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UNIVERSIDADE SÃO MARCOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA RICARDO MENDES MATTOS Situação de rua e modernidade: a saída das ruas como processo de criação de novas formas de vida na atualidade São Paulo 2006 RICARDO MENDES MATTOS

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UNIVERSIDADE SÃO MARCOSPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

RICARDO MENDES MATTOS

Situação de rua e modernidade: a saída das ruas como processo de criação de novas formas de vida na atualidade

São Paulo2006

RICARDO MENDES MATTOS

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São Paulo2006

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Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da Universidade São Marcos Mattos, Ricardo MendesM393s Situação de rua e modernidade : a saída das ruas como processo de criação de novas formas de vida na atualidade / Ricardo Mendes Mattos.--São Paulo : [s.n], 2006. 244p.

Dissertação (Mestrado) - Universidade São Marcos. Área de concentração: Psicologia Orientador: Prof. Dr. Ricardo Franklin Ferreira

1. Psicologia social 2. População de rua - Identidade I. Título.

Bibliotecária responsável: Maria Elenita S. Ramos - CRB 8-5849

FOLHA DE APROVAÇÃO

Situação de rua e modernidade: a saída das ruas como processo de criação de novas formas de vida na atualidade

Ricardo Mendes Mattos

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Dissertação defendida em aprovada em: _____/_____/2006.

Banca Examinadora

Prof. Dr.

_________________________________________________________________.

Instituição: ________________________________. Assinatura:

___________________.

Prof. Dr.

_________________________________________________________________.

Instituição: ________________________________. Assinatura:

___________________.

Prof. Dr.

_________________________________________________________________.

Instituição: ________________________________. Assinatura:

___________________.

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“Às pessoas em situação de

rua,

Aos companheiros e

companheiras de militância,

Aos amigos e amigas.

À subversão”.

Agradecimentos

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Tenho convivido há anos com diversas pessoas em situação de rua, nos viadutos, nas praças, nos albergues, nos bares, nas cooperativas, nos Fóruns, nas manifestações, etc. Mais aprendi do que ensinei, mais ignorei do que soube. Este meu trabalho vai pra eles, se é que isso tem algum valor para a maioria deles.

Aprendi que a verdadeira orientação, paradoxalmente, desorienta, confunde, contradiz, inquieta, emociona. Lá onde os caminhos tradicionais se desconstróem, onde os títulos acadêmicos são colocados ao lado dos vasos sanitários (talvez aí tenham alguma serventia!), onde a fria coerência racional não toma tento, é que se envereda pelos (des)caminhos da produção dos (des)conhecimentos. É nesse hiato que imperam os afetos, as revoltas, as amizades, as loucuras e o respeito. Aí há o ser humano, demasiado humano, como aquele com quem compartilhei todo este trabalho, e ele é nosso. À Ricardo Franklin Ferreira.

Conviver com um mestrando é um saco. Minha mãe se queixa que só fico no computador e não dou mais atenção pra nada; meus amigos falam que só estudo e, quando não, só falo nos estudos e, quando não, fico chato. Que possa compartilhar as emoções não compartilhadas, tomar todas cervejas não tomadas, trocar todas idéias não trocadas. Isso pra não falar das noites não dormidas, viagens não viajadas, férias não gozadas. Acho que pra mim também foi um saco.

Nos momentos difíceis de sofrimento se conhece os verdadeiros amigos - é um ditado velho, mas funciona. Descobri alguns irmãos: Reinaldo, Fê, Mingute, Bob, Glorinha, Franklin, Marisa Fortes, meu velho pai.... Citar os nomes é sempre errado, uma injustiça: algumas pessoas acabam ficando enciumadas e a gente sempre esquece de alguém.

Mas, incorrerei no erro de novo. Poucos doutores conseguem descer do pedestal, aqueles que conseguem merecem ser reverenciados. Este trabalho é também dedicado a algumas pessoas: Heloani, Ciampa, Ari, Marisa Irene, Adriana. Especialmente à Carmem - sempre me arrepio quando falo que é a maior psicóloga social que conheci.

Não sei se era bem essa a ordem, mas queria agradecer muito a todas as pessoas do Fórum de Debates sobre a População em Situação de Rua. Especialmente à Cleisinha, grande lutadora.

Ah... me arrependo sempre de usar alguns espaços científicos para dedicações de amor. Mas sou teimoso, não resisto. Houve uma mulher especial que mudou minha vida... na verdade acho que só agora estou realmente vivo: choro, sinto, sou mais visceral...é melhor parar por aqui. Sabem aquele Lobo da Estepe? Acho que foi isso que ela despertou em mim. Ju, sei que vai ficar meio p... da vida quando ler, mas eu ficaria muito mais p... se não escrevesse.

Tá ficando muito longo...Quase me esqueci. Adoro ver em minha banca examinadora pessoas que

sempre respeitei lendo os seus livros. É uma sensação de estranhamento... acho que a gente nunca imagina que conversaria tão francamente com pessoas que respeitávamos demais a partir dos textos. José Justo e Ana Cristina Nasser contribuíram muito com este trabalho. Não é puxasaquismo... saibam que a pesquisa foi outra depois da qualificação.

À FAPESP, pelo apoio e financiamento. Queria também desabafar. Aos pesquisadores mais convencionais que

reprovam essa forma de me colocar. Relevem, são os agradecimentos... uma espaço mais informal, etc. Algumas coisas não se aprendem nos manuais. Poderia dizer que não é nada pessoal, mas estaria mentindo.

Tenho certeza que esqueci de alguém. Deveria ter anotado metodicamente durante a pesquisa. Estou sempre me culpando... dizendo o que deveria ter feito. Mas

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acho que uma boa saída é partir de uma frase de Maffesoli, acho que já li coisa parecida em outro lugar, mas darei os créditos a ele: “...um livro é escrito por aquele que o lê”. Assim, se por ventura alguém ler estes agradecimentos e pensar que poderia ter sido lembrado, faça isso: sinta-se incluído.

Hino de Duran

(Chico Buarque)

Se tu falas muitas palavras sutis

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E gostas de senhas, sussurros, ardisA lei tem ouvidos pra te delatarNas pedras do teu próprio lar

Se trazes no bolso a contravençãoMuambas, baganas e nem um tostãoA lei te vigia, bandido infelizCom seus olhos de raio-x

Se vives nas sombras, freqüentas porõesSe tramas assaltos ou revoluçõesA lei te procura amanhã de manhãCom seu faro de dobermann

E se definitivamente a sociedade só te temDesprezo e horrorE mesmo nas galeras és nocivoÉs um estorvo, és um tumorA lei fecha o livro, te pregam na cruzDepois chamam os urubus

Se pensas que burlas as normas penaisInsuflas, agitas e gritas demaisA lei logo vai te abraçar, infratorCom seus braços de estivador

A Terra Prometida

(Vinicius de Moraes e Toquinho)

Poder dormir, poder morarPoder sair, poder chegarPoder viver bem devagar

E depois de partir poder voltar,e dizer este aqui é o meu lugarE poder assistir ao entardecer,e saber que vai ver o sol raiar

E ter amor, e dar amor e receber amor até não poder maisE sem querer vem o poder, poder viver feliz para se morrer em paz.

RESUMO

MATTOS, Ricardo Mendes. Situação de rua e modernidade: a saída das ruas como processo de criação de novas formas de vida na atualidade. 2006. 244 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade São Marcos, São Paulo, 2006.

A partir do último quartel do século passado, o crescimento do número de pessoas em situação de rua no Brasil é digno de estupefação. Nesse

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contexto, surgem inúmeras pesquisas científicas das mais diversas áreas do conhecimento que procuram compreender, principalmente, os motivos que levam as pessoas para a rua e quais as características da vida em situação de rua. Logo, as (im)possibilidades do processo de saída das ruas apenas muito recentemente ocupam a preocupação dos pesquisadores. Tendo em vista a necessidade de discutir este último processo, bem como sua possível contribuição no delineamento de políticas sociais para as pessoas em situação de rua, a presente pesquisa possui como objetivo compreender o processo de saída das ruas sob a perspectiva de pessoas que vivenciaram a situação de rua. Para tanto, foram realizadas entrevistas semi-dirigidas com quatro pessoas que conseguiram sair das ruas. Dessa maneira, primeiramente discute-se o conceito de pessoas em situação de rua, além de elaborar uma divisão dessa população em alguns grupos característicos que compõe sua heterogeneidade: os mendigos, os moradores de rua, albergados, catadores de materiais recicláveis, trecheiros, andarilhos e loucos de rua. Posteriormente, enfocando o processo e não mais a conceituação, faz-se uma análise da rualização, ou ida para as ruas, a partir das transformações mais contemporâneas que denominados de liquidificação da modernidade, com ênfase na passagem de uma sociedade regida pela domesticação para uma sociedade que privilegia o nomadismo em suas mais diversas expressões. Trata-se de uma maneira de aproximar a situação de rua da vivência cotidiana de todos os demais cidadãos do líquido mundo moderno, tal como conceituado por Bauman, aproximação esta que é complementada com a análise da vivência concreta da situação de rua como agudização das contradições do mundo atual. Assim, se na modernidade sólida tínhamos a segurança existencial resguardada por instituições sociais solidificadas que nos privavam, muitas vezes, de liberdade individual, no contexto atual somos impelidos a ser compulsoriamente livres, tendo como contrapartida a combinação de incertezas, inseguranças e falta de garantias. Por fim, o processo de saída das ruas é analisado como forma de síntese da contradição entre a modernidade sólida/domesticação/segurança e a modernidade líquida/nomadismo/liberdade. Nesse sentido, a saída das ruas acaba por constituir a criação de uma nova forma de se viver que pode estar na vanguarda do enfrentamento das angústias que afligem todas as pessoas desse inseguro e incerto mundo atual.

Palavras-chave: população de rua; modernidade; identidade; Psicologia Social.

ABSTRACT

MATTOS, Ricardo Mendes. Homelessness and modernity: homelessness exit as process of creation of new forms of life in the world nowadays.2006. 244 f. Thesis (Master) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade São Marcos, São Paulo, 2006.

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From the last quarter of the passed century, the growth of the number of people in homeless situation in Brazil is worthy of perplexity. In this context, innumerable scientific research appears of the mostdiverse areas of the knowledge that they look to understand, mainly, the reasons that take the people for the homelessness and which the characteristics of the life in the streets. Soon, (im)possibility of the process of homelessness exit very recentlyonly occupy the concern of the researchers. In view of the necessity to argue this last process, as well as its possible contribution in the delineation of social politics for the homeless people, the present research possesss as objective to understand the process of homelessness exit under the perspective of people who had lived deeply this situation. For in such a way, interviews with four people had been carried through who had obtained to leave in homelessness. In this way, first the concept of people in homeless situation is argued, besides elaborating a divisionof this population in some characteristic: the beggars, the inhabitants of street, the public shelter usuary, the garbage recyclers, the “trecheiros”, the wanderers, and the mad homeless. Later, focusing the process and not more the conceptualization, becomes an analysis of the gone for the streets, from the transformations more contemporaries who liquefy of modernity, with emphasis in the ticket of a society conducted for the domestication for a society that privilegesthe nomadism in its more diverse expressions. One is about a way to approach the homelessness of the daily experience of all the too much citizens of the liquid modern world, approach this that is complemented with the analysis of the concrete experience of the homelessness as a extreme experience of the contradictions of the current world. Thus, if in solid modernity we had the existencial security protected by made solid social institutions that in deprived them, many times, of individual freedom, in the current context we are impelled to be compulsively free having as counterpart the combinationof uncertainties, unreliabilities and lack of guarantees. Finally, the process of exit homelessness is analyzed as form of synthesis between solid modernity/domestication/security and liquid modernity/nomadism/freedom. In this direction, the homelessness exit finishes for constituting the creation of a new form of if living that it can be in the vanguard of the confrontation of the anguish that afflict all the people of this unsafe and uncertaincurrent world.

Word-key: homeless; homelessness; modernity; identity; Social Psychology.

SUMÁRIO

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Apresentação..................................................................................................................... 13

Introdução.......................................................................................................................... 16

Capítulo 1 - Método: da compreensão científica do nomadismo à compreensão nômade da ciência...................................................... 26

1.1 - Procedimentos metodológicos......................................................... 31

Capítulo 2 - Conceito de pessoas em situação de rua........................................ 38

2.1 - Situação de rua e seus traços essenciais.......................................... 42

2.2 - Dimensões da situação de rua.......................................................... 44

2.3 - Os principais grupos de pessoas em situação de rua....................... 47

2.3.1 - Mendigos.............................................................................. 47

2.3.2 - Moradores de rua.................................................................... 51

2.3.3 - Albergados............................................................................. 53

2.3.4 - Catadores de materiais recicláveis............................................ 54

2.3.5 - Trecheiros.............................................................................. 59

2.3.6 - Andarilhos............................................................................. 60

2.3.7 - Loucos de rua........................................................................ 61

2.4 - Situação de rua como processo....................................................... 62

Capítulo 3 - A (des)ordem social moderna e os motivos de rualização........ 64

3.1 - “No olho da rua”: situação de rua e precarização das relações de trabalho..................................................................................................... 77

3.2 - “Na rua da amargura”: situação de rua e precarização dos vínculos familiares.................................................................................... 88

3.3 - Estado neoliberal e mal-estar social: situação de rua e esfacelamento dos direitos sociais do cidadão......................................... 102

3.4 - Trajetórias concretas de rualização.................................................. 114

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Capítulo 4 - Vivência concreta da situação de rua: o escancarar das contradições modernas...................................................................... 125

4.1 - Situação de rua e espacialidade: seres desenraizados, de lugar nenhum..................................................................................................... 126

4.2 - Situação de rua e temporalidade: a amnésia histórica e o fragmentado presente perpétuo................................................................. 133

4.3 - Situação de rua e sua dimensão ética: a desumanização das relações sociais estigmatizantes, superficiais, anônimas e efêmeras........ 140

4.4 - Da incerteza, insegurança e desamparo como condições ontológicas do ser moderno...................................................................... 150

4.5 - Sistema albergal: tentativa de domesticação da situação de rua..... 154

4.6 - Sísifo (anti)moderno e as possibilidades de projetos para o futuro. 160

Capítulo 5 - (Im)possibilidades de saída das ruas: apresentação e análise dos resultados........................................................................................

1625.1 - Saída das ruas: porque? para

quem?................................................1625.2 - Como se dá a saída das ruas? - idiossincrasias da busca por

autonomia................................................................................................. 1685.3 - Saída das ruas e trabalho: da necessidade de criação de novas

formas de trabalho.................................................................................... 1755.4 - Saída das ruas e família: da criação de novas maneiras de se

viver em família................................................................................................. 192

5.5 - Saída das ruas e os (des)serviços prestados pelas políticas públicas..................................................................................................... 200

5.6 - Saída das ruas e o papel dos movimentos sociais............................ 206

5.7 - Saída das ruas: síntese entre a segurança da vida domesticada e a liberdade da vida nômade? - sobre o processo de criação de novas formas de vida na contemporaneidade..................................................... 214

Considerações iniciais e (in)conclusões..................................................................... 221

Referências Bibliográficas............................................................................................. 228

Anexos................................................................................................................................ 243

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Apresentação

Por vezes me pergunto: “Porque escolhi a população de rua como tema de

pesquisa?”. Fico confuso, pois noto que essa pergunta vem depois de alguns anos de

estudos. Foi preciso certo distanciamento de minhas produções iniciais para julgá-las

melhor.

Embora tenha sido advertido disso há algum tempo, somente agora tenho uma

sensação mais próxima do quanto a escolha de um tema está ligada à nossa vida

pessoal, o quanto as escolhas são perpassadas mais pela emoção e afeto (no sentido de

sentir-se afetado) do que por raciocínios lógicos. Antes, apelava para a questão

política, também muito importante, para justificar minha escolha: crescimento da

população em situação de rua que denota a miséria produzida por nós no capitalismo;

a exclusão social de pessoas que não são sequer cidadãs brasileiras a julgar pelo fato

de não serem incluídas em pesquisas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística), sem contar a omissão acadêmica devido ao exíguo número de pesquisas a

esse respeito; necessidade de participar da transformação dessa realidade, e assim por

diante. Porém, deixemos os aforismos éticos-políticos um pouco de lado e

enveredemos por alguns momentos de minha vida pessoal.

A primeira recordação mais significativa que tenho da população de rua

remonta a minha experiência como office-boy no centro da cidade de São Paulo. Era

inverno. Estava aguardando a abertura da loja para entrar no trabalho, na Rua

Florêncio de Abreu, quando vejo um punhado de moradores de rua correndo.

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Acompanhei com a vista aquele cooper matinal meio confuso. Um companheiro de

trabalho, de mais idade, esclareceu que corriam para espantar o frio. Responsável por

entregar as “sobras” de comida do refeitório para os moradores de rua da região, com

o tempo, observei que haviam outras estratégias para espantar o frio: a roda de pinga,

o dormir amontoados no mocó. Nessa época, mantive muito contato com essas

pessoas, enquanto matava o tempo de trabalho conversando ou pedia informações

sobre alguns lugares.

Outra situação me marcou bastante, talvez de maneira mais duradoura.

Freqüentava um boteco de roqueiros, chamado São Paulo Bar, no início de minha

juventude, em meados da década de noventa. Pelo parco espaço e em virtude do calor,

as mesas eram postas nas calçadas e um casal de “mendigos” chamou-me a atenção:

com a maior naturalidade, denotando ser um hábito costumeiro, passavam de mesa em

mesa e enchiam seus copos de cerveja a noite toda, sem pedir permissão aos “donos”

da bebida. Quando tentaram surrupiar a minha cerveja segurei a garrafa e falei que

não achava correta essa atitude: pegar minha cerveja descaradamente sem ao menos

sentar para bater um papo! Convidei-os pra sentar e bebemos a noite inteira,

conversando sobre assuntos diversos. Assim, sempre que lá estava, eles bebiam

comigo e com um grupo de amigos. Certo dia, entretanto, em que exagerei bastante na

bebida, combinada com outros aditivos, passei muito mal. Meu apelido, desde esse

dia, é “mendigão”, ainda usado por alguns amigos e abreviado “para não pegar mal”.

Isto porque, dizem eles, apareci no ponto de ônibus, de manhã cedo, onde nos

encontrávamos para voltar para casa, enrolado em uma coberta de mendigos e por

eles acompanhado. Durante todo o trajeto, tiraram muito “sarro” da minha “cara”

enquanto descreviam que eu estava “semi-desmaiado” e fui levado pelos mendigos

para me recuperar e descansar em seu mocó.

Lembro-me bem de que meu primeiro projeto de pesquisa tinha no título o

termo mendigo. Minha iniciação científica, em 2002, tem uma história curiosa.

Procurei o Prof. Ricardo Franklin Ferreira, com quem havia tido a disciplina de

Psicologia Social, com a intenção de fazer minha pesquisa de iniciação científica

sobre o tema da terceira idade. O professor ouviu minha proposta e pediu que

justificasse minha escolha, tarefa que fiz, aludindo o aumento desse contingente e

outros lugares-comuns de um aluno que lograva ludibriar um professor - estratégia

que aprendemos bem, após muitos anos de educação formal. Franklin foi enfático:

“Sua fala sobre esse tema é sem vida. Deve escolher alguma coisa que te incomoda,

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inquieta, revolta.... um tema ao qual esteja emocionalmente ligado”. Na semana

seguinte, cheguei com um projeto para estudar a “identidade do mendigo”,

posteriormente aprovado pela FAPESP, com o qual iniciei minha trajetória de

trabalho sobre a população em situação de rua.

O primeiro trabalho, de iniciação científica, intitulada “Processo de

constituição da identidade do indivíduo em situação de rua: da rualização a

sedentarização”, que possuía um modelo teórico de entendimento sobre a vivência de

pessoas em situação de rua, desde seu ingresso até sua saída. Aí, já estavam contidos

os germes dessa dissertação, com a ênfase nas idiossincrasias da saída das ruas. A

partir daí, consegui vencer muitos dos preconceitos, embutidos no termo depreciativo

mendigo, usado como motivo de chacota, relacionados à piedade que sentia em

relação às pessoas em situação de rua. Tratava-se da pena que sentia pela condição de

vida nas ruas, pela desqualificação social, pela alimentação feita com as mãos sujas,

pelas vestimentas sujas e parcos hábitos de higiene, pelas noites chuvosas passadas

com medo de serem agredidos, etc. Esta visão piedosa da população de rua deu lugar

a uma perspectiva de enxergar essas pessoas como sujeitos históricos construtores da

realidade social e de suas vidas pessoais. Logo, vencidos esses preconceitos iniciais,

compreendi a vida na rua como outra forma de vida, uma forma de vida a ser

modificada a partir do retorno à vida sedentária. Era essa perspectiva que via nos

movimentos sociais, nas manifestações, nas discussões com pessoas nos albergues ou

nos fóruns de debates.

Superei alguns preconceitos e adquiri outros. A saída das ruas, ou a

domesticação, era minha aposta de que a vida em casa, com a família e trabalho

regular com carteira assinada, era uma maneira mais “digna” e “correta” de se viver.

Devíamos lutar para que as pessoas em situação de rua pudessem regressar à vida

domiciliada e vivessem felizes para sempre.

Essa visão está implícita no Trabalho de Conclusão de Curso, que fiz em

2004, de nome “Projeto LAR (Livre do Álcool e das Ruas): proposta psicossocial de

intervenção com o alcoolista em situação de rua”, no qual empreendi, juntamente

com o amigo Geraldo Mendes de Campos, um estudo sobre as relações entre o

alcoolismo e a situação de rua. O resultado final foi uma proposta de intervenção para

promover, de uma vez só, duas “normalizações”: tornar abstinente o alcoolista e

domesticada a pessoa em situação de rua.

Com essas críticas a meus trabalhos anteriores, não quero excluir sua

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importância, tanto no âmbito da produção do conhecimento científico, como no ramo

das práticas concretas, mesmo porque trazem uma visão da situação de rua construída

coletivamente com pessoas nessa condição e a partir de suas demandas. Quero apenas

fazer notar que se se considera a pesquisa um importante instrumento de

transformação da realidade, a subjetividade do pesquisador não paira alhures. Suas

emoções, pensamentos, ações militantes, são transformados pela pesquisa.

É óbvio que iniciei esta dissertação com a visão acima mencionada: a da vida

doméstica como bandeira, por concebê-la como uma forma “mais digna” e “normal”

de se viver. Agora, ao sair desta pesquisa, qual a transformação que ela me

possibilitou, o decorrer do texto há de se encarregar de dizer.

Introdução

A situação de rua na cidade de São Paulo é um fenômeno relativamente

recente. Com sua concretização nos espaços públicos, surgem também abstrações nos

espaços científicos. Trata-se de uma forma de procurar atribuir um sentido à nova

condição social que re-produz “velhas” expressões da desumanização no povo

brasileiro - basta recordar que nossa nação foi construída a partir da aculturação e do

genocídio indígena e afro-brasileiro.

Nesse sentido, se as ruas possuem diversos trechos pelos quais seus errantes

procuram sobreviver, os pesquisadores também tornam-se trecheiros em busca da

compreensão dessa forma de vida.

A primeira área do conhecimento científico que enveredou pelo desafio de

compreender a situação de rua foi a das ciências sociais. A pesquisa que inaugura a

tradição sociológica de estudos sobre este contingente é o clássico “Os mendigos na

cidade de São Paulo”, publicado por Marie-Ghislaine Stoffels em 1977. Esta obra

possui imenso valor na tentativa de buscar uma conceituação científica para o termo

mendigo, permeado por inúmeros preconceitos - que, ademais, permanecem até hoje

vinculados a esta expressão. Stoffels também procurava apreender o mendigo a partir

de sua inserção no modo de produção capitalista, chegando a delinear importante

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reflexão sobre a necessidade de conscientização e organização coletiva dessas

pessoas.

Em 1983, foi publicado importante artigo sobre a mendicância, intitulado

“Mendigo: o trabalhador que não deu certo”, escrito por Delma Pessanha Neves. De

forma mais contundente, Neves enfatizou a mendicância como uma estratégia de

sobrevivência para aquela parte da classe trabalhadora impossibilitada de vender sua

força de trabalho através de emprego formal. Em outras palavras, a autora explicita a

mendicância como condição gerada por um modelo de desenvolvimento econômico

que sobrevive apenas enquanto torna supérflua e descartável uma parte da classe

trabalhadora, formada por aqueles membros que “não deram certo” e vivenciaram a

situação de rua.

O grande pioneirismo de Di Flora (1987), socióloga doutorada pela

Universidade de São Paulo, tal como Stoffels, em sua obra “Mendigos: porque

surgem, por onde circulam, como são tratados?”, foi o de extrapolar os limites

municipais no estudo sobre o “mendigo”. Isto porque Di Flora estudou o que chamou

de “mendigo-trecheiro”, discorrendo sobre a circulação ininterrupta dessas pessoas

pelo Estado de São Paulo. De maneira ainda mais intensa, Di Flora destaca a

importância de se estudar essas pessoas como encarnação das contradições básicas do

modo de produção capitalista: o fato de a produção ser coletiva e a apropriação

individual. Seria importante evidenciar, também, a excelente discussão que a autora

apresenta sobre a assistência dos albergues prestada a estas pessoas, tecendo severa

crítica a estes equipamentos de normalização do diferente.

A ênfase na mobilidade das pessoas em situação de rua, já presente na

formulação mendigo-trecheiro, alcança sua expressão mais significativa no texto de

doutoramento da antropóloga Cláudia Turra Magni (1994). Restringindo-se ao espaço

físico da cidade de Porto Alegre/RS, Magni delimita o conceito de “nômade urbano”,

trazendo inúmeras contribuições da antropologia para os estudos sobre a população de

rua. Esta tradição antropológica pode ser vista mais recentemente na tese de

doutoramento de Frangella (2004) sobre os “habitantes de rua” da cidade de São

Paulo.

Se pensarmos na situação de rua, principalmente visível durante a década de

1980, teríamos a seguinte imagem: pessoas sós ou em agrupamentos, dormindo

literalmente na rua, em viadutos ou praças, além de recorrerem à mendicância,

catação de papelão e/ou outros bicos para sobreviver.

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Uma leitura com bastante propriedade dessas pessoas nesse contexto foi

realizada pela obra que consideramos mais importante nos estudos sobre a população

de rua no Brasil. Falamos do livro “População de Rua: quem é, como vive, como é

vista”, organizado por Vieira, Bezerra e Rosa. Nesta publicação, as pessoas em

situação de rua são vistas como parte da classe trabalhadora desempregada e como

cidadãos desrespeitados em seus direitos sociais. Se o valor epistemológico dessa

obra salta aos olhos, seu valor político é ainda mais importante. Nos referimos à

visibilidade política gerada pela formulação do termo “população de rua”. Dessa

maneira, data dessa época manifestações importantes da população de rua, com

discussões na Câmara Municipal da cidade de São Paulo, além da instituição do dia

de Luta do Povo da Rua. Abriram-se também espaços para as entidades que assistiam

a estas pessoas participarem da reflexão sobre as políticas sociais a elas dirigidas.

Fruto dessas conquistas políticas foi o vertiginoso aumento das vagas em

albergues municipais na cidade de São Paulo. Não seria exagerado dizer que as

pessoas em situação de rua foram, literalmente, capturadas e aprisionadas nos

albergues. Se Di Flora já havia tangenciado algumas questões relevantes, o estudo

sobre os “albergados” é tributário da pesquisa de doutoramento em sociologia de Ana

Cristina Nasser, defendida em 1996 e publicada em 2001. Nesta obra, registra-se

importante discussão sobre o cotidiano de vida dos albergados, suas trajetórias de

“sair para o mundo” e suas relações com o trabalho, o lazer e a família.

Uma importante pesquisa recente é um exemplo típico da tradição das ciências

sociais nos estudos sobre população de rua. Falamos da dissertação de mestrado de

Joana Barros (2004), nomeada “Moradores de rua - pobreza e trabalho:

interrogações sobre a exceção e a experiência política brasileira”, talvez mais

próxima das ciências políticas. Nesta pesquisa, Barros ressalta a relação da população

de rua com as políticas sociais a elas dirigidas, relação esta intermediada pelas

diversas entidades assistenciais.

Uma outra área do conhecimento científico imprescindível para os estudos da

população em situação de rua paulistana é o Serviço Social. Sua participação prática e

teórica já se faz presente desde o início da década de 1990, pois basta lembrar que

Cleisa Rosa, por exemplo, participou da organização da publicação de 1992 com

Vieira e Bezerra.

Se grande parte dos estudos nas ciências sociais se concentraram na

Universidade de São Paulo, não seria injusto dizer que a tradição do Serviço Social

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está atrelada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. Dessa

maneira, temos o estudo de Alves (1994) sobre os vínculos dos “homens de rua”,

principalmente dos contatos que estabelecem com seus familiares. Na discussão sobre

a possibilidade de as políticas sociais proporcionarem ensejo para a cidadania das

pessoas em situação de rua, Pereira (1997) realizou estudo memorável pela agudeza

crítica na apreciação das gestões municipais na cidade de São Paulo durante parte da

década de 1990. Silva, em 2000, também ofereceu sua contribuição com um estudo

sobre a atenção à saúde da população em situação de rua.

Por fim, temos a dissertação de mestrado de Cleisa Rosa, intitulada “Vidas de

rua, destino de muitos”, defendida em 1999 e publicada em livro recente. Trata-se de

um dos melhores exemplos de estudos sobre as trajetórias das pessoas de rua,

enfatizando suas vulnerabilidades nas esferas ocupacional, familiar e habitacional.

Porém, o fato de destacarmos esta pesquisa se dirige a dois outros aspectos que

julgamos fundamentais.

Primeiramente, Rosa foi a autora que colocou na ordem do dia a reflexão

sobre a saída das ruas, em seu capítulo terceiro, “Respostas Institucionais e o

movimento social: as (im)possibilidades de saída das ruas”. É certo que seria muito

injusto defender uma exclusividade de Rosa nesse aspecto, posto que de maneira

indireta, a discussão sobre a saída das ruas perpassa a obra de Vieira, Bezerra e Rosa

(1992), assim como e principalmente as contribuições de Alves, com ênfase na

família, e Pereira, com destaque à cidadania. No entanto, não seria equivocado dizer

que foi de fato Rosa quem primeiro dedicou um capítulo especificamente para o

assunto, inaugurando uma nova fase das pesquisas sobre a situação de rua.

Um segundo elemento da obra de Rosa é sua convocação à perspectiva

multidisciplinar, com ênfase na ausência da Psicologia nos estudos sobre este

contingente. Novamente é preciso afirmar que Alves, suscitando as contribuições do

psicólogo social Antônio da Costa Ciampa e do psicólogo argentino Pichon-Rivière,

já havia tangenciado as possíveis contribuições da Psicologia. Mas foi Rosa que

primeiramente se debruçou sobre a reflexão de como a psicologia poderia ajudar e do

motivo de sua omissão.

Seria pertinente afirmar que o lugar que Rosa atribuía a psicologia talvez não

seja o mais adequado, posto que acentua uma tradição psicológica clínica que

consideramos principal responsável pela referida omissão da psicologia nos

problemas sociais. No entanto, o fato de Rosa apontar tal lacuna já constituiu grande

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avanço. Falamos de uma Psicologia que responsabilizava exclusivamente o indivíduo,

aprendendo-o como ser isolado de seu contexto social; que era utilizada como

instrumento de dominação pela classe dominante, na medida em que se prestava a

rotular, tratar e normalizar o diferente; uma disciplina pautada nos valores burgueses

como única forma normal de vida, aos quais todos deveriam se submeter para a

reprodução da ordem estabelecida. É justamente na crítica a esse modelo que surge a

Psicologia Social marxista na década de 1980, comprometida politicamente com a

transformação da realidade social.

Assim, gostaríamos de destacar as contribuições da psicologia nos estudos

sobre a situação de rua. Consideramos que dois pesquisadores da Universidade

Estadual Paulista/UNESP de Assis, José Justo e Eurípedes Nascimento, podem

perfeitamente representar a tradição psicológica. Isto porque inauguram importante

escopo de pesquisas que possuem como cerne o que nós entendemos como modos de

subjetivação da contemporaneidade. Expliquemo-nos melhor.

As tradições das Ciências Sociais e do Serviço Social enfatizam a relação da

situação de rua com o contexto sócio-histórico atual, porém centram-se em seus

aspectos econômicos e sociais, no que poderíamos destacar como sendo os processos

de “modernização capitalista”. Não obstante sejam eles imprescindíveis, os aspectos

culturais da modernidade, as formas de reflexão sobre a modernização, e,

principalmente, as formas como este contexto enseja constituições de subjetividades,

ficam em segundo plano ou sequer são mencionadas.

Nesse ínterim, pensamos que Nascimento e Justo, em suas contribuições para

a configuração da situação de rua como fenômeno relacionado à elementos do que

alguns autores chamam de “pós-modernidade”, são pioneiros e representam formas de

a psicologia, como psicologia social, contribuir para os estudos sobre a situação de

rua.

O texto de Livre Docência de Justo (2005), intitulado “Andarilhos e

trecheiros: errâncias e nomadismo na contemporaneidade”, sintetiza muitas das

contribuições dessa tradição psicológica ligada à UNESP de Assis. Ali destaca

diversas iniciações científicas, mestrado e outras publicações que compõe o coletivo

da produção ligada, principalmente, aos “andarilhos”, “trecheiros” e “mochileiros”.

Aqui chegados, devemos dizer das diversas limitações que se apresentam

nesse breve histórico sobre o conhecimento científico produzido sobre a situação de

rua. Isto porque ele omite contribuições importantes de pesquisadores de outros

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Estados, tais como os estudos de Rangel (1996) e Escorel (1999) no Rio de

Janeiro/RJ; de Taveira e Almeida (2002) na cidade de Campo Grande/MS; de Heckert

(1998) em Juiz de Fora/MG; de Abreu e Prates (1999), assim como Oliveira (2001)

em Porto Alegre/RS; e da obra organizada por Bursztyn (2000a), sobre a população

de rua de Brasília; entre tantos outros que não tivemos acesso.

No entanto, nossa limitação se estende para a não citação de outras áreas do

conhecimento, mesmo de estudos realizados sobre a população em situação de rua da

cidade de São Paulo. Nos referimos a algumas pesquisas realizadas na área da

Administração, Jornalismo, Economia, Fisioterapia, Saúde Pública, Medicina,

Terapia Ocupacional, entre outras.

À parte este parêntese, nas arestas abertas por Rosa, a pesquisa que ora

apresentamos possui duas propriedades principais. A primeira delas é a retomada da

tendência de Nascimento e Justo sobre os estudos da situação de rua como uma forma

de subjetivação tipicamente moderna, como veremos mais adiante. E a segunda delas

se refere ao destaque da situação de rua como um processo social, destaque atrelado à

crítica dos estudos da década de 1990 que se concentraram na situação de rua como

uma condição social mais ou menos permanente. Em outras palavras, devemos nos

focar no processo de saída das ruas imbricado com as contradições que cercam a

sociedade contemporânea.

A constituição da sociedade moderna pode ser entendida como um processo

de busca de fixação e imobilidade, em seu sentido físico e psicológico. Falamos da

soberania dos Estados nacionais focada nas fronteiras geográficas; da atividade

econômica que dependia da fixação do capital e do trabalho cercada pelos muros de

uma mesma fábrica; da residência fixa como local de isolamento da família nuclear

burguesa; entre outros. Essa fixação geográfica era acompanhada de uma estabilidade

nas ações, garantida por um conjunto de normas rigorosamente estabelecidas que

deveria ser seguido de maneira incondicional. Na família e no trabalho, por exemplo,

todos sabiam com certeza como agir, como se relacionar e o papel que cada um deve

ocupar para reproduzir esse modelo uniforme e homogêneo, concretizado nas

instituições do trabalho assalariado e da família nuclear. Essa fixação e estabilidade

tinham como efeito psicológico a sensação de segurança existencial. Bastava agir

conforme a ordem social pregava que não se tinha espaço para incertezas,

inseguranças ou falta de garantias quanto aos meios de vida.

A fixação, a estabilidade e a segurança tinham seu preço. A solidez das

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instituições que controlavam o cotidiano dos indivíduos modernos era pouco

suscetível à transformações. São modelos universais de conduta que, para sua própria

manutenção e universalidade, dependiam da imobilidade e da aceitação

inquestionável de seus ditames. Logo, o indivíduo moderno devia se submeter a

formas de agir rigidamente controladas, restando pouco espaço para a liberdade

individual. Não é à toa que os principais símbolos dessa modernidade sólida regida

pelo processo de domesticação são o Estado centralizador e autoritário (que, no

limite, desenvolve regimes totalitários como os de Hitler e Stálin), assim como as

grandes organizações como hospitais psiquiátricos, escolas, fábricas e presídios.

Como bem mostram as análises de Foucault (1977) e as imagens do clássico “1984”

de George Orwell, todas elas tem em comum o controle racionalmente planejado da

vida humana em seus mínimos detalhes, gerando intensa repetição, mesmice e

monotonia.

Dessa forma, a modernização foi também um processo de “domesticação”

(VIRILIO, 1997; MAFFESOLI, 2001; BAUMAN, 2001). Tal expressão nos parece

cair como uma luva para simbolizar as características do início dos tempos modenos,

pois possui a seguinte ambigüidade: refere-se ao ambiente doméstico como local de

proteção e segurança, ao mesmo tempo que denota um mecanismo de poder calcado

no controle e submissão irrestrita - como a domesticação de animais.

Ora, a construção social da domesticação se deu a partir do indivíduo

domesticado. Extremamente racional, obediente e seguro de si, o indivíduo na

modernidade sólida tinha a certeza de como agir em sua carreira profissional para

alcançar sua ascensão social; tinha certeza de como constituiria sua família e deixaria

sua imortalização na criação dos filhos como germe da futura geração.

Como todos sabemos, esse mundo seguro e solidificado não existe mais.

Passou por um processo que denominamos liquidificação, pois está agora impregnado

de fluidez, de fragmentação, de relatividade e de uma pretensa liberdade. Trata-se de

um processo de transformação que denominamos nomadismo, também entendido em

seu sentido físico e psicológico. Nele, as forças globais que dominam a sociedade

dependem de sua intensa circulação instantânea por todo o planeta; o capital, volátil e

itinerante, não depende mais da fixação do trabalho em um local determinado para

auto-valorizar-se; o poder centralizador do Estado se fragmenta em um sem números

de instituições do setor público não-estatal, como as ONGs (organizações não-

governamentais) e entidades afins; e os exemplos poderiam se multiplicar. Porém,

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cabe ressaltar que as principais instituições que ofereciam uma rede segura de

proteção ao cotidiano do indivíduo moderno se esfacelaram. A família, o trabalho e o

Estado não são mais confiáveis, pois seus modelos rígidos foram liqüefeitos em uma

miríade de formas precárias de se constituir, sem qualquer segurança de que

permanecerão assim por muito tempo.

Todas as tarefas de ordem social, antes coletivas e centralizadas, foram agora

desregulamentadas e privatizadas. Ou seja, cabe à pessoa do líquido mundo moderno

criar suas próprias normas, condutas, visões de mundo, todas elas descartáveis e

abandonadas com constância e desapego.

Logo, a figura emblemática desse novo contexto é a pessoa nômade, livre

compulsoriamente para trilhar seus caminhos sem um ponto de partida ou de chegada

estabelecido. A errância solitária e sem rumo, sempre imprevisível e criativa, substitui

a domesticação segura. As equações se invertem: antes havia a tendência da liberdade

ser cerceada em troca de uma segurança imposta, ao passo que atualmente a liberdade

é imposta dando pouca margem a qualquer segurança.

Iremos detalhar melhor essa análise mais adiante. Porém, o pressuposto no

qual nos baseamos é o seguinte: a situação de rua é desencadeada no âmbito das

trajetórias concretas individuais em função dessa transformação mais geral da

sociedade moderna em sua passagem do imperativo da domesticação à necessidade de

nomadismo.

Assim, a vivência concreta da situação de rua materializa as principais

contradições do mundo contemporâneo. Na espacialidade, a necessidade de vagar

errante sem qualquer fixação duradoura, em “não-lugares” crivados pela

impermanência e solidão. No horizonte temporal, a vivência de um presente perpétuo,

direcionado para a satisfação imediata das necessidades básicas sem qualquer

segurança para lançar-se no processo de construção de um futuro melhor. No interior

da ética, travam-se relações humanas absolutamente descartáveis, superficiais e

indiferentes, permeadas pelo individualismo e desconfiança, com poucas

possibilidades do reconhecimento recíproco da humanidade que existe em cada um.

Enfim, vive-se em uma liberdade imposta, com poucas regulações sociais do

cotidiano pelos horários, rotinas e papéis familiares ou no trabalho, configurando-se,

assim, como uma antiliberdade: posto que impõe escolhas, mas não oferece arestas

para a pessoa autodeterminar a construção de sua própria vida.

Aí estão em carne viva as principais contradições do mundo contemporâneo:

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se antes se gozava de intensa segurança e pouca liberdade, hoje se goza de uma

ilusória liberdade com reduzida segurança. Se antes o mundo era tão solidificado que

permitia parcas mudanças, hoje se derreteram todos seus sólidos a ponto de não haver

mais lugares seguros para se fincar raízes. Haveria a possibilidade de uma síntese, por

assim dizer, entre essa segurança em um mundo solidificado e a liberdade de um

mundo liquidificado?

É no interior dessa indagação que se move nosso problema de pesquisa: quais

são as características do processo de saída das ruas, na opinião daquelas pessoas que

vivenciaram a situação de rua?

Se, como articulamos, o processo de rualização é o ápice da concretização do

movimento de nomadismo, assim como a vivência em situação de rua escancara as

contradições contemporâneas, seriam as pessoas que saíram das ruas uma vanguarda

na sinalização de formas de enfrentamento das angústias do mundo atual?

No limite, a saída das ruas poderia oferecer caminhos de sínteses para essas

contradições entre domesticação/segurança e nomadismo/liberdade?

É bem sabido que a imposição e compulsoriedade são os laços que unem

aquela domesticação forçada e esse atual nomadismo involuntário. Seria a saída das

ruas o início de um processo de autodeterminação e emancipação em relação a essas

coerções?

Não acreditamos que a saída das ruas possa significar a inauguração de uma

vida harmoniosa, perfeita e livre de antagonismos. Quais seriam as contradições que

movimentam as possíveis novas formas de vida após a saída das ruas?

Ora, se o objetivo primordial dessa dissertação é compreender o processo de

saída das ruas na opinião daquelas pessoas que o vivenciaram, todas essas outras

indagações nos conduzem por vários outros objetivos adjacentes: tangenciar as faces

do primeiro processo que abrange a situação de rua, a saber o movimento de

rualização, em sua interface com a liquidificação da sociedade moderna; enveredar

pelo segundo processo de vivência concreta da situação de rua, em sua aproximação

com as contradições vividas por todos nós nesse incerto mundo contemporâneo;

compreender os próprios limites da proposta de saída das ruas, em termos do porque e

para quem é necessária; refletir sobre como se dá o processo de saída das ruas,

principalmente as possíveis contribuições do trabalho, da família, das políticas

públicas e dos movimentos sociais; e, por fim, avaliar como é construída a vida das

pessoas após sua saída das ruas, de maneira a focar a possibilidade de constituir o

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início de um processo de emancipação a partir do enfrentamento das contradições da

vida moderno-líquida.

Para refletir sobre esses objetivos, nosso método de estudo foi a realização de

entrevistas semi-dirigidas com quatro pessoas que saíram das ruas. No primeiro

capítulo, veremos o quanto o estudo da vida nômade acaba por deixar o pesquisador

em situação de rua. Ou seja, algumas das facetas da população estudada foram

refletidas na conduta do pesquisador, desalojado dos seguros caminhos racionalmente

planejados que caracterizam a ciência sólida e domesticada.

O segundo capítulo é palco da tentativa de transformar o estranho da rua em

uma figura mais familiar, a partir do conceito de pessoas em situação de rua, bem

como a fixação da heterogeneidade dessa população em algumas categorias.

Essa conceituação bastante estática, uniformizante e fixada é relativizada a

partir do terceiro capítulo, no qual se busca uma compreensão mais fluida da situação

de rua como processo. Na contramão da conceituação inicial, visa-se transformar a

própria vida cotidiana, antes familiar, em algo estranho. Nesse sentido, o capítulo

discute de maneira mais detalhada a liquidificação da sociedade moderna e de suas

principais instituições, momento no qual o processo de rualização é apreendido como

manifestação concreta do nomadismo que impera nos dias atuais. Essa análise do

processo se segue no capítulo quarto, no qual algumas propriedades da vivência da

situação de rua são analisadas como formas de escancarar os antagonismos dessa

modernidade líquida. Por fim, o quinto capítulo completa a análise da situação de rua

como processo ao se debruçar sobre as idiossincrasias da saída das ruas, à luz das

vivências concretas dos participantes da pesquisa.

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Capítulo 1 - Método: da compreensão científica do nomadismo à compreensão nômade da ciência

Esta pesquisa é em grande parte um esforço no sentido de entender as

transformações do mundo contemporâneo. Um dos vetores principais dessas

transformações é a passagem da domesticação ao nomadismo. Paradoxalmente,

tínhamos a idéia de um método bastante domesticado para se tentar compreender a

vida nômade, fato que nos levou a aprender com a população em situação de rua uma

forma pouco sistemática de se fazer pesquisa. Nosso método, pouco metódico, reflete

esse nomadismo e imprevisibilidade da população estudada.

Em virtude disso, poderíamos afirmar que o percurso da pesquisa que

pretendia compreender cientificamente a situação de rua se inverteu: foi a situação de

rua que nos fez criticar a domesticação típica da ciência moderna. A partir desse

achado, discutiremos alguns pressupostos epistemológicos que nortearam nossa

pesquisa, em contraposição com os alicerces da ciência sólido-moderna, seguidos do

método de pesquisa propriamente dito, qual seja a descrição dos (des)caminhos que

percorremos para compreender a saída das ruas.

O projeto da modernidade teve na razão humana seu alicerce e esta, por sua

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vez, teve na ciência sua realização. A ciência moderna, em seu papel de manipulação

da natureza para construção de uma sociedade melhor, tem poder similar à Igreja no

período pré-moderno. Seus sacerdotes, os cientistas, vão gozar de autoridade bastante

similar: o poder de julgar, classificar e corrigir as pessoas e as situações a partir de

uma pretensa propriedade na formulação de verdades.

Esta forma de se fazer ciência estava configurada a partir da busca de uma

verdade absoluta, que se acreditava existir, bastando apenas algumas “estripulias”

epistemológicas para chegar à fonte da verdade imutável. Esta era concebida a partir

de leis gerais da Natureza aplicadas a todos os fenômenos em todos os contextos

históricos. Esse processo exigia um ataque à natureza em diversas frentes de

compreensão. Dada a multiplicidade dos fenômenos que devem ser conhecidos,

manipulados e controlados, a ciência, ao contrário da filosofia, acirra a fragmentação

do saber em inúmeras áreas especializadas com objetos minuciosamente

determinados. O edifício científico é erigido a partir de vários andares estanques, que

separa Físicos de Químicos de Economistas, que só se encontram, encabulados, nas

entradas e saídas dos elevadores.

Descartes (1637/1999), na obra Discurso do Método, em sua Segunda parte,

discorre sobre a influência da matemática e a necessidade de decompor o todo em

“tantas partes quanto possível”, influenciando na fragmentação do saber. Na mesma

obra, lança alguns pressupostos fundamentais para a ciência que começara a surgir.

Dentre eles, destaca o quanto os sentidos, as emoções e as disposições subjetivas

enganam o sujeito na busca do saber. A pessoa deveria ser apenas racional, como o

sujeito transcendental kantiano ou a concepção de homem atrelada à economia

política clássica. A subjetividade, com suas emoções e idiossincrasias, deveria dar

lugar ao empiricismo objetivista. A experiência é um exemplo típico dessa expulsão

do humano. Etimologicamente, o prefixo ex está relacionado a deixar fora, como no

verbo excluir. A palavra experiência significa deixar algo fora do perímetro na

elaboração científica: o ser humano.

Assim, a universalização do saber condensado em leis gerais da natureza

expressas em linguagem matemática auxiliava na separação entre a ciência e as

emoções de sujeitos concretos. É de Nietzsche (1873/1987) a ironia segundo a qual,

contrariando a pretensiosa lógica humana, nada na natureza constitui uma só linha

reta ou lembra a perfeição das fórmulas matemáticas e figuras geométricas.

Ainda incomodado com o odor do corpo de Giordano Bruno, queimado na

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praça de Roma em 1600, por heresia, assim como pelas inúmeras condenações a

Galileu, Descartes também explicita que a ciência deve estar neutra politicamente:

deve “obedecer à leis” e “preservar a religião”. Lançando mão do mito da

neutralidade científica, seus especialistas podem se iludir sobre os efeitos de suas

descobertas na transformação do mundo.

Pai da aviação, o brasileiro Santos Dumont, é figura emblemática das

vicissitudes dessa omissão política exigida ao cientista. Na Primeira Guerra Mundial,

entra em depressão por ver sua invenção com fins pacíficos ser utilizada como

máquina de morte. Faz apelos às potências beligerantes tencionando proibir o

armamento aéreo, sem êxito. Em 23 de julho de 1931, residindo no Guarujá/SP,

assiste uma esquadrilha aérea federal que bombardearia um cruzador paulista

ancorado em Santos. Vê sua invenção utilizada para que seus compatriotas matem uns

aos outros. Constrangido, suicida-se nesse mesmo dia.

É bem sabido que o físico Albert Einstein promoveu forte campanha durante a

Segunda Guerra Mundial a respeito das catástrofes que cercariam a utilização das

descobertas nucleares como instrumentos de morte. Os estrondos de agosto de 1945

nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagazaqui foram mais fortes que os apelos do

cientista.

Bauman (1999) destaca que a busca da objetividade fez da ciência algo

desprovido de qualquer juízo de valor e transformou as pessoas em “objetos” ou

“cifras”. Com isso, a própria humanidade foge de vista. A esses elementos, soma-se o

fato de a ciência estar incluída em uma estrutura burocrática, fazendo com que o

cientista não veja o que se fez do seu conhecimento, pois suas conseqüências práticas

não estão sob seu controle. Assim, Bauman pondera a participação da ciência em

“práticas bárbaras”, pois forneceu “os meios para o genocídio” (p. 59).

Paga-se o preço por se propor uma separação dicotômica entre teoria e prática.

A execução concreta das teorias científicas fogem a qualquer controle e servem a

objetivos políticos específicos, deflagrando a falácia da neutralidade científica.

As relações entre saber e poder não param por aí. Inserido na divisão social do

trabalho, o cientista se coloca como o especialista do saber: o expert, que legitima

suas verdades estabelecidas na sociedade. Para tanto, valoriza seu conhecimento

científico em detrimento do saber popular, tido como um emaranhado de crendices e

obscuridades. Kant (1783/1985) é emblemático nesse sentido, quando postula a

necessidade do “esclarecimento” (Aufklärung) para a liberdade humana, tirando o

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sujeito da “menoridade”, de seu “estado selvagem”.

A serviço do Estado e das empresas, os experts impõem seu poder sobre o

conhecimento popular, tido como “rudimentar” e “inadequado”:

Então, as comunidades de cidadãos têm visto este saber alienado, subordinado ao saber dos experts. Além do saber, elas têm perdido o controle sobre suas próprias condições de vida, ficam alheias ao poder de gerenciar sua própria existência. Elas dependem, então, quase incondicionalmente, dos organismos do Estado, dos empresariais, do saber e serviços dos experts (BAREMBLITT, 1994, p. 15).

No âmbito da psicologia, a obra de Merani (1972), intitulada “Psicologia e

Alienação”, é um exemplo da utilização das teorias e práticas psicológicas como

forma de dominação e normatização dos indivíduos para se enquadrarem à ordem

vigente, principalmente relacionada à domesticação do trabalhador. Abib, um dos

precursores na atuação da Psicologia em comunidades, sintetiza essa relação da

seguinte maneira: “A Psicologia enquanto Profissão tem sido acusada de elitista e de

instrumento de controle social das classes subalternas utilizado pelas Classes

Dominantes para perpetuar o sistema vigente de dominação e exploração”

(ANDERY, 1984, p. 33).

Foucault talvez seja um autor de referência para discutir as relações entre

saber e poder. As disciplinas, enquanto conjunto de métodos e “tecnologias do poder

sobre o corpo”, dependem de um “saber, técnicas, discursos ‘científicos’ [que] se

formam e se entrelaçam com a prática do poder de punir” (1977, p. 26). Há de se

construir um saber para exercer o poder de docilizar, submeter, automatizar, tornar

obediente.

Dessa maneira, os cientistas, travestidos de proprietários de saber sobre os

outros, podem exercer seu sacerdócio nas Universidades. Podem encostar seus

traseiros nos confortáveis bancos e preparar eloqüentes discursos para seus alunos,

apesar da realidade social da maioria da população ser pouco confortável.

Nesse contexto, Thiollent afirma que a “pesquisa acadêmica” é totalmente

conservadora, na medida em que “...é pouco utilizada concretamente, [e] só serve para

a obtenção de títulos entre uma pequena minoria privilegiada” (1984, p. 87).

A favor de Thiollent, estão alguns catadores entrevistados por Juncá (2004),

que tecem fervorosas críticas à pesquisadores científicos: “... muitos trabalhos já

foram feitos aqui e a gente não vê retorno nenhum. Eles não mandam nem um

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exemplar da pesquisa para o pessoal ler e ver como ficou”; “A pessoa nem cita o

nome da gente, só aparece as palavras dela e o nome dela” (p. 187 - grifos da

autora).

Não nos cabe um julgamento moral dos pressupostos da ciência, mas

demonstrar o quanto eles estavam milimetricamente encaixados no projeto moderno.

Bauman (1999) retrata de maneira bastante detalhada a importância da ciência

moderna no projeto de ordenação da sociedade, uma característica fundamental desse

período histórico. A necessidade de construir uma sociedade sadia, racionalmente

planejada, harmônica e perfeita, perpassava pela utilização da ciência em prol dessa

sociedade que promoveria a felicidade humana. A ordem, no entanto, era imposta a

partir da eliminação do diferente, considerado um empecilho; da liberdade individual,

entendida como obstáculo à harmonia coletiva; das emoções, entendidas como

natureza impura que devia ser domada pela razão. Assim, o autor detalha a importante

participação da ciência moderna na elaboração de uma “engenharia social” que

permitiu e fundamentou episódios como o genocídio do povo judeu, campos de

concentração ou de trabalho forçado. Enfim, a construção de regimes totalitários,

como os de Hitler e Stálin, não era uma exceção ou episódio isolado, mas estava

absolutamente dentro da lógica do espírito moderno, e incluía a aplicação do

conhecimento científico para fins que hoje julgamos atrozes.

Como muitas outras instituições da modernidade, a ciência também se

liquidificou, se transformou. Não há mais um modelo - canônico, rigoroso e uniforme

- a constituir a única forma de se fazer ciência. Resta-nos ponderar quais os

pressupostos epistemológicos que utilizamos na presente pesquisa.

Não seria equivocado utilizar a metáfora da situação de rua para lidar com as

transformações contemporâneas da ciência. Ela também se vê desalojada,

voluntariamente ou não, da domesticação em um modelo racionalista, objetivista e

fragmentado.

Esse movimento de rualização da ciência, ao contrário de ser unicamente

negativo, abre arestas para novas construções.

Pensamos que a busca de uma “verdade” inquestionável somente se justifica a

partir da desconsideração de que o conhecimento científico é produzido por sujeitos

historicamente contextualizados. Assim, toda pesquisa científica é filha de seu tempo,

carrega em seu bojo a relatividade histórica de suas preocupações, assim como a

construção de um saber por sujeitos situados em uma pluralidade de outros saberes

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possíveis. O conhecimento científico não é verdadeiro e universal, mas expressa sua

relatividade histórica e uma forma dentre outras de se conceber a realidade de

determinado fenômeno social. Cabe ao pesquisador apenas explicitar seu método e

fundamentos epistemológicos, os trechos que percorreu em seu estudo, e não apenas

seguir um método rigorosamente reproduzido e reivindicar um estatuto de verdade ao

conhecimento elaborado.

Tal conhecimento, à exemplo da realidade estudada, é bastante complexo, não

podendo ser reduzido à fragmentação das disciplinas científicas. Embora a

perspectiva da psicologia social seja a base de nossos estudos, a realidade da situação

de rua nos exige percorrer outras áreas das ciências sociais (Sociologia, Antropologia

e Ciências Políticas), assim como a Economia e Serviço Social.

Como observamos anteriormente, a pesquisa tradicional ou convencional

desconsiderava as subjetividades envolvidas, pois as pessoas pesquisadas eram

consideradas meros “objetos de estudo” e o pesquisador, um experimentador, cuja

subjetividade deveria estar em suspenso na realização da pesquisa (BRANDÃO,

1984, p. 07). Com este autor, pensamos que a consideração das subjetividades em

suas diferenças é o cerne da pesquisa científica. Trata-se, assim, de uma relação de

alteridade que depende de um envolvimento e comprometimento do pesquisador com

as pessoas pesquisadas, sem que esta relação seja definida a priori, mas sim

construída no próprio processo.

Esta consideração das subjetividades em sua alteridade destrona o cientista de

sua postura de dono do saber, do fosso entre o conhecimento científico tido como

correto e o saber popular como inferior e sem fundamentação. Nas palavras de Freire

(1982), há uma reciprocidade e construção conjunta do saber entre o cientista e os

demais colaboradores, sendo ambos reconhecidos em suas diferenças, mas tratados

igualmente como construtores de um saber sobre a realidade social que se apresenta

como alvo da compreensão. Não uma relação vertical de dominação e poder, mas uma

horizontalidade em busca do saber.

A ciência é política. Pode ser utilizada como fator que favorece a dominação,

assim como elemento de libertação para as pessoas envolvidas. Logo, a neutralidade

científica e a possível utilização da pesquisa somente como trampolim acadêmico são

substituídas pelo “compromisso político” do pesquisador com as pessoas envolvidas e

a realidade a ser transformada (BONILLA; CASTILLO; BORDA; LIBREROS,

1984). Trata-se de colocar o conhecimento científico a serviço da população na

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organização de seus membros na luta pelos seus direitos.

Com isso, caí por terra a dicotomia entre teoria e prática. Neste sentido,

Ferreira, Calvoso e Gonzalez (2002) destacam como elemento da ciência

contemporânea a ênfase nos benefícios que produz para o ser humano. Com Demo

(1995), acreditamos que a pesquisa pode ter como objetivo último constituir uma

práxis transformadora, ou seja, aliar a reflexão e a ação como mote para que os

resultados da pesquisa possam contribuir para a organização da população, discussão

sobre os problemas que a afetam, delineamento das soluções e luta pela transformação

de sua realidade.

Apresentados os pressupostos epistemológicos que norteiam nosso estudo,

basta agora descrever os procedimentos metodológicos utilizados.

1.1 - Procedimentos metodológicos

O método de pesquisa seguiu caminhos tortuosos. Inicialmente pensávamos

em realizar seis grupos de debates em albergues municipais da cidade de São Paulo.

Os albergues seriam escolhidos de acordo com a distribuição populacional das

pessoas em situação de rua nas regiões da cidade, de maneira a formar uma amostra

estatística representativa do contingente albergado. Tal procedimento se justificava

pelo vertiginoso crescimento do número de pessoas em situação de rua que

pernoitavam temporariamente nos albergues, que contrastava com a quantidade

exígua de pesquisas científicas que se dirigem especificamente a este contingente - à

exemplo do pioneiro estudo de Nasser (1996).

Os albergues também traziam instalações mais adequadas para a realização da

pesquisa: grande concentração de pessoas em situação de rua e oferecimento de

espaço físico reservado e silencioso - condições que não teríamos se propuséssemos

os debates na rua. Assim, faríamos apenas um encontro com seis grupos de

aproximadamente dez pessoas usuárias de albergues municipais.

Desistimos desse procedimento por inúmeros motivos. Primeiramente nos

alentou a encomenda da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social

(SMADS) à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) de uma pesquisa

sobre a população albergada da cidade. Com esta pesquisa de grandes dimensões seria

suprida a falta de estudos acima mencionada. Outrossim, a preocupação com a

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amostragem estatística nos aproximava de uma postura positivista, duramente

criticada em nossa banca de qualificação por contrastar com os pressupostos

epistemológicos acima discutidos. Questões como a possibilidade de generalização

dos dados coletados na pesquisa para toda população albergada da cidade deveriam

ser mais bem discutidas. Se, na época, achávamos bastante pertinente tal

possibilidade, pois ofereceria aos movimentos sociais argumentos para a

transformação das políticas sociais públicas na cidade, a pesquisa da FIPE,

encomendada pela secretaria com esse fim, nos tranqüilizava nesse sentido.

Porque realizar vários grupos de debate, já que caí por terra a pretensão de

generalização dos dados? Um grupo apenas, com encontros mais regulares, não

bastaria? Porque o sistema albergal, duramente criticado por parte dos pesquisadores

e membros dos movimentos sociais, seria o palco do debate? Colocadas essas

questões, modificamos a proposta inicial, pois pensávamos em formar apenas um

grupo de debates com encontros periódicos de maneira a se aproximar de uma

pesquisa participante. Tínhamos em vista a construção de um saber coletivo que

pudesse contribuir com as pessoas em situação de rua que pretendessem a saída das

ruas. Os albergues também foram substituídos pelo Fórum de Debates Sobre Pessoas

em Situação de Rua, instituição da qual somos membros fundadores e que possui

como objetivo primordial justamente promover debates públicos sobre questões

relacionadas à situação de rua.

Entretanto, não conseguimos formar um grupo de debates, fato que nos fez

repensar esse segundo método de pesquisa. Entramos em contato com seis membros

do Fórum de Debates que participavam regularmente das discussões e representavam

as pessoas em situação de rua nos encontros, que contavam também com a

participação de profissionais das entidades que prestam serviço à população e de

pesquisadores acadêmicos. Todos aceitaram participar da pesquisa, deixando seus e-

mails. A operacionalização do grupo, no entanto, foi bastante difícil. Parte dos

colaboradores acessava muito raramente seu e-mail, fazendo com que lessem a

mensagem do dia do encontro após o mesmo já ter ocorrido. Muitos dos que

souberam antecipadamente do encontro se esqueciam da data ou do horário ou

marcavam outro compromisso repentinamente. Dessa maneira, após duas tentativas

frustradas, percebemos que a realidade concreta da vida dos colaboradores da

pesquisa exigia uma reformulação de nosso procedimento. À dificuldade de contatar

os participantes se somavam a problemática temporal de marcar compromissos com

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horário rigidamente estabelecido e a volatilidade de humor em titubear quanto à

vontade de participar realmente da pesquisa.

Enfim, foram realizadas entrevistas individuais semi-dirigidas com quatro

pessoas que vivenciaram a situação de rua e conquistaram a saída das ruas. Essa

modalidade de entrevista foi escolhida por oferecer um roteiro inicial que norteasse o

diálogo, permitindo a inclusão de questões e elucidações no decorrer da entrevista. O

roteiro foi elaborado a partir de conversas informais com pessoas em situação de rua,

de debates realizados em movimentos sociais e da leitura de pesquisas (vide Anexo

A). Como citado acima, os colaboradores foram escolhidos devido também à

participação ativa e prolongada nas discussões realizadas no Fórum de Debates.

Todas as entrevistas foram realizadas na penúltima semana do mês de fevereiro do

ano corrente e registradas em áudio. Cabe ressaltar que a pesquisa seguiu

incondicionalmente as diretrizes éticas para pesquisa que envolvem seres humanos,

conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e a Resolução

016/2000 do Conselho Federal de Psicologia - incluindo o Termo de Consentimento

Livre e Esclarecido (vide Anexo B).

O Fórum de Debates foi concebido no diálogo entre alunos e professores da

Faculdade de Psicologia da Universidade São Marcos e o Centro de Estudos da

População em Situação de Rua da antiga SAS (Secretaria da Assistência Social), no

dia 08 de setembro de 2003. Tal diálogo se estabeleceu em decorrência da realização

da “Semana de Psicologia: Inclusão e Exclusão nos Territórios da Psicologia”, que

contou com a participação de profissionais dos serviços, pesquisadores e integrantes

da população em situação de rua.

A partir da necessidade de estabelecer um espaço mais regular de debates em

torno das questões da situação de rua, o então denominado Fórum de Estudantes sobre

a População em Situação de Rua contava com a colaboração de estudantes de diversas

áreas (Arquitetura, Ciências Sociais, Fisioterapia, Jornalismo, Medicina, Psicologia,

Serviço Social, Sociologia, Terapia Ocupacional, dentre outras) representando várias

universidades (Universidade São Marcos, Universidade de São Paulo, Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, Universidade de Santo Amaro, FMU, dentre

outras). As reuniões quinzenais enfatizavam o compartilhamento de conhecimentos

oriundos de pesquisas científicas e eram coordenadas pelo Centro de Estudos em

parceria com alunos e professores das unidades de ensino citadas.

Em virtude de modificações ocorridas no Centro de Estudos, assim como

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divergências do Fórum em relação à gestão municipal da época, a partir de setembro

de 2004 é eleita a primeira gestão da Comissão Organizadora do Fórum, com sede na

Universidade São Marcos, que, dentre outras modificações, transferiu as reuniões

para a ONG Mudança de Cena, na Praça da Sé, e ampliou a participação da população

em situação de rua, de alunos e dos profissionais que atuam nos serviços e

equipamentos. Com esta ampliação, o escopo do debate extrapolou o universo da

pesquisa científica, havendo a necessidade de mudar a denominação para Fórum de

Debates Sobre a População em Situação de Rua.

Atualmente, o Fórum se reúne quinzenalmente na Pastoral da Moradia e se

constitui como importante espaço de debates sobre a população em situação de rua,

enfatizando as discussões sobre a participação efetiva da população na elaboração,

monitoramento e avaliação das políticas públicas, bem como na reflexão sobre as

alternativas de saída das ruas.

Além dessa breve apresentação da instituição à qual recorremos para o convite

dos participantes da pesquisa, pensamos que seria também importante uma descrição

sumária da vida dessas pessoas no que se refere às suas trajetórias em situação de rua.

Como veremos, a heterogeneidade da vivência de rua dessas pessoas foi fundamental

para a diversidade das opiniões por elas fornecidas nas entrevistas.

Conhecemos José no ano de 2003, no então Fórum de Estudantes. Na época,

ele havia fundado uma associação e necessitava de auxílio para a organização de uma

pesquisa com residentes de uma moradia provisória, tendo como objetivo levantar as

principais necessidades dos moradores para contribuir com as reivindicações e

representatividade da associação. Assim, tivemos contato bastante intenso nesse

episódio e acompanhamos a luta de José na formação de uma cooperativa. Nos

víamos em grande parte dos encontros do Fórum de Debates. Em uma dessas

oportunidades, o convite para a participação na pesquisa foi feito e aceito

imediatamente. A entrevista foi realizada em seu local de trabalho.

José residia com seus três filhos em uma cidade do litoral do Estado de São

Paulo. Trabalhava como vendedor e sustentava os filhos e a esposa, embora tivesse

dela se separado. No ano de 2003, José afirma que foi acometido por um “problema

de saúde”, um sofrimento psíquico que denomina como “bipolar”. Tal situação fez

com que parasse de trabalhar e, conseqüentemente, fosse despejado de sua casa. Com

seus filhos indo morar com a mãe, José migra para a cidade de São Paulo. Aí

chegado, passou sete meses em albergues municipais, sem trabalhar e fazendo

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tratamento de saúde com a ingestão de remédios e consultas com especialistas da rede

municipal. Sentia-se culpado pela sua doença e sem possibilidade de trabalhar.

Começando a realizar alguns bicos, José passou a residir em uma moradia provisória,

local no qual realiza intensa militância com a fundação da AMMP (Associação dos

Moradores de Moradias Provisórias). Após a montagem da cooperativa e um ano e

seis meses de situação de rua, José saiu das ruas e passou a residir no mesmo local,

onde fica a sede do empreendimento.

Anderson foi convidado para participar da pesquisa quando nos encontramos

em uma manifestação no centro da cidade de São Paulo. Mantínhamos contato desde

2004 a partir do Fórum de Debates. À seu pedido, a entrevista foi realizada em sua

residência.

Anderson viveu metade dos seus trinta anos de vida nas ruas. Nascido “órfão”

de pai e mãe, foi criado em um orfanato no interior do Estado de São Paulo. Sofrendo

com os horários e sanções do orfanato, além de repassar integralmente o dinheiro que

conseguia em seus trabalhos, Anderson relata que, com quinze anos de idade, veio

para a cidade de São Paulo e já oscilava entre a “república” e a rua, dormindo de

forma intercalada em ambos os locais. A partir dos dezoito anos, Anderson afirma que

ficou na rua definitivamente, época em que começou a “correr o trecho”. Sempre

andando pelas estradas, conheceu diversas cidades da Região Sudeste e Nordeste do

Brasil. Há alguns anos, Anderson é considerado uma das referências importantes para

se discutir a situação de rua na cidade de São Paulo. Participa ativamente de diversos

movimentos sociais e é um dos fundadores do Movimento Nacional em Luta pelos

Direitos da População de Rua. Muitas vezes é o representante da população de rua em

encontros em Brasília e em congressos científicos. Há um ano, Anderson saiu das ruas

favorecido pela união com sua companheira e a espera de uma filha. Inicialmente

trabalhou como auxiliar de cozinha em um restaurante, emprego formal e registrado

que abandonou para se dedicar a outros trabalhos informais e irregulares a partir dos

quais sustenta sua família.

Antônio é companheiro de José na fundação da AMMP e na constituição da

cooperativa. Nos conhecemos quando ele fez uma palestra no Fórum de Debates e seu

convite para contribuir com a pesquisa foi sugerido por José. O entrevistamos na

cooperativa em que trabalha.

Antônio tem vinte e quatro anos e, em 2004, vivenciou a situação de rua em

função, na sua ótica, de conflitos familiares com o pai. Pernoitando na rua, trabalhava

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como catador de material reciclável, chegando a fazer parte de um conhecida

cooperativa da cidade. Acometido por um problema de saúde, Antônio fica alguns

meses em um albergue municipal até conseguir rendimentos para se mudar para uma

moradia provisória. Nesta, consegue um emprego registrado como gari e consegue

sair da rua a partir do aluguel de uma casa. Após um ano e oito meses na rua, Antônio

trabalha no período da madrugada na limpeza urbana da cidade e, durante o período

da tarde, faz parte dos membros que atuam na cooperativa.

Juan participa regularmente do Fórum de Debates desde o ano passado. Dos

participantes da pesquisa, Juan é o que mantemos contato mais periodicamente. Essa

relação amistosa se estabeleceu por afinidades pessoais e políticas, sendo reforçada

quando o auxiliamos a procurar a Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem

dos Advogados do Brasil), em virtude de problemas com sua permanência no país,

assim como na parceria para elaboração de um projeto relacionado a uma oficina de

artesanato para moradores de albergue. A entrevista foi realizada na praça localizada

no Poupa Tempo do centro da cidade, por ser o local usual de outros de nossos

encontros.

Juan é natural do Peru e imigrou para o Brasil no ano de 2004. Atuava como

comerciante nas ruas de São Paulo até que, em virtude da apreensão de suas

mercadorias pelos fiscais da Prefeitura, não teve mais dinheiro para pagar o aluguel

de um quarto de pensão e foi morar temporariamente em um albergue municipal.

Ficando ali por seis meses, retomou a comercialização de artesanato peruano nas ruas,

conseguindo alugar um quarto no fundo de um ferro-velho. Atualmente, Juan vive em

um quarto de pensão e trabalha regularmente como operador de telemarketing.

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Capítulo 2 - Conceito de pessoas em situação de rua

“Não somos da rua, mas estamos em situação de rua”

Frase escrita em uma bandeira empunhada por uma pessoa em situação de rua no Dia de Luta do Povo da Rua, em 2005

Mendigo, trecheiro, andarilho, errante, morador de rua, homem de rua,

habitante da rua, nômade urbano, albergado, sem-teto, homeless, membro da

população de rua ou do povo da rua: são algumas denominações utilizadas para se

referir às pessoas em situação de rua no Brasil.

Em trabalho anterior (MATTOS, 2003) havíamos apontado alguns fatores que

contribuíam para essa diversidade. O primeiro deles diz respeito à ampla gama de

áreas do conhecimento científico que procuram estudar a situação de rua, cada qual

enxergando o fenômeno a partir de sua especificidade.

No entanto, a variedade de denominações também está relacionada à própria

variedade de formas de vivenciar a situação de rua. Em outras palavras, a população

em situação de rua é bastante heterogênea. Tal heterogeneidade está ligada a alguns

aspectos, como as peculiaridades da situação de rua nas diversas regiões brasileiras e

a infinidade de histórias de vida desses indivíduos em uma mesma região.

Assim, por exemplo, enquanto nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro as

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pessoas em situação de rua são, em sua maioria, pessoas sós (ESCOREL, 1999); na

região de Brasília, devido à densa migração nordestina, a população em situação de

rua é composta em sua maioria por jovens famílias (BURSZTYN, 2000b).

Considerando-se a diversidade de histórias de vida pessoais, a variedade de

situações de rua seria tão numerosa como a quantidade de pessoas que vivem nesta

condição social.

Diante de tal complexidade, poder-se-ia falar em um conceito geral?

Pensamos que sim. O movimento de conceituação pode ser entendido como a

necessidade dar sentido a uma realidade, enunciá-la, nomeá-la. É um processo de

tornar familiar o estranho.

Não obstante, a conceituação possui suas limitações e contradições. Com

Nietzsche, acreditamos que “todo conceito nasce por igualação do não-igual”

(1873/1987, p. 34). Em seu exemplo, quando falamos em árvore, como conceito

abstrato, geral e universalizante, não devemos esquecer que cada árvore concreta,

singular, é diferente das demais. É justamente na tensão da contradição entre o

universal e o particular, o abstrato e o concreto, que desenvolveremos nossa

concepção sobre a situação de rua. Se se pode conceituar a situação de rua de maneira

abstrata e geral, naquilo que nos faz identificar a situação de rua como distinta, por

exemplo, da situação domiciliada, não devemos esquecer das diferenças entre as

diversas maneiras concretas e particulares, necessariamente distintas umas das outras,

que permeiam a subjetividade da pessoa em situação de rua. São, enfim, vivências

iguais e diferentes, ao mesmo tempo, e é nessa contradição que tentaremos

desenvolver nossos conceitos: sem a pretensão de normalizar ou ordenar uma

realidade complexa e desordenada, mas refletir, literalmente, a contradição concreta

em contradições teóricas.

Em última análise, o conceito de situação de rua deve ser tão contraditório

como a própria situação de rua.

Como já pôde ser percebido, o conceito que utilizamos é o de pessoas em

situação de rua.

Pois bem, com o termo pessoas almejamos enfatizar sobretudo o

pertencimento à sociedade humana, embora sejam seres muitas vezes negados em sua

humanidade. Trata-se da acepção do termo ligada à pessoa como “criatura humana”,

igual a todos nós. Apresentar o termo pessoa antes de qualquer outra palavra,

explicita a necessidade de vê-las, antes de tudo, como seres humanos que merecem

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respeito, tanto quanto se deve respeitar a vida de cada um de nós.

Além dessa alusão ao universal do homem como ser genérico, o termo pessoa

é utilizado no plural, de maneira a destacar não só aquilo que nos iguala, mas também

o que nos diferencia: são pessoas distintas umas das outras, porque cada qual é

singular. Paradoxal: usar pessoas no plural nos faz destacar a singularidade. Dessa

forma, pode-se explicar a heterogeneidade da situação de rua ligada à diversidade de

histórias de vida. Vê-se, logo, a distinção entre o termo pessoas e o termo população,

este último privilegiando o grupo social naquilo que tem em comum, e não em suas

distinções.

Há também um profícuo debate sobre o conceito de pessoa, normalmente

ligado à sua distinção em relação aos termos indivíduo e sujeito. Este debate perpassa

pelas importantes contribuições do antropólogo Roberto Da Matta (1984), além da

tradição humanista em Psicologia, à exemplo de Carl Rogers e Rachel Rosenberg

(1977). Nossa utilização do termo pessoa se alinha a uma perspectiva de apreendê-lo

como uma modo de subjetivação típico da contemporaneidade, a exemplo da

produção de Jacó-Vilela (2001). Assim, falamos de pessoa como forma de

contextualizar a situação de rua nas transformações do mundo atual, a partir da obra

de Maffesoli (2001; 2004).

Para ele o conceito de indivíduo está ligado à modernidade. Ao lado dos

conceitos de História e Razão, o Indivíduo formava um tripé fundamental da

modernidade. Ser indivíduo pressupõe unidade, indivisibilidade, algo estático,

racional e funcional. A “concepção estática do indivíduo” fala de um ente autóctone,

fechado em si mesmo, que controla todas as situações da vida, que planeja o futuro: é

“o senhor e possuidor de si mesmo e da natureza” (MAFFESOLI, 2004, p. 18).

Ser pessoa é estar alinhado ao nomadismo, estar sempre em movimento,

desempenhar vários papéis e experimentar a pluralidade e a “multiplicidade de seres

que a habitam” (MAFFESOLI, 2001). É ter uma “identidade frágil”, em constante

transformação, e contraditória posto que é fragmentada em vários papéis que se

confrontam. É uma “negação da identidade”, de ser idêntico a si mesmo, estático. É

experimentar uma “liberdade”, não racional, calculada e fundada na consciência, mas

de experimentar as emoções na eternidade do presente. É preservar a “comunhão”, o

“estar-junto”, não o isolamento do indivíduo. A visão de ser “senhor de seus

instintos”, que a tudo controla pela razão, é substituída pela emoção, pelos

“sentimentos e excessos que nos dirigem, mais do que os controlamos. O cérebro dá

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lugar ao ventre e a seus apetites múltiplos” (p. 80).

Não estamos aqui afirmando que todas as pessoas em situação de rua

compartilham dessas características, mas que estão impregnadas desse contexto que

transforma o indivíduo moderno em um novo modo de viver sintetizado no conceito

de pessoa.

A expressão situação de rua merece ser dividida para melhor ser analisada. A

palavra situação pode ser referente a um estado ou condição. Nestas circunstâncias,

com a expressão situação evidenciamos o caráter transitório e passageiro da situação

de rua como condição social. Como havíamos notado anteriormente (MATTOS,

2003), consideramos o ser humano em metamorfose ininterrupta no interior das

relações sociais. De acordo com esse pensamento, é incoerente se dizer de um “ser da

rua”, “definitivamente”, como aludem Vieira, Bezerra e Rosa (1992). Assim, com o

termo situação, destacamos a transitoriedade desta condição social, em detrimento de

um elemento estático e rígido denotado em substantivos como “morador de rua”,

entre outros. Como afirma Ciampa (1990), o ser humano é verbo suscetível a diversas

conjugações, mas jamais substantivo. Logo, a situação é o avesso do “ser definitivo”,

não só porque o estar na rua pode ser superado pela saída das ruas, mas

principalmente por se tratar de um modo de vida volátil, móvel, indefinido.

O termo situação, no entanto, denota também o movimento de construir algo

em algum lugar. Não é à toa que o verbo situar pode significar “...construir num certo

lugar” (SÉGUIER, 1972, p. 1107). Com isso, destacamos que a situação de rua é uma

construção social de pessoas em um determinado lugar: a rua.

Por fim, a palavra situação ainda faz alusão à “...disposição recíproca das

diversas partes de um todo” (SÉGUIER, 1972, p. 1107). Aqui, a construção da rua

como uma situação social para algumas pessoas deve ser vista como um dos possíveis

lugares nos quais a pessoa pode se situar nesse todo que é a sociedade.

Por fim, o termo rua deve ser compreendido como um lugar em um todo,

numa relação dialética com a casa. Trata-se da apreensão da casa e da rua como

espaços que se criam mutuamente, um não existindo sem o outro (DA MATTA, 1984,

1997). Assim, se a casa é o local onde somos reconhecidos como pessoas,

controlamos nossas atividades e imprimimos certa estabilidade aos objetos e

acontecimentos, fato que nos traz segurança; na rua temos o espaço do não-

reconhecimento, do anonimato, do movimento descontrolado, da instabilidade,

incerteza e imprevisibilidade. Nesse sentido, como espaços sociológicos, muito mais

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que lugares físicos, a casa e a rua são complementares em nosso cotidiano. O que

ocorreria a uma pessoa que vive sua ‘casa’ na rua, que torna público o privado e, no

mesmo momento, privatiza o público? Com essa confusão entre a casa e a rua, típica

da situação de rua (mas não apenas dela), poderia-se falar nessas esferas como

“lugares”? Ou seriam exatamente o avesso disso, ou seja “não-lugares”? Eis algumas

das questões que abordaremos no quarto capítulo.

Em síntese, quando falamos em pessoas em situação de rua destacamos a

existência de sujeitos humanos e singulares que atravessam uma situação transitória

em um espaço construído socialmente.

No entanto, o que caracteriza a situação de rua? Quais são seus traços

essenciais?

2.1 - Situação de rua e seus traços essenciais

Por traços essenciais compreendemos as características que definem a

situação de rua, ou seja, sem as quais esta condição social não existiria. A principal

característica da situação de rua é ausência de uma residência fixa ou casa. Embora já

tenhamos dito, é importante retomar que não se trata apenas de um espaço físico no

qual morar, mas principalmente um espaço de subjetivação.

Algumas críticas são proferidas em torno dessa característica principal. A

antropóloga Claudia Turra Magni (1994) critica seu tom “etnocêntrico”, uma vez que

apreende a situação de rua pelo que lhe falta, pelo que não é, a partir de valores

domiciliados. Em outras palavras, expõe-se uma característica (ausência de casa) e se

pressupõe que todas pessoas deveriam morar em uma casa, um raciocínio típico de

quem mora em casa e não consegue vislumbrar outra possibilidade. Por isso, Magni

procura nomear esta população como “nômades urbanos”, afirmando seu aspecto

“positivo” (nomadismo) em detrimento ao aspecto “negativo” (falta de casa).

A nosso ver, a utilização de uma lógica dialética para apreender o real como

contraditório e multideterminado faz com que aceitemos ambos pólos, o negativo e o

positivo, de maneira reciprocamente constitutiva. Algo não se caracteriza pelo que é,

pois em si nada é. Somente há algo na relação com aquilo que lhe é diferente, com

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aquilo que não é. Tal raciocínio dialético permite-nos dizer: a situação de rua é uma

condição social marcada pela ausência de moradia e conseqüente mobilidade

constante como forma de vida, em detrimento da situação domiciliada. Essa equação

ficará ainda mais complexa quando avaliarmos esta mobilidade constante como um

fenômeno característico de nosso tempo moderno, como se verá no capítulo seguinte.

Por ora, basta assinalar que a vida na rua se faz a partir da ocupação de um não-lugar:

locais abertos e transitórios onde estamos sempre de passagem (AUGÈ, 1994), muito

distintos da segurança, reconhecimento recíproco e fechamento em um lar. A fixação

domiciliar também traz um elemento do lugar relacionado à questão da ordem. Logo,

a rua, como “não-lugar”, também pode ser entendida como habitada por pessoas “fora

do lugar”: que subvertem o lugar estabelecido pela ordem da vida domesticada, do

cotidiano estruturado a partir das regras e horários do trabalho e da família.

Ora, conforme ressalta Domingues Junior (2003), a ausência de moradia está

relacionada com transformações no âmbito do trabalho e da família como instituições

sociais responsáveis pela nossa sobrevivência material e simbólica. Eis porque grande

parte dos estudos se debruça sobre as relações da situação de rua com essas

instituições, de maneira mais ou menos direta, com destaque para Vieira, Bezerra e

Rosa (1992), Alves (1994), Nasser (1996), Rosa (1999), Escorel (1999) e Mattos

(2003).

Veremos no capítulo 3 como as instituições do trabalho e da família se

modificaram nas últimas décadas e como essas transformações são fundamentais para

se entender a situação de rua. Por ora, basta compreendemos que a situação de rua é

caracterizada por uma deserção aos padrões convencionais de família e trabalho,

necessariamente. Uma pessoa não vai para a rua se possui relações sólidas com sua

família, assim como não vai para a rua se possui um trabalho regular que ofereça

recursos suficientes para residir em um local mais ou menos fixo.

Ora, se viver em uma residência fixa, possuir um trabalho regular e pertencer a

uma família são características de uma vida considerada “normal”, que segue os

preceitos sociais, a situação de rua foge à norma. Aí reside o último traço essencial

que destacamos: a situação de rua é subversiva, pois rompe com alguns padrões

responsáveis pela ordem social, tais como onde viver (casa), como viver (trabalho) e

com quem viver (família).

Há, por conseguinte, uma ofensiva da sociedade para manter sua ordem

considerada normal, caracterizando a situação de rua de maneira pejorativa como algo

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desviante e negativo. Tratam-se das representações sociais da pessoa em situação de

rua como “vagabunda”, “louca”, “perigosa”, “coitadinha” e “suja”, tal como

debatemos em recente publicação (MATTOS; FERREIRA, 2004a). Veremos como,

sob o ponto de vista do nomadismo como característica marcante de nosso tempo

(embora tenha se manifestado de diferentes maneiras no decorrer da história), as

pessoas em situação de rua são, ao contrário, as mais representativas das

transformações do mundo atual.

Assim, de maneira sumária, a situação de rua é caracterizada em seus traços

essenciais pela mobilidade oriunda da ausência de moradia fixa em virtude de

transformações no âmbito da família e do trabalho, condição que gera representações

ideológicas e preconceituosas.

2.2 - Dimensões da situação de rua

É clássica a passagem em que Marx aponta que “O concreto é concreto porque

é a síntese de múltiplas determinações e, por isso, é a unidade do diverso”

(1859/1974, p. 20). Dessa maneira, entendemos que a situação de rua é fruto da

interação de diversas construções sociais. A estas denominamos dimensões. A partir

da análise de algumas das principais dimensões da situação de rua, também

tentaremos explicar a grande diversidade de denominações de acordo com as distintas

áreas do conhecimento científico.

A primeira dimensão é a da faixa etária. Parece-nos consensual a divisão, ao

menos científica, entre as pesquisas que versam sobre o contingente de crianças e

adolescentes em situação de rua, ou situação de “risco”, e aquelas, como no presente

estudo, que pesquisam a população adulta. Assim, normalmente quando se fala em

população de rua, morador de rua ou pessoas em situação de rua, a referência

primordial é de que são pessoas adultas.

A dimensão referente ao gênero também surge como fundamental. Via de

regra, estudos sobre as pessoas em situação de rua possuem mais referências à figura

masculina, por constituir a grande maioria numérica dessa população. Tal dado faz

com que Alves (1994), por exemplo, utilize o termo “homens de rua”. É histórico,

também, o estudo pioneiro de Tiene (2004) sobre as “mulheres moradoras na rua”,

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utilizando novamente o gênero como diferenciação principal. Resta apenas um estudo

sobre os homossexuais em situação de rua. Em experiência prática, pudemos

observar que homossexuais masculinos eram muito bem vindos em albergues

municipais, nos quais faziam vigília nos banheiros durante a madrugada aguardando

parceiros sexuais - que nunca faltavam. Pode-se mesmo hipotetizar que a grande

oferta de parceiros sexuais seria um elemento reforçador de suas permanências no

albergue.

Uma dimensão fundamental é a mobilidade, entendida como instabilidade

espacial sedimentada na própria falta de fixação residencial. Os autores que enfatizam

a dimensão da mobilidade tendem a caracterizar a situação de rua em diversos grupos

de acordo com menor ou maior movimentação. A obra pioneira na ênfase da

mobilidade é a de Magni (1994), quando lança mão do conceito de “nômade urbano”.

A mesma ênfase é dada por Nascimento (2004) e Justo (2000, 2004b, 2005) quando

fornecem um gradual de mobilidade para caracterizar diferentes formas de estar na

rua: os “errantes”, que podem ser “trecheiros” ou “andarilhos”; ou os “citadinos”,

como os “moradores de rua” e “mendigos” - conforme veremos a seguir. Bursztyn

(2000b) chega a falar em “perambulantes” para definir a mobilidade sem destino de

alguns membros da população de rua.

Por fim, de maneira mais explícita, Frangella (2004) procura estudar os

“habitantes de rua” que se diferenciam dos “migrantes” e “andarilhos” justamente

pela “intensidade do movimento”.

Outra dimensão importante é a do trabalho. É bem sabido que ela foi firmada

com mais veemência a partir da publicação de Vieira, Bezerra e Rosa (1992), que

passou a caracterizar a população de rua como parte da classe trabalhadora. No

entanto, alguns estudos que utilizam o termo “mendigo” (STOFFELS, 1977;

SERRANO, 2004) destacam a dimensão do trabalho como referencial, na medida em

que a mendicância é analisada como atividade produtiva responsável pela

característica distintiva desse contingente. O mesmo pode ser dito de alguns estudos

com os catadores de materiais recicláveis, assim denominados em virtude do ofício

que exercem.

Nesta dimensão, deve-se ressaltar a intensa mobilidade ocupacional que alinha

as pessoas em situação de rua às metamorfoses atuais no mundo do trabalho. Isto é,

realizam diversas atividades ao mesmo tempo, todas elas intermitentes, informais e

com rendimentos instáveis (ESCOREL, 1999).

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Se tomarmos a dimensão que pode ser denominada de relação com as

entidades sociais, temos a existência de um grande contingente denominado

“albergado”, como na pesquisa pioneira de Nasser (2001) ou “morador albergado”

(FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS, 2003). Essas pessoas

se diferenciariam porque pernoitam em albergues e usufruem mais intensamente dos

serviços oferecidos pelas entidades sociais, por vezes com o objetivo de manter

alguns hábitos de quando eram domiciliados. Veremos como os albergues funcionam

como elemento intermediário entre a rua e a casa: lidam com pessoas em situação de

rua no sentido de capturar seus cotidianos com regras, horários e convenções -

elementos de controle típicos da vida domesticada - de maneira a buscar reproduzir a

ordem da casa no caos da rua.

Condições concernentes à saúde mental também constituem uma dimensão

importante. Nos referimos tanto a presença de alucinações ou delírios entre pessoas

em situação de rua, como a denominação de “loucos de rua” (CHNAIDERMAN,

entrevistada por STYLER, 1993) ou “andarilho louco de estrada” (JUSTO, 2004a),

quanto aos estudos que destacam o alcoolismo (NASSER, 2001; NASCIMENTO;

JUSTO, 2000; NASCIMENTO, 2004; MATTOS, CAMPOS, FERREIRA, 2004).

Considerando a elevada incidência de problemas relacionados ao consumo de álcool,

a dependência química dessa substância deve ser enfatizada como principal elemento

da dimensão da saúde mental.

A situação familiar constitui uma última dimensão importante. Há uma

minoria de famílias que vão inteiras para a situação de rua, habitando

temporariamente alguns albergues municipais ou ocupando locais nas ruas nos quais

procuram reproduzir a vida doméstica - com a tentativa de construir habitações de

madeira com divisão de cômodos, além de manter as atribuições da mulher

relacionada aos cuidados domésticos e do homem como provedor financeiro.

Em sua maioria, as pessoas vivenciam a situação de rua sozinhas. Dentre elas,

algumas mantêm contatos constantes com familiares, sendo freqüente a omissão da

situação em que se encontra, seja por vergonha, seja pelo fato de temerem a rotulação

de fracassados que não alcançaram seus objetivos de melhorar de vida ao “sair para o

mundo”. Outras rompem o contato com familiares, normalmente em virtude de sérios

conflitos e ressentimentos. Por fim, deve-se destacar a formação de agrupamentos de

pessoas em situação de rua, ou mesmo de significativos vínculos de amizade, que são

considerados semelhantes às relações familiares.

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Somente à guisa de ilustração, devemos nos referir ao termo “homeless”,

sugerido pela Organização das Nações Unidas (ONU), que abrange todas as pessoas

que residem em locais impróprios ou sem os padrões mínimos para habitação. Tal

denominação, pouco utilizada no Brasil (como exemplo de YAZBEK;

WANDERLEY, 1992), seria inadequada, segundo Silva (2000) e Schor e Artes

(2001), pois abrangeria os moradores de cortiços, favelas e demais instalações

insalubres. Nas diversas regiões do mundo, no entanto, nomeadamente nos estudos

divulgados em língua inglesa, a expressão homeless é sempre utilizada (como nos

estudos de KOROLOF; ANDERSON, 1989; TEESSON; BUHRICH, 1993;

SHILONY et al., 1993; SOSIN; BRUNI, 2000; BOOTH; SULLIVAN; KOEGEL;

BURNAM, 2002; WEISS; GEFEN, 2003).

Retomando alguns pontos de nossa exposição, observamos que a situação de

rua possui alguns traços essenciais que permitem diferenciá-la de outras situações

sociais, como a vida domiciliada ou sedentária, por exemplo. Estas pessoas em

situação de rua participam de um segmento social sobremodo heterogêneo. Vimos

que essa heterogeneidade se refere, de alguma maneira, às diferentes histórias de vida.

Observamos, também, que a situação de rua possui múltiplas determinações, e

ressaltamos algumas delas como dimensões que, quando enfatizadas pelas pesquisas

científicas, refletem conceitualmente a diversidade concreta da situação de rua.

Por fim, o último esforço que faremos nessa empreitada de tornar familiar o

estranho, de atribuir um sentido à situação de rua como realidade concreta, é o de

evidenciar alguns grupos de pessoas em situação de rua. Com isso, queremos

enfatizar as principais formas de viver em situação de rua.

2.3 - Os principais grupos de pessoas em situação de rua

2.3.1 - Mendigos

Os primeiros estudos realizados sobre a população que vivia nas ruas da

cidade destacaram como categoria de análise o mendigo. Embora atualmente esta

denominação esteja atrelada a diversos preconceitos, veiculados também pelas

pessoas em situação de rua, pretendemos resgatar o conceito de mendigo como forma

ainda atual de compreender parte das pessoas que estão em situação de rua.

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Na pesquisa pioneira de Stoffels (1977), intitulada Os mendigos na cidade de

São Paulo, a autora se esforça por delimitar um espaço de “conceituação” da

mendicância. Já na década de 1970, Stoffels realizou uma distinção ainda hoje

bastante pertinente. Verificou que o termo mendigo possuía predominantemente um

“espaço moral” de apreensão. O mendigo era representado moralmente por diversos

discursos: o jurídico e criminológico ressaltavam a analogia da mendicância com o

perigo social, a preguiça, sendo a mendicância um crime previsto na lei; os discursos

psiquiátricos e psicológicos associavam a mendicância à doença mental e à loucura.

Enfim, a julgar pelo espaço moral, o mendigo era um criminoso em potencial, louco,

incapaz, inútil e improdutivo.

Trata-se da visão clássica do mendigo como expressada por Magni (1994, p.

134):

O estereótipo do nômade urbano é clássico: roupa esfarrapada, pele encardida com dermatoses, às vezes abrindo em feridas, corpo marcado por cicatrizes; unhas das mãos e dos pés enegrecidas, compridas e, por vezes, deformadas; dentes em parte caídos, em parte cariados; cabelos ensebados, olhos congestionados, etc. São signos genéricos que contam a trajetória social e tornam evidente que o indivíduo faz parte da população pobre que habita as ruas.

Não seria exagerado dizer que até hoje permanecem esses atributos vinculados

ao termo mendigo. O jornalista Alderón Costa, há mais de uma década veiculando

notícias da rua no jornal “O Trecheiro”, registra que a imprensa paulistana continua

marcadamente preconceituosa, utilizando o termo e os significados de mendigo nessa

acepção que Stoffels considera “moral”. Entre pessoas em situação de rua, há este

mesmo significado atribuído ao termo mendigo, não sendo incomum dizerem que não

querem se “parecer com um mendigo”.

Stoffels, no entanto, procurou delimitar um “espaço científico” para o termo.

Para tanto, conceitua o mendigo como a pessoa que produz uma doação por meio do

pedido. A atividade da mendicância carrega em si alguns eixos fundamentais: a

“dependência social criada pela exclusão”; a transformação da rua como espaço

apropriado; e a “estigmatização da atividade como desvio” (1977, p. 52).

Ainda de acordo com a autora, a mendicância pode ser dividida em diversos

grupos de acordo com alguns critérios específicos. Segundo o critério temporalidade

ou freqüência de pedido, podemos ter o “mendigo ocasional ou intermitente” e o

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“mendigo permanente”. No critério “estruturação coletiva”, temos os mendigos que

organizam-se em grupos ou “máfias” e os “mendigos autônomos”. Já o critério “tipo

de clientela” diferencia o “pedinte institucional” do mendigo que forma sua clientela

entre pessoas físicas. Nesse contexto, há um critério referente ao “uso da esmola”, que

poder ser para fins de subsistência ou para “poupança”.

A nós, no entanto, o critério “uso da rua” é o mais importante. De acordo com

ele há uma categoria de “mendigos profissionais”, que se utiliza da rua apenas como

espaço de pedido, e os “mendigos vadios”, que além da rua como “local de trabalho”

a tem como “habitat”. Em outras palavras, o conceito de mendigo, tal como cunhado

por Stoffels, abarca um grupo de pessoas que não necessariamente estão em situação

de rua.

Há, no entanto, outra pesquisadora da mendicância que gostaríamos de nos

referir para articular a concepção de mendigo adotada no presente texto, a socióloga

Delma Neves (1983). Esta autora, ressalta a mendicância como uma forma de

reprodução social de uma parte da massa trabalhadora. Esta massa é bastante

heterogênea, fato que faz com que Neves a divida em dois segmentos: os “pedintes” e

os “mendigos”:

Como ‘mendigos’, definem-se de modo geral as pessoas que supostamente perderam certos atributos sociais (não têm família, nem casa), e por isso sobrevivem na rua, apresentando-se sujas e maltrapilhas, além de não trabalharem. Como ‘pedintes’ são classificados aqueles que, embora disponham de atributos sociais reconhecidos, enfrentam dificuldades para sobreviver, e portanto recorrem à ajuda de terceiros. Assim, a ‘mendicância’ é atribuída apenas ao mendigo, que dela sobrevive, enquanto o pedinte apenas minimiza sua penúria de bens materiais pela ajuda que consegue obter (1983, p. 30).

De maneira similar à divisão entre mendigos profissionais e vadios, os

pedintes seriam aquelas pessoas de famílias pobres que recorrem à doação pessoal ou

institucional como “complementação de renda”.

Já os mendigos são um grupo pertinente a população em situação de rua que

normalmente se utiliza da condição de pauperismo para esmolar, sob o pressuposto

implícito de que conseguirá “superar a situação de infortúnio”. Sendo a expressão

física da miséria uma das estratégias do pedido, a clássica figura do mendigo pode ser

explicada: “Na medida em que só admitimos o mendigo como um destituído, ele deve

trazer aparentes as marcas da desordem que a privação de recursos acarreta - ser sujo,

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maltrapilho, humilde e agradecido” (NEVES, 1983, p. 33).

Assim como Stoffels, Neves ressalta o papel das instituições sociais que

acabam legitimando e aceitando certo “modelo de pobreza”, de maneira a reproduzir e

manter pessoas que se “acomodam” com a situação de mendigo.

A prática do pedido também é um fator definidor do contingente conhecido

como “pardais”. Justo (2005, p. 152-4) destaca o termo pardal como um denominação

comum entre os trecheiros e andarilhos. Com base nos depoimentos destes, o pardal é

considerado uma pessoa que circula entre diversas cidades, vivendo um tempo em

cada lugar, e sobrevive da “prática do achaque”. É interessante notar que o achaque é

uma forma de pedido tida pelos pardais como um “vício”, uma prática

deliberadamente escusa para enganar o interlocutor a partir da arte de comovê-lo:

“Nenhum deles se refere à prática de pedir ajuda nas ruas, como pedir esmolas ou

mendigar. Todos falam em ‘achacar’ e compreendem essa prática como um ato de

esperteza, malandragem ou como uma arte de argumentação - a retórica dos pardais”

(p. 153). Justo considera o achaque uma “arte”, um “tesouro cultural” dos pardais,

símbolo de sua astúcia em criar formas para sua sobrevivência.

Os pardais se aproximam muito dos mendigos profissionais em virtude dessa

maestria na arte do pedido, assim como dos mendigos vadios, pelo fato de não

possuírem residência fixa. Pensamos que seu traço distintivo maior seja o fato de

manter-se em movimento entre as cidades, pois os mendigos referidos por Stoffels e

Neves são sempre citadinos. É justamente por essa mobilidade intermunicipal que os

pardais podem também ser incluídos no grupo dos andarilhos, como faz Justo (2005).

No presente trabalho, o termo mendigo será utilizado na acepção definida por

Neves, para caracterizar uma parcela da população em situação de rua. Ademais, esta

parece ser a maneira como o mendigo é pesquisado atualmente, como demonstra o

estudo do psicólogo Serrano (2004) sobre os “mendigos moradores de rua”.

Em suma, consideramos que o termo mendigo é utilizado de duas maneiras

distintas. A partir do conhecimento popular, o mendigo é um sujeito sujo, que veste

andrajos, cheira mal, é louco e perigoso. As pessoas em situação de rua tendem a vê-

lo como o último grau da escala da miséria, aquele vagabundo que ‘não tem mais

jeito’. Por outro lado, a construção dessa representação social pode estar relacionada a

necessidade do mendigo transparecer explicitamente a miséria como apelo para ser

bem sucedido na prática do pedido. É justamente a prática do pedido realizada pela

pessoa em situação de rua, feita despretensiosamente ou travestido na arte do

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achaque, que caracteriza o mendigo do ponto de vista do conhecimento científico.

Novamente, deve-se ressaltar a fragilidade dessa categorização se tomada

como fixa e rígida: Qual pessoa em situação de rua não solicitou, freqüentemente ou

não, auxílio de terceiros, sejam eles pessoas físicas ou entidades?

2.3.2 - Moradores de rua

Havia uma época em que toda a pessoa em situação de rua era denominada

mendiga, vadia e vagabunda, com os preconceitos vistos anteriormente. Era uma

denominação que estava associada a valores pejorativos e poucas pessoas em situação

de rua se identificavam com essa denominação ou aceitariam participar de um grupo

de mendigos. Óbvio que isto dificultava o surgimento de uma identidade coletiva

entre essas pessoas, condição primordial para a atuação política no sentido de exigir

seus direitos sociais.

Na tentativa de romper com esse preconceito, alguns termos foram criados.

Dentre eles, destacam-se os termos criados em entidades religiosas católicas, tais

como “sofredor de rua” ou “povo de rua”.

No entanto, outra expressão nos parece historicamente mais importante.

Justamente na gestão petista da prefeita Luiza Erundina, ganhavam peso as

organizações de pessoas em situação de rua e suas reivindicações. Foi no interior do

imenso movimento popular característico da redemocratização brasileira que foi

cunhado o termo “população de rua” ou “morador de rua”, descritos de maneira

rigorosa por Vieira, Bezerra e Rosa (1992).

Nesta obra, a população de rua adquiriu importância política ao ser

conceituada como parte da classe trabalhadora que, impossibilitada de vender a sua

força de trabalho em virtude do desemprego, vai para a rua. Além do trabalho, o

morador de rua também é caracterizado por ser “desatendido” em seus direitos sociais

básicos, dentre eles a moradia, assim como pela falta de convívio permanente com a

família. De forma sucinta: “Trata-se de um segmento social que, sem trabalho e sem

casa, utiliza a rua como espaço de sobrevivência e moradia” (VIEIRA; BEZERRA;

ROSA, 1992).

Poderíamos discorrer longamente sobre as características dessa publicação,

como a ênfase na população de rua como essencialmente heterogênea, a realização do

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primeiro recenseamento desta população em uma cidade brasileira, o fato de traçar o

perfil da população, entre outras.

Entretanto, gostaríamos de evidenciar um ponto fundamental. O conceito de

população de rua e morador de rua foi cunhado numa época em que a grande maioria

deste contingente (81%) não tinha acesso a qualquer política social, pública ou

privada, como abrigo, albergues e casas de convivência. Assim, executando-se as 460

pessoas (14%) que pernoitavam em albergues e abrigos, todas as demais (2932)

dormiam literalmente na rua, em praças, viadutos, terrenos baldios e outros

logradouros públicos.

Assim, preferimos utilizar o termo população de rua e morador de rua para

aquele contingente de pessoas em situação de rua que dormem e vivem nos

logradouros públicos da cidade. Atualmente, este segmento representa uma minoria

da população em situação de rua (cerca de 40% - FUNDAÇÃO INSTITUTO DE

PESQUISAS ECONÔMICAS, 2003), ao contrário de 1991.

Uma outra característica fundamental da população de rua é sua urbanidade,

ou seja, ela se concentra no interior das cidades. Esta característica é acentuada pelos

pesquisadores de membros da população em situação de rua que se locomovem em

espaços distintos das áreas urbanas: os errantes. Para Nascimento (2004, p. 16), os

“moradores de rua ou mendigos” são considerados como “citadinos”, distintos dos

“errantes” (trecheiros ou andarilhos, como veremos a seguir): “trata-se dos citadinos

ou mendigos e moradores de rua que, normalmente, perambulam pelas cidades e

permanecem nelas por longos períodos”.

Cabe destacar que os conceitos de população de rua e morador de rua são os

mais utilizados nas pesquisas científicas sobre a população em situação de rua

(VIEIRA; BEZERRA; ROSA, 1992; SIMÕES JUNIOR, 1992; RANGEL, 1996;

ROSA, 1999; OLIVEIRA, 2001; TAVEIRA; ALMEIDA, 2002 - entre outros). No

entanto, com as transformações ocorridas nessa população durante a década de 1990,

a população de rua constitui uma minoria que se caracteriza pela concentração no

espaço urbano e pelo pernoite nos logradouros públicos da cidade.

2.3.3 - Albergados

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Em outra ocasião (MATTOS; CAMPOS, 2004), procuramos enfatizar a

importância das políticas de atenção na configuração recente das características da

população em situação de rua. A principal transformação se refere ao vertiginoso

aumento da rede de albergues e abrigos de emergência que oferecem pernoite,

alimentação, locais para higiene e atividades sócio-educativas.

Anteriormente, havíamos dito que no ano de 1991 apenas 14% das 3392

pessoas em situação de rua pernoitavam em abrigos ou albergues. No último

recenseamento (FUNDAÇÃO INSTITUTO DE PESQUISAS ECONÔMICAS, 2003)

este número mais que quadruplicou, representando 60% da população em situação de

rua. Somente como ilustração, basta dizer que o número de leitos em albergues e

abrigos cresceu pouco mais de treze vezes: de 460, em 1991, para 6.186 em 2003.

Essa mudança concreta fez com que as categorias conceituais também

sofressem modificações. A Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, por

exemplo, no último recenseamento de 2003, passou a dividir o que denomina de

população de rua ou “grupo de moradores de rua” em dois subgrupos: “moradores

nas ruas”, para aqueles que pernoitam em logradouros públicos; e “moradores

albergados”, para aqueles que pernoitam em albergues ou abrigos.

Discordamos de se pensar a categoria de moradores albergados dentro da

categoria de moradores de rua, parecendo até uma incongruência.

Logo, entendemos que há um grupo numeroso de pessoas em situação de rua

que são “albergadas”, ou seja, pernoitam nos albergues e abrigos e não

necessariamente dormiram ou dormirão nas ruas. Em nossa experiência profissional

no Albergue Solidariedade Abecal, tivemos contatos com migrantes do interior que

vinham tirar documentos na capital e ficavam hospedados por meses em albergues;

trabalhadores que residem muito longe de seu local de trabalho e pernoitam nos

albergues durante a semana, retornando ao lar somente aos finais de semana, para

economizar a condução ou manter o emprego.

A pesquisadora pioneira na conceituação do grupo de albergados é a socióloga

Ana Cristina Nasser (2001). Em sua tese de doutoramento, concluída em 1996, Nasser

realizou interessante estudo em um dos albergues mais tradicionais da cidade de São

Paulo: o albergue Lygia Jardim. Nesta ocasião, verificou que os “albergados” eram

pessoas que utilizavam de maneira itinerante instituições assistenciais com o objetivo

de resgatar algumas características da vida domiciliada e se distanciar da população

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que mora nas ruas. São pessoas que se desvincularam da família em busca de

trabalho, mas apenas esporadicamente se envolvem em trabalhos temporários ou

informais, o que não proporciona a oportunidade de alugar uma casa ou um quarto de

pensão por tempo prolongado.

Nasser também realiza importante estudo do albergue como lugar de

sobrevivência, estudo este que remonta uma importante tradição da sociologia

inaugurada por Di Flora (1987). A partir dessas pesquisas, o albergue pode ser visto

como instituição social que visa a normalização do desviante, mas acaba gerando uma

forte dependência institucional.

Tal dependência é tão corriqueira que, semelhante ao termo mendigo, a

expressão albergado é também utilizada pelas pessoas em situação de rua como forma

negativa de se referir a uma pessoa acomodada, que “não quer nada com nada” e fica

somente “mamando nas tetas do Estado” - como ouvimos por diversas vezes em

discussões nos albergues.

2.3.4 - Catadores de materiais recicláveis

No final do ano de 2004, realizamos um trabalho de análise institucional no

NAC (Núcleo de Apoio ao Catador), localizado no Projeto Oficina Boracéa -

principal empreendimento da gestão de Marta Suplicy para a população em situação

de rua. Chamou-nos atenção a veemência como os catadores de materiais recicláveis

acentuavam sua identidade coletiva a partir da contraposição com os albergados. Ou

seja, falavam em “nós catadores”, fato indicativo de um grupo de referência e

pertencimento, cujo mote era o trabalho duro em detrimento dos outros que vivem

sem trabalhar. Novamente nesse contexto, o termo albergado resgata um teor negativo

de caráter moral, como sinônimo de pessoa acomodada que não quer trabalhar.

A partir de um estágio no Serviço Sefras de Apoio ao Catador - Recifran

também pudemos perceber que a catação, mesmo quando vinculada a grupos

organizados por entidades que atendem pessoas em situação de rua, não se restringe a

esta população. Ou seja, trata-se de uma estratégia de sobrevivência largamente

utilizada por camadas da população que não tem acesso ao mercado formal de

trabalho.

Assim, segundo a CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), há uma

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profissão legitimada que engloba os “catadores de materiais recicláveis”. Tal fato nos

coloca frente à categoria trabalho como principal aspecto que diferencia os catadores

das demais pessoas em situação de rua. Em outras palavras, o grupo de catadores é

composto por aquelas pessoas em situação de rua que exercem a profissão de

catadores de materiais recicláveis, embora nem todo catador esteja em situação de

rua.

Diversas contradições permeiam a profissão de catador. Malgrado seja uma

categoria de trabalhadores que contribuem significativamente para a limpeza urbana,

a preservação ambiental e para a prorrogação da vida útil dos aterros sanitários,

sofrem preconceitos por trabalharem com o que os demais cidadãos chamam de

“lixo”. Os indivíduos domiciliados se queixam quando os catadores abrem seus sacos

de lixo, os motoristas de ônibus ou carros particulares desrespeitam os catadores no

trânsito e os donos de estabelecimentos comerciais às vezes não permitem a sua

entrada. Assim, embora a profissão tenha reconhecimento legal, na prática ainda há

muito preconceito.

Outro dado importante da profissão são as condições de trabalho em termos de

insalubridade e periculosidade. Em nosso trabalho no Recifran, pudemos perceber

diversos trabalhadores com cortes nas mãos em virtude da não utilização de luvas

protetoras fornecidas pela entidade. Ouvimos narrativas de ex-catadores aposentados

como inválidos após serem atropelados por veículos automotores. Juncá (2004) relata

o caso de uma catadora que se distraiu e deixou sua filha cair da carroça, bater a

cabeça no meio-fio e morrer. Isso tudo além de problemas posturais, em virtude de

carregar muito peso nas carroças; respiratórios, pelo contato com pó e outros

resíduos; digestivos, quando se ingere algum alimento com data de validade vencida;

e dermatológicos, pelo contato constante com materiais do lixo urbano.

Tais características variam bastante entre os catadores. Uma das pesquisadoras

brasileiras mais importantes no estudo dos catadores, Denise Chrysóstomo Juncá

(2004) ressalta a necessidade de se considerar a multiplicidade de formas de trabalho

com o lixo.

Sem almejar uma análise exaustiva do assunto, gostaríamos apenas de chamar

atenção para três distinções principais: a freqüência da catação, o local de coleta e a

forma de organização do trabalho.

Há uma quantidade significativa de pessoas que realizam a coleta e venda de

materiais recicláveis de maneira ocasional ou esporádica. São pessoas que catam

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somente quando necessitam bastante de dinheiro e, normalmente, recorrem a

materiais de fácil transporte e venda, principalmente latas de alumínio. Por fim, são

pessoas que não podemos considerar propriamente como catadores profissionais, pois

não se autodenominam catadores e nem possuem os conhecimentos necessários para o

exercício integral da profissão. Assim, quase toda nossa análise posterior será dirigida

àquele contingente de catadores que realiza a catação como profissão diária e depende

principalmente dela para angariar recursos financeiros para sua sobrevivência.

De acordo com o local de coleta, os catadores podem ser divididos em dois

grandes grupos: os trabalhadores que exercem sua profissão no interior de aterros

sanitários; e os catadores que trabalham nas vias públicas das grandes cidades. Os

primeiros foram estudados em diversas ocasiões e nas mais distintas regiões, como

demonstram as seguintes pesquisas: sobre os “casqueiradores” que trabalhavam no

aterro sanitário de Jangurussu no Ceará (SISTEMA NACIONAL DE EMPREGO/CE,

1991), ou os estudos de Juncá (2004) e Porto, Juncá, Gonçalves e Filhote (2004) no

Aterro Metropolitano de Gramacho (Município de Duque de Caxias, Rio de Janeiro,

Brasil). Importante notar que grande parte desses trabalhadores não estão em situação

de rua, pois residem em periferias próximas aos aterros sanitários nos quais

trabalham. Já a catação de materiais recicláveis nas vias públicas das grandes cidades

é historicamente arraigada à situação de rua, ao menos na cidade de São Paulo e em

Brasília.

Outro fator que confere urbanidade à catação é o desenvolvimento da

produção e consumo vinculado, primeiramente, às regiões urbanas. Com isso, essa

profissão foi se solidificando concomitantemente à diversidade de materiais

disponíveis para reciclagem. Nos dizeres de Juncá (2004, p. 44):

No início do século XX a figura do ‘velho garrafeiro’ constituiu o marco inicial do trabalho dos catadores no Brasil. Já a partir dos anos 50, com o desenvolvimento da sociedade industrial, outros materiais além do vidro passaram a despertar interesse e ao conhecido garrafeiro começaram a se juntar novos personagens: o papeleiro, o lateiro, o comprador de ‘ferro-velho’... Aos poucos vai surgindo a figura do catador de rua, lixões e aterros e, posteriormente, os catadores vinculados à associações e cooperativas.

São catadores urbanos que se utilizam de veículos distintos de acordo com a

região: em Brasília, por ser uma população oriunda de ambiente rural, a catação é

feita normalmente com carroças de tração animal, sejam burros ou cavalos

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(BURSZTYN, 2000c); na cidade de São Paulo são utilizadas carroças ou carrinhos

puxados pelo próprio catador; na Argentina os carrinhos por vezes são puxados com o

auxílio de bicicletas (ESCURRA, 1997).

De acordo com a organização do trabalho, entretanto, podemos dividir a

atividade de catação em três formas distintas, quais sejam, a organização individual,

familiar ou em associações e cooperativas.

Escurra (1997) em seu estudos dos “cirujas”, catadores de materiais

reaproveitáveis na Argentina, destaca uma característica marcante dos trabalhadores

autônomos individuais: a superexploração que sofrem dos ‘donos de ferro velhos’,

também chamados de atravessadores. Em visita à cidade de Atibaia/SP, visando

contribuir para o atendimento à população local em situação de rua, flagramos um

proprietário de um “ferro velho” que remunerava os carroceiros contratados com

garrafas de pinga. Após uma investigação mais detida, soubemos que o mesmo

proprietário possuía um alambique e que os carroceiros trabalhavam somente o

suficiente para realizar a troca por um litro de cachaça.

A organização familiar do trabalho parece ser mais característica da região de

Brasília, local onde a grande maioria da população de rua é composta por famílias e

não indivíduos sós, como em Rio de Janeiro (ESCOREL, 1999) e São Paulo

(VIEIRA; BEZERRA; ROSA, 1992). Em pesquisa sobre os “catadores de materiais

sólidos” ou “rola-bostas”, Burztyn (2000b) observa que a organização do trabalho era

muito similar à da agricultura familiar, considerando que a maioria dessas famílias

jovens provinham do ambiente rural, expulsas pela modernização do campo. Como

ranço do agricultor tradicional, verificou-se que há forte individualismo e muita

resistência a qualquer associativismo. Assim, o trabalho era organizado pela família

de acordo com uma divisão sexual de tarefas: homens fazem a catação e mulheres a

triagem. Burztyn destaca, ainda, a grande exploração dos atravessadores em relação

às famílias, pois muitas vezes eles são chamados de “patrões”.

Por fim, temos a organização dos catadores em associações e cooperativas,

organização esta pesquisada de maneira exaustiva (YAMAMORA; BOULHOSA;

MARTINS; CARVALHO, 2002; DOMINGUES JUNIOR, 2003; HAYASHIDA,

2003; MATTOS; FERREIRA, 2004b; JUNCÁ, 2004).

Os estudos de Domingues Junior (2003) na COOPAMARE em São Paulo e de

Juncá (2004) na ASMARE em Belo Horizonte e na FARRGS - Federação das

Associações de Recicladores de Resíduos Sólidos do Rio Grande do Sul, são

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emblemáticos. Ambos possuem o objetivo de avaliar as possibilidades do trabalho

nessas organizações coletivas contribuir para o exercício da cidadania e a reinvenção

do cotidiano. Domingues Júnior (2003), no entanto, partiu exclusivamente da

população em situação de rua que trabalhava na COPAMARE, ao passo que Juncá

(2004) estudou diferentes formas de trabalho com o lixo, em aterros sanitários,

cooperativas e associações em diversas cidades do Brasil (Rio de Janeiro, Belo

Horizonte e Porto Alegre). De maneira geral, os resultados das duas pesquisas podem

ser resumidos da seguinte forma: nas cooperativas ou associações, se promove a

geração de renda para pessoas que de outra forma não teriam oportunidades de

sobrevivência por meio da venda da força de trabalho; reestrutura-se os vínculos

interpessoais, criando um grupo de pertença coeso e solidário, muitas vezes chamado

de família pelos seus membros; rompe-se com a dependência institucional, freqüente

nessa população, fazendo seus integrantes se desenvolverem pessoalmente ao gerir

coletivamente o próprio empreendimento solidário; e favorece-se o surgimento de

atores políticos que lutam por seus direitos sociais em cidadania ativa, como a

formação do Movimento Nacional dos Catadores, vanguarda das reivindicações

políticas da população em situação de rua a partir de ferrenha crítica à sociedade

capitalista.

As cooperativas de catadores de materiais recicláveis podem ser estudadas

também como uma expressão da economia solidária e seu potencial como alternativa

de saída das ruas, como o fez Hayashida (2003). Pesquisas como as de Yamamora et

al. (2002) chegam a afirmar a importância das cooperativas como parte integrante de

um “novo projeto societário”, ao passo que Mattos e Ferreira (2004b) destacam as

cooperativas de catadores de materiais recicláveis como importante símbolo da

necessidade de reciclar a sociedade capitalista rumo a um processo de “revolução

social socialista”.

Como se pôde perceber, a área de estudos sobre os catadores de materiais

recicláveis é abrangente e complexa. Para nós, importa dizer que há um grupo de

pessoas em situação de rua que trabalham na reciclagem de materiais e são

denominadas catadores. Estes podem exercer sua profissão de forma permanente ou

ocasional, normalmente nas vias públicas das grandes cidades e podem estar

organizados individualmente, em família ou em cooperativas e associações.

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2.3.5 - Trecheiros

Em sua edição de número 100, o jornal “O Trecheiro” registrou um pouco de

sua história em busca do objetivo de dar vez e voz aos excluídos. Na época da

constituição do jornal, Alderón Costa sugere o nome “trecheiro”, pois era assim que

os membros da população de rua se denominavam. Dessa maneira, o termo trecheiro é

um dos mais antigos e surge nos estudos científicos com o conceito de “mendigo-

trecheiro”, formulado por Di Flora (1987). Ao analisar em pormenores o percurso de

trecheiros no interior de São Paulo na década de 1980, a autora destaca esses sujeitos

que vivem em movimento intermunicipal e sobrevivem a partir da prática do pedido,

daí o termo mendigo-trecheiro:

O trecheiro caracteriza-se como alguém que não tem residência fixa, mobiliza-se constantemente, de cidade em cidade, em regra escolhendo aquelas onde possa encontrar recursos assistenciais; reproduz-se freqüentemente através da esmola e do assistencialismo (DI FLORA, 1987, p. 95/96).

Nascimento e Justo (2000), Nascimento (2004) e Frangella (2004) concordam

com Di Flora, no que se refere à distinção do trecheiro em relação ao morador de rua,

pela itinerância estendida além dos limites do espaço urbano das cidades. Não

obstante, estes autores destacam que o trecheiro anda a pé pelas rodovias em busca de

“trabalho volante e temporário” (NASCIMENTO; JUSTO, 2000, p. 530) ou “se

definem por seu apego ao trabalho e honestidade” (FRANGELLA, 2004, p. 29, nota

nº 12). Assim sendo, além da mendicância, o trecheiro teria como característica a

busca de trabalho.

Nesse sentido, Justo (2005) descreve uma subdivisão no interior da categoria

dos trecheiros. Haveriam aqueles que deambulam à procura de “bicos” ou de auxílio

de entidades assistenciais, mantendo a busca por um trabalho como parte do roteiro.

No entanto, outros se aproximam mais da definição de mendigos-trecheiros, os

“pardais”, caracterizados pela especialidade na prática do “achaque”. Estes últimos

abandonam a possibilidade de viver a partir do trabalho: “Para os pardais, o trabalho

não tem valor, seja moral ou econômico. Ao contrário, chegam a debochar daqueles

que trabalham, considerando-os bobos, sofredores e submissos” (JUSTO, 2005, p.

154).

De qualquer maneira, adotaremos a definição geral de trecheiro de autoria de

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Justo (2005): trecheiro é aquele que vive a partir do nomadismo, forma de

movimentação que pressupõe um roteiro definido por um objetivo a ser alcançado,

seja ele o trabalho ou entidades filantrópicas. Daí porque o trecheiro alterna sua

caminhada na estrada com paradas nas cidades.

Nascimento (2004, p. 14) acrescenta que os trecheiros também são

caracterizados por andar a pé entre as cidades. Assim, pode-se dizer que o grupo dos

trecheiros é constituído por pessoas em situação de rua que vivem do nomadismo

exercido a pé entre as cidades, sobrevivendo de trabalhos temporários, mendicância

ou achaque, além de contar com auxílio de instituições assistenciais.

2.3.6 - Andarilhos

Se os trecheiros se constituem em torno do nomadismo, os “andarilhos” são

caracterizados pela errância: movimentação radical sem qualquer destino, ponto de

partida ou chegada, rumo ou roteiro, fazendo com que sejam pessoas que promovem

uma “deserção radical do sedentarismo... fuga ou distanciamento das normas e

controles sociais” (JUSTO, 2005 p. 60). Ou seja, são “... em geral maltrapilhos,

caminhando solitariamente num andar compassado de que efetivamente não se dirige

a lugar algum”. Em outras palavras, é essa “perambulação sem destino e incessante”

que diferencia os andarilhos de outras formas de vida em movimentação constante

pelas estradas (JUSTO, 2000, p. 18)

Embora alguns autores utilizem indiscriminadamente o termo andarilho como

sinônimo de trecheiro, como o faz Frangella (2004), o estudo deste contingente parece

ser pioneirismo dos psicólogos da Universidade Estadual Paulista de Assis, José Justo

e Eurípedes Nascimento, em seus estudos no trecho Marília-Assis - interior do Estado

de São Paulo. Outra ressalva importante é a semelhança dos andarilhos com aqueles

que Bursztyn (2000c, p. 234) denomina de “perambulantes”, sujeitos que passam a

“viver na estrada” sem qualquer perspectiva de retornar ao universo urbano, numa

“migração sem rumo e sem fim”.

Justo (2004b; 2005) realiza uma minuciosa descrição dos andarilhos,

chamados por vezes de “andarilhos estradeiros” ou simplesmente “estradeiros”, que

se diferenciam do “morador de rua” (igualmente chamado de “citadino” e, às vezes,

de “andarilho citadino”) também por serem muito mais isolados e solitários, assim

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como pelo fato de terem “raízes no campo”.

Justo também trabalha com diversas subcategorias de andarilhos. Há os

“mochileiros”: “jovens, herdeiros da tradição hippie, que vivem viajando de um lugar

a outro, geralmente lugares de turismo ou místicos, e que sobrevivem do artesanato e

da prestação de pequenos serviços ligados à arte” (JUSTO, 2005, p. 11). Outros são

chamados de “andarilhos carrinheiros” (2004b) ou “Maria Rendeira”, termo regional

usado para designar mulheres trabalhadoras habilidosas na confecção de rendas. Estes

últimos se caracterizam pelo porte de um carrinho de mão no qual transportam

utensílios domésticos e outros pertences para conseguirem ter mais autonomia no

trecho.

Por fim, Justo destaca a presença de problemas de saúde mental entre os

andarilhos, pois “boa parte” deles são egressos de hospitais psiquiátricos, sob a

influência de práticas de desospitalização. Neste sentido, parte dos andarilhos também

é composta por “loucos em trânsito”, como denomina Justo (2000). Como nem todos

os “andarilhos” manifestam evidências de sofrimentos psíquicos, aceitaremos o termo

“andarilho louco de estrada” (JUSTO, 2004b) para discriminar este subgrupo.

2.3.7 - Loucos de rua

Parece-nos, entretanto, que a loucura não está restrita a boa parte dos

andarilhos. Se Justo (2000) destaca a existência de delírios e alucinações em

andarilhos de estrada, a psicanalista Miriam Chnaiderman (entrevistada por STYCER,

1993) observa comportamentos similares em pessoas que denomina “loucos de rua”.

Chnaiderman destaca que são pessoas que “fundam uma cidade própria”, pois os

espaços para elas possuem outros sentidos que são “invisíveis” para os “não-loucos”:

“Construir uma casa imaginária em frente a uma padaria é uma forma de o louco

permanecer vivo”.

A psicanalista aponta que os loucos de rua normalmente ficam em um local

fixo e recebem auxílio da vizinhança, sendo por vezes figuras bastante conhecidas

pelos moradores da região. A reportagem destaca que, entre os próprios “mendigos”,

a figura do “louco de rua” é logo percebida como distinta dos demais personagens da

rua.

Em sua pesquisa na cidade de São Paulo, Frangella (2004) corrobora a

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presença dos loucos de rua, pessoas com visíveis sofrimentos psíquicos, que vivem

solitárias, “alheias a tudo”, com episódicas “explosões psicóticas”, tais como delírios

e alucinações.

Interessante analogia pode ser realizada com o estudo de Snow e Anderson

(1998) no contexto norte-americano da década de 1980. Dentre os grupos de rua

classificados pelos autores, estão os “doentes mentais”, pessoas que passaram

anteriormente por hospitais psiquiátricos e tinham freqüentemente alucinações e

delírios. Os autores descrevem que os “doentes mentais” tendiam a ficar isolados,

pois eram muito estigmatizados pelas próprias pessoas em situação de rua.

Assim, podemos destacar os “loucos de rua” como um grupo específico de

pessoas em situação de rua que apresentam diferentes maneiras de representar o

mundo e nele viver.

2.4 - Situação de rua como processo

Se iniciamos o presente capítulo destacando debates sobre a conceituação, o

terminaremos da mesma maneira. O conceito visa apreender a realidade tomando-a de

maneira abstrata, em sua generalidade, isolamento e imutabilidade. É um primeiro

passo necessário, porém, insuficiente. Podemos dizer que é uma primeira

aproximação das pessoas em situação de rua enquanto objetos de estudo.

Isto porque os conceitos e divisões em grupos logo se tornam discutíveis

quando se problematiza os mesmos a partir de processos. Como explicar, por

exemplo, a experiência de rua de Anderson, que viveu alguns anos nas rodovias,

raramente entrando em cidades, e, posteriormente, começa a pernoitar nas ruas da

cidade e, à vezes, em albergues? Seria ele um trecheiro, albergado ou morador de rua?

Assim, neste momento devemos tomar a situação de rua como processo, não

mais como conceito.

Em pesquisa anterior (MATTOS, 2003), investigamos a identidade da pessoa

em situação de rua e vislumbramos cinco processos psicossociais. No entanto,

trabalharemos de maneira mais superficial em uma divisão da situação de rua em três

processos: a ida à rua ou processo de rualização, que descreve as características da

vida domesticada e os motivos que levam as pessoas a vivenciarem a situação de rua;

a vivência da situação de rua em termos concretos; e as (im)possibilidades de saída da

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rua.

Em uma outra perspectiva, os próximos capítulos seguirão essa lógica

processual. E mais, procurarão inserir esse processo inerente à situação de rua em um

contexto mais abrangente do que denominamos liquidificação da modernidade.

Além dessa face, os próximos capítulos completarão o olhar antropológico: se

até agora procuramos tornar familiar o que nos era estranho, a partir de agora

tentaremos tornar estranho o familiar. É o próprio esfacelamento da vida domiciliada

que será analisado. Veremos a situação de rua não mais da confortável posição de

observador à distância, mas como realidade que invade nossa vida cotidiana. Enfim,

discutiremos como a situação de rua pode surgir como situação-limite que escancara

as contradições de nossa vida contemporânea.

Capítulo 3 - A (des)ordem social moderna e os motivos de rualização

O primeiro recenseamento da população paulistana em situação de rua foi

realizado no ano de 1992, contando 3.392 pessoas (VIEIRA; BEZERRA; ROSA,

1992).

Nos anos de 1994 e 1996, a Secretaria da Família e Bem-Estar Social

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(FABES) fez nova contagem. Na época, este contingente era constituído por 4.549 e

5.334 pessoas, respectivamente.

A partir de 2000, a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE)

passou a realizar o recenseamento da população em situação de rua, pois no senso do

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) esta população é excluída por

não possuir residência fixa. Verificou-se em 2000 a existência de 8.706 (SCHOR;

ARTES, 2001), número elevado para 10.394 em 2003 (FUNDAÇÃO INSTITUTO

DE PESQUISAS ECONÔMICAS, 2003).

Ora, se compararmos os dados do início da década de noventa ao seu final, a

população em situação de rua quase triplicou. Quais processos sociais estariam

implicados no notável aumento deste contingente na década de 1990?

A vida contemporânea é palco das mais diversas transformações em várias das

esferas da vida social. Conhecer tais transformações talvez nos leve a responder a

questão acima.

No âmbito econômico se discute bastante a globalização da economia, cuja

integração do mercado internacional extrapola qualquer limitação em termos de

fronteiras nacionais. Ocorre também a primazia do capital financeiro ou a

financeirização do capital, cujo produto é a prevalência de especulações nas bolsas de

valores em detrimento das reversões de capital na esfera produtiva. Ao mesmo tempo,

a própria esfera produtiva passa por uma reestruturação, com severos efeitos sobre o

mundo do trabalho, dentre eles a precarização das relações de trabalho e o

desemprego.

O campo político também traz suas perplexidades. A globalização desafia a

própria soberania dos Estados nacionais, ao passo que o ideário neoliberal propaga a

redução desse enfraquecido Estado em suas interferências na economia e mesmo na

área social. Há quem diga que o poder centralizador do Estado já se esfacelou há

tempos, com a propagação de um poder capilar, cujos tentáculos atravessam e são

sustentados pelos indivíduos. O próprio mote dos movimentos sociais abandonou

aspirações universais, como o combate ao capitalismo e a revolução social socialista,

e se rendeu a particularismos fragmentados como os movimentos sociais de

identidades culturais (ALVES, 2001; EAGLETON, 1998). Os movimentos de massas

em manifestações nas ruas, com claros objetivos políticos, dão lugar a uma miríade de

ONGs pouco politizadas, com o crescimento de um Terceiro Setor (esfera pública

não-estatal).

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Os próprios marcos do processo político se transformam. Nesse sentido, as

idéias de Paul Virilio parecem pioneiras. Este autor destaca o quanto o assalto do

poder, antes ligado à ocupação e fixação de lugares, ao combate corpo a corpo em

uma guerra territorial, cede lugar a uma dromopolítica com o “desaparecimento dos

lugares” ou a “negação do espaço”. O poder é exercido pelo controle do movimento,

pois a lógica passa do binômio saber/poder ao binômio “poder/mover” (VIRILIO,

1997, p. 57). Assim, o “movimento dos vetores”, produtores de velocidade, faz com

que a localização geográfica perca seu valor estratégico. A predominância dos

veículos vetores faz com que a velocidade seja primordial: “...hoje, a velocidade é a

guerra, a última guerra” (VIRILIO, 1997, p. 127).

Ora, se antes o panóptico de Foucault era a “arquimetáfora do poder

moderno”, hoje vivemos em uma configuração “pós-panóptica”. Ou seja, o poder não

é mais exercido pelo encontro em um mesmo espaço dos internos com os

administradores, no qual o poder destes últimos era fruto de sua mobilidade pelo

mesmo local onde os primeiros eram fixados e imobilizados. O poder tornou-se

“extraterritorial”, pois se move de forma instantânea a partir da “velocidade do sinal

eletrônico”. Seus administradores também não permanecem no mesmo local ou são

facilmente identificados, pois nas relações de poder pós-panópticas os mecanismos de

poder alcançam a “pura inacessibilidade” (BAUMAN, 2001, p. 18).

No âmbito epistemológico, parece haver um abandono ou descenso das

grandes metanarrativas, como o marxismo e o freudismo. Estas perderiam terreno

para pequenos discursos locais, responsáveis por oferecer mecanismos de atribuição

de sentido à realidade que se caracterizariam pelo pluralismo.

No âmbito estético e cultural essas transformações seriam ainda mais extensas.

Porém, pensamos que a lista de metamorfoses no mundo contemporâneo já é

suficiente, pois se são transformações factíveis e indubitáveis, o sentido atribuído às

mesmas parece bastante controverso e complexo. Senão, vejamos.

Há, sumariamente, três posições que gostaríamos de destacar.

A primeira delas é muito bem representada pelo clássico de Marshal Berman,

Tudo que é sólido desmancha no ar. Como um dos principais expoentes na Nova

Esquerda norte-americana, Berman (1986) destaca que as transformações do mundo

contemporâneo se restringem e podem ser entendidas no marco teórico da

modernidade. Para tanto, divide a “modernidade” em três fases distintas: a primeira

do século XVI ao fim do século XVIII, cujo turbilhão social e contradições de idéias

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marcam o início da experiência da modernidade; de 1790 ao século XX, a segunda

fase da modernidade é caracterizada pela sua negação veemente a partir de vozes que

acreditavam na transformação do mundo pelos homens, como Karl Marx (1818-1883)

e Friedrich Nietzsche (1844-1900); e, por fim, a partir do século XX, estaríamos

vivendo uma terceira fase da modernidade caracterizada por uma “regressão” dos

pensamentos sobre a modernidade, seja no entusiasmo ingênuo dos futuristas, seja no

pessimismo paralisante de Max Weber (1864-1920) ou Hebert Marcuse (1898-1979).

Com sua crítica à terceira fase da modernidade, Berman defende a retomada de uma

postura crítica frente a modernidade, típica dos modernistas do século XIX, como,

principalmente, Marx e Nietzsche.

De maneira similar, o filósofo Sérgio Paulo Rouanet (1987) lança mão de

ampla gama de argumentos para refutar a idéia de que houve uma ruptura histórica

com a modernidade, ruptura defendida pelos pós-modernistas. Tal como Berman,

Rouanet também defende uma postura, um tanto saudosista, de retomada autocrítica

do projeto iluminista da modernidade, a partir do que denomina como

“neomodernidade”.

Esta primeira posição destaca autores que refutam a existência de uma ruptura

com a modernidade, que estaria no cerne das transformações contemporâneas. Assim,

viveríamos um momento essencialmente moderno e os problemas de toda ordem que

surgem atualmente seriam solucionados pela retomada de uma crítica à modernidade

típica do século XIX ou um retorno ao projeto iluminista, forjado por uma razão

autocrítica.

Há autores que concordam com Bermam e Rouanet no fato de não haver uma

ruptura precisa da modernidade. No entanto, estes parecem se ater à idéia de que

vivemos uma “crise” da modernidade ou, mais exatamente, uma agudização da

modernidade que pode preludiar o seu fim. O sociólogo Anthony Giddens (1991)

parece representar muito bem esta posição com seu conceito de “alta modernidade”

ou “radicalização da modernidade” - que aponta importantes rupturas com a

“modernidade clássica”, por assim dizer.

O antropólogo francês Marc Augè (1994) pode ser aproximado dessa posição

quando postula o conceito de “supermodernidade”, caracterizada por algumas

“figuras de exagero”, como a “superabundância factual”, “superabundância espacial”

e “individualização dos procedimentos”. Estes três processos seriam mote de uma

nova relação do ser humano com o tempo, espaço e consigo mesmo.

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O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) parece ser a referência mais

estudada, quando faz uma separação entre a “modernidade sólida” e “modernidade

liquida”. Estaríamos vivenciando uma fase líquida da modernidade, caracterizada

principalmente desregulamentação e privatização das tarefas modernas.

Em suma, a segunda posição abrange autores que não professam uma ruptura

histórica com a modernidade, mas fazem alusão a agudização de determinadas

condições e a transformação substancial de outras, permanecendo, no entanto, nos

marcos da modernidade.

Por fim, a posição mais debatida é àquela dos defensores de que vivemos em

uma condição pós-moderna, marcada por uma ruptura definida com a modernidade.

Nesta posição, encontra-se uma gama tão variada de autores que devemos fazer uma

delimitação mais precisa. Há autores, como o conservador Daniel Bell, que acreditam

em uma sociedade pós-industrial, que estaria rompida com o modo capitalista de

produção. Tal posição nos parece bastante inverossímil, fato que nos leva a enfatizar

o conceito de pós-modernidade daqueles autores que o compreendem como

necessariamente vinculado ao capitalismo.

Nesse sentido, o autor clássico é Fredric Jameson (1985), que pondera que o

pós-modernismo constituiria a lógica cultural de uma nova fase do capitalismo, o

capitalismo multinacional, postulado por Ernest Mandel.

Outro autor que julgamos emblemático nessa posição é David Harvey, com

sua obra de fôlego A condição pós-moderna. Harvey (2001) defende a pós-

modernidade como uma condição histórica do homem contemporâneo, crivada em

uma nova fase do capitalismo denominada “acumulação flexível”. O autor parece

esboçar uma periodização para o advento da pós-modernidade no maio de 1968.

O editor da New Left, importante revista do marxismo ocidental, Perry

Anderson (1999), faz um minucioso estudo sobre as origens do termo modernidade e

pós-modernidade. Ao final de seu livro, com toda sua propriedade de renomado

historiador, destaca a pós-modernidade como construção histórica oriunda das

transformações ocorridas a partir da Segunda Guerra Mundial.

Há, enfim, importante produção de Michel Maffesoli (2004), autor que postula

uma ruptura com o tripé que sustentava a modernidade ou “pós-medievalidade”: o

Indivíduo, a Razão e a História. Assim, o momento atual de pós-modernidade traria

alguns elementos típicos do período medieval, tais como a importância dos mitos,

emoções, do “tribalismo” e “presenteísmo”.

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De nossa parte, nos alinhamos à idéia de que há, de fato, um processo de

esfacelamento das principais instituições que sustentavam a ordem moderna, uma

desfiguração da modernidade que opera como processo social mais geral que explica

as trajetórias mais específicas de rualização. A principal referência que alicerça essa

proposição provém da idéia de Bauman (2001) sobre a liquidificação da modernidade.

Segundo esse autor, a construção da modernidade se fez a partir da

necessidade de transformação ininterrupta do mundo seguindo o ideal da ordem. Tudo

deveria estar ordenado de maneira regular e estável. Tudo deveria ser harmônico e

puro, ocupando exatamente seu lugar determinado, de maneira a ter sua

funcionalidade específica no conjunto. Tudo deveria se guiar para a perfeição, ideal

sempre logrado mas nunca alcançado, pois sua concretização pressupõe o fim da

transformação.

A razão era o alicerce desse projeto moderno. Tudo deveria ser claro,

coerente, pensado e comprovado. Tudo deveria ser racionalmente planejado em seus

mínimos detalhes, com o importante auxílio da ciência.

Os indivíduos modernos eram o motor dessa transformação. Após séculos de

submissão aos desígnios divinos, agora era o ser humano que ocupava o centro do

universo, cônscio de sua capacidade de controlar e transformar o mundo e a natureza

em conformidade com a sua razão.

A história era o palco onde desfilavam todos os elementos. Havia uma

perspectiva bastante positiva sobre o futuro. Havia a certeza na construção de um

mundo melhor. “Nada será como antes, amanhã” - dizia a canção que entoava nos

ouvidos dos indivíduos racionais modernos.

O mundo seria assim racionalmente planejado, ordeiro e controlado em prol da

felicidade humana. A construção dessa nova ordem mundial realmente sólida

dependia, no entanto, do esforço de todos. Seria digno o indivíduo que abrisse mão de

seus interesses particulares em prol do interesse comum, da coletividade, da

sociedade.

Dessa maneira, Bauman (1998) afirma que um dos símbolos mais vivazes da

modernidade em seu início vem de Freud, quando destaca que o ingresso no mundo

civilizado impõe uma mal-estar: trocar um quinhão de liberdade individual por um

quinhão de segurança.

Assim, a modernidade desse período oferecia aos indivíduos diversas “redes

de segurança”. As regras sociais eram claras e estáveis, não exigindo dos indivíduos o

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trabalho de nelas pensar: bastava obedecê-las. Os modelos de conduta eram todos

previamente estabelecidos, não deixando arestas a confusões e indecisões: bastava

adaptar-se. Essas uniformização e homogeneização tinham como sustentação algumas

rígidas instituições sociais. Havia o dever de obedecer aos padrões e convenções do

Estado, da família e do trabalho. Como contrapartida, ofereciam a satisfação de viver

segurança, munido de certezas e do sentimento de proteção.

Além de redes de proteção, eram também “estruturas de eternidade”. A

angústia gerada pela consciência da morte, da finitude de possuir uma presença

temporária no mundo, faz com que indivíduos criem estratégias para alcançar a

“imortalidade”. Pois se a vida individual é fadada a perecer, as instituições sociais

estáveis e rigidamente organizadas permaneciam depois de sua partida. Contribuir

para o fortalecimento dessas instituições conferia ao indivíduo a sensação de que se

imortalizou: deixou suas marcas em um bem coletivo que vai carregar seu nome para

as futuras gerações. Essas “obras coletivas de produção da imortalidade”, forneciam

aos indivíduos um sentido à vida e uma “segurança existencial” (Bauman, 2000).

Tudo isso assim permaneceu enquanto essas instituições, como a família e a

nação, permaneceram duradouras e dignas de confiança. Daí o orgulho de pertencer e

construir uma nação. Daí a idéia de constituir família e ter filhos como deixar um

legado à posteridade.

Nesse mundo da ordem assegurada por instituições estáveis e reguladoras não

se tolerava desordens, caos, ambivalências e ambigüidades. Tudo aquilo que fugia à

norma, racional e explicitamente demonstrada, deveria ser corrigido, adaptado aos

padrões de normalidade. Daí ser o “Panóptico”, analisado por Foucault (1977), o

símbolo dessa modernidade: disciplinar, normalizar a partir do assujeitamento de

todos à uniformidade, à monotonia, à regularidade e à docilidade. Daí a construção de

grandes organizações disciplinadoras, como as fábricas, escolas, prisões, hospitais

psiquiátricos e albergues.

Esse era o projeto e as realizações do “estágio sólido da era moderna” ou

simplesmente modernidade sólida (BAUMAN, 2001). Em linhas gerais possuía como

principais características o fato de que chegaríamos a construir coletivamente no

futuro um mundo totalmente harmônico e perfeito, a partir da razão; uma sociedade

boa e justa na qual tudo estaria em seu devido lugar, todas as necessidades seriam

satisfeitas e não haveriam injustiças, desigualdades, conflitos e contradições.

Um dos traços definidores da modernidade sólida era seu “modo de vida

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sedentário”. Prezava-se pela fixação territorial, pelo assentamento, em termos físicos

e vivenciais. Ou seja, pregava-se a imobilização, a estabilidade, a regularidade. Dessa

maneira, Maffesoli (2003) destaca ser a passagem do nomadismo ao sedentarismo,

assim como a intensa domesticação típica do Estado moderno, uma característica

central da modernidade. Na domesticação se condensam todas as facetas do projeto

moderno: racionalidade, funcionalidade, estabilidade, mesmice, monotonia,

regularidade.

O símbolo dessa época é o indivíduo domesticado. O termo domesticação é

utilizado propositadamente por possuir uma ambigüidade interessante: refere-se à

casa, ao ambiente doméstico, mas também à subordinação ao controle, a perda da

autonomia. Podemos dizer que a construção da modernidade foi um período de

domesticação do homem, como fazemos com os “animais domésticos”. Seus instintos

e emoções eram tidos como inferiores e deveriam ser submetidos à razão, à coerência.

Suas vontades espontâneas deveriam se subordinar as regras e convenções. Havia

uma rotina a seguir, havia um seqüestro do cotidiano pelos mecanismos de controle

social: de casa ao trabalho, do trabalho para casa. Tudo rigidamente controlado pelo

relógio. Todos em seus devidos lugares, na fábrica e na família. E tudo isso repetido

diariamente, como algo monótono, estabilizado, sem imprevistos, mudanças ou

surpresas.

Paul Virilio, destacando algumas características da dromopolítica, emprega

constantemente o termo “domesticação” nesse sentido. Deduz a raiz do conceito

atrelado à formação do modo de produção capitalista com o intenso êxodo rural que

precedeu a formação das cidades palco da Revolução Industrial. Nessa ocasião, o

proletário recém chegado do campo era sempre associado a animais selvagens, ao

mistério e à ferocidade. O ato de domesticar significaria habituar o selvagem a

conviver submisso ao civilizado. Era deixá-lo sob controle. Esse controle era exercido

pela fixação, ou privação do movimento, por meio de “estratégias de inanição”, como

importante propriedade da “violência dromocrática”. Assim, se cria uma “categoria de

corpos inteiramente domesticados” (1997, p. 80).

Nesta mesma linha, Maffesoli (2003, p. 24) faz alusão à “violência totalitária

moderna” que usufruía da domesticação como sinônimo de dominação: “Fixar

significa a possibilidade de dominar”. Trata-se, sobretudo, de um domínio sedentário

sobre a vida nômade, exercido pela regulamentação da circulação e pela imobilidade.

É interessante notar que esta circulação discutida por Maffesoli não é apenas física,

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mas diz respeito à circulação de saberes, de informações, de possibilidade de mover

os próprios alicerces das instituições que sustentavam a vida moderna. Logo, era a

imobilidade das pessoas em suas casas e nas fábricas, mas também a imobilidade de

seus conhecimentos que sustentavam uma vida domesticada: imobilidade da ordem

que era preservada a partir do combate a qualquer coisa que se move e foge ao

controle. Em suas palavras: “Desde então [da modernidade] o ideal do poder é a

imobilidade absoluta, da qual a morte é, com toda segurança, o exemplo acabado”

(2001, p. 25).

Não é à toa que o clássico 1984, escrito por George Orwell, é tido como o

símbolo desse tempo. A ameaça do autoritarismo, a tendência de sufocar a liberdade

individual, também caracterizavam essa “modernidade

pesada/sólida/condensada/sistêmica”:

A sociedade totalitária da homogeneidade compulsória, imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente no horizonte (...) Essa modernidade era inimiga jurada da contingência, da variedade, da ambigüidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas ‘anomalias’; e esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais fossem as primeiras vítimas da cruzada (BAUMAN, 2001, p. 33).

Os tempos mudaram. Houve um colapso dessa idéia de construção de um

futuro melhor por indivíduos históricos, coletiva e racionalmente engajados. Busca-

se, agora, a satisfação imediata de desejos renovadamente criados de maneira

contínua. Houve uma “desregulamentação privatizada”, a partir da qual a regulação

da vida por interesses coletivos deu lugar ao antigo lema da economia liberal: laissez-

faire (viva e deixe viver). É o mundo do “cada um por si e Deus contra todos”, como

dizia a canção, no qual o indivíduo isolado é responsável por sua vida e pelas tarefas

modernizantes. Essas são as facetas do que Bauman (2001) chama de “modernidade

líquida”, na qual a mobilidade, a ausência de forma definida, substituem as regras

imutáveis e os modelos rigidamente estabelecidos. Pensemos no processo de fazer

uma vitamina: peguemos maças, mamões, bananas, leite e coloquemos no

liqüidificador. Esse exemplo meio inusitado faz ver que o resultado é um líquido

disforme, totalmente diferente dos ingredientes sólidos, nomeados e definidos que o

constituem. Aquela sociedade moderna passou por um processo similar: se

liquidificou.

Isso não quer dizer que deixou de ser moderna:

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O que a faz tão moderna como era mais ou menos há um século é o que distingue a modernidade de todas as outras formas históricas do convívio humano: a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou de criatividade destrutiva, se for o caso: de ‘limpar o lugar’ em nome de um ‘novo e aperfeiçoado’ projeto; de ‘desmantelar’, ‘cortar’, ‘defasar’, ‘reunir’ ou ‘reduzir’, tudo isso em nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro - em nome da produtividade ou da competitividade) (BAUMAN, 2001, p. 36).

Assim, enquanto antes da modernidade havia a crença na criação imutável de

um mundo, o homem moderno aprende que ele próprio deve determinar sua vida e

que deve compulsoriamente transformá-la, estar em mobilidade, fazer diferente.

Trata-se do que Bauman (2005) chama de “cultura do lixo”. A permanência,

estabilidade e durabilidade (nas instituições, na rotina, dos lugares) dá espaço ao

imediatismo, instabilidade e impermanência. Os produtos consumidos, os trabalhos e

as relações passam a ser considerados objetos para a satisfação instantânea e

obsolescência imediata. Tudo deve ser usufruído ou vivido intensamente no presente

e logo depois descartado. A fixação em um trabalho, em uma relação amorosa, a

imobilidade e permanência de qualquer coisa é tida como perniciosa, pois fecha as

portas para a vivência das outras múltiplas possibilidades. Não há projetos de vida

para o futuro, metas a longo prazo, pois se sabe que as regras e situações mudarão

antes do projeto se concretizar. Logo, todos os vínculos que unem as pessoas às

outras, aos lugares, aos objetos são frágeis e superficiais, sendo descartados com a

mesma facilidade com que foram conquistados.

Essa impermanência atinge de forma visceral aquelas instituições que na

modernidade sólida tinham justamente o objetivo de serem permanentes para

promover a segurança existencial dos indivíduos. A desregulamentação promove o

“colapso da confiança” ou o “desmantelamento das redes normativas e protetoras”:

A desintegração da rede social, a derrocada das agências afetivas de ação coletiva, é recebida muitas vezes com grande ansiedade e lamentada como ‘efeito colateral’ não previsto da nova leveza e fluidez do poder cada vez mais móvel, escorregadio, evasivo e fugitivo (...) Qualquer rede densa de laços sociais, e em particular uma que esteja territorialmente enraizada, é um obstáculo a ser eliminado (BAUMAN, 2001, p. 21-2).

Assim, as regras claras de conduta, a segurança na continuidade das

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instituições que geravam um sentido à vida e uma sensação de imortalidade, se

liquidificam. Como as estruturas de eternidade são tão frágeis e descartadas como a

vida individual, as pessoas começam a sentir a morte como algo sem sentido e como o

fim da vida.

Este é um processo que Bauman (2001) destaca como sendo a precarização do

mundo. O esfacelamento das redes de proteção geram um “mundo precário” ou a

“precariedade da existência social”. Esta precariedade parece abarcar o conjunto da

vida social e deve ser entendida como uma “experiência combinada da falta de

garantias (de posição, títulos e sobrevivência), da incerteza (em relação à sua

continuação e estabilidade futura) e de insegurança (do corpo, do eu e de suas

extensões: posses, vizinhanças, comunidade)” (BAUMAN, 2001, p. 184).

Isso faz com que a vida individual seja experimentada como um “caldeirão de

unsicherheit”, palavra alemã que significa, ao mesmo tempo, a insegurança, incerteza

e falta de garantias. A existência ganha em dinamismo e gera um sentimento de

angústia por ter que se construir a todo momento; ansiedade difusa por ser sempre

pressionado a assim proceder; insegurança pela falta de proteção antes fornecida pelas

instituições sociais; incerteza pela ausência de regras nas quais pautar o cotidiano; e

medo por não saber se tudo isso vai dar certo (BAUMAN, 2000).

Logo, nessa “versão individualizada e privatizada da modernidade”

(BAUMAN, 2001, p. 14) as equações se invertem: agora o indivíduo troca um

quinhão de sua segurança pessoal, um grande quinhão, por um quinhão de liberdade,

sempre compulsória. Se antes as vontades individuais deveriam ser abdicadas em prol

do coletivo, hoje é o coletivo é sacrificado. Se antes o mundo público colonizava a

esfera privada, cerceando a liberdade individual, hoje é a esfera privada que coloniza

o público, fazendo com que os problemas individuais não originem discussões e

questões coletivas. Se a tendência antes era o autoritarismo, com tudo controlado pelo

Estado centralizador e disciplinador, a tendência atual é de total desregulação

fragmentada nos indivíduos isolados e solitários. Enfim: “A modernidade substitui a

determinação heterônoma da posição social pela autodeterminação compulsiva e

obrigatória” (BAUMAN, 2001, p. 41).

Num mundo em constante transformação e exigindo de seus indivíduos

deslocamentos ininterruptos, o sedentarismo dá lugar ao nomadismo. Os nômades,

perseguidos e tidos como “seres inferiores” e nocivos à ordem social, agora

predominam. Aquele indivíduo fixado, com estabilidade, seguro pelas agências de

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confiança, é capturado pelo imperativo do movimento. Ninguém deve fica parado,

buscar fixações, apegar-se de maneira duradoura a qualquer coisa. Todos devem estar

em constante nomadismo ocupacional, afetivo e identitário.

Maffesoli (2001 p. 81) destaca diversas facetas do nomadismo, sempre tido

como “ato fundador”, como a ruptura com a previsibilidade e controle, que permite

criar o novo. A vida do errante, que simboliza os tempos atuais de nomadismo, é

caracterizada pela exigência da aventura, por uma vida “pouco domesticada”. O autor

apreende a domesticação e o nomadismo como pares dialéticos. Trata-se da dialética

entre o fechamento e estabilidade e a “liberdade” e fluidez. A “antinomia entre a

estática e a dinâmica”, a cerca e a circulação. É uma dialética entre

“clausura/abertura”, entre “lar/aventura”. Como pares dialéticos, eles estão sempre

associados, um não existindo sem o outro. Este elemento é bastante discutido quando

Maffesoli fala da “vida dupla”: “Dialética sem fim da necessidade de segurança e do

desejo de desligamento. Ligação conflituosa entre o necessário sedentarismo e a

pulsão do outro lugar que, pontualmente, atormenta o corpo social” (2001, p. 103).

Em outras palavras, “...estamos divididos entre a nostalgia do lar, pelo que ele

tem de seguro, de matricial, pelo que ele tem de coercitivo e sufocante também, e a

atração pela vida aventurosa, que se move, vida aberta sobre o infinito e o indefinido,

com o que comporta de angústias e de periculosidades” (MAFFESOLI, 2001, p. 147).

Dessa forma, o nomadismo instaura a possibilidade de trilhar novos caminhos,

característicos da indefinição:

Assim é que a territorialização individual (identidade) ou social (instituição) tendo tomado, durante a modernidade, a importância que se sabe, dá lugar ao tempo de um jeito novo de fazer o caminho. O tempo de um êxodo maciço que, assumindo o contrapé das certezas identitárias ou das seguranças institucionais, enverede pelos caminhos aventurosos de uma nova busca iniciática de contornos ainda indeterminados (MAFFESOLI, 2001, p. 104).

Para Bauman (1998, p. 114), os tempos atuais de nomadismo são

simbolizados pelas figuras do “turista” e do “vagabundo”. O turista é uma metáfora

da evitação de fixação. Trata-se de estar sempre de passagem, não pertencer a lugar

nenhum mesmo estando nele, ou seja: “estar dentro e fora do lugar ao mesmo tempo”.

Assim, a “vida turística” se vale da não fixação como forma de proteção: poder sair

do lugar no momento em que se deseja, no momento em que se busca mais aventura

ou que o lugar já não promove mais intensidade. Tal condição dá a sensação ao turista

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de liberdade, autonomia ou independência. Bauman revela que esse deslocamento, no

entanto, não é planejado, ou não se busca um objetivo antecipadamente pensado,

como faziam os peregrinos, seus antecessores: “A peculiaridade da vida turística é

estar em movimento, não chegar”. Essa andança do “andarilho” é motivada pelo e

para o presente, busca-se satisfações imediatas e quando elas não são mais alcançadas

em um lugar muda-se para outro. Assim, a vida é como uma “estrada de pernoite”, e

essa liberdade para entrar e sair dá uma sensação de controle, mas um “controle

situacional”. Esta visão do efêmero, do flexível, do inconstante é que dá a estrutura do

turista. Trata-se da vida como um episódio, que não deixa rastros, não traz

conseqüências, “passa rapidamente pela história, sem fazer parte dela” (p. 116).

Deve-se destacar, ainda, que o turista se põe a vagar de maneira voluntária, em busca

de aventura e sensações mais intensas que a “rotina doméstica” não pode oferecer.

Trata-se de alguém que possui no seu imaginário uma casa, um lar, um local onde

abrigar-se quando cansar da viajem. Bauman destaca que esse lar é mais imaginário

do que real, mas de qualquer forma ele existe como uma sensação de segurança que

não se quer, mas é bom pensar que se tem.

Já a figura do “vagabundo” possui grande parte das características do turista,

excetuando-se o fato de que é uma pessoa que foi obrigada ao movimento, mesmo

querendo permanecer em seu lugar. São pessoas para as quais a viajem não expressa

uma manifestação da liberdade, pois a liberdade da errância é obrigatória, imposta: é

ser livre sem ter tido liberdade de escolher essa condição. Logo, se o turista vive a

liberdade no aventurar-se da viagem sem fim, os vagabundos experimentam a

liberdade quando não têm mais que se aventurar: “Para eles, estar livre significa não

ter de viajar de um lado para o outro. Ter um lar e ser permitido ficar dentro dele...”

(p. 117). Para o vagabundo a casa se torna uma sonho a ser alcançado, simbolizando a

segurança, proteção, estabilidade.

É assim que Bauman (1998, p. 118) destaca que o mundo atual pode ser

dividido entre turistas e vagabundos:

Sugiro-lhes que a oposição entre os turistas e os vagabundos é a maior, a principal divisão da sociedade pós-moderna. Estamos todos traçados num contínuo estendido entre os pólos do ‘turista perfeito’ e o ‘vagabundo incurável’ - e os nossos respectivos lugares entre os pólos são traçados segundo o grau de liberdade que possuímos para escolher nossos itinerários de vida. A liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação. Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais alta a posição alcançada na hierarquia social pós-

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moderna.

Assim, compreendemos que a sociedade contemporânea está mergulhada

nesse processo de liquidificação da modernidade. Essa passagem mais geral da

domesticação ao nomadismo dá o tom do que denominamos ser o primeiro processo

pelo qual passa a pessoa em situação de rua, que abrange a rualização. Tal como o

processo social de liquidificação, não consideramos que a ida para a rua é algo

premeditado, planejado, voluntário. No caso da pessoa em situação de rua, trata-se de

um nomadismo compulsório, como a imagem do vagabundo descrita por Bauman.

Seja como for, a característica primordial do nomadismo, na opinião de Maffesoli

(2001), permanece: trata-se de um “ato fundador”, uma imobilidade existencial

crivada no sentimento de angústia pela necessidade de criar uma nova maneira de

viver distante das instituições que domesticavam e davam a segurança da imobilidade.

Vimos que concepção de situação de rua adotada na presente pesquisa se

relaciona com a mobilidade originada da ausência de residência fixa, as

transformações na esfera da família e do trabalho, assim como o desrespeito aos

direitos sociais do cidadão. Assim, focaremos a análise da desintegração de três

instituições: o trabalho, a família e o Estado. Veremos o processo de domesticação

como uma construção histórica moderna, fundada no trabalho assalariado, na família

nuclear burguesa e no Estado do Bem-Estar social. Observaremos como a

liquidificação dessas instituições enseja o nomadismo compulsório representado pela

rualização, a partir da constituição de uma existência precária, fundada na

precarização da vida, mas também que pode preludiar a construção de novas formas

de se experimentar a vida.

3.1 - “No olho da rua”: situação de rua e precarização das relações de trabalho

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“Desta forma, mesmo na conjuntura da sociedade que é mais favorável ao operário, o resultado fatal para o trabalhador é o trabalho exagerado e a morte precoce, a deterioração em máquina, a submissão ao capital que se acumula em intimidante oposição a ele, nova concorrência, a morte, à fome ou a mendicância para uma parcela dos trabalhadores (...) segue-se que a miséria social constitui o objetivo da economia”.

Karl Marx

A proposição defendida neste trecho de nossa pesquisa é a seguinte: a situação

de rua é uma construção social atrelada à desfiguração do trabalho moderno

assalariado. Tal desfiguração ocorre em meio à precarização das relações de trabalho.

Para compreender essa afirmação, primeiramente devemos entender como se

originou e o que se quer dizer com a expressão “trabalho assalariado moderno”.

As raízes do trabalho assalariado certamente estão ligadas à constituição do

modo capitalista de produção. Karl Marx, em diversas ocasiões, destaca que o

trabalho assalariado é uma das condições históricas necessárias para o capitalismo,

pois sua formação está vinculada à “separação entre produtor e meio de produção”

(MARX, 1867/1985, p. 262). Ou seja, o produtor que é proprietário dos meios de

produção, a partir dos quais produz os bens necessários para a sobrevivência, não se

submete a trabalhar para uma outra pessoa. Isto só ocorre, segundo Hubermann,

quando não há outra possibilidade:

[Os trabalhadores] não o fazem por gosto, mas porque são obrigados, a fim de conseguir recursos para comprar alimentos, roupa e abrigo, de que necessitam para viver. Destituídos dos meios de produção, não têm escolha. Devem vender a única coisa que lhes resta - sua capacidade de trabalho, sua força de trabalho (1936/1984, p. 174).

Portanto, quando o trabalhador não possui nada senão sua própria vida é

levado a vendê-la como mercadoria, chamada força de trabalho, para um outro que é

proprietário dos meios de produção, em troca de uma pequena parte do que produziu

(salário).

É deste trabalho que falamos. No mundo europeu, ainda segundo Marx

(1867/1985), o trabalho assalariado se constituiu a partir da violenta “expropriação do

povo de sua base fundiária”, ou simplesmente expulsão do camponês de sua terra,

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durante finais do século XV e início do século XVI.

No caso brasileiro, este fenômeno possui outras características e ocorreu mais

recentemente. Ao discutir a formação do capitalismo no Brasil, Francisco de Oliveira

(1988) descreve a passagem de um modelo agrário-exportador para a predominância

da estrutura produtiva de base urbano-industrial, principalmente após a Revolução

burguesa de 1930. O Estado teve papel fundamental na regulamentação da força de

trabalho e seu preço, por meio da legislação trabalhista. Trata-se de uma outra forma

de transformar o homem do campo em trabalhador assalariado.

Inicialmente, o trabalhador assalariado vivia em condições realmente

desumanas, como descreve Marx (1867/1985): trabalhava por quatorze horas em

locais em que mal conseguia respirar, em que sofria acidentes, nos quais demorava

horas para chegar até o trabalho e recebia um salário de fome. Não se trata de

exagero. Basta fazer uma análise dos documentos da época (século XIX) para notar

que algumas pessoas trabalhavam 18 horas por dia, incluindo crianças de 5 anos de

idade. Seria possível pensar em uma criança de 2 anos trabalhando em uma indústria?

Em um documento oficial de agosto de 1934, citado por Hubermann (1936/1984, p.

128), é isso que ocorria na região de Connecticut, nos Estados Unidos.

De certa forma, as condições dos trabalhadores assalariados não

permaneceram as mesmas. Movimentos sindicais, movimentos sociais de

trabalhadores, influência direta de partidos de esquerda e indireta de revoluções

socialistas foram acontecimentos que forçaram os capitalistas a acatar algumas

reivindicações dos trabalhadores.

Uma das épocas áureas, sob o ponto de vista dos direitos trabalhistas, foi um

período que podemos chamar de fordismo. Trata-se das aplicações das idéias de

Henry Ford (1863-1947), cuja influência extrapolou em muito a organização do

trabalho no interior da fábrica.

Como aponta Heloani (2003), o fordismo incluía um projeto social de

dimensões macroestruturais. Este projeto estava alicerçado em um “círculo virtuoso”

da economia, cuja retroalimentação perpassava pelos seguintes momentos: elevação

da produtividade, mediante a utilização de tecnologias; crescimento do salário real e,

consequentemente, maior poder aquisitivo do trabalhador que redundava em elevação

do consumo; por fim, esta elevação precipitava um aumento da produção e expansão

dos investimentos que alimentavam o círculo ao promover o crescimento do lucro e

necessidade de elevação na produtividade (HELOANI, 2003, p. 65).

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Heloani (2003) ressalta, ainda, que essa “equação fordista” estava sustentada

pelas bases de um comércio exterior favorável e, principalmente, de um Estado de

Bem-Estar social atuante. Este proporcionaria ao trabalhador elevar a demanda de

consumo, na medida em que algumas de suas necessidades básicas para a

sobrevivência eram oferecidas pelo Estado - tais como a saúde, educação, transporte e

segurança pública.

O projeto fordista, atrelado à social-democracia, começa a ganhar prestígio

após a crise de 1929 e a publicação da obra Teoria geral do emprego, do juro e da

moeda, do economista John Keynes (1883-1946), em 1936, que reforça suas idéias

centrais. A partir de 1935, o modelo fordista começa a abarcar o conjunto da

economia, processo que se expande após a Segunda Guerra Mundial. Assim, foram

nas décadas 1950 e 1960 que o fordismo alcançou seu auge.

Em teoria, o fordismo pretendia gerar emprego para todos os trabalhadores,

aumentar seus salários para que eles pudessem consumir mais e possuir a ajuda de um

Estado que forneceria educação, saúde e segurança de qualidade a todos os cidadãos.

Que emprego era esse? Tratava-se de um emprego regular por tempo

indeterminado, de carteira registrada, garantindo todos os direitos trabalhistas e

rendimentos estáveis.

Não era apenas a segurança financeira e trabalhista que era sustentada no

fordismo. Havia também uma segurança existencial resguardada. Como destaca

Bauman (2005), a atividade profissional permitia fincar raízes. O trabalhador possuía

uma estabilidade profissional que lhe permitia seguir uma carreira sólida durante

muitos anos na mesma empresa. Os procedimentos e as normas de conduta eram

explícitos e bastava o trabalhador galgar pacientemente os degraus estabelecidos pela

organização para alcançar seu êxito profissional. Enfim, a organização oferecia uma

estrutura profissional estável na qual podia se confiar, dando a sensação de segurança,

certeza e garantias. Caso o trabalhador fosse pego de surpresa por alguma vicissitude

imprevista, também poderia contar com a proteção do Estado.

Como toda segurança típica da modernidade sólida, a vida do trabalhador no

mundo fordista tinha seu preço: a liberdade individual. Heloani (2003) fala da

“modelização da subjetividade” do trabalhador a partir da organização do trabalho

sob o jugo do fordismo e taylorismo. Rígida separação entre quem pensa e organiza o

trabalho e aquele que executa; rígida hierarquia a ser seguida; rigoroso controle sobre

as ações do trabalhador dentro da fábrica e fora dela, havendo mesmo uma rede de

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espécies de detetives fabris que inspecionavam a vida particular dos trabalhadores,

seus hábitos, suas relações familiares e onde gastava seu dinheiro.

Para Bauman (2001), era uma época de “capitalismo pesado”, no qual

trabalhador e capital eram fixados e imobilizados dentro dos muros das fábricas.

Chega a afirmar que os altos salários pagos por Ford eram uma forma de impedir a

mobilidade do trabalhador na busca de outra atividade.

Logo, o trabalho tinha um papel fundamental no controle da vida cotidiana sob

a égide do sedentarismo. Era uma vida caracterizada pela domesticação. O

trabalhador tinha seus horários fixados, todos seus movimentos e condutas eram

racionalmente calculados, vigiados, e deveriam ser executados conforme os padrões

uniformes, seja quando se debruçava sobre a linha de produção, seja em suas

atividades fora do trabalho. Cabia a ele apenas obedecer e se adaptar.

Ocorre, no entanto, como todos sabemos, que esse trabalho assalariado

moderno mudou bastante: podemos falar que as relações de trabalho se tornaram

precárias, ou que houve a precarização das relações do trabalho. Como isso ocorreu?

O ponto de partida é crise do fordismo e a reestruturação produtiva.

Em medos da década de 1960, inicia-se a implementação de novas tecnologias

e automação, bem como cresce a concorrência internacional, favorecendo o aumento

das importações e o déficit comercial. Logo, os empresários passam a repensar a

lógica fordista, principalmente na questão da carga tributária e repasse dos ganhos ao

trabalhador.

Data dessa época, segundo Heloani (2003), o princípio do questionamento do

projeto fordista. Na transição da década de 1960 para 1970, os capitais norte-

americano e europeu passam a modificar-se em sua macroestrutura: apostam na

importação de produtos de outros países, como o Japão, e na exportação de “plantas

industriais” para os países em desenvolvimento. O Estado passa a ser questionado

como algo “custoso e inoperante”, ao mesmo tempo em que ganha espaço a “lógica

monetarista” em detrimento ao Estado de Bem-Estar Social. Tal lógica passa a atacar

o fordismo ao desindexar os salários e implementar políticas econômicas de combate

à inflação por meio da imposição de um Estado-Mínimo e aposta na liberdade do

mercado. Eis o princípio da aplicação da lógica neoliberal, impulsionada pela crise

recessiva de 1974 e 1975, que se propagou inicialmente nos EUA, com Ronald

Reagan (1980), na Inglaterra de Margaret Thatcher (1979), no Japão de Ysuhiro

Nakasone (1982) e na Alemanha com Helmut Kohl (1982).

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A suplantação da etapa fordista do capital ensejou a necessidade de ordenar

uma reestruturação produtiva. Nos dizeres de Heloani: “Tal mudança no sistema

capitalista mundial refere-se às formas de emprego, às transformações tecnológicas,

às políticas financeiras, às ideologias predominantes, à organização do trabalho e,

logicamente, ao Estado” (2003, p. 97).

No âmbito tecnológico, a reestruturação produtiva ocorre atrelada à Terceira

Revolução Industrial, responsável pela intensificação da produtividade por meio da

implantação de novas tecnologias em microeletrônica e informática (SINGER,

1999a).

O capital, como tendência originária, passa a romper as barreiras dos Estados

nacionais e promover um aumento significativo do comércio internacional, de

maneira a promover a reorganização da divisão internacional do trabalho.

Convencionou-se denominar globalização este fenômeno que, segundo Singer

(1999a), passou por duas etapas principais: a primeira delas, do fim da guerra ao fim

dos anos sessenta, envolveu principalmente a transferência maciça dos recursos EUA

aos países europeus e ao Japão. Esta primeira etapa foi acompanhada pela

“multinacionalização” de empresas norte-americanas que construíam filiais em outros

países e transmitiam seus padrões de produção e consumo.

A segunda etapa da globalização, a partir da década de 1970, envolveu boa

parte do Terceiro Mundo e dos países que compunham a ex-URSS e seus antigos

satélites. Foi caracterizada pela criação de um grande mercado financeiro

internacional, no interior do qual o grande capital passou a transferir seu parque

industrial aos países em desenvolvimento.

Ou seja, aquele capitalismo pesado, que dependia da fixação de capital e

trabalho em um mesmo lugar para se autovalorizar, adquire agora uma vida nômade:

livra-se da fixação territorial, na medida em que se move fluidamente sem qualquer

barreiras; e também do trabalho, na medida em que se movimenta globalmente no

universo das especulações financeiras.

No contexto de competição internacional gerado pela globalização, Heloani

(2003, p. 89) aponta uma característica fundamental para a organização do trabalho:

“A globalização da produção induziu também a reestruturação produtiva do

paradigma industrial, posto que o desenvolvimento da informática permite a

flexibilização da linha de produção fordista”.

A proposta de flexibilização neoliberal abrange os processos de trabalho, os

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produtos, os padrões de consumo e o mercado de trabalho. Nesta última faceta, a

flexibilização está relacionada à adaptação do trabalhador às novas tecnologias, à

qualificação continuada e ao trabalho polivalente. Em relação ao mercado de trabalho,

há uma flexibilidade dos postos de trabalho e uma flexibilidade contratual:

Na verdade, os liberais colocam o trabalhador como um ‘sobrevivente’. Para não ser soterrado pelo desemprego, deve adaptar-se a subempregos, ocupações temporárias em que é coagido a desistir de direitos trabalhistas conquistados há décadas, como pagamento de horas extras e férias remuneradas (HELOANI, 2003, p. 117).

No âmbito financeiro, Mendonça (2004, p. 108/109) aponta, ainda, a

“supervalorização do capital na esfera financeira”. Com a redução dos custos de

produção, vinculada à reestruturação produtiva, as empresas tiveram maiores

possibilidades de ampliar seus excedentes de capital e deslocar os recursos da esfera

produtiva para a esfera financeira. Assim, lucra-se mais sem necessariamente investir

na produção: “Para se ter uma idéia dessa financeirização da riqueza, basta saber que

o volume total dos fluxos de capitais em circulação no mundo passou de US$ 400

bilhões, em 1987, para US$ 1,6 trilhão, em 1996!”.

No âmbito político, encontramos as conseqüências do neoliberalismo no

esvaziamento do espaço público em prol de uma privatização ou individualização das

discussões políticas. O Estado-Mínimo e máxima liberdade do mercado podem ser

interpretados dessa maneira: o mínimo de políticas públicas e máximo de projetos

privados. Com o desmantelamento do trabalho formal, base de sustentação dos

sindicatos, acaba-se por desarticular ou enfraquecer as organizações dos

trabalhadores. Em tom mais contundente, Heloani (2003) aponta o recrudescimento

do pensamento crítico, concomitante à “despolitização” radical.

No Brasil, a década de 1990 e a aplicação das idéias neoliberais do Consenso

de Washington vão explicar como se deram esse processos de reestruturação

produtiva.

Em novembro de 1989, na cidade de Washington, membros do governo dos

Estados Unidos e de instituições financeiras - como Fundo Monetário Internacional

(FMI), Banco Mundial e Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID) -

reuniram-se a partir do Institute Economics para a discussão de um projeto de

“desenvolvimento” das propostas neoliberais na América Latina. Meses depois, o

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economista John Willianson, do Institute for International Economics, redigiu famoso

documento conhecido como “Consenso de Washington”.

Segundo Teixeira (1998, p. 225), as dez propostas do consenso podem ser

resumidas em “dois pontos básicos: redução do tamanho do Estado e abertura da

economia. Em síntese, a política econômica deve ser feita em nome da soberania do

mercado autoregulável nas suas relações econômicas internas e externas”.

Foi também no ano de 1989 que o neoliberalismo recebeu mais um impulso

com a queda do Muro de Berlim, que simbolizava a derrocada dos socialismos

realmente existentes.

Para o Brasil, o ano de 1989 ficou marcado pela eleição do presidente

Fernando Collor de Mello que, malgrado tenha sua gestão marcada por turbulências

de toda ordem que redundaram em seu impeachment, propôs reformas que sinalizam a

adoção a um programa mais amplo: o neoliberalismo.

Segundo Teixeira (1998), Fernando Collor deu início à abertura da economia

interna ao mercado internacional por meio da redução de tarifas alfandegárias;

previsão de privatização como medida para o combate da inflação; recomendações de

reestruturação produtiva nas empresas para poderem competir com os produtos

importados.

Se Collor fracassou, Fernando Henrique Cardoso foi extremamente bem

sucedido na implantação do projeto neoliberal brasileiro.

Seu triunfo inicia-se em 1994 quando o governo de Itamar Franco, que tinha

FHC no Ministério da Fazenda, trouxe à tona o Plano Real, com o objetivo de

estabilizar os preços e conter a inflação. Dentre as medidas do plano estão os gastos

das reservas cambiais para sustentar a paridade cambial Real/Dólar (que favorecia a

entrada de mercadorias e capitais estrangeiros no Brasil) e a redução de tarifas

aduaneiras como iniciativa de abertura do mercado interno.

Este impulso para a globalização no Brasil trouxe severas conseqüências para

a indústria nacional. As empresas nacionais tiveram que baixar seus preços para

competir com produtos importados, registrando importante queda das taxas de

crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), entre 1995 e 1998.

A moeda valorizada e a abertura do mercado brasileiro favorecem as

importações em detrimento da industria nacional. Soma-se, ainda, as fusões ou

aquisições de empresas, com grande participação de empresas estrangeiras, e a

privatização de empresas públicas.

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Assiste-se, dessa forma, na década de 1990, o definhamento da indústria

brasileira (desindustrialização) e sua “profunda desnacionalização” (MENDONÇA,

2004).

Tais fenômenos foram extremamente ríspidos para a condição dos

trabalhadores brasileiros. Para competir com as empresas internacionais favorecidas

pela abertura do mercado interno, ou mesmo manter os contratos com empresas

transnacionais, as empresas brasileiras se viram obrigadas a adotar a reestruturação

produtiva.

Neste contexto, a partir da década de 1990, milhões de brasileiros perderam o

emprego formal e foram impelidos para o desemprego e subemprego, como a

terceirização e avanço do trabalho precário.

Mendonça (2004) demonstra dados que confirmam a crescente precarização

das relações de trabalho a partir de 1994: redução do número de assalariados com

carteira assinada e aumento de postos de trabalho informais e de trabalhadores

autônomos. A esse conjunto de fenômenos, denomina-se desassalariamento.

Como se não bastasse, comparando dados de 1995 e 1998, Mendonça aponta a

redução de gastos orçamentários nas áreas da educação, cultura e saúde.

Em 1998, FHC dá maior fôlego ao projeto neoliberal brasileiro. No início de

seu segundo mandato, realiza novo acordo com o FMI sob o custo de manter a

abertura da economia, promover cortes nos gastos públicos e retração das atividades

produtivas, fazendo crescer o desemprego. Além disso, o governo federal realiza

nesse ano a desvalorização cambial que favorece o aumento do desemprego e eleva

também o custo de vida.

Por fim, Mendonça afirma que a equipe de governo não operou somente

“contra os trabalhadores”, pois a “classe média urbana” empobreceu e viu acentuar-

se a concentração de renda. Ademais, com sua política “desindustrializante” e

“desassalarizante”, FHC e seu projeto neoliberal exerceram perniciosas

conseqüências para a sociedade brasileira: “A aposta numa política econômica

recessiva e voltada para assegurar o grau de confiabilidade dos investimentos

estrangeiros no Brasil provocou a deterioração do tecido social como um todo”

(MENDONÇA, 2004, p. 125).

Se nos detivermos à cidade de São Paulo, uma excelente análise do processo

de precarização das relações de trabalho nos é dada pelo economista Paul Singer

(1999a), no segundo capítulo de sua obra “Globalização e desemprego: diagnóstico e

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alternativas”, intitulado “São Paulo: desindustrialização, exclusão social e políticas

que revertam estas tendências”.

De maneira mais acentuada na década de 1990, embora tenha se iniciado na

década anterior, observamos uma brusca queda da atividade industrial com perda

significativa dos postos de trabalho. Os efeitos do neoliberalismo, globalização e

reestruturação produtiva já se faziam sentir, posto que as empresas utilizavam novas

técnicas que poupavam trabalho e já havia muitos produtos importados, fazendo com

que as indústrias paulistanas reduzissem custos (corte de pessoal) para baratear

produtos.

A desindustrialização, concomitante à terceirização, promove o fenômeno do

desassalariamento. Singer afirma que o desassalariamento é de “caráter estrutural”,

que está muito relacionado com a desindustrialização (já que a Indústria de

Transformação é o setor que mais emprega assalariados) e com a terceirização (já que

a transferência de trabalhadores para o setor de serviços parece estar relacionada com

a substituição do trabalho assalariado pelo trabalho por conta própria).

Aliada ao desassalariamento ocorre a informalização, acarretada pela

“substituição do emprego formal, ou seja, com registro do contrato de trabalho na

carteira profissional (...) por emprego informal, ou seja, sem registro” (SINGER,

1999a, p. 45).

Observe-se que o mercado de trabalho paulistano, como ademais se percebe

emergir em todo o mundo globalizado, na década de 1990, inicia metamorfoses

acarretadas por inúmeros fenômenos que já analisamos anteriormente. A

desindustrialização, terceirização e informalização são extremamente favorecidas pelo

desemprego, na medida em que os trabalhadores ficam mais suscetíveis a se submeter

a ocupações precárias, aumentando sua jornada de trabalho e retroalimentando a

queda de procura nas ocupações. Já a descentralização do capital faz com que

inúmeras prestadoras de serviços, principais responsáveis pela subcontratação, fiquem

como uma constelação ao redor das grandes empresas que, para melhor competir no

comércio internacional, reduzem seus custos.

Derivam desses fenômenos a precarização das relações de trabalho na capital

paulista, entendida como a soma do desassalariamento, terceirização e

informalização. A precarização é uma forma do capital esquivar-se dos encargos

trabalhistas.

Com essas transformações, o trabalho estável, digno de confiança, fornecedor

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de garantias e segurança se desfaz. Trata-se de sua liquidificação ou nomadismo. O

emprego fixo, formal, que sustentava a durabilidade da carreira profissional se esvai.

Em seu lugar surge uma carreira volátil, com passagens intermitentes por diversas

ocupações instáveis e informais.

Se houve uma perda significativa da segurança originada no trabalho,

houveram também manifestações contrárias ao controle e disciplina do trabalho a

favor de maior liberdade. Heloani (2003) empreende laboriosa pesquisa sobre as

formas históricas de um processo que denomina “modelização” da subjetividade do

trabalhador para melhor servir ao modo de trabalho alienado. Como um dos pontos

importantes do esgotamento do fordismo destaca a revolta da juventude da década de

sessenta em relação às condições de trabalho. A rígida disciplina fordista foi

enfrentada com o aumento das taxas de rotatividade dos trabalhadores (turnover),

elevação da “fuga do trabalho” e absenteísmo. Heloani (2003) demonstra como o

maio de 1968, o movimento hippie e outras tantas manifestações juvenis em grande

parte do mundo traduziam o clamor de uma geração que rejeitava os padrões de

trabalho e de sociedade e lutavam por formas de vida alternativas em relação à ordem

moderna e à ditadura do trabalho alienado.

Novamente Maffesoli representa um entusiasta nas questões da sociedade

contemporânea e celebra o fim do trabalho assalariado com bastante otimismo. Faz

referência a uma notória “sabotagem ao trabalho”, como forma de as regras e horários

(MAFFESOLI, 2005).

Neste contexto, ocorre uma “rebelião” contra o trabalho como um “imperativo

categórico”, uma obrigação de todos apregoada pela ideologia do trabalho. Trata-se

da fuga ao “enclausuramento” racional e economicista moderno: nem tudo deve ser

funcional, correto, racionalmente planejado e incondicionalmente obedecido. A

errância e o vaguear demonstram esta contraposição em relação à “fixação do

trabalho”: “Assim se exprimem o necessário ócio, a importância da vacuidade e do

não-agir na deambulação humana” (MAFFESOLI, 2001, p. 32-3).

Essa recusa ao trabalho é vista como uma busca pela liberdade, uma rejeição

das regras e compromissos rigorosos, algo com um caráter “potencialmente

libertário”. Ao invés da subordinação ao mito de Prometeu, símbolo da necessidade

de produtividade e progresso, Maffesoli destaca o viver intensamente o agora, as

emoções, sem regras, seriedade ou racionalismo. No mundo contemporâneo, enfim, o

trabalho produtivo é derrocado pelo “ludismo”, pela “festa”:

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A ênfase recai sobre uma perspectiva global que integre a vivência, a paixão o sentimento comum. Aí reconhecemos uma mudança de paradigma de envergadura: mais do que dominar o mundo, mais do que querer transformá-lo ou modificá-lo - atitudes que são prometéicas, todas elas - empenhamo-nos em nos unir a ele através da ‘contemplação’, em festejá-lo (MAFFESOLI, 2004, p. 85-6).

Isso não quer dizer que o trabalho perdeu seu viés manipulador. Heloani

(2003) defende a tese de que as novas organizações flexíveis do processo produtivo,

como os grupos de controle de qualidade, apenas tornaram mais sutis e fragmentados

os mecanismos de controle da subjetividade.

De qualquer forma, a “Geração X”, constituída pelos indivíduos nascidos após

a década de setenta, não mais acredita no trabalho como mote de uma transformação

social. Não mais vê no trabalho um símbolo de estabilidade e segurança. Não mais vê

as regras como certas e inquestionáveis, pois elas não são confiáveis para sustentar

um projeto de vida, considerando que se vão antes da concretização dos planos.

Enfim, o trabalho é visto apenas a partir das satisfações imediatas, que possibilita, em

termos de recursos necessários, consumir (BAUMAN, 2005). Não é mais uma

“sociedade de produtores”, que tinha sua sustentação na “ética do trabalho” e no

controle racional do dinheiro para utilização futura com a poupança. É uma

“sociedade de consumidores”, gerida pela “estética do consumo” e impulsividade dos

desejos descontrolados em busca de prazeres imediatos no mercado consumidor

(BAUMAN, 2001).

Com a “cultura do lixo” também se produz um “refugo humano”: seres que

são simplesmente descartáveis ao processo produtivo e são lançados à própria sorte

como supérfluos, obsoletos ao mundo do trabalho (BAUMAN, 2005).

Não se trata de uma condição livremente escolhida. O nomadismo do trabalho

e a produção do refugo humano são efeitos perniciosos da liquidificação do trabalho

assalariado, típica da modernidade líquida. Este é substituído por atividades

intermitentes, temporárias, com rendimentos instáveis e desprovidos de seguridade

social e demais direitos trabalhistas. Se a classe trabalhadora como um todo fica

suscetível a essas metamorfoses no mundo do trabalho, parte dela não consegue se

sustentar domiciliada e assiste a porta da rua se abrir de forma tão intensa como as

portas das empresas se fecham. Neste contexto, acreditamos que a população em

situação de rua constitui um dos efeitos perniciosos da reestruturação produtiva,

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fenômeno que explica o crescimento desse contingente durante a década de 1990.

Em suma, partindo de processos de alcance global, relacionados com a

proliferação do neoliberalismo, a partir da crise do projeto fordista, analisamos o

ingresso mais intenso do Brasil nesse contexto, principalmente no decorrer da década

de 1990. Por fim, observamos o impacto dessas transformações na cidade de São

Paulo, nomeadamente na precarização das relações de trabalho que gera, em última

análise, o vertiginoso crescimento dos membros da classe trabalhadoras que são

expurgados para o “olho da rua”.

3.2 - “Na rua da amargura”: situação de rua e precarização dos vínculos

familiares

Não seria exagero dizer que a família é a instituição mais injustiçada dos

últimos tempos. Falamos da ideologia vulgar de culpabilização da família. Porque a

criança não vai bem na escola? É culpa da família, pois ela não educa suas crianças.

Porque há muita violência entre os jovens? É culpa da família, pois ela não impõe

limites ao adolescentes. E assim por diante.

Não logrando cair nessas simplificações, nem tampouco propor leviandades

similares, acreditamos que a situação de rua está vinculada também às transformações

contemporâneas no âmbito da família.

Logo, a proposição que defendemos é de que a situação de rua está atrelada à

precarização das relações familiares que, ademais, refletem a fragilização das relações

humanas em um sentido geral. Esta precarização, a nosso ver, reflete uma tendência à

liquidificação da família burguesa moderna.

Antes, porém, de se estudar sua desfiguração, devemos entender como ela se

solidificou. Em outras palavras, devemos estudar a constituição histórica da família

burguesa moderna, não como algo natural, inquestionável e imutável. Por exemplo,

seria possível falar em uma família que mora em um ambiente público? Pois é,

justamente numa “casa grande”, sem divisórias precisas entre os cômodos, que

habitou a família medieval. Tratava-se de um local reservado para encontros públicos,

sem quartos ou salas, pois todos cômodos não tinham uma função fixa. As camas e

mesas eram desmontáveis e muitas pessoas dormiam no mesmo local, sem qualquer

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constrangimento.

Tão estranha para nós como a casa grande era o tipo de família que ali

habitava. Eram pais e filhos rodeados de inúmeros criados, aprendizes e visitantes,

que chegavam e partiam diariamente. Ora, não havia privacidade, intimidade e

pessoas sós. Da mesma maneira que a casa era um ambiente de movimentação

pública, o público era quase um “prolongamento” da casa, local em que predominava

uma sociabilidade comunitária.

Não havia afeto entre os familiares, pelo menos não esse sentimento da família

tal como conhecemos. Era, com efeito, uma família movida pelos “laços de sangue”

ou “linhagem”, ou seja, eram pessoas que descendiam de um mesmo ancestral. Nas

palavras de Ariès (1981, p. 275): “A família cumpria uma função - assegurava a

transmissão da vida, dos bens e dos nomes - mas não penetrava muito longe na

sensibilidade”.

Esta família medieval européia possui muitos traços comuns com a família

patriarcal extensa, do Brasil em seu período colonial, tal como descrita pelo

pernambucano Gilberto Freyre (1933/1981). De influência ibérica, esta família

também habitava uma “casa-grande”, na qual seus moradores se dividiam em dois

níveis: no seu “núcleo central”, ficavam o dono da casa, sua mulher e prole; e em sua

“periferia” encontravam-se várias pessoas que possuíam relações de parentesco, de

trabalho ou amizade com o dono da casa. O homem era a autoridade incondicional do

lar e a família possuía importante papel econômico, social e político.

Na Europa, no entanto, a família medieval logo cedeu lugar a um outro tipo de

família, principalmente a partir da descoberta da infância nos séculos XVI-XVII.

Ariès pondera que somente a partir desse momento se pode falar em um sentimento

de família, ou seja, da “família sentimental moderna”. Além do sentimento da família

como um conjunto de relações afetivas intensas, essa família moderna recebe outras

denominações com outras características: é também uma “família conjugal”, pois se

restringe a duas gerações sob a tutela do “chefe” da família, o homem; foi uma

família desenvolvida como um “grupo solitário”, privilegiando seu isolamento em

relação ao mundo exterior e às pressões da sociedade. Dessa maneira, Ariès fala em

um “sentimento de casa” inerente a essa família, pois com ela passou a ter sentido a

intimidade e privacidade que nos são conhecidas. Nos dizeres de Ariès, “...essa

família estendeu-se à medida que a sociabilidade se retraiu” (ARIÈS, 1981, p. 274).

Já a família patriarcal extensa do modelo freyriano sofreu severas críticas.

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Para a historiadora Eni Samara (1986), há muita incongruência em tomar esse

modelo de família como sinônimo da família brasileira. Isto porque eram muitas as

diferenças regionais no Brasil de então. A condição da mulher, por exemplo, que na

região dos canaviais pernambucanos estudados por Freyre era de submissão,

distingue-se muito da figura da mulher na região sudeste. Nela, com as constantes

viagens dos bandeirantes, as mulheres acabavam adotando papel fundamental na

administração das fazendas. Samara também faz alusão à presença de inúmeras

mulheres que solicitavam publicamente o divórcio, figura que se distancia muito do

“mito da submissão feminina”, como denomina a autora.

Outro cuidado importante, ao se tomar o modelo freyriano de família, são as

distinções “étnico-culturais” aludidas por Neder (2002): a pretensa integração étnica

da família freyriana fazia parte de uma concepção típica da época em que seu autor

escreveu a obra (1930): o mito da democracia racial.

Assim como Eni Samara procura evidenciar as peculiaridades da família

paulista do século XIX, Neder procura delinear às características das famílias

escravas. Para a primeira, a família paulista não era extensa, sendo composta por

poucos membros; havia a predominância do celibato, dada as dificuldades de se

legalizar o casamento e as inconveniências de se submeter à Igreja; era alto o índice

de concubinato, sendo que a segunda mulher e os filhos ilegítimos moravam em

locais distintos da primeira família; também era pequeno o número de filhos e poucas

famílias possuíam escravos ou tinham agregados. Assim, tratava-se de uma família

bem distinta da família patriarcal extensa de Freyre.

No final do século XIX e início do século XX, tem-se a instauração da

industrialização que modificou bastante a sociedade, economia e cultura paulistanas.

Neder (2002) assevera o papel da Proclamação da República (1889) como ensejo para

os militares iniciarem a construção da “ordem burguesa” no Brasil, com o fim do

trabalho escravo e a modernização. No âmbito da família, Neder explica que houve

uma modernização ou “aburguesamento” a partir da influência das idéias positivistas

de Auguste Comte na organização da sociedade brasileira. Dessas idéias, surge uma

norma para a organização da família moderna, uma nova família: “Neste particular,

evocava-se o padrão de organização burguês, com a família nuclear, moderna” (p.

31).

Quais seriam as principais características dessa família burguesa moderna?

O que denominamos aqui como família burguesa moderna possui diversas

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características que serão apresentadas de maneira um tanto estereotipada, e não à toa.

Isto ocorre porque a família burguesa moderna não possui enorme influência apenas

por sua existência concreta como instituição social, mas também por sua existência

ideológica como “família ideal”, modelo padronizado a ser seguido por todos

(SHYMANSKY, 2001, 2002).

Este modelo de família é caracterizado pela coabitação de seus membros em

um mesmo local, que ofereceu à ela um espaço de intimidade. Este local exclusivo da

família possibilita a construção de um mundo privado que se espera muito distinto do

mundo público. Enfim, é uma família que possui em comum um espaço geográfico

que denominamos lar ou casa.

Outra peculiaridade se refere à limitação no número de seus membros que,

diferentemente da família extensa, é bem diminuto. É o que se pode chamar de

“arranjo familiar”, que no caso da família em questão é formado por pai, mãe e filhos.

No âmbito desse arranjo ideal, ocorrem relações internas de diversas ordens:

vínculos maritais, entre os esposos; relações paternas, entre pais e filhos; e relações

fraternas, entre irmãos. Porém, tais relações não implicam apenas em diferenças, mas

principalmente em desigualdades, pois são relações assimétricas e verticais que

implicam em um poder arbitrário. Estas relações de poder são determinadas pelo

gênero e pela idade (ROMANELLI, 2002).

Nessa forma de família, há um homem e uma mulher, ou seja, trata-se de uma

relação monogâmica, articulada à necessidade da virgindade da mulher antes do

casamento e em sua fidelidade marital após ele. Para Reis (1985, p. 101), essa forma

de família monogâmica se instaura concomitante à “propriedade privada” e a relação

entre essas duas instituições se torna cada vez mais sólida no decorrer da

modernidade:

Uma de suas principais finalidades seria a de garantir a transmissão da herança a filhos legítimos do homem - responsável pela acumulação material -, o que só seria possível com a garantia de que a mulher exerceria sua sexualidade no âmbito exclusivo do casamento. Daí a importância da virgindade e da fidelidade conjugal da mulher.

No que se refere ao vínculo marital, a família burguesa moderna é

caracterizada pelo casamento civil e religioso, que se curva e segue as prescrições da

Igreja e do Estado enquanto instituições de controle social. Esse vínculo formal e

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legalmente estabelecido é fundado, pelo menos idealmente, na livre escolha de ambos

cônjuges, sob o juramento de um amor eterno: “até que a morte os separe”.

Essa relação conjugal é permeada por uma nítida divisão de papéis públicos e

privados a partir do gênero. O homem é o responsável pela esfera pública, que inclui

a função de atuar como provedor financeiro da família e representá-la. De outro lado,

o local público também é o espaço das discussões políticas sobre a sociedade, dos

eventos culturais e das atividades de lazer. Dessa maneira, pode-se dizer que o

homem tinha esse espaço como seu não só no trabalho, mas também em todas as

demais esferas da vida social que representam o domínio público.

Já a mulher tinha por responsabilidade a manutenção e equilíbrio do ambiente

privado ou doméstico. Logo, sua função está relacionada às tarefas de casa

necessárias para o bem-estar da família, como a limpeza, a alimentação e a educação

dos filhos.

Já nas relações parentais, a família burguesa moderna é constituída

tradicionalmente por duas gerações, pais e filhos. Entre eles há uma hierarquia

crivada na idade, na qual os mais velhos mandam nos mais novos. Assim, cabe aos

filhos obedecerem aos pais enquanto estiverem sob a proteção da família.

Se as principais críticas à família burguesa moderna estão atreladas justamente

a estas relações internas, aí está também a função primordial da família. Há quem

diga que o objetivo primordial deste modelo de família é a procriação.

Acentua-se a função reprodutora da família, pois acredita-se que a procriação

biológica gerada a partir da família está no cerne da própria reprodução da espécie

humana. Para Reis (1985), por exemplo, a “reprodução biológica” é uma condição

necessária para a existência da família, o que quer dizer que sem procriação não há

família.

Porém, ao lado da reprodução biológica há também a reprodução social, como

função ideológica da família (REIS, 1985). Se a reprodução biológica gera a

reprodução da mão-de-obra para ser explorada no modo capitalista de produção como

mercadoria (força de trabalho), a reprodução social se faz ideológica na medida em

que media a apropriação de papéis sociais necessários à reprodução do capitalismo:

papéis permeados pela necessidade de submissão, autodisciplina e aceitação da ordem

estabelecida, que geram um cidadão passivo e acrítico.

Muitos outros autores enfatizam a família como instituição que torna o

indivíduo membro da sociedade, sem necessariamente tangenciar essa questão

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ideológica. Fala-se na função de socialização da família, normalmente restrita à

criança. Trata-se da função da família de tornar o indivíduo um membro da sociedade,

transmitindo a cultura mais ampla.

No nosso entendimento, no entanto, não se pode restringir a família às

relações parentais de filiação, malgrado sejam elas fundamentais. Trata-se, aqui, de

salientar a importância da família para todos os seus membros, e não apenas no

acolhimento e socialização das novas gerações.

Nesse sentido, diversos autores podem contribuir com nossa explanação.

Szymanski (2001) destaca, além da transmissão da cultura, a família como o

grupo que deve oferecer o “bem-estar” para todos seus membros. Já Bucher (2003)

evidencia a função emocional da família, pois segundo a autora a família seria a

provedora de seus membros no âmbito emocional. Trata-se, a nosso ver, da inserção

em um grupo que promova um local de trocas afetivas duradouras e que forneça o

sentimento de proteção e pertencimento.

Se a sobrevivência simbólica, por assim dizer, está atrelada à família, a

sobrevivência física também está, uma vez que a família desemprenha uma

importante função econômica para cada um de seus membros. De acordo com Prado

(1985) e Bucher (2003), a família também é provedora econômica e material de seus

membros, pois a partir de suas relações que as pessoas mantém sua sobrevivência

física.

Dessa maneira, nos aproximamos da perspectiva de que a família é uma

instituição universal, na medida em que oferece uma rede de relações intersubjetivas

importantes para a humanização. Em outras palavras, qualquer que seja o momento

histórico ou o contexto social, o ser humano, principalmente nos primeiros anos de

vida, depende do estabelecimento de relações com outros para que se torne humano,

que sobreviva no sentido físico e simbólico.

Passos (2002) afirma que a necessidade de constituição dos homens como

sujeitos depende sempre de uma relação com “outro”. Trata-se de um “processo de

humanização”, de tornar-se humano, que entendemos como ininterrupto durante toda

a vida. Nesse sentido, o que é universal na família e a torna fundamental para a

espécie humana é sua faceta de proporcionar “investimentos afetivos” - seja nas

relações conjugais, filiais ou fraternais - que proporcionem o processo de subjetivação

ou humanização (PASSOS, 2003). No entanto, Passos discute que esses processos

universais possuem uma “dimensão particular” de acordo com delineamentos

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socioculturais que acabam por constituir “diferentes tipos de grupalidade familiar” ou

“tipos de grupo familiar”, ou seja, são as formas como os dispositivos universais se

manifestam em contextos determinados.

Da mesma maneira, cada família é diferente da outra, havendo a necessidade

de se inferir uma última dimensão: a “singularidade” de cada família que cria suas

próprias leis e relações características e exclusivas.

De nossa parte, tendo em vista a reflexão sobre a mordenidade sólida como

período crivado pela domesticação, a família era uma das grandes responsáveis pela

manutenção de uma sociedade ordeira a partir de um cotidiano controlado. Não é à

toa que o termo família provém da expressão latina “famulus”, ligada a pessoas que

são submetidas a uma mesma autoridade. Daí provêm também o termo “fâmulo”,

sinônimo de “servidor”, “criado”. Isto porque a família nuclear sólida era uma modelo

inquestionável de se estabelecer relações familiares permeadas por diversas

imposições: ordenação de lugares, de acordo com a idade e gênero, que deveriam ser

ocupados com rigidez; associação da família a compromissos, que submetiam as

vontades individuais ao bem comum do grupo; além de todo o tipo de convenções,

como horários para chegar, sair, se alimentar, assim como as diversas obrigações

familiares que dirigiam a conduta de todos os membros.

Assim, se a família era uma importante estrutura de eternidade, como

dissemos anteriormente, também se aliava ao trabalho como forma de ordenação do

cotidiano da vida doméstica.

Como sabemos, esse modelo de família está atravessando maus bocados a

partir de diversas transformações em seu modo de funcionamento. As relações

conjugais apresentam-se bastante modificadas com o declínio da nupcialidade, dos

casamentos civis e religiosos, concomitantes ao aumento de relações amorosas

informais (sem formalização legal), casais que prescindem da coabitação, casais

homossexuais, famílias monoparentais (regidas por apenas um cônjuge). A autoridade

familiar regida pela hierarquia de acordo com o gênero e a idade também parece ter

caído por terra, com o declínio da autoridade paterna, a ascensão de relações fraternas

de igualdade e a constituição das famílias que têm na mulher a principal provedora

financeira. Há também um aumento das separações e divórcios, elevação do número

de solteiros nunca casados, seguidos da diminuição da fertilidade no casamento e

aumento da fertilidade fora dele.

Uma questão corriqueira seria: quais os motivos dessas transformações? Ou

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seja, quais processos históricos estão subjacentes a essas transformações?

Outra indagação importante nos parece ser a seguinte: o que mudou nas

famílias atuais a partir dessas transformações? Poderíamos falar em um modelo

contemporâneo de família?

Na reflexão sobre as transformações das relações familiares, os estudiosos da

família podem ser divididos em duas correntes distintas. De um lado estão os autores

que relacionam essas transformações com problemas que afetam todas as relações

humanas de maneira geral, como por exemplo: Arriagada (2000), com a afirmação de

uma “perda de sentido comunitário e familiar”; Herrmann (2003), quando ressalta que

a própria vida humana geral tem perdido a própria substância afetiva, racional e talvez

até “material”.

De maneira mais explícita e contundente, Passos (2003, p. 23) se refere à

“precariedade nas relações humanas” na própria função de reconhecer o outro como

humano e promover a humanização: “...o grande mal do século que se inicia, qual

seja, a fragilidade e vulnerabilidade das relações humanas naquilo que elas possuem

de substratos para conceber e sustentar o projeto de humanização”.

A maioria dos autores, no entanto, faz alusão a uma outra ordem de fenômenos

mais particulares para compreender as transformações nas relações familiares.

Vaitsman (1994) parece representativa ao analisar que essas transformações são

motivadas pela participação crescente da mulher nas esferas públicas (que rompe a

dicotomia entre público e privado de acordo com o gênero), pela militância política

dos movimentos feministas durante a década de 1970, bem como pela primazia do

individualismo. Este último é aludido como elemento que trouxe maiores

acirramentos de distintos desejos e projetos individuais, tornando fragmentadas e

heterogêneas as práticas antes homogêneas e estáveis em termos de família e

casamento.

A idéia de maior inserção feminina no mercado de trabalho parece

fundamentada nas transformações recentes do modo de produção capitalista,

nomeadamente em sua configuração atual de “pós-fordismo ou acumulação flexível”,

como visto anteriormente. Harvey (2001) aponta a importância dessas mudanças no

modo de regulação econômica para o ingresso da mulher no mercado de trabalho.

Arriagada (2000), colocando em pauta tal discussão, nota que não somente a

mulher aumentou sua participação no mercado de trabalho, mas também os filhos,

fazendo com que a família fosse sustentada por vários agentes econômicos.

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Claramente, estas transformações põem em xeque a figura do homem provedor, pois

sendo a família marcada por posições distintas e interdependentes, o ingresso desses

novos agentes econômicos afetam, sobretudo, a figura masculina (BILAC, 2002).

Trata-se do que Amazonas, Damasceno, Terto e Silva (2003) descrevem como

“deterioração da imagem masculina”, extremamente favorecida quando o homem é

vítima do desemprego. Segundo Mello (2002), também as posições de hierarquia por

idade se diluem quando o filho começa a auxiliar no sustento da família.

A posição de Diniz (1999) parece representativa, pois essa autora não apenas

evoca a inserção da mulher no mercado de trabalho como fundamental, mas vai ao

extremo de pensar uma classificação da família a partir de como se dá essa inserção.

Em suma, no que diz respeito ao ingresso da mulher e dos filhos no mercado

de trabalho, e sua conseqüente contribuição no orçamento doméstico, podemos dizer

que esse fato modifica substancialmente as relações hierárquicas de poder no interior

da família. A figura do homem provedor financeiro acaba ruindo gradualmente, e com

ela a autoridade inquestionável e tirânica do homem sobre a mulher e dos pais sobre

os filhos. Se essa tirania masculina e etária era característica da família burguesa

moderna, pode-se dizer que ela sofre aí um importante revés.

A questão do individualismo e sua influência nas transformações das relações

familiares parece ser melhor explorada pelos antropólogos. Dentre eles, Romanelli

(2002) considera que o “familismo”, descrito como o predomínio do interesse

coletivo sobre o interesse individual, vai se esfacelando em prol do individualismo, ou

seja, da primazia dos interesses, realizações e aspirações individuais.

Para a antropóloga Cynthia Sarti (2002), a questão da individualidade é

sintetizadora das transformações familiares, e pode ser explicada a partir da “perda do

sentido da tradição”. Em outras palavras, todos os papéis hierárquicos, relacionados

ao gênero e faixa etária, eram postos pela tradição como preestabelecidos e havia

forte pressão para que fossem desempenhados inquestionavelmente no interior da

família. No entanto, o enfraquecimento dessa tradição fomenta e é fomentada pela

importância cada vez mais intensa da individualidade.

De maneira mais detida e veemente, a antropóloga Lia Machado destaca que a

expansão do individualismo no mundo ocidental acaba por colocar em questão o

próprio “valor atribuído à família como princípio social balizador” (2001, p. 02).

Para compreender essa expansão, Machado apresenta a existência de dois

códigos que estariam no cerne da organização da sociedade ocidental: o “código

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relacional”, que valoriza as noções de honra, reciprocidade e hierarquia; e o “código

individualista”, cuja matriz está assentada nas idéias de igualdade, liberdade e

cidadania, embora tenda a se desenvolver o individualismo das singularidades.

Para Machado, a especificidade do Brasil frente ao mundo ocidental está na

importância da presença intensa do “código relacional hierárquico”, atrelado ao

mundo da casa e familiar como uma das “matrizes de sociabilidade”. Nesse caso,

prioriza-se a honra, que depende da preservação dos direitos e deveres em relação às

hierarquias.

Assim, se o “código relacional de honra” acaba por legitimar hierarquias e

desigualdades, que podem até culminar na violência doméstica, ele também

proporciona a legitimação de relações de reciprocidade e o sentimento de

pertencimento a uma comunidade. Da mesma maneira, se a expansão do código

individualista

[...] é em grande parte responsável pela responsabilização e autonomização dos indivíduos, é também responsável pela dessensibilização do indivíduo em relação ao seu semelhante e em relação ao seu pertencimento social, diminuindo a apreensão dos seus limites e da sua situação de compartilhamento (MACHADO, 2001, p. 13).

Por fim, resumindo sua análise de maneira notadamente pessimista, Machado

expõe a especificidade do Brasil:

Dada a fraca generalização das condições cidadãs no Brasil, as situações econômicas desfavoráveis ou de crise podem fazer emergir o ‘pior dos dois mundos’: não o princípio da reciprocidade hierárquica, mas o da exclusiva hierarquia desigual; não o princípio da igualdade individual de direitos e deveres mas o da universalidade do anonimato, da indiferença e da dessensibilização (MACHADO, 2001, p. 13).

Machado (2001), estudiosa da violência doméstica, pode deixar uma imagem

bastante particular da família brasileira. No entanto, resgatando a afirmação de Ariès,

parece ter ficado claro que o sentimento de família pode sucumbir ao individualismo,

ao contrário do que pensava o historiador.

Diante da influência do individualismo e inserção da mulher na esfera pública,

cabe-nos perguntar então: qual seria a estrutura da família brasileira após essas

transformações?

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Uma primeira idéia importante nós é dada por Vaitsman (1994), quando

pondera que não se deve pensar que o modelo de família burguesa moderna será

substituído por um outro modelo hegemônico que o sucederá em uma escala linear.

Para a autora, ao contrário, a situação contemporânea é caracterizada justamente pela

coexistência de uma multiplicidade de maneiras de se viver em família.

É preciso enfatizar, também, que dentre essa variedade de formas está a

própria família burguesa moderna, apontada por muitos como ainda predominante e

longe de cair em total extinção. As pesquisas de Szymanski (2001, 2002) revelam

que, de fato, são múltiplas as formas de manifestação das relações familiares a partir

das condições concretas. Porém, essas formas de “família vivida” são sempre tomadas

como normais ou desviantes a partir da família burguesa moderna como modelo ideal

de normalidade, como uma “família pensada” que ainda aparece como princípio

padronizador. Logo, a família que foge à norma é “desestruturada”, “incompleta” e

vista como anormal mesmo pelos seus próprios membros. Enfim, não se pode

subestimar a importância concreta e ideológica da família burguesa moderna, mesmo

quando se observa seu franco processo de desintegração enquanto modelo único e

imutável.

Diversos critérios poderiam ser utilizados para se discutir as novas

configurações de família. Se tomarmos, por exemplo, como critério a presença dos

pais, teríamos o aumento das famílias compostas por apenas um cuidador, chamadas

monoparentais (maternas ou paternas). Elegendo o sexo como critério, teríamos

também os casais de pares homossexuais, que constituiriam as famílias

homoparentais. No caso de um dos cônjuges já ter sido casado, pode-se utilizar o

termo “família de recasados ou reconstituída”.

Ressaltando o avanço nas tecnologias de fertilização, Bucher (1999) nota a

possibilidade de “produções independentes”, pois ocorre a individuação na procriação

na medida em que não é necessária uma relação conjugal para se constituir uma

família. Nesse sentido, Mautner (2003, p. 42) afirma: “Basta uma pessoa e a

tecnologia para se dar início a uma família”.

Gomes e Paiva (2003) fazem alusão a dissociação entre casamento e família,

pois essas mesmas tecnologias abrem espaço para filhos sem casamento, assim como

tem aumentado o número de casamentos sem filhos.

A psicanalista de família Purificacion Gomes (2003), baseada em tendências

européias, chega a falar no fim do casamento a partir de uma “teoria da transição para

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a parceria”, que retrata a passagem da escolha clássica do casamento civil e patriarcal

para uniões consensuais, igualitárias e, predominantemente, de acasalamento. Assim,

primeiramente haveria o padrão de matrimônio civil como norma; uma primeira

flexibilização converge para a coabitação em um período inicial de “casamento

experimental”, concretizado apenas quando o casal deseja procriar; posteriormente,

haveria a primazia de uniões consensuais por período indeterminado, em detrimento

do casamento civil; e, por fim, uma sociedade que não vê diferença entre casamento

civil e consensual, tanto no que se refere ao compromisso afetivo como em relação à

legislação regulamentadora das uniões. Enfim, seria uma “grande transição social” em

curso, da relação patriarcal tradicional para uma parceria baseada nos direitos iguais.

Trata-se de uma progressiva “informalização” das relações conjugais ou

“informalidade dos vínculos”, descrita também por Prado (1985), quando põe em

pauta o aumento de uniões livres sem qualquer formalização civil ou religiosa.

Outro fator contemplado por Gomes (2003) é a ocorrência de uma

“generalizada superficialidade vincular”, concretizada no “ficar” dos adolescentes

(um sinal de desapego a relacionamentos duradouros) ou mesmo a variedade sexual

irrestrita que revela a insatisfação conjugal e o enfraquecimento dos vínculos

conjugais.

De acordo com Passos (2002), esse ir e vir de parceiros na relação familiar

pode ser interpretado para além de uma “flexibilização do grupo”, como uma faceta

mais ácida das relações humanas: a tendência descartabilidade e “precariedade” das

relações afetivas.

De qualquer maneira, parece ser um consenso entre os diversos estudiosos da

família uma gradativa ruptura com as relações hierárquicas de poder, tanto de gênero

no interior dos casais heterossexuais, quanto de faixa etária nas relações entre pais e

filhos.

Como foi sinalizado anteriormente, o individualismo e o ingresso da mulher

na esfera pública fizeram com que homens e mulheres reformulassem seus papéis

domésticos que tenderam a ser mais horizontais e igualitários.

No entanto, não se pode dizer com isso que a mulher alcançou definitivamente

uma situação de igualdade se comparada ao homem. Veja-se, por exemplo, o estudo

de Fleck e Wagner (2003), com famílias compostas por pai, mãe e filhos, nas quais a

mulher é a principal responsável pela renda familiar. Verificou-se que o modelo de

família tradicional continua a regular as relações no âmbito familiar em termos de

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divisão de tarefas por gênero, pois as mulheres continuam realizando e se

responsabilizando pela maioria das atividades domésticas. Pode-se até dizer que a

situação da mulher piorou, considerando que acabou se sobrecarregando da dupla

jornada de trabalho

Segundo Romanelli (2002), embora a mulher tenha conquistado o espaço

público, ela permanece com o papel de zelar pela harmonia e coesão familiar, fato que

explicaria sua postura de evitar conflitos a partir de, por exemplo, pressionar o

homem a ampliar sua participação nos afazeres domésticos.

O mesmo autor, em pesquisa que estudou especificamente as relações entre

pais e filhos, enfatiza algumas modificações na “autoridade parental”: o saber dos

pais passa a ser criticado como servindo apenas ao passado e não às experiências

concretas dos filhos; as relações vão gradualmente deixando de ser hierarquizadas

para serem mais igualitárias; há uma tendência a ampliação da autoridade materna,

baseada na afetividade e diálogo em detrimento a autoridade paterna antes

incontestável e truculenta.

Assim, se tanto as relações conjugais como as relações parentais estão se

tornando igualitárias, Passos acentua a importância atual da função fraterna:

[...] hoje, à medida que se redimensionam as posições hierárquicas do grupo, a horizontalidade passa a ser um vetor primordial nas relações grupais e, com isso, as relações fraternas começam a ser valorizadas (2005, p. 19).

Se, por um lado, o individualismo pode favorecer essas relações mais

horizontais, posto que a singularidade de cada pessoa passa a ser mais respeitada, por

outro lado ele pode gerar uma sobreposição da satisfação individual em detrimento

dos interesses do grupo. Nesse sentido, o individualismo pode atuar como fator de

instabilidade nas relações familiares, instabilidade que pode redundar na separação e

explicar o crescente número de divórcios (VAITSMAN, 1994).

Sarti (2002) e Prado (1985) corroboram essa opinião de Vaitsman, a primeira

destacando o aumento de conflitos familiares com a queda da tradição e a ascensão do

individualismo, e a segunda em sua concepção de que a ausência de projetos em

comum faz com que haja cada vez mais atividades e opiniões individuais e

discrepantes entre os membros de um mesmo grupo familiar.

Uma outra faceta que contribui para o entendimento do aumento do número de

divórcios, das relações conjugais informais e até da descartabilidade das relações é a

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contestação do “amor romântico”, típico da época áurea da modernidade e da

sociedade burguesa. Trata-se do que Vaitsman (1994) descreve como a superação da

idéia de amor dirigido a um indivíduo único e insubstituível, o relacionamento

amoroso que possui a pretensão de completude: transformar o casal em uma

singularidade. Nesse sentido, o amor atual passou a ser mais pautado no respeito e

coexistência de atitudes e opiniões distintas.

Havíamos descrito anteriormente a importância da educação da criança para a

constituição da família burguesa moderna, que explica a rigidez da função de

socialização das crianças outorgada à família. Muitos autores se referem a uma

transformação nessa função, a partir da “terceirização” da socialização primária. Para

Amazonas et al. (2003), a modificação no desempenho de papéis de acordo com o

sexo fez com que os pais, especialmente a mãe, tivessem um tempo reduzido para a

educação dos filhos, fato que explicaria o auxílio de familiares, babás, creches e

escolas. Já Bucher (2003) chama atenção para a proliferação de espaços

extrafamiliares de socialização, como a importância que adquiriu a televisão e a

internet.

Enfim, uma síntese dessas transformações pode ser alinhavada as teses

centrais de Vaitsman (1994) que procura compreender a família a partir dos valores

que a autora acredita advir de uma condição “pós-moderna”. Assim, existem

atualmente famílias bastante heterogêneas e plurais, com laços que se modificam

contentemente por estarem crivados pela efemeridade. Com o ruir das velhas relações

de poder, as famílias possuem no individualismo um valor importante, fato que

conduz a: por um lado, maior liberdade individual; e, por outro, dificuldades de

compartilhar projetos em comum, o que traz bastante instabilidade ou provisoriedade,

insegurança e incerteza. Em relação ao tempo, por fim, Vaitsman pondera que a

família tornou-se pragmática, no sentido de tomar decisões que tragam fins imediatos,

o que corresponde à dificuldade de traçar planos a longo prazo.

A este conjunto de transformações nas relações familiares, ademais presentes

nas relações interpessoais de maneira geral, denominamos precarização, no sentido

atribuído por Bauman (2001). São relações informais, sem compromissos

permanentes e legalizados; estão suscetíveis à volatilidade da primazia dos desejos

individuais, conferindo as relações uma faceta de efemeridade; são flexíveis,

superficiais e descartáveis, na medida em que são feitas e desfeitas em abundância e a

qualquer momento. Nesse contexto familiar, torna-se possível algumas pessoas serem

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expurgadas para a “rua da amargura”.

Muitas vezes isso acontece porque a domesticação também era vivenciada

como ambiente de pressões e conflitos. Não seria inexato dizer que se tratava também

de uma “casa da amargura”. Assim, se a liquidificação da família burguesa nuclear

trouxe maior espaço para relações igualitárias e respeito à liberdade individual,

também trouxe o colapso dos vínculos vitalícios que ofereciam proteção e

estabilidade, atuando como importante elemento que impele o indivíduo ao

nomadismo forçado.

3.3 - Estado neoliberal e mal-estar social: situação de rua e precarização das relações do cidadão de direitos sociais com o Estado

O último processo que pretendemos resgatar, para sustentar nossa tese de

liquidificação da modernidade como contexto que possibilita a situação de rua, é o

que denominamos precarização das relações entre o cidadão de direitos e o Estado.

A proposição defendida nesse subcapítulo é que a situação de rua é causada

também pelo esfacelamento da noção de cidadão de direitos, concretizada de maneira

bem rudimentar no Brasil, e conseqüente precarização de sua relação com o Estado.

Como anteriormente, faremos a princípio uma análise do Estado moderno

típico e, posteriormente, descreveremos seu esfacelamento.

O Estado tipicamente moderno é, para Berman (1986), o que denomina o

“modelo fáustico” de Estado, em referência às vicissitudes do personagem Fausto da

obra clássica de Goethe. Trata-se de uma instituição movida pelo e para o

desenvolvimento, cujo objetivo é integrar a todos a partir de gigantescos projetos em

escala global, além de promover o desenvolvimento das forças produtivas em

benefício de todos. Berman acredita que este modelo de Estado fáustico adquiriu um

caráter universalista, podendo ser visto subjacente aos Planos Qüinqüenais na ex-

URSS, nos países capitalistas centrais e nos ditos países de Terceiro Mundo.

Conforme descrevemos anteriormente, vivia-se uma situação de fordismo,

cujo círculo virtuoso dependia da presença intensa do Estado na regulação da

economia, bem como na garantia dos direitos sociais básicos de todo cidadão. Foi o

que se convencionou chamar de Estado do Bem-Estar Social ou Welfare State.

Para Bauman (2001), trata-se de um Estado ligado à modernidade sólida. Era

um “Estado jardineiro”, termo utilizado em virtude de sua atividade de desligitimar as

ervas daninhas e as coisas fora do lugar e planejar racionalmente todo seu jardim

(BAUMAN, 1999). Ou seja, era uma agência centralizadora de regulação e controle

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sobre a totalidade da vida social, em seus aspectos culturais, políticos, econômicos e

sociais.

Por um lado, essa forma de Estado, que alcança seu apogeu com o “Estado de

bem-estar” ou o “Estado social”, tinha como função amenizar as vulnerabilidades e

incertezas humanas, principalmente relacionadas a perda de emprego e meios de

subsistência, a partir da proteção social (BAUMAN, 2005). Com isso, exercia

importante papel como uma espécie de “seguro coletivo do cidadão”, realizando ainda

um trabalho de “reciclagem” com aqueles que eram temporariamente descartados do

mercado de trabalho, tendo em vista sua reintegração à sociedade de produtores.

Por outro lado, era um Estado que se pretendia republicano, no uso do termo

relacionado à defesa do bem público em concordância com a participação ativa de

cidadãos livres no destino político. Bauman é bem crítico em relação a essa pretensa

atuação republicana do Estado na modernidade sólida. Isto devido à sua “tendência

totalitária” que redundava em “questões públicas unificadoras” que não permitiam a

participação das liberdades individuais em seus debates. Logo, a “àgora”, como

espaço de negociação do bem comum com a presença das liberdades individuais, é

colonizada e dominada por um poder absoluto do Estado que cerceia a participação

dos cidadãos e suas liberdades individuais (BAUMAN, 2000).

Concomitante à reestruturação produtiva ocorrida a partir da década de 1970

nos países de capitalismo central, vemos surgir críticas ao Estado do Bem-Estar

Social taxado como oneroso e ineficiente. Sob a égide de Reagan e Tacher, surge o

neoliberalismo e uma nova feição de Estado.

Trata-se de um Estado mínimo que interfira o menos possível na sociedade,

principalmente nas questões econômicas. Ou seja, os apologistas neoliberais

defendem o máximo de liberdade ao mercado. Isto corresponde ao movimento de

tornar mercadoria todo e qualquer bem, mesmo aqueles necessários à sobrevivência,

tais como habitação, saúde, educação e segurança.

Porém, como nem todas as pessoas dispõem de recursos para adquirir essas

mercadorias no mercado, algumas delas vivenciam a privação das condições mínimas.

Trata-se da transformação da lógica do cidadão de direitos, para a lógica do

consumidor, o que corresponde à passagem da primazia do Estado para o mercado.

Falamos no processo descrito anteriormente de “desregulamentação

privatizada”. Na sociedade de produtores, a “vida organizada em torno do papel de

produtor tende a ser normativamente regulada” (BAUMAN, 2001, p. 90), como nas

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políticas de seguridade social para o trabalhador ou o pretendido estado de “pleno

emprego”. Com desregulamentação privatizada, o Estado transfere grande parte de

suas responsabilidades ao mercado, em uma sociedade de consumidores regida pelas

vontades pessoais de consumo. Sua função de proteção social também é abandonada,

na medida em que transfere todas as responsabilidades ao indivíduo isolado.

Enfim, com a primazia do mercado, tendo o Estado como conivente, a “ágora”

é atualmente acediada pela privatização do público: incapacidade de tornar as aflições

privadas em discussões coletivas para o bem comum (BAUMAN, 2000).

Resumidamente, nos países de capitalismo central pode-se falar em um

desmanche do Welfare State, posto que antes este modelo de Estado havia sido

efetivamente implantado.

Nos países latino-americanos, a situação é bastante distinta. Isto porque nem

mesmo o Estado de Bem-Estar Social chegou a ser implantado em toda sua proposta.

Analisando especificamente o Estado e as políticas sociais na América-Latina,

Pinheiro (1995) descreve um modelo comum de Estado e políticas sociais adotado na

região a partir do fim do século XIX: o Estado desenvolvimentista.

Este Estado foi fundado a partir do processo de industrialização que veio a

substituir o modelo agroexportador. Com uma aliança entre elites urbanas e elites

agroexportadoras, ganha força o modelo de substituição de importações que confere

outro papel ao Estado: “Surge o Estado desenvolvimentista trazendo consigo o

centralismo, o autoritarismo, o nacionalismo e o populismo” (PINHEIRO, 1995, p.

72).

Neste contexto, Pinheiro chama atenção para a existência de políticas sociais

como uma “expressão instrumental do populismo”, posto que se dirigiam aos direitos

trabalhistas dos trabalhadores assalariados urbanos, com o objetivo de cooptá-los na

legitimação do regime autoritário implantado. Apregoava-se uma integração entre as

classes sociais, integração esta com feições fascistas.

Este modelo de Estado começa a entrar em crise já na década de 1970, com o

agigantamento da máquina estatal e conseqüente falência fiscal do Estado. A década

de 80 foi palco de alguns avanços na universalização do atendimento sem aumento da

infra-estrutura, acirrando problemas fiscais.

É importante destacar o papel destinado à Constituição Federal de 1988 na

proposta de estruturação de um Estado Providência no Brasil, que deveria estar

voltado para a “universalização dos direitos sociais, participação da sociedade na

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definição das políticas sociais e descentralização político-administrativa” (SOUZA

FILHO, 1999, p. 102).

Se a década de 1980 terminou com o grande avanço rumo a universalização

dos direitos sociais com a Constituição de 1988 no Brasil, com ele também vem o

consenso de Washington e a aplicação contundente das políticas neoliberais na região

da América-Latina.

Como referido anteriormente, o Consenso de Washington buscou discutir uma

“salvação” para a América Latina, região crivada pela estagnação, inflação e dívida

externa. Dessa maneira, formulava-se o receituário neoliberal que devia ser cumprido

incondicionalmente, para que houvesse a tão requisitada renegociação da dívida

externa. Assim, houve uma transferência de decisão dos estados nacionais para as

entidades internacionais (UGÁ, 2004, p. 57).

No que se refere às políticas sociais, Sposati (2003) destaca que o impacto do

neoliberalismo na América Latina não será o “desmanche social”, mas uma

“regulação estatal do social” em meio a situações de redemocratização e conquista do

Estado de Direitos, fato que ocorre apenas no último quartil do século XX. Trata-se

de uma “regulação social tardia”, pois o modelo de Welfare State europeu data do

final do segundo quartil do século XX.

Ora, quais são as características das políticas sociais nos países latino-

americanos sob o contexto neoliberal? Qual a configuração do espaço público com a

desregulamentação de funções antes centradas no Estado? Como pode-se afirmar que

a situação de rua advém de uma tal precarização das relações entre o cidadão de

direitos e o Estado?

Comecemos por discutir a primeira questão.

A prerrogativa de um estado minimalista por si só já se reflete na destinação

de verbas para as políticas sociais. O psicólogo Yamamoto (2003) avalia a redução

substancial do gasto público no setor social dos países latino-americanos, ao realizar

uma comparação entre as décadas de 1980 e 1990. Assim, pode-se falar que o Estado

mínimo representa o que o autor denomina um “progressivo descompromisso do

Estado com o financiamento da proteção social” (p. 47).

Considerando os problemas sociais causados pela política neoliberal de

desenvolvimento econômico, principalmente oriundos da concentração de renda e

precarização das relações de trabalho, as políticas sociais passam a ser de caráter

eminentemente compensatório, ou seja, tenta-se compensar os estragos sociais

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oriundos da economia neoliberal a partir de programas sociais (PINHEIRO, 1995).

Segundo Sposati (2003) e Pinheiro (1995), observa-se a ocorrência de

políticas sociais impregnadas pelo “focalismo”, ou seja, não mais apreendem

universalmente todo o cidadão, mas passam a ser restritas aos pobres - como as tão

enfatizadas políticas de combate à pobreza. A este focalismo, se alia um

“reducionismo” na questão da renda. Ou seja, o fato de não possuir renda é que

legitima a inclusão na política social, não mais dirigida a todos os cidadãos.

Se o direito não é mais universal, ele também passa a não ser mais

permanente. Segundo Sposati (2003), começam haver políticas sociais de “alta

rotatividade”, com acesso transitório. Isto ocorre porque o indivíduo é auxiliado

somente até o momento em que consegue superar sua condição e se tornar um

consumidor comum.

No que se refere ao financiamento das políticas sociais, observamos surgir o

movimento de uma pluralidade de financiamentos, onde antes havia uma

centralização de financiamento no Estado (PINHEIRO, 1995). Outorgar

responsabilidades a outros agentes sociais, como as empresas capitalistas - com sua

(ir)responsabilidade social - e a sociedade civil pode trazer o problema da

“refilantropização do social” (SPOSATI, 2003); ou, como pondera Souza Filho

(1999), imprimir um caráter assistencialista e filantrópico que pode constituir uma

forma de desrresponsabilização do Estado pelas políticas sociais.

A mesma descentralização ocorre em relação à gestão das políticas sociais. Na

melhor das hipóteses, essa descentralização pode favorecer a democratização e

controle social da política social. No entanto, Souza Filho (1999) destaca o perigo

dessas parcerias do Estado com as ONGs se tornarem relações puramente mercantis.

Neste último caso, os convênios podem constituir uma espécie de terceirização dos

serviços estatais a partir das organizações não-governamentais, pois o Estado

estabelece uma relação mercantil de compra de serviços prestados pela ONG à certa

comunidade.

Há também o perigo da descentralização contribuir para a fragmentação das

políticas sociais em negação à universalização. Tal fato pode ocorrer em virtude da

tendência de cada ONG se concentrar nos interesses particularistas dos seus assistidos

em detrimento dos direitos sociais de todos cidadão.

Subjacente a todas essas transformações, Sposati (2003) aponta uma

proliferação de uma cultura privatista e liberal, típica do neoliberalismo. Assim,

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funda-se a primazia do consumidor sob o cidadão, reservando a regulação social

àqueles incapazes de consumir no mercado. Em outras palavras, os direitos sociais

passam a não ser considerados universais do cidadão, mas subsidiários àqueles

consumidores particulares que não conseguem comprar as mercadorias no mercado. A

lógica privatista e mercadológica é ainda mais explícita quando se auxilia somente

aqueles indivíduos que estão sem condições de consumir no mercado e apenas até o

momento em que conseguem fazê-lo, como vimos na característica de alta

rotatividade das políticas sociais em tempos de neoliberalismo.

A cientista política Vivian Ugá (2004), em pesquisa sobre as recomendações

de combate à pobreza feitas pelo Banco Mundial aos países latino-americanos,

ressalta que por traz do receituário neoliberal há uma concepção de sociedade

dividida em: de um lado o indivíduo “competitivo”, que consegue se manter no

mercado de trabalho e sobreviver a partir de mercadorias adquiridas no mercado

consumidor; e o indivíduo “incapaz”, fora dos mercados de trabalho e consumidor,

que se vê na dependência do Estado. Não é à toa que Yamamoto (2000) relaciona as

idéias neoliberais, infinitamente menos fundamentadas em relação às liberais, com o

“darwinismo social”: é a lei da selva, a seleção natural em que os melhores

sobrevivem à custa da eliminação dos incapazes.

Ugá, no entanto, destaca o caráter individualista e culpabilizador dessa

concepção: “O pobre é o indivíduo incapaz, que não consegue - ou não garante - o seu

emprego e nem mesmo a sua subsistência. Conseqüentemente, a pobreza acaba sendo

vista como um fracasso individual daquele que não consegue ser competitivo” (2004,

p. 60).

Enfim, não seria exagero falar em uma precarização dos direitos sociais que

passam a ser negligenciados. Como aponta Sposati, há uma “precária cobertura”, ou

seja, há uma “precarização dos serviços”. Têm acesso às políticas sociais somente

aqueles que não conseguem consumir serviços privados, são “programas para

necessitados” e não políticas sociais para cidadãos. Nas palavras de Souza Filho

(1999, p. 103), a partir da década de 1990 vivemos um “padrão minimalista de

efetivação de direitos sociais”.

Em suma, o formato de Estado tipicamente moderno pode ser considerado o

Estado de Bem-Estar social, atrelado à figura do cidadão que tem respeitado seus

direitos sociais básicos, tais como a habitação, saúde, educação, segurança, entre

outros. Tais direitos eram universais, uma vez que deviam ser garantidos a todas as

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pessoas independente de sua etnia, classe social ou qualquer outra peculiaridade.

Com a desregulamentação das tarefas antes centralizadas no Estado, a própria

esfera pública, sofre severas transformações. Isto porque a desregulamentação do

Estado abre arestas na vida política que são preenchidas atualmente por organizações

não-governamentais e uma série de outras formas de organização que se inserem na

denominação “Terceiro Setor”. Longe de propor uma análise pormenorizada, apenas

nos restringiremos a dois pontos fundamentais: o que se entende por Terceiro setor e,

principalmente, como ocorrem as transformações nas práticas coletivas durante a

década de 1990 no Brasil.

Rifkin (2000) é categórico ao afirmar que diante do processo atual de

desaparecimento do Estado e globalização da economia, há um espaço de atuação na

sociedade civil, um “processo de libertação”, que deve ser preenchido por um “setor

não-governamental”. É certo que esse surgimento possui diversas diferenças

regionais, como apontam os estudos de Fernandes (2000) e Gohn (2000, 2001), mas

não aprofundaremos a questão.

O que nos cumpre dizer é que com a minimalização do Estado, que representa

o primeiro setor, e a desterritorialização do mercado, tido como segundo setor, abre-

se o campo de atuação do Terceiro Setor, que constitui uma “esfera pública não-

estatal” atrelada ao “fortalecimento da sociedade civil” (CARDOSO, 2000). Trata-se

de uma esfera que não se submete à lógica privativa e lucrativa do mercado, nem

tampouco à burocratização estatal. Cardoso se refere à redefinição dos espaços

públicos e privados a partir do Terceiro Setor que acaba por englobar uma diversidade

imensa de organizações e reivindicações.

De forma geral, poderíamos defini-lo como:

O conjunto das atividades das ONGs e movimentos sociais, juntamente com os grupos sociais organizados ao seu redor, têm gerado um tipo de associativismo em nível do poder local e passou constituir um setor da economia que está sendo denominado como uma “economia social” ou, simplesmente, terceiro setor, que se apresenta com fins públicos não voltados para o lucro (GOHN, 2001, p. 17).

À exemplo de Cardoso, Gohn (2000) também fala com entusiasmo de uma

“nova concepção de sociedade civil” surgida na década de noventa, fruto da

participação popular na década anterior. Assim, expande-se o espaço “público não-

estatal”, responsável pela relação entre sociedade-Estado que exerce papel de

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mediação entre coletivos organizados e instâncias do sistema governamental. Gohn vê

isso como uma ênfase na cidadania e uma reconstrução do espaço público, rompendo

com uma tradição da “cultura política tradicional-clientelista do favor e da

submissão” (p. 302).

Para Gohn (2000), a ênfase na esfera pública não-estatal pode ser

compreendida a partir da análise das mudanças mais gerais nas práticas coletivas

durante a década de 1990, em contraposição à década anterior.

Em virtude do processo de redemocratização após a ditadura militar, a esfera

pública nã-estatal na década de 1980 se concentrava no “paradigma da ação social” e

girava em torno de movimentos populares urbanos (GOHN, 2000). Daí a

característica de maior mobilização popular nas ruas que marca essa época. Havia

também uma relação muito mais conflituosa com o Estado, na medida em que ele era

bastante associado à repressão. Outra característica marcante era a aglutinação dos

movimentos sociais em torno da questão política (direitos sociais e cidadania),

marcadamente com uma ligação ideológica com a esquerda. Isto explica a estreita

ligação desses movimentos sociais com partidos, sindicatos ou Igreja, nomeadamente

sua ala atrelada à Teologia da Libertação, além da proposta centrada na questão

econômica de mudar a história a partir de uma revolução social. Ou seja, lidavam com

questões mais gerais de alcance universal (GOHN, 2001).

As transformações ocorridas durante a década de noventa vão desmantelar

essas formas de organização. Gohn (1999) enfatiza que há claras relações com o

contexto global de desemprego, o fim das utopias e a queda do Muro de Berlim. Não

obstante, aponta a necessidade de observar alguns elementos internos que também

auxiliaram a formar a crise dos movimentos sociais, como a existência de pessoas

mais interessadas em defender projetos políticos-partidários ou religiosos do que com

a demanda real de suas bases ou algumas lideranças que almejavam mais cargos nas

administrações públicas do que qualquer outra coisa.

O fato é que, na década de noventa, a primazia dos movimentos sociais vão

dar lugar à predominância da articulação entre ONGs, governo e empresários. De

maneira geral, essas novas formas de organização enfatizam políticas a nível local e

demandas mais particularistas, além de não estarem restritas à questão econômica na

medida em que enfocam os planos cultural, ético e moral. Em conjunto com o

enfraquecimento da mobilização em torno de questões urbanas, esses fatores explicam

a substituição de grandes mobilizações por pequenas manifestações no âmbito mais

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identitário. Trata-se também de um processo “pouco ou nada politizado”, embora

esteja bastante “integrado às políticas neoliberais” (GOHN, 2001, p. 18). É um

período em que se apela muito mais à consciência individual do que à consciência

coletiva (GOHN, 2000). Impera a “lógica dos resultados”, da eficiência, típica do

mercado, além de estreita integração e dependência em relação ao financiamento

oferecido pela máquina estatal. Em detrimento dos militantes, as ONGs dependem de

técnicos, mesmo para conseguir elaborar projetos a serem financiados, havendo

alguns indícios de dependência das organizações populares em relação a seus

técnicos.

Alguns desses elementos de explicam pela própria formação histórica das

ONGs na América Latina. Elas estiveram atreladas a campanhas de desenvolvimento

de países subdesenvolvidos, a partir da década de 50. Essas “ONGs

desenvolvimentistas” foram muito criticadas pela esquerda no Peru, mas no Brasil e

no Chile tiveram importante papel nas ditaduras militares na década de 70 e 80, pois

eram uma forma de associação legal. Dessas experiências, Gohn (2001) fala de

“ONGs cidadãs e militantes” que se aproximam de movimentos de esquerda contra o

regime militar. A partir da década de 90, essas ONGs cidadãs na América Latina se

modificam: com as agências patrocinadoras voltando seus recursos para a

redemocratização no Leste europeu, surge severa crise financeira. Dessa mudança no

financiamento, o funcionamento das ONGs de alterou: começaram a lutar por

recursos próprios ou de fundos públicos. A auto-sustentação ficou na ordem do dia e

as atividades produtivas foram tomando espaço cada vez maior, substituindo as

“atividades de militância política”. Gerar renda aos integrantes da organização para

sustentá-la era uma preocupação dominante. Essas transformações também exigiram a

“qualificação de seus quadros”, a “eficiência e produtividade na gestão de projetos

sociais”. Assim, ter pessoal qualificado para conseguir financiamento substituiu a

militância política que era enfatizada anteriormente.

Por fim, há algumas dificuldades que acompanham tanto os movimentos

sociais quanto as ONGs. Como uma das características da política contemporânea

levantadas por Eagleton (1998), ocorre a tendência de abdicação de ideais

“universais” para lutas de minorias, como questões relacionadas ao gênero e a etnia.

Assim, há o problema do corporativismo, pois os movimentos estão “entrincheirados

em si próprios” (GOHN, 2000). Gohn (1999) destaca ainda elementos da cultura

política: reproduzir formas de dominação presentes nas classes dominantes, mesmo

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quando surgem movimentos idôneos e comprometidos com a transformação social.

No entanto, há algumas críticas dirigidas especialmente ao período das ONGs

(GOHN, 2000): seria uma resposta das elites aos movimentos sociais da década de

1980, como forma de continuar a exploração da força de trabalho de uma outra

maneira, além de alimentar a desobrigação do Estado. Ou, ainda, a predominância de

assessoria técnica no lugar de militantes das comunidades pode gerar um retrocesso a

um “comportamento político tradicional das camadas populares: de passividade, de

espera para que os outros resolvam seus próprios problemas” (GOHN, 1999, p. 105).

Não mais a ênfase na participação ativa, a cidadania, a influência na gestão da coisa

pública como vigorou na década de 1980.

Em suma, com o neoliberalismo, o Estado passou a ser questionado em suas

atribuições, degenerando em um Estado minimalista que representou o esfacelamento

do Estado em seu sentido moderno. Podemos dizer que se trata de um Estado do

“Mal-Estar Social”, pois se caracteriza pela implantação de um modelo de

desenvolvimento econômico altamente oneroso do ponto de vista dos problemas

sociais que gera. O aumento desses problemas, paradoxalmente, é concomitante a

total precarização das relações do cidadão de direitos com o Estado. Isto porque o

cidadão passa a ser considerado como consumidor que deve comprar seus direitos

básicos no mercado. Enfim, embora seja legalmente um cidadão de direitos, sua

relação precária com o Estado faz com que seja, concretamente, um cidadão lesado

em seus direitos básicos. Logo, há cidadãos que acabam não tendo acesso a um direito

tão fundamental como a habitação, pois como consumidores não conseguem comprá-

la e como cidadãos são desatendidos, vivenciando a situação de rua.

Esta é a opinião de Vieira, Bezerra e Rosa (1992) quando destacam que a

população de rua é caracterizada como um contingente desatendido em seus direitos

sociais. Ora, se podemos dizer que a situação de rua é gerada também pela

precarização dos direitos sociais do cidadão, quais políticas sociais se dirigem à

pessoa em situação de rua? Ou melhor, pode-se dizer que as políticas sociais atuais

procuram ressarcir os direitos sociais desatendidos?

Com o objetivo de responder a tais questões, uma análise das políticas sociais

para a população em situação de rua paulistana a partir da década de 1990 pode ser

emblemática. Emblemática porque se inicia, na gestão da prefeita Luiza Erundina,

com uma proposta marcadamente moderna de lutas pelos direitos sociais e, no

decorrer da década, vai se transformando em políticas focalizadas, compensatórias e

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assistencialistas.

Nesse sentido, duas pesquisas são especialmente importantes. Falamos das

dissertações de mestrado da assistente social Maria Aparecida Pereira (1997) e da

socióloga Joana Barros (2004). De maneira semelhante, ambas se utilizam de uma

análise de documentos públicos e entrevistas com técnicos e usuários para

compreender a interface das políticas sociais com a conquista de direitos sociais

universais para os membros da população em situação de rua.

Em importante retrospectiva histórica, Barros (2004) evidencia a situação das

intervenções sociais realizadas até a década de 1980. Eram entidades privadas que

promoviam práticas assistenciais e de caridade, articuladas com uma ação estatal

eminentemente repressiva. Como exemplo, a autora cita as campanhas sanitárias e de

higienização como forma de intimidação policial e aplicação de sanções políticas,

atreladas a um sistema filantrópico de prestação de favores.

Um marco fundamental na transformação desse panorama é a gestão da

prefeita Luiza Erundina (Partido dos Trabalhadores, 1989-1992). Tanto Pereira como

Barros, destacam que foi a primeira vez que as pessoas em situação de rua passaram a

ser vistas como atores sociais e políticos que deveriam lutar pelos seus direitos

sociais.

Neste contexto, Pereira (1997) expõe algumas características importantes. O

objetivo das ações passa a ser organizar um projeto político entre entidades, prefeitura

e população, com o fito de lutar para a conquista da cidadania e direitos sociais e

políticos. Ou seja, deve-se construir uma proposta de geração de uma política social

pública vinculada aos direitos, ao resgate da cidadania, e não à tutela ou favor.

Além da democratização dos debates sobre as políticas públicas, a partir da

criação do Fórum Coordenador (constituído representantes do poder público e

membros das entidades), Barros (2004) destaca a ênfase dada às casas de convivência.

Baseadas em intervenções pioneiras da Organização do Auxílio Fraterno (OAF), elas

tinham o objetivo de promover um espaço de convívio, organização coletiva,

discussão sobre a situação de rua e luta pelos direitos sociais.

Como resultado desse ambiente democrático, foi durante a gestão de Erundina

que surge a visibilidade pública da população de rua paulistana em intenso

“movimento reivindicatório” que abrangia passeatas, atos públicos na Câmara

Municipal, manifestos e a criação do Dia de Luta do Povo de Rua.

O decorrer da década de 1990 foi marcado pelo desmantelamento dessa luta

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coletiva pelos direitos sociais. As gestões de Paulo Maluf (ex-PPB, atual Partido

Progressista, 1993-1996) e Celso Pitta (ex-PPB, 1997-2000) inauguram outra forma

de lidar com a população em situação de rua, típica de gestões conservadoras. Em

detrimento da visibilidade pública da população de rua, procura-se instituir

justamente o contrário: sua remoção, muitas vezes violenta, do espaço público e seu

confinamento em albergues municipais. Falamos dos programas de “limpeza pública”

calcados na necessidade de higienizar e sanitarizar os espaços públicos, por meio da

retirada compulsória das pessoas em situação de rua com jatos d´agua: “Uma

higienização desse tipo só teve precedentes na Alemanha nazista” (PEREIRA, 1997,

p. 126).

Barros (2004) avalia que foi uma época de repressão e confinamento

concretizada no “superávit” das vagas em albergues, que escondem as pessoas

miseráveis das vistas dos demais cidadãos.

Discutiremos com mais detalhes a questão do sistema albergal no próximo

capítulo. Por ora, basta definir uma questão importante: Não mais legitimado pelo

papel de proteção social do cidadão e de regulação da economia, que aspecto

legitimaria o Estado atualmente? Bauman (2000) é enfático: não conseguindo

amenizar a angústia dos indivíduos, posto que oriunda de forças globais dispersas e

não identificáveis, o Estado adquire legitimidade fomentando alvos indefesos e

prontamente identificados como responsáveis pela insegurança existencial. Assim,

coloca em primeiro plano a segurança pessoal a partir de “estratégias de

periculização” de algumas minorias desfavorecidas. As políticas de “tolerância zero”,

implantadas em Nova Yorque, que serviram de modelo de segurança, assim como a

caça aos terroristas, seguem essa lógica: criminalizar grupos isolados, apontá-los

como responsáveis pelo clima geral de insegurança e promover ações de

aprisionamento e eliminação.

Em suma: “A nova demanda popular por um poder de Estado vigoroso (...) é

construída sobre os pilares da vulnerabilidade e da segurança pessoais, e não da

precariedade e da proteção sociais” (BAUMAN, 2005, p. 113). Logo, o Estado

passou de bem-estar social ao “modo penal”, punitivo, voltado para a segurança

pessoal a partir da “justiça criminal” ou do “controle do crime”. Neste contexto,

populações são eleitas como potencialmente criminosas e segregadas em locais onde

não ofereçam mais perigo aos cidadãos inseguros. Veremos como esse aporte teórico

pode ajudar o entendimento do sistema albergal.

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A gestão municipal de Marta Suplicy (Partido dos Trabalhadores, 2001-2004)

foi marcada pelo lançamento do “Programa Acolher: reconstruindo vidas”, em maio

de 2001. Barros aponta a contradição central do programa, localizada no discurso de

luta pelos direitos sociais a partir de uma crítica ao assistencialismo, ao mesmo tempo

em que se promove atendimentos práticos que contrariam este discurso, na medida em

que se fundamentam no assistencialismo, no humanitarismo, na cristandade, no

voluntariado - formas de atuação tangenciadas pelo neoliberalismo.

Retomando alguns aspectos que já discutimos anteriormente, Barros analisa as

transformações nas políticas públicas para a população de rua no decorrer da década

de 1990. Relata que houve um movimento de agenciamento a partir de empresas e sua

“responsabilidade social”, que traz o perigo de responsabilizar o capital para montar

políticas públicas e desresponsabilizar o Estado. O financiamento privado das

políticas sociais também redunda na ausência de uma discussão pública no que se

refere a destinação dos recursos.

Trata-se de um mecanismo que pode ser entendido como maneira de

despolitizar a população de rua:

Contudo, poderíamos questionar se este discurso da participação na gestão pública da cidade, que parece dirigir-se mais aos anos 1980 e à luta pela democratização do Estado, não enclausura a população de rua na redoma do assistencialismo, num mecanismo perverso de desaparecimento público, sob o nome de ‘ação cidadã’, que parece casar muito mais com os movimentos de desresponsabilização do Estado ao longo dos anos 90, e com o encolhimento das políticas públicas universais (BARROS, 2004, p. 57).

Além da enorme quantidade de convênios, do financiamento que conta com a

ajuda privada e da despolitização, Barros destaca a proliferação de “programas

compensatórios desenraizados do campo dos direitos”, tais como as políticas sociais

“inclusivas”.

Por fim, a autora discorre sobre o que denomina criação fragmentada de

guetos isolados de atenção à população, quase descolados do contexto sócio-histórico

e das discussões públicas sobre o horizonte de universalidade.

Logo, se as pessoas em situação de rua vivenciam essa condição pelo

esfacelamento da noção de universalidade de direitos sociais e pela precarização da

relação do cidadão com o Estado, a manutenção dessa condição também perpassa pela

perpetuação das políticas sociais sob a égide dos ideais neoliberais.

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3.4 - Trajetórias concretas de rualização

Ora, o que estas tais precarizações têm haver com a rualização? Como esses

processos de liquidificação da sociedade moderna podem auxiliar no entendimento da

ida para as ruas?

Se até agora procurarmos enfatizar os mecanismos sociais em termos mais

gerais, que afetam todos os cidadãos no mundo, é chegada a hora de focar na situação

de rua como condição que escancara esses mecanismos.

Porém, cabe observar: Qual trabalhador nunca teve medo do desemprego ou

sofre com o emprego informal e pagamentos reduzidos? Qual cidadão não sofre,

direta ou indiretamente, com a falta de saúde, educação, habitação e segurança

públicas para todos? Qual pessoa não sofre com a superficialidade, futilidade e

descartabilidade das relações entre humanos, principalmente no interior da família?

Logo, o contexto que possibilita a situação de rua é o contexto que é vivido

intensamente com a passagem da domesticação ao nomadismo. Porém, alguns de nós

acabam sendo enredados nessas contradições da vida moderna de maneira mais

contundente. A estas trajetórias, de pessoas em situação de rua, é que nos

dedicaremos de maneira minuciosa.

Embora cada uma das trajetórias de ida às ruas esteja imbricada com as

precarizações que descrevemos, todas elas são também distintas e singulares. Como

assinalamos em momento anterior (MATTOS, 2003), conhecer os motivos que

levaram uma pessoa à situação de rua implica em compreender sua história de vida,

pois muitos dos conflitos familiares ou inserções precárias no mercado de trabalho

possuem raízes profundas na infância e adolescência.

Achamos bastante conveniente, também, a idéia central de Oliveira (2001),

segundo a qual a rualização faz parte de um círculo de pobreza a ser rompido. Tal

círculo, muitas vezes, envolve a miséria vivenciada pela famílias das pessoas que

futuramente estarão em situação de rua.

No entanto, podemos elencar os motivos de rualização de maneira a

compreender alguns processos mais comuns de ida à rua.

Antes, porém, um parêntese se faz necessário.

Certa feita conhecemos João (nome fictício), um senhor de ascendência

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japonesa, com aproximadamente sessenta anos de idade, dos quais mais de vinte nas

ruas de São Paulo. Dizia ele que havia feito carreira na área da contabilidade,

constituído família e abandonara todas essas “pressões” (do trabalho e da família)

para viver livre na rua. Usuário constante de maconha, João confidenciou que esse

hábito não era aceito quando de sua vida domiciliada e preferiu ir para as ruas onde

podia fumar maconha sem repressões, além de deixar de cumprir algumas regras

sociais das quais discordava frontalmente.

Este é um dos raríssimos casos de vivência voluntária da situação de rua, ao

menos em nossa experiência junto a essas pessoas. A ida para rua como busca de

liberdade foi apontada por Padre Arlindo Pereira Dias como característica principal

de um dos cinco “tipos de moradores de rua” (JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO,

03/09/1995). Também chamados de “mendigos por filosofia”, eles possuem algo de

análogo com os hippies, que exerciam esse modo de vida como forma de crítica à

sociedade de consumo.

Tais casos, entretanto, não podem ser generalizados, nem tampouco tornados

típicos das pessoas em situação de rua. Segundo Snow e Anderson (1998) esta

perspectiva “voluntarista” é muito mais um atributo das representações sociais do que

um fato concreto nas ruas. Uma das pioneiras nos estudos sobre as pessoas em

situação de rua no Brasil, Delma Pessanha Neves (2003), declara que essa idéia de

que a pessoa está na rua por sua vontade, a “idéia de opção”, é “meio burguesa”, pois

trata-se de pressupor que a pessoa teve de fato uma escolha dentre outras

possibilidades.

Assim, salvo essas raras exceções, podemos delinear algumas trajetórias mais

comuns da grande maioria que sofre a rualização involuntariamente e a interpreta de

maneira pejorativa, como um fracasso.

O cerne para se pensar a situação de rua é tomá-la como um processo que

implica, necessariamente, rupturas com o trabalho e a família, além do

desatendimento à habitação como um direito social básico de todo o cidadão. A

precarização da vida moderno-líquida, como vimos, encontra expressão concreta na

degradação dessas instituições que antes ofereciam segurança existencial.

Assim, ao menos no Brasil, a situação de rua é motivada pela ausência de

respeito ao direito de habitação. Alguns podem aludir que há casos de pessoas que

deveriam estar no manicômio e não na rua. Nesses casos o dever do Estado é

resguardar a saúde dos cidadãos, seja por meio de internações provisórias em

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hospitais psiquiátricos ou redes substitutivas, como o Hospital Dia ou os CIPS

(Centro de Intervenção Psicossocial). Conhecemos alguns casos, um deles retratado

em artigo recente (MATTOS; FERREIRA, 2005), de idosos que vivenciam a situação

de rua dada a insuficiência do benefício recebido para alugar um local fixo de

moradia. Em ambos os casos o Estado não pode ser eximido de sua responsabilidade.

As trajetórias de desvinculação do trabalho e da família são as mais variadas

possíveis.

Uma primeira forma de ida às ruas é a partir de um processo de

desinstitucionalização. Trata-se de pessoas que viveram durante algum tempo em

instituições totais, tais como FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor),

hospitais psiquiátricos ou penitenciárias. Como é bem sabido, essas pessoas acabam

por ser estigmatizadas e a readaptação à vida livre após o fim da permanência nessas

instituições não é algo fácil. A pessoa egressa pode se desvincular da família após a

conquista de liberdade prisional em virtude da morte de parentes, de ser substituída

em seu papel de marido ou esposa ou de não encontrar mais meios de reatar laços

após o tempo de afastamento. Conhecemos casos de pessoas que deliberadamente

recusam-se a voltar para a família, em virtude de se sentirem inúteis e não quererem

“atrapalhar” a vida familiar.

Para os egressos de instituições totais, a conquista de um trabalho regular e

lícito também é bastante difícil, em virtude do preconceito referido anteriormente. Em

reportagem ao jornal “O Trecheiro”, Marcelo Faria (2002) faz uma pesquisa sobre

egressos do sistema penitenciário da capital paulistana e verifica essas dificuldades de

inserção no interior da família e do trabalho.

No que se refere às fragilidades no vínculo familiar, esperamos ter deixado

claro que as transformações contemporâneas na instituição da família contribuem

muito para a rualização. A casa como o espaço da estabilidade, das relações afetivas

duradouras e íntimas, da segurança do cotidiano e do controle dos indivíduos, parece

também ter se tornado um pouco de rua, com a insegurança, instabilidade e

efemeridade.

No entanto, gostaríamos de discutir outras situações mais características da

relação da família com a ida para as ruas. Para tanto, faz-se necessária uma distinção

essencial: daquelas pessoas que se desvinculam ou afastam da família de origem e, de

outro lado, as pessoas que se afastam da família de reprodução ou constituída.

No primeiro caso, Rosa (1999) observa a existência de pessoas adultas em

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situação de rua cujos vínculos familiares sofreram uma ruptura já em tenra idade. São

famílias que atravessam dificuldades de manter seus membros e solicitam auxílio de

instituições que, provisoriamente, cuidam de seus filhos até que a situação se

estabilize. Porém, quando os planos de melhoria não dão certo, a criança se

desenvolve em instituições e isto cria desde cedo uma vulnerabilidade habitacional e

afetiva que, segundo a autora, influenciaria muito na vivência da situação de rua na

idade adulta.

Em outros casos, a desintegração da família ocorre em virtude da morte dos

pais (ROSA, 1999; ESCOREL, 1999). Nessas trajetórias, é comum a pessoa ser

acolhida por familiares ou instituições assistenciais e não se adaptar a essas

circunstâncias.

De acordo com Escorel (1999), há diversos outros motes de conflitos

familiares que acabam redundando em saída do lar, principalmente entre crianças e

jovens: a violência doméstica exercida por pais ou padrastos, bem como o abuso

sexual, mais comum entre as crianças e adolescentes do sexo feminino. Nessas

circunstâncias, a pessoa procura se afastar da família por um tempo mais longo

possível com medo das agressões e abusos.

Há também, segundo Escorel (1999), inúmeros casos de desentendimentos

entre pais e filhos em virtude da gravidez de filhas adolescentes que são expulsas de

casa. Vê-se, aqui, a força ainda articulada a alguns padrões da mulher casta antes do

casamento, que, atrelada a situação financeira difícil, pode desencadear a intolerância

paterna e a saída do lar. Da mesma maneira, esta expulsão ocorre quando alguns

filhos se declaram homossexuais e também quando há episódios de sofrimentos

psíquicos - mais conhecidos como loucura e doença mental.

Nos casos de famílias de origem que atravessam dificuldades financeiras,

freqüentemente as crianças e adolescentes são recrutados para auxiliar no orçamento

doméstico e vivenciam uma situação de risco na rua. Algumas vezes, ainda segundo

Escorel (1999), ocorrem desavenças entre irmãos originadas de disparidades na

contribuição com o sustento da família. Assim, o jovem acaba sendo expulso pelo fato

de não cumprir com seu quinhão de contribuição econômica, situação mais comum

em famílias matrifocais.

Em suma, pode-se inferir que a vivência da situação de rua ocasionada por

rupturas com a família de origem esteja no cerne da vivência de alguns homens

adultos que, a partir de então, não conseguiram reatar os vínculos com a família de

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origem, nem tampouco constituir uma família de reprodução.

Uma outra situação comum, em relação às famílias de origem e procriação,

são os processos migratórios realizados por homens sós. Entre os jovens, realizamos

em outra ocasião (MATTOS, 2003) o levantamento da história de vida de Jorge, que

veio do Rio Grande do Sul para São Paulo em virtude da fuga da opressão familiar

que o pressionava em relação à conquista de independência financeira. São casos que

Rosa (1999) discute como uma associação da rua com um espaço de liberdade,

havendo a saída deliberada da casa para a rua como tentativa de “ser dono de si” ou

“tocar a própria vida”.

No entanto, o homem adulto de uma família por ele constituída pode promover

esse movimento com um objetivo duplo: fugir das relações familiares e conquistar um

emprego formal que propicie melhores condições financeiras. Esta é tese de Nasser

(2001) que faz alusão ao movimento de “sair para o mundo” como processo

individual que gera a desvinculação do grupo familiar.

A saída do homem de sua família de reprodução também pode estar associada

a morte do cônjuge ou, em casos muito mais freqüentes, a separações motivadas por

desentendimentos. Óbvio que as transformações contemporâneas na família, as

separações e os divórcios tornaram-se muito mais intensos, em virtude da fragilização

do amor romântico e eterno, bem como com o individualismo que torna as relações

conjugais instáveis, pois são mais voláteis à satisfação pessoal dos envolvidos. No

entanto, duas situações específicas merecem maior ênfase.

A primeira delas diz respeito à infidelidade da mulher na relação conjugal ou

na parceria fixa, evidenciada principalmente por Nascimento e Justo (2000) e

Nascimento (2004). Aqui, novamente as metamorfoses nas relações de gênero são

fundamentais. Antes, o homem como representante da família no espaço público tinha

mais acesso a espaços de lazer e, por vezes, seu adultério era até tolerado pela esposa

como algo normal. À esposa era facultada apenas a responsabilidade por procriação,

não a busca pelo prazer, fato que até justificava o adultério masculino em busca do

prazer. Com a fragilização da sociedade patriarcal, é possível dizer que a infidelidade

da mulher torna-se mais constante, embora culturalmente o homem parece estar muito

mais fragilizado para aceitar ou tolerar essa situação.

Os mesmos autores apresentam um segundo elemento importante: a presença

do álcool como principal elemento de desestruturação familiar, faceta referenciada

também por Mattos, Campos e Ferreira (2004) e Nasser (2001).

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Esta última, no entanto, parece descrever de maneira mais minuciosa e precisa

as influências do álcool na desvinculação da família e do trabalho, simultaneamente.

De início, o álcool é consumido somente com o significado de lazer e

descompromisso com as obrigações domésticas e laborais. Trata-se de uma forma de

liberdade e uma válvula de escape frente às pressões sociais oriundas do trabalho e da

família. Paulatinamente, esse abuso vai se tornando constante, gerando somente

pequenas discussões familiares e descompassos no trabalho. Assim, tais episódios vão

se tornando mais freqüentes, com a mesma intensidade em que aquele consumo

transforma-se em dependência química e psicológica.

Entra-se em um círculo vicioso. O alcoolista passa a chegar embriagado no

trabalho, indisposto após uma noite de bebedeira. Alguns chegam a beber durante o

expediente. Assim, freqüentemente sofrem acidentes de trabalho ou mesmo são

demitidos. Em relação à família, ocorre processo similar, pois cada bebedeira gera

discussões que vão afastando cada vez mais o homem da família. Por fim, o círculo se

completa quando o abuso do álcool gera esses problemas na família e no trabalho e

esses mesmos problemas tornam-se ensejo para retroalimentar o abuso.

Esse processo pode ser emblemático da situação de rua motivada

principalmente pelo abuso de álcool que desestrutura a relação do homem com a

família e o trabalho.

Há outro fator que gostaríamos de enfatizar, talvez como fundamental para a

ida à rua do homem adulto. Trata-se da crise do papel de homem como

“provedor/chefe de família” (BAZON, 2000) ou a “fragilização do homem” no

interior do grupo familiar (AMAZONAS et al., 2003).

Em seu estudo sobre a dinâmica das famílias de classes populares, Bazon

expõe a importância moral da “ética do provedor”. De acordo com ela, o papel

“homem-provedor” possui sua funcionalidade material de sustento financeiro da

família, mas principalmente um valor simbólico como sinônimo da “dignidade” do

homem e eixo central de organização de sua identidade.

Para a autora, essa moralidade é tão forte que quando o homem trabalha e

sustenta a família, até mesmo o alcoolismo e a violência doméstica são tolerados

pelos familiares e pela comunidade.

No entanto, diante do atual contexto econômico, cravado no desemprego e

precarização das relações de trabalho, torna-se mais difícil ao homem manter seu

papel de provedor e, conseqüentemente, sua dignidade pessoal. Logo, desempregado

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e sem condições de sustentar sua família o homem é desmoralizado, como descrevem

Amazonas et al. (2003) ao registrar que a “deterioração da imagem masculina” está

muito mais ligada ao desemprego do que a fatores outros, como envolvimento em

atividades ilícitas ou abuso de álcool e outras drogas.

Destituído do papel de provedor, o homem, algumas vezes, acaba optando por

“comportamentos de desistência, pânico e fuga, direta ou indiretamente decorrentes

de um revés social” (BAZON, 2000, p. 43).

Uma das formas assumidas por essa desistência ou fuga é a situação de rua,

como corroboram Vieira, Bezerra e Rosa (1992, p. 17):

Neste processo [de crise financeira], seu papel de provedor sofre uma desqualificação e ele passa a ser alvo de pressão por parte da família, bem como do mercado de trabalho. Este é um dos caminhos possíveis de chegada até a rua, momento em que o trabalhador, sob essa pressão, rompe os vínculos com a família e o trabalho, atravessando o limiar tênue que no imaginário social estabelece os parâmetros de uma ordem legítima de vida.

Diante dessas crises econômicas, Escorel (1999) destaca a ocorrência de

diferentes posicionamentos de acordo com o gênero. Assim como o homem tende a

estar mais suscetível a sair para a rua, a mulher tende a desenvolver diversas outras

estratégias de sobrevivência, de maneira a permanecer em seu local histórico do lar,

fato que explicaria a predominância do sexo masculino entre a população em situação

de rua:

A intervenção da rede de parentesco, a legitimidade do recurso à família de origem, o maior acesso ao emprego doméstico, as referências simbólicas de identidade ligada à casa podem ajudar a entender o porquê de as mulheres constituírem uma minoria dentre a população de rua (ESCOREL, 1999, p. 115).

Independente desse recorte na questão do gênero, a instituição familiar de

modo geral se tornou bastante frágil para oferecer a estabilidade, segurança e

afetividade antes tão comuns. Fragilizada pelo individualismo, pela primazia das

satisfações pessoais e instabilidade das relações ocorre uma “precariedade do grupo

familiar”, o que denota sua insuficiência para lidar com os conflitos relacionais

(PASSOS, 2002).

Se na função de segurança a família já não se mantém, em sua função de

sustentação econômica ou bem-estar físico as dificuldades são ainda maiores

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(BUCHER, 1999).

Ao lado dessas complexas motivações para a situação de rua originadas na

família, muitas vezes associadas a outras situações relacionadas ao trabalho e ao

álcool, a pessoa não vivencia a situação de rua se tiver um trabalho que lhe garanta

rendimentos estáveis para fixar residência. As precariedades no que se refere ao

trabalho não são menos complexas.

Há diversos casos nos quais a vulnerabilidade ocupacional se inicia ainda na

infância em virtude do trabalho infantil. Pessoas oriundas de famílias pobres, desde

cedo devem contribuir para o orçamento familiar, como dito anteriormente. Outras

vezes, a ida para as ruas com o objetivo de conseguir algum dinheiro está atrelada à

fuga de agressões domésticas ou outros desentendimentos. A criança pode mesmo

tentar ganhar alguns dinheiro como forma de adquirir alguma independência em

relação aos pais ou para adquirir alguns dos abundantes produtos veiculados nos

meios de comunicação de massa que muitos pais não podem comprar.

Considerando a ilegalidade do trabalho infantil, muitas vezes ele se traduz em

pequenos bicos, como a venda de doces, guardação de carros, o ofício de engraxate

ou mesmo realização de atividades ilícitas, como o aliciamento para atuar no tráfico

de drogas.

Ocorre que esta inserção precoce tem suas conseqüências: no mais das vezes a

criança/adolescente não consegue conciliar trabalho e escola, abandonando esta

última. Tal fenômeno pode estar por trás do alto índice de analfabetismo ou semi-

analfabetismo entre a população em situação de rua, se comparada com a população

domiciliada. Não precisamos de muitos conhecimentos do mercado de trabalho para

conceber que, nessas circunstâncias, a pessoa fica realmente muito prejudicada para

conseguir as vagas de emprego, sempre minguantes e muito competitivas.

Escorel (1999) destaca também que em grande parte das vezes a pessoa em

situação de rua possui uma itinerância constante entre inúmeros empregos, itinerância

essa que não possibilitou a especialização em um ofício, fato que contribui para a

dificuldade de ser empregado.

Acabam se tornando trabalhadores pouco especializados que se auto-

denominam “pau para toda obra”, realizando qualquer atividade para receber qualquer

rendimento. Como tais atividades, geralmente, se configuram como bicos, trabalhos

informais ou com rendimentos instáveis, o indivíduo não consegue manter uma vida

domiciliada em família ou sozinho.

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Enfim, deve-se considerar as transformações atuais no mundo do trabalho tal

como analisado anteriormente. Em períodos de crise econômica e precarização nas

relações de trabalho, o aumento do número de pessoas em situação de rua é

instantâneo. Basta ler algumas notícias veiculadas após o Plano Real, como a matéria

intitulada “38% dos mendigos de SP são Pós-Real” (BERNARDES; STYCER, 1995).

Após recenseamento das pessoas em situação de rua, verificou-se que 38% delas

estavam a menos de um ano nas ruas, período que coincide com os efeitos do plano de

estabilização monetária e que corrobora a denominação “mendigos do real”, criada na

matéria.

Como pôde-se perceber, se separamos didaticamente as rupturas com a

família, o trabalho e a noção de cidadão, elas são interdependentes e ocorrem

simultaneamente para ocasionar a situação de rua.

Em suma, entendendo a situação de rua como um processo que se inicia com a

rualização, neste capítulo procuramos entendê-la no encalço das transformações

recentes no mundo moderno.

A primeira proposição defendida foi de que essas transformações encontram-

se nos marcos da modernidade, embora da modernidade que passa por um processo

de esfacelamento que denominamos liquidificação. Dado o largo escopo desse

processo e nosso objetivo mais específico ligado aos motivos de rualização,

delimitamos nossa análise a três instituições modernas: o trabalho, a família e o

Estado.

Verificamos que a modernização brasileira foi fortemente marcada pela

regulamentação das relações de trabalho, principalmente a partir de 1930. O trabalho

moderno pressupunha o contrato registrado em carteira, por tempo indeterminado,

com rendimentos regulares e respeito aos direitos trabalhistas, tais como fundo de

garantia, seguro desemprego, aposentadoria, etc. Ora, trabalhando nessas

circunstâncias, quem vivenciaria a situação de rua?

Logo, a situação de rua, como confirma seu vertiginoso crescimento no

decorrer da década de 1990, está atrelada à precarização das relações de trabalho. Ou

seja, a instituição moderna do trabalho se tornou precária e teve suas características

desfiguradas: não mais registrada em carteira, mas agora informal; não mais por

tempo indeterminado, mas temporária, parcial ou sob a forma de pequenos bicos; não

mais oferece rendimentos estáveis, mas agora são rendimentos instáveis que não

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proporcionam a mínima segurança financeira; não mais respeita os direitos

trabalhistas, que passaram a ser privilégios de uma minoria.

A modernização brasileira também trouxe consigo o aburguesamento ou

modernização da família tradicional, que se tornou família moderna burguesa. Era

uma família marcada pela divisão de tarefas de acordo com o gênero, sendo o homem

provedor financeiro e representante legal da família, ao passo que à mulher era

reservada a responsabilidade de cuidar do lar. O relacionamento conjugal era

formalizado, pela Igreja e pelo Estado, e tinha como premissa um amor romântico

eterno e um casamento para o resto da vida. Que membro de uma família estável, que

garantia a sobrevivência econômica de todos os seus, vivenciaria a situação de rua?

Novamente, as transformações na família contemporânea fizeram suas

relações internas precárias, instáveis e informais, facilitando desvinculações que

podem estar contribuindo para a situação de rua.

A modernização brasileira, enfim, foi realizada sob a égide de um Estado

desenvolvimentista com feições de Estado de Bem-Estar Social, que pretendia

garantir a universalidade de acesso aos direitos sociais básicos como os de saúde,

educação, habitação e segurança. Tendo resguardado o direito à habitação, que

cidadão vivenciaria a situação de rua?

Por conseguinte, a situação de rua é originada pela precarização das relações

entre o cidadão de direitos e o Estado, fato que ocorre quando este é transformado

pelo neoliberalismo em minimalista, que batizamos de Estado do Mal-Estar Social.

Tais fenômenos globais se materializam de diferentes maneiras no âmbito das

histórias de vida das pessoas que vivenciaram a situação de rua. Desta maneira, neste

subcapítulo tivemos a possibilidade de enveredar por algumas dessas trajetórias mais

emblemáticas.

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Capítulo 4 - Vivência concreta da situação de rua: o escancarar das contradições modernas

A existência da situação de rua no contexto moderno é uma grande

contradição. A modernização, o desenvolvimento econômico, a igualdade social, a

valorização da razão humana encontram na situação de rua seu par antagônico da

anti-modernização, da miséria, da segregação, da desrazão ou do absurdo.

A domesticação da vida, típica da modernidade-sólida, se esfacela pela

instauração do nomadismo. Assim, observaremos nesse capítulo algumas formas de

expressão da vida nômade, em muitos aspectos em pólo diametralmente oposto em

relação à vida domesticada.

Esse nomadismo encontra materialização interessante na vivência concreta da

situação de rua. Tendo o nomadismo como característica da vida atual, pretendemos

radicalizar a aproximação da situação de rua com a situação de todas as pessoas

contemporâneas. No limite, o estranho-da-rua definitivamente se tornará uma forma

de expressão das condições de subjetivação familiares a todos nós. Em suma, a

proposição que debateremos diz respeito a situação de rua como uma situação-limite

que escancara em carne viva algumas das contradições do mundo moderno.

Estas contradições também são numerosas e nos levariam para muitos

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caminhos distintos. Diante disso, enfatizaremos a relação do homem contemporâneo

com o espaço, o tempo, com as outras pessoas humanas e consigo mesmo. Longe de

lograr uma análise exaustiva dessas dimensões do ser moderno, faremos apenas um

pequena parada em cada um desses trechos, somente no ponto em que for suficiente

para podermos seguir nossa estrada.

4.1 - Situação de rua e espacialidade: seres desenraizados, de lugar nenhum

“Sou o espaço onde estou” Bachelard

“Não sou brasileiroNão sou estrangeiroEu não sou de nenhum lugar, sou de lugar nenhum”Titãs

Todos nós fomos socializados de maneira a diferenciar os espaços da casa e da

rua. Na rua sempre devíamos nos comportar diferentes: não podíamos pegar as coisas

no chão, pois eram “porcarias”, ou conversar com estranhos, tidos como perigosos.

Era um espaço distinto da casa, local onde ficávamos mais à vontade, exprimíamos

nossos pensamentos sem receios, manuseávamos os objetos sem preocupação e

conversávamos com as pessoas amistosamente.

Vimos que a ausência de residência fixa é um dos traços essenciais da situação

de rua. Como viveria uma pessoa sem a distinção de espaços tão diferentes como a

casa e a rua? Como pode-se transformar a rua em casa, transformando ao mesmo

tempo a casa em rua? Seria uma forma de construir um lugar ou, justamente o

contrário, desconstruir os lugares de maneira a formar não-lugares?

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Essas são questões difíceis que teremos que nos haver no decorrer do texto.

Antes, porém, cabe destacar que a maneira de estar em situação de rua é bastante

variada de acordo com as formas de ocupação dos espaços.

Em um extremo, temos a total eliminação da possibilidade de se ocupar um

espaço mais ou menos fixado. Trata-se da vida dos andarilhos, como vimos

anteriormente. De maneira mais amena, o trecheiro fica mais suscetível a fixações,

embora elas também sejam bastante transitórias.

Sem dúvida, o albergado é uma das pessoas em situação de rua com fixação

mais prolongada em um mesmo local. No entanto, bem sabemos que os prazos de

permanência nos albergues são bastante limitados e não se têm condições de exercício

de privacidade, fato que desestimula qualquer avaliação desses locais como algo

parecido com o espaço da casa.

Já os moradores de rua parecem ser bastante híbridos em sua forma de ocupar

provisoriamente o espaço da rua. A procura deste espaço obedece alguns critérios, tais

como a proximidade de locais onde se realiza alguma atividade lucrativa, a existência

de água para a promoção de higiene mínima, condições ou fácil acesso à alimentação

e instituições assistenciais e, por fim, distanciamento de moradias sedentárias para

tentar manter mais privacidade.

A maior parte deles prefere ficar sozinha e normalmente dorme ao léu em

espaços bastante variados, embora tente manter alguma regularidade da região que

habitam. Em pesquisa anterior (MATTOS, 2003), conhecemos a história de vida de

Cléver. Durante anos, Cléver ficava sozinho nas ruas e escolhia os mais diferentes

locais de pernoite (praças, calçada do mercadão, viadutos, ruas mais desertas,

garagens de casas abandonadas, etc.), embora todos fossem localizados na região do

Ipiranga, onde Cléver realizava seus bicos.

Há moradores de rua, no entanto, que convivem em grupos ou aglomerações.

A trajetória de Jorge, por ele narrada em sua autobiografia (BARBOSA; PAULINO,

2003), é emblemática para se acompanhar os passos dos grupos de rua. Embora eles

tentem permanecer em um espaço por tempo indeterminado, remoções, brigas na

vizinhança e necessidades de sobrevivência levam o grupo a deslocar-se

ininterruptamente por diversos “alojamentos”. A própria composição do grupo em

termos de membros é bastante variada, mudando constantemente.

Não obstante, há alguns grupos que chegam a habitar o mesmo local por

período prolongado de tempo. Dentre eles, os mais comuns são grupos compostos por

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familiares. Quando uma família vivencia a situação de rua sem se desfazer, seus

membros logo procuram reproduzir a casa na rua, não raro tentando se fixar em

baixios de viadutos. Ali, quando conseguem a fixação, criativamente tendem a

reconstruir suas casas com os mais diversos materiais, mantendo inclusive a divisão

entre os cômodos e a divisão sexual do trabalho: a mulher fica tomando conta do lar,

ao passo que o homem e os filhos mais velhos procuram conseguir o sustento

financeiro. Há casos de locais habitados dessa maneira que vão se tornando favelas,

podendo se constituir como uma habitação realmente permanente.

Somos sempre tentados a dizer que a predominância é a intermitência e

combinação dessas várias formas de viver nas ruas. As trajetórias de Cléver e Jorge,

antes referenciadas, traduzem essa pluralidade de estar em situação de rua e

experimentar muitas dessas maneiras de ocupar o espaço da rua: ambos viveram nas

ruas sozinhos e em grupos, passaram um tempo em albergues, ocuparam casas

abandonadas e chegaram a morar provisoriamente em habitações no trabalho ou

pensões. Pois a ausência de residência fixa leva a uma “...ciranda de alternativas

precárias. As mais freqüentes são o albergue, a pensão, o alojamento de obra e a rua”

(VIEIRA; BEZERRA; ROSA, 1992, p. 79).

Em suma, de acordo com a forma de ocupar o espaço da rua teríamos um

gradual de fixação desde a família moradora de rua até o andarilho radical,

inversamente proporcional à mobilidade dessas pessoas. Contraditoriamente, outra

maneira de se entender a fixação ou ocupação do espaço é pelo seu contrário, a

mobilidade. Em outra palavras, já que a situação é caracterizada pela não-fixação,

nada melhor que apreendê-la a partir de seu traço essencial que é a mobilidade

constante.

Antes, vamos tentar explorar o significado de se estar em situação de rua do

ponto de vista espacial.

A grande maioria das pesquisas sobre a situação de rua utiliza-se da dialética

entre os espaços da rua e da casa, ou público e privado, para analisar essa

espacialidade. Tocando no cerne da questão, Vieira Bezerra e Rosa (1992, p. 131)

afirmam: “o que é privado, comer, dormir, lavar-se, é agora público, feito diante de

todos. Essa inversão tem uma outra conseqüência: ao tornar público o que é privado

também privatiza o que é público”.

De qualquer maneira, um parêntese se faz necessário. Esta ocupação do

espaço da rua não significa somente ocupar um espaço físico, mas principalmente um

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espaço simbólico. No caso da situação de rua, trata-se de estar simbolicamente “fora

do lugar”, o que é inadmissível ao projeto moderno de ordenação e organização das

coisas em seus respectivos lugares. Neste sentido, pode-se ampliar o entendimento da

situação de rua como uma condição anti-moderna e subversiva, pois sob o ponto de

vista do sedentarismo e da fixação residencial como noção básica de ocupação

espacial, o morar na rua contraria um dos critérios fundamentais de coesão social:

“Dormir, comer, excretar, copular, divertir-se, brigar, enfim, sobreviver e conviver

com os seus pares na própria rua subverte a organização espacial citadina” (MAGNI,

1994, p. 57).

Esta privatização do espaço público resulta em ofensivas da sociedade civil e

das instituições públicas empenhados em “retirar” ou “remover” do público ações

privadas, como forma de normalizar os diferentes.

Dessa forma, o argumento central que sustenta essa maneira de análise é da

distinção da casa e da rua não apenas como espaços geográficos, mas como espaços

sociológicos dotados de diferentes significados. Segundo Da Matta (1984; 1997), no

contexto cultural brasileiro, a casa e a rua são “entidades morais” ou “esferas de ação

social” que determinam comportamentos, emoções, relações, enfim, formas de

subjetivação.

Deste ponto de vista, o espaço da rua é caracterizado pela impessoalidade ou

pelo “universo implacável das leis impessoais”, pois nela somos desconhecidos e

pouco importantes - ou mesmo anônimos. Onde ninguém se conhece, há uma

profunda desconfiança em relação a quem são realmente os outros e quais são suas

intenções. Logo, é um espaço de desconfiança onde a lei é estar “cada um por si”,

com medo de conflitos e assaltos.

A rua é um espaço da solidão, ruptura com vínculos, impessoalidade e

desumanidade. Local de todos e de ninguém, pois é o espaço onde todos transitam e

circulam em seu cotidiano, porém não pertence a ninguém, propriedade pública de

subjetivação conflituosa, controversa, pois “não temos nem paz, nem voz” (DA

MATTA, 1997, p. 20). Na rua somos “subcidadãos”, é um espaço de “cidadania

tremendamente negativa”.

A rua é o espaço da movimentação constante, da instabilidade, do inesperado,

imprevisível. Nela há incertezas, perigo e inquietude. Trata-se de um espaço

apreendido como algo ruim: “... da rua, tudo o que é da rua não presta, está

entendendo?” (pessoa em situação de rua entrevistada por ROSA, 1999, p. 72).

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Em contrapartida, a casa é um espaço íntimo e privativo, onde ocorrem

“relações calorosas, sua humanidade e seu sentido da pessoa feita de carne e osso”

(DA MATTA, 1997, p. 26). Em casa nos sentimos respeitados, temos abertura para o

diálogo com nossos familiares, sentimo-nos acolhidos. Daí a utilização da expressão

“estou em casa” para designar que estamos à vontade, em segurança e tranqüilos.

Em casa podemos controlar a atividade de todos, imprimir nossa vontade nos

horários e objetos, tornar o ambiente estável e seguro.

Em virtude dessas distinções, a publicação do privado e privatização do

público traz consigo uma desorientação: “por isso tudo, não se pode misturar o espaço

da rua com o da casa sem criar alguma forma de grave confusão ou até conflito” (DA

MATTA, 1997, p. 50).

Sendo a casa o local da continuidade das relações e objetos, de um grupo de

pertencimento e de um espaço geográfico que nos oferecem estruturas plausíveis para

constituir nossas identidade, estar em situação de rua é estar “sem lugar no mundo”

ou “desenraizado” (ESCOREL, 1999). Dissolvem-se as certezas, a estabilidade, e se

deve buscar todas as coisas que se tinha em casa em diversos outros lugares

fragmentados e incertos: “o viver sem referência de moradia dissolve a casa na

medida em que leva a dormir num canto, a banhar-se em outro e a buscar a comida

num terceiro lugar...” (ALVES, 1994, p. 78).

O que se revela é a dissolução das divisões nítidas entre os espaços público e

privado, tornada mais nítida pela situação de rua. Aqui, a pessoa em situação de rua

escancara a privatização do público e o processo de tornar público o privado como

contradição espacial tipicamente moderna.

O historiador Richard Sennett (1988), em sua clássica análise dos domínios

público e privado, realiza importante estudo sobre os fenômenos simultâneos da

“erosão da vida pública” e supervalorização da “personalidade individual”, a partir do

advento do capitalismo que marca o início da modernização. Segundo Sennett, a vida

pública enquanto encontro de diversidades em torno de objetivos comuns vai se

esfacelando com a primazia do autodesvelamento mútuo ou a “obsessão para com as

pessoas”. Em outros termos, a personalidade individual, como representante da vida

privada, passa a ser o foco das atenções no domínio público, antes reservado a

questões coletivas. A este processo, podemos designar a privatização do público que

ocorre com a supervalorização da vida privada em público, ou de tornar público o

privado.

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Em outra perspectiva, este mesmo fenômeno pode ser visto na privatização

das empresas públicas. Nesse processo, com bastante semelhança ao que dissemos

anteriormente sobre a desfiguração da noção de cidadão, os bens necessários a todas

as pessoas, que deveriam ser regidos pelo interesse coletivo, são dominados por

empresas privadas com seus interesses particulares. Quando escolhemos um político

pelas suas características pessoais e não pelo programa de governo, acentuamos o

privado em detrimento do público, assim como quando definimos a condição de uma

pessoa somente pelo seu esforço pessoal, negligenciando seu contexto social.

Assim, se essa contradição espacial fica mais evidente com a situação de rua, é

interessante notá-la como uma contradição nodal da própria vida moderna.

Outra contradição se avizinha quando retomamos a questão da situação de rua

não mais como fixação em um determinado lugar, mas exatamente como a sua

impossibilidade. Em outras palavras, a análise da situação de rua pode se inverter para

a não fixação em não-lugares. Não mais somos o espaço onde estamos, mas somos

seres móveis, desenraizados, de lugar nenhum. Não mais a vida domesticada, mas o

nomadismo.

Nesse sentido, a situação de rua representa a instabilidade espacial, na qual a

vida sedentária, domiciliada, vai se tornando nômade. Os lugares, as pessoas, as

atividades tornam-se voláteis e fluidas. Com um termo bastante pertinente, Nasser

(2001) define tal condição como a “transitoriedade permanente”, pois,

paradoxalmente, quando tudo muda, a mudança é a única coisa que permanece

imutável.

A itinerância e a mobilidade constante acabam se tornando a própria forma de

vida de quem habita um espaço de movimentação e instabilidade. No entanto, as

diversas remoções promovidas pelas forças públicas repressivas, bem como o

oferecimento de serviços de pernoite e alimentação em várias regiões da cidade,

motivam a constante mobilidade. Por conseguinte, o estar em constante movimento

para conseguir alimentar-se, abrigar-se ou encontrar uma atividade produtiva revela a

faceta da mobilidade constante não apenas como uma mera adaptação à rua como

habitat (ESCOREL, 1999), mas, principalmente, como uma estratégia fundamental de

sobrevivência (ROSA, 1999; MAGNI, 1994).

A mobilidade e a rua como ambiente perigoso, geram um interessante

desapego aos bens materiais, típicos da atual “cultura do lixo”. Do que importa

acumular dinheiro se não se tem onde guardá-lo com segurança? É assim que Escorel

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(1999) e Rosa (1999) observam que na rua o que se ganha se gasta imediatamente.

Porém, como gastar o dinheiro com bens duráveis ou volumosos se não se tem um

lugar fixo para guardá-los ou não se consegue carregá-los? É assim que as pessoas

adquirem apenas objetos mais imprescindíveis para sua sobrevivência e somente

aqueles que podem carregar consigo mesmos.

Outras vezes, alguns objetos pessoais são jogados fora com muita facilidade,

como se fossem descartáveis. As abundantes doações de roupas nos albergues, por

exemplo, fazem com que muitas pessoas prefiram pegar uma roupa nova do que lavar

a antiga, descartando a roupa tão logo ela suje. Enfim, como ocorre com os lugares e

as pessoas, a situação de rua conduz a um “tipo de relação efêmera e desapegada com

os bens materiais” (MAGNI, 1994, p. 130).

Ora, seria apenas uma coincidência com a postura geral do mercado

consumidor em consumir imediatamente, no curto prazo, produtos descartáveis com

obsolescência programada?

Esta relação efêmera com o espaço, esta constante mobilidade e instabilidade

dos lugares, seria uma característica exclusiva da pessoa em situação de rua? Seria

algo totalmente estranho àqueles que vivem em suas casas? A própria casa pode ser

apreendida atualmente como espaço de estabilidade, confiança e fixação?

Vimos que a passagem de uma sociedade sedentária para o nomadismo se

simboliza nas figuras do “vagabundo” (BAUMAN, 1998) e do “errante”

(MAFFESOLI, 2001). São pessoas em movimentos constantes, sempre de passagem,

para os quais a fixação residencial em segurança não passa de uma imagem

confortadora, mas irreal.

Assim, pensamos que a dicotomia entre a casa e a rua, tal como delineada na

tradição antropológica tributária de Da Matta, delimita lugares bastante sólidos, com

fronteiras bastante precisas, típicas da modernidade sólida. Dessa maneira, a situação

de rua enquanto concretização do nomadismo parece demonstrar o quanto a casa

ganha muitas feições associadas à rua: instabilidade, individualismo exacerbado e

dissolução de muitas das regras e convenções que antes organizavam suas relações.

Em virtude dessa revelação, parece-nos que a tradição antropológica é melhor

representada pelo conceito de “não-lugar”, cunhado por Marc Augè (1994). O

momento atual, que o autor chama de “supermodernidade”, encontraria sua expressão

mais acabada nos “não-lugares”.

O que seria um não-lugar? Para Augè (1994), o momento atual é caracterizado

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pela proliferação de espaços fragmentados no tempo, que não singularizam o sujeito e

promovem sua solidão. É o avesso dos espaços tradicionais, os “lugares

antropológicos”, que oferecem uma continuidade histórica e uma maneira de

definição identitária. Por exemplo, o lugar de nascimento como alicerce de uma

origem identitária, que diz muito a respeito da singularidade das pessoas e define uma

raiz na ancestralidade, perde terreno para os não-lugares.

Estes são locais de grande circulação de pessoas, como ruas, rodoviárias e

aeroportos, assim como são meios de transporte que utilizamos para circular. Como

aponta Augè, é um “mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem,

ao provisório e ao efêmero” (1994, p. 74).

O “viajante” é o “arquétipo do não-lugar” (AUGÈ, 1994, p. 80). Trata-se

daquele indivíduo solitário em meio à desconhecidos e regras impessoais, assumindo

provisoriamente o anonimato em um presente perpétuo.

Ora, seja no papel de viajante de Augé (1994), no de “errante” (MAFFESOLI,

2001) ou no de “vagabundo” (BAUMAN, 1998), a pessoa em situação de rua agudiza

uma relação com o espaço absolutamente característica do homem na fase da

modernidade líquida: o homem desenraizado espacialmente, em mobilidade

incessante.

4.2 - Situação de rua e temporalidade: a amnésia histórica e o fragmentado presente perpétuo

Estudos sobre a constituição da identidade da pessoa em situação de rua

revelam como a dimensão temporal vai se modificando conforme se desenrola a

identificação da pessoa com sua condição social.

A pessoa que está recentemente na rua vivencia um processo que

denominamos outrora de negação/enconbrimento, no qual ela nega a situação de rua

como algo assustador e pondera que dentro de pouco tempo vai sair dessa condição

(MATTOS, 2003).

É um movimento cravado na negação da condição presente a partir de uma

identificação com o passado e o futuro. Ou seja, a pessoa se liga ao que foi e ao que

gostaria que fosse, não ao que é. É comum, por exemplo, a pessoa se identificar com

algum papel que desemprenhava anteriormente, como o de trabalhador empregado, se

caracterizando a partir não daquilo que é, mas do que não é mais: como

desempregado, ou seja, um ex-empregado. Ao mesmo tempo, o que foi “ex” é

projetado como plano para o futuro. A pessoa tenta resgatar o cotidiano de sua vida

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domiciliada pregressa a todo custo: pode tentar restabelecer vínculos com a família e

amigos, tentar conquistar um emprego ou mesmo solicitar empréstimos para alugar

uma pensão.

Como ponderam Snow e Anderson (1998), os recém-deslocados, pessoas

recém chegadas à rua, traçam projetos bastante minuciosos e concretos para o futuro.

Não se trata apenas de um projeto idealizado, pois muito de sua energia cotidiana está

voltada para por em prática seu projeto de saída da rua.

A realidade objetiva e suas necessidades se impõem. Ao mesmo tempo em que

o indivíduo nega sua condição presente, precisa sobreviver e cada passo para

consegui-lo o insere gradualmente no mundo da rua: o faz se relacionar com outras

pessoas em situação de rua para sondar as estratégias de sobrevivência; o faz se

dirigir a albergues ou refeitórios, locais onde é identificado como “morador de rua”.

Esse é um dos grandes dilemas da pessoa que vivencia recentemente a

situação de rua: nega o presente para sobreviver simbolicamente, em termos de

representação positiva de si, ao mesmo tempo em que a imediaticidade do presente se

afirma na consecução de sua sobrevivência física. Quanto mais se insere no mundo da

rua, em seu presente, tanto mais se distancia de seu projeto futuro de resgatar seu

passado.

Permanecendo em situação de rua, é possível que o presente vá manipulando,

por assim dizer, todo o seu cotidiano. A pessoa passa a se identificar com a situação

de rua, a se adaptar a ela, e já não nega sua vida atual com tanta veemência. Trata-se

do processo de afirmação/acomodação, no qual os valores da casa e do passado vão

cedendo espaço para a atribuição de sentido ao mundo por meio dos valores presentes

e da rua (MATTOS, 2003).

Aquele projeto para o futuro de voltar ao passado começa a se tornar mais

distante e, quando em voga, é caracterizado por uma idealização vazia, pois nenhuma

atitude cotidiana é realizada para sua concretização (SNOW; ANDERSON, 1998).

É a partir desse momento que a sobrevivência física no momento imediato se

torna o alicerce da questão temporal. Falamos de uma vivência reduzida à

sobrevivência. De um cotidiano voltado apenas para a “manutenção da vida” (DI

FLORA, 1987, p. 116).

Baseada na concepção de animal laborans de Hanna Arendt, Escorel destaca

que essa orientação para a pura “preservação biológica” acaba por impossibilitar o

“exercício pleno das potencialidades da condição humana” (2000, p. 141).

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Ora, seria a imediaticidade ou primazia do presente uma exclusividade da

situação de rua? O que dizer daquela figura do alto empresário que trabalha

freneticamente durante quase todo seu tempo? O que dizer daquelas pessoas que

priorizam a vida profissional e resolvem não constituir família para não ‘atrapalhar na

carreira’? Estariam essas outras personagens da vida moderna priorizando outra coisa

que não o presente imediato, reduzindo as suas possibilidades humanas, guardadas as

devidas disparidades em relação à pessoa em situação de rua?

Se estas analogias forem minimamente verossímeis, a relação da pessoa em

situação de rua com o tempo parece representar de maneira acentuada a questão da

temporalidade característica do mundo contemporâneo. Tal questão é evidenciada por

Jameson (1985), quando destaca dois traços mais significativos do que entende ser a

“cultura pós-moderna”. Um deles, o “pastiche”, faz alusão à imitação de vários estilos

em uma mesma manifestação artística, que se presentifica a partir de fragmentos de

estilos passados. Quando o pastiche torna-se uma característica geral da sociedade,

Jameson destaca que se generaliza a impossibilidade de criação de algo novo, dado

este encarceramento no passado. Enfim, no que se refere à temporalidade, há uma

característica mais geral da sociedade de reproduzir o passado em um presente vazio

de sentido que caminha junto à “falência do novo”.

Ao buscar o sentido desse retorno nostálgico ao passado, Jameson revela outra

face da temporalidade contemporânea: a ausência de continuidade histórica. Busca-se

o passado com o objetivo de tentar imprimir um sentido de continuidade à vida atual,

impregnada de “fragmentos de presentes perpétuos”. Aqui reside o paradoxal:

vivemos em um presente perpétuo, mas não conseguimos dar sentido a este presente a

partir de nossas experiências cotidianas, tendo que recorrer a um passado idealizado.

Quando isto ocorre, Jameson pondera que se trata de “... um sintoma alarmante e

patológico de uma sociedade que se tornou incapaz de se relacionar com o tempo e a

história” (JAMESON, 1985, p. 21).

Dessa fratura temporal, se nos permitem assim chamá-la, surge o “segundo

traço básico da pós-modernidade”: a esquizofrenia. Trata-se da vivência de um

presente isolado do passado ou futuro, da perda de qualquer senso de continuidade

histórica, pois

[...] estando condenado, portanto, a viver em um presente perpétuo, com o qual os diversos momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra futuro no horizonte. Em outras palavras, a experiência esquizofrênica é uma experiência da

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materialidade significante isolada, desconectada e descontínua, que não consegue encadear-se em uma seqüência coerente (JAMESON, 1985, p. 22).

A esta relação com o passado, Jameson denomina, por fim, “o

desaparecimento do sentido da história” ou “amnésia histórica”, pois a vivência em

um fragmentado presente perpétuo impede a preservação do próprio passado e a

possibilidade de criar algo novo. Esta criação seria proporcionada por um projeto

futuro que rompesse com a réplica infinita do presente perpétuo.

De maneira bastante similar a Jameson, Harvey (2001) aponta que esta

fragmentação temporal está atrelada à própria efemeridade, descontinuidade e

rupturas da vida concreta. Isto faz com que o imediato seja vivenciado com bastante

intensidade e sua própria fragmentação seja o produto do qual é forjada a

personalidade no pós-modernismo: ela é presa ao presente, fragmentada e sem

qualquer perspectiva temporal que permitisse a transformação da realidade para um

futuro melhor. Enfim, importa somente aquilo que pode ser imediatamente útil, ou

seja: “O colapso dos horizontes temporais e a preocupação com a instantaneidade”

(HARVEY, 2001, p. 61).

Na análise da temporalidade característica do que chama de

“supermodernidade”, Augè (1994) traz algumas contribuições importantes para nossa

reflexão. Em primeiro lugar, destaca que a idéia moderna de progresso está em franco

descenso. Em outras palavras, o projeto tipicamente iluminista de utilizar a razão para

construir um futuro melhor para todos se esvai. Isto pode ser explicado, segundo o

autor, com o fim das metanarrativas, como o marxismo e a desilusão em relação ao

socialismo. No entanto, a principal contribuição de Augé é quando destaca uma figura

de excesso da supermodernidade: a “superabundância factual”.

Falamos da multiplicação dos acontecimentos que se sucedem em ritmo

frenético e não nos permitem digeri-los a todos. A multidão de fatos, informações,

idéias e opiniões deixam pouco tempo para a reflexão e criam uma sensação de que a

“história se acelera”. Paradoxalmente, Augè (1994) articula a idéia de que a falta de

sentido do presente, coluna vertebral da descontinuidade histórica, advém justamente

da necessidade urgente de atribuir um mínimo de sentido a essa superabundância

factual imediata. A esta necessidade também se atrela a falta de atenção ao passado,

no cerne de nosso “não-sentido da história”.

Por fim, Augé destaca que nos não-lugares não há possibilidade de história,

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pois neles reinam as necessidades imediatas de uma “história do presente” ou

“presente perpétuo” (1994, p. 96).

Como grande apologista do nomadismo, Maffesoli (2001) destaca com

bastante otimismo o que denomina ser o “presenteísmo” característico da vida

nômade e da sociedade contemporânea. Para o autor, o viver intensamente o presente

descolado da projeção de um futuro melhor, possibilitaria viver com mais prazer a

partir da “aceitação daquilo que é”, longe de preocupações como deveria ser. Esse

gozo do presente estaria ligado a uma forma de viver mais hedonista, uma vida

usufruída em sua multiplicidade de possibilidades. O lema deve ser: “...não se

preocupar com o amanhã, gozar o instante, acomodar-se ao mundo tal como ele é”

(MAFFESOLI, 2001, p. 132).

Ora, seria a situação de rua palco de, além do presente perpétuo, uma

descontinuidade histórica com o passado e o futuro? Haveria um projeto futuro que

pudesse romper com a mesmidade do presente?

Importante citar que algumas pesquisas realizadas sobre as pessoas em

situação de rua se utilizam da narrativa de suas histórias como procedimento de coleta

de dados, seja por meio de entrevista ou de histórias de vida. Frangella (2004), por

exemplo, destaca que as histórias parecem seguir uma “cronologia irregular”, pois se

vão costurando fatos fragmentados e desconexos entre si na tentativa de tornar

inteligível como se deu a situação de rua presente.

De maneira bastante similar, não obstante com maior detalhamento, Barros

(2004) destaca como estão presentes alguns elementos da temporalidade aqui

discutidos nos discursos das pessoas em situação de rua:

O contar de cada um destes homens e mulheres, em graus variados, expõe a fragmentação de sua vida, de suas vivências. São fatos e mais fatos, ditos de maneira desconexas entre si, sem passado nem futuro, um eterno presente. Suas memórias são pouco ou quase nada referenciadas a um mundo comum, furtando-lhes a possibilidade de inserir sua vida num fluxo de histórias comuns que diga respeito ao mundo social, à vida e à história coletivas, ao mundo dos homens (Arendt). Sua memória parece não constituir suporte temporal e nem espacial que lhes permita colocar em perspectiva aqueles fatos vividos que relatam (e outros que silenciam) e estabelecer um lugar a partir de onde possam narrar suas vidas e dar sentido, plausibilidade, a tantas perdas e dores (p. 11).

Essa ausência de uma memória histórica concomitante ao foco no presente

imediato também interfere na possibilidade de reflexão sobre a construção de um

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projeto futuro. A dificuldade de atribuir um sentido ao presente, de vê-lo em

continuidade com um passado, também não permite projetar um sentido ao futuro

como algo novo, transformado.

É neste sentido que Gama destaca: “As ausências em que estas pessoas se encontram;

sem seus familiares, sem bens materiais, sem um vínculo que poderia servir-lhes de

referência para lançar-lhes a um vir a ser; são barreiras que impedem este lançar-se”

(GAMA, 1996, p. 74).

A situação de rua, no entanto, revela outra faceta da relação do ser moderno

com o tempo. Como assevera Nasser, as pessoas em situação de rua parecem ter uma

representação do tempo diferenciada, pois: “... a representação da noção de tempo

dessa experiência nas ruas era subjetiva e não obedecia uma marcação cronológica...”

(1996, p. 202).

Ora, o tempo não descola ou isola a pessoa de um sentido histórico, mas

também de um compartilhamento coletivo. Tal como já havia destacado Barros na

citação anterior, trata-se de uma história de vida desconectada do tempo e dos sujeitos

que perfazem a história.

Aqui também vemos a influência da sociedade personalista que caracterizaria

nosso momento histórico atual, segundo Lipovetsky (1983). Nela, há a primazia do

tempo da “realização pessoal imediata”, o tempo do indivíduo: singular e não

compartilhado.

Mas Nasser (1996) traz um outro elemento, quando aponta que o tempo não

obedece uma marcação cronológica precisa ou objetiva. Trata-se de um controle

cronológico muito tênue.

Até aqui temos visto algumas características da temporalidade contemporânea

que aproximam a situação de rua da condição de vida de toda a sociedade atual. Não

obstante, há também descontinuidades e contradições que as afastam. Senão, vejamos.

Além de Nasser, Vieira Bezerra e Rosa afirmam, de maneira bastante similar,

“é outro o tempo da rua, ele não está controlado pelo relógio” (1992, p. 100). Magni

acrescenta que essa ausência de cronologia precisa é conseqüência da falta de

trabalho e outros compromissos estáveis: “sem vínculos empregatícios formais, o

habitante de rua não tem seu cotidiano rigidamente controlado pelo relógio...” (1994,

p. 176). Desta forma, mesmo a idade como suporte primário da identidade se esvai.

Ao conversar com um indivíduo há muito rualizado, Magni se impressionou porque

ele simplesmente “não lembra a idade que tem” (1994, p. 67).

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Em nossa experiência de pesquisa anterior (MATTOS, 2003), tivemos uma

interessante constatação. Ao marcarmos a entrevista com uma pessoa em situação de

rua, dias ela chegava horas atrasada e dias chegava horas adiantada. Assim, percebia-

se que predominava uma marcação mais rudimentar, do tipo ‘quinta-feira à tarde’, do

que um horário pré-estabelecido rigorosamente.

Neste aspecto, pensamos que reside um importante elemento de distinção

entre a vida domiciliada e a vida em situação de rua, pois a primeira reproduz uma

relação com o tempo como controle social ao passo que a segunda a subverte.

Expliquemo-nos.

Adentrando no que podemos chamar de uma história da temporalidade,

Harvey (2001) destaca o quando a modernização foi marcada pelo domínio do tempo

pelo homem. Somente a partir da Renascença passou-se a dominar o tempo com

maior precisão, a partir do cronômetro. Harvey explica o quanto essa domesticação do

tempo foi fundamental nas navegações que originaram as grandes descobertas,

substituídas pela obsessão ao controle do futuro como progresso feito pelos

iluministas. Uma análise do tempo linear do relógio estendida para a compreensão da

ciência sobre a natureza seria um exemplo de como esta questão do tempo influencia

não só nossas ações, mas também nossa visão de mundo.

À parte essas informações adicionais, o que nos importa aqui é o poder social

do tempo, a partir do momento que se estabelece uma única escala temporal objetiva.

Segundo Harvey (2001), isto significou que a vida cotidiana foi “aprisionada” por

uma rede cronológica, fato que fica mais explícito na importância do tempo como

disciplina de trabalho. Trata-se de uma “disciplina temporal”, na medida em que

somente a partir da imposição de um tempo de trabalho à classe trabalhadora,

conseguiu o capitalista compor a substância de valor como sendo o tempo de trabalho

socialmente gasto para produzir dada mercadoria: pois os salários e as taxas de lucro

eram determinadas, em sua maioria, pelo tempo de trabalho. Mais explicitamente,

dominando o tempo de trabalho, os capitalistas dominaram a classe trabalhadora, fato

que explica porque a história da luta de classes pode ser entendida em termos de

disputas pelo tempo: jornada de trabalho, férias e aposentadoria, por exemplo.

A própria história do desenvolvimento do modo de produção capitalista pode

ser entendida em termos de controle do tempo, na medida em que a introdução de

novas tecnologias consegue aumentar a produção de mercadorias em um tempo

reduzido. Isto explica, por exemplo, a compra da força de trabalho em fragmentos de

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tempo mais produtivos, tais como os trabalhos parciais, temporários ou bicos.

É nesse contexto que se deve entender algumas alusões ao tempo no interior

da situação de rua. Quando falamos no tempo da rua como ausência de

cronometragem precisa, de marcação temporal controlada, falamos de pessoas cujos

corpos e movimentos não são controlados pelos padrões sociais tradicionais. Em

termos foucaultianos, poderíamos dizer que são pessoas cujos corpos não se

assujeitam ao tempo útil do trabalho.

Essa subversão fica clara quando analisamos alguns mecanismos de controle

do tempo e do espaço. Giddens (1991), por exemplo, explica que uma das formas de

se recombinar tempo e espaço na atividade social é o horário, pois ele delimita quem

ou o que deve estar em determinado lugar e em determinado tempo. É neste mesmo

sentido que Augè (1994) fala da temporalidade inerente aos espaços (a Igreja aos

domingos, o trabalho durante a semana, lazer à noite, ou seja, cada espaço em um

horário específico). Trata-se da “dimensão materialmente temporal dos espaços”.

A situação de rua é subversiva no sentido de desorganizar os horários e

desordenar a temporalidade dos espaços. A praça deve ser freqüentada somente

durante o dia, mas algumas pessoas moradoras de rua dormem nelas. Nos albergues

deve se chegar às 17:30 hs., mas pessoas começam a formar fila às quinze horas

enquanto outras atrasam-se e chegam somente às vinte e três horas!

De maneira sintética, podemos dizer que a situação de rua agudiza a

contradição temporal da modernidade em termos da descontinuidade histórica. Esta é

emblemática na primazia do presente imediato, desprovido de uma relação com o

passado e um sentido do futuro. Por outro lado, a situação de rua extravasa o tempo

moderno quando dissolve a cronologia regular do tempo objetivo controlador e a

substitui por um tempo subjetivo e individual. Nessa última característica, há quem

diga que o presenteísmo pode representar uma maneira mais prazerosa de se viver

intensamente com maior liberdade.

4.3 - Situação de rua e sua dimensão ética: a desumanização das relações sociais estigmatizantes, superficiais, anônimas e efêmeras

Grosso modo, utilizamos o termo ética vinculado às possibilidades, ou não, de

surgimento do ser humano nas relações sociais. Isto porque, paradoxalmente, a

humanidade só consegue emergir enquanto condição de igualdade inerente a todas as

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pessoas, na medida em que se reconheça a condição de diferença entre elas. Em

outras palavras, somente quando reconhecermos o outro em sua alteridade, como

diferente-de-nós, que conseguiremos tomá-lo como um ser humano, igual-a-nós.

Pois bem, de acordo com Ciampa (1990) o processo de surgimento do humano

nas relações sociais, o que denomina a “identidade humana”, depende de ser

reconhecido e reconhecer-se como ser humano. Ou seja, não é um processo que se

empreende sozinho e nem é inexistente ou definitivo: trata-se de um processo social,

e, como tal, sempre coletivo e inacabado, posto que é histórico.

A possibilidade de humanização, ou de surgimento do humano nas relações

sociais, caminha junto com sua negação, qual seja, a negação da humanidade do outro

ou desumanização. Como veremos, tal desumanização está relacionada à coisificação

ou reificação do outro: tomá-lo como um objeto, como coisa, não como sujeito

histórico construtor da realidade social. Na faceta que analisaremos, a reificação será

tomada como a apreensão do outro a partir de papéis sociais previamente definidos

que embasam um pré-conceito. Este preconceito impossibilita enxergarmos o outro

como alteridade, posto que cerceamos sua atuação como sujeito ao encarcerá-lo no

papel que o destinamos a priori.

O extremo da apreensão do outro como tipo é não considerá-lo como ser

humano igual a nós. O paradoxo novamente se revela: não o apreendendo em sua

alteridade, não conseguimos tê-lo como um igual. Apenas tangenciaremos esta

questão, mas é importante sinalizar que, também de maneira contraditória, quando

nego a condição de ser humano do outro, nego-a a mim também. Em outras palavras,

ao colocar um outro humano em uma condição de desumanidade, revela-se a minha

própria desumanidade.

Ora, veremos que a apreensão do outro como não pertencente à espécie

humana legitima sua eliminação física. No limite, a pessoa em situação de rua tomada

como não-humana e sendo literalmente exterminada, é presentificação e revival de

outros lamentáveis genocídios da história: o dos judeus na Europa, dos índios na

América Latina, dos negros na África e fora dela.

Novamente, estamos às voltas com um fenômeno que, repetimos, deve ser

ressaltado: ao analisarmos a situação de rua, estamos analisando a condição humana

na atualidade. Porém, a situação de rua revela de maneira mais explícita, por

exemplo, a desumanização que é construída cotidianamente por todos nós.

Dessa maneira, inicialmente discutiremos algumas características

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contemporâneas das relações sociais, tal como já tangenciamos no capítulo anterior

para falar da precarização das relações familiares.

O psicanalista Jurandir de Freire Costa (1997) analisa a “cultura do

alheamento”, que se refere ao alheamento em relação ao outro ou o desconhecimento

do outro como semelhante. Costa leva a notar que não se trata de um ato deliberado

ou arbitrário, pois o alheamento como um ato de violência é involuntário. O

alheamento, enfim, pode ser definido como a “desqualificação do sujeito como um

ser moral”. Para o autor, trata-se de não reconhecer o outro como um “agente

autônomo e criador potencial de normas éticas”, além de desrespeitá-lo em sua

integridade física e moral.

Em sua análise da cultura do alheamento no Brasil, Costa destaca dois

elementos: o utilitarismo e o individualismo, ademais bastante imbricados. O outro

somente é reconhecido quando possui algo que me é útil. Logo, somente me interesso

por ele quando pode me oferecer algo, pois o que está em evidência não é o outro,

mas o que me interessa no outro. Em outros termos, há uma primazia do que do outro

é útil (utilitarismo) a mim (individualismo). Quando este outro não tem nada a me

oferecer, ele me é indiferente: “... a indiferença anula quase totalmente o outro em sua

humanidade” (COSTA, 1997, p. 71).

Segundo Costa, tudo o que motiva o indivíduo é buscar “ser feliz”. Logo,

todos fenômenos públicos são reduzidos a planos individuais e privados. Fenômenos

sociais como a pobreza, a miséria, a desigualdade são reduzidos às (in)competências

individuais. Pode-se pensar em uma profunda omissão em relação aos problemas

humanos e sociais, que tem algumas implicações, dentre elas a “despolitização”, já

que se reduz “... todo mal-estar cultural a questões de competência ou incompetência

individual para viver (COSTA, 1997, p. 80).

Se Costa enfatiza o individualismo e a visão utilitarista do outro como um

objeto, Bauman (2004) salienta: não apenas um objeto qualquer, mas um objeto de

consumo suscetível a todas as vicissitudes de outro produto que se consome.

A obra de Bauman, intitulada Amor-líquido, nos chama atenção em duas

analogias para se compreender as relações sociais atuais, quais sejam com as relações

virtuais em meio eletrônico (como na internet) e a comparação das relações sociais

entre humanos com a relação que estabelecemos com mercadorias que adquirimos.

Bauman (2004) registra que os vínculos humanos foram fragilizados à

condição de simples “conexões”. Nesse movimento, perdem toda e qualquer

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possibilidade de permanência e durabilidade que caracteriza os vínculos humanos. A

lacuna deixada por eles, no entanto, passa a ser preenchida por conexões frouxas,

facilmente feitas e desfeitas. Assim, nos tornamos seres “sem vínculos”, imersos no

paradoxo da estabilidade/instabilidade: buscamos desesperadamente relações

permanentes ao mesmo tempo em que buscamos estar livres para novas relações. Ou

seja, logra-se a estabilidade de uma relação sem aceitar o compromisso que a

sustenta. Assim, há o desejo dos homens do líquido mundo moderno em desejar

relacionamentos duradouros, quando na realidade só buscam relações “leves e

frouxas”.

As conexões na “rede” são exemplos típicos. Nelas, as “relações virtuais”

seguem a lógica peculiar ao líquido cenário do mundo moderno: relações

descartáveis, de fácil acesso e rompimento, cada uma tentando cumprir a idealista

tarefa de ser “mais satisfatória ou completa”. As conexões, segundo Bauman,

“...estabelecem o padrão que orienta todos os outros relacionamentos” (2004, p. 13).

São relações eminentemente superficiais, pois o que importa não é a qualidade

das conexões, mas a quantidade em que elas ocorrem. Ou seja, não importa o que se

conversa ou com quem se conversa, mas importa conversar com muitas pessoas.

A segunda analogia se refere ao entendimento da fragilidade dos vínculos

contemporâneos quando inseridos em uma “cultura consumista”:

E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro (BAUMAN, 2004, p. 21-2).

As relações entre as pessoas acabam se assemelhando a relações entre

consumidor e objeto consumido, como já havia sugerido Jurandir Costa. São relações

descartáveis, tão logo satisfaçam um desejo momentâneo, pois seguem um “padrão do

shopping”, devendo ser consumidas instantaneamente (BAUMAN, 2004, p. 27).

As relações também podem ser entendidas em termos mercadológicos de

investimento, ou seja, se “investe numa relação” esperando que ela traga algo (como

o lucro). Se o “investimento” render o esperado, a relação se mantém. Porém, na

medida em que isso não ocorre, se vai ao mercado de ações para ver outras formas de

obter maiores “rendimentos”. Tal forma de relacionamento gera, sobretudo, uma

incerteza permanente, tal como nas bolsas de valores.

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Trata-se de uma “visão do relacionamento como uma transação comercial”,

que implica numa racionalidade mercadológica: deve-se investir um pouco em cada

relação, sem se comprometer com somente uma, para não correr o risco de perder

todo investimento de uma só vez.

Interessante observar como esse padrão acaba impregnando relações de toda

ordem, mesmo àquelas relações maritais e, principalmente, paternais, tão valorizadas

na sociedade ocidental. Ter filhos, por exemplo, passa a ser entendido como um

investimento muito caro com resultados imprevistos. Segundo Bauman (2004), pode

mesmo sacrificar a carreira, ou atrapalhar em outras atividades, sendo um

investimento que cada vez mais não vale à pena pelo ônus que carrega.

Bauman (2004) destaca também o padrão de conexões do tipo “reality shows”,

típica do mercado de trabalho, por exemplo. Trata-se do ‘cada um por si’, todos com

o objetivo de progresso; cada um deve superar os demais, derrotá-los. Ou seja, é uma

competição entre inimigos que devem se destruir mutuamente, até o veredito

darwinista: o melhor sobrevive à custa da eliminação dos naturalmente inaptos.

Dentre os derrotados do mundo líquido moderno, Bauman destaca a figura do

“forasteiro”. Analisando a condição da imigração como um problema para muitos

países do capitalismo central, o autor evidencia as formas de segregação dos

imigrantes e sua contradição, pois o diferente é alvo de segregação e isolado do

convívio social. Sendo a urbanidade o movimento da diversidade, cada segregação

que resolve o problema a curto prazo acaba dificultando sua resolução a longo prazo,

pois, cada vez que se segrega, as pessoas ficam menos preparadas para o contato com

estranhos.

No ápice da segregação do diferente está a fabricação da figura do “homo

sacer: um ser humano que se pode matar sem medo de punição.... em outras palavras,

é totalmente excluído, situando-se além dos limites da lei, seja ela humana ou divina”

(BAUMAN, 2004, p. 158).

As análises das relações contemporâneas tais como apresentadas por Costa e

Bauman nos oferecem elementos importantes para compreendermos as relações

sociais empreendidas pelas pessoas em situação de rua.

Um primeiro elemento diz respeito às representações sociais sobre as pessoas

em situação de rua. Tais significados socialmente compartilhados foram investigados

por nós em um artigo recente (MATTOS; FERREIRA, 2004b), que discute a

apreensão da pessoa em situação de rua como “vagabunda”, “suja”, “perigosa”,

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“louca” e “coitadinha”.

A importância ética dessas representações está na apreensão da pessoa em

situação de rua como desqualificada moralmente, nos termos de Costa (1997). Assim,

se materializa a cultura do alheamento quando uma pessoa apreendida a partir desses

atributos pessoais acaba encarcerada em preconceitos que perpassam grande parte de

suas relações sociais.

Para Berger e Luckmann (1985), a inserção do indivíduo em um contexto de

representações assim configurado, interfere contundentemente na própria constituição

de sua identidade pessoal. Nos referimos, principalmente, à “reificação de sua

identidade”. Deve-se ressaltar que constituímos nossa identidade a partir da

apropriação subjetivas das representações objetivadas sobre a nossa pessoa. Nesse

sentido, sendo nossos atributos tomados somente como papéis negativamente

valorizados, somos apreendidos somente a partir desses tipos, sem qualquer senso de

humanidade. Logo, reificar o outro significa tomá-lo apenas a partir dos preconceitos

e não como ser humano.

Jorge, sujeito que entrevistamos em nossa pesquisa anterior (MATTOS,

2003), criticava a reação das pessoas frente a ele: faziam grande questão de hostilizá-

lo, mas não abriam-se para conversar e nem sequer olhavam-no de fato. Logo,

podemos conjecturar que a existência de preconceitos e a apreensão do outro como

tipo impedem a abertura para o outro naquilo que o diferencia desses papéis e o torna

humano. Conforme já relatamos, essa obliteração do outro enquanto humano revela a

desumanidade de nosso tempo.

Vê-se uma contradição ética fundamental da modernidade: se com a

modernidade e o renascimento das grandes cidades cosmopolitas, a experiência

humana se enriquece com a presença da diversidade, a proteção contra esse outro nos

faz encarcerá-lo em papéis predefinidos que impedem-nos de enxergá-lo em sua

alteridade e a humanidade enquanto diversidade.

Nas relações dos domiciliados com as pessoas em situação de rua, essa

contradição parece ficar mais explícita.

As reações dos indivíduos domiciliados com as pessoas em situação de rua são

as mais distintas. Alguns as vêem como perigosas e apressam o passo ou seguram

suas bolsas. Outros logo as consideram vagabundas e lhes atribuem falta de vontade

de trabalhar, olhando-as com hostilidade. Muitos até atravessam a rua com receio de

serem abordados por pedido de esmola, ou mesmo por pré-conceberem que se trata de

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pessoas sujas ou mal cheirosas. Há também aqueles que sentem pena e olham com

compaixão ou piedade. Muitas vezes, no entanto, os indivíduos desviam seus olhares,

transparecendo a indiferença para com a condição das pessoas em situação de rua. Em

atitude mais violenta, alguns cidadãos chegam a xingá-las, agredi-las ou até atear fogo

como em alguns lamentáveis casos noticiados.

Segundo Snow e Anderson (1998), as relações entre pessoas domiciliadas e

em situação de rua possuem três dimensões: “atenção negativa”, a “privação de

atenção” e as “medidas segregadoras”.

A atenção negativa é caracterizada pela apreensão do outro a partir de

referências pejorativas que são reproduzidas das representações sociais anteriormente

mencionadas. Nesse sentido, a apreensão do outro como uma pessoa perigosa, por

exemplo, gera o medo da violência ou assalto. Nos dizeres de uma pessoa em situação

de rua entrevistada por Rosa “... a pessoa que passa pela gente na rua é desconfiada.

Olha pra gente assim, pensa que a gente vai roubar. Já aconteceu isso várias vezes

comigo” (1999, p. 73).

Consoante as reflexões de Costa (1997), a privação de atenção é um meio de

violência simbólica mais sutil, a partir do qual a pessoa em situação de rua é

simplesmente ignorada. Cristovam Buarque (2000) cita um encontro universitário no

qual ele discutia a questão da população de rua e referiu-se a uma família de

desabrigados que vivia embaixo de um viaduto localizado em frente à universidade.

Os ouvintes ficaram estupefatos por nunca terem visto tal família. Ou seja, mesmo as

pessoas interessadas em conhecer a situação de rua estão habituadas a não

enxergarem esta condição social.

No limite, tal indiferença é fronteiriça à desconsideração do outro da rua como

igual, como se o mesmo fosse de outra espécie com poucas similaridades. Em outras

palavras: “homens e mulheres que não são mais vistos como tais por seus

semelhantes. E talvez já não se sintam também como tais” (NASCIMENTO, 2000, p.

56).

Cléver e Jorge, colaboradores de nossa pesquisa anterior (MATTOS, 2003),

destacam que o que mais chamava atenção era a indiferença, pois as pessoas nem

sequer olhavam ou se aproximavam. Jorge satiriza dizendo que as pessoas têm medo

de tomar choque, ao passo que Cléver afirma: “o único contato que eles têm é de

binóculo de cima de sua varanda olhando a gente lá embaixo”.

Se a indiferença como típica da cultura do alheamento é uma forma de

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violência involuntária e sutil, como aponta Costa (1997), a desqualificação do outro

legitima e estimula sua eliminação física, em violência deliberada e pouco sutil.

Falamos dos corriqueiros casos de agressões, encendeamentos e homicídios de

pessoas em situação de rua, como a última chacina ocorrida no dia 19 de agosto de

2004, largamente divulgada e pouco investigada.

Nesses casos, fica clara a idéia de “homo sacer”, cunhada por Bauman (2004),

aludindo à pessoas consideradas descartáveis e passíveis de exterminação sem

qualquer culpa ou repressão legal.

De maneira similar, as relações das pessoas em situação de rua com membros

de instituições assistenciais pode representar a materialização dos preconceitos que

legitimam essa violência física mais explícita.

A visão de Simões Junior é direta, quando pondera que os membros de

instituições freqüentemente identificam o segmento da população de rua como

“composto ora por preguiçosos, improdutivos, inúteis e degenerados; ora por

deficientes, doentes e loucos; ou ora ainda por perigosos e criminosos” (1992, p. 43).

Com tal concepção de morador de rua, é previsível avaliar o efeito pernicioso que

causam na identidade de seus “internos”: “essa visão reforça... uma auto-imagem

marcada pela dependência e pela desvalorização, contribuindo para a manutenção dos

estigmas que cercam sua condição social” (VIEIRA; BEZERRA; ROSA, 1992, p.

138).

Os albergues municipais, a nosso ver, constituem locais de reclusão com o

objetivo de normalizar o diferente. Assim, são mais parecidas com casas de correção,

repressivas e disciplinadoras, que procuram recambiar os usuários para os padrões

considerados normais, como se fosse de suas escolhas estar em situação de rua. Dessa

maneira, não é sem espanto que se ouve: “a palavra albergue para o albergado é uma

palavra humilhante. Nós albergados temos esta palavra como uma humilhação”

(TRECHEIRO, Ano X, nº 95, p. 02).

Silva (2000) empreende estudo minucioso sobre a assistência à saúde das

pessoas em situação de rua e revela o despreparo de algumas equipes que

negligenciam o atendimento a essas pessoas ou realizam atendimento rápido e

discriminatório. Em caso lamentável, a autora retrata um episódio de uma pessoa em

situação de rua que morreu no jardim de um hospital universitário, pois o médico deu-

lhe alta e mandou-o ‘para casa’.

De forma mais explícita, alguns órgãos repressivos, estatais (Polícia Militar-

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PM) ou municipais (Guarda Civil Metropolitana-GCM), acabam se utilizando da

violência e crueldade para lidar com as pessoas em situação de rua. Em relato

impressionante, um entrevistado de Alves afirma: “passei a noite cuidando de carros.

Tinha sono e deitei na praça. Acordei apanhando: eram quatro gambés. Vomitei muito

sangue e só depois fiquei sabendo que perto dali roubaram um casal...” (1994, p. 54).

Outras vezes, a violência é ainda mais incompreensível, como o relato de Pedro:

“chegaram no mocó, tiraram os revólveres e encostaram a gente no paredão.

Forçaram a gente a repetir: sou um vagabundo... eu não valho nada...” (ALVES, 1994,

p. 56).

Sejamos justos, conhecemos muitos funcionários de albergues municipais,

profissionais da saúde e policiais civis ou militares que atuam de maneira a respeitar

as pessoas em situação de rua em sua dignidade e cidadania. Infelizmente, porém, não

se pode omitir o preconceito que ainda ocorre de maneira contundente.

Por fim, as relações das pessoas em situação de rua entre si somente podem

ser entendidas no contexto mais geral de vida nessa condição social. Sob o imperativo

da mobilidade, estando sempre em novos lugares, a pessoa acaba por possuir um

tecido relacional esgarçado e marcado pelos contatos rápidos, efêmeros e

fragmentados. São relações que se tem com pessoas que não serão vistas nunca mais,

fato que impede a sua duração. Como tais, são por vezes relações breves nas quais

algumas referências básicas da identidade não são mencionadas: tais como o nome, a

idade, a origem e a própria biografia a ninguém é contada e acaba por se esvair na

memória.

Deve-se ainda dizer que a superficialidade e fluidez das relações entre pessoas

em situação de rua podem denotar uma tentativa deliberada de não se identificar com

um grupo social tão discriminado socialmente.

Dessa forma, são pessoas que dificilmente lembram os nomes de seus

interlocutores, como expõe um entrevistado de Snow e Anderson (1998, p. 291): “não

me diga seu nome. Primeiro, fico sabendo seu nome e depois a polícia aparece

fazendo perguntas. Não quero saber nomes. Conheço rostos”. Isto também ocorreu

em nossa pesquisa anterior (MATTOS, 2003), quando um de nossos colaboradores

aponta a existência de um “dialeto da rua” no qual se fala o mínimo possível, pois o

desconhecimento do outro se traduz em desconfiança de quem é e o que pode fazer.

Por fim, longe de constituir-se como algo pernicioso na vida nas ruas, a

superficialidade e o anonimato definem-se como sendo uma estratégia de

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sobrevivência: “nesse meio, o estabelecimento de amizades rápidas com outros

anônimos pode ser uma estratégia de sobrevivência altamente funcional” (SNOW;

ANDERSON, 1998, p. 316).

Assim, temos o anonimato como ingrediente das relações das pessoas em

situação de rua. São relações breves e banais entre anônimos. No entanto, não deixam

de ser menos importantes por se revestirem dessas feições, tal como apontam Snow e

Anderson quando afirmam que “as relações entre pares de rua realmente

proporcionam a muitos dos moradores de rua apoio emocional, material e

informacional” (1998, p. 319).

Segundo Rangel (1996), tais relações seguem uma pragmática utilitarista, pois

muitas relações nas ruas, com o intuito de troca de informações e ajuda mútua no

suprimento das necessidades materiais, são regidas pelo “interesseirismo”: “parecem

relações e vínculos efêmeros, relacionados às pequenas trocas materiais e às

necessidades básicas imediatas” (RANGEL, 1996, p. 108).

Tais como as conexões descritas por Bauman (2004), Snow e Anderson (1998)

destacam que, apesar de efêmeras e superficiais, as relações entre pessoas em situação

de rua ocorrem com bastante freqüência. Assim, são muitos contatos que se realizam

com facilidade, mas que tendem à superficialidade: “a vida de rua se caracteriza, num

nível, pelo convívio fácil e o rápido estabelecimento de amizades (...) Mas... as

relações sociais nas ruas também tende a se caracterizar pela superficialidade e

instabilidade” (SNOW; ANDERSON, 1998, p. 283).

A superficialidade está aqui sendo considerada como um contato

extremamente fugaz, como quando solicitamos informações de outras pessoas sobre a

localização de uma rua ou como as conversas em filas que visam “matar o tempo”.

Outro elemento que pode ser destacado é a imensa desconfiança que as

pessoas em situação de rua possuem umas das outras, principalmente no que se refere

às questões de segurança pessoal e medo de ser roubado:

[...] a desconfiança é permanente: ‘na rua não se pode confiar em ninguém’, é uma frase repetida. A insegurança é grande nas ruas (...) Os relatos de roubos são extremamente freqüentes e acabam por configurar um cotidiano tão natural que um morador de rua conta ao outro que tinha a intenção de roubá-lo (ESCOREL, 1999, p. 161).

Vê-se, pois, que a desconfiança muitas vezes está atrelada à violência que

pode emergir nas relações sociais. Essa violência pode ser uma estratégia utilizada

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nos furtos realizados, como no caso de Jorge que, em sua primeira noite em São

Paulo, foi roubado por diversas vezes e teve muitos dentes da boca quebrados

(MATTOS, 2004). Outras vezes a violência é utilizada como forma de resolver

conflitos ou desentendimentos, sendo potencializada quando as pessoas estão

alcoolizadas.

Logo, em meio a todas essas facetas, a lei da rua é “cada um por si”, como

destacam Nascimento e Justo (2000). Nesse contexto, não causa espanto a escolha de

pessoas em situação de rua por uma espécie de isolamento social voluntário.

Seria, no entanto, uma visão incompleta caracterizar essas relações somente

pela sua efemeridade, superficialidade, anonimato, desconfiança e violência. Isto

porque há grupos de rua que se constituem justamente como forma de proteção e

segurança contra agressões e assaltos. Além disso, a convivência grupal pode também

favorecer a sobrevivência individual em seu sentido fisiológico, posto que é a partir

da cooperação do grupo que o indivíduo se alimenta, ingere álcool, dialoga acerca dos

pontos de aquisição de comida, roupa e trabalho. Somente neste sentido mais

elementar que um grupo de rua pode ser associado a uma família.

Segundo Stoffels (1977), o grupo pode funcionar com um sentido simbólico

de oferecer uma imunidade à violência simbólica da sociedade, ou seja, são pessoas

que podem constituir um grupo de referência algumas vezes descolado dos valores

negativos que permeiam as relações das pessoas em situação de rua com os

domiciliados.

Escorel, porém, faz notar que tais grupos são notadamente crivados pela

ambigüidade:

O agrupamento, funcionando como viabilizador da sobrevivência afetiva e fisiológica em condições extremamente precárias, tem seu tecido relacional fortemente marcado pela ambigüidade: reconhecimento (identidade) e rejeição; solidariedade e conflitos; cooperação e disputa se apresentam em suas intensidades máximas. O outro morador de rua é seu melhor amigo, que lhe faz companhia, lhe dá informações e com quem divide os ganhos; mas é, também, seu pior inimigo, pois é quem lhe rouba os pertences quando está dormindo, pode agredi-lo por conflitos tolos e provocar seu isolamento (1999, p. 157).

Por fim, cabe ressaltar que os grupos também se formam e se acabam com a

mesma intensidade das relações entre pessoas em situação de rua: “e, ainda mais,

tendo o efêmero, o volátil, como característica intrínseca dessa unidade de

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pertencimento” (ESCOREL, 1999, p. 157).

A efemeridade, a superficialidade e a desconfiança surgem como

características das relações entre as pessoas em situação de rua que materializam de

maneira muito próxima as características das conexões modernas descritas por

Bauman (2004). Nesse sentido, surge uma outra contradição ética importante:

justamente no momento histórico em que temos multiplicadas as nossas relações

sociais com pessoas distintas, o próprio sentido de se fazer o vínculo se perde.

Dessa forma, as pessoas em situação de rua materializam as contradições

éticas mais contundentes quando se relacionam entre si, com membros de instituições

assistenciais ou com outras pessoas domiciliadas. Aí fica estampado o homem sem

vínculos, posto que possuí apenas conexões anônimas, descartáveis e superficiais; o

indivíduo alheio e indiferente ao outro, limitado em suas possibilidades de enxergar o

outro em sua humanidade, dado o cabresto da individualidade cega. Tal

individualidade, por sua vez, considerando que não permite enxergar o outro em sua

alteridade, perde também seu sentido singular. Enfim, esse desconhecimento do outro

como igual pode chegar ao ápice da dessemelhança entre seres humanos que legitima

a eliminação não apenas simbólica, mas também física, do outro visto como “homo

sacer”.

4.4 - Da incerteza, insegurança e desamparo como condições ontológicas do ser moderno

Ora, aqui chegados, temos uma imagem um tanto incomum do homem

moderno, especialmente quando materializado na situação de rua como condição que

escancara as contradições da modernidade líquida. Um sujeito sem lugar no mundo ou

desenraizado, um errante eterno que substitui a permanência pela instabilidade e o

certo pelo provisório. Um sujeito não apenas fragmentado em sua relação com o

espaço, mas também em sua relação com o tempo, na medida em que se acorrenta a

um presente perpétuo, marcado pela ruptura com uma memória do passado e uma

falta de sentido do que poderá ocorrer no futuro. Vimos também que se trata de um

homem sem vínculos, alheio ao outro que é também alheio a ele, dada a primazia do

individualismo e da lei de cada um por si.

Como se constitui uma identidade em meio a todas essas turbulências?

Uma primeira imagem nos é dada por Berman (1986). Segundo o autor, a

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instabilidade presente no mundo moderno e em suas instituições é incorporada pelo

homem moderno. Ou seja, a transformação incessante é interiorizada dando um

sentido de “desorientação” sobre como agir em situações que, tão logo surgem, já

evaporam e deixam questões sem respostas. O homem moderno, nesta perspectiva, é

também ele instável, pois para se instalar no mundo em constante mudança deve ser

flexível o suficiente para nele viver.

Bauman (2000) destaca que em um contexto de insegurança e volatilidade de

todas regras e referenciais, a identidade assume a característica de “pastiche”, um

“camaleão social”: desempenha-se uma multidão de papéis que são transformados a

todo instante. Troca-se de formas de se expressar a identidade com a mesma

constância e desprendimento da troca de roupas.

Este homem, porém, também vê emergir uma multiplicidade de opiniões e

possibilidades, sem qualquer alusão a algo uniforme ou universal (LIPOVETSKY,

1983). O que antes era de fácil aceitação no campo das idéias, dado que universal, e

de fácil escolha no mundo concreto, posto que uniforme para todos, passa a ser

múltiplo e abrir um campo enorme de possibilidades que necessitam de escolhas

individuais.

Para Lipovetsky, essa ausência de ídolos e tabus, de verdades e caminhos

aceitos por todos, cria um sentido de desolação de qualquer projeto comunitário,

sendo um tempo em que “o vazio que nos governa, um vazio sem trágico nem

apocalipse” (1983, p. 11).

No encalço de Lipovetsky, Evangelista (2001) destaca as grandes dificuldades

dos indivíduos em representarem o mundo moderno, pois o poder humano de

representação estaria sendo cerceado por um “princípio esvaziador” que põe em

xeque a própria condição de pensarmos sobre nós mesmos.

Para Harvey (2001), de maneira mais atenuada, essa necessidade de realizar

escolhas diversas, instantâneas e imediatas traz ao homem moderno a perda de

qualquer profundidade na avaliação dos objetos, idéias ou situações, vivendo de

maneira mais superficial. Em contrapartida, como defende Maffesoli (2001) há um

ganho em relação à experimentação de uma multiplicidade muito maior desses

mesmos objetos, idéias e situações.

Tais discussões novamente nos colocam defronte um cenário bastante surreal:

há uma instabilidade e mutação constante das coisas, lugares e relações que

conduzem o homem moderno a uma instabilidade interior para que possa realizar uma

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auto-transformação incessante e se adaptar a esse mundo. Este mundo, porém, é

também habitado por um turbilhão idéias e situações múltiplas que conduzem a

escolhas imediatas e abundantes desprovidas da possibilidade de reflexão sobre cada

uma delas. No limite, não há nada estável em que se possa confiar, não há nada certo

em que se possa estar convicto.

Em contrapartida, Giddens (1991) destaca que todo ser humano necessita de

ter segurança na continuidade dos objetos, do meio ambiente e de sua própria

identidade. Trata-se de uma “segurança ontológica”, uma evidência mínima de que o

próprio sujeito dá continuidade a sua vida. Tal segurança está alicerçada na mínima

previsibilidade dos acontecimentos, garantida muitas vezes pela construção de uma

rotina rígida que nos permite a ilusão de controlar e prever o que vai acontecer

conosco, com as pessoas a nosso redor e com os objetos.

Giddens (1991), porém, faz alusão ao mundo moderno como potencialmente

gerador da falta de segurança na continuidade dos lugares, pessoas, da rotina, em

termos de previsibilidade. Nessas circunstâncias, o sujeito é invadido por uma

“ansiedade existencial persistente” ou um “pavor existencial”.

Porém, julgamos que a característica mais contundente na modernidade é o

que chamaremos de “desamparo”. Abrindo mão de projetos coletivos e aderindo a

primazia das escolhas pessoais, o homem moderno se vê diante de um mundo que se

agiganta como ameaçador e que está totalmente fora do controle dos indivíduos

isolados. Tão intensa quanto a incerteza e angústia de um mundo instável e

imprevisível é a convicção de sua irreverssibilidade ou da permanência de sua

impermanência. Ora, somos todos seres desamparados tanto mais temos a convicção

de que qualquer atitude individual isolada não serve para mudar o rumo de nossa

própria existência.

Falamos de um mundo que foge ao controle dos próprios seres que o

construíram, uma vivência de angústia que se associa à passividade e desesperança.

Uma bela imagem do que falamos é a figura de Frankenstein de Mary Shelley,

referenciada por Berman (1986) como protótipo da criatividade autodestrutiva

moderna. Trata-se da criação de algo fora do controle como peculiaridade da

sociedade burguesa:

Essas figuras míticas, que se esforçam por expandir os poderes humanos através da ciência e da racionalidade, desencadeiam poderes demoníacos que irrompem de maneira irracional, para além do controle humano, com resultados horripilantes (p. 100).

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Eis outra importante contradição da modernidade: justamente no momento

histórico em que o homem controla a natureza de modo mais ostensivo, acaba

perdendo o controle das situações mais cotidianas.

Para Bauman (2001), aí se encontra a “principal contradição da modernidade

fluida”:

A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar - mas... trazjunto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as conseqüências. O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa auto-afirmação algo factível ou irrealista parece ser a principal contradição da modernidade fluida - contradição que, por tentativa e erro, reflexão crítica e experimentação corajosa, precisamos aprender a manejar coletivamente (BAUMAN, 2001, p. 47).

Se tomarmos a liberdade como sinônimo de controle sobre as situações e

escolha deliberada dos caminhos a serem seguidos, a liberdade individual líquido-

moderna é justamente calcada na ausência de qualquer controle sobre as situações.

Isto porque, como sinaliza Bauman na citação anterior, a liberdade de cada indivíduo

não pode ser alcançada solitariamente. Depende de um esforço coletivo, pois não há

uma liberdade individual em uma sociedade prisioneira de forças globais sobre as

quais não se tem nenhum controle.

Aqui surge nova contradição: os problemas e riscos são construídos

socialmente, mas as soluções são sempre transferidas ao indivíduo. Por esse mesmo

processo de privatização e individualização, fica cada vez mais distante a

aproximação dos indivíduos em lutar por um interesse comum. Mesmo que os

problemas sejam vistos como similares, o interesse do todo jamais é considerado algo

mais importante que a das partes (como na modernidade sólida). Logo, o indivíduo

senhor de liberdade pessoal é uma falácia: “...é a da individualidade privatizada, que

significa essencialmente uma antiliberdade” (BAUMAN, 2000, p. 70).

É certo que todos nós sentimos a instabilidade dos acontecimentos cotidianos.

Porém, aqueles entre nós que vivenciam a situação de rua, apreendem essa

instabilidade em seu limite: conhecem pessoas que não se verá mais, passam por

lugares desconhecidos que são abandonados tão logo chegados; os lugares onde

dormem ou nos quais fazem as refeições também são instáveis. Logo, as pessoas em

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situação de rua trazem o ápice da desorientação, tomada no sentido de intensa

mobilidade como apropriação individual da instabilidade líquido-moderna.

Mais profundamente, nenhuma estratégia de sobrevivência utilizada com êxito

hoje, se pode ter certeza que funcionará amanhã. A pessoa com quem hoje se

conversa, amanhã pode seguir seu caminho e nunca mais voltar; o local em que hoje

se come pode amanhã não mais nos aceitar, o mesmo ocorrendo com grande parte das

condições básicas para a sobrevivência. Assim, a pessoa em situação de rua está

sempre no fio da navalha, pois nada em seu cotidiano sugere qualquer sentido de

continuidade ou previsibilidade. É o cúmulo do mundo incerto.

Dessa maneira, é um mundo que gera uma ansiedade tremenda, uma angústia

descabida e um pavor rotineiro. Em outra oportunidade, havíamos discutido o

desamparo vivenciado pela pessoa em situação de rua (MATTOS, 2003). Diante

dessa angústia e dessa instabilidade, as pessoas são dependentes sempre da vontade

alheia para sobreviver, seja das entidades sociais, seja das pessoas físicas que

oferecem algo. Trata-se da agudização da condição desoladora de tudo o que se faz

não muda o seu cotidiano, fomentando a passividade e o ‘deixar-se levar pela maré’.

Aqui se completa uma intensa situação de negação da humanidade. Com o

desamparo, é cerceada a possibilidade de o homem ser aquilo que faz, atuar como

sujeito de sua própria história.

4.5 - Sistema albergal: tentativa de domesticação da situação de rua

Cumpre resgatar alguns pontos da análise para prosseguir. Vimos que a

domesticação da vida cotidiana foi uma construção social atrelada à modernidade

sólida. Com sua dissolução, surge a primazia do nomadismo na moderna sociedade

líquida atual, com estreita relação com o processo de rualização. Assim, a

domesticação opressora dá lugar ao nomadismo compulsório. Nesse sentido, a

vivência da situação de rua acaba por escancarar as contradições da sociedade

contemporânea.

Procuraremos argumentar a idéia de que o sistema albergal constitui uma

iniciativa intermediária entre a domesticação e o nomadismo. Mais exatamente,

procura combater o nomadismo a partir de técnicas de poder contemporâneas, como a

vigilância e o controle dos movimentos, a partir de um fundamentalismo sedentário.

Nesse sentido, o sistema albergal também só pode ser entendido como um mecanismo

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de controle dentro dessa contradição maior entre a domesticação e o nomadismo.

Posto que se agarra ao último suspiro de instituições totais típicas da modernidade

sólida, ao passo que tem que se haver com problemas de deambulação humana típica

da modernidade líquida.

Tangenciaremos o sistema albergal como coleção de inúmeros paradoxos,

postos pela própria vivência concreta da situação de rua. O albergue procura prover

um lugar de fixação, porém acaba por reproduzir a mobilidade. O albergue procura

regular os horários, promover uma reflexão sobre o futuro, porém, centrando-se nos

meios de sobrevivência mais imediatos, acaba fomentando o presenteísmo. O

albergue se propõe a ser um espaço de reconhecimento do ser humano, mas, calcado

em preconceitos e na fabricação de saberes, acaba negando a humanidade de seus

“usuários acomodados”. Enfim, disposto a “reinserir” socialmente a partir da

autonomia individual, acaba fabricando sujeitos desamparados, no sentido de pessoas

dependentes da instituição e sem qualquer favorecimento para emancipação pessoal.

A produção de conhecimento sobre o sistema albergal conta com diversas

contribuições dispersas em múltiplas obras. Somente uma publicação se dedica

exclusivamente à questão, um artigo no qual contribuímos, de nome “Para a crítica

do sistema albergal: subversões, submissões e possibilidades de sublevações”

(MATTOS; YAMAGUCHI; DOMINGUES, 2005). No entanto, consideramos que as

bases para a compreensão desse tema já estão sedimentadas na obra pioneira de Di

Flora (1987), no livro de Vieira, Bezerra e Rosa (1992) e, principalmente, nas obras

de Nasser (2001), Barros (2004) e Justo (2005).

Grosso modo, o albergue é um local destinado a oferecer pernoite,

alimentação e serviços de higiene pessoal. Normalmente é administrado por entidades

assistenciais que possuem convênios com prefeituras municipais. Seus objetivos

explícitos variam de acordo com os programas de políticas públicas nos quais estão

fundamentados. Dessa maneira, na cidade de São Paulo, como avalia Barros (2004),

os albergues são locais destinados ao “acolhimento”, primeiro passo da política

pública formulada pela então SAS (Secretaria da Assistência Social) que seria

sucedido pelo “convívio” e “autonomia ou prover”. Já em cidades que se baseiam nas

diretrizes estaduais, como o caso de Sorocaba estudado por Justo (2005), o albergue

seria uma forma de atendimento com o objetivo de “emancipação”.

De maneira geral, o albergue se destina explicitamente a promover a

“reinserção social” ou “inclusão”, seja auxiliando de maneira indireta ou tendo esse

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processo como seu objetivo direto. Como destacam Mattos, Yamaguchi e Domingues

(2005) há um consenso entre os coordenadores dos albergues de que é baixíssimo o

número de pessoas que tem sua reinserção social desencadeada pelo albergue.

Logo, surge a primeira contradição, bem apontada por Barros (2004): se no

campo do discurso político surgem propostas de luta pelos direitos sociais a partir de

uma crítica ao assistencialismo, os atendimentos práticos contrariam o discurso na

medida em que se fundamentam no assistencialismo, no humanitarismo, na

cristandade, no voluntariado.

Essa contradição entre programa teórico e atividade prática, acreditamos, tem

sua razão de ser a partir da própria crítica ao verdadeiro objetivo do sistema albergal.

Ou seja, se, historicamente, os albergues são reconhecidos há décadas por sua

ineficácia em seu objetivo explícito de reinserção social, como permanecem em

funcionamento? Haveria algum outro objetivo implícito, ou dissimulado, que

legitimaria essa permanência e aumento das vagas em albergue?

Di Flora é categórica:

Se, a nível manifesto, tais instituições se propõem a recuperar o mendigo (o que realmente não têm conseguido), a nível latente objetivam o controle e repressão desta categoria considerada perigosa. Através de sua rotina, contribuem para a perpetuação da miséria e reprodução da identidade que se propõe a transformar (1987, p. 46).

Ou seja, o objetivo implícito, porém precípuo, do albergue é servir como

“instrumento de controle-dominação”, pois são instituições “...criadas para purgar,

decantar, recolher em seus muros a miséria do mundo. Suas portas servem para

separar e demarcar: fora, a vida normal do trabalho; dentro, o patológico” (DI

FLORA, 1987, p. 18).

Ora, pode-se mesmo questionar: a quem serve os albergues? Eis outra

contradição. O albergue é absolutamente importante para grande parte da população

em situação de rua pelos recursos que oferece no auxílio à sobrevivência. No entanto,

deve-se considerar que tem uma importância similar para os cidadãos domiciliados,

na medida em que lhes priva do contato com uma situação que reflete e faz pensar

sobre suas próprias inseguranças e incertezas, além de oferecer maior segurança

pessoal quando “criminalizam” a pessoa em situação de rua como perigosa e

criminosa em potencial. Podermos dizer, inspirados em Bauman (2000), que a

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situação de rua simboliza para os domiciliados um extremo desconforto, pois os faz

enxergar toda a precarização da existência humana no mundo moderno. Logo, os

benefícios do enclausuramento das pessoas em situação de rua para os cidadãos

sedentários perpassa pela segurança pessoal, do corpo e dos bens, mas também pela

segurança existencial.

Esconder a população de rua embaixo do tapete também é importante para o

Estado. A partir da idéia de Bauman (2005) de que o Estado se legitima por sua

função “penal” de oferecer segurança a seus cidadãos, ele também é bastante

beneficiado com a manutenção de um “estado de emergência”. Daí sua ênfase na

remoção compulsória de pessoas em situação de rua, em prol de uma tal

“revitalização do centro”, como se as pessoas de rua não fossem vivas. Aqui

observamos as feições do Estado jardineiro: remover as pessoas de lugares indevidos

e colocá-las em locais mais ordenados (BAUMAN, 1999). Aqui o ideal de pureza:

limpar as ruas dessas pessoas, higienizar os locais públicos.

Ora, não é apenas o ato de segregar que possui serventia à ordem sedentária. O

processo de enclausuramento é, em última análise, um processo de domesticação.

Não seremos redundantes em expor as técnicas concretas de domesticação, já

descritas com esmero por diferentes autores. Baseados em uma análise foucaltiana,

Mattos, Yamaguchi e Domingues (2005) detalham em pormenores o quanto o

albergue segue algumas técnicas de domesticação e assujeitamento típicas de

instituições de seqüestro, como os presídios, escolas, fábricas e exércitos: rigidez dos

horários, normalização das condutas, submissão a regulamentos, etc. Com um

referencial mais próximo da teoria dos papéis de Goffman, Nasser (2001) analisa

outros mecanismos como o que poderíamos chamar de “despersonalização”, por meio

da utilização de uniformes, denominação das pessoas a partir do número dos leitos e

destituição dos objetos pessoais na entrada.

O que nos cabe enfatizar é o foco em uma “visão condenatória da errância” e a

meta de “reenquadramento no sedentarismo” (JUSTO, 2005 p. 114). Trata-se de uma

visão bastante conservadora, na medida em que somente a vida sedentária é vista

como digna, além do fato de negligenciar o contexto sócio-histórico que impele para

o nomadismo. A vida errante e sua cultura são negligenciadas como inferiores e

sujeitas à submissão à cultura sedentária.

Se a vida em situação de rua subverte a ordem sedentária, ou, como pondera

Justo (2005), representa um “grito de protesto ou um gesto de resistência”, os

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albergues podem ser vistos como forma de reproduzir a vida domesticada, ou

preservar “um mínimo de adesão à cultura dominante” (JUSTO, 2005 p. 113-4).

A produção de Nasser (2001) traz importantes contribuições quando analisa a

relação dos usuários com o albergue. Pondera que os albergados se utilizavam da

instituição como forma de reproduzir alguns hábitos da vida sedentária e afirmar-se

como diferentes dos “moradores de rua”:

O fato de lá terem uma cama individual (ainda que numerada, e no meio de outros cinqüenta e nove) e uma rotina a ser cumprida (mesmo que vigilante e coercitivamente inspecionada) dava-lhes a segurança de, pelo menos durante este período de permanência, preservarem sua identidade, e não se confundirem e nem serem confundidos com um morador de rua... (NASSER, 1996, p. 193).

Ou seja, o albergue procura produzir uma estruturação do cotidiano

sedentário, mesmo levando em conta que se trata de pessoas em situação de rua. Em

outros termos, procura reproduzir a casa na rua.

Aqui também jaz uma contradição. Di Flora (1987), Magni (1994) e Justo

(2005) destacam como o albergue acaba por favorecer o nomadismo. Seja

estabelecendo um tempo de permanência limitado ou oferecendo passagens para os

indivíduos migrarem a outras cidades, fomenta-se justamente aquilo que se espera

combater. Justo (2005) aponta ser prática comum vigiar as entradas das cidades para

não permitir a entrada, ou expulsar, muitas vezes violentamente, os andarilhos das

cidades. A doação de passes serve até como recurso no jogo político, na medida em

que alguns prefeitos fornecem passes para os andarilhos irem para municípios

governados por seus inimigos políticos. De uma maneira ou de outra, não permitindo

a entrada, expulsando, fornecendo passes ou limitando o tempo de permanência, o

albergue favorece a movimentação e até a fabrica.

Por fim, a tese central da produção de Mattos, Yamaguchi e Domingues

(2005) se refere ao fato de que o albergue, com todas suas técnicas de assujeitamento,

acaba por gerar a “dependência institucional” e a fabricação de “sujeitos

assujeitados”, entendidos como pessoas adestradas a satisfazer suas necessidades

básicas sem empreender o mínimo esforço. Segundo os autores, essa prática

institucional favorece a passividade, a obediência, a dependência de forças

extrínsecas que fogem ao controle, impossibilitando qualquer condições do indivíduo

enveredar por um processo de autonomia: gerir seu cotidiano com suas próprias

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regras e construir sua história.

É interessante, ainda, o fato levantado pelos autores da construção de um saber

sobre a pessoa albergada em torno do pressuposto de acomodação: o exercício

prático do adestramento é legitimado pela construção de um saber sobre a pessoa em

situação de rua como “acomodada”, indolente, preguiçosa, refratária ao trabalho,

construção que torna a domesticação uma dedução lógica e uma normalização

necessária.

Assim, paradoxalmente, a possibilidade de autonomia se conquista a partir da

fuga do albergue e não da permanência nele. Os dados de nossa análise dos resultados

vão nesse sentido, como veremos posteriormente.

Essa constatação é feita por Justo, quando afirma que o abandono do

sedentarismo e do contato com instituições que professam seus valores pode

constituir uma vida com mais autonomia:

O andarilho faz de sua maneira de viver - sem rumo e local certo - uma forma de protesto. Deserta do sedentarismo como quem abandona deliberadamente um sistema opressivo e vitimizador e busca a errância como último recurso e tentativa de sobreviver e gozar de um pouco de liberdade. Tal errância do andarilho acaba representando uma ameaça pela autonomia como é construída, livre das amarras dos instrumentos e estratégias de controle social. Diferentemente daquelas cinesias e movimentações devidamente reguladas pelos refinados instrumentos de dromocontrole ou de controle remoto, amplamente espraiados, a errância do andarilho, por escapar das principais agências sociais de produção da circulação do sujeito, torna-se mais independente, autônoma e por isso mesmo pode representar alguma ameaça (JUSTO, 2005 p. 112).

Se o andarilho abandona a vida doméstica ou é a vida doméstica que o

abandona é outra questão. Porém, basta destacar que o sistema albergal assim

constituído está em franca oposição a qualquer possibilidade de iniciar um processo

de emancipação atrelado à saída das ruas.

4.6 - Sísifo (anti)moderno e as possibilidades de projetos para o futuro

Em outro momento (MATTOS; FERREIRA, 2005) lançamos mão do mito de

Sísifo para compreender a vida das pessoas em situação de rua. Ao final desse

capítulo, em que discutimos a situação de rua como elemento que escancara as

contradições do mundo contemporâneo, gostaríamos de retomar esse figura mítica.

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Não só porque Sísifo representa de maneira ilustrativa a pessoa em situação rua tal

como descrita até aqui, mas principalmente porque ele nos coloca a questão que

norteará o debate daqui em diante.

Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar uma grande pedra até o cume de

uma alta montanha. Ali chegando, devido ao seu peso, a pedra descia toda a montanha

e Sísifo recomeçava novamente o percurso de empurrá-la até o alto para logo vê-la

descer. Esta era a sina de Sísifo. Por isso foi considerado o trabalhador inútil ou o

herói do absurdo.

Pensamos que a pessoa em situação de rua pode representar o Sísifo

encarnado, principalmente em seus paradoxos.

Viver em movimento incessante, mas não sair do lugar e permanecer imóvel?!

Viver buscando um sentido ao presente perpétuo, de forma a fragmentá-lo do

passado e do futuro, tornando a busca infrutífera?!

Viver com a obsessão do novo e do renovado, ao mesmo tempo em que essa

mesma obsessão oblitera a possibilidade de vivência do novo?!

Eis a imagem de Sísifo, contraditoriamente, significativa da renovação e da

mesmice, da mudança e da estabilidade, do controle e do descontrole. Não seria

equivocado dizer que Sísifo é o movimento do imóvel, a novidade da mesmice e o

controle descontrolado. Porém, se tomarmos Sísifo como um “proletário dos deuses”,

como o faz Albert Camus (2002), nossa leitura pode ser diferente.

Para Camus, a tragédia de Sísifo não está em seu o esforço de empurrar a

pedra, mas a ausência dele: ou seja, Sísifo entristece no momento em que a pedra rola

montanha a baixo. É neste momento que Camus enxerga a possibilidade de tomada de

consciência de Sísifo sobre a sua condição, no instante em que vê a pedra rolar e

reflete sobre a sua condição humana. Neste momento, segundo Camus, Sísifo é maior

que seu destino, pois percebe que seu destino está em suas mãos, nas mãos dos

homens.

Se assim não fosse, se Sísifo tivesse certeza da mesmice de sua tragédia,

porque permaneceria em sua sina, carregando com esforço a pedra ao cume da

montanha? Porquê não desistiria?

Enfim, para Camus, é preciso ver Sísifo “feliz”, pois ao observar a pedra

descer, naquele momento de tristeza e de consciência, Sísifo volta para recomeçar a

empurrar a pedra ao cume porque acredita que algo novo pode acontecer. Camus

revela que o fator motivador de Sísifo a retomar sua sina é a esperança, é o prazer de

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um esforço que pode ser transformador de seu futuro.

Seria mais um paradoxo de Sísifo. Seria a esperança de quem perdeu as

expectativas? Uma esperança desesperançada?

Se até agora discutimos nossa compreensão da situação de rua em termos de

seu conceito, os seus motivos e a sua vivência concreta, devemos discutir as

possibilidades de mudança. Junto com as pessoas em situação de rua, talvez este seja

o momento da pesquisa propício para buscarmos um momento de tomada de

consciência sobre a condição da pessoa em situação de rua, consciência esta que nos

faça refletir sobre o futuro como algo novo, que rompe com a mesmice do presente

perpétuo. Se um projeto futuro, a esperança no novo, pode romper reprodução do

igual, devemos ir em busca dele.

Esta busca, porém, deve ser empreendida no interior das contradições da

modernidade líquida, como veremos a seguir.

CAPÍTULO 5 - (Im)possibilidades de saída das ruas: apresentação e análise dos resultados

Os estudos realizados sobre a saída das ruas procuram demonstrar as

idiossincrasias desse processo a partir de diversas possibilidades concretas

apresentadas: por meio do retorno a uma habitação estável (como analisaram

Lavarello e Lomar, 2003); via retorno à família de origem ou constituição de uma

família de procriação (ALVES, 1994; e o caso Jorge, entrevistado por MATTOS,

2003); por meio da aquisição de uma fonte de renda e o resgate do papel de

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trabalhador, como o ingresso em cooperativas de trabalho (DOMINGUES JUNIOR,

1998; HAYASHIDA, 2003; MATTOS; FERREIRA, 2004b); por meio da inserção no

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST (SHIMABUKURO, 2003;

COSTA; MAGALHÃES, 2002); ou através da participação sazonal em Operações de

Trabalho (JORNAL SP VOCÊ, 2004).

Veremos a seguir a diversidade de opiniões dos entrevistados em relação a

algumas dessas alternativas. Não obstante, de nossa parte, procuraremos discutir a

saída das ruas enquanto representativa de uma forma de lidar com a dialética entre

domesticação opressora e nomadismo compulsório. Após a exposição e análise da

fala dos entrevistados, o último subcapítulo detalhará esse raciocínio.

5.1 - Saída das ruas: Porque? Para quem?

Em nossas andanças junto à população em situação de rua a questão da saída

das ruas sempre foi tida como auto-evidente. Nas conversas informais, nos trabalhos

em albergues, nas discussões no Fórum de Debates e outras tantas situações de

diálogo a saída das ruas sempre foi algo desejado por todos interlocutores e alvo de

intensas discussões. Basta ver as reivindicações expressas nas manifestações

promovidas por essas pessoas, como no Dia de Luta do Povo da Rua em que se exigia

oportunidades de trabalho e moradia. Basta tomar contato com as propostas feitas por

representantes da população de rua no recém desmantelado Orçamento Participativo

ou mesmo no COMAS (Conselho Municipal de Assistência Social). Basta ler a lei

municipal 12.316, fruto de décadas de debate coletivo e luta da população paulistana.

Basta, enfim, conversar com essas pessoas nos Fóruns, nos albergues, nas moradias

provisórias, nas cooperativas de catadores ou nas ruas.

A ênfase na situação de rua como condição de inúmeras privações, se

tomarmos como referência a vida sedentária como ideal, tanto para nós pesquisadores

quanto para as pessoas em situação de rua levava à conclusão lógica de discutir os

(des)caminhos da transformação dessa realidade social. Fundamentada nessa forma de

pensar a rua e em ampla base empírica de diálogo com essas pessoas no decorrer de

anos, a visão era da saída das ruas como processo natural, óbvio, indiscutível.

Precisávamos apenas afinar os instrumentos sobre como esse processo se daria, dada

a diversidade de pontos de vista a esse respeito. Daí a questão fundamental desta

pesquisa, e primeira pergunta do roteiro de entrevista, ser: na opinião das pessoas que

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vivenciaram a situação de rua, como se dá o processo de saída das ruas?

Excetuando-se Anderson, todos os entrevistados aceitaram essa pergunta de

maneira inquestionável, sem crítica. Anderson, no entanto, propõe uma questão

anterior, que se move de maneira impertinente no próprio fundamento de nosso

estudo: Porque se propor a saída das ruas? Ou seja, quais motivos haveriam para se

pensar que, de fato, as pessoas em situação de rua querem realmente se desvencilhar

dessa condição? E, ainda, para quem seria importante essa saída? Em outras

palavras, poder-se-ia dizer que expressa um desejo de todas as pessoas em situação de

rua? Se entendemos a situação de rua como condição social subversiva (pois rompe

com a ordem sedentária firmada no tripé moradia fixa, família e trabalho), as

propostas de “reinserção social” ou “inclusão” não poderiam significar o ato de

normalizar o diferente ou recambiá-lo para os padrões sedentários tidos como

normais, melhores ou mesmo a única forma digna de se viver? Não estaríamos diante

de uma demanda muito mais atrelada à necessidade de os cidadãos sedentários em

ordenar o espaço público?

Devemos confessar, Anderson nos colocou em saias justas. Mas porque

pensaria Anderson que a saída das ruas não é um desejo de toda população de rua?

Qual seria sua argumentação?

Aos quinze anos, Anderson decide abandonar a “república do orfanato” em

que vivia. Sua decisão estava pautada na seguinte condição: “Então eu comecei a me

sentir preso e pressionado. Aí eu decidi ir embora”. Tinha que seguir as “regras”:

cumprir os horários, entregar todo o dinheiro que conseguia para a coordenação da

república, “não podia sair à noite para passear, não podia fazer nada”. O ambiente

doméstico, a vida sedentária de um modo geral, sempre é associado a “pressões”

relacionadas aos “deveres”, “compromissos”, “obrigações”, “rotina”: em suma,

utiliza-se sempre do termo “prisão” para se referir a essa condição. Prisão como

privação de “liberdade”. Em busca dessa “liberdade” que Anderson, a partir dos

dezoito anos, decide “correr o trecho”: ir, “sempre andando”, conhecer várias regiões

do Brasil.

Prossegue sua narrativa da seguinte maneira: “Eu vivi muito tempo no

trecho... não era num albergue, numa casa, é no trecho. Sempre que eu ficava numa

casa não agüentava ficar um mês: era uma prisão, é as regras que têm que ter na

casa”.

Descreve a vida no trecho como solitária, pois “nunca teve ninguém”, mas,

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justamente por isso, mais “solta”: Viver prá mim sempre foi solto: saio daqui e hoje vou pra Salvador. Pega, põe a mochila nas costas e caí fora. Não tenho responsabilidade, não tenho compromisso com ninguém. O único compromisso era comigo mesmo, era assim. Não tava contente naquele albergue, saía e ia pra outro albergue.

Os compromissos com outras pessoas, como no interior da família, as

responsabilidades sociais, como o trabalho, o controle do tempo, os enraizamentos,

como a fixação em uma casa, são vistos como elementos que tolhem a “liberdade” da

vida “solta” no trecho. São como grilhões que impedem fazer o que se deseja na hora

que se quer; são como aquela circunferência de ferro acorrentada nas pernas dos

prisioneiros que impede o movimento incessante, o ir e vir para onde aprouver.

Na rua, as normas sociais mais elementares perdem sua validade

incondicional. O lugar certo, a hora certa, os comportamentos certos, são

transfigurados pelo encurtamento entre o desejo e sua satisfação:

Eu acho que qualquer um da rua, que morou na rua mesmo, não aquele cara que viveu em albergue, que viveu em uma família, mas quem morou na rua de verdade tem essa dificuldade. Porque ele perde todos os laços da vida: todos os laços de casa, todos os laços de compromisso da casa. Na rua ele não tem compromisso com ninguém: dorme a hora que quer, come o que quer, vive onde quer, caga onde quer (desculpe o palavreado, mas isso é a realidade da rua), mija onde quer. Papel higiênico não existe, banheiro não existe pra ele: se deu vontade é alí mesmo.

Porém, toda liberdade tem seu preço: “Quando a pessoa vai pra rua é também

sair desse sentir pressionado que a sociedade nos coloca (...) A rua é a liberdade.

Claro que é opressão também: a liberdade te maltratando. Mas você tem muito mais

liberdade na rua”.

Daí a afirmação de Anderson de que, para a pessoa que “viveu na rua de

verdade” esse processo de saída das ruas é algo extremamente doloroso e conflitante.

Anderson desabafa:

Na rua não: se sumir os documentos, sumiu; se roubar sua coberta, roubou. Mas aí se tem que estar sempre preocupado com a chav,e com as coisas...Ah! É difícil... eu tô passando... tô me sentido pressionado por mim. Hoje eu poderia estar curtindo o carnaval em Salvador! Hoje eu poderia estar andando pelo trecho. Mas eu não posso mais fazer isso. Primeiramente porque eu tenho compromisso... eu tenho uma mulher, eu tenho uma filha que vai nascer, eu tenho que trabalhar pra botar comida dentro de casa,

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pra pagar o aluguel... Então tudo isso te mata mesmo... dentro de você. Então o cara se sente mesmo muito pressionado. Você não pode ir para o forró porque tem uma companheira, não pode ir para o baile porque tem uma filha pra criar. Não pode tanta coisa. E a liberdade?

De alguma maneira, a opinião de Anderson se baseia em três afirmações: “rua

é liberdade”; “casa é prisão”; porém, o que julgamos muito importante, só para aquele

que “é de rua de verdade” ou “morou na rua mesmo”. Ou seja, aquele que viveu na

rua de verdade, não em albergues ou moradias provisórias e congêneres, consegue

enxergá-la como uma forma alternativa de se viver livre das normalizações e

responsabilidades que cercam a vida sedentária.

Algumas questões se fazem necessárias: Seria factível essa dicotomia

rua/liberdade e casa/prisão? Em outras palavras, seria possível separar de forma tão

maquiavélica essas duas formas de vida? O próprio Anderson esclarece que não. Fala,

muitas vezes, que a rua também traz “opressão”, nela há a “liberdade te maltratado”,

ela também é “obscura”, é “labirinto”. Da mesma maneira, a vida doméstica não é

somente prisão, pois nela se conquista alguns prazeres que na rua estão impedidos -

como veremos a seguir na fala do próprio Anderson. Ora, não haveria a possibilidade

de construir uma maneira de se viver que, de alguma maneira, atrelasse a liberdade

vivida na rua com a segurança oferecida pela casa? Isto é, a saída das ruas não

permitiria uma transformação do próprio ambiente doméstico? Não possibilitaria a

criação de uma casa na rua ou uma rua na casa?

Esta questão será discutida no final deste capítulo por se tratar do ponto nodal

de nossa pesquisa.

O argumento de Anderson traz ainda um outro aspecto: essa opinião sobre a

saída das ruas se aplica apenas àquelas pessoas que viveram na rua de verdade. Em

outra oportunidade descreve que viver na rua “mesmo” é diferente da condição de

viver em albergues ou qualquer instituição que se paute em valores da vida sedentária.

Aqui está uma diferenciação importante, pois nos remete às distinções

contidas nos diversos grupos de pessoas em situação de rua, nomeadamente em

relação às pessoas albergadas. Fica implícita a questão que foi discutida

anteriormente, de que o albergue e organizações similares procuram capturar a vida

nômade a partir de sua domesticação pautada nos valores sedentários.

Nesse sentido, a saída das ruas seria um objetivo mais atrelado àquela parte

das pessoas em situação de rua que caracterizamos como albergados, ao passo que

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seria indesejada por uma porção representada pelos trecheiros, andarilhos e loucos de

rua. Não devemos levar essa caracterização tão a sério, mas ela serve para se dizer

que propor a saída das ruas para algumas pessoas é tão coercitivo como propor o

auxílio para se viver nas ruas para outras.

Portanto, esse direcionamento proposto por Anderson nos remete a duas

questões fundamentais. A primeira delas diz respeito a importância de saber o sentido

que as pessoas em situação de rua atribuem à vida nessas circunstâncias. Há a

perspectiva de sentir a situação de rua como signo de fracasso pessoal, como situação

degradante e indigna da qual se deve sair. Estamos tentados a dizer que essa visão é

predominante na população em situação de rua da cidade de São Paulo. Em

contrapartida, há o sentido da situação de rua como um modo de viver com maior

liberdade, uma “deserção deliberada” da vida domesticada e de seus grilhões

(JUSTO, 2005).

Ora, ficam as questões: Qual relação essa diferença de perspectivas teria com

o tempo de rua? Como vimos, os demais entrevistados viveram pouco tempo nessa

situação, se comparados com Anderson. Poderíamos conjeturar que a criação da

situação de rua como um modo de vida alternativo depende de um tempo maior de

rua. Como em pesquisa anterior (MATTOS, 2003), observamos que somente a partir

de um tempo bastante subjetivo de elaboração, a vida na rua é gradualmente

desatrelada da situação domesticada anterior. Ou seja, inicialmente se vivencia a

situação de rua com os valores da casa para posteriormente se viver a situação de rua

a partir de uma cultura da vida nômade. Esse argumento explicaria, como o fez na

referida pesquisa, a dificuldade de se retornar à vida domestica, pois nesse momento

se experimenta a sensação contrária: se vive em casa com os valores da rua.

Qual relação esses diferentes sentidos atribuídos à situação de rua estariam

relacionados com o fato de viver, ou não, no ambiente citadino? Sob determinado

ponto de vista, a pesquisa de Justo (2005) pode dar margem a seguinte interpretação:

os “andarilhos citadinos”, que vivem no ambiente urbano, estariam muito mais

arraigados aos valores da vida sedentária, ao passo que os “andarilhos de estrada”,

que levam uma vida errante mais radical, estariam mais atrelados à vida nômade.

Deixemos essas questões para a reflexão de todos, pois o que logramos

enfatizar de maneira mais afirmativa é que essa primeira contribuição de Anderson

nos remete à necessidade de uma distinção geral que julgamos imprescindível: a saída

das ruas não deve ser tomada como imperativo generalizado para todas as pessoas em

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situação de rua. Se, como acreditamos, toda intervenção deve, necessariamente,

respeitar a autonomia da pessoa para a qual se dirige, devemos nos pautar na real

demanda de cada pessoa. Ou seja, devem haver, como sugere Justo (2005), serviços

para auxiliar as pessoas que vivem nas ruas e delas não querem sair, assim como

alternativas concretas para a saída das ruas para aquelas pessoas que assim o

desejarem. Repetimos, em qualquer das possibilidades, pensamos ser necessário

respeitar as pessoas em sua autodeterminação: no ato de escolher livremente o destino

que almejam construir.

Discutiremos as políticas públicas para as pessoas em situação de rua mais

adiante. Por ora, gostaríamos apenas de fazer notar que, com raras exceções, elas não

fazem nenhuma coisa nem outra. Em outras palavras, são pautadas por valores

sedentários, mas não oferecem alternativas concretas de saída das ruas. Vimos que

muitas vezes fazem o contrário: contribuem para a permanência na rua ou mesmo

fomentam o nomadismo. Por outro lado, não respeitam a situação de rua como a

possibilidade de uma vida digna de um cidadão que assim a escolha, adotando

autoritariamente a vida domesticada como imperativo necessário a todas as pessoas.

De qualquer maneira, esse raciocínio sobre as diferentes visões da situação de

rua possui essa armadilha: é leviano dizer que o sujeito escolhe viver na rua ou opta

por sair dela quando muitas vezes não são “escolhas”, posto que pautadas em forças

que escapam a determinação voluntária das pessoas. Em outras palavras, toda escolha

é feita dentro de um “campo de possibilidades” concretas e somente nessas condições

se pode falar de uma escolha livremente realizada (SARTRE, 1946/1987). Seria muito

difícil precisar que fulano escolhe estar na rua e ciclano escolhe dela sair quando são

oferecidas poucas possibilidades de escolha para qualquer uma dessas situações.

Além dessa distinção de sentidos atribuídos à situação de rua, a contribuição

de Anderson se faz também com outra questão. O problema não está tanto na

“situação de rua”, mas muito ligado à “situação de casa”. Em última análise,

retomando a dialética entre casa/domesticação e rua/libertação, o processo de saída

das ruas está intimamente ligado ao sentido que se atribui à vida domesticada. Se esta

estiver sendo vinculada à prisão, à opressão, o processo de saída das ruas pode ser

indesejado ou, quando aceito, bastante conflituoso e angustiante, como o exemplo de

Anderson.

Rodamos e caímos na mesma questão: A saída das ruas não poderia expressar

uma transformação do próprio ambiente doméstico? Como se dá esse processo de

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saída das ruas?

5.2 - Como se dá a saída das ruas? - idiossincrasias da busca por autonomia

A primeira questão do roteiro de entrevistas indagava sobre como se dá o

processo de saída das ruas. Foi uma questão fundamental, pois era uma pergunta mais

aberta que possibilitava saber a opinião dos entrevistados sobre a saída das ruas sem

especificar as questões do trabalho, família, políticas públicas e movimentos sociais -

como nas questões seguintes. Em outras palavras, permitia saber a opinião dos

entrevistados de maneira mais livre em relação às opiniões do pesquisador.

José inicia destacando que o processo de saída das ruas, em seu caso

específico, principiou com o tratamento de seu “problema de saúde”, ao qual atribui

sua ida à rua. Nesse sentido, aponta que desenvolveu um problema psíquico que

denomina de “bipolar”, que o fez perder o emprego, abandonar a família e rumar do

litoral do Estado para a cidade de São Paulo. Parece destacar que nos casos de

problemas de saúde desse tipo, a primeira iniciativa é lidar com o tratamento antes de

qualquer outro procedimento.

Juan reflete de maneira similar, ao ponderar que o “servilismo” ao qual a

pessoa em situação de rua se encontra em seu contato com o albergue se origina,

muitas vezes, de uma “dependência” institucional com raízes na “dependência

química”: “Muitas pessoas com as quais convivi lamentavelmente são dependentes

de algum tipo de droga”. Comenta o quanto o “vício” acaba por favorecer uma

condição de passividade que dificultaria a participação ativa das pessoas em situação

de rua na modificação de sua realidade.

Isto nos conduz a uma questão implícita: se o principal problema da pessoa se

refere à questões de saúde mental, principalmente ao alcoolismo, uma rede de

atendimento efetivo a essas questões não poderia privá-la da situação de rua?

De outra perspectiva, Juan evidencia que não se trata de problemas apenas

individuais, pois a saída das ruas está atrelada a uma questão política mais geral:

Eu penso que é uma questão política a nível geral. A nível geral... não só os políticos, mas também as pessoas que vivem ou viveram nas ruas ou nos albergues devem ter a participação direta no que realmente querem ou que oportunidades podem ter de trabalho. Porque o maior problema... não existe somente dentro dos albergues, mas também nas favelas aqui no Brasil e em toda a

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América Latina, pelo problema da grande revolução industrial que ocorreu no passado. Considerando esses aspectos, a solução não é só para os moradores de rua, pois existem milhares de pessoas que vivem também em extrema pobreza.

Percebe-se que Juan foca a questão da saída das ruas como uma ação coletiva

de todos os cidadãos contra a problemática da pobreza, fruto de um processo de

desenvolvimento econômico que remonta à revolução industrial. Vê-se também que

coloca em primeiro plano a ação política no âmbito de uma democracia participativa,

além de citar explicitamente o trabalho como mote de luta e reversão da situação de

pobreza.

Para ele, a situação de rua não deve ser vista descolada dos problemas sociais,

políticos e econômicos que assolam o mundo “globalizado”. Ou seja, não basta lutar

apenas pela saída das ruas, mas por uma transformação mais geral das formas de vida

atuais. Nesse sentido, Juan aponta que a solução se articula por meio do “trabalho”,

porém a conquista desse trabalho perpassa por uma ação “política”. Nesta, enfatiza a

participação ativa da população em situação de rua nas discussões, em interlocução

com as organizações que lhe prestam serviço, nomeadamente o albergue, e os

governantes. Para que haja essa participação, Juan salienta a “conscientização”:

A saída, em particular eu lhe digo, é geral. Político, também escutando as pessoas que vivem e viveram dentro dos albergues para chegar a um consenso real de onde se vai lutar para conseguir um trabalho. Não somente um trabalho, mas conscientizar essas pessoas da real situação em que se encontram.

Assim, a “educação” surge como ponto fundamental, já que Juan descreve ser

o “analfabetismo” um grande problema na rua. Enfim, afirma: “Penso que é um

conjunto de conscientização, educação e trabalho. Aí eu penso que está um ponto

estratégico da saída das pessoas que vivem nas ruas ou nos albergues para poder ser

autônomos”.

É interessante notar a distinção que faz entre “educação” e “conscientização”.

Nos parece que o termo “educação” é utilizado como sinônimo de educação formal,

tradicional, “bancária”, para nos remeter a Paulo Freire. Tal impressão parece

confirmada quando diz que a pessoa precisa saber ler e escrever para trabalhar nas

atividades profissionais mais simples. Esta “educação”, no entanto, não oferece à

pessoa a problematização da situação social em que se encontra. Isto porque a

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conscientização não é um processo desencadeado pela educação formal, na maioria

das vezes. Para Freire (1980, p. 40), conscientização diz respeito à construção do

conhecimento junto com os educandos, de maneira a suscitar uma reflexão crítica

sobre a realidade social na qual estão inseridos, assim como o comprometimento com

sua transformação.

Mais adiante, na parte em que discutiremos sobre os movimentos sociais,

retomaremos uma questão fundamental: a educação não-formal, momento no qual

verificaremos o quanto o processo de conscientização pode ser conquistado

coletivamente a partir participação em locais como manifestações, Fóruns e outras

atividades engendradas pelos movimentos sociais.

Para a nossa surpresa, a questão mais consensual entre os entrevistados diz

respeito à “acomodação” das pessoas em situação de rua promovida e favorecida

pelas políticas sociais, nomeadamente o albergue. É interessante notar como todos

utilizam a mesma expressão (“acomodação”), assim como a saída das ruas depende

da crítica a essa relação instituição assistencialista/pessoa acomodada. Ou seja, a

primeira luta a se travar não é a favor do trabalho, ou qualquer coisa assim, mas

justamente contra a situação em que pessoas são submetidas em seu contato com os

albergues. Em outras palavras, a saída das ruas não se dá a partir das intervenções

públicas, mas apesar delas. Discutiremos a questão dos albergues com mais detalhes

posteriormente, no item sobre as políticas públicas. Neste momento pretendemos

apenas destacar o quanto, mesmo em uma questão geral sem qualquer alusão

específica ao sistema albergal, surgem opiniões que subsidiam nossa análise contida

no item 4.5.

De acordo com Antônio, o albergue é um ambiente de pessoas “acomodadas”

com sua situação, sem qualquer “objetivo” na vida. Juan retrata uma condição similar

que denomina “servilismo”. Trata-se da condição de pessoas que estão “acomodadas”

em virtude da dependência da força alheia do albergue para conseguir os elementos

básicos de sua sobrevivência: “Ao ser dependente para ter casa e comida eles nunca

vai sair de seus lugares”.

Já Anderson, procura contextualizar essa acomodação no interior da própria

vivência da pessoas em situação de rua: “Primeiramente, a saída das ruas é um

processo muito difícil porque a rua é um ciclo vicioso: você tem comida de graça,

você tem dormida de graça, você tem roupa de graça”. Anderson parece descrever o

processo de saída das ruas no processo mais geral de vivência da vida nas ruas.

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Primeiramente, discorre sobre a ida para a rua como processo que gera muito

preconceito: “Quando você cai na rua, você cai e tem preconceito. Você cai com o

estigma de ruim, de quem não é valorizado, de quem é mendigo, de quem é morador

de rua, de quem é ladrão, de quem é maloqueiro”. No entanto, acrescenta que este

processo é seguido da captura do indivíduo pelo albergue:

Aí se vai para os albergues (...) por mais que tenha as regras e tudo, você tem o almoço em tal lugar, você tem a dormida, você tem uma cama limpa, você uma televisão... você tem as regras e horários, mas tem tudo isso. Então se torna um círculo vicioso: o cara vai pulando, deu seis meses num albergue e vai pra o outro.

Por isso Anderson acha muito difícil falar de “autonomia” e “saída das ruas”

para o “cara que está na rua”.

De maneira mais explícita na fala de José, a saída das ruas compreende

inicialmente uma “ruptura” com essa estrutura assistencialista. Se o albergue é uma

instituição de seqüestro, cujo fim é adestrar os indivíduos tendo em vista as normas

do mundo sedentário, que fomenta a passividade, obediência e submissão; se a saída

das ruas, como entendida pelos entrevistados, é um processo de autonomia, então se

deve começar pela ruptura com aquela instituição que procura cercear essa

autonomia.

Tal ruptura muitas vezes é tida como empreendimento individual. Trata-se da

reflexão que depende unicamente do indivíduo isolado a elaboração de estratégias

para a saída das ruas. Essa faceta é característica da fala de Antônio. Em seu

depoimento sobre como se deu seu processo particular de saída das ruas, fala sempre

na primeira pessoa. Diz que o fundamento de sua saída estava na conquista de um

“emprego”, e iniciou trabalhando como “carroceiro” e vendendo seus materiais ao

“ferro velho”. Realizou outros bicos na área da construção civil até conseguir uma

ocupação estável, com carteira registrada, como gari na limpeza urbana da cidade.

Nesse movimento, sempre salienta a necessidade de sair do círculo vicioso de

dependência do albergue:

Eu nunca corri atrás desse negócio de boca de rango. Minha preocupação mais assim era arrumar emprego, pra mim sair daquela situação de albergado (...) Era um objetivo bem fixo pra mim. A maioria das pessoas ia jogar futebol, ia jogar dominó, ia pra boca de rango. Eu não, eu ficava pensando assim: aonde é que eu vou procurar emprego amanhã, e sempre corria atrás disso daí.

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Embora tenha sido descrito como um empreendimento pessoal, Antônio

acrescenta a importância das “amizades”, ou mais especificadamente, da seleção das

pessoas com as quais se relacionar. Aponta que evitava andar em companhia das

pessoas que somente estavam atrás de “boca de rango” ou de pessoas envolvidas com

o “mundo do crime”. Em suma: “Eu nunca fiz amizade com pessoa que eu achasse

que estava só atrás de boca de rango. Eu procurava fazer sempre amizade com gente

que corria atrás de um objetivo”.

Outro elemento, citado exclusivamente por Antônio, é a importância da

religião, em seu caso a evangélica: “Para mim foi importante também eu virar

religioso”. Em seu depoimento, a religião é importante porque consegue “levantar a

auto-estima” das pessoas no culto.

José pondera que conheceu muitas pessoas que saíram das ruas “por conta

própria”, por “força de vontade”: “As pessoas que eu conheci que saíram, eram

pessoas que sozinhas conseguiram achar essa coisa dentro delas”. Tal afirmação é

sempre feita em contraposição não somente à falta de auxílio que as políticas públicas

deveriam oferecer, mas principalmente ao desserviço que prestam àqueles que

desejam sair das ruas. Quando se tinha o projeto de saída das ruas, a “estrutura que a

gente vivia não permitia”: “Dentro daquela estrutura era inviável você tentar

procurar emprego... ou você ficava dentro dela, do jeito que ela era, ou tentar

romper com ela”. Enfim: “A instituição reforça na pessoa essa idéia de que ela

realmente não tem como sair”.

Assim, José participou da formação de um grupo para criar possibilidades de

saída dessa estrutura, porém sofreu resistência: “O pessoal que dirige lá o espaço,

quando percebeu que a gente estava se organizando, começaram a pressionar...

inviabilizar reuniões...”. Diante dessa repressão, José descreve que muitos

companheiros fortaleceram a idéia de sair dalí: um foi morar em um cortiço, outro foi

para Portugal.

Em sua opinião, sua saída das ruas se deu a partir da crença em um projeto de

montagem de uma cooperativa. Reunido o grupo, no entanto, percebeu-se que cada

um tinha um interesse particular, o que fez com que seguissem caminhos distintos.

Porém, José lembra de uma palestra no Fórum de Debates na qual um profissional

falou em “descobrir dentro da pessoa o que ela tinha ainda... o que ela ...toda pessoa

em todo estado tinha dentro dela algo que você poderia puxar e aquilo é que ia

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fazer...”

Quando começou o “movimento” do grupo,

[...] várias pessoas e entidades que começamos a procurar, começaram a acreditar na gente... a gente não queria ser visto como coitado e pedir esmola... a gente queria ajuda para achar uma saída definitiva e também pra aprender: se eu cair de novo, eu vou saber achar um caminho pra sair.

José afirma que as pessoas na moradia provisória em que residia conseguiram

descobrir que poderiam sair, a partir do coletivo: “No nosso caso não foi algo

individual, foi um processo de grupo mesmo... das pessoas acharem algo que desse

motivação para elas continuarem”.

Segundo pensa, a função da instituição deveria ser de observar as

possibilidades da pessoa para ela sair da rua, mas ela fazia o contrário porque “eles

não faziam nada pra motivar” e as pessoas voltavam para o albergue: “No que

dependesse da instituição a gente nunca ia fazer nada”.

Um exemplo de saída por conta própria é a trajetória de Juan. Descreve que

ficou durante seis meses participando de oficinas no albergue e acreditando na saída

das ruas a partir dessa ajuda institucional. No entanto, a possibilidade de trabalho que

almejava “nunca chegou”. Isto porque considera as oficinas bastante descoladas da

realidade econômica da cidade: “As oficinas estão embasadas em coisas

simplesmente muito abstratas. No que me refiro como coisas abstratas? Não estão

embasadas na realidade social, tanto social e econômica, dessa grande metrópole

que é São Paulo”. Cita, nomeadamente, a falta de discussão sobre o custo do produto,

atrelada à ausência de um cálculo sobre o lucro obtido; e a falta de discussão sobre a

receptividade que os produtos teriam no mercado consumidor. Enfim, após essa

primeira tentativa de saída a partir do albergue, Juan conclui: “Então não existe essa

realidade de ajuda, de real saída nos albergues”. Essa descoberta de que a saída das

ruas por meio do albergue era uma “grande mentira”, o fez pensar em outras

possibilidades, muito mais individualizadas: “decidi tomar minhas próprias rédeas,

sair de lá e tentar fazer outra coisa”.

Há mais de um ano não entra no albergue depois disso. Evita o albergue

porque isso o remetia a “ser dependente”:

Eu particularmente me sentia como um parasita dentro do albergue. Os albergues, eu sempre digo, são uns cemitérios de

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vivos, pois em realidade alí não te permitem pensar, não se te permitem fazer alguma coisa para modificar essas condições de vida nas quais seres humanos estão aí.

Dessa maneira, o processo de saída das ruas, em linhas gerais, perpassa por

questões das mais diversas. O tratamento de problemas de saúde metal, uma

transformação mais contundente na sociedade e, principalmente, uma ruptura com

instituições como o albergue e a moradia provisória. Esta última foi a faceta mais

explorada pelos entrevistados. Estar nestas instituições é sinônimo de “acomodação”,

“servilismo”, “repressão”, “dependência”, sentir-se um “parasita”. Logo, o

movimento de saída das ruas é associado a um movimento de libertação dessa

estrutura assistencialista e prostrante. É um processo de autonomia associado ao ato

de retomar a vontade própria, correr atrás da transformação de sua realidade, tomar as

rédeas da própria vida.

Aqui cabe uma reflexão importante. A relação com as entidades assistenciais

acaba surgindo como um grande divisor de águas para se analisar a saída das ruas.

Isto porque, como dissemos anteriormente e como nos sinaliza os depoimentos dos

participantes da pesquisa, as instituições assistenciais são regidas pelos ideais de

domesticação e privação da liberdade individual: convencionam regras rígidas,

compromissos com horários rigorosos, impõem condutas, impedem a expressão de

divergências. Em suma, procuram reproduzir a uniformização e opressão típicas do

ambiente doméstico e do período histórico em que a domesticação era um imperativo

exclusivo.

Para aqueles que experimentam a situação de rua como processo de libertação

dos grilhões da vida domesticada, a evitação do contato permanente com essas

instituições pode significar a mesma deserção à domesticação da vida e privação da

liberdade que tinham os compromissos com a família e o trabalho. Parte dos

moradores de rua e dos andarilhos, que evitam as instituições por suas regras,

estariam agindo de forma a manter sua liberdade e autonomia frente as suas condições

de vida e atividades cotidianas. Mesmo os pardais, exímios conhecedores da rede

assistencial, agiriam de maneira a dissimular sagazmente uma obediência para

conseguir alguns benefícios importantes para suas sobrevivências. É possível que

mesmo alguns albergados se utilizem dos equipamentos públicos tendo em vista

reproduzir uma vida, garantida em termos de sobrevivência, longe das pressões do

trabalho, família, contas a pagar e todos os outros compromissos da vida domesticada.

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Esse tipo de relação com as entidades assistenciais, de evitação ou utilização

de seus recursos sem se submeter verdadeiramente a seus discursos, pode ser típica

daqueles “da rua de verdade”, como diz Anderson. Ou seja, daqueles que encontram

liberdade e dignidade na vida em situação de rua, mesmo que tenham ido para a rua

involuntariamente, e utilizam os recursos das entidades como uma das estratégias que

usam para sobreviver. Nesse sentido, concordamos com Justo (2005) quando pondera

que deveriam haver políticas sociais que se distanciassem dos valores sedentários e

auxiliassem as pessoas a viver nas ruas. Isto porque, como já dissemos, é possível que

nesses casos seja atribuído um sentido de aprisionamento, opressão e domesticação à

proposta de saída das ruas. Anderson seria um exemplo típico dessa condição.

Há outras pessoas, como as demais entrevistadas, talvez pelo pouco tempo de

rua ou pela intensa ligação com as instituições sociais, que experimentam a

permanência nestas como sinônimo dos adjetivos que descreveram acima. Ou seja, a

vida nessas instituições significa a captura de suas vontades e liberdades por forças

extrínsecas, vivendo uma domesticação maior na situação de rua do que antes dela.

Para estes, que mantém uma relação com as instituições interpretada como de

opressão e não de aproveitamento, à saída das ruas é atribuído um sentido de

libertação.

5.3 - Saída das ruas e trabalho: da necessidade de criação de novas formas de trabalho

A discussão sobre a questão do trabalho ocupa um espaço bastante importante

no tocante à saída das ruas. Entre os entrevistadores, o trabalho foi discutido de

maneira bastante diversa e complexa. Pretendemos primeiramente expor os pontos de

vista dos entrevistados para depois proceder uma análise mais detalhada.

Antônio explica que a saída das rua, em seu caso, se deveu ao trabalho.

Somente após ter conquistado um emprego registrado de gari conseguiu reunir

recursos para alugar uma moradia e sair das ruas. Em seu relato o trabalho é visto

apenas como meio de sobrevivência e a este aspecto deve-se sua centralidade na saída

das ruas.

Neste mesmo sentido, Juan propõe de forma bastante direta que a

funcionalidade do trabalho se restringe à sua função “monetária”: “Tudo está

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baseado em uma questão monetária: se você vai tomar um ônibus precisa do

dinheiro da passagem. Se você não tiver dois reais, não vai tomar uma condução (...)

Como vai ter dinheiro se não tiver a fonte, e a única fonte legal é o trabalho”.

Se Antônio e Juan possuem um discurso mais carregado da questão do

trabalho, José relativiza um pouco essa centralidade. Em sua opinião, não se deve

reduzir a questão do trabalho apenas à geração de renda. Quando retomou o trabalho,

a partir da venda de aventais fabricados pela embrionária cooperativa que se iniciava,

José passou a sentir-se novamente “capaz” de se sustentar e de levar uma vida mais

autônoma. Associa o trabalho ao “prazer” e à autonomia tão cerceada pela instituição,

pois trata-se de uma atividade que “nós estamos fazendo e não tem ninguém tomando

conta da gente”. Era sentir que “eu não precisava ser aquela pessoa dependente do

Estado pra comer e pra beber e tudo mais”. Isto está em íntima relação com a saída

nas ruas, pois: “Quando eu comecei a trabalhar, comecei a me sentir melhor e

comecei a acreditar que a chance era maior de eu sair”.

No entanto, José destaca as dificuldades de se trabalhar regularmente estando

na situação de rua. Novamente, em sua reflexão surge o albergue como empecilho ao

trabalho e não como auxílio. Nesse sentido, não deve-se apenas atentar para o

trabalho, mas para as possíveis “formas de apoio” que as instituições deveriam

realizar: “O emprego formal, a carteira registrada é uma parte da solução”. Mas há

necessidade de um outro apoio. Neste momento, cita um episódio em que começou a

trabalhar como vendedor de aventais e não tinha estrutura para se manter no trabalho:

sem condições para lavar a roupa no albergue, devido a seu horário de trabalho, foi

criticado no trabalho por não lavar a roupa ou tomar banho. Acabou se demitindo por

vergonha das críticas de seus colegas de trabalho.

Na relação do trabalho com as entidades, José ainda lembra a problemática do

tempo: a pessoa que vive em torno da necessidade de comer e dormir nos albergues

perde o dia todo em filas e não consegue fazer outras coisas: “A opção é você

começar a escolher: comer um pouco ou procurar sair”. Afirma que teve que

escolher: tinha que dormir até as sete, por causa da medicação, e não tomava café

porque nesse horário não sobrava nada. Logo: “Quem entra no albergue e quer tomar

café, almoçar e jantar, se ele pensar só nisso, fica difícil fazer outra coisa, porque

ele perde todo o tempo nisso”.

Para ele é um equívoco limitar a situação de rua e, consequentemente, a saída

das ruas, ao trabalho: “Nem todo mundo está na rua por falta de emprego. Eu acho

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que tem uma questão econômica que leva as pessoas para a rua, mas tem também

outras situações”. Ou seja, não é somente ajuda de “dinheiro”. José fala da

necessidade de auxílio “psicológico” ou “terapia de grupo” como primordial para a

pessoa se adaptar à rotina do cotidiano de trabalhador. Observa-se que a função que

atribui à psicologia é bastante próxima daquela que Merani (1972) critica: contribuir

para o indivíduo se adaptar ao trabalho alienado.

José descreve exemplos de pessoas que conheceu na moradia provisória que

conseguiram emprego, mas logo se desvencilharam, mesmo tendo carteira registrada

e um bom salário.

A crítica mais contundente à idéia de trabalho como fundamento para a saída

das ruas advém de Anderson. Ele é categórico ao dizer que o trabalho registrado para

a pessoa que morou na rua é “ilusão”:

Primeiramente trabalho pra quem tá na rua é ilusão: o cara passa um tempo depois retorna. Ele viveu a liberdade, então ele vai se sentir pressionado. Agora, quem viveu na rua de verdade, não quem viveu albergues. Pra cara que viveu na rua é ilusão trabalho registrado.

Veja que novamente Anderson baseia sua reflexão na distinção entre quem

viveu na rua “de verdade” e quem viveu em albergues. Para sustentar sua afirmação,

recorre a sua vivência pessoal ao defender que o “trabalho registrado” é uma forma

de controle social que colide com a “liberdade” como forma de vida das pessoas da

rua “de verdade”. É importante notar que Anderson comenta que conseguiu um

trabalho registrado que lhe auferia a renda de seiscentos reais mensais:

Eu não gosto de trabalhar registrado. Porque eu já trabalhei muito registrado. Não é que eu não gosto do emprego, eu adoro emprego e adoro trabalhar, mas não me registre: eu gosto da liberdade. Eu gosto de meu compromisso se chegar lá saber o que eu vou fazer, sair a hora que eu necessitar, voltar e deixar tudo em ordem pra o patrão, receber meu dinheirinho e não ter compromisso com ele. A gente sabe que patrão não é amigo da gente, a gente é o escravo dele. Então a gente é um robô: todo dia tem que entrar as oito horas, sair as cinco horas, deixar o serviço... Eu tenho a minha liberdade, trabalho na frente de trabalho... trabalhei no restaurante, mas mandei os donos tudo ir a merda (...) Eu prefiro mil vezes catar latinha, que é um sustento muito importante e digno, do que ficar trabalhando registrado lá. Porque, primeiro, se paga os impostos, eles descontam muito do seu salário, você não é absolutamente nada. Eu trabalhava de sábado e domingo, não tinha tempo pra mim, não tinha tempo pra minha companheira. Não tinha tempo pra nada. Pra ganhar o quê? Seissentos reais,

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enquanto eles ganham dois mil reais em cima daqueles seissentos reais que você ganhou por mês. Eles ganham isso no dia.

Ou seja, o trabalho registrado é observado em termos de controle e exploração

que exerce. Tais pressões, no entanto, não melhoram a vida do trabalhador, em sua

opinião, porque, por mais que se esforce, ele continua a trabalhar demasiadamente e

receber um salário que lhe permite sobreviver, mas não “comprar suas coisas”.

Nessas condições: “Você é escravo do trabalho. Eu não quero isso pra mim”.

Anderson ressalta que faz seu trabalho, cata sua latinha, mas sem ter as pressões e

compromissos do emprego registrado.

Segundo ele, deve-se criar novas formas de trabalho que preservem a

liberdade: “Trabalho registrado é escravidão”. Sugere algumas formas de trabalho a

partir das quais se consegue o sustento, mas se tem tempo para ir a uma reunião, à

praia, sem “trabalhar vinte e quatro horas por dia”:

Se tem que esperar sua folga pra ir pra praia? Tem que esperar suas férias no ano que vem pra fazer uma viagem? Enquanto você pode pegar sua mulher e seus filhos e ir viajar. Ah! pelo amor de Deus. A sociedade hoje tá muito escrava dos escravizadores.

Logo, uma questão fundamental que perpassa os discursos dos entrevistados,

com exceção de Antônio, é a variedade de atividades que se encerram na

denominação “trabalho”. Seria o trabalho assalariado formal, com registro em

carteira, uma saída concreta para a situação de rua?

Os entrevistados respondem de maneiras distintas a essa questão. Antônio

parece acreditar nessa possibilidade, desde que o indivíduo esteja motivado para

“correr atrás”, que tenha esse “objetivo”. Mas o interessante é que trabalha

atualmente no período da madrugada como gari e durante o período vespertino na

cooperativa. Em determinado momento da entrevista fala que gostaria de trabalhar

apenas na cooperativa, quando conseguir obter com ela os rendimentos para pagar

todas as suas despesas. Denota uma preferência pelo trabalho como cooperado, ao

mesmo tempo também gostaria de ser promovido para “fiscal” em seu trabalho de

gari.

Juan, sempre baseando sua reflexão no contexto mais geral da sociedade

moderna, refere a problemática do “desemprego global”, que assola também diversos

países que considera “ricos” do continente Europeu. Portanto, pondera que a

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preocupação da sociedade não deveria estar voltada para as fontes criminosas de se

ganhar dinheiro, pois o “trabalho” como “fonte legal” de se gerar renda é o grande

“problema social”. Para ele, a situação atual é de “problemas laborais agudos” de

maneira “global”. Daí advém a seguinte afirmação: “Eu digo que inventar novas

formas de trabalho é obvio, pois se voltarmos a formas tradicionais de trabalho não

há lugar para novos postos de trabalho”.

A saída para o desemprego estrutural, enfatiza Juan, não é uma reflexão

reduzida apenas às pessoas em situação de rua que pensam em sair dessa situação, é

um problema que deve ser enfrentado por todas as pessoas no mundo. Em sua opinião

há até um elemento preventivo, pois se não houver essa iniciativa muitas pessoas em

condição de pobreza vão acabar engrossando as fileiras da população em situação de

rua.

Juan acredita que a “criação de novas formas de trabalho” depende de “uma

ação conjunta de pessoas que vivem nas ruas, de pessoas que assistem a Fóruns, de

assistentes sociais, técnicos e sobretudo a participação política e econômica que tem

os políticos”.

Em seu discurso salienta a responsabilidade do “governo” nesse

empreendimento. Porém, devota atenção especial à “criatividade” das pessoas, tanto

da casa quanto da rua, na criação de atividades em diversas áreas. Munido de uma

série de reportagens sobre a “agroecologia”, Juan, que nasceu e foi criado em

ambiente rural no Peru, argumenta a criação de um desenvolvimento sustentável no

campo como uma das possibilidades de saída das ruas. Ressalta as novas tecnologias

de fertilizantes, a construção de casas a baixo custo com a utilização de materiais

alternativos e as cooperativas como forma de trabalho solidário. Enfim, em iniciativas

como essa, Juan vê uma saída concreta: “Aí poderia ser uma forma de criar novos

postos de trabalho às grandes massas, e difundí-lo obviamente com pessoas e

técnicos que conhecem esse novo sistema”.

Já Anderson retrata a busca por novas formas de trabalho como

empreendimento individual:

Eu não estou dizendo que quem tá na rua não quer emprego, claro que tem que arrumar emprego. Eu acho que o emprego hoje é a base para a moradia, é a base pra sociedade: se você não tiver emprego você não come, se você não tiver seu ganha pão você não vive. Isso é verdade, você tem que ter o seu sustento, mas tem várias maneiras de ter o seu sustento. Cada um tem que buscar da sua forma.

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É interessante notar como os entrevistados tangenciam grande parte das

discussões recentes sobre o mundo do trabalho, em toda sua diversidade: a questão

das metamorfoses na instituição do trabalho, principalmente a discussão sobre a

centralidade do trabalho no mundo atual; a relativização do trabalho como forma de

vida e a priorização do ócio e do lazer; o desemprego como grande problema e a

necessidade de criar novas formas de trabalho; o trabalho como instituição que não

oferece mais segurança e garantias, posto que o trabalho assalariado ao qual nos

habituamos está em processo de esfacelamento ou liquefação.

Na necessidade de assentar a história humana em uma concepção materialista,

os jovens Marx e Engels (1845-46/1984) adotam como ponto de partida os indivíduos

reais e sua ação na construção das “condições materiais de vida”. Assim, destacam

que o elemento que diferencia o homem dos demais animais é o fato de produzir sua

própria vida a partir da transformação da natureza e sociedade. Ser humano é

produzir-se humano. O “primeiro ato histórico”, fundamento da história humana, é a

produção dos meios de subsistência para satisfazer suas necessidades básicas como

comer, dormir, vestir (MARX; ENGELS, 1845-46/1984, p. 31).

Nesse sentido, o trabalho como base da sociedade remete a sua função

ontológica fundamental: a própria produção do homem pelo homem. O trabalho, no

entanto, como produção histórica, se concretiza na história de diferentes maneiras.

Analisando em pormenores o processo de constituição do trabalho assalariado, na

parte do Grundrisse intitulada “Formações Econômicas Pré-Capitalistas”, mais

conhecida como Formes, Marx (1857-58/1991) destaca algumas características do

trabalho antes da constituição do capitalismo como modo de produção. Nessas

circunstâncias, a partir do pertencimento a uma comunidade, o sujeito possuía uma

relação de propriedade em relação aos meios de produção. Possuía as matérias-

primas, as ferramentas e os demais objetos para concretizar seu trabalho. Dessa

maneira, o processo de produção era por ele dominado. Ou seja, tinha o controle

sobre como, quando e o que fazer. Enfim, o produto de seu trabalho era de sua

propriedade e se reconhecia nele. Em outras palavras, o produto era visto como uma

“manifestação de vida” (MARX, 1857-58/1991), algo que dava prazer ao trabalhador

que o produziu, algo do qual se orgulha e identificava como expressão de sua

atividade.

Em suma, a propriedade dos meios de produção, o controle sobre o processo

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produtivo e a apropriação do produto faziam com que o trabalho fosse visto como a

expressão do controle humano e sua liberdade criativa na construção de si mesmo e

da sociedade, concomitantemente.

A formação histórica do capitalismo possui como pressuposto a dissolução

dessa configuração a partir da constituição do trabalho assalariado ou “alienado”.

Trata-se de um processo sumariamente descrito no item 3.1, a partir do qual

transforma-se em mercadoria: é reduzido a força de trabalho que o trabalhador vende

a um terceiro. Este último, é proprietário dos meios de produção, controla o processo

produtivo e se apropria do produto.

Uma das formas de se compreender as facetas desse trabalho é a partir das

características que Marx atribui ao “trabalho alienado”, que tomaremos de seu

segundo manuscrito de 1844. Vendendo sua força de trabalho, o trabalhador não mais

possui o controle sobre como, quando e o que produzir. O trabalho adquire a

expressão de uma relação de dominação e servidão, pois ocorre a “apropriação da

própria vontade do trabalhador por outra pessoa” (MARX, 1857-58/1991, p. 96).

Marx também se refere a ele como “...um trabalho de escravo, em que a sua liberdade

se encontra totalmente alienada” (1844/2002a, p. 67). Ora, aqui estão descritas as

características que Anderson atribui ao “emprego registrado”: perda de liberdade,

escravidão, cumprimento rigoroso de regras e horários. O trabalhador se assemelha a

um objeto sem vontade própria, manipulado por uma força alheia, sem o mínimo

controle sobre suas atividades enquanto trabalha. Se Anderson fala que ele se parece

como um “robô”, Marx, em cuja época robôs ainda não existiam, fala que os

trabalhadores são reduzidos a puras “máquinas” (1844/2002a, p. 68). Comprando a

mercadoria força de trabalho, o proprietário dos meios de produção, o capitalista, usa

essa mercadoria como quiser, pois durante aquele momento ela lhe pertence.

Também o produto do trabalho não serve mais diretamente a seu produtor para

a satisfação de suas necessidades, assim como não é mais visto como expressão de

sua vida. O produto pertence ao capitalista, havendo uma “perda de objeto” por parte

do trabalhador. Logo, o trabalhador e sua força vital não se realizam no produto, ao

contrário: “A realização do trabalho aparece na esfera da economia política como

desrealização do trabalhador, a objetivação como perda e servidão do objeto, a

apropriação como alienação” (MARX, 1844/2002a, p. 112).

Considerando que o trabalho surge como própria constituição da sociedade e

do indivíduo, a perda do objetivo produzido também implica na perda do controle

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sobre o desenrolar da própria vida humana em sociedade: “A alienação do

trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto,

mas que existe independente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder

autônomo em oposição a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e

antagônica” (MARX, 1844/2002a, p. 111).

Essa força a que Marx se refere é o capital e seu processo de autovalorização

no interior do processo produtivo, desencadeada a partir do trabalho assalariado.

Marx enfatiza que o capitalista compra diversas mercadorias para realizar a produção

de determinado bem: matéria-prima, compra e manutenção das máquinas, gastos de

energia, dentre outras que constituem o “capital constante”; e a força de trabalho que

constitui o “capital variável” (p. 171). Essas denominações se referem ao fato de o

capital constante não aumentar seu valor durante a produção, ao passo que o capital

variável tem seu valor alterado. Ou seja, a força de trabalho comprada do trabalhador

acrescenta um valor excedente ao produto, um valor maior que ganhou durante a

produção: “Esse incremento, ou excedente sobre o valor original, chamo de - mais-

valia (...) O valor originalmente adiantado não só se mantém na circulação, mais

altera nela a sua grandeza de valor, acrescenta mais-valia ou se valoriza. E esse

movimento transforma-o em capital” (MARX, 1867/1985, p. 128).

O trabalhador cria uma força alheia que o domina, o capital, como um “sujeito

automático” ou “sujeito autônomo” que, em última análise, vai se reproduzindo à sua

maneira sem qualquer controle do ser humano que o criou.

Ademais, nesse excedente de valor está a afirmação de Anderson de que o

trabalhador é alvo de “exploração” porque o patrão ganha muito mais dinheiro “em

cima” daquele salário que paga como preço da mercadoria que cria valor, a força de

trabalho. Anderson capta bem esse movimento. Fala que essa “exploração” é feita a

partir do fato de trabalhar durante muitas horas, inclusive aos finais de semana e

feriados, assim como pela exigência de “se matar” durante o trabalho. Aí está a

distinção entre “mais-valia absoluta”, aquela conquistada a partir da extensividade das

horas de trabalho; e a “mais-valia relativa”, conquistada a partir da intensividade do

trabalho durante a mesma jornada (MARX, 1867/1985, p. 251).

Anderson também critica o trabalho assalariado na medida em que a partir

dele não se consegue “comprar as coisas”, consumir outros bens que não aqueles

mínimos para sobreviver. Isto porque o “salário”, preço pago à mercadoria força de

trabalho, é calculado a partir dos meios de subsistência necessários apenas para a

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manutenção da vida do trabalhador e sua reprodução enquanto produtor de força de

trabalho a ser explorada no processo de produção (MARX, 1867/1985, p. 141).

No interior da teoria marxiana da mais-valia, dentro da reflexão que fazemos

sobre o trabalho alienado, encontra-se outra faceta importante: a redução do trabalho

a um meio de vida, ou a “alienação da espécie” (MARX, 1844/2002b).

A satisfação, o prazer, a realização de um mundo humano a partir do trabalho,

ficam ofuscados e obscurecidos pela necessidade de conseguir seu “meio de

existência imediato” (MARX, 1844/2002b). O trabalho surge como desprazer,

obrigação, sacrifício:

Mas a força de trabalho em ação, o trabalho mesmo, é a atividade vital peculiar ao operário, seu modo peculiar de manifestar a vida. E é esta atividade vital que ele vende a um terceiro para assegurar-se os meios de subsistência necessários. Sua atividade vital não lhe é, pois, senão um meio de poder existir. Trabalha para viver. Para ele próprio, o trabalho não faz parte de sua vida; é antes um sacrifício de sua vida (MARX, 1847/1980, p. 63).

Em outras palavras: “...o trabalhador só se sente em si fora do trabalho,

enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas

imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas

apenas um meio de satisfazer outras necessidades (MARX, 1844/2002a, p. 114).

A partir dessa reflexão, observamos o sentido do trabalho quando ele se reduz

a uma “função monetária”, como afirma Juan e, de diferente forma, Antônio e

Anderson. Se o ser humano se distingue do animal por construir deliberadamente sua

própria vida em sociedade, com a criação de uma força alheia que o domina em troca

do estritamente necessário para sobreviver, o homem se transforma em “um ser

espiritual e fisicamente desumanizado...” (MARX, 1844/2002b, p. 124). Vive para

sobreviver. Existe para subsistir. Nega a sua humanidade e se animaliza em virtude da

atividade vital ser um “meio” para sobreviver:

Assim, chega-se à conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo nas suas funções animais - comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno, etc. - enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano animal (MARX, 1844/2002a, p. 114/115).

A opinião dos colaboradores da pesquisa nos conduziu para uma análise do

trabalho assalariado tal como delineada acima. Também eles destacam as

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metamorfoses atuais na instituição do trabalho assalariado.

O ruir das estruturas do trabalho assalariado surge de diferentes maneiras na

fala dos entrevistados. A recusa deliberada do “emprego registrado” aludida por

Anderson e endossada por um exemplo dado por José; e a insuficiência dessas formas

“tradicionais” de trabalho com o “desemprego global” referido por Juan.

Anderson é enfático: trabalho assalariado é “prisão”, “exploração”, “falta de

liberdade” e “escravidão”. Recusa deliberadamente trabalhar registrado tendo em

vista poder viajar quando quiser, participar de reuniões em movimentos sociais e

realizar atividades de lazer. Enfim, recusa o trabalho alienado para manter sua

“liberdade”.

José argumenta que a pessoa em situação de rua não precisa apenas de

trabalho, mas de um auxílio anterior para poder trabalhar. Cita o caso de uma pessoa

que conheceu: conseguiu emprego formal com rendimentos suficientes para se

manter, mas logo largou o trabalho a partir de uma discussão com o patrão. José

acredita que ela precisava de um auxílio, pois não julgou normal recusar essa

oportunidade de trabalho tão rara.

Em ambos os casos houve uma insubordinação ao trabalho assalariado, muito

possivelmente por sua configuração discutida anteriormente. Trata-se de um ato

explícito de subversão à ordem do trabalho alienado e da sociedade construída a partir

dele. Mas não se trata de algo isolado.

Vimos com Heloani (2003) como a década de 1960 esteve permeada por

manifestações contra a disciplina no trabalho, registrando aumento nas taxas de

rotatividade dos trabalhadores (turnover), elevação da “fuga do trabalho” e

absenteísmo. Vimos também a idéia de Maffesoli (2005), autor que clama com

entusiasmo a sabotagem ao “enclausuramento” racional e economicista moderno

expresso no “imperativo do trabalho”. Em sua opinião, em detrimento da necessidade

de agir e obedecer a fixação do trabalho, o contexto atual estaria valorizando o ócio e

a festa: manifestações pouco rígidas e racionais, que ofereceriam maior “liberdade” às

pessoas.

É bastante interessante a sintonia dessas idéias de Maffesoli com algumas

falas de Anderson: necessidade de mais tempo livre, negação do trabalho registrado

como forma de afirmação da liberdade, do poder festejar o carnaval em Salvador

quando der na telha.

Mas a desfiguração do trabalho assalariado também encontra respaldo em uma

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argumentação bastante distinta, que remete a uma fundamentação teórica no avesso

de Maffesoli. É interessante expor estes contrastes, salientar as contradições, em vez

de buscar uma unidade teórica. Juan considera que o trabalho “tradicional” não

oferece uma possibilidade para a saída das ruas pela sua insuficiência, pelo

desemprego que atinge todas as partes do mundo industrializado. De acordo com ele,

devemos buscar novas formas de trabalho não para buscar mais liberdade, mas porque

essa forma tradicional de trabalho não existe mais.

Mészáros (2002), um dos autores marxistas mais influentes no mundo atual,

delineia uma reflexão muito próxima à de Juan. Uma sociedade constituída

cotidianamente a partir do trabalho alienado implica numa forma de vida que foge ao

controle humano, posto que o capital torna-se um “sujeito automático” e uma força

alheia que controla o ser humano. Nesse sentido, uma das facetas do sistema

sociometabólico do capital é sua “incontrolabilidade”. Esta, por sua vez, se manifesta

a partir de alguns “limites absolutos” do sistema do capital, ou seja, antagonismos

destruidores que não poderão ser solucionados no interior desse sistema. Porém, esses

limites não ameaçam somente a reprodução do capital, mas põe em risco a própria

sobrevivência humana, como o limite representado pela degradação ambiental em

curso. Por isso, para Mészáros o século XXI é decisivo para a humanidade, pois ou se

revoluciona as condições atuais de vida, a partir do projeto socialista, ou viveremos a

barbárie com o fim da vida humana: “A escala temporal dessa ação [de ativação dos

limites absolutos do capital pondo em risco a humanidade] talvez possa ser medida

em algumas décadas, mas certamente não em séculos. O tempo está se esgotando”

(MÉSZÁROS, 2003, p. 108).

Mészáros (2002, p. 336) destaca que o “desemprego crônico” é o antagonismo

mais explosivo do sistema do capital. No interior da reestruturação produtiva e

precarização das relações de trabalho, como nos referimos no item 3.1, a “crise

estrutural do capital” se manifesta a partir do crescente desemprego e “redução

significativa do padrão de vida” em âmbito global.

Seja como for, pelos motivos de Anderson e Maffesoli ou de Juan e Mészáros,

o prelúdio do esgotamento do trabalho alienado exige um novo posicionamento frente

ao trabalho. Por conseguinte, a conquista de trabalho formal não é vista como

alternativa de saída das ruas, seja pela ausência de oportunidades no mercado de

trabalho, seja pela opressão que representa à liberdade individual. Deve-se considerar

também os diversos empecilhos que a pessoa em situação de rua encontra quando

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consegue uma ocupação regular, como referido por José, tais como a dificuldade de

conciliar os horários do trabalho com os das instituições e as dificuldades em manter

os padrões de higiene exigidos no trabalho - roupas novas e limpas e questões de

higiene corporal.

É claro que isso não invalida o trabalho como forma de saída das ruas,

somente uma configuração histórica do trabalho. Para os entrevistados, trata-se de

criar novas formas de trabalho, seja porque as tradicionais se esgotaram, seja para

conciliar trabalho com a preservação da liberdade. Quais seriam essas novas formas

de trabalho?

Para Anderson elas devem ser buscadas individualmente. Tal proposição

encontra respaldo na análise de Bauman (2001) sobre a modernidade líquida como

marcada pelo processo de “desregulamentação privatizada”. Se a modernidade sólida

exigia um capitalismo pesado, com a fixação territorial do capital e trabalho em um

mesmo local, o “mundo fordista” é sua principal característica: tempo regulado, ações

controladas, pessoas normalizadas e uniformizadas a partir do trabalho. Era uma

sociedade dos produtores, que simbolizava a produção sempre coletivizada,

rigidamente controlada e totalmente ordenada, ou seja, repetitiva, monótona,

regularizada. Com a moderna sociedade liquidificada, o capitalismo torna-se leve e

exerce poder extraterritorialmente e se enfatiza o consumo - sempre individual e

regido pelos desejos irracionais pouco controlados.

Como vimos, o trabalho antes representava uma instituição que oferecia

segurança existencial, mas cerceava a liberdade individual. Com a desregulamentação

privatizada, cada um deve se responsabilizar por encontrar sua forma de ganhar a

vida, idéia diretamente apontada por Anderson. Ganha-se em liberdade individual, tão

valorizada por ele. Assim, se tendemos a conceber a informalização e precarização do

trabalho como algo negativo, por suas conseqüências sociais, encontra-se aí uma

maneira de vê-los como tendências que auxiliam o indivíduo a se opor ao controle e

exploração a partir da busca por liberdade.

Anderson também fala de exercer várias atividades concomitantemente, sem

nenhum compromisso a longo prazo com qualquer uma delas. Baseando-nos nas

idéias de Maffesoli (2001, 2005), isto possibilitaria à “pessoa” vivenciar a

multiplicidade de seres que a habitam. Ou seja, a pessoa conheceria vários ofícios,

obteria diversos conhecimentos e expandiria suas possibilidades de experimentar a

vida. Também ocorre um tempo maior para o não-agir, o ócio, o lazer, ou mesmo para

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a realização de outras atividades não relacionadas ao trabalho.

Parece-nos que Antônio e, principalmente, José acreditam na criação coletiva

de novas formas de trabalho, ligadas à economia solidária como modo de produção

alternativo.

Antônio trabalha como gari e como cooperado no empreendimento solidário

junto a José. Ambos batalharam por mais de um ano para conseguir estruturar a

cooperativa. Ambos associam o trabalho como cooperado à capacidade individual, à

autonomia. Suas idéias alinham-se com a proposta de saída das ruas a partir da

economia solidária.

Grosso modo, a economia solidária propõe a colocação do desenvolvimento

humano como principal objetivo da atividade econômica. Portanto, não se trata

apenas de uma forma de organização do trabalho para a produção, mas,

principalmente, de afirmação do homem enquanto produtor de sua vida em seus

aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais. Movendo-se nos interstícios do

capitalismo neoliberal atual, a economia solidária é vista como “o modo prático e

teórico de construir o socialismo” (SINGER, 2005).

Isto não quer dizer, e a fala dos entrevistados jamais sinaliza neste sentido, que

aquele sujeito que luta para construir sua cooperativa tem uma finalidade

revolucionária. Paul Singer é bastante categórico neste sentido: “Mas não sejamos

ingênuos. O que o desempregado quer é trabalho. Ele não quer fazer manifestações ou

lutar pelo socialismo” (SINGER, 1999b, p. 43). Porém, sendo a produção do

desemprego inerente ao modo de produção capitalista, as propostas de economia

solidária voltam-se para uma proposta “não-capitalista” para o problema do

desemprego. Explicamo-nos melhor.

Após minuciosa análise da precarização das relações de trabalho e do

desemprego, Singer (1999a) passa a discutir as possíveis soluções. Inicia pela própria

critica ao conceito de emprego e desemprego, pois o primeiro significa que um

empregador compra a força de trabalho de um empregado e paga por ela um salário.

No entanto, esta não é a única forma de se ganhar a vida, pois o que a pessoa precisa

na verdade é de uma “ocupação”:

Ocupação compreende toda atividade que proporciona sustento a quem exerce. Emprego assalariado é um tipo de ocupação - nos países capitalistas o mais freqüente, mas não o único. Temos aqui outra generalização provavelmente enganadora. Como a falta de ocupação é chamada de ‘desemprego’, pressupõe-se implicitamente

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que a única maneira de alguém ganhar a vida é vender sua capacidade de produção ao capital (SINGER, 1999a, p. 14 - grifos do autor).

Assim, as “soluções capitalistas” para o desemprego, de maneira geral, se

concentram nessa generalização descabia do emprego como sinônimo de ocupação,

pois se gestam na tentativa de solucionar o desemprego reproduzindo o modo de

produção vigente. A proposta de capacitação profissional como solução capitalista é

emblemática: parte do pressuposto que o desemprego é um problema individual

relacionado a qualificação profissional, como se houvesse emprego para todos os

“qualificados”. Esquece que a demanda por força de trabalho depende do crescimento

dos mercados e não da qualificação profissional. Assim, a qualificação serve somente

para o trabalhador individual se tornar mais competitivo, porém a classe trabalhadora

mais qualificada traria mais concorrência e queda nos salários. Se favorece o

trabalhador individual, a qualificação prejudica a classe trabalhadora e não pode ser

adotada como solução ao desemprego que atinge o coletivo dos trabalhadores.

Outra solução capitalista se concentra na transformação de desempregados em

microempresários, a partir do financiamento para empreendimento próprio. Singer é

bastante crítico em relação a essa saída, na medida em que em mercados já muito

competitivos os novos empreendedores teriam poucas chances de sucesso.

É nesse contexto que Singer sugere a economia solidária como “solução não-

capitalista” para o desemprego. Mas não é uma proposta qualquer. Isto porque se

alinha a uma forma de desenvolver o processo de trabalho que, embora se mova nas

contradições do capitalismo neoliberal, concretiza sérias rupturas em relação aos

antagonismos que sustentam o modo de produção atual. Trata-se da proposta de um

“outro modo de produção” que se alinha ao socialismo. Para Singer (2005), ser

socialista não pressupõe uma “quimérica revolução”, mas acreditar que a sociedade

capitalista é absolutamente injusta e desigual para a maioria das pessoas, pois

promove a injustiça e desigualdade da propriedade e meios de produção, devendo ser

superada fora dos marcos do capitalismo.

Não almejamos discorrer sobre a interface entre economia solidária e

socialismo. Cabe, porém, ressaltar idéia de Singer (2000) sobre a existência de duas

concepções de socialismo: a dos clássicos, como Marx e Engels, que remete a uma

produção planejada e centralizada pelo Estado, dando margem para a concentração do

poder e autoritarismo presente nos “socialismos realmente existentes” da antiga

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URSS e do Leste Europeu; e a concepção “autogestionada” que propõe “a ruptura

com a ditadura do capital nas empresas e sua substituição pela gestão coletiva dos

meios de produção exercida pelos produtores livremente associados” (SINGER, 2000,

p. 39/40).

O que nos interessa mais imediatamente, por estar bastante alinhado aos

depoimentos dos colaboradores desta pesquisa, é o fato de os empreendimentos

solidários oferecerem uma solução efetiva para os dois problemas levantados sobre os

empecilhos ao trabalho assalariado como alternativa para a saída das ruas: o

desemprego global, como referido anteriormente; e à exploração econômica e

cerceamento à liberdade individual.

Vimos que o capitalismo é um modo de produção da vida material regido pela

acumulação, pelo lucro, pela reprodução do capital em detrimento do

desenvolvimento humano. Seu processo de produção se baseia em um antagonismo:

de um lado aqueles proprietários dos meios de produção e de outro os proprietários da

força de trabalho que a vendem como mercadoria aos primeiros. É obvio que essa

equação mudou bastante, como salientamos acima, mas permanece uma extrema

relação autoritária entre os atores sociais envolvidos (SINGER, 1987): os patrões

mandam, controlam, e os empregados obedecem e são robotizados. Estes últimos

também recebem apenas o mínimo necessário para sua sobrevivência, se tiverem a

sorte de se manter empregados, ao passo que os proprietários ou acionistas dividem

elevados lucros. Isto confere um fator de exploração e desigualdade social.

Em um pólo diametralmente oposto: “A economia solidária é outro modo de

produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital

e o direito à liberdade individual” (SINGER, 2002, p. 10). Seu princípio básico é a

coletivização dos meios de produção a partir de produtores livremente associados e

com iguais parcelas de capital e igualdade de poder de decisão. Em detrimento da

gestão autoritária de mando/obediência que rege a divisão hierárquica e verticalizada

das empresas capitalistas, a “autogestão democrática”, nas propostas de economia

solidária, estabelece relações horizontais de respeito mútuo e participação de todos

nos processos decisórios ocorridos nas assembléias gerais. Há, portanto, em vez do

princípio da competição que gera a divisão entre “ganhadores e perdedores”, a

cooperação entre todos para a criação de uma sociedade mais igualitária e

democrática.

Nesse sentido, o trabalhador não segue irrestritamente as regras e horários

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estabelecidos incondicionalmente por um terceiro. Como no exemplo de Antônio, que

faz seu próprio horário na cooperativa de forma a realizar suas outras atividades. Esta

participação efetiva no processo produtivo e nas regras gerais do empreendimento, faz

com que aja desenvolvimento humano, pois: “Participar das discussões e decisões do

coletivo, ao qual se está associado, educa e conscientiza, tornando a pessoa mais

realizada, autoconfiante e segura” (SINGER, 2002, p. 21). A alienação do trabalho

também dá lugar a maiores possibilidades de emancipação, na medida em que o

trabalhador no empreendimento solidário “... é, por todos os pontos de vista, um

participante ativo, com poder e responsabilidade. Há uma emancipação, uma

desalienação” (SINGER, 2004b, p. 06).

No âmbito da situação de rua, diversas pesquisas (DOMINGUES JUNIOR,

1998; JUNCÁ, 2004; HAYASHIDA, 2003) confirmam a importância da economia

solidária na saída das ruas, nomeadamente àquelas propostas relacionadas ao trabalho

com a reciclagem de materiais.

Não devemos, porém, ser tão entusiastas ao ponto de enxergar a economia

solidária como alternativa perfeita para a saída das ruas. Muitas críticas devem ser

feitas, a começar pela proliferação do que Singer (2004a) chama de “coopergatos”,

empreendimentos que reproduzem toda a lógica do capitalismo adotando o termo

cooperativa somente como forma de se esquivar de impostos e tercerizar

trabalhadores. A proposta de autogestão e a relação dos cooperados com agentes

externos também são muito complicadas, no sentido de reproduzir relações de

dominação e mando ou de submeter a cooperativa a interesses externos, político

partidários ou eleitoreiros (ALBUQUERQUE; MASCAREÑO, 1999;

ALBUQUERQUE; CIRINO, 2001; ALBUQUERQUE; NOVOA, 1993).

O próprio processo de constituição de uma cooperativa é bastante complexo,

haja vista a experiência de José e Antônio. O individualismo discutido como

característica da sociedade atual dificulta a organização coletiva, posto que há uma

tendência de cada um procurar “seu próprio caminho” e interesses, como pondera

José. O longo prazo de construção da cooperativa também esbarra no imediatismo ou

presenteísmo típicos do cotidiano contemporâneo: satisfação imediata dos desejos e

abdicação de projetos para a transformação do futuro.

Por fim, no caso específico da situação de rua, José tece a crítica na ênfase das

entidades nas cooperativas de materiais recicláveis. Reconhece a ligação histórica da

população com esta atividade, mas salienta a existência de trabalhadores com

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experiência em muitos outros ofícios que não têm oportunidades a partir da

associação generalizada da pessoa em situação de rua com a reciclagem. Assim,

defende a ampliação da atividade econômica para outros ramos de atuação,

considerando alguns dos problemas de saúde que afetam os catadores - como

descritos no item 2.3.4.

Ademais, o último conjunto de idéias acerca da criação de novas formas de

trabalho provém do raciocínio de Juan. A julgar pelas suas argumentações, Juan

parece se aproximar de uma perspectiva que tem sido chamada de “desenvolvimento

sustentável” a nível local. Foca suas idéias no ambiente rural, com diversas propostas

de respeito ao meio ambiente e utilização dos recursos locais para o desenvolvimento

de atividades econômicas. Mostra uma reportagem sobre técnicas de drenagem do

solo, outra sobre a utilização de recursos naturais, como o barro, para a construção de

moradias, outra sobre a utilização de insumos e biofertilizantes nas plantações. Todas

ligadas à construção de uma comunidade agrícola sustentável, que respeite a cultura e

o meio ambiente local, além de contar com forte apoio de técnicos especializados.

Os teóricos do que se convencionou chamar de desenvolvimento sustentável

partem de severa crítica ao progresso econômico moderno. Normalmente, a

degradação ambiental e a injustiça social são postas como principais preocupações do

desenvolvimento moderno, posto que esse se pautou apenas na busca desenfreada de

lucro sem qualquer respeito às formas de vida.

Não é à toa, que Capra (2002), um dos principais representantes desse

conjunto de idéias, tece severa crítica ao paradigma mecanicista que rege a ciência

moderna. Nessa aresta, autores como Bursztyn (2001) enfocam a contribuição das

ciências na construção de uma sociedade sustentável.

De maneira sumária, pode-se dizer que a sustentabilidade se pauta numa nova

equação entre economia, sociedade e meio ambiente, de forma a promover o

desenvolvimento de atividades econômicas que levem em consideração os “custos

ambientais e sociais”: “Por sustentabilidade entendemos a necessidade de manter a

integridade ambiental, atingir a eficiência econômica e alcançar a equidade,

abrangendo atuais e futuras gerações e reconhecendo os aspectos culturais e

econômicos” (MIRANDA NETO, 1996, p. 47).

Além da preocupação ambiental, denota-se uma atenção especial para as

formas de organização social, com enfoque no respeito aos direitos humanos e em

uma “sustentabilidade democrática”.

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Se focada no ambiente rural e na atividade agrícola, parece haver um enfoque

na utilização dos recursos locais para promover o abastecimento alimentar a longo

prazo, ao invés da busca do lucro imediato. Também são ressaltadas as experiência

em nível local ou regional, embora contemplem sua integração com dimensões

macroestruturais (MIRANDA NETO, 1996).

Nesse sentido, o texto de Guivant (2001) é emblemático ao apontar os efeitos

perniciosos da “modernização agrícola” no Brasil, como o intenso êxodo rural que

cria problemas urbanos e a desmedida degradação ambiental. Lança mão de diversas

características no intuito de defender a “sustentabilidade agrícola”, de maneira a

suprir as necessidades atuais sem comprometer as possibilidades das gerações futuras.

Ademais, basta lembrar que muitas características da proposta de

desenvolvimento sustentável no ambiente rural se assemelham muito a alguns

assentamentos do MST.

5.4 - Saída das ruas e família: da criação de novas maneiras de se viver em família

Na opinião dos colaboradores da pesquisa, a questão da família possui

diversos desdobramentos importantes. Primeiramente, o papel da família na saída das

ruas é observado a partir de dois aspectos: retorno à família de origem ou procriação,

constituída antes da vivência da situação de rua; e a constituição de uma família como

elemento importante da saída das ruas. Em um segundo momento, talvez mais

importante, se discute as transformações na instituição da família após a vivência da

situação de rua, bem como a ênfase dada por todos os entrevistados na importância

dos laços de fraternidade.

Em seu entendimento, Antônio concebe que a família não pode ajudar as

pessoas na saída das ruas. Lembra de sua relação conflituosa com seu pai que

“culpava-o” por tudo: “Ele nunca se preocupou de nós ir pra escola, nunca se

preocupou em dar um exemplo pra nós.... No meu caso eu fui pra rua por causa da

minha família, que era o meu pai. Isso que me forçou a ir pra rua”.

Assim, em casos de os conflitos familiares ocuparem um espaço significativo

na ida para as ruas, o retorno ao ambiente familiar é tido como inconcebível. Da

mesma forma pensa Juan, porém a impossibilidade de retorno para ele está atrelada à

questão financeira. “Eu penso que ajudaria muito uma integração familiar, mas a

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integração familiar é quebrada praticamente por uma situação econômica”. Citando

seu caso específico, fala que seus “vínculos se romperam” com seus filhos pela

dificuldade de lhes mandar dinheiro. Declara que não tem condições econômicas para

trazê-los para cá ou voltar para lá: “A pergunta é: quem arcaria com os gastos

familiares dessas pessoas? E por quanto tempo?”. Dessa maneira, a solução seria

fornecer os meios de “educação para os filhos e trabalho para os pais, ou ao mesmo

tempo educação e trabalho para os pais”. Finaliza dizendo que esse retorno a família

é muito bonito do ponto de vista “sentimental”, mas se deve preocupar com a questão

financeira.

José faz uma análise mais pormenorizada da questão. Inicia relatando que foi

despejado e perdeu o contato com os filhos após ser acometido por um sofrimento

mental. Nesse momento, os três filhos foram morar com a mãe e ele veio para a

cidade de São Paulo. É interessante notar em sua fala que a ida para a ruas traz

modificações intensas no ambiente familiar. Em seu caso específico, conta que seu

filho mais velho “assumiu seu lugar”.

Descreve que, ao vivenciar a situação de rua, ficou com “vergonha” e foi

deliberadamente se afastando de contatos com sua família de procriação e de origem.

Após quatro meses de seu afastamento, devido a uma ligação no aniversário

da filha, seu pai e irmãos souberam que ele estava em São Paulo e fizeram longa

busca por cinco meses, colando cartazes e procurando nos albergues e hospitais.

Assim que o localizaram, seus irmãos e pai fizeram diversas propostas de retorno:

Meu pai queria me levar para o Paraná, para viver com ele...meu irmão que mora aqui queria me levar para um quartinho que tinha na casa dele. Cada um deles tinha uma idéia pra cuidar de mim. Eu percebi que na verdade eles me tratavam como seu eu fosse um doente e iam fazer comigo o que a moradia [provisória] estava fazendo: me tratando como uma pessoa dependente dos outros.

Em outros termos, José acredita que o retorno à família de origem, seja ao pai

seja aos irmãos, constituiria uma relação perniciosa de dominação na qual seria

sempre “tratado como coitado” ou ser um “empecilho”.

José insiste que dessa recusa ao retorno ao ambiente familiar dependia sua

liberdade e sua posição enquanto sujeito que recusa ser tratado como “dependente” e

“coitado”. Isto não quer dizer que por orgulho ou qualquer outra coisa recuse o

auxílio dos familiares. Conta uma ocasião em que um de seus irmãos visitou a

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cooperativa e, no dia seguinte, doou um computador para ajudar com a empresa.

Sobre isso, sentiu-se muito grato, pois, segundo pensa, os familiares viram que ele

“está andando com as próprias pernas” e não deram uma ajuda do tipo “estou dando

uma esmola” ou um “dever moral” de ajudar o irmão: “mas de alguma forma eles

viram que a gente estava encarando sozinho, mas sem ter nada na mão”.

Ou seja, enquanto ajudarem José em seu processo de autonomia, a ajuda é bem

vinda, ao contrário daquele auxílio que acreditava levá-lo à dependência.

Sobre o retorno à família de procriação, José destaca que seus filhos moram

com sua ex-esposa, da qual já está separado há cinco anos, fato que dificulta uma

aproximação. Aponta que visita quinzenalmente seus filhos e, como os criou desde a

separação conjugal, é sempre recebido com muito carinho e procura ajudar os filhos

com diálogo. Porém, consente que seus filhos não confiam mais nele em relação à

“estabilidade financeira e de saúde”, em virtude do fato ocorrido: “Para eles

confiarem em mim como mantenedor vai demorar muito”.

A partir das pessoas que conheceu e das vivências que teve em situação de

rua, José relata que viu muitos casais se conhecerem na moradia provisória e

constituírem família. De acordo com ele, com duas pessoas juntas há mais “chances”

de saída. José também nos conta alguns casos de esposas de presidiários que saíam

das ruas quando seus companheiros foram libertados e alguns episódios de

“educadores” ou funcionários que “tiraram” mulheres da rua para morar juntos. José

enxerga com bons olhos essas possibilidades de constituição de uma família como

forma de saída das ruas.

Por fim, José contribui com outra reflexão importante. Descreve que a maioria

das pessoas que conheceu em situação de rua teve problemas com a família desde a

infância, incluindo conflitos e até agressões físicas. Fala de crianças criadas em

orfanatos, filhos nascidos de uma relação da mãe com outra pessoa e mal queridos

pelo padrasto, etc. Muitos tiveram problemas com a família desde a infância, ou

“nunca tiveram uma família estabilizada, nunca souberam o que é uma casa legal ou

um carinho...”. Assim, a questão da família muitas vezes suplanta a questão do

trabalho nos motivos de ida para a rua, pois: “Muitos traziam dentro de si o hábito de

ter uma casa e uma estrutura familiar. Alguns também não tinham o hábito de ter

ficado em um trabalho formal por muito tempo”.

É interessante observar como as colocações de José encontram respaldo

empírico na vivência relatada por Anderson. Criado em um orfanato, Anderson faz o

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seguinte comentário: “Pra mim é muito difícil, porque eu nunca tive uma família. Eu

acho que a família não é o papel de opressão, do tipo ‘pára de beber’. A família é o

papel de apoio, de tá alí junto”.

Ou seja, de fato em casos de pessoas que nunca tiveram uma família o retorno

à família é impossível. Entretanto, o caso de Anderson é um exemplo da saída das

ruas favorecida pela constituição de uma família de procriação, pois resolveu sair das

ruas após amasiar-se com sua companheira, que vivia em um albergue,

principalmente após estarem grávidos.

Outra questão importante aludida por Anderson, também tangeciada por José

quando aponta a condição dependência que estaria se retornasse à família, é

consideração da família como ambiente de “opressão”. É óbvio que tal constatação

fica mais evidenciada em casos de agressão doméstica, como o de Antônio. Mas

estamos tentados a dizer que o compromisso familiar, tal como a família foi

constituída historicamente, possui essa carga de mecanismo de controle do cotidiano.

Novamente é Anderson que lança mão dessa reflexão. Para ele, a vida na rua,

insistimos, para aquele que viveu na rua “de verdade”, significa estar “livre” das

obrigações com outras pessoas, dentre elas os membros da família. Não ter

preocupações com o sustento da família, pagamento de aluguel, pois se conquista a

cada dia os meios de vida. Significa se locomover a qualquer momento para qualquer

lugar, sem as preocupações com as outras pessoas que dele dependem. Tudo isso faz

com que a família seja associada, como faz Anderson, a uma certa “falta de

liberdade”, “opressão” ou mecanismo de “pressão”.

Temos também as transformações na relação familiar após a passagem pela

situação de rua.

José se sente bastante contente com suas relações familiares. Possui contato

com seus irmãos e pai, de maneira a ser algumas vezes ajudado, mas sempre

respeitado em sua independência. Relaciona-se bem com os filhos, a partir da

colocação em uma posição de não se apresentar como mantenedor nem tampouco

como autoridade inquestionável. Em outras palavras, foge daquele papel masculino de

provedor e de autoridade.

Afirma que possui uma “namorada” e tentou morar com ela recentemente,

ficando apenas por dois meses. Relata que sua “namorada” tem suas “regras, sua

forma de pensar” e que “não conseguiu” conviver: “Hoje a gente namora, eu vou lá

no final de semana, mas eu percebo que vai ser muito difícil eu construir uma

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família: uma nova mulher, uma nova casa”. Assim, sua família são seus três filhos e

seus irmãos, mas com os filhos tem uma “nova relação, mais de conversar e ajudar”.

Pretende ajudar a “cuidar” de seus filhos e sentia que sua namorada criava alguns

empecilhos para vê-los, o que lhe incomodou muito.

É também José que afirma: “Eu não me enquadraria mais numa família”.

Quer cuidar de seus filhos, continuar com sua namorada, mas preservar sua

independência.

Anderson, ansioso pelo fato de em breve ser pai, relata como pretende educar

sua filha: sem “mimo”, porque ela tem que “viver a realidade da vida”. Espera não

“trancar a Ana [nome fictício da filha] dentro de casa”, para que ela possa conhecer a

realidade da vida. Vai deixar sua filha experimentar drogas, pois se não possui vícios

não foi porque os outros o preveniram, mas porque usou cigarro, maconha, cocaína, e

assim soube que não queria. Salienta que quando ela quiser ela vai ter sua

“autonomia”, sua “liberdade”, mesmo que tenha quinze anos. Se quiser ser

“sapatão”, namorar com morador de rua, ela terá liberdade, pois os filhos não são dos

pais, “...são do mundo. Nós somos do mundo. Não nascemos para ficar trancado

dentro de casa. Nós nascemos pra curtir, pra desfrutar o mundo”.

Por fim, excetuando a fala de Juan, para a nossa surpresa os demais

colaboradores enfocam a importância da “amizade” em suas vidas em situação de rua

e fora delas. Anderson parece associar a transformação do ambiente doméstico após a

rua com as amizades que pode trazer pra casa: “Eu vivi na rua, então eu tenho muitos

amigos. Amigos mesmo, amigos de verdade (...) Pra eu não ir pra rua beber, eu

trago meus amigos pra fazer um churrasquinho dentro de casa”. Parece que trazer os

amigos da rua para o churrasco o aproxima da liberdade que tinha na rua. Não

enxerga a casa como dele, como ambiente privado isolado:

O espaço é nosso. Então a gente faz um ambiente nosso familiar. Então se tem que fazer isso, porque se se torna opressor, se torna também libertador pra você. Então eu me sinto tão feliz quando vem companheiros meus aqui que falam: “vamos tomar uma cervejinha, assar uma carne”.

Anderson relata que ia muito para a rua durante a madrugada, mesmo tendo

uma moradia, pra ver os amigos, ficar na rua com eles. Porém, hoje diz que não faz

mais essas visitas em virtude de sua companheira que exige mais cuidados e “fecha a

cara”, porque não entende essa sua atitude (segundo ele, porque “ela não veio da

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rua”). Desabafa sobre o quanto fica dividido com as críticas da companheira que

precisa de cuidado e a vontade de ficar na rua com os companheiros: “como vou pra

rua se minha mulher tá grávida precisando de mim (...) Ela é minha preocupação,

ela é minha companheira. Eu tenho que estar preocupado agora, porque eu tenho

uma casa, tenho uma família”. Enfim, conclui que: “Amigo é família também, é

carinho”.

José comenta do “grupo de amigos” que formou na moradia provisória. Cita o

exemplo de um amigo que conviveu no grupo e foi morar em outro país.

Considerando que sempre se comunica com José e seus amigos, afirma: “a gente é a

família dele”. De maneira similar, fala de duas pessoas da moradia que morreram e só

os companheiros de quarto foram ao enterro. Em suma, associa as amizades aos atos

“cuidar”, “conversar”, “ouvir”, “proteger”. Aponta a necessidades de todos em falar

de suas vidas, propondo que era bastante importante no grupo: “necessidade de falar,

de ter uma expressão”. Refere sua relação com o Antônio como um laço mais forte do

que com seus irmãos, pois há mais diálogo, mais “confiança”. Fala dessa relação

como ajuda mútua, citando a preocupação de Antônio quanto à sua saúde.

Antônio, por sua vez, afirma:

A amizade me ajudou bastante a levantar minha auto-estima. Quando às vezes eu estava desanimado, já desesperançado, sempre aparecia um colega ou amigo que me ajudava a renovar as forças a me dar mais esperança. A amizade é muito importante.

Em sua problematização da larga utilização do conceito de exclusão social

para refletir sobre a população em situação de rua, Justo lança mão do seguinte

argumento: se tomarmos as transformações na sociedade contemporânea, os

andarilhos, contingente por ele estudado, “... são os mais incluídos, ou seja, são

aqueles que mais gravitam em torno do núcleo dinâmico da sociedade” (2005 p. 111).

Nas questões relacionadas à família contemporânea, a pertinência desse

raciocínio é surpreendente. As pessoas em situação de rua constituem vínculos

familiares dos mais próximos das configurações familiares que rompem ou

liquidificam a família burguesa moderna. Estamos tentados a afirmar que constituem

uma vanguarda na recusa à família nuclear tradicional e na criação de novas formas

de se viver em família.

Para analisar os depoimentos e defender essa proposição recorreremos a

muitos elementos já delineados no item 3.2.

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O regresso à família de origem ou de procriação como possibilidade de saída

das ruas foi absolutamente refutado pelos colaboradores. Antônio afirma que o

retorno é inconcebível em virtude da autoridade paternal regida pela imposição e

truculência. Ou seja, um retorno seria similar a uma revivência dos conflitos.

Para Juan esse retorno não ocorre por uma questão financeira, pelo fato da

pessoa em situação de rua do sexo masculino não ter condições de retomar seu papel

de provedor financeiro da família. Este fato tem relação com o afastamento dos

contatos familiares por causa da “vergonha”, como no caso de José. Pode-se supor

que se trata de situações comuns vivenciadas pelas pessoas em situação de rua. Nasser

(1996), por exemplo, salienta o quanto o processo de “sair para o mundo” está

atrelado a um projeto de melhoramento das condições de vida. No caso da pessoa não

alcançar este objetivo, ao ir viver em situação de rua, a vergonha de contar sua sorte

aos familiares é tão comum quanto o receio de voltar de mãos abanando, sem

conquistar o que pretendia ao sair de casa.

O que está em jogo, como uma perspectiva para analisar esses depoimentos,

são os papéis familiares. Juan aponta para a permanência ainda da figura do homem

ligada ao sustento material da família. Concebe que o regresso à família é impedido

por questões financeiras. Ou seja, aquele que não consegue se manter no papel de

provedor não tem lugar na família, permanece na rua.

Porém, os demais depoimentos vão na direção da desconstrução desses papéis

familiares típicos da família moderna burguesa. Como no caso de Antônio, quando

refuta a postura do pai enquanto autoridade que limita a vida dos filhos. Assim,

aquela relação de poder e verticalidade de acordo com o gênero e a idade, encarnado

na figura do pai como chefe da família, não é mais suportada.

A relação atual de José com seus filhos caminha na mesma direção. Enfatiza

que estabelece uma relação pautada no afeto e diálogo, postura típica da

transformação das relações de poder no âmbito da família contemporânea. Não exerce

o patriarcal papel de provedor e senhor das regras impositivas, estando no fluxo da

posição de igualdade e respeito nas relações familiares. No entanto, tal postura

contrasta com sua afirmação de que o filho mais velho agora é o provedor, porque

“assumiu seu lugar”. Isto é, admite que seu lugar era de provedor, modificado

atualmente a partir da situação de rua.

A mesma relação de horizontalidade é prevista por Anderson na educação de

sua filha. Enfatiza que não irá impor pontos de vista ou fazê-la obedecer

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incondicionalmente suas regras, mas respeitar sua autonomia e liberdade de escolhas.

Parece-nos haver um movimento de transformar as relações antes autoritárias

em relações mais igualitárias, a autoridade paterna mais agressiva e incontestável em

uma relação baseada na autoridade materna: mais diálogo e afetividade.

As relações maritais, antes pautadas na formalização do casamento civil e

religioso, assim como na coabitação, sofrem também transformações. O exemplo de

José é bastante emblemático. Tentou morar junto com sua companheira atual, mas

não suportou as regras inerentes ao convívio familiar. O casal optou pela relação

destituída da coabitação, morando cada um em uma casa. Isto não impede o

comprometimento de José com sua companheira e seus filhos.

Uma outra forma de refletir sobre essa postura de José, seria a partir da

verificação de que na atualidade ocorre uma afirmação do individualismo:

dificuldades de estabelecer projetos em comum, acompanhadas da primazia dos

interesses individuais. De qualquer maneira, endossa a tese de que há um processo de

transição do “casamento” para a “parceria” baseada em direitos iguais.

Em relação às configurações familiares, nota-se que há uma diversidade:

enquanto Juan e Antônio moram sozinhos, José possui sua companheira mas não

coabita e Anderson coabita com sua esposa.

É importante ressaltar, em contraste com a recusa ao retorno da família que se

tinha antes da rua, a possibilidade da constituição de uma família durante a situação

de rua como possibilidade de saída. Assim ocorreu com Anderson, que conheceu sua

atual esposa quando ela morava em um albergue e saíram ambos da situação de rua

após assumirem um compromisso marital. José também descreve vários casais de

pessoas que se conheceram na rua e, juntos, conseguiram sair dessa situação; ou

mesmo casos de funcionários das entidades que desposam usuárias e as levam para

morar com eles. Em pesquisa anterior (MATTOS, 2003), conhecemos uma pessoa

que saiu das ruas em virtude de se amasiar com uma mulher que possuía uma casa.

Seja como for, as falas de Anderson e José promovem severas críticas à

família nuclear tradicional. José afirma que, após a situação de rua, não se

“enquadraria” mais em uma família. Isto porque tentou morar junto com sua parceira,

mas não suportou seguir as regras que o convívio exige. Associa o ato de ir morar

com o pai ou com o irmão como uma “dependência”, algo que não lhe permitiria

viver de forma autônoma ou “andar com as próprias pernas”. Anderson associa a

família à “opressão”, pois controla o cotidiano, impõe compromissos e preocupações.

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A questão que nos chamou mais atenção se refere à importância dos vínculos

de amizade. Antônio fala dos amigos como uma família. José compreende as

amizades como um ambiente de escuta, compartilhamento, conversa, cuidado,

proteção e confiança. Em certo momento, fala de um amigo que mora em Portugal e

sempre manda notícias, pois considera-se a família dele. Anderson retrata o prazer

que possui em receber amigos e fazer festas com eles. Relata que os deixa abrir a

geladeira e que gostaria de manter a porta aberta ou ceder a chave para eles entrarem

quando quiserem.

Assim, na tendência das famílias contemporâneas, há uma ênfase nas relações

fraternas: de cumplicidade, horizontalidade e igualdade. É como se a família

recusasse aquele fechamento em si mesma, típico da família nuclear.

Anderson afirma que, se pudesse, deixaria a porta de sua casa aberta ou daria

uma chave para cada um de seus amigos. Aponta também que todos eles ficam à

vontade para abrir a porta da geladeira de sua casa. A chave pode desempenhar esse

significado de abertura da família à sociabilidade, assim como embaralhar a família e

a casa como demarcação precisa entre os espaços público e privado. A geladeira pode

bem simbolizar uma liberdade em relação ao enclausuramento da intimidade da

família moderna. Enfim, não é por acaso que Anderson destaca que não quer que sua

família fique “isolada” dos amigos.

As relações fraternas parecem desempenhar muito bem algumas funções antes

privativas da família. Trata-se do fato de constituir um espaço de pertencimento, de

trocas afetivas, e associado à proteção. Se a principal função da família está

relacionada à subjetivação e humanização a partir do outro, pensamos que os laços

fraternos entre amigos podem significar uma maior socialização dessa função.

5.5 - Saída das ruas e os (des)serviços prestados pelas políticas públicas

A discussão sobre as políticas públicas se restringiu quase que exclusivamente

à questão dos albergues. A cidadania, a luta pelos direitos sociais resguardados

constitucionalmente também foram pouco comentadas se comparadas com a

dependência institucional enfatizada na fala dos entrevistados. Tal configuração do

conteúdo sobre as políticas públicas não é à toa. Quando o governo municipal

promove um superávit de vagas em albergues, enfatiza políticas sociais

compensatórias e assistencialistas, também transparece uma visão de políticas

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públicas como sinônimo de assistencialismo, desrespeito aos direitos do cidadão e

dependência institucional. É o contexto atual das políticas públicas que configura uma

discussão mais focada nesses assuntos que obscurece o debate dos aspectos mais

gerais da cidadania.

Isto não quer dizer, no entanto, que o albergue constitui uma intervenção

inócua do ponto de vista das pessoas em situação de rua. Antônio, quando ficou

bastante doente, deixou de morar na rua e se dirigiu ao albergue. Pondera o quanto o

albergue foi importante para que se tratasse, assim como para prosseguir seus estudos:

“Aí quando eu fiquei doente eu fiquei sabendo do albergue... eu peguei e fui pra o

albergue. Lá me ajudou bastante... lá me ajudou a chegar num grau escolar que eu

nunca pensei que eu ia chegar, por ajuda lá do albergue... do pessoal lá”.

O grande problema do sistema albergal tal como avaliado pelos entrevistados

parece ser sua utilização como um fim em si mesmo, talvez pela própria falta de

outras políticas sociais que ofereçam efetivamente possibilidades de saída das ruas.

Nesse sentido, Anderson comenta que o albergue deveria estar inserido em uma rede

de outras intervenções, como prega a Lei 12.316:

O albergue é importante. É o primeiro passo para sair da rua, mas o cara não pode ficar só em albergue. A moradia provisória é importante. É o segundo passo pro cara sair. O centro comunitário tem que ser o espaço da cidadania, não o espaço de clientelismo: que eu vou lá, tomo um cafezinho... não! É um espaço pra conscientizar sobre os direitos dele.

Com essa idéia, parece reivindicar uma integração maior entre os serviços

oferecidos, integração esta pouco enfatizada pela própria gestão municipal que

aumenta muito mais as vagas de albergue em detrimento das casas de convivência ou

moradias provisórias.

Neste contexto, o albergue fica exposto ao isolamento, descolado do

pretendido “convívio”, principal atributo das casas de convivência, e da “autonomia”,

pretensamente favorecida pelos cursos de capacitação profissional e núcleos de

economia solidária. O que queremos ressaltar é que descolado dessa progressiva e

integrada rede de serviços, o albergue é visto apenas como local de “acolhimento”,

facilmente travestido em local de aprisionamento.

A principal imagem que é destacada do albergue, como já nos referimos

anteriormente, é sua intensa repressão e a construção da acomodação. Estas duas

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facetas estão muito interligadas, pois, na medida em que se reprime qualquer

manifestação espontânea e autônoma dos sujeitos envolvidos, fomenta-se a

passividade típica da acomodação que impossibilita a saída das ruas.

Antônio discute várias vezes a “acomodação”, referindo-se a pessoas que só

ficavam atrás de “bocas de rango”, ou preocupadas com jogar futebol, dominó e

assistir televisão. José retrata: “As pessoas que eu conheço e vejo que ainda estão

nessa mesma situação, indo de um albergue pro outro, elas estão acostumadas a

viver dentro desse sistema, vivem dentro dele e no meu ponto de vista elas não

acreditam que elas são capazes de sair”.

Assim, a domesticação promovida pelo albergue se faz no sentido de criar a

dependência e os efeitos dessas relações de autoritarismo são marcantes. Um trecho

do depoimento de José nos chamou muita atenção. Ele fala de traumas que guarda da

época em que vivia no albergue:

Em mim o que eu ainda carrego é assim: aquela situação que a gente tinha nos albergues... porque o monitor fazia você ter aquelas regras. Então, assim, eu passo perto de um porteiro, por exemplo, não tem nada haver o cara, não tem autoridade sobre mim, mas parece que... sabe... alguma coisa vai acontecer e aquele cara vai me dar uma bronca. Então o que eu carrego ainda dentro de mim é isso: de alguma forma achar que pessoas que têm um mínimo poder, ou uma situação parecida com aquela que eu tive, que ela pode ter alguma influência. De alguma forma, esse caminho que eu passei criou dentro de mim... algum tipo de submissão a estruturas.

Acredita que seu trabalho como vendedor o ajuda a se livrar dessa submissão,

pois se orgulha de visitar vários clientes e se relacionar com todas as pessoas de igual

para igual:

Eu entro em qualquer restaurante chique, converso com as pessoas de qualquer nível e apresento meu material. Não tem nenhum problema. Mas quando são situações, quando eu passo perto de um ponto em que tem polícia, por exemplo, parece que aquilo faz eu lembrar daquela situação de novo: na marra eu tinha seguir aquelas normas de albergue.

Ou seja, prolifera-se no albergue uma relação de submissão a autoridades,

típicas de outras autoridades como o pai, o professor e o patrão, que acabam por

reproduzir uma ordem social permeada pelo autoritarismo.

Anderson, em seu depoimento, é enfático ao afirmar que essa relação de poder

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é exercida a partir da construção de um saber sobre as pessoas em situação de rua:

Nós não podemos ficar: “população de rua é coitadinha, população de rua é criança”. Não é. População de rua tem conscientização do que ela quer. Se ela é mendiga, se ela é moradora em situação de rua, nós não podemos ficar tachando ela.... Hoje a população de rua sabe muito mais de seus direitos e deveres do que as organizações. Ela sabe. Ela só não luta por isso porque ela não tem espaço pra lutar. Eu digo muito isso: quando você começa a tomar posição de que lutar é a melhor forma de cidadania, as pessoas te barram, começam a falar que você tá ficando louco, é maluco, não presta, tá doido. As pessoas das organizações: “esse cara tá birutando, esse cara tá viajando na maionese, não...coitadinho... ainda não sabe...criar autonomia como?” Primeiramente, as organizações, o que elas ganham do poder público elas não prestam contas pra nós que somos seus clientes.

Ora, tendo a representação das pessoas em situação de rua como

“coitadinhas”, “crianças”, pessoas “acomodadas”, faz com que a iniciativa mais

adequada seja mesmo o assistencialismo calcado na piedade e na desqualificação de

seus saberes e ações espontâneos que devem ser controlados, como se fazia com uma

criança.

É interessante notar a afinidade dessa idéia de Anderson com depoimentos de

Juan e José. Este último, evidencia que, quando propôs uma organização coletiva para

representar a população que reside em moradias provisórias, sofreu forte repressão da

entidade que administrava o local, apoiada pela então Secretaria de Assistência

Social: em vez de observarem o trabalho da instituição, agiram a favor dela contra a

organização dos usuários: “Ela [SAS] foi lá pra dar porrada na gente”. José comenta

que as assembléias foram proibidas, pessoas foram individualmente chamadas na

coordenação para serem pressionadas e ameaçadas para não participar, aludindo que

“fulano é louco e não sabe o que faz”, na tentativa de desqualificar as lideranças.

Veja que parece costumeiro taxar de “louco” ou “biruta” aquele que adota

uma postura participativa, que reivindica seus direitos, que procura promover ações

coletivas de saída das ruas.

Outras formas de repressão também são utilizadas. Segundo José, havia a

ameaça de que a participação nas reuniões promovidas pelo grupo de “loucos”

poderia desencadear a expulsão da moradia provisória: “Várias pessoas desistiram

com medo de perder o espaço...se você sair daí pra onde você vai?”. Outra forma de

manter a ordem era o oferecimento de benefícios àqueles que obedecessem as normas

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e não se vinculassem aos insurrectos:

Algumas pessoas que cederam foram beneficiadas. Por exemplo, se aparecesse um emprego na frente de trabalho, só aquelas que eram submissas à instituição ficavam sabendo e iam trabalhar... Os benefícios que surgiam eram distribuídos para aquelas pessoas que eram submissas. E a punição, por não ficar sabendo, era para aquelas pessoas que tentavam sair do protocolo.

É uma sinuca de bico, como se diz no popular: se segue as regras e comporta-

se obedientemente, é taxado de “acomodado”. Porém, se procura transformar sua

realidade com mais autonomia, é “louco”.

Dessa maneira, os entrevistados procuram, além da intensa crítica aos

albergues, propor sugestões de melhoramento nas políticas públicas.

Antônio e Juan parecem ter opiniões bastante próximas. O primeiro afirma:

A pessoa fica amparada ali [no albergue] temporariamente, não é eterno. Mas a pessoa vai se acomodando, vai esquecendo de lutar, de correr atrás (...) Aí uma hora isso acaba e o que acontece: a pessoa fica mais desesperada de quando ela entrou (...)Isso ajuda a pessoa a ficar mais acomodada. Pra pessoa sair da rua é só emprego mesmo, não tem outra forma.

Juan também enfoca principalmente a questão do trabalho. Inicia por destacar

a responsabilidade do Estado: “O Estado tem um papel fundamental na saída das

ruas”. No entanto, pondera que o problema não será solucionado com oportunidades

de “qualificação profissional”, porque esquece-se de que ao formar um eletricista

muitas outras pessoas de rua que são eletricistas também não têm emprego. Ou seja,

como inferimos acima, a formação profissional não se resolve se não há trabalho.

Formam-se profissionais que terão os mesmos “problemas laborais” daqueles

qualificados que estão nas ruas - o desemprego:

Isto não é uma saída e aí está um ponto que se deve criar... o governo tem que ser mais criativo para criar novas condições laborais para este grande contingente de pessoas que se encontram hoje sem trabalho, não somente falando de pessoas que estão na rua, mas com todas as pessoas que já estão em uma condição de extrema pobreza.

José também é bastante acético em relação às oficinas que trabalham sempre a

idéia de “reciclagem” e “artesanato”, oportunidades que ele acredita que “não são

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trabalhos que realmente vão dar para as pessoas independência”. Fala das

dificuldades da venda e opina: “mas eles não conseguem, nem a médio prazo, fazer

com que esses trabalhos gerem renda de verdade”. Assim, defende melhor aplicação

do dinheiro público na geração de empregos duradouros. Fala das entidades, da

SMADS e de algumas instituições internacionais de financiamento, como

“comprometidos” com a “repetição desse processo”.

As verbas destinadas aos albergues e moradias provisórias também são

severamente criticadas, pois poderiam ser melhor investidas. Para Juan, a “fortuna”

auferida pelo Estado a partir dos impostos, seria melhor “administrada” se em vez de

proporcionar “moradia provisória” fizesse programas de “moradia definitiva”. Nessa

mesma linha, Anderson discute os gastos excessivos com os albergues que poderiam

estar sendo utilizados em “mutirões pra construção de casas. Você poderia tá

fazendo conscientização de reciclagem de pessoas pra sociedade, pra ela voltar à

sociedade”. Anderson manifesta a necessidade de reivindicar outras ações diferentes

dos albergues:

Você investe muito em sistemas de clientelismo que a pessoa volta pra esse sistema e outras pessoas vão cair mais ainda porque não é a solução. Não estou dizendo que o albergue tem que acabar, mas o albergue tem que ter uma saída... pra moradia provisória, pra uma bolsa aluguel...

Para isso, Anderson salienta a importância da transparência financeira para

que a população de rua saiba do dinheiro investido e possa interferir em seu

investimento. Critica a falta de transparência no balanço financeiro das entidades: “A

gente chama as organizações de filantrópicas e pilantrópicas, porque até hoje

nenhuma organização concorda em prestar conta de seus serviços (...) Então elas

são as opressoras desse sistema”.

Um foco característico de Anderson é a ênfase na participação mais efetiva

das pessoas em situação de rua em diversas instâncias. Primeiramente, discute a

possibilidade das próprias pessoas que viveram em situação de rua serem contratadas

para trabalhar nas organizações:

Hoje não era pra ter as organizações, era pra ter os moradores próprios que saíram das ruas cuidando dos albergues e concientizando os albergados a saírem dos albergues e da rua. Hoje era pra ter os centros comunitários, hoje é pra ter um espaço de cidadão pra ele discutir o que o levou pra rua. Mas nunca vai

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acontecer isso, porque as organizações não querem. Elas contratam os melhores especialistas, os melhores profissionais pra não adiantar em nada.

Segundo ele, isto não significa tomar o lugar de outros profissionais

especialistas, mas ajudá-los no atendimento, na medida em que considera que só

quem esteve em situação de rua a conhece de fato. Dessa maneira, o papel das pessoas

em situação de rua não deve se reduzir somente à crítica: “Então eu acho que nosso

papel hoje não é só denunciar, mas poder ajudar, poder discutir as ações que nos

levam pra rua e que nos faz sair da rua”.

Enfim, novamente fica explícita em crítica bastante severa ao sistema albergal

e às políticas públicas de maneira geral. Permanecem as idéias já destacadas

anteriormente, sobre a dependência institucional, a acomodação e a presença de

entidades e órgãos públicos comprometidos com a reprodução da população em

situação de rua em condição de submissão. Nesta parte da pesquisa foram adicionados

os debates acerca dos traumas gerados pelas condições de autoritarismo nos

albergues, assim como a construção de um saber sobre a população como

“coitadinha” e “criança”. Dessa maneira, toda e qualquer tentativa de procurar uma

ruptura com esses saberes e práticas de assujeitamento sofrem severas repressões:

desqualificação das pessoas como “loucas”; impedimento da realização de reuniões

para discussão de assuntos coletivos que fogem ao controle da entidade; ameaça de

sanções punitivas àqueles que participarem de reuniões não programadas pela

entidade; benefícios fornecidos àqueles que não aderem a movimentos de crítica e se

mantêm submissos aos ditames da entidade. Nesses termos, a saída das ruas se inicia

pela ruptura com a rede de assistência que atua no sentido inverso da independência e

autonomia pretendidas.

As sugestões para o melhoramento das políticas públicas incluem melhor

utilização dos recursos públicos para a efetivação de medidas mais duradouras, como

alternativas de “emprego” e “moradias definitivas”. Também foi enfatizada a

participação ativa da população em situação de rua em diversas direções: na exigência

de seus direitos sociais, na discussão sobre as políticas públicas e na contratação de

pessoas que estiveram em situação de rua para compor equipes com outros

profissionais. A transparência nas contas das entidades também foi destacada como

abertura para que a população possa participar do debate sobre a melhor aplicação dos

recursos públicos.

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5.6 - Saída das ruas e o papel dos movimentos sociais

Os movimentos sociais são discutidos de maneira a enfatizar alguns de seus

elementos. Primeiramente, a própria participação política nos movimento é

problematizada. Discute-se, ainda, o termo movimentos sociais como um saco de

gato: abarca uma diversidade grande de movimentos que não pode ser negligenciada.

A própria função dos movimentos sociais é discutida, bem como são apontados seus

diversos problemas.

De maneira geral, os entrevistados atribuem bastante importância ao papel dos

movimentos sociais na consecução de melhorias para as condições de vida da

população em situação de rua que podem auxiliar na saída das ruas.

José, por exemplo, lembra da conquista histórica dos movimentos sociais

representada na lei 12.316. Cita, ainda, em ambiente extra-parlamentar, as

oportunidades concretas de saída das ruas proporcionadas pelos movimentos de

moradia e o MST, embora reconheça que algumas vezes elas não dão certo para

algumas pessoas - mas existem de fato.

Também recorrendo a fatos históricos, Anderson evidencia a importância

política da população em situação de rua. Lembra de quando era militante do MST e

se começou a chamar a população da periferia para o movimento. Relata que essa

forma de organização nasceu com a população de rua, e que ele participou ativamente

no sucesso do ingresso desse movimento na questão urbana, embora posteriormente

tenha sido posto de lado: “Começou pela população de rua, não começou nem pelos

favelados, começou pela gente. ‘Ah! Vamos pegar o povo na rua’, mas a hora que

viu que dava certo jogou o povo da rua de lado e começou a pegar a parte

periférica”.

Anderson se refere ainda ao Movimento Nacional dos Catadores que surgiu da

população de rua:

E hoje os catadores são uma potência a nível nacional. Eles ajudam a população de rua? É preocupante! Aí vem o discurso que catador é mesma coisa que população de rua. Não é! Hoje tem as categorias diferenciadas: o catador deles vem da periferia porque tem a falta de emprego. Eles estão fazendo o que a população de rua fazia, isso trabalho da população da rua de catar o lixo das casas e dos lugares pra vender e comprar sua cachacinha, seu pão,

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suas coisas.

Se reconhecem a importância da participação em movimentos sociais, também

destacam algumas dificuldades relacionadas à organização política coletiva nos

tempos atuais. Quando indagado sobre a importância dos movimentos sociais,

Antônio afirma: “Pra você estar num lugar desse você precisa estar já trabalhando”.

Com isso aponta que a primeira necessidade do indivíduo é a conquista de trabalho,

sem a qual fica impossibilitado de atentar para outras formas de participação social.

A analogia com a obra de Bauman é imediata. Discutindo as características da

luta política nos dias atuais, Bauman (2000) faz o seguinte diagnóstico: a crise

política no mundo atual está relacionada à desregulamentação e a privatização. A

primeira faz com que o indivíduo fique exposto a uma “insegurança existencial”

aguda, sem as instituições de proteção coletiva. A privatização significa que as

dificuldades e responsabilidades devem ser sempre individuais, sendo difícil qualquer

tradução de aflições privadas em discussões públicas - antes discutidas em espaços

como a “àgora”, espaço público/privado ao mesmo tempo, na medida em que se tem a

liberdade individual na discussão de interesses coletivos. Dessa maneira, a

desregulamentação privatizada acorrenta o indivíduo à insegurança existencial e ao

individualismo, fazendo com que lute solitário pelos seus meios de vida. Sendo o

trabalho, ou a precarização do trabalho, a principal fonte de incerteza, Bauman sugere

a necessidade de separar a sobrevivência de sua dependência em relação ao trabalho,

a partir da concessão de uma renda mínima. Esta, por sua vez, traria a segurança

necessária para as pessoas poderem pensar em outras coisas que não a garantia

imediata da sobrevivência a partir do trabalho. É assim que a renda mínima seria uma

solução para o impasse da participação política.

Antônio parece dizer igualmente isso: primeiro a pessoa em situação de rua

precisa estar trabalhando para ter garantidos seus meios de vida, para ter depois a

segurança de participar de movimentos sociais.

Ora, surge logo a seguinte indagação: se todos os entrevistados concordam que

o albergue é assistencialista porque oferece todos os meios fundamentais de vida

descolados do trabalho, uma segurança existencial similar àquela pretendida por

Bauman com a renda mínima, porque não participam mais ativamente da vida

política? É certo que a contrapartida do albergue é justamente o adestramento que

cerceia a atuação mais ostensiva e de maneira mais autônoma, porém pensamos que a

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questão permanece de pé como discussão importante para observar a verossimilhança

desse pensamento de Bauman.

Outra forma de se pensar essa dificuldade de participação política vem de

Maffesoli (2005). Esse autor aponta que a “política” é um empreendimento moderno

que já se esgotou: não mais se tem aquele engajamento coletivo que acredita em uma

transformação da realidade no futuro. Isso explicaria algumas manifestações de

desestabilização do político: como a abstenção eleitoral, ou recusa em eleger um

“proprietário da sociedade”; “dissimulação” na obediência fingida de algumas regras

sociais; a “sabotagem ao trabalho” como forma de burlar as regras e horários, assim

como o imperativo de sempre estar em ação; e a expressão lúdica do carnaval,

nomeadamente a utilização de fantasias caricaturadas como forma de gozar de

algumas figuras de autoridade.

Teria a participação política sido substituída por essas formas de recusa,

dissimulação, necessidade de viver no ócio? Aqui também as bases empíricas são

fartas. Basta lembra da malandragem de muitas pessoas em situação de rua ao contar

uma história diferente para cada um dos assistentes sociais tendo como objetivo

conseguir um benefício previamente pensado (PEREIRA, 1998). Basta recordar do

fato de que alguns albergados sabem que devem entrar no jogo institucional e serem

coitadinhos e cordatos (VIEIRA; BEZERRA; ROSA, 1992) nos albergues,

dissimulando a obediência como estratégia de usufruir dos recursos do sistema

albergal. Basta, enfim, recordar da malandragem do pardal em lidar com as entidades

assistenciais e ludibriar os cidadãos domiciliados a partir da prática do achaque

(JUSTO, 2005).

Ou seja, se a realidade concreta fundamenta pensamentos tão díspares e

contraditórios, deixemos as coisas assim. Ficam apenas as questões e, com elas,

esperamos, as discussões.

Mesmo aquelas pessoas em situação de rua que se dispõem a uma mobilização

coletiva com reivindicações políticas também enfrentam diversas dificuldades típicas

da contemporaneidade. Tal dedução provém da fala de José, quando discute o

processo de criação de uma cooperativa. Ressalta que algumas reuniões abrigaram

cerca de oitenta pessoas, mas no decorrer do processo cada um foi seguindo um

caminho distinto. Assim, pode-se falar das dificuldades de se formar um

empreendimento que depende do coletivo, quando cada um está somente preocupado

com si, e, além do mais, um projeto a longo prazo, dado o imediatismo característico

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da contemporaneidade e aguçado na situação de rua.

Em suma, embora reconheçam a importância e as conquistas históricas dos

movimentos sociais engendrados por pessoas em situação de rua, os colaboradores da

pesquisa destacam alguns desafios típicos da situação de rua como pólo que escancara

algumas facetas do contexto histórico contemporâneo: necessidade de lidar

individualmente com a sobrevivência imediata.

Além desses desafios, o próprio conceito de movimentos sociais é

problematizado, tendo em vista a dificuldade de se homogeneizar experiência

coletivas tão distintas. Nesse sentido, Anderson afirma: “Há movimentos e

movimentos, também. Há movimentos de conscientização de políticas e há

movimentos de clientelismo, de querer que aquele cara não lute pelos seus direitos”.

Em concordância com esse ponto de vista, José aponta que há movimentos sociais

ligados à população em situação de rua que prestam um desserviço à cidadania e à

luta pelos direitos. José comenta a manipulação que um Fórum que representa as

entidades faz com a população de rua e enxerga com bons olhos a formação de um

Fórum somente composto por pessoas em situação de rua como maneira de

“participar coletivamente” sem “manipulação” de terceiros. Anderson corrobora a

opinião de José sobre o Fórum das entidades, exclamando em tom de ironia que neste

Fórum não há nenhum morador de rua. No entanto, como um dos líderes do Fórum da

população de rua, parece contrariar a opinião de José, ao dizer que não há democracia

neste Fórum: “Eu falo isso porque eu fui muito no Fórum da população de rua onde

as organizações impunham pra nós quais eram as ações que a gente tinha que fazer”.

Isso nos remete a algumas idéias de Gohn (1999, 2000, 2001), analisadas

anteriormente. Essa autora discute como a “cultura política” assistencialista e

clientelista está arraigada a alguns movimentos sociais, assim como sua importância

como um dos elementos de crise dos movimentos sociais durante a década de

noventa. Dessa maneira, os movimentos sociais podem estar mais ligados a estas

formas de “clientelismo” e “manipulação”. Ou seja, ao invés de lutar pelos direitos

sociais com a participação ativa da população em situação de rua, se fazem valer de

uma pretensa representatividade para impor suas opiniões, vertical e autoritariamente

estabelecidas. Por outro lado, os argumentos dos participantes também se dirigem em

torno da questão da “indústria da miséria”: alguns movimentos não tem interesse em

transformar a realidade de determinadas populações, pois dependem de suas misérias

para continuar em sua atividade.

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O clientelismo e a manipulação não são os únicos desafios que os movimentos

sociais devem enfrentar. Nossos colaboradores enumeram alguns outros.

Anderson enfatiza o papel do Fórum de Debates nas discussões políticas:

Mas a gente tem o Fórum que a gente discute e vai debater. Porque ele não é só formado por estudantes: ele é formado por trabalhadores, estudantes das universidades, e por que é o cliente, quem é o usuário, que é a população de rua. Então ali é democracia. Nos outros Fóruns você não tem democracia.

Explica que não fala bem do Fórum porque está na minha presença, pois sabe

que sou um dos fundadores, e diz que realmente acredita que é um espaço onde todos

podem participar com liberdade (“ninguém manda alguém calar a boca”) e ninguém

é excluído (“nunca vi alguém não poder entrar”, mesmo maltrapilho e bêbado).

José parece não apreciar tanto o espaço do Fórum de Debates como faz

Anderson. Isto porque lança mão de um argumento de crítica a alguns movimentos

sociais: sua utilização por aproveitadores como forma de alcançar benefícios pessoais

em nome de uma pretensa preocupação coletiva. Trata-se de uma reflexão bastante

difundida sobre o fato de que pessoas que possuíam um “idealismo inicial” acabam

montando seus movimentos ou entidades e, com o tempo, passam a agir somente para

sobreviver desse trabalho e não revertem nenhum benefício à população de rua. José

relata, sumariamente, que pessoas utilizam os movimentos sociais para seu sustento

ou para conseguir oportunidades de empregos nos equipamentos públicos e esse

procedimento faz com que fiquem com o “rabo preso” e relutem em proceder de

maneira mais crítica e combativa frente as entidades, por exemplo. Segundo ele, no

Fórum de Debates há pessoas que utilizam o espaço com este fim.

Outra problemática nos movimentos sociais é explorada por Anderson e se

refere à fragmentação ou setorialidade dos movimentos sociais por “categorias”. Cita,

por exemplo, a divisão de movimentos mais amplos em pequenos filões na questão da

moradia: movimento dos sem-terra, movimento dos sem-teto, movimento dos

encortiçados, movimento da população em situação de rua, etc.: “Eu acho que tem

que começar a se unir”.

Lançando mão de outro exemplo, Anderson considera que os movimentos

unidos teriam muito mais força na crítica à “higienização” que acredita ser a tônica da

atual gestão municipal no centro da cidade de São Paulo. Devido à fragmentação,

perdem a força de manifestação, pois se os movimentos se unissem e fossem mais

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combatidos eles “fariam a cidade pegar fogo, mas eles não tão nem aí com nada”.

No caso específico dos movimentos sociais ligados à situação de rua,

Anderson defende a unificação dos vários Fóruns desde haja uma postura democrática

e igualitária:

Deveria ter um Fórum só, onde todo mundo discutia igual os problemas. O que eu gosto do Fórum de Debates é que ali fala doutor e fala não-doutor. Fala quem é formado e fala quem não é formado. Você tem a sua opinião, você pode dar e ela é ouvida, ela é acatada. Um dá dez centavos e o outro dá um real, ele tem mais condições, mas o café ali é igual pra todo mundo. Isso que é a democracia.

Ainda Anderson faz uma análise da subserviência de alguns movimentos

sociais em torno do governo federal. Aponta que, como o Partido dos Trabalhadores

sempre esteve à frente de várias reivindicações populares, os movimentos podem se

acomodar para não criar um mal-estar com pessoas do governo que são bastante

próximas dos movimentos populares: “Eu acho que os movimentos perderam um

pouco porque o Lula ganhou a presidência, conseguiram muitas coisas e enfiaram o

rabo entre as pernas. Porque se quisessem os movimentos estavam na rua lutando

por habitação...”.

Verifica-se, também, o quanto algumas conquistas batalhadas pelos

movimentos sociais podem significar certa estagnação na pauta de reivindicações.

José coloca em discussão a própria pauta, na medida em que acredita que atende de

maneira bastante parcial às aspirações das bases demandatárias. Em outras palavras,

faz uma crítica ao enfoque de alguns movimentos na questão da reciclagem como

único ofício que as pessoas em situação de rua sabem fazer. Discorre sobre os

problemas físicos e péssimas condições de trabalho a que os catadores estão

submetidos. Assim, pondera que o ato de “puxar carrinho” é, de fato, uma

“oportunidade real”, mas deve-se atentar para outras atividades que as pessoas

também podem desenvolver. A catação, para ele, é um projeto imediatista: “Não

existe um projeto de emancipação: o cara vai trabalhar fazendo aquilo que ele pode

fazer, mas nunca pensar como esse cara vai estar daqui há dez anos”. Em dez anos,

as pessoas poderão desenvolver sérios problemas de saúde: nas “pernas”, “joelhos” e

“coluna”: “Eu gostaria que houvesse uma discussão de não considerar a única saída

ou eterna saída pra quem está na rua trabalhar na reciclagem, da forma que eu vejo

aqui em São Paulo”.

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Juan evidencia o problema da própria funcionalidade dos movimentos sociais,

quando debate a discrepância entre debate e ação:

Os movimentos sociais neste momento, e eu participo de alguns deles, são lamentavelmente só teóricos. A que me refiro a serem teóricos? Que simplesmente há uma discussão, um debate, um caminho aberto sobre a posição e discussão sobre como vivem as pessoas dentro dos albergues. Sobre a saída real das ruas... vai além dessa discussões e debates que existem. Por que eles não têm essa estrutura econômica, essa estrutura criativa, para também poder criar novos apoios.

Ou seja, os movimentos sociais não possuem os meios concretos de

transformação, pois dependem para isso das “ONGs”, dos governos: “É importante

sim [o movimento social], mas seria muito mais importante se todas essas

agrupações tiverem um reconhecimento e um maior contato com as esferas políticas

e esferas que realmente manejam grande quantidade de dinheiro”.

Observa-se, com essa crítica, os efeitos práticos da vicissitude do Terceiro

Setor durante a década de noventa, com a substituição dos movimentos sociais mais

participativos por ONGs mais institucionalizadas que detém as ligações e os recursos

financeiros das instâncias governamentais. No caso específico das pessoas em

situação de rua, ocorre o seguinte paradoxo: não possuem abertura de participação

democrática nas instâncias detentoras do poder de efetivar as políticas públicas

(ONGs e governo municipal), ao passo que nos locais onde possuem essa abertura

essas políticas não são efetivadas.

De qualquer maneira, destacam um papel dos movimentos sociais como

intermediários entre a população de rua e o governo municipal ou ONGs, como fica

evidente em algumas falas de Juan e Antônio A proposta de Anderson parece ser um

bom caminho para a solução desses impasses de participação e função dos

movimentos sociais: “Então eu acho que as políticas públicas se tem que sentar na

mesa e discutir. Tem que sentar no Fórum e dizer a gente concorda ou não

concorda...”. Ou seja, aproximar os espaços de participação da população, como o

Fórum de Debates, das entidades e instâncias governamentais que deliberam sobre as

políticas públicas, criando um clima mais democrático de debate coletivo sobre as

ações que interferem na vida da população de rua.

A participação em debates também exige uma leitura crítica da realidade e

interlocução com pessoas de diversas formações universitárias. Demanda a leitura de

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leis e livros, além da exposição em público. Aqui, pensamos que a questão da

educação pode ser destacada, pois retomamos a distinção que Juan faz entre

“educação” formal e o processo de “conscientização”. Quando discorria sobre sua

participação em movimentos sociais, Anderson afirma: “Toda formação política que

eu tenho hoje foi através da rua. A formação não só política, mas cidadã,

conscientizadora dos meus direitos”. Nesse sentido, tão importante quanto a

alfabetização empreendida pela educação formal, são essas práticas menos

sistemáticas que se denominam como formas de “educação não-formal” (GOHN,

2001). É nesse sentido que Gohn (1999) destaca a “dimensão educativa dos

movimentos sociais”, como uma prática pedagógica informal, construída

coletivamente, que auxilia na geração de uma consciência que reconhece a

historicidade dos processos sociais, além de lidar com a cidadania, pois envolve a

organização de um grupo em torno do reconhecimento dos direitos e deveres dos

cidadãos

Em resumo, a fala dos entrevistados reconhece a importância dos movimentos

sociais nas propostas de melhoria das condições de vida da população em situação de

rua ou da efetivação de debates e ações sobre a saída das ruas. A própria abertura para

as discussões democráticas, respeitando as diferenças e autonomia de cada

participante, pode estar atuando de maneira a contribuir para um processo de

emancipação que estaria subjacente à saída das ruas. A própria questão da educação

pode ser uma importante contribuição da participação nos movimentos sociais para as

pessoas em situação de rua. No entanto, a necessidade de sobrevivência imediata,

individualmente empreendida, sintetiza alguns dos empecilhos à participação política

na contemporaneidade. Por outro lado, os movimentos sociais são bastante

questionados em relação a alguns desafios que convém superar, tais como a cultura

clientelista e assistencialista que manipula as vontades e se beneficia da manutenção

da condição miserável das populações que assiste; os problemas relacionados à

democracia interna dos movimentos; a presença de aproveitadores que participam dos

movimentos somente para benefício próprio; a segmentação dos movimentos em

diversas categorias isoladas, fato que favorece para uma perda de força reivindicatória

dos movimentos urbanos de uma maneira geral; a discrepância que existe entre os

debates travados em locais de participação popular e as instâncias que efetivamente

decidem e implementam as políticas públicas; a acomodação de alguns movimentos

quando conquistam algumas reivindicações e colocam o “rabo entre as pernas”; e, por

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fim, algumas infidelidades e parcialidades quando à pauta de reivindicação que não

contempla a totalidade das aspirações da base demandatária.

5.7 - Saída das ruas: síntese entre a segurança da vida domesticada e a liberdade da vida nômade? - sobre o processo de criação de novas formas de vida na contemporaneidade

Retomemos algumas discussões. Fizemos alusão à compreensão da

modernidade a partir de algumas contradições. Duas delas, absolutamente

interligadas, nos chamaram mais atenção. Tratam-se dos pares dialéticos

domesticação/nomadismo e segurança/liberdade. Grosso modo, a vida domesticada é

baseada em diversas formas de uniformização e normalização das condutas, fato que a

faz, de um lado, oferecer segurança existencial e, de outro, cercear a liberdade

individual. No pólo antagonicamente oposto, a vida nômade se caracteriza por um

movimento instituinte de criação do novo, de novas formas de vida, com maior

liberdade individual, mas com intensa insegurança existencial e a angústia daí

proveniente.

No enleio dessas contradições, vimos que a domesticação da vida era uma

característica da modernidade sólida, tanto quanto a imposição do nomadismo se faz

mais visível nos tempos atuais de liquidificação da modernidade. Assim, suscitamos a

questão: haveria a possibilidade de uma síntese entre a segurança da vida domesticada

e a liberdade da vida nômade? Em outras palavras, desfigurando os parâmetros e

diretrizes da modernidade, derretendo os sólidos da vida moderna, haveria como criar

outros sólidos não tão opressores?

Trata-se de uma questão central e complexa. Central porque coloca o tema da

saída das ruas como grande analisador da superação das contradições do mundo atual.

Complexa porque exige uma compreensão da lógica dialética para além de

leviandades superficiais.

Há diversas armadilhas em se pensar a “superação” dialética. A primeira delas

é descrita por Marx quando de sua crítica ao pensamento de Proudhon, eminente

economista da época, em sua obra “Miséria da Filosofia: resposta à Filosofia da

Miséria de Proudhon”. Para Marx, a compreensão mecanicista e idealista da dialética

conduz ao seguinte raciocínio: há uma afirmação (ou tese), uma negação (ou antítese)

e uma negação da negação (síntese). A síntese seria uma ilusória melhoria perfeita da

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situação analisada, tendo em vista que qualquer categoria é vista como tendo um lado

bom e um lado ruim, sendo a tarefa a ser resolvida conservar o lado bom eliminando o

lado mau. Assim, a superação da contradição é uma “dogmática do bom e do mau”

(1847/2001, p. 104).

Há severas críticas ao pensamento materialista dialético de Marx quanto à

superação dialética como estado em que se conquista uma harmonia perfeita, distante

de qualquer contradição - concepção bem alinhada ao projeto moderno de uma ordem

perfeita, sem ambigüidades e ambivalências. Dessa forma, as críticas de Berman

(1986) se fazem no sentido de que a classe operária promoveria uma superação

dialética para uma sociedade sem classes, ou seja, livre de antagonismos.

Maffesoli (2004) enfatiza a característica contemporânea de viver

intensamente o presente, sem acreditar em uma projeção de um futuro melhor. Assim,

não se deve esperar soluções possíveis no final, como em um “drama”, mais viver

uma “tragédia” sem a espera de soluções, uma “busca de sentido no próprio ato”. Em

termos filosóficos, não se trata de aguardar uma síntese oriunda de um processo

dialético, mas de manter as contradições: manter-se no “contraditorial”, que significa

“um contraditório vivido como tal” (MAFFESOLI, 2004, p. 28).

Se enveredássemos por uma perspectiva dialética de síntese como a

“dogmática do bom e do mau”, ou como uma solução definitiva que inaugura uma

sociedade perfeita, bem poderíamos falar na saída das ruas como uma síntese da

seguinte maneira: mantém-se a liberdade e a segurança, partes “boas” da vida

domesticada e do nomadismo, e exclui-se suas partes “más”, a privação de liberdade e

a insegurança. A síntese seria uma domesticação nômade, ou um nomadismo

domesticado, calcado no equilíbrio harmonioso da liberdade e da segurança perfeitas.

Como num “drama”, poderíamos terminar a dissertação dizendo que nossos

colaboradores viveram felizes para sempre!

Não é essa a realidade que se apresenta e, por conseguinte, não é esse tipo de

síntese que acreditamos haver. Há, indubitavelmente, uma síntese, pois a saída das

ruas significou um processo no qual os elementos da vida domesticada e da vida

nômade foram transformados significativamente. Porém, surgem novas contradições,

ou as antigas são revisitadas, fato que demonstra uma realidade dinâmica e

contraditória. Isso porque, como retrata Maffesoli (2001), a dialética entre

domesticação e nomadismo é ela própria contraditorial, constituinte da vida.

Se tomarmos um dos pressupostos da análise institucional, utilizado como

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base para o pensamento de Maffesoli (2004), teríamos o conceito de “instituição”

como algo cristalizado, estático, a-histórico, não refletido nem tampouco engendrado

por indivíduos concretos, mas sim tido como uma força considerada alheia à ação

concreta de pessoas historicamente contextualizadas. A crítica a uma instituição assim

cristalizada move as pessoas para um movimento “instituinte”, de criação deliberada

do novo, engendrada conscientimente por atores históricos. Seria um movimento de

transformação alicerçado na “auto-análise” e “autogestão”, que, similar ao processo

de conscientização proposto nesse capítulo, inclui a construção coletiva de um saber

sobre a realidade concomitante a ação de modificação dessa mesma realidade

(BAREMBLITT, 1994)

Se discutirmos sobre o ponto de vista antropológico, superficialmente

trabalhado nessa dissertação, poderíamos dizer que a rualização possibilita uma nova

visão da vida domesticada, assim como a saída das ruas representa uma outra visão

sobre a situação de rua. Em outras palavras, a situação de rua transforma o

sedentarismo, antes familiar, em algo estranho, ao mesmo tempo que transforma o

nomadismo, antes estranho, em familiar. A saída das ruas seria um processo

engendrado pelo estranhamento e reflexão sobre a vida doméstica e a vida nômade,

gerando a possibilidade de construção de algo novo.

O ponto central de nossa proposição, no entanto, se baliza na afirmação de que

a saída das ruas significa um processo de emancipação, independência ou autonomia -

que, por ser processo, nunca é concluído, ou seja, é inacabado por princípio. Se a

instituição da vida domesticada era imposta, natural, inquestionável, a rualização,

também imposta, pode ser vista como movimento instituinte que impele a pessoa em

situação de rua a construir uma forma de vida distinta daquela anterior - agora não

mais vista como a única forma legítima e incondicional de se viver. Ambos

momentos, de domesticação, rualização e vivência da situação de rua, são, portanto,

expressões de processos sociais que fogem ao controle dos indivíduos: são impostos.

Discutimos anteriormente que, se a deserção da vida domesticada e conseqüente

vivência da situação de rua são ações representadas como liberdade, trata-se de uma

liberdade imposta, uma liberdade com reduzido campo de possibilidades para outras

escolhas, enfim, uma liberdade imposta é uma liberdade não-livre.

Aí está, em nossa avaliação, a grande distinção destes momentos em relação

ao processo de saída das ruas. Este último expressa a vontade de pessoas em busca de

autonomia e emancipação. Ou seja, não é um processo imposto, mas livremente

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escolhido. Para tanto, vimos que o primeiro passo fundamental, referido por

Anderson, é respeitar justamente essa escolha livre dos sujeitos em situação de rua,

não impor a sedentarização como única forma de vida e a saída das ruas como

imperativo para todos os cidadãos em situação de rua. Senão, assim tida como

coerção, a saída das ruas imposta reproduz a mesma faceta do processo de

domesticação e nomadismo: o sujeito novamente fica à deriva como marionete

manipulada por forças alheias.

Se os serviços destinados à população em situação de rua, principalmente o

albergue, procuram reproduzir a domesticação no âmbito da rua, ao mesmo tempo

que impõe o nomadismo, também eles são vistos como forças opressoras. Vimos,

dessa forma, que o enquadramento nos discursos e técnicas de poder levadas a cabo

pelos albergues produz sujeitos assujeitados que, em troca de alguns meios de vida,

tornam-se, ou fingem se tornar, obedientes, submissos e passivos. São “cemitérios de

vivos”, como diz Juan, pois em troca dos meios de vida perdem a própria vida como

autodeterminação por sujeitos livres. Dessa maneira, subverter, transgredir esse

sistema coercitivo e assistencialista é ser desqualificado como “louco”, “biruta”. A

crítica à estrutura assistencialista é loucura. Deve-se, à exemplo de Erasmo de

Roterdam, fazer um elogio à essa loucura, pois representa, em última análise, a

insubordinação aos padrões de vida tradicionais: o louco é sinônimo de

descontrolado, desequilibrado, irracional, regido pelos instintos e emoções,

incoerente. Ora, é o sujeito que foge ao controle, que foge à vida ordenada e

equilibrada, racionalmente planejada e monitorada. Logo, como destacado pelos

entrevistados, a ruptura com a estrutura assistencial é um ato de libertação, para a

maioria deles muito mais intensa do que a própria rualização.

A saída das ruas é um movimento instituinte, de criação do novo. É nômade,

na medida em que implica essa criação, assim como é sedentário, na medida em que

se faz a partir de algumas cristalizações. Não há movimento instituinte que não se

institucionalize, assim como não há instituição que não tenha sido originada por um

movimento instituinte. A diferença, repetimos, é que a saída das ruas conduz a um

modo de vida muito distinto da vida domesticada antes da rualização, pois expressa a

liberdade da pessoa em busca de alguma segurança que não a aprisione.

Maffesoli talvez seja o autor que melhor fundamente essa idéia, com seu

conceito de “enraizamento dinâmico” ou de “reintegração” como processo que sucede

o “exílio”. Após o movimento de errância ou nomadismo, a pessoa precisa possuir um

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“centro sólido, ainda que simbólico”: “Voltar sabendo que há sempre um outro lugar,

onde se pode exprimir uma parte de si mesmo” (MAFFESOLI, 2001, p. 150). Assim,

o exílio distante do lar promove um retorno em termos de reintegração, um retorno

que parece estar associado à apreciação do movimento de transformação e criação

ininterrupta da vida como algo que não traz mais uma intensa angústia e incerteza.

Ou seja, a própria falta de domesticação, a vivência do próprio nomadismo,

torna-se um espaço de liberdade vivido com certa familiaridade e segurança. É nesse

sentido que a dinâmica da errância pode levar a uma “estabilidade muito sólida”:

“Nesse sentido o êxodo se torna certeza. De um modo paradoxal, pode-se dizer que se

torna um hábitat” (MAFFESOLI, 2001, p. 154). Trata-se da “errância como estilo de

vida”: “Fazer do êxodo sua segurança, sua casa, sua estabilidade....” (MAFFESOLI,

2001, p. 155).:

O caminhar do nômade traria um “...perder-se a fim de se reencontrar”

(MAFFESOLI, 2001, p. 159). Uma das metáforas desse reencontro é o “deserto”.

Maffesoli fala de uma ética do deserto, pois ele simboliza um caminhar sem regras

estabelecidas, a expressão de um “território flutuante”: “Quer dizer, um território que

não predispõe a coisas estabelecidas com seu cortejo de certezas e de hábitos

esclerosantes, mas um território como ponto de partida” (MAFFESOLI, 2001, p.

181).

Retomando a “dialética sem conciliação entre o sedentarismo e a errância”,

Maffesoli fala de sua expressão no que denomina enraizamento dinâmico: a

necessidade de se ter um lugar tão forte quanto a vontade de ir além dele:

[...] é o caminhar que salva e não o enraizamento. Ou ainda, o enraizamento só vale se for dinâmico. Essa ausência ardente e cheia de intensidade - é isso mesmo que marca o espírito do tempo em que simultaneamente se sabe gozar os bens do mundo e se pode abandoná-los, sem dificuldade, imediatamente. É isso, em particular, que torna as novas gerações tão atraentes: cheias da preocupação hedonista do gozo do presente, e ao mesmo tempo capazes de generosidades, de formas de solidariedade espantosas, de inegáveis altruísmos. Em resumo, materialistas e espiritualistas, gozadoras da vida e pudicas, errantes e enraizadas (MAFFESOLI, 2001, p. 190).

Talvez essa reintegração em um enraizamento dinâmico seja uma importante

representação da síntese entre domesticação opressora e nomadismo forçado. Criam-

se raízes, mas não tão profundas que imobilizem a liberdade individual, no sentido

amplo do termo. O dinamismo permanece, mas não tão fugidio que não permita criar

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raízes. Como essa síntese poderia ser concretizada na vivência concreta após a saída

das ruas.

No âmbito do trabalho, vimos o quanto repudiam aquele trabalho assalariado

moderno, que implica em exploração econômica, competição e escravidão. Dessa

maneira, seja por meio da busca individual por trabalhos informais, de propostas de

economia solidária ou de desenvolvimento agrícola sustentável, há um

revolucionamento das formas tradicionais de trabalho. Acreditamos haver uma

síntese: não o trabalho assalariado, mas também não o desemprego ou a falta de

oportunidades de trabalho, mas formas de trabalho que preservem a liberdade e

ofereçam segurança quanto à sobrevivência cotidiana. Trabalhar sim, mas com tempo

para realizar outras atividades, poder viajar, festejar, descansar.

Há contradições nessa vida permeada por outras alternativas de trabalho.

Antônio relata que queria trabalhar somente na cooperativa, mas não consegue por

causa da necessidade da renda com seu trabalho assalariado como gari. Isso denota

que há uma instabilidade de recursos financeiros na cooperativa. A vida no trabalho a

partir de “bicos”, também possui suas contradições. Juan diz de sua situação atual

como uma autonomia ainda precária, pois “depende de bicos” e tem o “temor de ser

lançado na rua”. Diz que vive em uma situação “muito incerta”. Ou seja, não

devemos pensar que essas novas possibilidades de trabalho estão sedimentadas como

algo garantido, estável. Carregam em si preocupações e incertezas.

O ambiente doméstico também se transforma indelevelmente após a saída das

ruas. Antônio, José e Anderson apontam o quanto se sentem melhor em casa do que

antes da ida para rua. Afirmam que não se enquadram mais naquela família

tradicional que representa cumprimento rigoroso de horários, compromissos, regras.

Vivem em família de maneira bastante distinta, seja quando relatam que preferem ter

uma companheira sem coabitar no mesmo local, seja quando falam em educar os

filhos de maneira a respeitar suas liberdades, seja quando não se colocam mais nos

papéis de pais provedores e autoritários ou filhos submissos e dependentes. Deve-se

ter em vista o quanto as relações fraternas são valorizadas, posto que calcadas na

horizontalidade, na igualdade, na solidariedade. Também o próprio ambiente privado

como fechado em si, como local de isolamento da família em sua intimidade, rompe-

se com a abertura para o mundo por meio da intensa visita de amigos e realizações de

festas.

Não são, entretanto, formas de se viver em família que estão imunes a

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problemas. José e Juan falam com culpa do quanto poderiam estar ajudando seus

filhos, mesmo que à distância. Foram educados para prover financeiramente e sentem-

se angustiados em não poder cumprir esse papel. Anderson cita também o quanto se

sente às vezes oprimido pelos compromissos familiares e aprisionado em casa: queria

poder ficar mais tempo nas ruas, durante a madrugada, com seus amigos, nas praças,

nos mocós, nos viadutos.

Nas relações com o Estado e com os movimentos sociais, a tônica da

discussão parece ser as severas críticas dirigidas ao funcionamento dessas

instituições. Dentre elas podemos destacar o repúdio reincidente às relações

autoritárias ou de segregação, contrapostas pelo desafio de participação mais efetiva

dos cidadãos na elaboração e efetivação das ações dirigidas às pessoas em situação de

rua.

Todos esses processos, atrelados à discussão da saída das ruas, implicam na

adoção de uma postura mais participativa e autônoma das pessoas em torno da

autodeterminação de seus destinos. No entanto, como alerta Anderson: “Autonomia

não começa da noite pro dia”. Ou seja, é um longo processo que depende de

transformações na forma de vida contemporânea, como lembra Juan.

Assim, a saída das ruas, inserida como processo social dentro desse contexto

mais amplo, reflete o processo de emancipação de pessoas que escancaram as

contradições da vida contemporânea ou são as mais “incluídas” nos processos sociais

que a envolvem. Nesse sentido, a saída das ruas pode preludiar um processo de

síntese da vida domesticada e da imposição do nomadismo que pode auxiliar todas as

pessoas da sociedade contemporânea a lidar com uma vida tão repleta de insegurança,

incerteza e falta de garantias.

Considerações Iniciais e (In)conclusões

Concluir significa terminar, encerrar, acabar. Elaborar considerações finais

teria o mesmo sentido de finalizar o resultado de uma pesquisa. Não é esse o nosso

objetivo, mas também não deixa de sê-lo. Ora, é óbvio que almejamos sintetizar o

conhecimento produzido nessa dissertação e, de alguma maneira, propor nossas

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conclusões e considerações finais. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, tudo o que

almejamos é não concluir a pesquisa, nem tampouco finalizá-la, posto que

pretendemos colecionar algumas indagações e esperamos que elas sirvam de início

para um debate posterior que possa influenciar nas propostas de saída das ruas.

São, contraditoriamente, conclusões inconclusas ou considerações que

pretendem iniciar um diálogo no próprio movimento de finalização de outro. Isto

porque entendemos que o valor epistemológico de uma pesquisa científica está muito

mais vinculado às indagações e reflexões que são suscitadas, do que às conclusões

que o autor alcança - como que desfechos completos e assuntos encerrados. Não

temos a pretensão de encerrar o assunto, deveras árido, mais promover uma abertura

para sua discussão. Se, com isso, conseguimos aguçar a inquietação ou curiosidade do

leitor, ou ainda revigorar nele questões colocadas das quais discorda, nosso trabalho

terá sido recompensado.

Com o fim deste estudo não queremos nos esconder atrás de verdades

absolutas, mas, pelo contrário, compartilhar o conhecimento científico produzido e

abrir espaço para o diálogo com cidadãos, como nós, preocupados com a realidade

social de nosso país. Afinal, como progride o conhecimento científico senão pela

contradição? Como são elaboradas as teorias mais perspicazes senão pelo diálogo?

Esta mesma contradição, como vimos, esteve crivada em nosso método de

pesquisa. Procurando uma forma científica de se entender a materialização do

nomadismo na situação de rua, acabamos por encontrar uma maneira nômade de se

entender a ciência. Não mais uma ciência moderna, mas também anti-moderna, como

tentativa de se libertar das amarras domesticadoras que tentam imobilizar ou

padronizar a produção de saberes. A ciência imbutida no projeto moderno se

caracteriza pela busca de verdades absolutas, a partir da fragmentação do real em

diversos elementos estanques, da neutralidade científica que pretende excluir as

subjetividades envolvidas na pesquisa e sua faceta eminentemente política, da ruptura

entre aquele que produz o saber e as instituições que põem em prática o

conhecimento. Romper com essa ciência sólida e com seus procedimentos

padronizados é ser lançado para a criação do novo, com toda a angústia que daí

provém. É certo que com a liquidificação dessa ciência moderno-sólida, perdemos

muito da segurança de seguir incondicionalmente as convenções pré-determinadas e

consensualmente corretas. Porém, impelidos ao nomadismo ficamos livres dos muros

nos quais nos restringíamos: literalmente, fora do lugar, desenraizados, em situação

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de rua.

Nesse contexto, observamos o quanto muitos outros colegas cientistas também

atravessaram caminhos similares e nos auxiliaram na elaboração de novas formas de

se fazer ciência. Formas que oferecem certa segurança, mas bem distantes de modelos

uniformes e rigorosamente planejados. Uma forma de se fazer ciência que pretende

considerar as alteridades das subjetividades envolvidas; que lança o pesquisador a se

aventurar, como um errante, em várias áreas do conhecimento científico; que

reconhece ser a pesquisa uma construção histórica e política, além de romper com a

dicotomia entre teoria e prática; e, principalmente, que concebe a pesquisa como um

processo construído durante seu próprio percurso.

Vimos que a partir de nossas tentativas de realizar os procedimentos

metodológicos em nossa pesquisa de campo, acabamos por construir caminhos

alternativos, atalhos distantes daquele roteiro rígido inicial. Com isso, construímos a

pesquisa no próprio ato de pesquisar.

Podemos falar mesmo de um movimento teórico subjacente a toda a pesquisa.

Inicialmente, com o intuito de transformarmos a situação de rua de algo estranho em

familiar, procedemos de maneira a conceituá-la. Fixamos, por assim dizer, a realidade

em um conceito de situação de rua crivado na mobilidade oriunda da ausência de

residência fixa, situação relacionada à precarização do trabalho, das relações

familiares e da condição de cidadão de direitos. Compreendemos que falar em

pessoas em situação de rua significa uma conceituação complexa. Isso porque, o

termo pessoas remete ao pertencimento à humanidade, que no plural dá o sentido de

formas múltiplas de se construir a humanidade concretamente a partir das diferentes

histórias de vida. Histórias estas construídas e construtoras de uma realidade social,

pois o termo “pessoas”, em detrimento do termo “indivíduo”, remete ao cotidiano

contemporâneo: implica na vivência das multiplicidades de eus, crivada no

imediatismo, nas emoções e na diversidade das circunstâncias sociais às quais o

nomadismo nos impele. É nesse mesmo sentido que a expressão situação é bastante

apropriada: faz alusão a algo transitório, em ininterrupta transformação, assim como

ao se situar em um espaço particular, simbolizado pela rua. Esta, em contraposição à

domesticação da casa, abrange experiências de errância em locais abertos,

imprevisíveis e impessoais.

Dessa maneira, observamos que a heterogeneidade destas pessoas em situação

de rua pode ser entendida a partir de alguns grupos mais característicos: mendigos,

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moradores de rua, albergados, catadores de materiais recicláveis, trecheiros,

andarilhos e loucos de rua.

Se esse primeiro momento conceitual nos permite iniciar a compreensão da

situação de rua, trata-se de um movimento com suas limitações. A conceituação é

bastante estática, sólida e, de alguma maneira, domestica o real em muros muito bem

arranjados. Dessa maneira, observamos a necessidade de negar o movimento de

conceituação a partir da reflexão sobre os processos intrínsecos à situação de rua.

Enfatizar o processo significa liquidificar sua solidez, tornar nômade sua fixação

conceitual domesticada, fazer fluir o que antes estava nas amarras do conceito que,

como vimos, iguala o não-igual e imobiliza teoricamente a vida prática em constante

mobilidade.

De alguma maneira, a conceituação também distancia as pessoas em situação

de rua da própria vivência humana na sociedade contemporânea, posto que é marcada

pela busca das especificidades da situação de rua. No movimento inverso, a negação

da conceituação visa também não mais transformar o estranho da rua em familiar,

senão transformar estranha a nossa própria vida na líquido sociedade moderna que

parece tão familiar.

Nesse sentido, tomamos como pressuposto o fato de a situação de rua

representar uma agudização e escancaramento das contradições contemporâneas

presentes na vida de todos nós. Em última análise, a pessoa em situação de rua

representa um modo de subjetivação emblemático da modernidade líquida. Isso a

começar pelo próprio processo de rualização ou ida para as ruas. A construção social

da vida doméstica, típica da modernidade sólida, era calcada pela primazia da

estabilidade, solidez, fixação, uniformidade e segurança. As relações entre as pessoas

e destas com as instituições sociais (como a família, o trabalho e o Estado) estavam

permeadas pela confiança, durabilidade e rigidez das normas de conduta sobre as

quais podia-se sedimentar a vida pessoal.

Neste contexto, o trabalho assalariado moderno oferecia a possibilidade de

fincar raízes em um emprego duradouro, a partir do qual podia-se planejar e

concretizar uma carreira com segurança dentro de uma mesma empresa. As regras

para que isso ocorresse eram explícitas e seguras, bastando a elas se adaptar. A

regulação do trabalho a partir da formalidade, respeitando os direitos trabalhistas,

assim como a estabilidade dos rendimentos financeiros, completavam essa sensação

de proteção oriunda do trabalho. É nesse período que o trabalho é tido como grande

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instituição para se promover uma revolução social, uma transformação do presente

para um futuro melhor.

A instituição do trabalho assim configurada se liquidificou. A valorização da

fixação duradoura em uma carreira dentro de uma mesma organização caí por terra,

pois essa “acomodação” é mal vista em uma sociedade que valoriza a ininterrupta

mobilidade por várias empresas. Exige-se uma pessoa “dinâmica”, “pró-ativa” que

tenha “iniciativa” e “participação”, não mais aquele empregado que recebe e executa

passivamente as ordens. Essa “flexibilidade” também atinge os contratos de trabalho,

agora extremamente precários e informais. Essa instabilidade também se aplica aos

rendimentos, absolutamente incertos tanto quanto as oportunidades de trabalho.

Enfim, com a precarização do trabalho assalariado formal se esvai aquela confiança e

segurança oferecida pela instituição do trabalho moderno-sólido.

A instituição da família passa por processo similar. A família burguesa

moderna, composta por pais e filhos que coabitavam uma mesma residência fechada

em si como reduto da intimidade, com relações de autoridade estabelecidas de acordo

com o gênero e a idade, com o futuro prescrito com a formalização legal e religiosa

de um casamento até que a morte os separe, liquidificou-se. Em seu lugar surge uma

miríade de relacionamentos efêmeros e informais, para os quais a coabitação, a

autoridade do homem provedor, o futuro seguro por relações duradouras, não

constituem mais uma regra incondicional.

O Estado moderno, centralizador da ordem e progresso, responsável pela

proteção e segurança coletivas, se desmancha no ar. Sua tarefa de prover os direitos

sociais de todos os cidadãos e regular a totalidade da vida em termos sociais, políticos

e econômicos, acaba por ser desregulamentada e privatizada. Sua concentração de

poder e primazia no domínio do bem comum dá espaço à fragmentação de

reivindicações dispersas em diversas instituições e organizações de um setor público

não-estatal. Sua soberania calcada no território é constrangida pelo poder do capital

globalizado desterritorializado. A regulação estatal da economia dá lugar à primazia

do mercado.

Vimos o quanto essa nova configuração do Estado sob influência do

neoliberalismo, que batizamos de Estado do Mal-Estar Social, gera políticas sociais

públicas compensatórias, assistencialistas, focadas e fragmentadas, tendo na figura do

consumidor falho seu alvo em vez da antiga concentração no cidadão de direitos.

Em suma, observamos que a sociedade moderna, em sua fase sólida e

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domesticada, possuía como imperativo a fixação, o bem comum, a confiança na

durabilidade dos processos sociais e em sua transformação no futuro, a submissão

individual à instituições sociais que ofereciam modelos únicos, rígidos e

uniformizadores da conduta. A contrapartida dessa submissão era a segurança

existencial: se tinha certeza do que pensar e como agir; se tinha confiança na

durabilidade dos sustentáculos da vida, o que permitia lançar-se para um futuro

racionalmente planejado de antemão; sentia-se protegido das vicissitudes da vida em

virtude da confiança nas redes de segurança social, principalmente o trabalho, a

família e o Estado.

Ora, o processo de rualização, que na vida individual se configura de

diferentes formas a partir do esfacelamento das bases da vida domesticada e

precipitação para a situação de rua, na vida social contemporânea tem como

equivalente a liquidificação da sociedade moderna. Trata-se de um processo mais

geral de nomadismo, que simboliza a criação de um novo modo de vida mais

dinâmico, itinerante, sem regras rígidas e duradouras, sem modelos universalizantes a

se seguir.

Essa passagem da sociedade moderna sólida e domesticada para a

modernidade líquido-nômade, se dá a partir da sensação de uma precarização da

vivência pessoal. As pessoas passam a viver em intensa angústia simbolizada no

termo unsicherheit: uma vida crivada de incertezas, inseguranças e falta de garantias.

É assim que o segundo processo inerente à situação de rua, a vivência concreta

dessa situação, escancara diversas contradições do mundo contemporâneo. Vimos,

sumariamente, algumas delas: espacialmente, vive-se precariamente em “não-

lugares”, locais onde se está sempre de passagem, sempre desterritorializado, rumo

incerto para lugar nenhum; temporalmente, se vive em um presente perpétuo, cuja

imediaticidade representa uma amnésia histórica desconectada aparentemente do

passado que a constituiu e do futuro que a sucede; no interior das relações humanas,

vê-se a intensa descartabilidade, desumanidade e indiferença; enfim, vive-se em

desamparo, situação que representa o total descontrole sobre a determinação da

própria vida, posto que a mesma encontra-se sobre o domínio de forças extrínsecas

que nos manipulam e que não conseguimos nem ao menos conhecê-las com nitidez.

Aí esta o que consideramos a grande contradição da sociedade atual. Com a

domesticação da vida, gozávamos de segurança existencial resguardada a partir da

abdicação de nossa liberdade individual. Com o nomadismo da líquida sociedade

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moderna, gozamos de liberdade individual com nunca antes, entretanto permeada por

uma também inédita insegurança. Ora, trata-se de uma liberdade compulsória de fazer

escolhas e responsabilizar-se por elas, porém sem qualquer autodeterminação

negociada coletivamente. De maneira mais explícita, vimos que se trata da liberdade

de um ser não livre, uma liberdade que acorrenta, pois não tem como pressuposto o

mínimo controle das situações de vida.

Se antes estávamos presos aos grilhões da segurança forçada, atualmente

estamos acorrentados da “liberdade” compulsória. Como lidar com essa contradição?

Se entendemos que a situação de rua escancara essa contradição, da

domesticação opressora e do nomadismo forçado, nela pode se expressar um

movimento de superação entre esses dois pólos antagônicos.

Aqui, a saída das ruas como terceiro processo ligado à situação de rua,

reveste-se de enorme importância para se conhecer os destinos do ser humano atual.

Isto porque pode representar uma maneira mais geral de construir ininterruptamente

uma vida crivada na liberdade, que pressupõe a autodeterminação na constituição do

cotidiano, ao mesmo tempo em que fornece possibilidades de fincar raízes com maior

segurança. Vimos o quanto os conceitos de “enraizamento dinâmico” e “reintegração”

após o exílio auxiliam na compreensão dessa superação: as pessoas constróem com

liberdade seus modos de vida, conseguindo fazer com que essa construção não seja

tão solidificada ao ponto de representar um enraizamento que imobiliza e reproduz a

mesmice de si mesmo. Se a líquida sociedade moderna derreteu os sólidos que nos

ofereciam segurança existencial, a saída das ruas pode representar um rio: permite a

fluidez dos modos de ser e das instituições sociais, porém dentro de alguns limites

que promovam segurança.

Este rio possui seus afluentes. Observamos que as pessoas em situação de rua

que conquistaram a saída das ruas construíram, em um processo de autonomia, novas

formas de viver o cotidiano e se relacionar com as instituições que sustentam a vida

social.

No âmbito do trabalho, aquele trabalho assalariado controlador e explorador

foi substituído: pela realização intermitente de trabalhos informais que ofereçam os

meios de vida sem privá-la da liberdade de gozar o ócio, participar de outras

atividades, viajar a hora que quiser, etc.; pela construção de uma cooperativa, nos

marcos da economia solidária, que possibilita maior respeito, solidariedade e

autonomia para os atores econômicos envolvidos; e, ainda, pela reflexão sobre

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propostas de desenvolvimento sustentável que favoreçam a reprodução da vida

humana resguardando a sobrevivência das próximas gerações.

A família moderna burguesa também sofreu seus revezes. As relações

autoritárias deram lugar ao diálogo mais respeitoso, igualitário e liberal entre pais e

filhos. A necessidade de seguir regras, horários e papéis determinados foi duramente

criticada, seja pela flexibilização dos papéis maritais, seja pela informalização dos

vínculos de casamento ou mesmo pela habitação de cada membro do casal em local

distinto. Por fim, as relações fraternas, principalmente aquelas entre amigos, foi

enfatizada como grande suporte familiar.

O próprio ambiente doméstico, como reduto isolado e monótono da intimidade

familiar, foi transformado em ambiente de maior comunhão com os amigos e abertura

para o mundo público.

Não devemos, porém, conceber essa nova forma de vida criada com a saída

das ruas como próxima da harmonia e perfeição, ou livre de contradições. Vimos o

quanto ela está crivada em paradoxos, ora representados por obstáculos à a liberdade

individual, ora por fragilizações no oferecimento de segurança existencial. De

qualquer maneira, o processo de emancipação inaugurado com a saída das ruas, para

ser considerado processo, deve sempre estar permeado por contradições, desafios,

reflexões e reformulações.

Esperamos que, de maneira similar, nossa pesquisa possa contribuir para esse

processo de emancipação, não somente das pessoas em situação de rua, mas para

todos os cidadãos da sociedade contemporânea que construíram um cotidiano tão

paradoxal: ora com uma liberdade compulsória com pouca segurança, ora com uma

segurança que priva a liberdade. Lutemos para que esse processo de emancipação

possa ser sempre criticado, refletido e recriado no enleio das contradições que nunca

cessarão.

Referências Bibliográficas

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Anexo ARoteiro de Entrevista

De maneira geral, como você entende que ocorre o processo de saída das ruas?

Qual é o papel do trabalho na saída das ruas?

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Qual é o papel da família na saída das ruas?

Qual é o papel do Estado e das políticas públicas na saída das ruas?

Qual é o papel dos movimentos sociais na saída das ruas?

Após a saída das ruas há uma transformação no modo de vida em casa, ou seria

apenas um retorno à vida que se tinha antes da ida para a rua?

Anexo B

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO(Decreto nº. 93 933 de 14/01/1987 - Resolução CNS nº. 196/96)

Este formulário de consentimento tem por objetivo informar-lhe sobre o que se trata a pesquisa, bem como obter sua autorização explícita para realizá-la. Espera-se, por meio deste, dar-lhe uma idéia básica sobre a pesquisa e o que sua participação envolverá. Se você desejar mais detalhes sobre algo mencionado aqui ou qualuqer outra dúvida sobre a pesquisa, sinta-se à vontade para perguntar. Por favor, leia cuidadosamente este formulário e as informações aqui contidas.

A presente pesquisa, intitulada Situação de rua e modernidade: a saída das ruas como processo de criação de novas formas de vida na contemporaneidade, possui o objetivo de compreender a opinião das pessoas que viveram em situação de rua sobre o processo de saída das ruas.

Participam de sua realização o aluno pesquisador Ricardo Mendes Mattos e o pesquisador responsável, Ricardo Franklin Ferreira, CPF 203408938-34, RG 3338342, residente na R. das Camélias, nº. 321, apto. 53, bairro de Mirandópolis, São Paulo/SP, CEP

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04048-060, tel. (011) 9159-0160, CRP-06: 2158.A pesquisa possui financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de

São Paulo (FAPESP) e é realizada juntamente ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.

Como método de estudo serão realizadas quatro entrevistas com pessoas que discutirão suas opiniões sobre as possibilidades de saída das ruas. Tais entrevistas serão realizadas unicamente pelo psicólogo Ricardo Mendes Mattos, supervisionado pelo pesquisador responsável Dr. Ricardo Franklin Ferreira. Cada entrevista terá a duração de aproximadamente uma hora e serão gravadas em áudio.

Cabe ressaltar que este estudo não oferece riscos à integridade de seus colaboradores, além de os mesmos não receberem remuneração pela participação na pesquisa ou qualquer outro tipo de benefício, pois não há despesas pessoas para os participantes. Porém, quaisquer eventuais danos causados pela participação na pesquisa serão ressarcidos pelo aluno pesquisador por meio de sua Bolsa FAPESP, incluindo a necessidade de possível atendimento médico-psicológico oriundo de envolvimento emocional com o pesquisador.

Conforme a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, sobre a realização de pesquisas com seres humanos, serão respeitados os seguintes direitos dos colaboradores: preservação da identidade real a partir da não divulgação do nome ou demais informações que possam levar à identificação dos mesmos; cada colaborador poderá vetar sua participação a qualquer momento da pesquisa ou deixar de responder a qualquer questão que lhe traga risco ou desconforto.Eu, ______________________________________________________________________ , CPF: ___________________________, tel. __________________, estou ciente dos direitos acima mencionados e aceito participar voluntariamente da referida pesquisa. Estou cônscio das informações contidas neste documento e, outrossim, autorizo a gravação em áudio desta referida entrevista, bem como a utilização de seu conteúdo para a avaliação dos dados nesta dissertação de mestrado ou demais publicações científicas que se façam valer de seus resultados.

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