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Universidade Federal da Bahia Faculdade de Direito Programa de pós-graduação stricto sensu Mestrado em Direito Público HERMENÊUTICA E O FATO COMPREENDIDO COMO JURÍDICO Wálber Araujo Carneiro Monografia apresentada como requisito de aprovação na disciplina hermenêutica ministrada pelos Profs. Saulo Casali e Paulo Roberto Lírio Pimenta.

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Page 1: Universidade Salvador€¦  · Web viewSaulo Casali e Paulo Roberto Lírio Pimenta. Salvador – Ba. Outubro de 2004 SUMÁRIO. Introdução. 3. 2. Os fundamentos da ciência do direito

Universidade Federal da BahiaFaculdade de Direito

Programa de pós-graduação stricto sensuMestrado em Direito Público

HERMENÊUTICA E O FATO COMPREENDIDO COMO JURÍDICO

Wálber Araujo Carneiro

Monografia apresentada como requisito de aprovação na disciplina hermenêutica ministrada pelos Profs. Saulo Casali e Paulo Roberto Lírio Pimenta.

Salvador – BaOutubro de 2004

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SUMÁRIO

Introdução 3

2. Os fundamentos da ciência do direito na pós-modernidade 5

3. O paradigma epistemológico da filosofia da linguagem 12

3.1 A viragem lingüística 17

3.2 Fenomenologia hermenêutica 21

3.3 Fenômeno e círculo hermenêutico 23

4. Fato compreendido como jurídico 28

4.1 Fato hipotético, simulado e histórico 30

5. Conclusão 34

6. Bibliografia 36

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1. Introdução

A modernidade trouxe a laicização e com ela a tentativa de dominar o mundo. O

agente do domínio era o homem e o instrumento a razão. A tentativa de racionalizar o

conhecimento e os passos do homem fez com que o resultado criativo fosse também

colocado na condição de objeto e, a partir daí, iniciou-se a busca por uma

metodologia que fosse capaz de dominar essa matéria eminentemente humana.

O desenvolvimento e o sucesso das ciências naturais fizeram com que os estudiosos

do “espírito humano”, em um primeiro momento, utilizassem a metodologia daquelas

ciências para pensar as ciências humanas. Em um segundo momento, viu-se que o

transporte metodológico era inviável, mas que a busca por uma metodologia

adequada seria necessária para que as “ciências do espírito” tivessem o mesmo êxito

das ciências exatas e naturais. O papel de Kant foi fundamental para essa guinada,

contudo, a necessidade de dominar com segurança as coisas humanas e,

conseqüentemente, estabelecer as bases para uma práxis racional ainda vigorava no

projeto. Toda e qualquer metodologia passava pelo elemento segurança, o que

implicava no conhecimento mediante o binômio sujeito e objeto.

O direito, ainda que algo essencialmente humano, era visto como objeto. Ente que

deveria ser identificado e aplicado ao mundo da vida. Essa entificação possibilitava a

análise do mundo jurídico (normas jurídicas) independente do mundo dos fatos

(condutas humanas). Esses fatos para serem jurídicos deveriam ser alvo de uma

operação de subsunção que se dava fora do homem, transformando-os em jurídicos.

Tal metodologia, contudo, nunca trouxe segurança. Apenas camuflava a

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impossibilidade de dominar as coisas humanas no nível pretendido pelo projeto de

modernidade.

Essa atitude metodológica esbarra na crise dos paradigmas da modernidade. Esbarra

em uma ciência sem freios e que não atente à lógica social. O homem que já havia

abandonado Deus, começa a perceber que a ciência e sua racionalidade transcendental

não seria um substituto a altura. Entre o Deus e a ciência o homem se encontrou e

com ele, o elemento exclusivamente humano, demasiado humano: a linguagem. A

linguagem passa a ser o elemento central da metodologia das “ciências do espírito” e,

conseqüentemente, a hermenêutica adquire um papel de destaque.

A proposta do presente trabalho se situa na tentativa de análise e crítica da teoria do

fato jurídico face à superação da estrutura de conhecimento pautada no binômio

sujeito e objeto. Situa-se face a um paradigma onde o conhecimento se dá dentro de

uma cadeia comunicativa; dentro de uma teia lingüística que se confunde com a

sociedade, com a tradição e, conseqüentemente, confere à metodologia jurídica a

possibilidade de se situar entre uma metodologia pseudo-segura, desprovida de

qualquer lógica social, e um jusnaturalismo tendente à arbitrariedade. Em resumo,

pretende analisar o fato jurídico sob a ótica da fenomenologia hermenêutica, método

que impede um estudo compartimentalizado e a transformação do fato jurídico em

uma “coisa em si mesma”.

A juridicidade passa a ser vista como a compreensão do fato, transformando o fato

jurídico em um fato compreendido como jurídico.

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2. Os fundamentos da ciência do direito na pós-modernidade

A proposta de revisão da tradicional teoria do fato jurídico deve ser justificada, afinal,

caso sua superação não trouxesse nenhuma vantagem metodológica ou social, a

construção de uma nova teoria não faria sentido. Em face disto, propõe-se

inicialmente uma análise do momento de crise que vivemos para que, em seguida, o

tema central seja abordado. Cabe, então, uma análise da chamada pós-modernidade

ou transição paradigmática.

Ao contrário do que ocorreu com o projeto de modernidade, a pós-modernidade parte

de uma releitura do projeto de modernidade. A própria designação do signo

demonstra que não é possível pensar em pós-modernidade sem pensar em

modernidade, o que suscita uma dúvida: trata-se de uma transição ou de uma crise?

Crise ou transição, o fato é que o projeto encontra-se desgastado, o que possibilita a

percepção de novas aspirações da sociedade, exigindo novas respostas. O conjunto de

aspirações não pode ser encarado com as mesmas concepções científicas construídas

na modernidade, mesmo porque, foi a ciência moderna transformada em força

produtiva, fato que representou um elemento chave para a crise.

O projeto de modernidade, na visão de Boaventura de Souza Santos (2003, p.75-79),

foi concebido mediante o estabelecimento de dois grandes pilares: o da regulação e o

da emancipação. No pilar da regulação, três princípios o informam: a) o princípio do

Estado, que “consiste na obrigação política vertical entre cidadãos e Estado”; b) o

princípio do mercado, que “consiste na obrigação política horizontal individualista e

antagônica entre os parceiros de mercado” e c) o princípio da comunidade, que

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“consiste na obrigação política horizontal solidária entre membros da comunidade e

associações”. O pilar da emancipação é constituído por três racionalidades: a) a

racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura; b) a racionalidade

cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia e c) a racionalidade moral-prática

da ética e do direito (SANTOS: 2002, p.48).

A concepção do projeto estabelecia para o seu desenvolvimento um equilíbrio entre

os pilares, ou seja, a regulação na justa medida das práticas emancipatórias. Ocorre

que a gênese do projeto de modernidade se deu antes de o modelo de produção

capitalista assumir a sua consecução (SANTOS: 2002, p. 76-77), restando certo que

tal modelo passou a privilegiar o pilar da regulação, provocando um excesso que veio

culminar na crise paradigmática, além de provocar um desequilíbrio interno a este

pilar, face à hipertrofia do princípio do mercado.

No que toca à construção de um novo paradigma epistemológico, é importante a

compreensão do desenvolvimento da racionalidade cognitivo-instrumental e, em

especial, sua íntima relação com o princípio do mercado presente no pilar da

regulação. Dois elementos, a meu ver, desencadearam a crise e a necessidade de

ruptura dos padrões epistemológicos: a) o fundamento filosófico-cognitivo assumido

pela racionalidade cognitivo-instrumental e b) e a transformação da ciência em força

produtiva.

A modernidade foi construída sobre trevas, não ignorando, evidentemente, alguns

focos de produção de conhecimento percebidos na idade média, além da contribuição

da filosofia grega. O fato é que a compreensão do mundo pré-moderno se dava,

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basicamente, mediante dogmas religiosos e a verificação empírica de sensos comuns.

A concepção da ciência como um instrumento emancipatório, viabilizada pela

laicização, representaria a possibilidade de domínio do universo, da natureza. A

racionalidade representaria a quebra de dogmas religiosos que, presos no tempo,

importava na impossibilidade de desenvolvimento e melhoria de vida.

A postura filosófico-cognitiva utilizada para a compreensão do mundo foi um reflexo

dessa busca pela racionalidade. O mundo a ser conhecido era um mundo fora do

homem, logo, um mundo objeto. A atitude do cientista foi a de estabelecer para o

conhecimento a transformação de tudo em objeto do conhecimento humano,

esquecendo ele que nem tudo a ser conhecido era, de fato, algo que se encontrasse

fora do homem. Ao lado dos elementos naturais, estavam os elementos humanos,

“demasiado humano”. A colocação desses elementos na condição de objeto fez do

humano algo distante. Distante da cultura, distante do senso comum social, distante

da tradição.

A racionalidade científica, a purificação da ciência, a desumanização dos elementos

culturais fizeram da ciência uma prisão ou uma espécie de barco desgovernado que

levava o homem a um destino desconhecido. Nesse barco, além do domínio da

natureza, estava a pretensão de dominar a cultura, logo, o próprio homem. Só que

essa dominação fugiu ao controle e o barco desgovernado da ciência fazia com que o

homem ficasse cada dia mais distante de si mesmo.

Essa crise vem sendo apontada há algum tempo, sendo talvez a gênese dessa quebra

paradigmática. Como aqui nos interessa, em especial, a epistemologia jurídica,

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diversas escolas vêm se revezando na tentativa de capitanear o nosso barco ilusório.

A modernidade que tem como uma de suas marcas a laicização implicou, de início, na

epistemologia jurídica a transição de um jusnaturalismo teológico para um

jusnaturalismo racional. A partir do momento em que o capitalismo assumiu as rédeas

do projeto de modernidade, a despersonificação do poder foi inserida no projeto –

necessidade da burguesia capitalista – e, com ela, a necessidade de se estabelecer

métodos mais seguros. O positivismo assume o mancho de nossa nau e leva o

humano a um lugar ainda mais distante do homem, na medida em que a filosofia é

reduzida à enciclopédia das ciências e as ciências sociais assumem métodos similares

àqueles utilizados pelas ciências naturais, a exemplo da metodologia proposta pela

Escola de Exegese. Mais adiante, Hans Kelsen, Alf Ross e Herbert Hart conferem

novos contornos ao positivismo jurídico. De fato, não mais se tratava de uma

metodologia inviável, mas que ainda se encontrava distante do homem, face à

influência do pensamento metafísico.

Boaventura de Souza Santos (2002, p.64) aponta ao longo do desenvolvimento do

projeto de modernidade alguns centros de resistência, na medida em que verifica uma

vertente que reivindica um estatuto metodológico próprio para as ciências naturais.

Essas concepções representaram um sinal de crise dentro deste paradigma e acabaram

contendo alguns dos componentes verificados na transição paradigmática. No direito,

em épocas diferentes, a Escola Histórica – que tenta aproximar o conhecimento do

direito do homem, do volksgeist, do espírito do povo – o egologismo de Carlos Cóssio

e as teorias tridimensionais, como a de Miguel Reale, são exemplos dessa resistência.

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O segundo fator apontado para a crise epistemológica diz respeito à relação da ciência

com a produção, ou seja, o fato de ela própria ter se transformado em uma força

produtiva. A hipertrofia do princípio do mercado, percebida ao longo do

desenvolvimento do projeto de modernidade pelo capitalismo, proporcionou esse

fenômeno. Na sua gênese, a racionalidade cognitivo instrumental estava voltada para

o domínio do universo, da natureza, mas com um intuito: a emancipação. A qualidade

de força produtiva atraiu a ciência para as garras do mercado e, conseqüentemente,

para o pilar regulatório. É evidente que as conquistas verificadas, principalmente ao

longo do séc. XIX, também representaram ganhos para a sociedade, contudo, o

desenvolvimento desenfreado do conhecimento científico trouxe um novo elemento:

o risco.

Aliada ao mercado, a sociedade perde o controle dos rumos e objetivos da ciência,

passando esta a ter um único objetivo: a busca pelo desenvolvimento. Mas que

desenvolvimento e a que custo? O distanciamento da ciência em relação ao homem,

fez com que ela perdesse completamente uma necessária racionalidade social, tudo

em nome de uma suposta racionalidade científica, quando, na verdade, sempre foi

mercadológica. Ulrich Beck (1986) acentua esse novo cenário em sua obra “La

sociedad del riesgo”, traçando as bases dessa nova sociedade vivida no raiar do séc.

XXI. Segundo ele, o avanço tecnológico e a busca incessante pelo desenvolvimento

trouxeram a modificação da espécie de risco hoje assumida pela sociedade. Trata-se

de um risco “invisível” que funciona como uma “bomba-relógio” no coração do

planeta.

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Para Beck (1986, p.57), se antes havia miséria material, escassez e fome, hoje se

constata a ameaça e destruição das bases naturais da vida, sendo que “a luta contra a

fome e por uma autonomia conforma o escudo de proteção que escondem,

minimizam e, deste modo, potencializam os riscos não perceptíveis, os quais acabam

voltando aos países ricos industrializados através da cadeia de alimentos” (BECK:

1986, p. 45).

Sustenta (BECK: 1986, p. 89) também que:

com a destruição industrial das bases ecológicas e naturais da vida se põe em marcha uma dinâmica social e política de desenvolvimento historicamente sem precedentes e que atualmente não tem sido compreendida, a qual nos obriga a repensar a relação entre natureza e sociedade.

Haveria, portanto, que se modificar o paradigma axiológico sob o qual o

desenvolvimento se sustenta, visando, dessa forma, modificar a noção daquilo que, de

fato, representa desenvolvimento e, com isso, desviar a humanidade de uma

catástrofe.

Nessa linha, Boaventura de Souza Santos sustenta a busca por um novo senso

comum. Uma reaproximação do homem e do conhecimento.

Quando o desejável era impossível, foi entregue a Deus; quando o desejável se tornou possível, foi entregue à ciência; hoje, que muito do possível é indesejável e algum do possível é desejável temos que partir ao meio tanto Deus como a ciência. E no meio, no caroço ou no miolo, encontramo-nos, com ou sem surpresa, a nós próprios. Por essa razão, quer queiramos, quer não, tudo nos está entregue. E porque tudo nos está entregue não se compreende que estejamos cada vez mais interessados na linguagem, (daí, o segundo Wittgenstein), no poder do conhecimento e da argumentação (daí Nietzsche, Foucault e a reemergência da retórica) e finalmente na comunicação humana e na interacção (daí a descoberta do pragmatismo norte-americano pela mão de Habermas). Para cultivar estes novos interesses, imagino uma escola pragmática, a qual consistirá de

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duas classes. Na primeira, chamada consciência do excesso, aprendemos a não desejar tudo que é possível só porque é possível. Na segunda classe, chamada consciência do déficit, aprendemos a desejar também o impossível (2003, p. 106).

Com isso, vê-se que os elementos que provocam a crise exigem respostas simétricas.

A transição paradigmática exigiria, portanto, uma quebra paradigmática também no

campo epistemológico. Esse novo paradigma deve ter a capacidade de construir uma

ciência que se aproxime do homem e da sociedade; que não ignore a diversidade; que

veja no humano algo humano e que, para problemas humanos, construa soluções

humanas. Daí pode surgir uma pergunta simples: o que é exclusivamente humano? A

linguagem. E esta não pode ser reduzida a um objeto em contemplação. A linguagem

não existe fora do homem. Só existe dentro dele e só ele é capaz de percebê-la. Sua

percepção não se dá pela reprodução lógica de sua “essência” na consciência, mas

sim pela interpretação.

Diante dessa constatação, cabe uma melhor análise acerca do fenômeno lingüístico e

de sua caracterização como um novo paradigma epistemológico para o direito. A

modificação do paradigma, como será visto, trará novos contornos à teoria do fato

jurídico, revelando que não há nenhum fato essencialmente jurídico, mas fatos que

compreendemos como jurídicos. Essa compreensão não se dá fora do homem, nem

muito menos no sujeito transcendental, dá-se em um sujeito inserido na cadeia

comunicativa: a própria sociedade.

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3. O paradigma epistemológico da filosofia da linguagem

Acreditava-se – muitos ainda acreditam – que o conhecimento é fruto da apreensão

pela mente humana de uma realidade ôntica ou, ao menos, transcendental. Nesse

sentido, diversas vezes o próprio direito foi enquadrado em classificações ônticas,

uma vez que se ele não existisse de alguma forma, jamais seria captado pela mente

humana, logo, jamais seria conhecido.

Segundo Hans Kelsen (2000, pg. 81-82), “na teoria do conhecimento de Kant, a

ciência jurídica como conhecimento do Direito, assim como todo conhecimento, tem

caráter constitutivo e, por conseguinte, `produz´ o seu objeto na medida em que o

apreende como um todo com sentido.” Em seguida, afirma que as normas jurídicas

são “o material dado à ciência do Direito” e que só através do “conhecimento

ordenador da ciência jurídica se transforma num sistema unitário isento de

contradições.” A inspiração kantiana em Kelsen demonstra que para ele o objeto da

ciência do direito é uma matéria, uma “coisa em si”.

Miguel Reale (1994, pg. 122), buscando depurar o fenomenalismo transcendental de

Kant, afirma que “a palavra fenômeno (phai + noumenon) traduz aquilo que é

apresentado ou se oferece.” Para Kant, seguido por Kelsen, o direito é um fenômeno

que se apresenta à mente daquele que tenta conhecê-lo. Ou seja, o que não se oferece

não pode ser conhecido. Isso demonstra, ainda que de modo transcendental, que o

direito seria algo que existiria antes mesmo da captação da consciência humana. Essa

existência prévia permite traçar uma imagem do direito, da “coisa em si” e,

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hipoteticamente construída na mente humana, toma uma forma lógica que possibilita

o cientista, ao se deparar com um dado fenômeno, concluir se ele é ou não direito.

Noutras palavras, o direito será, necessariamente, alguma coisa: norma, na concepção

kelseniana. Se a “coisa em si” é norma, não pode ser o justo, muito menos a conduta

humana. Tais fenômenos não possuem a imagem e semelhança daquele “retrato”

lógico construído hipoteticamente na consciência do cientista, ou seja, não se

enquadram na estrutura lógico-formal reservada à norma. Esse “retrato” ou estrutura

lógico-formal contemplará as características essenciais do “ente” direito, ou seja, da

norma. Tal inspiração gnoseológica fomentou a construção da essência normativa na

tentativa de identificar o que seria essa “coisa em si”. Dessa tentativa, normalmente,

constatou-se que alguns elementos eram necessários, dentre eles a previsão de um

fato; o estabelecimento de uma prestação decorrente desse fato e a conseqüência

jurídica da não prestação: a sanção.

Ora, se o cientista do direito se deparasse com algo que não possuísse tais elementos,

de duas, uma: ou não estaria diante de uma norma, ou estaria diante de uma norma

imperfeita. Noutras palavras, uma não-norma ou uma norma ineficaz.

Daí a dificuldade de caracterizar o princípio jurídico como norma. Onde estaria a

sanção, a prestação e outros elementos que, para o jurista de inspiração kelseniana,

são essenciais a essa “coisa em si”, a esse fenômeno transcendental? Não foi por

outra razão que Kelsen chamou a norma desprovida de sanção de “imperfeita”.

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A realidade percebida na transição paradigmática exigiu novas concepções acerca dos

princípios. Percebeu-se que eles eram o elo entre uma metódica segura e burra e uma

justiça arbitrária. Essa demanda foi incorporada mediante um paradigma

epistemológico arcaico, ou seja, que estava a serviço de uma promessa da

modernidade: a segurança. Novas demandas não dependem, necessariamente, de

quebras paradigmáticas, contudo, como foi visto, estamos diante de uma demanda da

pós-modernidade, logo, uma infinidade de novas aspirações dependem de novos

paradigmas, inclusive, no plano epistemológico.

Em busca de uma nova construção paradigmática, não é possível negar que a

capacidade de nossa mente compreender as coisas é um dos elementos que interfere

no conhecimento, fato este superado desde os estudos feitos pelas teorias

racionalistas. Um daltônico não conhecerá o arco-íris com a mesma beleza e

plasticidade daquele que possui uma visão normal. Não perceberá, também, com a

mesma profundidade a poesia de Tom Jobim ao descrever o cabelo de Luiza “como

um brilhante que, partindo a luz, explode em sete cores”.

A consciência, do ponto de vista da teoria do conhecimento (CHAUI: 2002, pg. 118),

“é uma atividade sensível e intelectual dotada do poder de análise, síntese e

representação”. Ou seja, de nada valerá o dado objetivo conferido pela natureza se o

homem não possuir a capacidade de captar e representar na sua mente esse objeto.

Aqui a consciência não surge como um acúmulo de pré-compreensões adquirido

mediante a inserção do ser no mundo-da-linguagem, mas como o elemento

transcendental que viabiliza a fuga do instinto e a percepção do mundo.

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Também não posso negar que o dado conferido pela natureza – aqui identificada

como o conjunto de elementos que existem independentemente da existência do

homem – integra-se ao complexo da atividade cognoscitiva, contribuindo para o

resultado. Contudo, não admitiria que esses elementos são o bastante para o

conhecimento.

A concepção de que o conhecimento representa a reconstrução do objeto em nossa

consciência transcendental marca o chamado paradigma da filosofia da consciência.

As diversas variações dessa tese correspondem a um período onde a ontologia era

confundida com a teoria do conhecimento. Assim, em linhas gerais, real era aquilo

que era reproduzido na consciência de um sujeito transcendental que apreende um

objeto através de estruturas pré-concebidas.

Miguel Reale, representante de uma corrente de resistência à purificação axiológica

do direito, estabelece uma crítica à fonomenologia de Husserl na medida em que a

intencionalidade da consciência não seria bastante para a correta captação do

fenômeno jurídico. Segundo Reale (1994, p. 370)

(...) a análise fenomenológica, em lugar de tomar o sentido da reflexão subjetivo-transcendental, como na doutrina de Husserl, atinge o plano da fenomenologia do espírito, na qual a ralidade jurídica se revela em sua universalidade, como momento da consciência histórica ou, por outras palavras, como forma de atualização da Humanitas na história.

A consciência histórica de Reale é uma feliz tentativa de aliar a consciência

intencional que capta o fenômeno à necessária historicidade do direito, construída a

partir da vivência do homem na sociedade. Para tanto, sustenta o jusfilósofo que

(1994, p. 385):

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Estudo de ordem lógica é legítimo e necessário, mas deve ser complementado com a implicação da realidade social ordenada, sem a qual a norma não tem valor de norma jurídica. Norma e conduta são, por conseguinte, termos que se exigem e se implicam, mas se reduzem um ao outro: - subsistem em implicação recíproca, segundo a que temos denominado “dialética de complementariedade”, que caracteriza e governa todo o processo cultural.

O que Reale quer demonstrar é que o fenômeno a ser captado pelo sujeito que

conhece não contém apenas elementos passíveis de percepção por uma lógica

analítica, mas que, juntamente com ele, chega o valor construído na historicidade.

Contudo, muito embora haja por parte de Reale a preocupação em viabilizar

metodologicamente um direito historicamente condicionado, o valor construído nessa

historicidade permanece como objeto, ou seja, permanece como fenômeno que vai ser

captado pelo “sujeito transcendental”. A teoria tridimensional de Reale é construída,

portanto, sobre o paradigma da filosofia da consciência, mediante a estrutura

cognoscitiva sujeito – objeto. O humano está presente no direito, mas no mesmo

plano ontológico do real, ou seja, dos fatos.

Considerando que a análise fenomenológica do direito, independentemente do

método, ou seja, das diversas formas de fenomenologia que se adote, deve levar em

consideração o elemento humano, social, há de se identificar o método mais

adequado. Noutras palavras, até por força dos paradigmas emergentes na transição

paradigmática, se a metodologia do direito deve levar em consideração o senso

comum de Boaventura de Souza Santos; a lógica social de Ulrich Beck ou a

atualização da Humanitas na história de Reale, resta saber se a estrutura cognoscitiva

sujeito – objeto pode ainda vigorar. Afinal, de duas uma, ou esse elemento humano

chega ao sujeito no fenômeno ou ele é agregado ao real no processo cognitivo. Só que

dois problemas se revelam: na primeira hipótese, resta saber como esse fenômeno se

mostra, afinal, ele não é passível de uma percepção biológica-sensitiva, enquanto que

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na segunda hipótese, restaria saber como esse elemento foi parar no sujeito do

conhecimento. A adoção de uma das hipóteses e a conseqüente solução para o

problema por ela trazido é que norteará o trabalho até que se chegue ao problema

central do fato jurídico.

3.1 A viragem lingüística

Para Heidegger (2002, p. 98) “a suposição, hoje tão corrente, do conhecimento como

uma relação sujeito objeto, [é] tão verdadeira quanto vã”. Segundo ele, “sujeito e

objeto, porém não coincidem com pre-sença e mundo.”

Já Gadamer (2003, p. 378) afirma que o objeto histórico:

Em si, não existe de modo algum. É isso que distingue as ciências do espírito das da natureza. Enquanto o objeto das ciências da natureza pode ser determinado pela idealiter como aquilo que seria conhecido num conhecimento completo da natureza, não faz sentido falarmos num conhecimento completo da história. E é por isso que, em última análise, não podemos falar em um “objeto em si” ao qual se orientaria essa investigação.

Partindo desse novo paradigma, conclui Gadamer (2003, p. 612):

O ser que pode ser compreendido é linguagem. De certo modo, o fenômeno hermenêutico devolve aqui a sua própria universalidade à constituição ontológica do compreendido, na medida em que determina, num sentido universal, como linguagem, e determina sua própria referência ao ente como interpretação. Por isso, não falamos somente de uma linguagem da arte, mas também de uma linguagem da natureza, e inclusive de uma linguagem que as coisas exercem.

No Brasil, Lenio Streck estabelece uma forte crítica à dogmática jurídica construída

sobre o paradigma da filosofia da consciência e estabelece as bases para uma

hermenêutica jurídica filosófica.

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No paradigma da filosofia da consciência a concepção vigente é de que a linguagem é um instrumento para a designação de entidades independentes desta ou para a transmissão de pensamentos pré-lingüísticos, concebidos sem a intervenção da linguagem. Assim, somente depois de superar esse paradigma, mediante a concepção de que a linguagem tem um papel constitutivo na nossa relação com o mundo é que se pode falar em uma mudança paradigmática, representado pelo rompimento da filosofia da consciência pela filosofia da linguagem. (STRECK: 2001, p. 137)

A linguagem, portanto, será um elemento chave para a solução do nosso problema.

No entanto, não podemos conceber a linguagem como uma “coisa” que se interpõe

entre sujeito e objeto no ato do conhecimento, nem como um veículo de transmissão

de conhecimento no ato comunicativo. A linguagem é muito mais. Ela é o nosso meio

ambiente, o medium no dizer de Gadamer (2003, p. 247). A compreensão das coisas

(e tudo que é compreendido é linguagem) se dá por força de sermos entes imersos

nesse meio ambiente, imersos nesse mundo-da-linguagem. A esse ente que todos nós

somos, imersos “aí” na linguagem, na sua casa, compreendemos como um “ser-aí”,

um “sein-da”, ou seja, um “dasein” (HEIDEGGER: 2002, p. 40).

Seguindo essa linha, o elemento axiológico não possui a mesma natureza ontológica

que o elemento real, fático. A queda de um corpo é algo natural que compreendemos

como um fenômeno físico ao qual denominamos de “gravidade”. Assim, aquilo que

vemos e que faz uma maçã cair é real, está fora do homem e independe da existência

do homem para ser real, contudo, chamar aquilo de gravidade se constitui como um

dado humano conferido ao fenômeno da maçã caindo. A esse fenômeno, não se

agrega apenas esse elemento humano gravidade. Em Nova York, americanos e

turistas de todo o mundo vêem a maçã caindo e não compreendem como sendo a lei

da gravidade, mas a virada do ano. Portanto, a queda da maçã é real, mas só existe

porque compreendemos, porque a nomeamos.

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Essas considerações nos levam ao ponto de partida do pensamento de Heidegger em

Ser e Tempo: a diferença ontológica. Esta representa a distinção ontológica de ente e

ser, mas, ao mesmo tempo, confere ao binômio a qualidade de inseparável na medida

em que um ser é sempre o ser de um ente e o ente só existe para nós se a ele for dado

um ser. Contudo, vale lembrar que, muito embora o ente dependa do ser e o ser

dependa do ente, ontologicamente, são coisas distintas.

Sendo coisas distintas, o ente pode habitar um local diferente do ser. O ente habita um

mundo que vem até nós no fenômeno. Habita um mundo que se mostra, independente

da intencionalidade da consciência. O ser, por sua vez, habita um mundo da

linguagem, ou melhor, constitui um mundo de linguagem. O dasein, esse ser que

todos nós somos, habita esse mundo, afinal, ele é ser e não ente. Só que o dasein,

como qualquer ser, necessita de um ente para se mostrar. Esse ente somos nós. Essa

junção de cabeça, tronco e membro que demora por volta de noves meses na barriga

de sua genitora se formando, tomando a forma que o seu código de DNA pré

determinou. A esse ente – que todos nós somos – também costumamos dar o nome de

homem. Dependendo de quem seja, também o chamamos de pai, amigo, irmão. Além

do dasein, todos eles são formas de ser desse ente que todos nós somos. Para ser pai,

basta fecundar um óvulo que venha se desenvolver e nascer com vida. Para ser

dasein, basta compreender as coisas que estão ao nosso redor.

Desse modo, a historicidade do homem não é algo que chega a um sujeito do

conhecimento no fenômeno, no mundo que se mostra. Representam seres que são

agregados a esse mundo que se mostra. A historicidade e, portanto, o tempo,

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encontra-se na linguagem, ou seja, nos seres que compõem essa linguagem que, por

sinal, é a nossa casa. A casa do dasein. Sendo assim, sendo algo que habita a nossa

casa, temos o tempo como algo muito familiar, algo que se confunde com o ser de tal

modo que dele não pode ser dissociado. O ser é, portanto, um ser necessariamente no

mundo e no tempo. Sempre vivemos em uma casa decorada de uma determinada

forma, composta por determinados móveis. Assim é o mundo da linguagem na qual o

dasein habita, afinal, há sempre um conjunto de seres que a compõem.

Tais conclusões nos levam a algumas outras que, para os fins desse trabalho, são

fundamentais. Conhecer o mundo pressupõe compreendê-lo. Essa compreensão se dá

no momento em que agregamos um ser ao ente que se revela no fenômeno. Esse ente

que se oculta em todos nós está em todos nós porque vivemos em meio a eles

formando um único mundo, o mundo-da-linguagem. Se esse mundo-da-linguagem é

criado por uma cadeia de seres que possuem essa capacidade de compreender e

agregar algo ao mundo, a compreensão dos entes não se dá mediante uma relação

sujeito objeto, mas em uma relação sujeito – sujeito, ou seja, dasein – dasein.

Conhecer os entes que se mostram é, portanto, revelar o ser que essa cadeia

comunicativa a ele atribui. Não há fora do homem um mundo com verdades postas,

ou seja, “coisas em si” mesmas. Talvez, e aqui já se perceberia uma negação ao

pensamento de Heidegger em Ser e Tempo, bem como à universalidade da

hermenêutica gadameriana, haveria verdades no mundo da realidade, mas essa

realidade se aplicaria tão somente ao mundo que independe da existência do homem,

jamais a esse mundo que nós construímos dia-a-dia em um movimento contrário às

leis de Lavoisier. O fato de um elefante não passar pelo buraco de uma agulha pode

até ser uma verdade que independa do homem, porém, o fato de chamarmos aquele

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animal pesado de tromba de elefante e aquele instrumento de costura de agulha

constitui uma verdade que só é identificada pelo homem.

Desse modo, se a compreensão dos entes que se mostram depende de uma operação

de desvelamento do ser e agregação deste a esse ente, a metodologia do conhecimento

se dará por esse movimento. Trata-se de uma fenomenologia, contudo, uma

fenomenologia da compreensão, ou, porque não dizer, de uma fenomenologia

hermenêutica. A esse tópico passaremos agora

3.2 Fenomenologia hermenêutica

Os conceitos de fenômeno e de fenomenologia não diferem apenas por não

designarem a mesma coisa. Diferem, também, por força das diversas concepções

gnosiológicas. Ernildo Stein (2001, p. 140) enumera as cinco principais correntes do

pensamento fenomenológico, quais sejam: a) fenomenologia descritiva; b)

fenomenologia transcendental; c) fenomenologia psicológico-descritiva; d)

fenomenologia dos valores; e, finalmente, e) fenomenologia hermenêutica, onde se

situaria o pensamento e obra de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. Por força

do escopo do trabalho, farei comentários apenas sobre a fenomenologia hermenêutica,

mesmo porque, outras vertentes foram indiretamente tratadas na ocasião em que se

estabeleceu a crítica ao paradigma epistemológico da filosofia da consciência.

A fenomenologia hermenêutica é um método. O curioso é que constitui um método

de compreensão que nos leva, justamente, à conclusão de que inexistem métodos para

que se compreenda o mundo-da-linguagem. Por essa razão, talvez estivesse mais

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próxima de um processo do que propriamente de um método, afinal, o

estabelecimento de um método pressupõe outros possíveis e aceitáveis, o que é

veementemente negado pelos hermeneutas. Se não há outro, a única forma de se

estabelecer a compreensão não será um método, mas um processo inevitável.

Para Stein (2001, p. 187):

Emergindo da explicitação das tarefas da ontologia, a necessidade de uma ontologia fundamental, cujo tema é a analítica existencial do ser-aí , a ser realizada de tal modo que leve ao problema central da questão do sentido do ser, qual será o método a comandar essa empresa? Heidegger responde com o método fenomenológico concretizado na hermenêutica. A analítica do ser-aí será realizada por meio da descrição fenomenológica como explicitação. “O logos da fenomenologia do ser-aí tem o caráter de hermeneuein que anuncia à compreensão do ser, incluso no ser-aí, o sentido autêntico do ser em geral e as estruturas fundamentais de seu próprio ser”.

A fenomenologia hermenêutica se mostra, assim, como um processo (método) no

qual o ser se desvela. Esse desvelamento só é possível se algo se põe àquele que

compreende, àquele que carrega o ser velado, ou seja, quando algo se mostra ao

dasein. Esse algo que se mostra ao dasein é o ente, aquilo que será nomeado,

valorado, estigmatizado, enfim, humanizado. Esse ente, portanto, não entra no dasein,

nem tampouco é reproduzido na consciência do sujeito do conhecimento. Esse ente

apenas toca o sujeito provocando nele a compreensão, o desvelamento do ser. Vê-se,

assim, que não há uma reprodução, mas um bombardeio ôntico no dasein que

provoca uma reação no mundo da linguagem provocando compreensão.

Mas a fenomenologia hermenêutica não se reduz à diferença ontológica entre ente e

ser, mas em outros elementos que daí se desdobra. O primeiro diz respeito ao modo

como o ente se mostra. Ele nunca se mostra sozinho, isolado e descontextualizado. O

se mostrar do ente sempre vem acompanhado de um contexto, de uma situação. O

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ente, portanto, sempre se mostra em meio a um fenômeno que se abre na clareira do

ser. Junto com um ente outros entes se mostram no fenômeno e, muito embora isso

seja algo que, a princípio, dificultaria a compreensão, facilita na medida em que traz

elementos que, associados, provocam o desvelamento do ser como verdade.

Além disso, a diferença ontológica e a complexidade do fenômeno viabilizam e

exigem um ir e vir do ente revelado ao desvelamento do ser. Como essa relação não

se dá em um mesmo ponto – a consciência – mas em pontos diferentes, esse ir e vir

gera uma relação de circularidade, denominada de círculo hermenêutico. A

problemática do fato (que é) jurídico, portanto, exige a depuração desses dois

elementos constitutivos da fenomenologia hermenêutica: fenômeno e círculo

hermenêutico.

3.3 Fenômeno e círculo hermenêutico

“A regra hermenêutica, segundo a qual devemos compreender o todo a partir do

singular e o singular a partir do todo, provém da retórica antiga e foi transferido pela

hermenêutica moderna da arte de falar para a arte de compreender” (GADAMER:

2002, p. 72). Na hermenêutica romântica, a exploração da idéia da circularidade na

interpretação se deu especialmente em Friedrich Schleiemacher, diretamente

influenciado por Friedrich Ast e Friedrich Schlegel.

Para Grondin (1999, p. 120):

A idéia do “Círculo Hermenêutico”, como ela será chamada mais tarde, obtém talvez sua primeira e ao mesmo tempo universal característica: “A lei básica de toda compreensão e conhecimento é a de encontrar, no

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particular, o espírito do todo e entender o particular através do todo.” Nesta “lei básica”, a hermenêutica posterior irá encontrar antes um problema universal, questionado, de que modo o todo pode ser obtido a partir do particular e se o pressentimento de um todo não irá antes prejudicar a concepção do particular.

A busca pelo processo – ou método – que moveu a construção da fenomenologia

hermenêutica constitui uma resposta às indagações originadas pela premissa da

circularidade. Para a outra indagação, relativa ao pressentimento equivocado de todo,

Gadamer também buscará repostas.

Em Heidegger, o círculo hermenêutico toma uma outra feição. Considerando que a

hermenêutica heideggeriana não está diretamente voltada para a compreensão de

textos, mas para a existência do dasein no mundo, o círculo hermenêutico tomará a

feição de uma hermenêutica existencial. Para ele, o círculo assume o módulo

existencial do dasein, ou seja, cada etapa de experiência vivida. A compreensão do

mundo só é possível porque o ser encontra-se velado no dasein, enquanto que o

desvelamento gera uma compreensão que se completa como um módulo existencial.

Esse módulo existencial que se fecha com a compreensão passa a integrar um mundo

de linguagem transformado e será, necessariamente, utilizado para novas

compreensões, ou seja, para a formação de outro módulo existencial e assim

sucessivamente na circularidade em espiral.

O círculo hermenêutico que estabelece a relação entre particular e todo, bem como o

círculo heideggeriano que aponta a relação da pré-compreensão e a compreensão

existencial não são, contudo, incompatíveis. Em verdade, são feições de um mesmo

círculo que tem com máxima a relação da pré-compreensão com a compreensão.

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O todo do fenômeno auxilia a compreensão de um ente, na medida em que a simples

presença desse ente auxilia a compreensão do todo. Além disso, o resultado dessa

interação que gerará a compreensão passa a ser agregado a uma pré-compreensão que

se integrará ao mundo do ser, sendo a justa medida de sua finitude e, dentro dela,

proporcionando outras compreensões. Assim, o fechamento de um módulo

existencial, perfeito pela compreensão, só foi possível por força da relação do

particular com o todo e do todo com o particular. O círculo romântico, portanto, se

encontra inserido no círculo existencial e dele é indissociável. O espiral não será

composto por uma linha retilínea, mas por uma linha também em espiral.

Será nessa interação entre círculos que perceberemos em Heidegger a distinção entre

compreensão e interpretação.

Na compreensão, a pre-sença projeta seu ser para possibilidades. Esse ser para possibilidades, constitutivo da compreensão, é um poder-ser que repercute sobre a pre-sença as possibilidades enquanto aberturas. O projetar da compreensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas. Chamamos de interpretação essa elaboração. Nela, a compreensão se apropria do que compreende. Na interpretação a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa. A interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-versa. Interpretar não é tomar conhecimento do que compreendeu, mas elaborar as possibilidades projetadas na compreensão. (HEIDEGGER: 2002, p. 204)

A interpretação, portanto, é concebida por Heidegger como uma antecipação, ou seja,

um projeto de todo. A compreensão representa o ponto fulminante e consecução

desse projeto que visava a própria compreensão. Esse projeto de todo, no entanto, na

medida em que é um antecipar-se em busca da compreensão pode se mostrar falho

diante do desvelamento das partes ao longo do processo. É nesse sentido que

Gadamer sustenta a possibilidade de revisão do projeto.

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Quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido somente se mostra porque lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto. (GADAMER: 2002, p. 75)

E completa, visando resumir o pensamento heideggeriano sobre o tema:

(...) o processo descrito por Heidegger de que cada revisão do projeto prévio pode lançar-se um outro projeto de sentido; que projetos conflitantes podem posicionar-se lado a lado na elaboração, até que se confirme de modo mais unívoco a unidade de sentido; que a interpretação começa por conceitos prévios substituídos depois por conceitos mais adequados. Em suma, esse constante projetar de novo é o que perfaz o movimento semântico de compreender e interpretar. (GADAMER: 2002, p. 75)

Diante dessa interação dos círculos, é possível constatar que o fenômeno enquanto

aquilo que se mostra só poderá ser compreendido em sua complexidade se o dasein se

antecipar na compreensão de seu todo e, partindo da interpretação de elementos

particulares, ir reformulando o projeto até o ponto fulminante da compreensão. Muito

embora o círculo existencial conceba internamente esse ir e vir ao fenômeno, a

compreensão, ainda que provisória, sempre estará presente como compreensão. Não

há espaços, portanto, entre a compreensão antecipada e a compreensão, ou seja, entre

a interpretação e a compreensão, na medida em que se constituem lados de uma

mesma moeda. Quando reformulamos projetos e, conseqüentemente, construímos

outra possibilidade de compreensão, a anterior permanecerá no desain, sendo apenas

substituída. Daí Gadamer afirmar que a subtlitas intelligendi (compreensão), que a

subtilitas explicandi (interpretação) e a subtilitas applicandi (aplicação) “perfazem o

modo de realização da compreensão” (1997, p. 406).

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Assim, não se interpreta se não for para compreender. Não se compreende sem

aplicar. Não se aplica sem compreender e não se compreende sem interpretar. Isso

explica porque Eros Roberto Grau afirma que não se interpreta o direito por

diletantismo, mas apenas para aplicá-lo ao caso concreto.

Diante dos conceitos até então trabalhados, é possível concluir que a compreensão se

dá no interprete como uma reação provocada no mundo-da-linguagem. Essa

compreensão é a compreensão de um ente que se mostra em um fenômeno. O dasein,

visando a compreensão do todo, estabelece um projeto e, a partir daí, em um ir e vir

ao fenômeno, obtém, mesmo que pela consecução de um projeto modificado no curso

do processo, a compreensão dos entes. Essa descrição representa o processo ou, como

prefere Heidegger, o método fenomenológico-hermenêutico.

Considerando a fenomenologia hermenêutica, cabe-nos a verificação de como esse

processo se dá diante de fatos que acabarão sendo compreendidos como jurídicos.

Será esse o tema do próximo tópico.

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4. Fato compreendido como jurídico

A teoria do fato jurídico é tema corrente na Teoria Geral do Direito e no Direito Civil.

A TGD por ser responsável pela analítica geral do direito e o Direito Civil por

depender de uma estrutura dogmática voltada para a classificação dos fatos jurídicos.

Ainda que haja divergências doutrinárias sobre o conceito e, principalmente, sobre a

dogmática classificatória, em linhas gerais, o tratamento conferido ao fato jurídico se

mantém dentro de uma linha epistemológica influenciada, como todos os outros

elementos da dogmática analítica, pela filosofia da consciência.

A influência desse paradigma gera uma analítica do fato dissociada do direito, como

se fosse possível pensar no mundo dos fatos (condutas humanas), pensar no mundo

jurídico (normas jurídicas) e, numa terceira etapa, em fatos jurídicos (subsunção do

fato à norma). Essa concepção se mostra coerente dentro de sua incoerência na

medida em que o direito é entificado e, como a peça de um “lego”, pode ser

manipulado pelo homem e encaixado no fato. Ou seja, direito e fato são tidos como

peças de um mesmo jogo, presentes no mesmo plano ontológico e manipulados por

um sujeito que se coloca sozinho diante dessas peças e que, reconstruindo a realidade

em sua consciência, assume o papel do “jogador transcendental”!.

Marcos Bernardes de Melo, em difundida obra sobre o fato jurídico, chega,

visivelmente influenciado pelo pensamento de Pontes de Miranda e Lourival

Vilanova, a algumas conclusões que revelam a entificação do direito e a influência da

filosofia da consciência no direito. Para ele, a norma jurídica adjetiva os fatos do

mundo, conferindo-lhes à condição de fato jurídico (2003, p. 9); somente o fato que

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esteja regulado pela norma jurídica pode ser considerado como um fato jurídico

(2003, p. 9); o mundo jurídico resulta da incidência da norma jurídica sobre os fatos,

jurisdicizando-os (2003, p. 10). Admite que os fatos jurídicos o são pela vontade

humana, ponto de partida para a filosofia da linguagem, porém, acredita que essa

vontade gera normas jurídicas que imputa o caráter jurídico aos fatos (2003, p. 10).

Considerando a fenomenologia hermenêutica, não há o mundo jurídico sem os fatos,

na medida em que os fatos sempre serão considerandos fatos de algum mundo. Para

que o direito se revele no dasein é necessário que o fato se mostre, caso contrário não

haverá nada a ser compreendido. Se o fato se mostrar, será necessariamente

compreendido; e se o for compreendido como jurídico, teremos um fato

compreendido como jurídico. Assim como poderíamos ter um fato compreendido

como doença, como acidente, como tristeza. Não há ente sem ser, do mesmo modo

em que o ser só se revela a partir do ente. O fato pertence ao mundo dos entes.

Se a última afirmação é verdadeira, sendo o fato pertencente ao mundo dos entes, ele

se revelará, necessariamente, no fenômeno. Este se mostrará com toda a sua

complexidade e, somente a partir de um projeto de todo, será possível, dentro da

relação de circularidade, compreendê-lo como jurídico. Alguém quando mata alguém,

é sempre alguém novo, velho, marido, amigo, inimigo, matando alguém novo, velho,

amigo, inimigo. É sempre um alguém com intenção de matar ou sem intenção de

matar. A morte sempre acontece em um dado local ou em outro lugar; à noite ou de

dia; no escuro ou no claro; na frente das crianças ou isolado. Sempre se usa uma arma

ou meio capaz de provocar a morte. O passarinho pode estar cantando ou não. O

cachorro pode ter latido. O latido pode ter assustado o assassino ou não. A noite ou a

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escuridão pode ter confundido o atirador. Os remédios podem ter provocado uma

redução na capacidade de reflexão do atirador. O vizinho sempre estará em casa ou

fora de casa. Assim, indaga-se: quais desses elementos podem ser compreendidos

como jurídicos? O que interferirá na compreensão da ilicitude ou da quantificação da

pena? Portanto, o fenômeno sempre se mostra complexo ao dasein, logo, somente na

circularidade hermenêutica é que se chegará à compreensão do ente, ou seja, do fato

que é jurídico.

Essa compreensão habita o dasein, logo, não poderá ser encontrada fora dele como a

peça de um jogo que se encontra pronta e acabada antes da aplicação. O fato (ente) é

jurídico (ser) somente porque foi compreendido como tal. Terá a justa medida da

compreensão e será constituído por elementos distintos em cada caso. Muitas vezes,

um passarinho, com seu vôo despretensioso, pode ser tido como determinante para a

redução da pena de um assassino, bastando para tanto, por exemplo, que esse vôo

despretensioso tivesse em sua rota o olho do atirador. Porém, pergunto: haveria no

código penal previsão para redução de pena quando passarinhos atrapalham um

atirador? Não há nada pronto antes do ente se revelar ao dasein no fenômeno.

Nenhuma verdade.

4.1 Fato hipotético, simulado e histórico

Por tudo que até então foi dito, cabe, para finalizar o estudo das implicações da

fenomenologia hermenêutica na teoria do fato jurídico, a diferenciação entre fato

hipotético, histórico e simulado. Se o direito só se desvela com o mostrar-se do ente

na clareira do dasein, o que se dá em meio ao fenômeno, como conceber a

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compreensão dos textos jurídicos e a compreensão de situações que ainda não

ocorreram?

A resposta para tais indagações exige a verificação desses três conceitos muitas vezes

confundidos. A análise dos textos jurídicos não revela o direito, mas apenas provoca a

compreensão de algo que, uma vez presente na compreensão do dasein, servirá para,

já em um outro módulo existencial, compreender um fenômeno como jurídico. Isso é

possível porque o texto que compreendemos como jurídico traz consigo a descrição

de um fato que devemos compreender como jurídico. Do texto, portanto, ainda que

haja compreensão, não temos a compreensão do direito, apenas nos preparamos para

compreendê-lo. Do texto, não extraímos verdades sobre o direito. Não sabemos onde

a norma começa e onde termina. Somos como um alfaiate portando um corte de

tecido e um esboço de traje, mas sem o modelo para tirar as medidas. Temos, assim,

apenas a descrição de um fato hipotético.

Ainda assim, só conseguimos compreender o texto jurídico porque, na prática,

acabamos construindo uma situação real, ou seja, um caso concreto. Ao ler no caput

do art. 121 do código penal a expressão “matar alguém” sempre seremos levados a

uma dada imagem. Essa imagem não se mostra como “alguém” matando “alguém”,

quer dizer, não surge como uma espécie de sombra em forma de homem matando

uma outra sombra. Sempre se mostra através daquela imagem na qual acreditamos ser

o homicídio na sua forma mais simples. Normalmente, a imagem que nos vem à

cabeça é a de um homem, normalmente alto e robusto, atirando em outro homem.

Normalmente, a arma de fogo surge na imagem provocada pela expressão contida no

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121 do CP. Ou seja, o texto jurídico tem essa função: a de criar um caso concreto

hipotético.

Outra questão poderia ser posta: para que o direito se revele no desvelamento do ser,

teremos que aguardar o fato ocorrer diante do dasein? Não. O fenômeno que provoca

a compreensão do direito não necessita ter ocorrido, basta que o próprio dasein o

simule. A simulação de um fenômeno traz a complexidade e a concretude necessárias

à revelação do ser direito. Apesar de não ter ocorrido, sugere uma situação onde a

circularidade pode se dar, onde projetos de todo podem ser estabelecidos e onde todas

as possibilidades podem ser testadas. Neste caso, somos um alfaiate com um corte de

tecido, um esboço de traje e um boneco de cera de que fornece todos as medidas do

modelo. Temos um fato simulado.

Recorremo-nos constantemente ao fato simulado sempre na tentativa de viabilizar a

compreensão jurídica e, muitas vezes, não percebemos o nosso ato. Sempre que em

uma discussão sobre a verdade jurídica a ser revelada pelo dasein nos depararmos

com uma observação do tipo: - e se a vítima estivesse desarmada? Ou também: - e se

o assassino tivesse bebido antes de cometer o crime? Sempre em situações nebulosas

nos valemos da simulação do fenômeno.

O fato histórico, por sua vez, também conterá a concretude necessária à compreensão,

visto que se mostrará como fenômeno. A diferença para o simulado é que ele, de fato,

ocorreu. Ou seja, alguém, de fato, matou alguém, por exemplo. Esse fenômeno pode

se mostrar ao dasein de duas formas: a) ou o dasein presencia o fenômeno ao vivo; b)

ou o dasein tem esse fenômeno relatado por alguém.

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Na verdade, todas as formas de compreensão do direito passa pela idéia de fenômeno

que traz consigo um caso concreto. O dispositivo de lei, muito embora seja em si

mesmo um fenômeno, remete-nos a imagem de um caso concreto. A criação de um

fenômeno concreto em nossa mente é, também, por si só, um fenômeno a ser

compreendido. O relato sobre um determinado acontecimento é fenômeno que

viabiliza a compreensão de um outro fenômeno. Desse modo, Heidegger, diante de tal

peculiaridade, chamou os fenômenos que trazem ao dasein a descrição de outro

fenômeno de fenômeno-índice. Segundo Stein (2001, p. 164):

Heidegger procura distinguir (...) o fenômeno-índice ou o puro fenômeno. O fenômeno índice pode ter quatro sentidos. Primeiro ele é o anúncio daquilo que não se manifesta. Todos os sintomas, símbolos, indicações e apresentações possuem a estrutura fundamental formal do fenômeno-índice nesse primeiro sentido. Em segundo lugar é o anúncio enquanto ele próprio é um fenômeno – aquilo que, na sua manifestação, indica o que não se manifesta. Em terceiro lugar fenômeno-índice pode ser usado para designar o sentido autentico do fenômeno, entendido como manifestação de si. Em quarto lugar, fenômeno-índice pode ter o sentido de puro fenômeno. Isto acontece quando o anuncio fenomenal, que, na manifestação de si, indica o não-manifesto, é alguma coisa que surge ou emana do não manifesto de tal maneira que o não-manifesto é pensado enquanto aquilo que é essencialmente incapaz de manifestar-se.

Além dos dispositivos de lei e do caso concreto simulado, uma outra manifestação

clássica do fenômeno-índice na fenomenologia jurídica é o processo. O processo

enquanto processo é, em si mesmo, um fenômeno. Um fenômeno que é

compreendido e que, portanto, se mostra como ente de um ser. Contudo, o fenômeno

processo é apenas um sinal de um outro fenômeno, aquele que de fato importou para

a sociedade. A instrumentalidade do processo só pode ser concebida nessa acepção,

qual seja, a de fenômeno que uma vez compreendido nos leva à compreensão de um

outro fenômeno. Jamais pode ser compreendida como um instrumento para colar as

pecinhas do lego – o nosso jogo transcendental – como se ele não encarnasse a

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produção de um novo direito. A atividade do intérprete, por mais banal que seja, é

sempre criativa pelo fato de sempre produzir algo novo. A criatividade que resulta na

compreensão significa a construção de uma nova norma; aquela que passará a integrar

o ordenamento jurídico, conferindo-lhe unidade; que se adequa exclusivamente ao

fato compreendido como jurídico porque, em si, é a sua compreensão.

5. Conclusão

Buscando sintetizar a releitura feita sobre a tradicional teoria do fato jurídico,

ressalta-se nesse tópico as principais conclusões sobre o chamado fato compreendido

como jurídico.

No segundo tópico, verificou-se as implicações da crise do projeto de modernidade na

metodologia das chamadas “ciências do espírito” e, até mesmo, nas ciências naturais.

A valorização do humano faz como que a linguagem se torne um elemento central da

metodologia de qualquer ciência, um vez que é ela o medium onde o homem está

imerso, além de representar a criação humana que não está sujeita às leis de

Lavoisier. Na linguagem, linguagem se cria e se transforma com a criação.

A preocupação com a linguagem representa no pensamento filosófico da

modernidade a chamada viragem lingüística. Esse paradigma passa a influenciar a

metodologia das ciências e sugere um modelo que confere ao direito a necessária

aproximação com o homem e, conseqüentemente, com a sociedade. A construção do

direito sobre o paradigma epistemológico da filosofia da linguagem foi analisada no

terceiro tópico. Nele, buscou-se a depuração do processo fenomenológico

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hermenêutico, traçando as bases para a análise do fato que seria compreendido como

jurídico. A fenomenologia hermenêutica representa o processo da compreensão na

medida em que nela é identificado o ente que se mostra no fenômeno e o ser que se

desvela na relação de circularidade.

O círculo hermenêutico mereceu destaque, uma vez que a aproximação do ente e o

desvelamento do ser representa a superação de um módulo existencial, ou seja, um

círculo. Essa superação se dá numa intensa relação do particular com o todo: o círculo

hermenêutico romântico.

Traçadas as bases da fenomenologia hermenêutica, passou-se à análise crítica da

teoria do fato jurídico. Considerando que o fato não se mostra ao dasein isolado, mas

necessariamente no fenômeno, será a movimentação de circularidade que determinará

a sua compreensão como jurídico. O jurídico, portanto, deixa de ser um elemento

(ente) que, por uma operação de subsunção, é agregado ao fato, transformando-o em

jurídico. O jurídico representa a linguagem que se cria na compreensão de um fato.

Não há, portanto, um fato jurídico, mas um fato que é compreendido como jurídico.

Esse fato compreendido como jurídico pode se mostrar sobre três modalidades. O fato

hipotético, provocado pelo texto tido como jurídico. O fato simulado, que constitui a

criação livre do homem indo em busca da compreensão jurídica, mas que nunca

ocorreu, sendo fruto da imaginação do dasein. O fato histórico, assim como o

simulado, mostra-se dotado da concretude necessária à compreensão assim como o

simulado, porém, diferentemente deste, o fato histórico ocorreu em algum lugar no

tempo e no espaço.

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O fato histórico compreendido como jurídico pode se mostrar em meio ao próprio

fenômeno que se revela ao dasein, mas pode também se mostrar por um fenômeno

que remete o intérprete a um outro fenômeno. A este tipo de fenômeno, Heidegger

denominou de fenômeno-índice. Na fenomenologia jurídica, a manifestação mais

própria desse tipo de fenômeno é o processo. O processo é, em si mesmo, um

fenômeno, mas que remete descritivamente o dasein a um outro fenômeno. Essa

descrição não pode ser confundida com instrumentalidade no sentido de mecanismo

que viabiliza a aplicação da norma geral ao caso concreto, uma vez que o fato trazido

(descrito) no processo gera a produção de algo novo. Algo que se cria na linguagem.

Assim, constata-se que não há um fato jurídico em si mesmo. Será jurídico aquele

fato que na tradição se mostrar como jurídico. Terá interferência jurídico-

intersubjetiva aquela conduta que o homem considerar como jurídica. Essa

consideração não se dá fora do homem por força de um outro ente identificado como

norma. Dá-se dentro do intérprete, homem inserido no medium linguagem, que

compreende o fato como jurídico, aplicando o direito e proporcionando ao unidade ao

sistema.

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