida não representou

apenas um auxílio à França, mas, mais tarde, um paradigma.

Conforme a historiografia tradicional aponta, Joana d’Arc foi esquecida pela

historiadores, entre os séculos XVI e XVIII sendo relembrada somente no século XIX,

quando foi transformada em heroína nacional99, mas diferentemente, sua memória

havia sido preservada em Orléans devido à libertação da cidade100.

No entanto, existem algumas dúvidas acerca desse esquecimento. Segundo o

pesquisador Olivier Bouzy pode-se estimar que cerca de 472 obras referentes a Joana

foram escritas antes do século XIX. Assim, para ele o que ocorreu foi uma tentativa

de nova interpretação da história da pucelle a partir do século XVIII101. Dentre as

obras do período há que se destacar também a representação de Joana d’Arc na peça

Henrique VI, de Shakespeare, que ocorreu 150 anos após o cerco de Orléans, em que

Joana foi representada como vilã, sendo inimiga de Lord Talbot, que lutava em nome

de seu rei na França102.

Em 1792, foi a vez do satírico poema de Voltaire, La pucelle d’Orleáns, que

descreveu Joana como uma ingênua camponesa, e que sua trajetória e horrível morte

derivaram da ingenuidade daquele contexto. Assim, Joana foi apenas uma vítima da

98

VAUCHEZ, André. O santo. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). p. 229. 99

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, 221 fs. Tese do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. p.33. 100

TEIXEIRA, Sebastião Meirelles. Op. cit., p.187. 101

AMARAL, Aparecida Flávia. Op. Cit., p.33. 102

RODRIGUES, José Alfredo. Joana d'Arc na peça Henrique VI, de Shakespeare. 2008, 29 f. Trabalho de Conclusão de Curso – Curso de história da UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008, p.25.

35

ignorância e superstição de seu tempo, mas os franceses acreditaram nela e isto fora o

suficiente.103

A leitura do poema deixa claro a visão iluminista sobre a história de Joana, era

necessário separar a “fantasia da realidade”. Com esta visão racional, a pucelle era

apenas mais uma figura da Idade Média, era necessário separar a razão do misticismo

medieval, já que para estes pensadores somente a razão poderia fornecer respostas

satisfatórias. Segundo René Fulop Miller:

Entrementes, porém, as ciências empíricas, na sua busca das leis naturais, fizeram, uma após outra, assombrosas descobertas, induzindo, conseqüentemente, a razão a tirar a falaciosa conclusão de que somente ela possui a chave do verdadeiro conhecimento. Com crescente liberdade e ousadia, foi proclamada a teoria de que para a ciência nada poderia haver de sobrenatural e de incompreensível.104

Apesar de não ter ocorrido um completo esquecimento, o grande aumento de

obras referentes a Joana, dataram do período pós a revolução francesa. Para Quicherat,

somente a revolução foi capaz de eternizar e transformar a história de um personagem

medieval.105

Há de se notar uma mudança na concepção de heroismo que ocorreu no

século XIX, principalmente com o Romantismo. A história de Joana d’Arc passou a

ter outras interpretações.106

Em 1841, Michelet publicou o V tomo da História da França, em que

eternizou a memória da pucelle como a “própria França”, inspirado pelo movimento

romântico. Para esse historiador, Joana inspirou o movimento nacionalista já que

amava a França como um todo, em um período caracterizado por separações

territoriais e dinásticas. Ele narrou a vida de Joana como uma gloriosa epopéia, para

103

MAYQUEL, Ferreira Eleuthério. O filósofo e a Donzela: a corrosão do mito de Joana d'Arc por Voltaire em La Pucelle d'Orleans. In: AEDOS.2012: 4. Disponível em http://seer.ufrgs.br/index.php/aedos . Acesso em 16 de novembro de 2014. 104

FULOP-MILLER, R. Os Santos que abalaram o mundo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, p. VII. 105

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, 221 fs. Tese do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 36. 106

Id. Ibid. p. 82.

36

certificar suas ideias se utilizou dos processos inquisitoriais como fonte, sendo várias

de suas análises derivadas das respostas de condenada.

Para Michelet, Joana contagiou a todos com seu entusiasmo e conseguiu criar

um novo sentimento de nação, pois logo no começo da obra ele defendeu:

A originalidade da Donzela, o que fez seu sucesso, não foi tanto sua sua bravura ou suas visões, foi seu bom senço. Graças a seu entusiasmo, essa moça do povo vislumbrou o problema e soube resolvê-lo. O nó que os políticos e incrédulos não podiam desatar ela cortou.107

Michelet narrou a história de Joana com grande paixão, e valorizou “seu

patrioismo”, por vezes de forma dramática: “O drama do sacrifício do justo e a

homenagem à verdadeira alma do povo francês se fundem logo antes de sucumbir às chamas,

Joana e o povo francês em sua piedosa existência [...]”108.

É praticamente impossível escrever sobre Joana e não reconhecer seu

envolvimento religioso, por isso, possivelmente Michelet descreveu as visões de Joana

a fim de contar sua história de forma poética, demonstrando a “grandeza de sua fé”,

buscando explicar o sentimento religioso por meio de uma convicção interior da

própria Joana. Mas a questão central era: como abordar sobre os três santos que Joana

dizia ver e ouvir desde seus 13 anos?

Para vários autores do século das luzes esta era uma dificuldade aparente,

sendo que nem todos optaram apenas por negar as visões.109 Na apresentação de seu

trabalho Michelet descreveu: “A história e a seguinte: Uma criança de 12 anos, uma

jovenzinha, confundindo a voz de seu coração com a voz do céu, concebe a idéia

estranha, improvável, absurda, se preferirem de executar aquilo que os homens não

podem mais fazer, salvar seu país.”110

Contudo Joana não representava somente uma heroína militar e nacional, com

sua memória reavivada por divesos escritores e políticos, os processos de condenação

107

MICHELET, Jules. Op. cit. p. 33. 108

CHRISTINO, Daniel. Introdução. In: JULES, Michelet, Op. cit., p.10. 109

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, 221 fs. Tese do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 108. 110

MICHELET, Jules. Op. cit. p.27.

37

e reabilitação se tornaram fontes confiáveis, possibilitando o surgimento de novas

opiniões referentes a Joana. 111

A Igreja Católica francesa, na segunda metade do século XIX interviu e o

bispo de Orleans Félix Dupanloup iniciou os procedimentos necessários para a

canonização da heroína. Assim, caberia à Igreja reconhecer a divindade daquela que se

tornou um símbolo para a França e, para isso, seria necesário associar a missão de

Joana ao sagrado.

Durante sua vida Joana foi associada à imagem de santa em vários momentos.

Antes mesmo de encontrar Carlos VII em Chinon, as pessoas já nutriam um

sentimento de paixão e crença em sua vitória, muitos acreditavam que somente ao

encostar nela teriam a cura para suas enfermidades,112 afinal se ela tinha visões divinas

e podia prever o futuro, poderia do mesmo modo curar. Aliás, naquela época as

expectativas de cura por meio dos ditos santos eram comuns. Segundo Vauchez:

Até o estabelecimento de um processo regular de canonização, no fim do século XII, o poder taumatúrgico era praticamente a única condição exigida para que um defundo pudesse ter as honras do culto. A santidade se verificava por sua eficiência. Já que o mal físico, assim como o pecado, eram obra do Diabo, a cura miraculosa só podia vir de Deus, e bastava para demonstrar que aquele por cuja intercessão ela fora obtida pertencia à corte celeste.113

Entretanto como já foi dito, ela se intitulava a mediadora de Deus o que era

difícil para a Igreja aceitar, visto que mulheres visionárias, poderiam tecer críticas à

Igreja Católica. Sobre isto Vauchez apontou: "Excluídas do ministério da palavra no

seio da Igreja, apoderam-se dele, alegando uma eleição divina."114

Nesse caso, apesar dos aspectos de santidade que Joana apresentou em vida, e

de seu martírio, ela configurava a imagem do santo místico, aquele que não é

convencional, uma vez que tem experiências consideradas sobrenaturais, sem um 111

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, 221 fs. Tese do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 183 a 184. 112BEAUNE, Colette. Op. cit., p.311. 113

VAUCHEZ, André. A espiritualidade da Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII): Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, p. 161 a 162. 114

VAUCHEZ, André. O santo. In: LE GOFF, Jacques (Dir.). P.221.

38

esclarecimento aparente, representando deste modo uma contestação à ortodoxia

estabelecida. Ao abordar sobre o misticismo Kenneth L. Woodward apontou que:

Além disso, por mais que os místicos certifiquem e confirmem crenças aceitas como força de sua experiência pessoal, eles tendem também a individualizar e ramificar aspectos particulares da fé, a ponto de desafiar em certos casos, a ortodoxia vigente.Só a pretensão de ter a experiência direta de Deus põe muitas vezes os místicos sob suspeita de heterodoxia.115

Deste modo, mesmo tendo demonstrado eloquente demonstração de fé e

grande sucesso em sua “missão divina”, não era possível ter certeza de sua santidade.

Todavia não se trata de uma negação da Igreja Católica, visto que existem vários

santos canonizados que são considerados místicos, o que ocorre é uma certa incerteza

das experiências vividas no misticismo. Para a Igreja, aqueles que tem aspirações ao

sobrenatural podem do mesmo modo receber influências malignas.116

Joana foi chamada de santa e de bruxa durante e após sua vida, para santificá-

la seria preciso demonstrar que sua missão tinha caráter religioso, principalmente por

meio de suas boas ações a favor dos que necessitavam de auxílio. Isto era o que

poderia diferenciar o santo, dos demais mistícos, de acordo com Vauchez, que

sinalizou que:

Mas a santidade não se confunde com o extraordinário ou o maravilhoso, mesmo se estes elementos lhe estão quase constantemente associados. O que caracteriza o santo é que –depois de ter adquirido o domínio da natureza em si é a sua volta—ele põe o seu poder a serviço dos homens.117

Joana havia se colocado a serviço da França, entretanto não se tratava apenas

de uma missão patriótica, em nome do “rei do céu” ela reergueu um povo cristão, de

forma moral e religiosa.

Ainda haviam as questões políticas pois, no século XIX, a imagem de Joana

estava profundamente associada a ideais políticas principalmente pelo partido

115

WOODWARD. K. L. A Fábrica de Santos. São Paulo: Siciliano, 1992, p.156. 116

WOODWARD. K. L. . Op. cit., p.156. 117

VAUCHEZ, Andre. Op. cit. p.290.

39

socialista da França que a considerava uma heróina, do mesmo modo que ano de 1898

foi fundada a Action Française, movimento contrarrevolucionário monarquista que era

inspirado pelo tradicionalismo e que lutou pela santificação da pucelle. Ocorria então,

uma tentativa de separar a esfera política da religiosa, indagação esta que coube à

modernidade fazer.118

Outro fator ponderante que ajudou em sua santificação foi sem dúvida a sua

identificação como heróina popular, com isto a Igreja colocou a culpa de sua morte no

clero inglês, que a havia julgado por fatores políticos, num contexto de julgamento

religioso.119 Desta forma, depois de algumas manobras para eliminar ou minimizar

alguns efeitos, podia ser trilhado o caminho para a sua santificação.

Um processo institucional de canonização precisa passar por várias etapas

antes de se concretizar, sendo a beatificação uma delas. A diferença entre a

beatificação e a canonização é que a primeira confere ao santo apenas uma permissão

local para sua veneração, e a segunda trata-se de uma determinação em nivel mundial.

Há séculos a Igreja já defendia estas instâncias: “Até mesmo no final da Idade Média,

a Igreja teve de aceitar a existência de uma duplicidade neste campo: os sanct,

oficialmente reconhecidos, e os beati de culto limitado a nivel local”120.

Esse reconhecimento, fruto de um processo jurídico e burocrático, exige um

procedimento de investigação que já era utilizado pela Igreja, desde o século XIII,

conforme apontou Vauchez:

A partir dos últimos decénios do século XII começaram a afirmar-se os processos de canonização – investigações ordenadas por Roma sobre a vida, as virtudes e os milagres dos servidores de Deus — que se tornaram, no decorrer do século XIII, um eficaz instrumento de seleção.121

118

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, 221 fs. Tese do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 199. 119

Id. Ibid. p.200. 120

VAUCHEZ, Andre. Op. cit. p.298. 121

VAUCHEZ, Andre. Op. cit. p.297.

40

Ao longo do tempo, este processo sofreu diversas modificações, porém vamos nos

ater às normas vigentes no período que transcorreu a causa de Joana. Para muitos fieis

já era considerada santa, mas existia um distancimento entre as crenças populares e a

canonização formal. Somente a Igreja podia e, pode atualmente, indicar quem é

“santo”. Como forma de manter sua hegemonia e sua ortodoxia, existe um controle

para evitar a propagação de cultos a pessoas consideradas, pelo aval popular,

santas.122

Este é um dos motivos, pelos quais, todo processo de santificação e

extremamente formal e cheio de exigências, em geral longo e difícil, podendo demorar

muito tempo, às vezes, séculos. Antes de 1917, na fase chamada Pré Juridica era

necessário esperar mais de 50 anos após a morte do santo para iniciar o processo para

evitar que a santificação ocorresse apenas pela fama popular do candidato. Durante

esta fase ocorria o levantamento de fundos para o andamento do processo, que

normalmente é feito por alguma ordem religiosa.123

Posteriormente a análise geral e o consentimento por parte da Igreja é que tem

início um processo formal e uma vez, tendo passado pelas provas preliminares, era

dado ao candidato, o título de Servo de Deus. Neste momento era verificada a

reputação do aspirante à santidade de diversas formas, se sua boa conduta fora

comprovada, passaria ainda por debates entre um advogado defensor de sua causa e

um “Advogado do Diabo” que deveria argumentar contra o processo de canonização,

de modo a testar as qualidades do postulante124. Após o processo ser aceito pela

Congregação e avaliado pelo papa, poderia obter o Decreto de Introdução, ingressando

na Jurisdição da Santa Sé, a fim de provar se o Servo de Deus tinha sofrido martírio ou

praticado virtudes heroicas, se confirmadas essas questões, recebia o título de

Venerável.125

122

WOODWARD. K. L. Op. cit.,p.51. 123

JURKEVICS, Vera Irene. Os Santos da Igreja e os Santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade popular. 218 f. Tese de doutorado, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p.130. 124

Id. Ibid. p.131 a 132. 125

Id. Ibid. p.132.

41

No caso de Joana, o inquérito do processo prosseguiu a partir de 1874, quando

ocorreram 36 sessões para discutir a causa, e em 1876 o processo foi apresentado à

Sagrada Congregação dos Ritos, mas ainda assim houve mais dois inquéritos. Somente

em 1894, Leão XIII concordou com a "introdução a causa" que lhe concedeu a

titulação de Veneravél Joana.126

Em 1896, o bispo de Orléans realizou três inquéritos para comprovar a

santidade de Joana, num total de 122 sessões com mais de 20 depoimentos que

também estavam relacionados a prováveis milagres. Durante este período foi levantada

uma importante questão: O que poderia ser utilizado como provas oficiais na causa de

Joana?127

Os processos de 1431 e 1456 foram aceitos, a publicação de Quicherat passou

por algumas discussões, afinal apesar de fornecer informações valiosas não deixava de

ser uma edição revisada, por isto era necessário ter certeza que se tratava de uma

transcrição digna. Após as devidas verificações, os processos foram aceitos como

provas.128 Deste modo, era preciso ter cautela ao analisar os processos visto que o

primeiro visava denegrir a imagem de Joana, e o segundo restaurá-la. As respostas da

acusada e as críticas ao processo de 1431 ajudaram a fortalecer sua defesa, pois

conforme descrito ela própra teria dito: "Você escreve, ela disse, "o que é contra mim,

mas você não escreve o que está em meu favor. "129

Contudo a beatificação não poderia ocorrer sem a comprovação dos

“milagres”. No seu processo 3, foram aceitos e serão abordados na continuiade deste

trabalho. Finalmente em 24 de Janeiro de 1909, Pio X declarou que Joana d'Arc seria

beatificada, o que ocorreu em 18 de abril numa grande cerimônia:

Em 18 de abril de 1909, na presença de cinquenta mil pessoas, trinta mil dos quais eram homens e mulheres, franceses que tinham viajado para Roma. Pio X proclamou , com toda a solenidade, de forma esplêndida que a Igreja atribui -se em tal ocasião, que Joana d' Arc seria daqui em diante chamada de

126 E.A. Ford. Blessed Joan of Arc: Complete Story of Her Wonderful Life, Her Tragic Death, Her Rehabilitation, Her Beatification. Christian Press, 1910. P. 306 a 307.Tradução livre da autora. 127

Id. Ibid. p.306. 128

Id. Ibid. p.307 a 308. 129

Id. Ibid. p.308.

42

bem aventurado, ele exortou os fiéis a procurar a sua intercessão, ja que ela vive nos corações do povo francês, continuará também a repetir no céu a oração: "Grande Deus das nações, salve a França!....130

Todavia, apesar de ser um processo extremamente burocrático, essas medidas

não retiram um aspecto das canonizações, o de atingir aqueles que crêem, elevando-os

à veneração, mesmo porque, antes dos serem reconhecidos pela Igreja, já eram

sacralizados popularmente, e a Igreja nunca deixou de se preocupar com isto.131

2.3 1920: O PROCESSO DE SANTIFICAÇÃO.

Joana havia sido martirizada, e ainda assim, em favor de sua causa foram

apresentados “sete ditos milagres” à Santa Sé, para que se tornasse uma santa. Três

foram considerados verdadeiros, valendo-lhe a beatificação.132 Os milagres podem ser

considerados o quesito mais importante para a canonização, já que são a prova

definitiva da santidade do indivíduo.

O dito “processo de milagres” visava provar sua autenticidade, na maioria, se

tratava de alegações de curas milagrosas, e médicos eram convidados para verificar se

a cura não tinha ocorrido de forma natural.133 No caso de Joana não foi muito

diferente, os três primeiros milagres que a Igreja aprovou em seu caso foram os

seguintes:

1. Irmã Teresa de Santo Agostinho informou ter sido curada por sua

intercessão, durante uma novena feita a Joana d’Arc. Segundo ela, em 1900, estava

gravemente doente e os médicos já esperavam sua morte, quando iniciou suas orações

e súplicas, e pouco tempo depois, os sintomas desapareceram sem explicação.134

2. A irmã Julie Gauthier, de Faverolles declarou que sofria há mais de quinze

anos com uma ùlcera cancerosa em seu peito esquerdo. Relatou que, quando deixou de 130

Id. Ibid. p.313. 131

WOODWARD. K. L. Op. cit.,p.52. 132

E.A. Ford. Op. cit.p. 309.Tradução livre da autora. 133

JURKEVICS, Vera Irene. Os Santos da Igreja e os Santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade popular. 218 f. Tese de doutorado, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p.133. 134

E.A. Ford. Op. cit. p. 309 a 310.Tradução livre da autora.

43

acreditar em sua cura por meios normais, iniciou uma novena a Joana d’Arc e foi

atendida, sendo completamente curada.135

3. O terceiro ocorreu em Frages, à freira Marie Sagnier que sofria há seis

meses de uma tuberculose que afetava seus rins e ossos. Fez uma novena para Joana e

obteve melhoras no quinto dia, tendo sido curada completamente pouco depois.136

Os três milagres tratam de curas, crer na cura de uma doença por intermédio

de um santo desde o início do cristianismo esteve sempre entre os principais milagres

possíveis, ainda que na modernidade essa crença seja em menor grau. Marc Bloch ao

abordar sobre o poder de cura a partir do sagrado no período medieval descreveu:

“Ora, existe beneficio maior e mais perceptível que a saúde? Facilmente se atribuía o

poder curativo a tudo o que em qualquer grau, participasse de uma consagração.”137

A Igreja sempre pede milagres póstumos para a canonização. Contudo dentre

os milagres atribuídos à Joana, ainda em vida, cabe destacar a suposta ressurreição de

uma criança em Lagny-sur-Marne, corrida em 1430. Espalhou se por toda a cidade que

Joana havia ressuscitado uma pessoa. Em resposta Joana dissera que somente havia

rezado, sem explicar mais nada138, pois não gostava que lhe atribuíssem este tipo de

feito ou qualquer outro, de caráter sobrenatural.

A questão é que não parece certo alguém afirmar que fez um milagre, ou que

seja atribuído a alguém, pois os “fazedores de milagres”, segundo a Igreja, são apenas

intercessores junto a Deus para que Ele o realize. Beaune apontou o que a Igreja

defende como ortodoxia:

O poder de fazer milagres pertenceu a Cristo, depois aos apóstolos e a todos os santos. Miguel, Catarina ou Margarida fazem milagres, assim como aqueles que a Igreja canonizou. Mas todos já morreram. Assim ninguém pode proclamar-se, em vida, fazedor de milagres. De resto, uma laica e simples camponesa tem muito poucas chances de chegar à canonização ou ao milagre. Pretendê-lo seria orgulho e vaidade. Não se diz: "Eu faço milagres", mas ou outros podem dizê-lo.139

135

Id. Ibid. p.311 a 312. 136

Id. Ibid. p.312 a 313. 137

BLOCH, M. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p 82. 138

BEAUNE, Colette. Op. cit., p. 311. 139

Id. Ibid. p. 311.

44

Portanto não havia como provar estes milagres que teriam ocorrido durante a

vida de Joana ainda que para de seus muitos contemporâneos, até sua impressionante

vitória militar em Orléans havia sido um milagre. A questão era que Joana sempre

negou quaisquer alegações desse tipo ou que tivesse ocorrido um gesto miraculoso

específico durante as batalhas.

Do mesmo modo a crença de milagres não vê a morte do santo como algo

totalmente ruim, para os crentes o seu “poder miraculoso” não acabava com a morte,

pelo contrário, ele aumentava, conforme apontou Vauchez:

Se em vida o homem de Deus podia defender-se das tentativas de divinizá-lo ou de fazer assumir a conotação negativa de mago, depois da morte perde todo e qualquer controle sobre seus admiradores e os seus devotos. Com efeito, a santidade não é uma qualidade ou uma designação apenas reconhecida a um vivo [...]140.

Para que a canonização ocorresse era necessário que houvesse outros “sinais

divinos”,ou seja, mais milagres141. Nesse caso não demorou muito para aparecer estes

sinais, mas há muitos casos de beatos que demoram muito para serem canonizados ou

mesmo acabam no esquecimento, por que tudo depende da força popular, em favor de

sua santificação, mas, mais ainda do seu “poder de intercessão”.

Joana foi canonizada em 1920 pelo papa Bento XV, sendo proclamada uma

mártir pela pátria e por sua fé. A cerimônia ocorreu na Basílica de São Pedro, quando

a pucelle passou a ser venerada por todo o mundo.

Com a canonização, sua imagem se tornou ao mesmo tempo de uma heroína e

de uma santa Em suma, uma santa guerreira que em vida salvou seu pais e após sua

morte fez alguns milagres. A Igreja de certo modo conseguiu ajustar a imagem daquela

que a Inquisição havia queimado, e em 1922, foi declarada Padroeira da França.

140

VAUCHEZ, Andre. Op. cit. p.294. 141

JURKEVICS, Vera Irene. Os Santos da Igreja e os Santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade popular. 218 f. Tese de doutorado, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p.133.

45

Para Eliade o homem religioso sempre reatualiza seus mitos para se aproximar

da divindade, neste caso a história de Joana se encaixa no perfil das “histórias divinas

trágicas” que o homem buscou reatualizar de forma periódica, correspondendo assim a

uma espécie de “responsabilidade” para consigo e com a natureza.142

Ser santo significava também fazer parte do calendário da Igreja, tendo direito

a um dia do ano para a comemoração e devoção. Para Joana foi denominado o dia 31

de maio, data de sua morte.

A história de Joana d’Arc se espalhou por todo o mundo católico. Hoje são

incontáveis as obras a seu respeito, mas ao que tudo indica é que sua história ainda

suscita muitas dúvidas. Ainda em 1909, Raphael Symptor publicou a obra Jeanne

d'Arc n'a jamais existe, questionando a própria existência de Joana.

Sua imagem também é disputada no campo literário e político, dúvidas que

surgiram no final da Idade Média ainda se perpetuam a atualidade. Em 2007, o

jornalista Marcel Gay e o paleógrafo Roger Senzig, publicaram a obra L’affaire

Jeanne D’Arc143. Para Gay, Joana foi uma invenção do Estado e uma manipulação da

coroa francesa preocupada com a Guerra dos Cem Anos, e defendeu que Joana “não

foi queimada em 1431”, mas outra pessoa144.

Em resposta a Gay e a outras alegações parecidas sobre a pucelle, Colette

Beaune publicou em 2008, o livro Joana d’Arc verdades e lendas, a fim esclarecer de

as teorias sem maior fundamento acerca da heroína, para Beaune e importante

compreender quais foram às narrativas atribuídas a Joana antes do século XIX e a

partir dele, visto que sua imagem sofreu grandes transformações.145

Na França, Joana ainda faz parte de confrontos políticos, todos querem

reivindicar para si o ícone da pucelle. Na campanha presidencial francesa de 2012 sua

imagem foi muito explorada pelos candidatos, Marine Le Pen e Nicolas Sarkozy, mas

142

ELIADE, Mircea, Op. cit., p.55. 143

Tradução: A causa de Joana d’Arc. 144VASSET, Benjamin. Marcel Gay : "Jeanne d'Arc, une opération de servicessecrets".2007.Disponível em: http://www.linternaute.com/histoire/magazine/interview/marcel-gay/verites-contre-verites.shtml. Acesso em: 04 /11 /2014. 145 TORRES, Bolívar.Joana D'Arc, a heroína construída sobre mitos e verdades. 2013. Disponível em: http://www.linternaute.com/histoire/magazine/interview/marcel-gay/verites-contre-verites.shtml. Acesso em: 04 /11 /2014.

46

por todos os lados, acusações foram feitas sobre a utilização de Joana d’Arc como

propaganda de campanha.146

FIGURA 1 – MARINE LE PEN EM 2012, DISCURSA EM FRENTE À ESTÁTUA

DE JOANA D’ARC.

Disponível em: http://www.globalpost.com/dispatches/globalpost-blogs/europa/happy-600th-birthday-joan-arc. Acesso em 19/11/2014.

Nicolas Sarkozy, o então presidente, participou das comemorações pelo 600º

aniversário do nascimento de Joana d’Arc, em janeiro de 2012. Segundo a mídia, sua

intenção era de se aproximar dos eleitores, a fim de melhorar sua imagem nas

pesquisas de campanha, visto que a eleição presidencial estava próxima. Em notícia

publicada pelo site O Globo, Sarkozy procurou associar a história mítica de Joana com

a atualidade política da França, alfinetando a adversária por utilizar Joana como

146

AMARAL, Aparecida Flávia. História e ressignificação: Joana d'Arc e a historiografia francesa da primeira metade do século XIX, 221 fs. Tese do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 9.

47

propaganda de campanha declarou, que Joana simboliza uma das mais belas virtudes

francesas, e que deveria ser tratada como símbolo de unidade e não de divisão.147

FIGURA 2 – NICOLAS SARKOZY EM 2012 NA COMEMORAÇÃO DO 600º

ANIVERSÁRIO DE JOANA D'ARC.

Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/01/franca-celebra-600o-aniversario-de-nascimento-de-joana-darc.html. Acesso em 19/11/2014.Acesso em 20 /11 /2014.

Com esses exemplos, mais uma vez, vemos a força da história de Joana d’Arc,

sua popularidade e sucesso continuam mesmo na atualidade, do mesmo modo que

existem várias representações sobre ela, a divergência entre elas e muito grande.

Para Pandolfo uma das principais características do mito e sua imortalidade, a

história de Joana d’Arc permanece com dúvidas e diversas alegações de toda ordem,

mas isto é justamente o que caracteriza sua ascensão ao panteão celestial da divindade

e do heroísmo patriótico: Pandolfo aponta: “Entre as inúmeras variantes da história de

Joana d’Arc não há porque procurar uma versão “verdadeira”, da qual as outras seriam

147

O GLOBO.Sarkozy disputa Joana D’Arc com oposição meses antes das eleições. Disponível em: http://oglobo.globo.com/mundo/sarkozy-disputa-joana-darc-com-oposicao-meses-antes-das-eleicoes-3585932.

Acesso em 19/11/2014.

48

cópias ou deformações. O mito se compõe da soma de suas variantes: esta e

justamente sua definição”148

148

PANDOLFO, Maria do Carmo Peixoto. Op. cit. p.41.

49

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente monografia buscou analisar a história de Joana d’Arc e os motivos

que a levaram à ascensão, sendo uma das mulheres mais documentadas da Idade

Média.

Joana foi uma figura importante no período da Guerra dos Cem Anos, por sua

intervenção que causou muito espanto, mas também admiração por parte dos franceses

e resistência dos ingleses. Algumas dúvidas, quanto à sua missão, envolta em

misticismo, ou até mesmo quanto à veracidade de sua existência e de seus feitos, algo

semelhante ao Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, permanecem até hoje,

mesmo porque a jovem camponesa dos confins franceses teve uma trajetória

improvável, pautada em mística e vitórias militares, que lhe renderam um fim trágico.

De acordo com os trâmites eclesiásticos, pode-se considerar que as visões, que

Joana dizia ter, não foi o que lhe conferiu o reconhecimento de santidade pela Igreja

Católica, mas suas ações e os milagres que lhe foram atribuídos, ou legitimados como

tendo acontecido por seu intermédio.

Constata-se que, a “santa Joana” não foi apenas uma criação da Igreja

Católica, mas parte de uma espiritualidade já existente em seus contemporâneos,

assim, o que ocorreu com sua canonização foi uma transformação mais significativa de

sua imagem que se difundiu pelo mundo, colaborando para a aproximação entre a

Igreja e seus fieis.

Apesar de seu misticismo ter sido questionado, não impediu sua santificação.

Para Woodward o santo deve surpreender, transmitindo a todos a confirmação de uma

vida cheia de virtudes, do mesmo modo que pode ser imprevisível, afinal é isto que

suscita o devoto à adoração.149

Ao longo do tempo, sua imagem também foi utilizada conforme as

necessidades ideológicas de partidos políticos franceses. Para a esquerda ela foi

injustiçada pelo clero, para a direita simboliza a força do cristianismo e sua ligação

com a França.

149

WOODWARD. K. L. Op. cit. p. 385.

50

Ela continua sendo uma figura de destaque na atualidade. Entre os franceses

sua imagem ainda é motivo de disputas de toda ordem, seu simbolismo mítico não

perdeu a força, porquanto no imaginário popular, permanece de certo modo, a crença

no herói salvador, que sempre é invocado quando se faz necessário.

As visões a seu respeito são múltiplas, até o campo científico tentou explicar

sua história alegando que Joana sofria de esquizofrenia, ideia que e possível ver em

um dos últimos filmes lançados a seu respeito o The Messenger the story of Joan of

Arc, de 1999, do diretor Luc Besson. Nele, Joana alega que ouve vozes, mas não

fornece explicação alguma sobre elas, ela induz os soldados à morte e depois chora

pelas suas almas, reclamando do resultado de seus próprios atos. Neste filme temos

uma Joana muito confusa e ansiosa, demonstrando coragem, mas ao mesmo tempo,

apontando indícios de loucura.

O curioso é que no mesmo ano foi lançado outro filme para a TV, Joana

d’Arc, do diretor Christian Duguay, em que Joana foi retratada como muito católica e

sensata, “falando” diversas vezes com Santa Catarina São Miguel e Santa Margarida, e

além de sua fé, também foram enfatizados seus feitos heroicos e os interesses políticos

do período.

Para isto foram elaborados dois capítulos, o primeiro abordou a vida de Joana

através de uma narração de sua história, nele foi possível identificar alguns aspectos

que lhe conferiram o titulo de santa e ao mesmo tempo de heroína. E o segundo, nos

permitiu compreender sua importância, mesmo na atualidade, e como ainda muitos,

pesquisadores, políticos, ou simplesmente curiosos se interessam por sua vida.

De todo modo, sua história continua a intrigar o mundo, e este creio foi o

principal motivo deste estudo.

51

FONTES

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IMAGEM DA CAPA

Fonte: Artista Charles Amable Lenoir, Art, Joan Of Arc. Disponível em:http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lenoir,_Charles-Amable_-Joan of Arc.jpg.