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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA Programa de Pós-Graduação de Ciências da Religião Por Marcos de Oliveira Silva POR UMA AUTÓPSIA DO SAGRADO O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS COMO PRINCÍPIO HERMENÊUTICO DE ENTENDIMENTO DE UMA POSSÍVEL TEORIA DA RELIGIÃO EM NIETZSCHE. São Paulo 2012

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

Programa de Pós-Graduação de Ciências da Religião

Por Marcos de Oliveira Silva

POR UMA AUTÓPSIA DO SAGRADO

O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS COMO PRINCÍPIO HERMENÊUTICO DE

ENTENDIMENTO DE UMA POSSÍVEL TEORIA DA RELIGIÃO EM NIETZSCHE.

São Paulo

2012

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MARCOS DE OLIVEIRA SILVA

POR UMA AUTÓPSIA DO SAGRADO

O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS COMO PRINCÍPIO HERMENÊUTICO DE

ENTENDIMENTO DE UMA POSSÍVEL TEORIA DA RELIGIÃO EM NIETZSCHE.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa

São Paulo

2012

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Ciências da Religião da

Universidade Presbiteriana Mackenzie como

requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre.

Orientador: prof. Dr. Ricardo Quadros

Gouvêa

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MARCOS DE OLIVEIRA SILVA

POR UMA AUTÓPSIA DO SAGRADO

O ANÚNCIO DA MORTE DE DEUS COMO PRINCÍPIO HERMENÊUTICO DE

ENTENDIMENTO DE UMA POSSÍVEL TEORIA DA RELIGIÃO EM NIETZSCHE.

Aprovada em __/___/___

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa

Universidade Presbiteriana Mackenzie (Orientador)

______________________________________________________

Prof. Dr. Rodrigo F. de Souza

Universidade Presbiteriana Mackenzie

______________________________________________________

Prof. Dr. Carlos Betlinski

Universidade Federal de Lavras

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Ciências da Religião

da Universidade Presbiteriana Mackenzie

como requisito parcial para obtenção do

grau de Mestre.

Orientador: prof. Dr. Ricardo Quadros

Gouvêia

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S586p Silva, Marcos de Oliveira

Por uma autopsia do sagrado: o anúncio da morte de Deus como

princípio hermenêutico de entendimento de uma possível teoria da

religião em Nietzsche / Marcos de Oliveira Silva – 2012.

224 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2012.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Quadros Gouvêa

Bibliografia: f. 217-222

1. Morte de Deus 2. Valores morais 3. Transvaloração I. Nietzsche, Friedrich Wilhelm II. Título LC BT83.5 CDD 231

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SUMÁRIO

Resumo.....................................................................................................................04

Abstract....................................................................................................................05

Introdução................................................................................................................06

Capítulo I – Para Muito Além do Ateísmo..............................................................09

1.1. O Declínio da Moral Cristã e a Verdadeira Face do Mundo...............................14

1.2.Transvaloração e Morte de Deus.........................................................................20

1.3. Metafísica Cristã Como Modelo de Degeneração Instintual...............................26

1.4. Do Ideal Ascético à Prática Ascética..................................................................37

Capítulo II – É Possível um Mundo Sem Deus?....................................................63

2.1.O Ateísmo Antropológico.....................................................................................73

2.2. Deus Continua Morto?........................................................................................93

2.3. Uma Espiritualidade Sem Deus..........................................................................99

2.4. O Mal-Estar na Teologia...................................................................................116

2.5. Os Efeitos Silenciosos da Secularização..........................................................122

Capítulo III – Uma Nova Metafísica, Demasiadamente Humana........................134

3.1. Um Profeta Sem Deus......................................................................................140

3.2. A Metafísica da Vontade de Poder...................................................................149

3.3. O Eterno Retorno na Metafísica Nietzschiana..................................................156

3.4. Uma Religiosidade Transvalorada....................................................................165

Capítulo IV – Novos Rumos Epistemológicos Para as Ciências da Religião..181

4.1. Análise Funcional em Nietzsche.......................................................................187

4.2. Análise Crítica em Nietzsche............................................................................197

4.3. A Operacionalidade da Suspeita......................................................................207

Considerações Finais............................................................................................213

Referências Bibliográficas....................................................................................217

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Resumo A presente dissertação visa analisar a estrutura hermenêutica por detrás do anúncio Nietzschiano da morte de Deus. Objetivamos examinar como esta síntese enunciativa prenunciou o nascimento de uma nova era valorativa e, a partir de tal exame, buscaremos revelar as raízes histórico-filosóficas que favoreceram a angustiante constatação da morte de Deus. Nas páginas que se seguem, além de estudarmos o fim do predomínio universal da moral religiosa no mundo ocidental, intentamos evidenciar uma possível religiosidade "não-teológica" em Nietzsche, ao fazermos isto, visamos mostrar como o filósofo alemão ressignificou a noção de "sagrado" no âmbito de sua transvaloração de todos os valores. Acreditamos que, ao contextualizar e ao mensurar razoavelmente as consequências do anúncio da morte de Deus, perceberemos que a síntese Nietzschiana vai muito além de um ateísmo vulgar. Na verdade, mais do que uma mera negação, Nietzsche sempre ambicionou a criação de uma nova maneira de interpretar o mundo e, de certa forma, isto implica no surgimento de uma nova metafísica demasiadamente humana. Em suma, ao contrário do anúncio da morte de Deus nascer de um desejo vingativo, em Nietzsche ele é apenas a constatação de que o homem contemporâneo precisa superar o declínio moral de nossa época às custas de novos valores baseados em seus interesses terrestres. Palavras chaves: Nietzsche, a morte de Deus, valores morais, transvaloração.

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Abstract

The actual dissertation aims to analyse the hermeneutic structure behind the Nietzsche‟s announcement of God‟s death. We aim to exam how this enunciative synthesis foreshadowed the birth of a new evaluative time and, from this exam, we aim to revel the historic and philosophical roots which favored the distressing finding of God‟s death. In the sequential pages, we study the ending of the universal dominance of religious morality in the Western world, and we aim to evidence the possibility of a “not theological” morality into Nietzsche‟s thinking. In doing so, we aim to show how the German philosopher “re-meant” the “holy” definition in the scope of his transvaloration of all morality values. We believe contextualizing and measuring reasonable the consequences from the announcement of God‟s death the Nietzsche‟s synthesis goes beyond a low atheism. Really, more than a simple denial, Nietzsche always aimed to create a new way to understand world and, in a certain meaning, it implies the birth of a new metaphysics “too human”. In short, the God‟s death isn‟t the birth of a vindictive desire. In Nietzsche‟s knowledge it‟s only the meaning that contemporary man needs to overcome the moral decline of our time trying new moral values based on his world interests. Keywords: Nietzsche, God‟s death, moral values, transvaloration.

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Introdução

Depois de mais de cem anos do anúncio da morte de Deus, ainda nos é

necessário discutir o que tal evento significou para o mundo moderno. Segundo o

viés interpretativo resumido neste polêmico enunciado, a própria noção de

nascimento da modernidade só é possível de ser pensada após a morte de uma

“época caduca” e, em sentido puramente nietzschiano, “Deus” era sinteticamente a

representação de tudo aquilo que devia perecer, para só então um “novo mundo”

nascer.

Em Nietzsche, o verdadeiro nascimento do mundo não é precedido pelo

nascimento mítico de um salvador, mas sim pela morte agonizante de um Deus

atacado violentamente pelos seus antigos adoradores; através desta metáfora

funesta o filósofo alemão marca a reviravolta do pensamento ocidental, com ele

aprendemos a suspeitar profundamente de nossas sagradas “certezas metafísicas”.

O filósofo alemão representou no universo filosófico uma espécie de

desbravador, alguém destinado a conquistar novas terras nunca antes alcançadas;

com Nietzsche ingressamos em uma nova fase de pensamento, semelhante ao

viajante que ao se distanciar muito de seu ponto de saída, vê-se obrigado a

continuar a caminhar sempre para frente, em busca de novos territórios, o homem

moderno não pode mas regressar ao seu passado, com o anúncio da morte de

Deus o pensador alemão conduziu-nos aos confins do nada, essa nova senda

indicada por Nietzsche representou historicamente um momento de ultrapassagem,

momento este que recorrentemente ele chamou de: Niilismo.

Porém, ao estudarmos a noção de niilismo em Nietzsche, e especialmente no

contexto histórico do final do século XIX, quando ocorreu aquilo que o filósofo

chamou de “Morte de Deus”, percebemos diversas implicações oriundas desta

“simples palavra”, muitos dos interpretes e comentadores como Martin Heidegger,

Gianni Vattimo, Gilles Deleuze, entre outros, destacaram a grande complexidade da

questão polissêmica do uso deste vocábulo no universo conceitual do pensador

alemão, muitas vezes uma ambiguidade desconcertante costuma acompanhá-lo.

No primeiro capítulo desta dissertação, pretendemos analisar os motivos reais

que levaram ao recrudescimento do niilismo, até mais do que isso, intentamos

compreender o que ocasionou o surgimento de um novo tipo de niilismo: o Reativo.

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Ainda neste capítulo destacaremos como a crítica nietzschiana estendeu-se

para além de um mero ateísmo; embora a ilusão religiosa seja usada pelo filósofo

de forma emblemática, sua crítica visa atingir todo nosso universo valorativo

ocidental, portanto, não só a religião, como também toda nossa maneira de

conceber o mundo é questionada. Analisaremos no primeiro capítulo as principais

críticas feitas ao cristianismo por Nietzsche e, ao realizarmos tal exame, logo

perceberemos a amplitude multifocal da empreitada nietzschiana.

Sua maneira ácida de tratar a religião e, entre essas, de forma toda especial o

cristianismo, é uma verdadeira desconstrução do edifício teorético da metafísica;

seu ateísmo é usado como uma “lente” focalizadora no exame meticuloso do

sagrado. Esta nova postura em relação a religião (isso incluí todos os nossos ideais

civilizatórios considerados sagrados), é considerada a marca definitiva da chamada

“modernidade”; com Nietzsche o vazio de sentido que pairava sobre a humanidade,

pôde enfim manifestar seu terrível rosto anômico.

No segundo capítulo de nossa dissertação, visamos mensurar como a “Morte

de Deus”, ou seja, o declínio de todos nossos maiores valores civilizatórios, ainda

repercute no chamado mundo “pós-moderno”; neste capítulo tentaremos entender

como num mundo laico, paradoxalmente abriu-se campo a uma certa persistência

do sagrado, ou em outros termos: se Deus está morto, procuraremos entender como

a religião ainda se sustenta, visto que sua essência foi aparentemente esvaziada.

Objetivamos neste capítulo examinar três tendências básicas oriundas

reativamente do evento simbólico chamado por Nietzsche de “Morte de Deus”: a

superação positivista pensada pelo materialismo clássico, a reinterpretação do

fenômeno religioso em termos laicos, promovida pelo materialismo humanista e a

tentativa de reconstrução teológica em termos mais adaptados ao pensamento pós-

moderno.

Para o exame das duas primeiras tendências, usaremos as perspectivas

multifacetadas de autores contemporâneos como Luc Ferry, Marcel Gauchet, Michel

Onfray, André Comte-Sponville e Richard Dawkins. No pólo contrário dos “novos

materialistas”, usaremos a “nova teologia” de autores como Paul Ricoeur, Karen

Armstrong, René Girard e Gianni Vattimo.

Ambicionamos vislumbrar a partir deste estudo comparativo, como o campo

do sagrado é pensado hoje pelas principais tendências intelectuais da pós-

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modernidade, bem como, tentaremos mensurar, quais as consequências mais

evidentes da grande crise espiritual iniciada no final do século XIX.

No terceiro capítulo da presente dissertação, visamos analisar uma possível

teoria da religião em Nietzsche, ou, para sermos mais exatos, como o filósofo

alemão reinterpretou em termos terrenos as antigas promessas e expectativas

supra-terrenais da religião. Neste momento de nosso trabalho, deverá ficar evidente

toda positividade da teoria nietzschiana, analisando essencialmente o “Zaratustra”

de Nietzsche, esperamos demonstrar que a destruição à base de marteladas, tão

bem executada pelo pensador anticristão, não visava apenas demolir o antigo, muito

mais do que isso, visava facultar o nascimento do novo. Ao contrário de aprisionar o

homem no pessimismo, a tese nietzschiana surgiu como opção filosófica positiva,

por isso, semelhante ao filósofo Heidegger, cremos que mais do que uma destruição

metafísica sem propósito, Nietzsche inaugurou uma nova vertente metafísica, porém

no lugar de um ilusório mundo supraempírico, colocou o mundo humano e sua

principal base de sustentação: a vontade de poder.

Como último capítulo de nossa dissertação, esperamos abrir espaço para

uma discussão sobre o papel da tese da morte de Deus no âmbito das ciências da

religião, com isso, tentaremos analisar as diferentes compreensões neste novo

campo de estudo, ao fazermos isso, buscaremos apontar novos rumos

epistemológicos que favoreçam o estudo científico deste instigante tema.

O objetivo direto deste último capítulo não é outro senão o de avaliar como a

tese nietzschiana favoreceu o estudo multidisciplinar do fenômeno religioso,

tentaremos demonstrar que ciências como a antropologia, a psicanálise, a

sociologia, a linguística, entre outras disciplinas mais recentes, foram beneficiadas e

influenciadas pelas polêmicas ideias do filósofo alemão.

Sabemos que os temas ora apresentados são ainda considerados polêmicos,

porém consideraremos urgente o debate mais franco de tal temática, na realidade o

estudo científico da religião no Brasil, só poderá se fixar e amadurecer, a partir de

uma autêntica redefinição do papel da religião em nosso mundo secularizado e,

acreditamos que, nas muitas possibilidades interpretativas apontadas por Nietzsche,

um novo quadro referencial torná-se disponível.

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Capítulo I – Para Muito Além do Ateísmo

"Por uma Autópsia do Sagrado: O Anúncio da Morte de Deus

como Princípio Hermenêutico de uma Possível Teoria da Religião

em Nietzsche"

Aqueles que pensam conhecer Nietzsche, segundo a faceta mais óbvia de

sua ácida gnosiologia: o ateísmo, correm o grave risco, por causa do estreitamento

monocular desta visão reducionista, de não entenderem as valiosas contribuições

oferecidas pelo seu método histórico-genealógico, ao campo multifacetado das

ciências da religião. Em sentindo real, ao estudarmos mais profundamente a vasta e

complexa obra nietzschiana, logo desenvolvemos a impressão de que seu ateísmo

é um meio e nunca um fim em si; ao contrário até deste enclausuramento ideológico

determinista, o projeto nietzschiano se constrói como algo muito maior e ambicioso,

seu viés ateísta, é, portanto, apenas um aspecto hermenêutico usado como pano de

fundo, para entender uma disposição histórica que levaria a civilização ocidental a

uma drástica alteração valorativa.

Mas afinal, o que teria levado o senso comum e, até mesmo grande parte de

nossos acadêmicos, a vincularem emblematicamente toda proposta nietzschiana a

mero ateísmo?

Provavelmente, parte deste preconceito, se deve ao fato do “anúncio da

morte de Deus” ter sido precipitadamente interpretado como uma fala direta do

próprio Nietzsche, quando na verdade, o filósofo é apenas o organizador de um

enunciado que já se fazia ouvir subterraneamente em seu tempo.

A fim de constatar como a interpretação errônea de um dos mais conhecidos

fragmentos nietzschianos, gerou um danoso truncamento interpretativo, é vital

visitarmos diretamente o famoso aforismo intitulado “o homem louco”, texto este,

onde Nietzsche expõe poeticamente o anúncio fatídico da morte de Deus. Sobre tal

acontecimento ele escreveu:

– Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus”? – e como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num

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navio? Emigrou? – gritavam e riam uns outros. (Nietzsche, 2001, p.147)

O homem louco pensado por Nietzsche lembra muito o filósofo cínico Diôgenes e, provavelmente inspirado em tal figura polêmica, Nietzsche quis evidenciar um clima de grande hipocrisia vivenciado por seus contemporâneos.

A semelhança entre os dois personagens pode ser facilmente evidenciada no

fragmento onde o primeiro doxógrafo grego, Diôgenes Laêrtios, ao comentar sobre o

filósofo cínico, escreveu: “Durante o dia Diôgenes andava com uma lanterna acesa

dizendo: “Procuro um homem!”(Diôgenes Laêrtios, 2008,160). E ainda sobre sua

maneira de clarificar a pouca disposição intelectual de seus patrícios, lemos o

seguinte comportamento do cínico: [...] certa vez Diôgenes gritou: “atenção homens‟,

e quando muita gente acorreu ele brandiu o seu bastão dizendo: “chamei homens, e

não canalhas!” (Diogênes Laêrtios, 2008, p. 160)

O questionamento filosófico feito pelo cínico Diôgenes, semelhante ao

questionamento estridente proposto pelo louco elucubrado por Nietzsche, visa uma

resposta ”Moral” em ambos os casos, porém, no segundo caso, os canalhas são

expostos superlativamente, afinal, se Diôgenes não conseguia achar nenhuma

moral nobre entre os seus, a segunda personagem nem mesmo conseguiu

encontrar o pretenso criador divino da moral.

Assim, embora os dois personagens análogos tenham um questionamento

de teor moral, a razão de tal questionamento é em certo nível, bem diferenciada. Se

Diôgenes foi capaz de revelar um grande vazio moral em seu tempo, o homem

louco revelou o próprio vazio na qual a ideia de moral se assentava.

Essa diferenciação é a tônica da sequência do famoso aforismo sobre o

anúncio da morte de Deus; não se deixando intimidar pelo evidente sarcasmo dos

apáticos frequentadores do mercado, o homem insano prosseguiu em sua missão:

O homem louco se lançou para o meio deles e transpassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, "já lhes direi. Nós o matamos – vocês e eu - somos todos seus assassinos” Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda „em cima‟ e „embaixo‟? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não

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temos que ascender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – Também os Deuses apodrecem” Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! (Nietzsche, 2007, pp. 147, 148)

Segundo a lógica interna deste conhecido aforismo, a morte de Deus

representava um momento singular na história humana. Em certo sentido, a mesma

inaugurava uma época no mundo dos homens, aliás, deste momento em diante os

homens se viram sós e desamparados no mundo. Desta forma, a morte de Deus

reclamava necessariamente o nascimento de um novo homem.

A grandeza e, ao mesmo tempo, o grande risco envolvido nesta nova

epopéia humana são descritos poeticamente na continuidade do aforismo em

questão, onde lemos:

Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuía sagrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiratórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer digno deles? Nunca houve um ato maior- e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então! (Nietzsche, 2007, p. 148)

Muito mais do que um mero e vulgar protesto ateísta, o homem louco

ambicionava ser o anunciador de um novo momento histórico vivenciado pelos

homens, sua voz perturbadora indicava um movimento simbólico de ultrapassagem;

ao falar de “uma história mais elevada que toda a história até então”, seu interesse

era enfatizar quão singular era a experiência insólita da morte de Deus; nesta

encruzilhada histórica, o homem poderia decidir ocupar positivamente a vacância da

divindade, ou negativamente, sucumbir ao vazio criado pela morte da divindade.

O aspecto negativo que surge como um epifenômeno da morte de Deus é

muito bem ilustrado pela ironia dos homens do mercado. O sorriso corrosivo de tais

fanfarrões era uma expressão imagética de um ateísmo implícito. Na verdade, a

falta de compromisso em relação à importância histórica da morte de Deus, fazia

daqueles homens os verdadeiros “loucos” da cena imaginada por Nietzsche. Bem

ao contrário de sua aparência superficial, o homem louco era expressão velada da

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nova consciência que apontava para um vazio moral deixado paulatinamente pelo

declínio religioso.

Porém, como já dissemos anteriormente, embora Nietzsche use uma

metáfora ateísta para falar da crise moral que seu tempo vivenciava, seu objetivo

não era demonstrar a fraqueza do “sentido religioso”, com a ideia da morte de Deus,

ele anunciava uma nova época em que nenhum sentido se sustentava por si, ao

questionar a razão da crença em Deus, praticamente todo céu de ideais sustentado

pela nossa civilização desabou.

Certa ruptura com o passado se deu a partir da morte de Deus e, aplicando

os princípios de seu método histórico genealógico, Nietzsche foi o primeiro filósofo

contemporâneo a perceber que o homem nunca mais seria o mesmo; uma

desconfiança crônica se implantou definitivamente em sua nova natureza mundana.

Comentando em seu trabalho Niilismo, Criação, Aniquilamento - Nietzsche e

a Filosofia dos Extremos, Araldi escreveu o seguinte sobre a postura desveladora do

filósofo alemão:

O evento decisivo da modernidade é a morte de Deus, que em sua conotação niilista, guia à ruína os valores da tradição que davam um sentido ao mundo. Para o filósofo alemão, esse tema não possui nem o significado de um enunciado metafísico sobre a existência ou não de um ser superior, nem é uma mera expressão literária ou uma figura estética. A morte de Deus é um evento longamente preparado e necessário no processo de moralização do mundo, que, por fim, ocasiona a derrocada da interpretação moral, que é assumida pelos homens modernos como perda total de sentido, abrindo um vazio em suas vidas desmundanizadas (Araldi, 2004, p.68)

Segundo o ponto de vista defendido por Araldi, o niilismo em seu aspecto

positivo, surge na obra nietzschiana como uma singular abertura à modernidade. A

metáfora sonora da morte de Deus foi um “evento longamente preparado e

necessário”, assim, a quebra de um sentido metafísico absoluto para o mundo era

um acontecimento inevitável. O mérito de Nietzsche não se apoiava portando, em

uma mera negação da religião, mas sim, na aguda percepção de que o declínio da

religião era um sintoma do declínio de nossas muitas certezas tradicionais.

A putrefação do Deus morto, no cenário histórico do niilismo do século XIX,

representava a diluição plena da moral. Com a modernidade o homem perdeu para

sempre sua ingenuidade e, nesta nova relação com o mundo, percebeu que as

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coisas não possuem valor algum em si próprias; a falta de fé no sobrenatural era um

reflexo distorcido desta nova maneira de se conceber o mundo.

Diferente das velhas cartilhas doutrinais, que ensinavam que o maior de todos

os pecados era a descrença em Deus, em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche

colocava na boca do protagonista os seguintes ensinamentos:

Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à Terra, e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças supraterrestre. São eles envenenadores, conscientemente ou não. São meros prezadores da vida, moribundos intoxicados de um cansaço da terra [...] Blasfemar contra Deus era outrora a maior das blasfêmias, mas Deus morreu [...] Agora o crime mais espantoso é blasfemar da terra e dar mais valor às estranhas do insondável do que ao sentido da terra. (Nietzsche, 2007, p.19)

Através destas belas palavras poéticas, Nietzsche diz que nesta nova época

inaugurada pela constatação da morte de Deus, a verdadeira blasfêmia não é

vociferar impropérios contra os céus, a nova e mais aviltante heresia é a revolta

contra a terra; por isso, o cansaço dos menosprezadores representa neste contexto,

um niilismo reativo onde o evento dramático na morte de Deus permanece

inconsciente, essa nova percepção acha-se abafada pela apatia dos que fingem que

ainda crêem em Deus. Tais indivíduos são “envenenadores” da vida autêntica. O

filósofo alemão Heidegger, em seu famoso comentário sobre Nietzsche, escreveu o

seguinte sobre a necessidade de positivação do niilismo deletério que rondava toda

civilização ocidental:

A destruição dos valores supremos até aqui não emerge de mera busca de uma destruição cega e de uma vã renovação. Ela emerge de uma penúria e de uma necessidade de dar ao mundo o sentido que não o degrada a uma mera passagem para um além. É preciso surgir um mundo que torne possível aquele homem que desdobra a sua essência a partir de sua própria plenitude valorativa. Para tanto, contudo, carece-se uma transição, da travessia de uma conjuntura na qual o mundo parece desprovido de valor, mas que exige ao mesmo tempo um novo valor. A travessia do estado intermediário precisa perceber esse estado como tal da maneira mais consciente possível: Para isso é necessário reconhecer a proveniência desse estado intermediário e trazer à luz a causa primeira do niilismo. É somente a partir dessa consciência no estado intermediário que emerge a vontade decisiva de sua superação” (Heidegger, 2007 pp.58-59)

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De acordo com Heidegger, a superação do ambiente de penúria que se

abateu sobre o homem, a partir da clara percepção da derrocada de nossos mais

nobres valores, só seria possível ao nos tornarmos plenamente conscientes de sua

verdadeira causa. Como é dito no texto supracitado, o niilismo, ou seja, a

“destituição dos valores supremos”, não precisa ser o fim da linha, ao contrário,

Heidegger ressaltava que o anúncio da morte de Deus em Nietzsche representava

mais uma transição de que propriamente um fim, o mundo agora desprovido de um

valor transcendental ganha novos contornos valorativos, sobrando só o homem,

neste novo cenário inicialmente lúgubre, o mesmo precisa agora se reinventar,

segundo uma lógica soberanamente humana.

Dentro desse contexto singular, tomar consciência do vazio deixado pela

morte de Deus, segundo a crítica nietzschiana, é a condição básica para

reorganização do mundo nessa nova fase histórica, afinal o próprio Nietzsche deixa

claro a amplitude nesta vacuidade moral ao levantar a questão: O que significa o

niilismo? Como resposta temos: “–Que os valores supremos desvalorizam-se. Falta

o fim; falta a resposta ao “por quê?”‟ (Nietzsche, 2008, p.29)

Segundo a lógica interna deste fragmento, com o niilismo radical pensado a

partir do século XIX, o valor teleológico dado à metafísica religiosa cessa, com isso,

o novo homem, ainda um tanto acabrunhado pela atormentadora notícia da morte

de Deus, precisa reunir forças para executar sua nova e pesada tarefa.

1.1. O Declínio da Moral Cristã e a Verdadeira Face do Mundo

Sob o título O Niilismo Europeu, Nietzsche tenta descrever sucintamente o

avanço histórico de uma nova consciência mundana e, no âmbito deste novo

cenário desprovido de essencialidade metafísica, começa seu trajeto literário

através de dois pólos epistemológicos, o primeiro aparece em tom de alerta e, o

segundo é retoricamente construído como uma oportuna pergunta: “O niilismo está

à porta: de onde nos vem esse mais inquietante de todos os hóspedes?” (Nietzsche,

2008, p.27).

Como já dissemos anteriormente, para Nietzsche a modernidade nasce

necessariamente com a dolorosa consciência da morte de Deus, sendo este

acontecimento metafórico um símbolo da derrocada de nossas velhas certezas

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metafísica que serviam até então como bússola moral; fazendo uso da bela figura

de linguagem usada pelo filósofo, o niilismo não tardaria, como um hóspede

perturbador, em logo se infiltrar no mais profundo de nossas mentes.

Explicando o uso amplo do termo niilismo em Nietzsche, Heidegger tece os

seguintes comentários esclarecedores:

Para Nietzsche [...] O nome “niilismo” significa essencialmente “mais”. Nietzsche fala do “niilismo europeu”. Ele não tem em vista, com isso, o positivismo emergente por uma volta da metade do século XIX e a sua propagação geográfica sobre a Europa; “europeu” tem aqui uma significação histórica e diz tanto quanto “ocidental”, no sentido da história ocidental. Nietzsche emprega a palavra “niilismo” como o nome para o movimento histórico por ele reconhecido pela primeira vez que já transpassava de maneira determinante os séculos precedentes e que determina o seu próximo século, um movimento cuja interpretação essencial ele concentra na sentença resumida “Deus está morto”. (Heidegger, 2007, p. 22).

Diferente de um ateísmo positivista, que coloca a ciência no lugar do Deus

morto, o termo niilismo tem uma conotação muito mais radical; mesmo a razão

científica, com todas as suas vantagens metodológicas, não poderia ser usada

como uma nova metafísica do sentido. Por isso, ao interpretar Nietzsche, o filósofo

Heidegger salienta que o termo niilismo nos textos nietzschianos implica na noção

dinâmica de “mais”, ou seja, está palavra é a denúncia de uma nova postura

existencial sempre aberta. O homem niilista é aquele que deve se habituar a um

necessário vazio de sentido, assim, o niilismo é o indicativo de um “ir-além” que não

tem compromisso com uma moldura final para existência.

Ainda neste contexto das implicações do termo niilismo em Nietzsche, em seu

valioso comentário, Heidegger continua a esclarecer o que significa teoreticamente

à fórmula Deus está morto; lemos:

Essa sentença quer dizer: O “Deus Cristão” perdeu o seu poder sobre o ente e sobre a definição do homem. O “Deus Cristão” é ao mesmo tempo a representação diretriz para o “supra-sensível” em geral e para as suas diversas interpretações, para os ideais e para as normas, para os “princípios” e as “regras”, para as “finalidades” e os “valores” que são erigidos “sobre” o ente a fim de “dar” ao ente na totalidade uma meta, uma ordem e – como se diz de maneira sucinta – um “sentido”. Niilismo é aquele processo histórico por meio do qual o domínio “supra-sensível” se torna nulo e caduco, de tal modo que o ente mesmo perca o seu valor, e o seu sentido. Niilismo é a história

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do próprio ente: uma história por meio da qual a morte do Deus Cristão vem à tona de maneira lenta, mas irremediável. (Heidegger, 2007, p.22)

Para o filósofo alemão, a constatação ateísta de que o Deus Cristão estava

morto era muito mais que um mero questionamento teológico. Na verdade, a morte

de Deus era uma síntese enunciativa que visava declarar o quanto o homem estava

distante do paradigma outrora oferecido pela religião.

Morte de Deus, neste contexto nietzschiano é sinônimo de “desorientação

moral” que o mundo vivencia como o declínio do sagrado tradicional. É por isso que

Heidegger sobre tal acabrunhamento existencial escreveu:

Se Deus morreu, enquanto fundamento supra-sensível e enquanto meta de tudo que é efetivamente real, seu mundo supra-sensível das ideias perdeu a sua força vinculativa, e sobre tudo a sua força que desperta e edifica, então nada mais permanece aqui o homem se possa agarrar, e segundo o qual se possa orientar (Heidegger, 1998, p. 251).

Como esclareceu Heidegger, a morte de Deus significa o fim do fundamento

metafísico que apontava para o “supra-sensível” como foco organizador do “sensível

terreno”, sem essa referência transcendental última, que, servia como medida para

todas as coisas, o homem agora não pode apelar para nada maior que a sua própria

capacidade valorativa.

No livro Nietzsche e a Escrita Moral, Mauro C. Simões, analisando a frase

“Deus está morto”, a partir de um viés heideggiano, contextualiza da seguinte forma,

o enunciado em questão:

A frase de Nietzsche “Deus está morto” afirma Heidegger, não deve ser tomada como uma postura pessoal, atéia [...] A morte de Deus pode ser interpretada então, como o desaparecimento da noção de além. Ela é a supressão da crença em outro mundo, transcendente ao nosso, esse dualismo constitui um traço essencial e fundamental de nossa cultura. Essa depreciação do aqui e a valorização de um alhures podem se caracterizar naquilo que Nietzsche chamava de platonismo. (Simões, 2003, pp. 64-65)

Uma intuição decisiva marca inquestionavelmente toda obra nietzschiana, a

saber, o homem moderno aprendeu a descrer de uma forma muito especial;

metodicamente deixou de buscar a razão no mundo do além, e, seguindo essa nova

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maneira de pensar a realidade, o mundo supra-sensível foi radicalmente

abandonado como o referencial maior da “verdadeira existência”.

No final de seu comentário, Simões toca em uma questão muito importante

para o entendimento de uma teoria da religião em Nietzsche. Na realidade, o

pressuposto crítico que Nietzsche adota em relação à religião só é possível de ser

entendido mais profundamente se levarmos em conta o dualismo referencial no qual

a religião sustenta-se e, de maneira especial, a religião cristã.

No pensamento nietzschiano, o termo “Deus” é quase sempre um sinônimo

de auto-engano, uma espécie de obnubilação intelectual, isso pode ser visto

claramente num fragmento de O Anticristo, onde o filósofo alemão diz:

O conceito cristão de Céus [...] Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! Deus como fórmula para toda difamação do “aquém”, para toda mentira sobre o “além”! Em Deus o nada divinizado, a vontade de nada canonizada!... (Nietzsche, 2007, p. 23)

A canonização da vontade de nada, para Nietzsche, foi o cimento oculto

usado pelo cristianismo na formatação de nossa cultura ocidental. Para ele, quando

a religião apontava para o além, como meta maior de nossa existência, isso era na

verdade um atentado vulgar contra o lado forte da vida. Portanto, em sentido

nietzschiano, Deus era apenas uma bela máscara para o nada, no fundo, outro

nome dado a tudo que é fraco e nos distancia da verdadeira vida.

Mas afinal, por que o homem, ou, em sentindo mais correto, toda a civilização

ocidental, aceitou por tanto tempo esta terrível mentira sobre um ilusório além-

mundo? É isso que Nietzsche visa responder ao analisar o ganho subterrâneo

produzido fantasisticamente, no âmbito da dualidade criada pela religião:

Que vantagens ofereceu a hipótese moral cristã?

1. Ela empresta ao homem um valor absoluto, em contrapartida à sua pequenez e contingência na torrente do devir e do passar;

2. Serve aos advogados de Deus, à medida que ele deixou ao mundo, apesar do sofrimento e do mal, o caráter de perfeição, – computada aquela “liberdade” – o mal apareceu cheio de sentido;

3. Pôs um saber sobre valores absolutos no homem e deu-lhe, por consequente, justamente conhecimento adequado do mais importante;

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4. Preveniu que o homem se desprezasse como homem, que tomasse partido contra a vida, que desesperasse do conhecer: ela foi um meio de conservação.

Insumma: A moral foi o grande antídoto contra o niilismo prático e teorético (Nietzsche, 2008, p.29)

O aspecto mais importante destacado por Nietzsche na enumeração das

vantagens produzidas pela metafísica cristã, sem dúvida nenhuma é a potente

ilusão de “permanência” das coisas, entre as tais, o próprio homem pode se ver

como um ser eterno e, a partir desta organização epistemológica, acabou por criar

um além imutável que ocultava razoavelmente o enorme buraco do eterno vir-a-ser

anômico.

Ao dividir dualisticamente o mundo, o próprio sofrimento, sempre muito

presente em nossa vivência ordinária, foi transformado em “mal” e, por meio deste

ato moralizante, pôde-se dizer que o mal só existe nesta esfera imperfeita do

mundo, afinal, se o sofrimento e, sua consequência mais próxima, o mal, eram

“efeitos morais” de um mundo sensível ilusório, logo tudo seria aplacado no mundo

perfeito do além, evidentemente, se aceitássemos a justa “liberdade” ensinada pelos

sacerdotes.

Nietzsche, em resumo, considerou a moral religiosa um antídoto usado contra

a face brutal da existência; não aceitando a sua pura naturalização, o homem

humanizou todo seu entorno; para o filósofo alemão, essa estratégia foi a única

forma de não sucumbir frente ao chamado niilismo prático.

Logicamente, com isso, Nietzsche não está justificando positivamente os

recursos fraudulentos usados pelas religiões, apenas está admitindo que, o discurso

moral arquitetado tradicionalmente, serviu a um propósito útil de conservação,

dentro de sua visão genealógica, a morte de Deus, não podia ser pensada antes do

tempo certo e propício para o surgimento do “niilismo teorético”.

Em seu livro Genealogia da Moral, o filósofo ratificando a ideia de que o ideal

metafísico da religião age como antídoto, explica a eficiência de tal recurso dizendo

que:

[...] no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui (horror ao vácuo): Ele precisa de um objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada querer. (Nietzsche, 2004, pp. 87-88)

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Embora seja uma deturpação da vida real, que se manifesta como vontade de

potência, o que Nietzsche confessa no fragmento acima, é que a vontade de nada,

sustentada às expensas do ideal ascético, que nega a realidade substancial do

mundo terreno, ainda é melhor que o vazio acachapante que revela a efemeridade

da existência humana.

O autor de Nietzsche e a Liberdade, Miguel Angel de Barrenechea, avaliando

em seu trabalho o forte efeito apaziguador do discurso ascético da religião, disse:

O sacerdote “salvador” manterá os crentes “vivos” na expectativa de uma existência após a morte. O ideal ascético, com toda a sua feição antivital, ajuda a sustentar a existência; existência exangue, de moribundos. Esse ideal faz parte das grandes potências conservadoras da vida. (Barrenecha, 2008, p. 38)

Porém, o mesmo autor ressaltou o alto valor pago por tal lenitivo:

O ônus dessa “salvação” – prolongamento de existências destruídas – será muito alto: o sacerdote se outorgará o direito de “colocar vinagre” nas feridas que ele mesmo “cura”. A manutenção das doenças será o preço que os crentes devem pagar para ter uma sobrevida. O sacerdote será um intermediário do além, um porta voz dos imperativos divinos e, por este serviço, se considerará habilitado para conduzir a vida de todos os fiéis. [...] o estudo genealógico nos levou a detectar os sentimentos de ódio e vingança que fracos têm contra a vida; sentimentos que serão aproveitados pelo sacerdote para instaurar seu poder. (Barrenechea, 2008, p.38)

Como foi muito bem dito por Barrenechea, a vontade de nada, o querer

desvirtuado do homem fraco, são sentimentos extraviados que facilitam a

instrumentalidade religiosa, em nome de Deus e dos mais divinos ideais, uma moral

do ressentimento se sustenta, ou, em outros termos, os mesmos que prometem a

“cura“, são os verdadeiros criadores da maior de todas às doenças: nossa profunda

e histórica covardia em relação à vida.

Certamente foi pensando nesta qualidade desvitalizante de certas crenças,

que Nietzsche concluiu dizendo que: “o cristianismo é a revolta de tudo o que rasteja

no chão contra aquilo que tem altura: o evangelho dos “pequenos” torna pequeno...”

(Nietzsche, 2007, p.51)

A leitura que Nietzsche faz da doutrinação religiosa, como já afirmamos

antes, extrapola em muito um questionamento restrito à ordem teológica. Quando o

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filósofo diz que o evangelho torna o homem pequeno, o evangelho em questão, não

é apenas o discurso proselitista da religião, “evangelho” significa, neste contexto,

toda a tradição judaico-cristã que deu causa à nossa civilização ocidental, assim, o

termo genérico “cristianismo” se refere a tudo aquilo que entesouramos como

“verdadeiro” e “nobre” em nossa cultura.

O anúncio da morte de Deus, dentro deste contexto Nietzschiano, representa

a falência crônica de todos os nossos maiores ideais e, em sentido sintomático, a

crise religiosa vivida desde o século XIX, é indício da exaustão plena de tudo aquilo

que se arrogava “certo” e “essencialmente verdadeiro”. Embora a fala do homem

louco de Nietzsche, seja também, um enunciado ateísta, por meio deste enunciado

metafórico Nietzsche colocou em xeque não só à essencialidade da religião, como

também, indo muito além do questionamento teológico, o filósofo questionou a

essencialidade de tudo que considerávamos “essencial” em nossa cultura.

1.2. Transvaloração e Morte de Deus

Nietzsche acreditava que sua mensagem teria uma enorme repercussão no

futuro e que o conteúdo de sua ácida doutrina, serviria como base de uma mudança

gnosiológica universal, por isso lemos: “[...] dentro em pouco devo dirigir-me à

humanidade com a mais séria exigência que jamais lhe foi colocada [...]” (Nietzsche,

1995, p.17)

Mas afinal, qual seria o núcleo desta revolucionária mensagem, que o próprio

Nietzsche considerava capaz de sacudir nossos velhos valores?

Na realidade, Nietzsche, a partir de sua genialidade, radicalizou as velhas

inquirições que perguntavam o que é “bom” ou “mau” e, indo muito além, buscou o

próprio momento de criação destas tradicionais noções díspares. Ele próprio conta

como se deu esse processo:

Já quando era um garoto de treze anos me perseguia o problema da origem do bem e do mal [...] por fortuna logo aprendi a separar o preconceito teológico do moral, e não mais busquei a origem do mal por trás do mundo. Alguma educação histórica e filológica, justamente com um inato senso seletivo em questões psicológicas, em breve transformou meu problema em outro: Sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor “bom” e “mau”? E que valor têm eles? Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento

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do homem? São indício de miséria, empobrecimento, degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se nele a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem, sua certeza, seu futuro? – para isso encontrei e arrisquei respostas diversas, diferenciei épocas, povos, hierarquias dos indivíduos, especializei meu problema, das respostas nasceram novas perguntas, indagações, suposições, probabilidades: até que finalmente eu possuía um país meu, um chão próprio, um mundo silente, o próspero, florescente, como um jardim secreto do qual ninguém suspeitasse... Oh, como somos felizes, nós, homens do conhecimento, desde que saibamos manter silêncio, por algum tempo!... (Nietzsche, 2004, pp. 9-10)

Nesta interessante descrição, o filósofo enuncia seu método histórico-

genealógico e, frente à novidade introduzida por esta profunda metodologia,

Nietzsche intenta se desprender da visão moral dualística na qual toda nossa cultura

se estriba. Fazer uma genealogia do “valor” é mais que buscar sua raiz histórica,

promovendo uma notável ultrapassagem em relação aos outros métodos existentes,

o filósofo alemão busca a raiz humana de todos os nobres ideais construídos

historicamente.

Pontuando os aspectos originais do método histórico-genealógico inventado

por Nietzsche, Vânia Dutra de Azevedo, em seu livro Nietzsche e a Dissolução da

Moral, escreveu oportunamente:

Primeiramente, pode-se dizer que bom e mau ou bom e ruim não são propriamente conceitos, mas expressões do modo de ser daqueles que avaliam. [...] Nietzsche introduz na filosofia os conceitos de sentido e de valor, promovendo com isso a exclusão de fenômenos morais e afirmando existir uma interpretação moral dos fenômenos. Ora, se não existem fenômenos morais e sim uma interpretação moral dos fenômenos, então deve haver alguém que interpreta e alguém que avalia. [...] analisar a procedência de um valor remete necessariamente às suas condições de criação, por isso a pergunta „quem? ‟ fundamental em Nietzsche, por introduzir a genealogia como procedimento norteador, que permite desvendar as perspectivas implicadas nas avaliações e, portanto, estabelecer o valor dos próprios valores. (Azevedo, 2003, p. 38)

Diferente da visão essencialista, que faz do valor uma coisa em si, Nietzsche

nos ensinou que todo valor, por mais nobre e divino que pareça ser, é sempre uma

interpretação de fenômenos que em si não trazem nenhuma valoração estrutural, ao

invés de buscar as essências das coisas, devemos aprender que buscar tais

essências já é um ato que confere sentido pelo simples movimento de busca, pois a

coisa em si, não tem nenhum sentido.

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Azevedo, no recorte a pouco apresentado, diz que Nietzsche, diferente de

tantos outros filósofos, que encaravam o conhecimento como o conjunto das idéias

humanas, muitas vezes ideias inatas, sem nenhuma mácula de historicidade, nega-

se ruidosamente a fazer esse tipo de análise. Para o filósofo alemão, toda “idéia” ou

“conceito” são epifenômenos de uma maneira específica de vida, portanto, a leitura

genealógica que fazemos de um conceito, sempre nos leva a um tipo forte ou fraco

de homem que lhe deu causa.

O valor não é uma coisa concreta como costumamos pensar, bem cedo, em

um de seus primeiros escritos, Nietzsche enfatiza isso da seguinte maneira:

Pensemos ainda, em particular na formação dos conceitos. Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qual deve seu surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente desiguais. Todo conceito nasce da igualação do não-igual [...] o que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que são, metáforas que se tornaram gastas e sem forças sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. (Nietzsche, 2005, pp. 56-57)

Neste texto fica ainda mais clara a proposta genealógica de Nietzsche, dentro

desta nova concepção metodológica, há sempre a necessidade de executarmos

uma radical desconstrução epistemológica, fazendo isso, escancara-se o caráter

mutável e impermanente das coisas, aliás, sem o filtro invisível da linguagem, as

palavras se separam das coisas e, sem esse princípio ordenador sutil, percebemos

que o “idêntico” é apenas um termo vazio.

Como revela o texto Nietzschiano, à medida que o homem foi criando um

universo sígnico estável, passou a não apenas designar as coisas, como também,

passou a acreditar que conhecia de fato as coisas, procedendo assim, acabou por

criar a ideia de verdade, pretensão epistemofílica (amor inato pelo conhecimento),

oriunda inicialmente, da naturalização ingênua de seu próprio conhecimento.

Falando sobre a enganosa concretude de nosso mundo “real”, Eugen Fink faz

o seguinte comentário:

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Para Nietzsche [...] precisamente a dita objetividade dos valores não passa de uma criação: criada pela existência, mas esquecida enquanto tal. A vida humana e estabelecimento de valores. Mas ela ignora-o quase sempre. O que a própria vida estabeleceu afigura-se-lhe como exterior, como força constringente da lei moral. Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca diante de si a própria criação como um objeto estranho dotado de todas as características mais veneráveis do ser em si. O que Nietzsche pretende fundamentalmente abolir é o dogmatismo axiológico. (Fink, 1983, p. 131)

A revolta axiológica citada por Fink é o núcleo de toda teoria nietzschiana:

“transvalorar a estrutura ficcional na qual baseia-se o conhecimento humano”, a

partir deste novo paradigma, todo saber é reduzido ao status de ilusão; uma

falsificação útil que cooperou com o ímpeto inato de conservação.

Mesmo sendo um ser naturalmente imanente, como observou Fink, o mesmo

ganhou ares de transcendência ao projetar-se artificialmente no mundo através do

conhecimento que criou, sua vontade de duração e identidade, foi razoalmente

satisfeita no âmbito desta potente ficção teleológica.

Porém, diante da idéia que ensina que todo valor é uma “ficção”, daí não

existir nenhuma verdade transcendental fora dos critérios valorativos humanos, uma

aparente aporia parece surgir como conseqüência lógica deste pressuposto: como

justificar a crítica nietzschiana em relação à religião, se o máximo que atingimos são

aparentes verdades sobre a vida?

Esta aparente contradição é facilmente superada, se entendermos que, para

Nietzsche, o verdadeiro problema em relação à religião não reside no fato de tal

constructo basear-se em ficções, mas sim, no tipo de ficção que sustenta o edifício

metafísico da religião.

Em sentido puramente sociológico, o discurso religioso é o único que

reivindica uma origem supra-terrena e, por causa desta pretensão epistemológica, é

exatamente dentro deste setor social que a ilusão de duração mais potentemente

tenta se mostrar confiável.

Através da abordagem genealógica, ao analisar as ilusões religiosas,

Nietzsche se depara com o ápice da antinaturalidade gerada reativamente pela

razão, foi isso que o levou a seguinte conclusão:

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A moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se pelo contrário, justamente contra os instintos da vida - é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e insolente, desses instintos. Quando diz que “Deus vê nos corações”, ela diz não aos mais baixos e mais elevados desejos da vida, e toma Deus como inimigo da vida... O santo no qual Deus se compraz é o castrado ideal... A vida acaba onde o “reino de Deus” começa... (Nietzsche, 2006, p. 36)

Ao afirmar que “a vida acaba onde o reino de Deus começa”, o filósofo deseja

revelar a superlatividade da negação promovida pela ilusão religiosa, segundo o seu

ponto de vista, a vivência religiosa se constrói sob uma imensa negatividade; o

religioso ideal ou o moralista é sempre um “castrado”, ou seja, torna-se “santo” ao

negar suas mais prementes necessidades instituais, só pode ter como meta o

espírito, ao negar sua óbvia materialidade.

Em sentido mais direto, para Nietzsche a religião é uma espécie de rebelião

contra a natureza, assim, o sobrenatural não é uma superação do natural, pelo

contrário, é uma degeneração dos melhores instintos, daí o motivo do seguinte

comentário:

[...] não há sentido em fabular acerca de um “outro” mundo, a menos que um instinto de calúnia, apequenamento e suspeição da vida seja poderoso em nós: nesse caso, vingamo-nos da vida com a fantasmagoria de uma vida “outra”, melhor. [...] dividir o mundo em um “verdadeiro” e um aparente”, seja à maneira do cristianismo, seja à maneira de Kant (um cristão insidioso, afinal de contas), é apenas uma sugestão da décadence – um sintoma da vida que declina... (Nietzsche, 2006, p.29)

A promessa cristã de uma vida celestial é interpretada por Nietzsche como

uma “vingança”, ao falarmos das delícias do porvir, nos contentamos ideativamente

com “fantasmagorias” e, procedendo assim, desprezamos e aviltamos tudo aquilo

que de fato existe.

A estratégia de negação do cristianismo baseia-se num vulgar dualismo,

como foi muito bem colocado por Nietzsche, o cristianismo (pelo menos, como

explicaremos a diante, o cristianismo fabricado após a morte de Jesus), conceitua

de “aparente” tudo aquilo que verdadeiramente existe no mundo e, numa

interessante inversão, lê como “verdadeiro” tudo àquilo que é ilusório.

O apego cristão às coisas do céu é um sintoma de declínio da verdadeira

vida, Nietzsche vê no doutrinal idealista da religião uma forte tendência à

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decadência, segundo seu viés interpretativo, logo o cristianismo percebeu: “[...] que

necessitava da fé na imortalidade para tirar o valor do „mundo‟ [...] que com o „além‟

se mata a vida”... (Nietzsche, 2007, p.75), E, frente a essa percepção crítica, o

filósofo alemão em tom de desabafo ironiza: “niilista e cristão: duas coisas que

rimam, e não apenas rimam...” (Nietzsche, 2007, p.75).

Mais do que uma mera rima, para Nietzsche, ser cristão é o mesmo que ser

niilista, mas não o niilismo positivo que se abre como possibilidade com a aceitação

da morte de Deus, não, um niilismo reativo que se vincula ao ódio e desprezo contra

a vida; ao atribuir ao mundo imaginário o valor de verdade, o cristão desmerece

automaticamente o valor do mundo sensível, torna-se assim, segundo a

interpretação nietzschiana, um amigo de Deus e, reativamente um inimigo do

mundo.

É exatamente dentro deste contexto que o anúncio da morte de Deus é

pensado por Nietzsche, como um momento singular da história humana, aquilo que

se achava encoberto pela bela máscara do niilismo religioso tornou-se

abruptamente visível aos homens. Araldi fez notar a importância deste

acontecimento nas seguintes palavras:

[...] a investigação genealógica da moral significa também a tentativa de caracterizar o niilismo em suas formas e em sua lógica intrínseca. A longa história da moralização surge de uma vontade que se volta contra a vida e contra si mesma, tendo como conseqüência a doença, a perda de sentido, o niilismo. [...] A claridade surge quando o niilismo se radicaliza, após o vazio deixado pela morte de Deus, por meio de um radical questionamento: ou o homem é sadio em seus instintos mais profundos e nega o mundo de suas venerações, ou ele será vitimado pelo niilismo. (Araldi, 2004, p.77).

A questão principal a ser analisada pelo homem moderno, segundo o

pensamento de Araldi, é o que ele fará diante do vazio; pode se acovardar e fingir

que nada mudou, porém, esta escolha inautêntica significaria um compromisso

velado com a doença. No entanto, outro caminho pode ser feito pelo vivente, o autor

supracitado indica que o oposto da escolha deletéria, é a escolha pela vida forte,

pela saúde de espírito, neste caso o indivíduo se nega a ficar preso, tanto ao vão

consolo da religião, como também escolhe não sucumbir passivamente a um vão

estilo de niilismo gregário. O homem sadio é aquele que mesmo sem um sentido

dado pela religião, encontra um sentido positivo para sua existência, deixar fluir os

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“instintos fortes” significa aceitar a vida como ela é, ou de outra forma, não tentar

buscar um sentindo além do próprio ato imanente de viver.

Segundo o que podemos perceber mais profundamente nas letras

nietzschianas, o projeto de transvaloração de todos os valores, embora não possa

ser reduzido a um mero ateísmo, não pode começar bem se não for pelo

pressuposto da morte de Deus, segundo a percepção do próprio Nietzsche. Certa

consciência atéia já seria o indício de um fluir normal dos instintos fortes, isso é

assumido por ele nas seguintes palavras:

[...] “Deus”, “imortalidade da alma”, “salvação”, “além”, puras noções, às quais não dediquei atenção nenhuma, tempo algum, mesmo quando criança – talvez não fosse infantil bastante para isso. – Não conheço em absoluto o ateísmo como resultado, menos ainda como acontecimento: em mim ele é óbvio ainda por instinto. Sou muito inquiridor, muito duvidoso, muito altivo para me satisfazer com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores [...] (Nietzsche, 1995, p.35)

Baseados no que foi dito pelo filósofo alemão, poderíamos dizer, que embora

o ateísmo como filosofia não seja o suficiente para que ocorra à transvaloração,

parece ser uma condição básica para que a mesma se efetive, como ele muito bem

esclareceu em suas palavras, a morte de Deus não pode gerar um impacto negativo

no sujeito inquiridor, em seu ponto de vista instintualmente ateísta, Deus não passa

de uma “resposta grosseira”, certa “indelicadeza” com a razão.

Mas afinal, se esta interpretação nietzschiana estiver certa, como pôde se

sustentar por tanto tempo uma mentira tão evidente? Ainda mais, por que, mesmo

hoje, o dualismo de certo tipo de cristianismo, parece não ter sido abandonado por

grande parte dos viventes?

Essas são as questões que tentaremos responder no próximo subtítulo.

1.3. Metafísica Cristã Como Modelo de Degeneração Instintual

Nenhuma tentativa de descrever uma possível teoria da religião em Nietzsche

estaria razoavelmente completa, sem abordar o que esse autor disse sobre as

remotas origens da moral cristã.

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Até porque, em Nietzsche os termos “cristianismo”, “cristão”, “moral cristã” ou

mesmo “Cristo”, são termos que ganham certa elasticidade literária incomum,

grande parte das vezes que tais termos são usados, representam bem mais do que

um simples apontamento histórico, no universo Nietzschiano, essas palavras são

“portas” de entrada para sistemas extremamente complexos.

Emblematicamente, o termo genérico “cristianismo”, é muitas vezes usado

em Nietzsche como sinônimo de cultura ocidental, daí o cristão muitas vezes

significar o “homem ocidental”. Isso pode ser comprovado facilmente com o seguinte

fragmento:

[...] e nós, homens do conhecimento de hoje, nós, ateus e antimetafísicos, também nós tiramos ainda nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... mas como, se precisamente isso se torna cada vez mais incrível, se nada mais se revela divino, exceto o erro, a cegueira, a mentira – se Deus mesmo se revela como nossa mais longa mentira? – neste ponto é necessário parar e refletir longamente. (Nietzsche, 2004, p. 140)

Os termos “Deus”, ”crença cristã” e mesmo a alusão feita a “Platão”,

significam a fé que depositamos, muitas vezes até de uma forma inconsciente, nas

categorias racionais de nossa cultura ocidental, mesmo duvidando das metafísicas

das variadas religiões, muitas vezes não nos apercebemos quão “metafísica” é a

nossa crença racional na “verdade”.

O próprio termo “metafísica” ganha uma conotação muito ampla nos escritos

nietzschianos, genericamente tal termo não fica restrito às comovisões religiosas,

para Nietzsche, todo elemento cultural é de certa maneira metafísico, isso é

claramente demonstrável quando o filósofo fala das qualidades “misteriosas” da

linguagem, lemos:

A linguagem pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da linguagem, isso é, da razão. [...] A “razão” na linguagem: Oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática...(Nietzsche, 2006, p.28)

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Ao usar palavras, pensamos manipular “coisas”, e, ao dar nome às mesmas,

fazemos uso da função valorativa implícita na linguagem; ao se referir ao “cru

fetichismo”, no âmbito da metafísica da linguagem, Nietzsche tenta mostrar como

levamos a sério o valor implicado nos nomes dados às coisas, no fundo, sem que

nos apercebamos, a operacionalidade linguística é a verdadeira responsável pela

crença primitiva da identidade das coisas. Talvez, por isso, tenhamos que admitir

uma impossibilidade estruturalmente humana de se relacionar com o mundo sem

nominá-lo, todo e qualquer conceito que venhamos a criar, não importa em que

cultura estejamos inseridos, sempre se sustentará na crença racional em “coisas

idênticas”.

Como já dissemos anteriormente, o grande mal não está no fato de criarmos

certas ficções para viver, e sim, no fato de que certas ficções nos impedem

exatamente de viver, pelo menos viver, no sentido mais positivo.

Evidentemente, foi pensando neste tipo de ficção mais deletéria, que

Nietzsche afirmou: ... “O conceito de „Deus‟ foi, até agora, a maior obstáculo à

existência. [...]” (Nietzsche, 2006, p.47)

Logicamente o “Deus” aqui em questão, não era o Deus morto da religião

cristã, pelo menos não se refere mais amplamente a essa figura desvitalizada, o que

o filósofo diz nas entrelinhas é que o conceito de “algo absoluto”, aplicando-se tal

crença superlativa as noções tradicionais de “verdade e razão”, se configura na

verdadeira causa do niilismo negativo.

Mas quando propriamente esta metafísica da negação começou a ser

arquitetada? Viviane Mosé, ensaiando uma resposta a essa intrigante inquirição

histórica escreveu:

[...] o niilismo [...] não é privilégio da modernidade, ele nasce juntamente com a crença nas categorias da razão, presentes na filosofia desde Sócrates. A crença nas categorias da razão é a causa do niilismo: nós medimos o valor do mundo por categorias que se referem a um mundo inventado. Quando Nietzsche se refere ao niilismo como negação da vida, ele se dirige a toda história da metafísica construída sobre esses pilares. A idéia de verdade, justificação de toda a busca racionalista, implica avaliação da vida; falar da verdade é assumir a vontade de identidade, de ser, de essência, e isto é negar o tempo em nome da eternidade, é negar a vida em nome da morte. (Mosé, 2005, p.43)

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O mundo moral, construído por filósofos e religiosos, foi pregado a toda gente

e, em praticamente todos os cantos de nosso mundo civilizado, ouviu-se o anúncio

do reluzente mundo verdadeiro da razão. A escritora e filósofa Viviane Mosé, de

certa forma dando ressonância às palavras do próprio Nietzsche, afirma

inteligentemente que uma das causas do niilismo que corrói o homem

contemporâneo tem a sua raiz no próprio pressuposto que originou nossa civilização

ocidental, a saber: “é possível através da razão encontrar a verdadeira essência das

coisas”.

Um mundo clivado surgiu em consequência desta teoria dual e, mesmo após

o acontecimento da morte de Deus, no século XIX, o “esclarecido” positivista

continuou, bem ao estilo dos velhos teólogos, a buscar desesperadamente o mundo

verdadeiro que se ilumina diante das novas luzes da razão científica. Mesmo neste

niilismo reativo, que nasce como desdobramento necessário do vazio deixado pela

morte de Deus, ainda encontramos a idéia metafísica de um “ser primordial”, uma

“coisa” irredutivelmente verdadeira em si mesma. Segundo o filósofo Nietzsche,

como bem esclareceu Viviane Mosé, nossa razão científica ocultamente ainda se

fundamenta num “outro mundo”, assim sendo, um pouco do primeiro niilismo

negativo, iniciado por Sócrates, anima silenciosamente nossa pretensa “razão

emancipadora”.

Toda negatividade que se esconde, nos porões milenares, da crença em um

mundo verdadeiro, é exposta da seguinte forma por Nietzsche:

[...] Sócrates foi um mal-entendido: Toda a moral do aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido... A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma doença, uma outra doença – e de modo algum um caminho de volta à “virtude”, à “saúde”, à “felicidade”... Ter de combater os instintos – eis a fórmula da décadence enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto. (Nietzsche, 2006, p. 22)

Diferente da visão clássica, que atribui a Sócrates o papel emancipador, uma

espécie de “salvador” que nos conduziria a senda verdadeira da “virtude”, Nietzsche

vê nele um inimigo da vida forte, ao contrário de “aperfeiçoamento”, o filósofos grego

trouxe ao mundo: “adoecimento”.

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O mundo móvel e transitório dos filósofos jônicos, bem como, as

imensuráveis fissuras dos atomistas, por onde todo vazio cósmico jorrava, foram

lentamente cedendo lugar à idéia de um mundo estável e plenamente inteligível.

É exatamente esta vontade de colocar o universo dentro de nossas

categorias racionais que Nietzsche chama de “doença”; ideativamente esta postura

melindrosa, diante do vir-a-ser, é encarada pelo ácido filósofo alemão como

verdadeira rebelião contra os instintos.

De fato, ao ensinar um de seus discípulos, chamado Eutidemo, Sócrates

revela nitidamente sua postura moralizante em relação à vida, dizendo:

– Qual é a diferença, Eutidemo, entre o homem imoderado e o animal mais estúpido? Em que se diferencia o bruto que jamais toma o bem por guia e vive apenas para o prazer? Só os moderados podem examinar o que existe de melhor em todas as coisas, distríbui-las por gênero na prática e na teoria, escolher o bem e recusar o mal.(Xenofonte, 2004, p. 254)

Subentende-se, de acordo com a lógica interna deste curto fragmento, que o

avanço racional de um indivíduo deve habilitá-lo ao autocontrole instintual. Para

Sócrates, o homem moderado, consequentemente, aquele que se sacrifica para

alcançar o autodomínio, era o único que mereceria o epíteto de “animal racional”.

É por causa deste moralismo intrinsecamente aplicado à razão, que

Nietzsche reconheceu na figura de Sócrates um dos pais ideológicos da doutrina

cristã. Afinal, o mesmo viés moralizante e contrário aos instintos mais fortes, forma a

essência da metafísica cristã. Por isso o filósofo alemão afirmou: “[...] A fé cristã é,

desde o princípio, sacrifício: Sacrifício de toda segurança do espírito – é, ao mesmo

tempo, servilismo, auto-escarnecimento, automutilação”. (Nietzsche, 2005, p.65)

Toda moral que nega a primazia do corpo é em Nietzsche automutilação,

toda leitura que fazemos do real, que considere a “alma” mais importante do que o

fluir instintual é auto-escarnecimento, no fundo, toda metafísica que não se revele,

apenas como um recurso ficcional, mas sim, como pura representação do “mundo

verdadeiro”, não passa de um servilismo.

Embora tenhamos de admitir que essa negação peremptória da vida carnal, é

mais facilmente identificável no discurso metafísico da religião, Nietzsche ao

analisar a tese socrática e sua efetivação filosófica mais plena: o Platonismo;

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indicou uma grande similitude entre o socratismo platônico e as metafísicas

religiosas.

Mais até do que Sócrates, pois não sabemos exatamente quem foi essa

figura, visto que tudo que se atribui a ele nos chegou através de seus discípulos,

Platão foi o verdadeiro sistematizador do dualismo metafísico, que posteriormente

veio a se solidificar como cristianismo.

Seu desprezo pelo corpo e, consequente valorização de um ideal

desencarnado como meta humana, é muito bem ilustrado em seu Fédon, texto este,

onde o filósofo idealista considera o copo a verdadeira fonte de todos os nossos

males.

Para Platão, a alma, o elemento racional que se achava encarcerado no

corpo, só atingiria o mundo real após a morte: “[...] enquanto tivermos corpo e nossa

alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos

desejos, isto é, a verdade”. (Platão, 2004, p.127)

Aqui neste mundo ilusório não nos relacionamos com as “coisas” verdadeiras,

só com as às sombras: “... é impossível conhecer alguma coisa pura, enquanto

temos corpo [...]” (Platão, 2004, p.128) Enfim, temos que negar nossa corporeidade

para afirmar a alma:

Enquanto estivermos nesta vida não nos aproximaremos da verdade a não ser afastando-se do corpo e tendo relação com ele apenas o estritamente necessário, sem deixar que nos atinja com as suas imundices [...] (Platão, 2004, p.128)

Interessantemente, em nome de uma alma imortal, aparentemente tendo

como objetivo real uma vontade de duração ou, de permanência da identidade, o

homem aprendeu a cultivar invertidamente uma vontade de negação. Em outras

palavras, o homem trocou a vida por uma “metáfora” e, fazendo isso, começou a

cultuar a própria morte: “[...] os verdadeiros filósofos trabalham com o objetivo de se

preparar para a morte e esta não lhes afigura horrível”. (Platão, 2004, p.129)

Somente um terrível desprezo e ódio contra vida é capaz de criar uma

metafísica que em tudo nega o homem real. Diferente de Nietzsche, que concebia o

corpo, como o resultado unitário e temporário de uma constante mutação, Platão

transcende, pelo menos imaginativamente, o desconforto da mutabilidade fisiológica

e, no âmbito desta pretensa superação, supervalorizada uma ilusória unidade

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transcendental chamada “alma”. Evidentemente, a mesma nada mais é que a

promessa sedutora de uma “eterna imobilidade”.

Comentando sobre essa grande antagonia entre o corpo e alma, no

pensamento platônico, o escritor Barrenechea tece a seguinte argumentação:

[...] o corpo é considerado uma natureza deficiente – “essa coisa má”- o que submete o homem a caprichosas emoções e sentimentos, sendo responsável pelas doenças, confusões e desorganização mental. A libertação só será possível pela ação racional da alma, que consegue reprimir esse caos corporal. O equilíbrio moral-racional prepara o homem para uma futura vida ultra-mundana, quando irá viver em harmonia, sem padecer as limitações da Terra. Platão é, assim, o precursor do “filósofo-sacerdotal” que põe a filosofia a serviço de uma moral, - a correção do homem – e, no fundo, de uma visão teológica: atingir o reino das idéias, na proximidade de Deus. (Barrenechea, 2008, p.31)

Os conceitos que servem como base de sustentação da metafísica socrático-

platônica se opõem visceralmente à vida, como foi muito bem ressaltado por

Barrenechea, essa aviltante tese acaba por se configurar como uma espécie de

“teologia filosófica” e, segundo o viés nietzschiano, foi exatamente está estrutura

teorética que embasou intelectualmente o cristianismo em sua origem.

Semelhante ao Platonismo, o Cristianismo abriga em seu núcleo certo rancor

contra a vida, para Nietzsche, as lógicas do ressentimento e do desdém, em relação

a tudo que é mundano e, portando efêmero, são os pilares ocultos de toda

edificação cristã.

O filósofo alemão viu no Deus dos cristãos a pura personificação da atrofia e

degeneração instintual, seu ponto de vista era que: “O conceito cristão de Deus -

Deus como Deus dos doentes, [...] Deus como espírito – é um dos mais corruptos

conceitos de Deus que já foi alcançado na Terra [...]” (Nietzsche, 2007, p.23). Para

ele, a idéia cristã sobre Deus era sinteticamente a própria representação do estado

doentio dos cristãos:

Onde, de alguma forma, declina a vontade de poder, há sempre um retrocesso fisiológico também, uma décadence. A divindade da décadence, mutilada em seus impulsos e virtudes mais víris, torna-se por necessidade o Deus do fisiologicamente regredidos, dos fracos. [...] Quando os pressupostos de uma vida ascendente, quando força, bravura, soberania, orgulho são retirados do conceito de Deus, quando passo a passo ele decai a símbolo de um bastão para cansados, de uma âncora de salvação para todos os que se

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afogam, quando se torna Deus-de-gente-pobre, Deus-de-pecadores, Deus-de-doentes par excellence [por exelência] [...] Talvez represente o nadir da evolução descendente dos tipos divinos. Deus degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! (Nietzsche, 2007, pp. 22-23)

A racionalidade desencarnada nascida com Sócrates, sistematizada por

Platão e popularizada pelo Cristianismo, em Nietzsche representava sempre um

sinal de doença e, em sentido mais profundo, como foi este arcabouço ético-

religioso a base de nosso projeto civilizatório, o filósofo da transvaloração acreditava

que mesmo depois da “morte de Deus”, muito dos nossos valores racionais

ocultavam os “restos mortais” do Deus Cristão.

A negatividade que se esconde atrás de termos como “verdadeiro”, “racional”,

“eterno”, entre tantos outros termos fabricados inicialmente pela moral socrático-

platônico-cristã, é encarada como um recurso de domínio que se executa sobre os

“fracos e degenerados”, Roberto Machado em seu livro sobre Nietzsche e a

Verdade, frisa muito bem esse aspecto manipulativo da moral cristã:

Desde o início, a investigação nietzschiana sobre o conhecimento não se limita ao interior da questão do conhecimento, mas o articula com um nível propriamente político ou social com o objetivo de mostrar que a oposição entre a verdade e a mentira tem uma origem moral. Articulação do conhecimento com o social que neste momento pretende sobretudo elucidar como a exigência de verdade surge da existência da coexistência pacífica entre os homens, da exigência da vida gregária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligadas. (Machado, 2002, p.38)

Em consonância com que foi dito por Machado, Nietzsche intuitivamente,

mesmo em seus primeiros escritos, sempre relacionou a questão do conhecimento

com a vida social, consequentemente, o tipo de conhecimento produzido por um

grupo social é sempre a expressão indireta de sua própria vitalidade ou, ao contrário

disso, de sua degeneração.

Por isso, Nietzsche percebeu muito cedo que quando o cristianismo tentava

“explicar” o sofrimento humano, o que verdadeiramente fazia com o homem era

condicioná-lo à própria idéia do valor expiatório do sofrimento. O filósofo italiano

Gianni Vattimo percebeu como o filósofo Nietzsche foi feliz nesta leitura sobre a

verdadeira intenção da doutrinação cristã e, sobre isso escreveu:

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No que diz respeito ao Cristianismo em particular, todos os seus dogmas se apresentam como uma “história” destinada a explicar a condição humana mediante conceitos como os de criação, pecado, pena e redenção: O homem com suas decisões aparece nessa história apenas como o último elo de uma corrente de fatos que escapam à sua iniciativa. (Vattimo, 2010, p.36)

E, ainda sobre os motivos e efeitos derivados da vontade de verdade que o

cristianismo importou da moral socrático-platônica, o mesmo escritor acrescenta:

A vontade de verdade implica o medo do devir e do movimento próprio dos homens medíocres que não sabem dirigir e dominar as coisas e concebem a felicidade como, imobilidade. Também e sobretudo a moral, enfim, é um produto do instinto de vingança [...] a moral cristã que domina nossa mentalidade é um produto dos homens inferiores que,diante da livre criatividade dos grandes homens, criam uma tábua de imperativos em que dominam as virtudes do rebanho e da passividade, procurando transformar em sinais de superioridade moral aquelas que são características de inferioridade e fraqueza. (Vattimo, 2010, p.37)

A leitura que o Vattimo faz da interpretação nietzschiana sobre a moral cristã

é muito coerente, pois, revela que Nietzsche sempre olhou para “história sagrada”

com uma refinada dose de suspeita, ou dizendo isto de outra forma, a grandeza de

conceitos como “Deus”, “vida eterna”, “mundo real”, ”espírito”, entre outros nomes

veneráveis, na visão do filósofo alemão, dependia da mediocridade e pequenez de

seus idealizadores, não da força de espírito que eles alegavam.

Todos os fatos históricos elencados pelo cristianismo são na verdade “prisões

conceituais”. Embora pareça, o desfile sincrônico de elementos que manifestam

uma “ordem divina” deve ser encarado como uma verdadeira cilada epistemológica,

o que temos aí para Nietzsche, é a formação de um paraíso para os fracos, ou como

Vattimo bem colocou em sua leitura: “a felicidade como imobilidade.” (Vattimo, 2010,

p.37)

O vazio que se esconde atrás da doutrinação cristã, é tão grande e nocivo à

vida forte, que Nietzsche, para denunciar o forte grau de alienação promovido por

esta escola de pensamento, compara o cristianismo a outra ideologia niilista: o

budismo. É o próprio Nietzsche quem explica o motivo da comparação, lemos:

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Com minha condenação do cristianismo não quero ser injusto com uma religião a ele aparentada, que pelo número de seguidores até o supera: o budismo. As duas são próximas, por serem religiões niilistas – religiões de décadence, as duas se diferenciam de modo bastante notável. [...] O budismo é mil vezes mais realista do que o cristianismo – ele carrega a herança da colocação fria e objetiva dos problemas, ele vem após séculos de contínuo movimento filosófico, o conceito de “Deus” já foi abolido quando ele surge. O Budismo é a única religião realmente positivista que a história tem a nos mostrar, até mesmo em sua teoria do conhecimento [...], ele já não fala em “combater o pecado”, assim, fazendo inteira justiça à realidade, em combater o sofrimento. Ele deixou para trás – algo que o diferencia profundamente do cristianismo – a trapaça consigo mesmo que são os conceitos morais – ele se acha, usando minha linguagem, além do bem e do mal (Nietzsche, 2007, p. 24).

Embora seja considerada por Nietzsche uma religião também niilista, por isso

estruturalmente decadente, o budismo em comparação ao cristianismo é menos

alienante, seu compromisso com certo princípio de realidade é maior; para o

pensador alemão, o fato de ter superado o conceito de Deus já representa enormes

vantagens epistemológicas.

Também lhe é estranha a noção de pecado, por isso, o budista luta contra o

sofrimento, nunca contra o pecado. Esta leitura torna o budismo uma religião

“amoral”, ela não visa convencer o adepto de uma imensurável culpa, essa

percepção o levou a escrever:

O cristianismo tem por base a rancume [o rancor] dos doentes, o instinto voltado contra os sadios, contra à saúde [...]. Eis a fórmula, in hoc signo venceu a décadence. – Deus na cruz – não se compreende ainda o terrível pensamento oculto por trás desse símbolo? – Tudo o que sofre, tudo o que está na cruz é divino....Todos nós estamos na cruz, por tanto somos divinos.... Somente nós somos divinos.... O cristianismo foi uma vitória, uma mentalidade mais nobre sucumbiu a ele – o cristianismo foi, até agora, o grande infortúnio da humanidade (Nietzsche, 2007, p.62)

Além de transformar o sofrimento em pecado, o cristianismo transformou-o na

própria essência de uma possível divinização, ou seja, só pode tornar-se divino,

aquele que aceita sofrer, da mesma maneira que o salvador sofreu.

Logicamente essa visão salvífica não pode ser considerada positiva, ao

contrário, visa pela negativação da auto-estima do fiel, torná-lo cada vez mais

passivo e, com isso, fácil de ser manipulado, segundo a que favorece a sua própria

condição interna doentia.

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Sobre a extensa estratégia de “enfraquecer para dominar”, Fernando de

Moraes Barros em sua obra a Maldição Transvalorada, pôde comentar:

[...] dizer que a civilização está genealogicamente filiada à interpretação cristã do existir significa, antes de mais nada, dizer que ela se encontra abismada nesse processo de enfraquecimento, de aplicação de um prodigioso training moral sobre o animal homem a fim de torná-lo, para utilizar a terminologia nietzschiana, paulatinamente „amansado‟”. (Barros, 2002, p.70)

A moral cristã foi praticamente a única lente interpretativa usada por nossa

civilização até o fatídico acontecimento da morte de Deus, como foi dito por Barros,

a prática genealógica proposta por Nietzsche expôs o cristianismo, no dizer do

próprio filósofo anticristão, como o “grande infortúnio da humanidade”.

No entender do filósofo alemão, o cristianismo era digno de ser

virulentamente combatido por causa de sua terrível qualidade “nadificante”,

transvalorar é antes conseguir livrar-se da vontade negativa que formou

basicamente nossa cultura ocidental, foi isso que foi dito com outras palavras por

Scarlett Marton, no texto intitulado A Morte de Deus e a Transvaloração dos Valores,

temos:

Inimigo implacável do cristianismo, Nietzsche nele encontrará um adversário que julga à sua altura. Conta inverter o sentido que ele procurou dar à existência humana; espera subvertê-lo. Pretendendo substituir o homem pelo além-do-homem, quer pôr-se como marco na história do ser humano. (Marton, 2009, p.830)

De forma simétrica, o enfraquecimento do cristianismo representa o

fortalecimento do homem, ao falar contra a moral cristã, Nietzsche se levanta contra

tudo aquilo que de pequeno existe no homem, porém tal ataque não fica restrito ao

campo intelectivo, transvalorar é “praticar” o mundo de outra maneira.

No entanto, antes de abordamos esta nova prática mundana, cabe-nos, como

último tópico deste capítulo, esclarecer que a crença niilista numa vontade de nada,

também foi amparada numa prática niilista, que Nietzsche, recorrentemente,

resolveu chamar de: ascetismo.

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1.4. Do Ideal Ascético à Prática Ascética

Até aqui temos visto que anúncio da morte de Deus é a representação

sintética de uma nova maneira de se conceber o mundo, porém, antes que

houvesse condição para esta abertura, para Nietzsche o homem manteve-se por

séculos sob o domínio de uma nociva e desvitalizante maneira de viver.

Vimos no tópico anterior que Sócrates segundo Nietzsche, representou um

marco na visão de mundo de nossa cultura ocidental. Com ele aprendemos a

supervalorizar a razão e a combater os instintos. Nesta nova tendência gnosiológica,

o filósofo alemão leu o declínio do homem forte e a consequente fixação de uma

enfraquecedora vontade de nada que idealmente foi marcada como uma nobre

“vontade de verdade”.

Na crítica do filósofo alemão, foi justamente com Sócrates que uma potente

moral de rebanho começou a se solidificar em nossa civilização, em sua ótica, este

foi o momento histórico que deu início ao declínio do vigoroso modo trágico de

pensar dos gregos, a partir daí um longo processo de amansamento formou-se

como base de surgimento de nossa cultura.

Escrevendo sobre os perigos desta moral da decadência, o filósofo alemão

teceu os seguintes comentários sobre os nocivos efeitos desta desnatural

consciência de rebanho:

– Uma moral “Altruísta”, uma moral em que o egoísmo se atrofia – é, em todas as circunstâncias, um mau indício. Isto vale para o indivíduo, isto vale especialmente para os povos. Falta o melhor, quando o egoísmo começa a faltar. Escolher instintivamente o que é prejudicial para si, ser atraído por motivos “desinteressados” é praticamente a fórmula da décadence. “não buscar sua própria vantagem” – isto é apenas a folha de parreira moral para cobrir um fato bem diferente, ou seja, fisiológico: “não sou mais capaz de encontrar minha vantagem”... desagregação dos instintos! O ser humano está no fim, quando se torna altruísta. Em lugar de dizer ingenuamente “eu não valho mais nada”, a mentira moral diz, na boca do décadent: nada tem valor – a vida não vale nada... (Nietzsche, 2006, p.83).

Uma moral que obriga o indivíduo a se posicionar como elemento secundário

no jogo perpétuo de nossos variados interesses mundanos, para Nietzsche, é uma

moral antinatural que se o põe á vida; dizer que só um “todo imaginário”, não

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importa se o chamamos de “Deus” ou “civilização”, vale como meta maior de nossas

ações, na lógica Nietzschiana é o mesmo que escolher o “nada” como valor maior

da existência.

O Altruísmo iniciado por Sócrates em nossa cultura ocidental é encarado pelo

filósofo alemão, como o momento em que a vitalidade grega começa se esvair, em

seu ponto de vista, uma verdadeira “Desagregação dos Instintos” implante-se

através desta nova maneira de se relacionar com o mundo, negar nossas naturais

inclinações egoístas, em prol de um desinteressado humanitarismo existencial, nada

mais seria que um sinal velado de decadência existencial. Afinal, a falta deste

visceral egoísmo, segundo o pensamento Nietzschiano, já é um sintoma existencial

de degeneração da espécie.

Analisando os escritos da juventude de Nietzsche, o pesquisador Alan

Sampaio, em sua obra Origem do Ocidente: as antiguidades gregas no jovem

Nietzsche, escreve o seguinte sobre a degeneração da vitalidade da Grécia arcaica:

Os “novos tempos” são decadentes, faz-se necessário retornar à Grécia para encontrar “iluminação”. O ocidente esqueceu-se das forças mais recônditas que impulsionam a cultura; é preciso regressar á origem dessa civilização para encontrá-las atuantes. [...] Nietzsche busca os vestígios da origem esquecida, encoberta pela racionalidade do homem teórico e pela religiosidade cristã. Ele pretende compreender a cultura a partir de sua forma arcaica, a cultura trágica dos gregos. A Grécia foi sempre, para ele, parâmetro de cultura e pensamento oposto aos modelos da tradição cristã. [...] há em Nietzsche uma postura arcaizante, na simpatia pela vitalidade dos gregos. (Sampaio, 2008, p. 53).

Como foi ressaltado por Sampaio, desde seus primeiros escritos Nietzsche

percebeu no movimento histórico de criação do nosso mundo ocidental uma

desvitalização dos instintos mais fortes, o ocidente, em linguagem Nietzschiana, vive

desde sua origem uma “atrofia” das forças dinâmicas que devem atuar no sujeito.

A cultura trágica dos antigos gregos obrigava os mesmos a desenvolverem

uma “consciência trágica” diante dos variados fenômenos da existência, esses

arcaicos helenos não tentavam atenuar o peso esmagador de uma existência

nuclearmente sem sentido, seus variados mitos trágicos, segundo o viés

interpretativo Nietzschiano, manifestavam o derrisório fim anômico de todo ato

humano.

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A filosofia Socrática e, posteriormente sua continuadora ideológica, o

cristianismo, colocaram fim a época luminosa da Grécia heróica, marcada pela ética

expansionista do guerreiro; segundo essa nova ordenação cultural, o homem

virtuoso não é aquele que arrisca sua vida em prol de uma meta de domínio, mas

sim aquele que busca preservá-la a todo custo e, em estado superlativo, essa ânsia

por preservação e simbolicamente tipificada pela crença consoladora da

imortalidade da alma.

O espírito forte e nobre do guerreiro foi lentamente soterrado pela vontade

escrava e covarde dos que buscavam o além como meta, para o filósofo alemão tal

mudança de direção representou a criação de uma nova moral que privilegiava a

fraqueza como destino último dos “escolhidos”, isto foi dito da seguinte forma pelo

próprio Nietzsche:

- A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginaria obtêm reparação. (Nietzsche, 2004, pp. 28-29).

Para Nietzsche a moral escrava é sempre o disfarce da “covardia”; deixando

de atuar como ser real, capaz de mudar sua história pela ação direta no mundo, o

escravo busca covardemente uma reparação póstuma no além, seu desejo de

vingança é transformado num cauteloso anseio por “verdade”, assim, se suas fracas

mãos, são incapazes de lhe mudar o destino neste mundo, resta-lhe a crença em

um destino glorioso reservado a todos os homens “bons” e “justos”.

Ainda falando sobre efeitos alienantes desta moral de escravo, Nietzsche

escreveu:

Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante, Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento; a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação. (Nietzsche, 2004, p.29).

Os valores invertidos da moral escrava são na realidade um levante contra

tudo aquilo que afirma a vida, nesta moral pautada na mediocridade de espírito,

desvalorizar a vida sensível dos instintos é um recurso que visa à suspensão da

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vontade de potência, os que lançam mãos desta valoração degenerada, para

Nietzsche, são os que reativamente buscam o “nada” como transcendência. Para

estes a negação real da vida implicará em um ilusório galardão supraempírico.

A Lógica interna desta moral escrava é o “ressentimento”, sentimento este

que revela o quão intenso é o desejo oculto por vingança; o ressentido não tendo

coragem e nem vigor para lutar pela vida, resolve esse impasse às custas de uma

fantasia prospectiva onde ele será agraciado pela sua inefável covardia e, ao

mesmo tempo, todos seus inimigos, reais e imaginários, são excluídos das bem-

aventuranças dos “pobres no espírito” (Bíblia, Mat. 5:3).

Historicamente, o filósofo alemão considerava o cristianismo uma

continuidade imediata da moral socrático-platônica e, em certo sentido, a mensagem

cristã era um aprimoramento desta moral envenenadora, não no sentido de requinte,

mais sim em seu poder de difusão, afinal, segundo Nietzsche, o cristianismo era

uma espécie de platonismo para as massas.

No entanto, para que possamos entender como o cristianismo tornou-se o

núcleo difusor dos ideais ascéticos em nosso mundo ocidental, antes precisamos

compreender as implicações ambíguas que recobrem tal termo.

Em primeiro lugar, devemos assinalar que, o cristianismo como arquitetura

hierárquica de poder, é algo muito posterior ao “Cristo” histórico e, para Nietzsche,

tal organização sacerdotal nunca foi ambicionada pela humilde personagem que

ganhou status de messias.

A figura heróica de redentor, criada posteriormente pelas forças

eclesiásticas que organizam o cristianismo, para o filósofo anticristão não passa de

uma monstruosa impostura. Ao refutar o “cristo” criado pelo alemão Ernest Renan,

em sua obra A Vida de Jesus, onde o carpinteiro é descrito como “gênio” e “herói”

(Nietzsche, 2007, p. 35), o filósofo alemão argumenta dizendo que a real imagem

aprendida nos evangelhos está bem longe destas duas tipificações, para ele, tanto a

imagem de um vigoroso herói guerreiro, como também de um gênio planificador,

totalmente cônscio de seu papel revolucionário, são imagens estranhas ao contexto

evangélico original.

Nietzsche considera tais imagens inadequadas e um tanto falseadoras da real

imagem que brota dos evangelhos, sobre isto escreveu:

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Se existe algo não evangélico, é o conceito de herói. Justamente o contrário todo pelejar, de todo sentir-se-em-luta, tornou-se aí instinto: a incapacidade de resistência torna-se aí moral (“não resista ao mal [Mateus, 5, 39] a frase mais profunda dos evangelhos, sua chave, em certo sentido), a beatitude na paz, na brandura, no não poder ser inimigo. Que significa “boa nova”? A vida verdadeira, a vida eterna foi encontrada - não é prometida, está aqui, está em vocês como vida no amor, no amor sem subtração nem exclusão, sem distância. Cada um é filho de Deus - Jesus não reivindica nada apenas para si -, como filho de Deus cada um é igual ao outro... Fazer de Jesus um herói! - E que mal-entendido é, sobretudo a palavra “gênio”! nada de nosso conceito de “gênio”, um conceito de nossa cultura, tem algum sentido no mundo em que vive Jesus. Falando com rigor do fisiólogo, caberia uma outra palavra aqui – a palavra “idiota” (Nietzsche, 2007, pp. 35-36).

Muito diferente do vigor exigido de um real herói guerreiro, para Nietzsche a

imagem de Jesus representava o oposto deste ideal, segundo o teor de suas

palavras, o carpinteiro era a materialização da “não-violência”. Como foi muito bem

indicado pelo filósofo alemão, a “não-resintência” como processo generalizado de

elevação moral é uma das principais chaves para entendermos o espírito cristão

original.

Ao dizer que as imagens de “herói” e de “gênio” não correspondiam à noção

evangélica do Jesus histórico, Nietzsche queria apontar a evidente discrepância

entre o “Jesus-homem” e o “Jesus-Deus”, criado posteriormente pelos cristãos;

segundo sua visão interpretativa foram os discípulos que acabaram por criar o

“grande mestre”, por isso, o cristianismo, em seu surgimento, dependeu mais de

uma imagem criada “sob encomenda” do que, das reais qualidades do aclamado

redentor.

Para Nietzsche, diferente de um poderoso “rei-guerreiro” como era esperado

pela maioria de seus contemporâneos, Jesus tinha um comportamento brando e

altamente infantilizado; não acreditava no poder da “espada”, mas sim da

capacidade singular e transformadora do amor.

É por causa deste tipo pueril de personalidade que Nietzsche aplica o epíteto

de “idiota” a Jesus. Embora tal termo tenha entre nós uma conotação pejorativa e,

em certos contextos, seja até mesma uma maneira agressiva de se referir a uma

pessoa, no contexto nietzschiano esta palavra parece ser um sinônimo de “ingênuo”,

um sujeito sem habilidade política para lidar com os problemas da vida prática. Foi

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isto que Fernando de Moraes Barros, ao tratar deste polêmico termo também

conclui:

Longe de encerrar um sentido notoriamente agressivo, que pretende denotar um indivíduo lento, desprovido de atenção, sem iniciativa e imaginação, a palavra “idiota” quer atestar o caráter propriamente “extra-social” do tipo questão. Para Nietzsche, trata-se de mostrar que Jesus vivia apenas em unidade consigo mesmo e que o simbolismo em torno do qual ele orbitava estava, inevitavelmente, à margem de todo requinte político, artístico ou cientifico...

E, ainda ocupado em contextualizar o uso do termo no universo nietzschiano,

numa nota de rodapé, o autor supracitado fala da forte influência que os escritos do

autor russo Dostoievski tiveram sobre o filósofo alemão e, fazendo este

apontamento literário, levanta uma interessante e razoável hipótese:

... apesar de o autor de O Anticristo não mencionar explicitamente o romance O Idiota, é inegável a afinidade de tal obra com a reconstituição do tipo em questão. Pode-se dizer, inclusive, e sem presumir demais, que boa parte da “reverência crítica” demonstrada pela figura de Jesus advém daquilo que Nietzsche “aprendeu” com Dostoievski. Com efeito, quando se tem diante dos olhos a preciosa exposição em Nietzsche faz Jesus e a singular caracterização feita pelo escritor russo do príncipe Míchkin, personagem que percorre e dá forma á trama de O Idiota, não é muito difícil perceber as compatibilidades tipológicas e as eminentes afinidades entre ambos. O príncipe fundamentalmente incapaz de compreender e adquirir domínio sobre as vicissitudes que o circundavam, já que “ora sua faculdade de observação parecia super-aguda, ora tornava-se incrivelmente distraída” (Dostoievski, Fiódor. O idiota.Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: nova Aguilar, 1995, p. 664), parece, pois fornecer o exemplo mesmo de “idiota” que Nietzsche atribui ao tipo psicológico do redentor. (Barros, 2002, pp. 64-65).

Assim, bem ao modelo do personagem de Dostoievski, o príncipe Michkin,

Jesus seria um indivíduo muito bem intencionado, porém, um tanto ingênuo. Alguns

fragmentos nietzschianos parecem apoiar a hipótese defendida por Barros. Ainda

em seu O Anticristo, Nietzsche falando sobre as contradições históricas no

cristianismo escreveu:

... Já a palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo, houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz. O “evangelho” morreu na cruz. O que desde então se chamou de “evangelho” já era o oposto daquilo que ele viveu: uma “má nova”, um disangelho. (Nietzsche, 2007, p. 45).

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Para Nietzsche, a palavra cristianismo nada tinha haver com a prática cristã

ensinada por Jesus, aliás, essa prática após a morte do pretenso fundador do

cristianismo tornou-se pura “doutrina” ao invés de uma maneira de viver o mundo, o

cristão criou um mundo a parte pra poder viver.

Certamente era essa aviltante mudança de atitude que Nietzsche queria

demonstrar quando descreveu a postura original de Jesus:

Esse “portador de boa nova” morreu como viveu, como ensinou – não para “redimir os homens”, mas para mostrar como se deve viver. A prática foi o que ele deixou para humanidade: seu comportamento ante os juízes, antes os esbirros, ante os acusadores e todo tipo de calúnia e escárnio - seu comportamento na cruz. Ele não resiste, não defende seu direito, não dá um passo para evitar o pior, mais ainda, ele provoca o pior... E ele pede, ele sofre, ele ama com aqueles, naqueles que fazem mal [...] Não defender-se, não encolerizar-se, não atribuir responsabilidade... Mas tampouco resistir ao mal – amá-lo... (Nietzsche, 2002, p. 42)

Diferente de um ávido doutrinador, segundo a interpretação que Nietzsche faz

do Jesus histórico ele era a personificação de uma atitude prática em relação à vida.

O Jesus histórico não estava interessado em anunciar as “delícias” do “além”; para

Nietzsche o mesmo queria introduzir uma prática que visava sempre o “agora”, não

a vida eterna, mas sim a vida intensamente vivida com amor no “hoje” era a real

mensagem ambicionada pelo ingênuo carpinteiro.

De certa maneira esta interpretação nietzschiana da figura de Jesus, nega

originalmente o dualismo platônico que posteriormente seria inserido no

cristianismo, por isso, a ruidosa antagonia entre corpo e alma, ou entre o espírito e a

carne, são noções deturpadas do verdadeiro empenho prático do Jesus histórico.

A descrição que Nietzsche faz de Jesus, o coloca como um ser de forte

posicionamento amoral, ele não buscava gerar o amor em seus ouvintes às custas

do medo de pecar, o filósofo alemão recorrentemente apela ao lado não ressentido

da mensagem de Jesus, o que o simples carpinteiro queria com sua ênfase na idéia

do amor, era ensinar as pessoas serem honestas existencialmente como as

crianças.

O filósofo alemão reconheceu o “arrebatador encanto” desta singela

mensagem originalmente vivenciada da prática de vida de Jesus, isso fez com que

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ele descrevesse paradoxalmente esse sedutor mensageiro de boas novas como

uma “mistura de sublime, enfermo e infantil” (Nietzsche, 2007, p. 38)

Aquilo que existia de “enfermo e infantil” na personalidade de Jesus, o que

corresponde ao idiotismo infantil do príncipe Michkin de Dostoievski, para Nietzsche

foi verdadeira causa da morte do “salvador”. Sua mensagem apelava para uma

superação visceral das variadas contradições humanas, porém, tal superação se

daria pelo primado da não resistência, sem luta, só às expensas do amor.

Para Nietzsche, esta ideia de um mundo possível de ser conquistado sem

violência é a essência da mensagem original de Jesus, por isso ele escreveu:

“‟A boa nova‟ é justamente que não mais existem oposições; o reino do céu pertence às crianças; a fé que aí se exprime não é a fé conquistada - ela está aí, existe desde o começo, é como que o infantilismo recuado para o plano espiritual.” (Nietzsche, 2007, p. 38)

Um reino além do bem e no mal era essa a nova paisagem vislumbrada a

partir do exemplo do próprio Jesus, um lugar onde não os “opostos”, mais sim a

harmonia primaveril da infância perdida no núcleo de nosso ser é a regência maior

da nova vida.

Nietzsche reconhece algo de grande e nobre nesta intenção de Jesus, no

entanto, explica que o motivo da nobre altivez de Jesus é ao mesmo tempo o real

motivo de sua mais vil franqueza. Isso foi dito da seguinte forma por Nietzsche:

[...] seria possível com alguma tolerância de expressão, chamar Jesus um “espírito livre” - ele não faz caso do que é fixo; a palavra mata tudo que é fixo mata. O conceito, a experiência “vida”, no único modo como ele a conhece, nele se opõe a toda espécie de palavra, fórmula, dogma fé, lei. Ele fala apenas do que é mais intimo; “vida”, “verdade”, luz é sua palavra para o que é mais intimo – todo o resto, a realidade inteira, toda natureza, a própria linguagem, tem para ele apenas o valor de um signo, de uma metáfora. [...] um tal simbolismo par excellence está fora de toda religião, de todos os conceitos do culto, toda historia, toda ciência natural, toda experiência do mundo, todos os conhecimentos, toda política, toda psicologia, todos os livros, toda arte – seu “saber” é justamente a pura tolice quanto ao fato de que algo assim existe. (Nietzsche, 2007, p.38).

Como “espírito livre” Jesus era avesso a todo tipo de “esquema”, não era

homem de ficar preso a um “sistema”, como uma criança buscava constantemente o

“novo”. Em sentido nietzschiano, Jesus era um redentor marginal, estava sempre

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fora do padrão admitido como “oficial” e, foi exatamente esta postura “oficiosa” que

começou a incomodar politicamente seus contemporâneos.

Por causa de sua imaturidade Jesus não conseguiu mensurar o alcance de

sua mensagem e, sua prática de vida, pautada na tese da não-resistência, logo

chamou a atenção do poder constitucional. Nenhum sistema legal pode assumir

para si a regra geral de uma não-violência, afinal, a própria existência de leis já

pressupõe violência em forma de sanções e castigos. Por isso, aquele que pratica a

não-resistência e prega o desapego em relação ao mundo constitucional, torna-se

automaticamente um inimigo da ordem dominante; na leitura que Nietzsche faz de

Jesus, foi esta postura pouco prudente que levou o carpinteiro a sua morte

prematura.

Sobre a imaturidade de Jesus, Nietzsche faz seu Zaratustra tecer o seguinte

comentário:

Na verdade, morreu demasiado cedo aquele hebreu a quem honram os pregadores da morte lenta, e para muitos foi uma fatalidade que morresse tão cedo.

Esse Jesus hebreu não conhecia nada mais que as lágrimas e a tristeza do hebreu, e o ódio dos bons e dos justos; e assim lhe acometeu o desejo da morte.

Por que não permaneceu no deserto, longe dos bons e dos justos! Talvez tivesse aprendido viver e a amar a terra, e também o riso!

Crede-me, meus irmãos! Morreu muito cedo; se tivesse se retratado de sua doutrina teria vivido até minha idade! Mas era bastante nobre pra retratar-se! (Nietzsche, 2007, p. 105).

Segundo o teor das palavras de Zaratustra, Jesus deveria ter permanecido

um tempo maior no “deserto”; ou seja, sua postura anti-institucional encolerizava

seus futuros algozes legalistas, por isso sua morte não foi uma fatalidade, para

Nietzsche Jesus de certa forma provocou o seu triste destino.

Ainda falando sobre o incômodo que Jesus causou à aqueles que

dominavam, Nietzsche escreveu:

Foi uma revolta contra “os justos e bons”, contra “os santos de Israel”, contra hierarquia da sociedade - não contra a sua corrupção, mas contra a casta, o privilégio, a ordem, a fórmula; foi a descrença nos “homens mais elevados”, o não pronunciado contra tudo que era sacerdote e teólogo. [...] Foi um criminoso político, na medida em que criminosos políticos eram possíveis numa comunidade absurdamente apolítica. Isso o levou á cruz: a prova disso é a

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inscrição da cruz. Ele morreu por sua culpa – falta qualquer razão para dizer, por mais que tenha dito, que ele morreu pela culpa dos outros.– (Nietzsche, 2007, pp. 35-55)

Semelhante à fala do Zaratustra que enfocou o erro estratégico cometido por

Jesus ao se aproximar demais dos “bons e justos”, no fragmento retirado de O

Anticristo, Nietzsche volta a destacar como postura anti-sistêmica do jovem hebreu

foi acolhida perturbadoramente pelos seus contemporâneos.

Numa sociedade em que líderes religiosos e políticos exerciam um controle

tirânico sobre as massas, o posicionamento de não-resistência ou não-violência

adotado por Jesus tornou-se marca de uma desconcertante contradição; nada

poderia incomodar mais os controladores políticos do que uma prática de sua vida

apolítica, assim sendo, a “inocência” do hebreu não poderia passar impune, ele

acabou por morrer exatamente por ser o messias mais anti-político daqueles

conturbados tempos.

Quando Nietzsche diz que Jesus representou uma “revolta contra os santos

de Israel”, o filósofo alemão se referia a uma revolta contra um estilo de vida

parasitário desenvolvido por uma aristocracia sacerdotal; a pregação ácida e

descomprometida do carpinteiro, atentava contra o status dos “homens mais

elevados”.

Na perspectiva de Nietzsche, Jesus foi um sujeito até bem intencionado, ao

meditar em alguns dos fragmentos nietzschianos, onde a figura de Jesus tem certa

relevância, logo percebemos que o filósofo anticristão não tinha como meta de seus

ataques o “Cristo”, mas sim o “cristianismo”. A única “culpa” creditada à Jesus por

Nietzsche, era à fraqueza de seu infantilismo que o impedia de refletir sobre a

própria essência revolucionária de sua prática de vida. Jesus, na visão de

Nietzsche, esteve muito perto de promover uma transvaloração, conseguiu até ir

além do “bem e do mal”, porém, lhe faltava certa virilidade guerreira, e por causa de

sua crença excessiva no amor, acabou morrendo.

Como já dissemos anteriormente, a prática ressentida de um ideal asceta

divulga-se como “cristianismo” só após a morte de seu pretenso fundador, no

entanto, para Nietzsche, o verdadeiro idealizador do cristianismo não foi o ingênuo

hebreu que morreu condenado na cruz; o filósofo alemão acreditava que outro judeu

era o responsável pela arquitetura póstuma do cristianismo: o apóstolo Paulo.

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Nietzsche enxergou na imagem de Paulo a plena realização de uma moral

de escravos que já vinha sendo cultivada pelos judeus; segundo o ponto de vista do

filósofo alemão, Paulo representou o triunfo de uma aristocracia sacerdotal que

negava a imanência e prescrevia o transcendente como caminho da salvação.

Os judeus, na interpretação que Nietzsche faz da história posterior à morte de

Jesus, se apropriaram habilmente da imagem do antigo inimigo crucificado para

promover uma moral pautada na culpa e na resignação, podemos sentir o teor desta

leitura histórica, nas seguintes palavras de Nietzsche:

Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo de amor, esse “redentor” portador da vitória e da bem-aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores - não era ele a sedução e, sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa para justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal? Não teria Israel, a derradeira meta de sua sublime ânsia de vingança? [...] o fato de que Israel mesmo tivesse de negar e pregar na cruz o autêntico instrumento de sua vingança, ante o mundo inteiro, como um inimigo mortal, para que o “mundo inteiro”, ou seja, todos os adversários de Israel, pudesse despreocupadamente morder tal isca? E porventura seria possível, usando-se todo o refinamento do espírito, conceber uma isca mais perigosa? (Nietzsche, 2004, p. 27).

Um Jesus não mais combatido, mas sim assimilado, um Jesus não mais vivo,

mas sim morto e “ressuscitado” como ideal de uma vida espiritual. Para Nietzsche

este Jesus “refabricado” se transformou numa excelente arma contra a vida, em

nome do crucificado foi possível uma expansão sem igual da moral de escravos.

Mas afinal, para não perdermos o foco de nossa pesquisa, qual mesmo é a

essência desta “moral de escravos”? Se apegar a tudo que é fraco e decadente.

O filósofo genealogista falando da moral sacerdotal judaica, explica como foi

possível aos sacerdotes superarem os guerreiros:

Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito - comparado ao espírito da vingança sacerdotal, todo espírito restante empalidece. [...] nada do que na terra fez contra “os nobres”, “os poderosos”, “os senhores”, “os donos do poder”, é remotamente comparável ao que os judeus contra eles fizeram; os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e conquistadores apenas através de uma radical transvaloração dos valores deles, ou seja, por um ato da mais espiritual vingança. (Nietzsche, 2004, pp. 25-26)

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A vingança sacerdotal não é promovida pela “força”, ao contrário disso,

“transvalorar” os valores aristocráticos, ou seja, invertê-los em valores hostis à ação

é a essência do poder sacerdotal; poder este que só se realiza plenamente sobre as

bases da impotência.

Escrevendo ainda sobre a estrutura da inversão sacerdotal promovida

singularmente pelos judeus, Nietzsche explicou:

Assim convinha a um povo sacerdotal, o povo da mais estranhada sede de vingança sacerdotal. Foram os judeus que, com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocráticos (bom=nobre=poderoso=belo=feliz=caro dos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a esta inversão, a saber, os miseráveis somente são bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança - mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados! [...] com os judeus principia a revolta dos escravos na moral: aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história, e que hoje perdemos de vista porque - foi vitoriosa... (Nietzsche, 2004, p. 26).

Neste interessante é esclarecedor fragmento de sua genealogia da moral,

Nietzsche indica que ao longo da história humana, dois tipos morais sempre

estiveram em combate: uma moral afirmativa que promana dos senhores e, sua

inversão imediata, uma moral negativa gerada pelos escravos, este segundo tipo

visa preservar os valores do rebanho; as considerações nietzschianas acerca dessa

moral dos fracos quase sempre evidenciam as muitas estratégias usadas pelos

dominados para enfraquecer e degenerar a essência nobre da moral dos

dominadores.

A estratégia principal usada pelos escravos é a inversão de valores, no

âmbito desta moral degenerada a fraqueza e a covardia são interpretadas como

virtudes, e, ao efetuar essa inversão, tudo aquilo que é verdadeiramente “forte” é

interpretado como perigoso ao espírito; nessa nova disposição moral o escravo

predomina sobre o senhor fazendo-o se sentir culpado pelo uso de seu poder.

Não devemos entender o poder do forte como sinônimo de “crueldade”, bem

ao contrário disto, explicando a diferença entre o tipo nobre e o degenerado,

Nietzsche, em sua obra “Além do Bem e do Mal” diz que a crueldade nasce daquele

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que abdica do poder e usa a fraqueza como arma, lemos isso nas seguintes

palavras:

O homem de tipo nobre sente-se como determinador de valores, não necessita que aprovem, pensa que “o que é prejudicial para mim, é prejudicial em si”, sabe que é o único que confere honra às coisas, que cria valores. Honra tudo o que conhece em si – semelhante moral é autoglorificação. Em primeiro plano está sensação de plenitude, de poder que quer transbordar, a felicidade de uma forte tensão, a consciência de uma riqueza que gostaria de dar e partilhar – também o homem nobre ajuda o infeliz, mas não, ou quase não, por compaixão, mas por um impulso gerado pelo excesso de poder. (Nietzsche, 2006, p. 216).

O nobre é aquele que coopera para expansão da vida, cria valores a partir de

sua própria potência, por isso sua vivência é soberana, a imediatez de suas

experiências regula seu comportamento diante da vida. Não precisa se sentir

culpado para ajudar alguém necessitado de seu amparo, sua ajuda não vem da

“compaixão”, mas sim, da superabundância de seus recursos internos.

O oposto nesta tendência expansiva e positiva encontrar-se materializada na

postura vingativa do escravo, sobre tal estilo de vida Nietzsche escreveu:

O olhar escravo é desfavorável às virtudes do poderoso: possui ceticismo e desconfiança, tem uma sutil desconfiança contra tudo o que aquele honra como “bom” –, gostaria de se convencer de que a própria felicidade não é autêntica nele. Inversamente, salientam-se e inundam-se de luz as qualidades que servem para aliviar a vida dos que sofrem; aqui honras são prestadas à compaixão, à mão obsequiosa e auxiliadora, ao bom coração, à paciência, à aplicação, à humildade, à amabilidade, pois são aqui as propriedades mais úteis e quase os únicos meios para suportar a pressão da existência. (Nietzsche, 2005, p. 218).

Para o filósofo alemão, o escravo “para suportar a pressão da existência” usa

mecanismo de defesa onde a realidade deve acomodar-se às suas exigências

degeneradas, o “bom” é sempre um sinônimo de “contido”, a leitura prudente que o

escravo faz da força do senhor, segundo o viés nietzschiano, é sempre uma

reformulação instrumental que visa amansar o ímpeto selvagem de nossa mais

íntima vontade de poder.

Escrevendo sobre estratégia interpretativa dos escravos, Leon Kossovitch em

sua obra “signos e poderes em Nietzsche”, fez a seguinte apreciação oportuna:

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A força do escravo está na sua capacidade de produzir imagens. Imagens invertida: o produto do ressentimento toma de empréstimo a auto-interpretação do senhor para, negando-a, convertê-la numa afirmação imaginária de si próprio. Mas isso não é tudo: para além deste procedimento, o escravo movimenta a imagem para voltá-la contra a dominação dos senhores. (Kossovitch, 2004, p. 61).

Como foi dito por Kossovitch toda base de domínio do escravo reside na

sustentação de uma “imagem invertida”, ao negar a força do senhor como uma

coisa essencialmente “ruim” o forte é reinterpretado com alguém “ruim”, já o fraco

após execução desta transformação no contrário, passa a ocupar o lugar do “bom”.

Quando esta imagem criada deformadamente pelos escravos é internalizada

pelos antigos senhores, cria-se a partir disto um potente meio de dominação, porém,

ao contrário desta dominação buscar sua realização plena na força, sua

manutenção dependerá cada vez mais da fraqueza crônica de seus subjugados.

Descrevendo ainda como tal moral de escravos justifica-se pela inversão

valorativa, Nietzsche escreveu:

A moral de escravos é essencialmente uma moral da utilidade. Eis o foco da gênese dessa célebre oposição “bom” e o “mau”: no mau sente-se o poder é a ameaça, uma certa intimidação, sutileza e força que o desprezo não deixa surgir. Segundo a moral de escravos, portanto, o “mau” provoca medo; segundo a moral de senhores é precisamente o “bom” que provoca e quer provocar medo, ao passo que o homem “mau” é sentido como desprezível. A oposição atinge o auge quando, de acordo com a lógica da moral de escravos, um vestígio de desprezo atinge também o “bom” dessa moral – desprezo que pode ser tênue e benévolo, porque o “bom”, segundo o modo de pensar do escravo, tem de ser, em todo caso, o homem inofensivo – é simples, fácil de enganar, um pouco estúpido talvez, un Bonhomme. (Nietzsche, 2005, pp. 218-219).

O chamado “bom homem” da moral de escravos é o sujeito ajustado e

amansado cuidadosamente pela lógica dos fracos, para Nietzsche o termo “bom” é

ressignificado como sinônimo de “inofensivo”, ou seja, só pode ser bom aquele

despreza a selvageria da “força” e, fazendo isso, abraça a fraqueza como o único

modo de vida capaz de preservá-lo.

O ideal sacerdotal que gera e sustenta ao mesmo tempo a moral de

escravos, opera a partir da interpretação invertida da figura do nobre; a disposição

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valorativa desta moral degenerada e, ao mesmo tempo degeneradora, age como um

corpus ideológico capaz de fazer a força do senhor inverter-se contra ele próprio,

segundo Nietzsche, esta inversão é plenamente efetiva quando um forte sentimento

de culpa passa a forçar o antigo senhor à desprezar sua antiga condição de

domínio.

Assim, utilitariamente é necessário para sustentação da moral de escravos a

criação de uma estagnante “consciente de culpa”, ou como Nietzsche muitas vezes

se refere: “uma má consciência”.

De acordo com o filósofo alemão, os judeus, por serem um povo sacerdotal

por excelência, se especializaram na criação desta má consciência usada

instrumentalmente contra os fortes e, é exatamente nesta linhagem de homens,

preparados para dominarem pela fraqueza transvalorada em ideal, que, Paulo,

“apóstolo” tardio de Jesus, insere-se como um dos mais hábeis arquitetos da “má

consciência”.

Mas afinal, quais as condições históricas que favoreceram o ingresso de

Paulo nas fileiras dos discípulos do crucificado?

Nietzsche, tentando oferecer um cronograma que possibilite entender como

certos eventos que se seguiram a morte de Jesus, favoreceram o aparecimento

institucionalizado do cristianismo escreveu:

– O destino do evangelho foi decidido com a morte – foi pendurado na “cruz”... Somente a morte, essa morte inesperada, ignóbil, somente a cruz, geralmente reservada para a canaille [canalha] – somente esse horrível paradoxo pôs os discípulos ante o verdadeiro

enigma: “quem foi esse? O que foi isso? – O sentimento abalado e

profundamente ofendido, a suspeita de que tal morte poderia ser a refutação de sua causa, a terrível interrogação “por que justamente assim?”– é um estado que se compreende muito bem. (Nietzsche, 2007, pp. 46-47)

Após a morte de Jesus uma terrível vacuidade começou a se espalhar entre

os discípulos, como foi dito por Nietzsche no fragmento supracitado, as muitas

interrogações não cessavam e um enorme abismo parecia tragar as antigas

certezas de outrora.

Afinal, qual o “sentido” para aquela terrível morte de cruz? Era esta

persistente inquirição que todo desamparado discípulo se fazia e, foi sobre os

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pilares lançados em forma de respostas que o edifício institucional do cristianismo

se ergueu.

Nietzsche explica como a morte do carpinteiro tomou ares de teleologia na

mente dos discípulos, sobre isso lemos:

Tudo aí tinha de ser necessário, ter sentido, razão, suprema razão; o amor de um discípulo não conhece acaso. Apenas então o abismo se abriu: “quem matou? Quem era seu inimigo natural?” – essa questão irrompeu como um raio. Resposta: o judaísmo dominante, sua classe mais alta. Nesse instante sentiram-se em revolta contra a ordem, até ali faltava, em seu quadro, esse traço guerreiro, essa característica de dizer o não, fazer o não; mais até, ele era o contrário disso. (Nietzsche, 2007, p. 47)

Refletindo sobre a morte aviltante de seu mestre, os discípulos acharam o

inimigo natural da prática libertária proposta por Jesus: o judaísmo dominante.

Segundo a direção interpretativa pensada por Nietzsche, essa nova percepção foi

um convite a um pensamento revolucionário mais profundo, em certo sentido, foi

uma excelente oportunidade dos discípulos até mesmo superarem o antigo mestre

por meio de uma radicalização guerreira de sua habitual e ingênua forma de encarar

o mundo; porém, não foi isso que aconteceu.

O filósofo alemão descreveu da seguinte maneira o caminho trilhado pelos

discípulos:

Evidentemente, a pequena comunidade não compreendeu o principal, o que havia de exemplar nessa forma de morrer, a liberdade, a superioridade sobre todo sentimento de ressentiment [ressentimento]: – sinal de como o entendia pouco! Jesus não podia querer outra coisa, com sua morte, senão por publicamente a mais forte demonstração, a prova de sua doutrina... Mas seus discípulos estavam longe de perdoar essa morte – o que teria sido evangélico no mais alto sentido; ou mesmo de oferecer-se para morte igual, com meiga e suave tranquilidade no coração... (Nietzsche, 2007, p. 47).

A vida de Jesus, como maneira exemplar de estabelecer a não-resitência

como nova postura diante da vida, sob a ótica nietzschiana, não foi o suficiente para

convencer os discípulos. Ao contrário deste espírito desarmado, não ressentido, os

seguidores de meigo pregador das boas novas, preferiram se apegar ao velho

espírito de vingança. Falando sobre esse retrocesso Nietzsche escreveu:

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Precisamente o sentimento mais “inevangélico”, a vingança, tornou a prevalecer. A questão não podia findar com essa morte: necessitada-se de “reparação”, “julgamento” (– e o que pode ser menos evangélico do que “reparação”, ”castigo”, levar a julgamento”!). Mais uma vez a expectativa popular de um messias apareceu em primeiro plano; enxergou-se um momento histórico: o “reino de Deus” vai julgar seus inimigos... Mas com isso está tudo mal compreendido: o “reino de Deus” com ato final, como promessa! Mais o evangelho fora justamente a presença, a realização, a realidade desse “reino de Deus”... Pela primeira vez carregava-se todo o desprezo e amargo contra fariseus e teólogos para o tipo de mestre - tornando-o assim um fariseu e teólogo! (Nietzsche, 2007, p. 47).

Não perdoando os inimigos de Jesus, inimigos que o levaram a cruz após um

julgamento injusto, os seguidores do injustiçado resolveram fazer-lhe vingança à

custa de abundantes fantasias escatológicas. O manso hebreu que beirava a

ingenuidade de uma criança, é convertido na figura de um terrível “guerreiro-juiz”

que clama por vingança. Como foi interpretado por Nietzsche, todas essa fantasias

compensatórias visavam reparar ideativamente o assassinato real do mestre,

porém, para o filósofo alemão isso não passava de uma estratégia covarde que

tentava corrigir o “real” às expensas do “ideal”.

O “reino de Deus” nesta nova teologia da vingança deixou de ser uma forma

“anti-sistêmica” de atuar no mundo e, passou a ser na mente dos discípulos, não

uma prática, mas uma visão prospectiva de um momento de plena vingança onde os

fracos e oprimidos serão levados ao triunfo pela força invisível e espiritual do morto

ressuscitado.

Ao acreditarem no poder póstumo de Jesus, para Nietzsche os discípulos

escolheram a impotência como arma de transformação e, sem se aperceberem,

começaram a usar o mesmo método milenar desenvolvido pelos judeus, assim, ao

invés de combaterem de fato os inimigos de Jesus, eles acabaram por fortalecer a

antiga estratégia de “dominar criando ideais”.

É neste contexto de intensa deturpação da imagem original de Jesus que,

segundo Nietzsche, adentra o mais astuto dos deturpadores, o autodenominado

“apóstolo” Paulo.

Sobre essa gradativa transformação pós-morte de Jesus lemos em

Nietzsche:

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A partir de então [morte na cruz] entra no tipo do redentor, passo-passo, a doutrina do julgamento e do retorno; a doutrina da morte como uma morte sacrificial, a doutrina da ressurreição, com a qual é escamoteado o conceito de “beatitude”, a única realidade do evangelho – em prol de um estado posterior à morte!... Com a insolência rabínica que sempre o caracteriza, Paulo racionalizou esta concepção, esta obscenidade de concepção da seguinte forma; “se Cristo não ressuscitou de entre os mortos, é vã a nossa fé” [1 Coríntios, 15. 14]. – E de uma só vez o evangelho se tornou a mais desprezível nas promessas não realizáveis, a desavergonhada doutrina da imortalidade pessoal... O próprio Paulo ainda a ensinava como recompensa!... (Nietzsche, 2007, p. 47).

Na visão de Nietzsche, o que Paulo fez foi apenas aprimorar aquilo que já

vinha sendo feito pela figura do sacerdote ascético, da mesma forma que seus

antecessores ocultavam a degenerescência da vida prática atrás de nomes belos

como “vontade de Deus”, “salvação”, “povo escolhido”, entre outros ideais

sonoramente pronunciáveis como reforço do necessário “desapego material”, o novo

apóstolo recorreu as mesmas estratégias antigas dos tradicionais sacerdotes,

porém, um novo elemento veio a se somar ao rotineiro arsenal ideológico

sacerdotal; agora Paulo contava com a consoladora promessa da “vida eterna”,

afinal, se Jesus morreu e ressuscitou, o mesmo destino seria assegurado a todo

aquele que aceitasse o mesmo como seu mestre “espiritual”.

Paulo, na ótica nietzschiana, representou a continuidade do ideal ascético

defendido pelos judeus, semelhante ao sacerdote tradicional que valora a vida a

partir da negação da efetividade, a promessa paulina de uma vida após a morte,

visava fantasisticamente a suspensão da transitoriedade do mundo real. Nesta nova

teologia o mundo material do vir-a-ser é sempre comparado com um além imutável

supra-sensível, nesta leitura o real é o espiritual; o mundo material é apenas uma

passagem necessária para a “alma” atingir o mundo verdadeiro.

Esse ideal de imaterialidade, na perspectiva nietzschiana, surgiu do desprezo

pelas coisas passageiras do real sensível, como já explicamos na primeira parte

deste capítulo, para Nietzsche, dizer “sim” ao espiritual é o mesmo que oferecer um

sonoro “não” a tudo aquilo que de fato existe.

Há de se observar que tamanho desprezo pelo mundo material só é possível

de ser encontrado onde existe muito ódio e, para Nietzsche, Paulo era especialista

neste tipo de sentimento, sobre isso lemos:

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Em Paulo se incorpora o tipo contrário ao “portador de boa nova”, o gênio em matéria de ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio. O que não sacrificou ao ódio esse “disangelista”! Antes de tudo o redentor: ele o pregou à sua cruz. A vida, o exemplo, a doutrina, a morte, o sentido e o direito de todo o evangelho – nada mais restou, quando esse falsário inspirado pelo ódio percebeu o que apenas ele podia necessitar. (Nietzsche, 2007, p. 49).

Diferente de Jesus, o hebreu ingênuo que não podia ser considerado um

“gênio”, segundo a conotação dada por Nietzsche ao termo, Paulo por não ter nada

de ingênuo foi considerado pelo filósofo alemão um verdadeiro “gênio em matéria de

ódio”.

É esta capacidade genial de racionalizar ficções instrumentais que torna a

leitura feita por Nietzsche, em relação a Paulo, tão agressiva. Para o filósofo

alemão, Paulo foi de certa maneira o verdadeiro idealizador do “cristianismo” e,

frente a sua habilidade incomum de manipulação, cuidou de apagar a verdadeira

imagem do judeu libertário pregado na cruz, para logo após desenhar um novo

“salvador” a seu bel prazer. Falando sobre o falseamento da história por Paulo,

Nietzsche escreveu:

Não a realidade, não a verdade histórica!... E mais uma vez o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo enorme crime contra a história – simplesmente riscou o ontem, o anteontem do cristianismo, inventando para si uma história do cristianismo inicial. Mais ainda: falseou a história de Israel mais uma vez, para que ela aparecesse como pré-história do seu ato: todos os profetas falaram do seu “redentor”... Depois a igreja falseou até a história da humanidade, tornando-a pré-história do cristianismo... O tipo do redentor, da doutrina, da prática, a morte – nada permaneceu intacto, nada permaneceu próxima da realidade. Permaneceu próximo da realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade de toda aquela existência para trás dessa existência – na mentira do Jesus “ressuscitado”. No fundo ele não tinha necessidade da vida do redentor – precisava da morte na cruz e alguma coisa mais... [...] Paulo quis os fins, portanto quis também os meios... O que ele mesmo não acreditava, acreditavam os idiotas aos quais lançou sua doutrina, – sua necessidade era o poder, com Paulo o sacerdote quis novamente chegar ao poder... (Nietzsche, 2007, p. 49).

Para que a esfera da afetividade, na qual segundo Nietzsche o Jesus

histórico viveu e padeceu, fosse esquecida ou, pelo menos, menosprezada como

dimensão secundária da “vida real”, uma nova história precisava ser contada, Paulo,

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na interpretação que Nietzsche faz da história posterior a morte de Jesus, foi o

principal artífice desta nova epopéia sacerdotal.

Bem ao estilo da lógica ascética de seus antepassados judeus, Paulo na idéia

de “ressurreição” mostra sua aversão ao mundo sensível, como digno representante

da “ilusão sacerdotal” cria uma história “sagrada” para tornar “profana” a realidade

dos “homens reais”, assim fazendo, dá continuidade a uma história milenar de

desprezo a tudo aquilo que é efetivo.

Na nova história forjada por Paulo, o significado do “redentor” está mais

vinculado ao fim trágico de sua vida do que propriamente o tipo de vida que o

carpinteiro levou; a argumentação nietzschiana expõe a versão paulina, como uma

odiosa mentira sacerdotal criada com a intenção velada de reforçar a moral de

escravos, desta maneira, o “cristo ressuscitado”, seria apenas uma metáfora do

desprezo metafísico nutrido pelos defensores do ideal supra-sensível.

A doutrina paulina, para Nietzsche, é essencialmente “anticristã” na

verdadeira acepção do termo, afinal a mesma recorre ao velho dualismo sacerdotal

para se fixar como “boa nova”, desloca toda importância da vida para o “além da

própria vida”. Por isso um tanto ironicamente o filósofo alemão escreveu: “Esse foi

seu instante de damasco; ele compreendeu que necessitava da fé na imortalidade

para tirar o valor do mundo” [...] (Nietzsche, 2007, p. 75).

Temos neste fragmento a essência do ideal ascético, ideal que para

Nietzsche é apenas outro nome para “niilismo”, afinal, a invenção de outro mundo

supra-empírico é apenas o desdobramento de um cansaço crônico da vida, uma

forma caluniosa de abrir mão da vida verdadeira. Por isso ainda em seu O Anticristo,

Nietzsche observou:

Quando se coloca o centro de gravidade da vida, não na vida mais no “além” – no nada – despoja-se a vida do seu centro de gravidade. A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, toda natureza no instinto [...] viver de modo que já não há sentido em viver, isso torna-se o sentido da vida... (Nietzsche, 2007, p. 50).

É neste ponto de convergência que Nietzsche diz que o cristianismo

(pensado por Paulo) não passa de uma espécie de platonismo, a união das duas

teses se mostra claramente na idéia metafísica da imortalidade da alma, daí o

filósofo alemão enxergar ambas como doutrinas justificadoras do ideal ascético.

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Talvez a maior diferença de tais escolas ascéticas não se encontre em suas

estruturas teoréticas, a real diferença apontada por Nietzsche é algo que se inscreve

na “prática” dessas teorias. Sendo mais direto, o cristianismo tornou as teses

metafísicas muito mais efetivas que o platonismo filosófico dos gregos.

Mas à custa de que engenho o cristianismo tornou-se tão pratico? Segundo a

interpretação nietzschiana o sucesso do cristianismo muito tem haver com a criação

de um tipo específico de “olhar”, aquilo que já anunciamos antes com o nome de

“má consciência” é antes de tudo um paradigma onde a culpa e a lógica do

ressentimento coabitam como elos necessários para interpretação caluniosa que o

escravo faz em relação ao mundo sensível.

Daí o esclarecimento oportuno oferecido por Nietzsche ao dizer: “O Niilismo

não é nenhuma causa, mas somente a lógica da décadênce” (Nietzsche, 2008, p.

45). Assim, o “nada” difundido como promessa é apenas um sintoma do

enfraquecimento visceral de nossa civilização ocidental, a tese cristã sobre o mundo

é tão somente uma maneira desprezível de avaliar o mundo por nascer de um

sentimento de auto-desprezo fortemente arraigado no homem ocidental.

Ao entendermos que a lógica cristã ampara-se no ressentimento, chegamos

facilmente a compreender o motivo que levou ao triunfo da moral de escravos no

ocidente, afinal, visto que tal sentimento de vingança agiu como referencial maior

para nossa atuação no mundo, nossos valores se constituíram como

desdobramentos previsíveis nesta ânsia inconsciente por reparação.

Essa estratégia de domínio pela fraqueza foi muito bem descrita por Marton,

onde podemos ler:

O homem do ressentimento quer, ainda, transformar em força a própria fraqueza. Transmuta-a em virtude, pretendendo ser deliberadamente fraco, e atribui-se o mérito da renúncia, da paciência, da resignação. De fato, é a sua impossibilidade de agir neste mundo que o leva a forjar a existência de outro, onde terá posição de destaque, ocupará lugar privilegiado, será figura eminente. (Marton, 1996, p. 55).

Por trás da ficção do mundo do além, como bem esclareceu Marton, existe

um intenso desejo por domínio, no entanto tal meta é adiada fantasisticamente,

tendo em vista a fraqueza real daquele que deseja, assim, como foi dito pela autora

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supracitada, a “paciência” do homem ressentido é apenas uma máscara para sua

impotência.

Em Nietzsche, este homem degradado pela sua própria falta de coragem é a

expressão clara do homem produzido pela moral socrático-platônico-cristã, segundo

seu viés interpretativo, a má consciência é um subproduto da degeneração instintual

sofrida cronicamente desde a origem de nossa civilização.

Falando deste processo de adoecimento Nietzsche, em sua Genealogia da

Moral esclarece o seguinte:

Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz. [...] esse homem que por falta inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes [...] esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”. Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava. (Nietzsche, 2004, p. 73).

O animal humano em Nietzsche é pela sua própria essência um ser “fendido”,

um animal clivado entre o ambiente selvagem dos primórdios de seu surgimento e

uma realidade cultural gerada artificialmente para sua maior segurança. Porém, esta

medida de segurança significou um amansamento forçado de sua antiga natureza

feroz e, no âmbito desta cisão radical a má consciência é “uma alma animal voltada

contra si mesma” (Nietzsche, 2004, p.74).

A má consciência, bem como toda lógica do ressentimento produzida pelo

animal-homem amansado, caracteriza em Nietzsche um deslocamento da força

ativa usada primordialmente no controle da exterioridade, para uma força usada

interioridade como controle moral do ser domesticado pela cultura.

Nunca é demais lembrar que ao criticar as muitas ficções sociais criadas pela

nossa cultura, o filósofo alemão não está criticando a nossa propensão natural de

criar ficções, o que verdadeiramente está em questão é o “tipo” de ficção criada por

nós, isso foi muito bem lembrado pelo autor brasileiro Mauro Araújo de Souza, ao

dizer:

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Para Nietzsche, alguém que consegue aderir intencionalmente à ilusão é um tipo superior de homem. Ele trata de uma sabedoria da ilusão, que é perspectivista, que é necessária porque é vital. É preciso ter-se uma referência, ainda que se saiba que ela é uma ilusão. E a perspectiva ordenada pela pequena razão é uma necessidade, vale dizer uma utilidade para ela. [...] uma mente forte deveria ser capaz de sua natureza fictícia. (Souza, 2011, p. 42).

Dentro do perspectivismo nietzschiano não existe verdades absolutas, toda

leitura que fazemos do mundo é sempre uma interpretação, como destacado por

Souza, o homem forte é aquele que agüenta o vazio de sentido sempre presente na

existência e, frente a sua força agonística, acaba por criar “verdades provisórias”

para manter-se vivo. Assim, a ficção que se reconhece como ficção é apenas um

roteiro humano que surge por causa da falta de teleologia natural das coisas, por

isso, como foi ressaltado pelo autor supracitado, nem todas as ficções nascem

daquilo que Nietzsche chamou de má consciência.

Na contra mão desta postura interpretativa aberta, segundo a análise

genealógica proposta por Nietzsche, estaria a interpretação da religião e,

particularmente a do cristianismo paulino que busca um sentido espiritual absoluto

para a existência.

Para o filósofo alemão a moldura oferecida pela religião, bem como pelo

secularismo ocidental que se apega a certa “vontade de verdade”, nascem sempre

da má consciência; nestas leituras interpretativas o homem não se reconhece como

o único foco possível do conhecimento, um “real metafísico” parece conferir um

contínuo sentimento de ultrapassagem no vivente, assim, a responsabilidade pela

“verdade” é sempre sentida como atributo de um absoluto que se encontra fora do

homem.

Isso revela a origem da má consciência, pois, Nietzsche sempre defendeu

que este aviltante estado de ser é um efeito colateral de uma consciência primitiva

de “dívida”, para o genealogista o sentimento de culpa foi à arma moral mais usada

no adestramento do animal-homem.

Tentando colocar a questão da origem da má consciência numa base causal

simplificada, o filósofo alemão escreveu:

O sentimento de culpa, da obrigação pessoal, para retornar o fim de nossa investigação, teve origem, [...] na mais antiga e primordial relação pessoal, na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: foi então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se uma

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pessoa com outra. Não foi ainda encontrado um grau de civilização tão baixo que não exibisse algo desta relação. (Nietzsche, 2004, p. 59).

Em sua investigação Nietzsche sustentou que a noção de dívida vem da

relação contratual entre um credor e um devedor, na segunda dissertação de sua

genealogia da moral o filósofo faz um rastreamento histórico da montagem

civilizatória do sentimento de culpa, infelizmente, por causa do foco epistemológico

definido em nosso trabalho, não nos é permitido avançar mais na genealogia da má

consciência.

Porém, pertinente a nossa proposta já nos basta entender que esta relação

de dívida entre credor e devedor, foi redimensionada pelas diversas religiões e, para

Nietzsche, a moral cristã se estruturou particularmente sobre esta metáfora

mercantilista. Certamente foi isso que levou o filósofo a dizer:

Como mostra a história, a consciência de ter dívidas para com a divindade não se extinguiu após o declínio da forma de organização da “comunidade” baseada nos vínculos de sangue [...] o advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. (Nietzsche, 2004, pp. 78-79)

Aperfeiçoando a imagem de um Deus “credor”, conceito familiar do judaísmo

tradicional, o cristianismo não deixou a consciência de dívida para com a divindade

morrer, ao contrário disto, para Nietzsche toda civilização posterior herdou esta

consciência de culpa pelos méritos espirituais desta escola de pensamento.

A má Consciência tornou possível a prática do ideal ascético; quando o

cristianismo, segundo Nietzsche reformulado por Paulo, supervalorizou a “dor” de

cristo, ouve uma sacralização da própria dor como instrumento de salvação, para o

filósofo genealogista foi esta estratégia que possibilitou ao asceta significar a dor

como uma forma de purificação. Podemos constatar esta manobra nas palavras do

próprio Nietzsche:

Uma dívida para com Deus este pensamento tornou-se para ele um instrumento de suplício. Ele apreende em “Deus” as últimas antítese que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em relação a Deus [...] ele se retesa na contradição “Deus” e “Diabo”, todo o não que diz a si, à natureza, naturalidade, realidade do seu ser, como

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algo existente, [...] como deus, como santidade de Deus, como Deus juiz, como Deus verdugo, como além, como eternidade, como tormento sem fim, como inferno, como incomensurabilidade do castigo e da culpa. [...] sua vontade de erigir um ideal – o do “Santo Deus” – e em vista dele ter a certeza tangível de sua total indignidade. Oh, esta insana e triste besta que é o homem! (Nietzsche, 2004, p.81)

A cisão Metafísica entre o mundo luminoso das ideias e o mundo sombrio da

matéria é radicalmente moralizada pelo cristianismo, dualidades como “Deus” e

“Diabo”, “culpa” e “castigo”, “naturalidade” e “pecaminosidade”, entre tantas outras

pensadas teologicamente, para Nietzsche representam a criação instrumental de

uma consciência de culpa capaz de condicionar o ser pensante, ser este, que por

causa desta visão moral, começa a interpretar a afetividade instintual como algo

perigoso para sua alma.

Como já dissemos antes, a santidade de Deus é uma alusão a um Deus

Credor que tenta inibir todo desejo de afetividade corporal como “pecado” e, como

foi dito por Nietzsche, pecado chama “inferno”, ou em termos mais claros: “castigo

ao pecador”.

A origem dessas eternas oposições no sujeito, para o filósofo alemão não

deve ser buscada numa pretensa antagonia entre o “espiritual” e o “carnal”, e sim,

entre as tendências instintuais e o trabalho civilizatório que pretende reprimi-los

socialmente.

Segundo a interpretação que Nietzsche faz da história da nossa civilização,

foi esta moral repressora, através do cristianismo platonizado, que tem nutrido

estruturalmente nossa concepção ocidental do mundo.

Isso, no entanto, começou a mudar segundo XIX. Como foi dito no início

deste capítulo, o anúncio da morte de Deus representou sinteticamente a apurada

percepção nietzschiana do declínio de nossos grandes ideais.

Em sua obra Genealogia da Moral, depois de descrever como a doutrina

cristã sintetizou soberanamente o domínio da má consciência por séculos no

ocidente, fala da seguinte forma sobre o declínio desta “Moral de Culpa”:

Suponho que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um considerável declínio da consciência de culpa do homem; sim, não

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devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima [causa primeira]. O ateísmo e uma espécie de segunda inocência são inseparáveis. – (Nietzsche, 2004, p.79)

No cerne deste fragmento nietzschiano encontramos a forte insinuação de

que a partir do século XIX, entramos num estágio irreversível de avaliação crítica do

mundo, até mais do que isso, a criticidade do homem moderno acabou por atingir a

própria noção de “avaliação das coisas”, neste novo movimento epistemológico

iniciado com a modernidade o “critério” usado para valorar é mais importante do que

o próprio valor, afinal, a visão essencialista de um “valor em si” é radicalmente

abalada.

Como já tivemos chance de explicar, quando Nietzsche fala do declínio da “fé

no deus cristão”, ele quer dizer que toda pretensão de verdade absoluta é

questionada com o início da modernidade, assim, a identificação socrática entre

razão, virtude e verdade é redimensionada como apenas uma perspectiva moral

entre tantas outras possíveis.

Ao estabelecer cronologicamente a morte de Deus no final do século XIX e,

ao dizer que tal fato poderia significar o fim da má consciência que até aquele

momento havia orientado moralmente o homem, o filósofo exterioriza, no trecho de

sua genealogia da moral, uma ponta de otimismo quanto ao futuro.

Objetivamos no próximo capítulo examinar como o homem contemporâneo

tem lidado com o avanço de sociedades cada vez mais secularizadas e, fazendo

isso, tentaremos entender também que novas molduras para o sagrado foram

possíveis de serem pensadas após o que Nietzsche chamou de “morte de Deus”.

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Capítulo II – É Possível um Mundo Sem Deus?

Por muito tempo nossa ocidentalidade esteve ligada a um projeto teleológico

que por extensão culminava imaginativamente na “vida eterna”; os homens eram

ensinados a viver a vida terrena como breve figuração de uma vida maior ou, em

termos simplificados, o “terreno” era vivido como uma sofrível faceta do real

celestial.

Com a modernidade, particularmente a partir do século XIX, esse cenário

teleológico começou a se modificar. Expressando poeticamente em seu Zaratustra

essa drástica mudança de mentalidade, Nietzsche pôs na boca de seu personagem

as seguintes palavras:

Agora que estou curado, ser-me-ia um sofrimento e uma tortura acreditar em semelhantes fantasmas. É deste modo que falo aos que acreditam em além-mundos.

Sofrimentos e impotência criaram todos os além-mundos, e esse breve delírio de felicidade que só conhece quem mais sofre [...]. Mas esse “outro mundo”, oculto aos homens, esse desumanizado e inumano mundo, é um nada celeste; e as estranhas do ser não falam ao homem, a não ser que elas falem a própria voz do homem.

[...] Um novo orgulho me ensinou meu eu, e eu ensino aos homens, não mais afundar a cabeça na areia das coisas celestes, mas erguê-la desassombradamente, essa cabeça terrestre, que dá sentido á terra. (Nietzsche, 2007, p. 48).

Em sentido metafórico, com o nascimento da modernidade, o que ascende

das estranhas do ser já não é mais a voz de uma divindade, como dito por

Zaratustra, o homem agora deve buscar ouvir a “própria voz do homem”. O filósofo

poeta, evidentemente fala da nova postura epistemológica do homem moderno,

portanto, esse trecho do Zaratustra, aponta para uma irreversível emancipação

intelectual após a “morte de Deus”.

Comentando esse processo de dessacralização percebido notavelmente por

Nietzsche, a filósofa Viviane Mosé teceu as seguintes palavras:

… O que caracteriza a modernidade, na perspectiva de Nietzsche, é o processo de substituição de valores decorrentes na “morte de Deus”. Aqui, os valores superiores serão substituídos por valores humanos: os valores fundados no absoluto, na essência, serão substituídos pela crença na consciência, no sujeito. O que emerge da

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modernidade é uma nova instância de avaliação: o julgamento divino vai ser substituídos pelo julgamento humano, dado com o nascimento de uma razão consciente de si. O que marca a modernidade é o nascimento de uma subjetividade autônoma e consciente de si, fundada em uma racionalidade igualmente autônoma, capaz de julgar, discernir, dirigir. É a razão científica moderna que mata Deus, substituindo os desejos de eternidade pelos projetos futuros. (Mosé, 2005, p. 43).

Na modernidade o sujeito consciente passa a ser o próprio avaliador do seu

destino terreno, como foi dito por Mosé, Deus deixa de ser pensado como substrato

do sentido e do valor. Deus dentro deste mundo dessacralizado não é mais a

garantia última para verdade, álias, toda verdade agora é relativizada pelos critérios

avaliativos da razão.

É evidente que Nietzsche soube mensurar o alto preço que o homem teve

que pagar por essa emancipação. Ao mesmo tempo em que essa sua nova

racionalidade autônoma lhe conferiu maior liberdade intelectual, logicamente

também lhe trouxe um razoável recrudescimento de sua insegurança existencial.

Tratando deste terrível desconforto existencial sentido por seus

contemporâneos, o filósofo alemão em sua obra A Gaia Ciência escreveu:

Na velha Europa de hoje, parece-me que na maioria das pessoas ainda necessita do cristianismo: por isso ele continua a ser alvo de crença. Pois assim é o homem: um artigo de fé poderia lhe ser refutado mil vezes – desde que tivesse necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por “verdadeiro” [...] alguns ainda precisam da metafísica; mas também a imperiosa exigência de certeza que hoje se espalha de modo científico-positivista por grande número de pessoas, a exigência de querer ter algo firme [...] também isso é ainda a exigência de apoio, de suporte, em suma, o instinto de fraqueza que, é verdade, não cria religiões, metafísicas, convenções de todo tipo – mas as conserva. (Nietzsche, 2007, p. 240)

Nem todas as pessoas podem aceitar a gélida idéia de um mundo desprovido

de sentido, assim, para Nietzsche, grandes partes dos viventes não conseguem

superar a antiga “vontade de verdade” por isso, a razão não é o suficiente para por

fim aos mais profundos anseios metafísicos de seus contemporâneos.

Esta dificuldade em superar a antiga maneira metafísica de avaliação do

mundo, é tornada mais complexa quando a própria “razão” é divinizada como um

ente absoluto, no texto supracitado Nietzsche equipara a nova crença “científico-

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positivista” às antigas metafísicas religiosas, para ele qualquer “fé” em um pretenso

“absoluto” é uma estratégia que visa ocultar o vazio deixado pela “morte de Deus”.

Isto fica mais claro quando ainda se referindo ao contexto da enorme

vacuidade aberta pela morte de Deus, Nietzsche escreveu:

A fé sempre é mais desejada, mais urgentemente necessitada, quando falta vontade: pois a vontade é, enquanto afeto de comando, o decisivo emblema da soberania e da força. Ou seja, quanto menos sabe alguém comandar, tanto mais anseia por alguém que comande, que comande severamente – por um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária. [...] Quando uma pessoa chega à convicção fundamental de que tem de ser comandada, torna-se “crente”, inversamente, pode-se imaginar um prazer e força, na autodeterminação, uma liberdade da vontade, em que um espírito se despede de toda crença, todo desejo de certeza, treinado que é em se equilibrar sobre tênues cordas e possibilidades e em dançar até á beira de abismo. Um tal espírito seria o espírito livre por excelência. (Nietzsche, 2007, p. 241)

O desejo de ser comandado por algo maior; um ideal político, científico,

humanitário, entre outros ideias possíveis, é para Nietzsche um sintoma do declínio

de nossa vontade individual, em nome de uma “vontade maior” tentamos escapar da

falta de teleologia do mundo, e, desta maneira abrimos mão de gerar uma ficção

particular para nossas vidas.

O crente de todo tipo é sempre na interpretação nietzschiana, o sujeito

exteriorizado que tenta fugir de si mesmo, as diferentes roupagens que são usadas

no empenho de evasão, para o filósofo alemão, são de pouco importância, o que

realmente importa é a covardia existencial que é praticada através delas.

Percebe-se, assim, que tanto a religião, a ciência, como até mesmo a

filosofia, podem servir de rota de fuga para o homem moderno, há na visão de

Nietzsche uma relação evidente entre a “força” de uma crença e a fraqueza da

vontade daquele que crê, segundo o viés interpretativo do filósofo, a impotência se

retroalimentaria pelo agir reativo que coloca o comando de nossas vidas nas mãos

de um “outro absoluto”.

Mesmo percebendo, por outro lado, que grande parte de seus

contemporâneos se utilizavam destas defesas entorpecedoras, Nietzsche introduz

uma distinção capaz de identificar o que ele denomina pelo epíteto de “espírito livre”.

Para o filósofo tais pessoas seriam fortes o suficiente para abdicarem das “certezas”

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forjadas defensivamente, seriam vigorosas a ponto de flertarem com o vazio e

mesmo assim resistirem à forte sedução da crença, ou, como disse poeticamente

Nietzsche, eles teriam coragem de “dançar até mesmo à beira do abismo”.

(Nietzsche, 2007, p. 241)

No contexto imediato de seus dias, Nietzsche, diferente de seus

contemporâneos desatentos, se apercebia da grandeza histórica que envolvia sua

época, por isso, ao refletir sobre o papel desempenhado pelo filósofo alemão,

Wolfgang Müller-Lauter teceu o oportuno comentário:

Nietzsche, que percorre a “alma moderna” e se detém em todos os seus cantos, encontra em toda parte os sinais característicos da dissolução das formações coesas: A modernidade é a época do desmoronamento: “os princípios desorganizadores” caracterizam-na. A desorganização se mostra na heterogeneidade das estimativas de valor contraditórias entre si. (Lauter, 2011, p. 76)

Tentando captar o espírito nietzschiano atrás do fatídico anúncio da morte de

Deus, Lauter chamar o século XIX de “época do desmoronamento”, recurso retórico

que se harmoniza muito bem com o contexto histórico vivido por Nietzsche.

A coesão metafísica do mundo cessa, e, como ressaltado por Lauter, a

modernidade é marcada por uma heterogeneidade irreversível que apela sempre

para permanência da “impermanência” contida no antagonismo constante dos

opostos.

Com a morte de Deus não há mais a quem recorrer como fiel da balança, daí

a angustiante constatação: “você nunca mais rezará, nunca mais adorará, nunca

mais repousará numa confiança infinita” (Nietzsche, 2007, p. 193).

Percebe-se nestas palavras do filósofo todo peso do que chamamos

“modernidade”, pois, toda constelação valorativa tradicional é repentinamente

transformada em múltiplas constelações valorativas que a partir da morte de Deus

tentam impor-se, porém, pela própria natureza heterogênea da modernidade

nenhum sistema valorativo goza de plena auto-suficiência.

O homem do século XIX foi para Nietzsche o início do pensamento caótico

que ainda permeia a contemporaneidade, com ele aprendemos a suspeitar de toda

“realidade maior”; tomando por empréstimo uma imagem criada por Karl Mannheim,

se o homem do passado buscava as peças que faltavam para completar o intrigante

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quebra-cabeça da existência, o homem moderno descobriu que não há nenhum

grande quebra-cabeça a ser descoberto, por isso se contenta só com as peças.

Num trecho de sua A Gaia Ciência, este homem heterogêneo que nasce com

a modernidade é chamado de “homem da renúncia”, tal homem de forma imperativa

nega-se a ser consolado pelas velhas ilusões metafísicas, movimento negativo

(niilista) que lhe possibilita a transvaloração apontada como novo caminho pelo

projeto nietzschiano. Sobre isso lemos:

…não há mais razão no que acontece, nem amor no que lhe acontecer – para o seu coração já não há pousada aberta, onde ele só tenha de encontrar e não mais procurar, você resiste a qualquer paz derradeira, você quer o eterno retorno da guerra e da paz: – homem da renúncia, em tudo você quer renunciar? Quem lhe dará a força para isso? Ninguém jamais teve essa força! – existe um lago que um dia negou a escoar, formou um dique onde até então escoava: desde esse instante ele sobe cada vez mais. Talvez justamente essa denúncia nos empreste a força com que a renúncia mesma seja suportada; talvez o homem suba cada vez mais, já não tendo um deus no qual desaguar. (Nietzsche, 2007, p.193)

As reflexões de Nietzsche neste fragmento apontam para o homem que

nasce com a dolorosa fragmentação do mundo ocorrida no século XIX. Segundo a

visão do filósofo esta nova “criatura”, por ver-se órfão de seu antigo “criador

transcendental”, precisava buscar a força de seu movimento de ascensão na própria

consciência de sua solidão abismal.

Com a metáfora do lago Nietzsche ilustra a irreversibilidade do roteiro

alternativo tomado pela modernidade e, de maneira indireta, indica que a única

forma de suportar o tremendo vazio produzido pela nova postura ativa da renúncia

dos antigos valores, era aceitar o novo fluxo das águas multivalorativas da

modernidade.

Ao dizer que o homem da renúncia deseja o “eterno retorno da guerra e da

paz”, Nietzsche está evidentemente fazendo menção à sabedoria agonística

proposta pelo filósofo grego Heráclito, que dizia: “de todos a guerra é pai, de todos é

rei [...]” (Heráclito, 2002, p.200). O par de opostos “guerra-paz” neste contexto indica

a transitoriedade ao mundo real, característica que era eclipsada pelo ideal religioso

de um mundo supra-sensível imutável; o nomadismo desse novo homem

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renunciante afasta-lhe cada vez mais desta figura estática de um mundo eterno e

fixo, ele não busca mais “pousada” em algo além de si próprio.

Porém, além deste aspecto metafórico que faz do binômio “guerra-paz” uma

alusão ao novo espírito dinâmico da modernidade, é relevante ressaltarmos que

efetivamente na Europa crescia cada vez mais a nova consciência que dizia que a

melhor forma de preservar a paz era se preparando bem para guerra. Com o

declínio da hegemonia católica na Europa moderna, a “paz- divina” deixou de ser

sustentada pelo mero discurso clerical e, frente a essa nova postura militarista das

nações européias, o mundo passou a depender mais de “césar” do que de “Deus”.

Comentando sobre a expansão deste novo espírito bélico que começou a reinar no

velho continente a partir do século XIX, o historiador Edward Mcnall Burns, em sua

obra história da civilização ocidental diz:

A Europa, especialmente, converteu-se num arraial em armas. Depois de 1870 cada uma das principais potências desse continente, com exceção da Grã-Bretanha, adotou a conscrição e o adestramento militar universal. Não só isso, mas adotaram também a crença de que a segurança nacional defendia quase inteiramente do grau de preparação militar naval. Depois de cada pânico aumentava o tamanho dos exércitos e das armadas, [...] viam no conflito militar um dos elementos divinos do universo e um “remédio terrível” para a raça humana. O filósofo francês Ernest Renan justificava a guerra como uma condição do progresso, “Ferroada que não deixa um País adormecer”. (Burns, 1965, p. 761)

Dentro deste novo contexto universal, aquilo que Nietzsche chamou de

“homem da renúncia” realizava prospectivamente o modelo do homem possível e,

assim, a retomada de seu antigo ímpeto guerreiro na modernidade foi interpretada

pelo filósofo alemão como uma resposta à morte de Deus.

Portanto, o caos valorativo no qual os contemporâneos de Nietzsche estavam

mergulhados não era sentido como um estado mórbido incorrigível, bem ao

contrário, o filósofo acreditava que ao descobrir dolorosamente que Deus estava

morto, este novo homem, ao descobrir também que inventou todos os deuses pela

projeção de suas forças, poderia preservar tais forças agora em si mesmo, assim

fazendo, tornaria seu “niilismo” um instrumento de retomada de sua antiga força

alienada.

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No entanto, é vital que entendamos que este homem soberano, livre da velha

moralidade dos escravos, não se realizaria na imagem grupal de nenhum “Estado”,

o filósofo escarava o fortalecimento das nações-estado de seu tempo, como a

tentativa desesperada de criar um novo “Deus” capaz de assumir a vacância dos

Deus morto das religiões.

Assim, bem diferente de fomentar a pueril confiança, em novos “ídolos

terrestres”, seu projeto de transvaloração pressupunha um indivíduo capaz de livrar-

se consciencialmente da coerção social, tornando-se por essa postura “anti-

rebanho”, um soberano legislador de sua própria vida.

Em seu livro Crepúsculo dos Ídolos, vislumbrando uma cultura fomentadora

de espíritos livres, Nietzsche enfatizou a discrepância entre uma educação capaz de

produzir homens intelectualmente fortes e uma cultura de ajuste que visa

contrariamente um “Estado forte”:

A cultura e o Estado – não haja engano a respeito disso – são antagonistas: “Estado cultural” é apenas uma idéia moderna. Um vive do outro, um prospera à custa do outro. Todas as grandes épocas da cultura são tempos de declínio político: o que é grande no sentido cultural é apolítico, mesmo antipolítico. [...] na história da cultura européia, a ascensão do Reich significa sobretudo uma coisa: uma mudança do centro de gravidade. [...] Esqueceu-se que educação, formação é o fim – e não “o Reich” [...] (Nietzsche, 2006, p. 58)

Ao dizer que o fortalecimento do Reich (Estado) não representa um sinônimo

de avanço cultural, Nietzsche se contrapôs à filosofia oficial ensinada nas

universalidades alemãs de seu tempo, que normalmente, inspiradas em Hegel, viam

o Estado como instância última da racionalidade.

Para que possamos entender satisfatoriamente a pertinência da crítica

nietzschiana ao Estado, é importante ressaltarmos que na cultura alemã a

supervalorização do Estado por filósofos idealistas, representou no início do século

XIX, uma última tentativa de negar argumentativamente a percepção pungente da

morte de Deus.

Podemos sentir o peso desta idealização nas letras do maior de todos os

filósofos idealistas, Hegel, que, em seu livro a razão na história escreveu:

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Só no Estado é que o homem tem existência racional. Toda a educação aponta para que indivíduo não permaneça algo de subjetivo, mas se torne objetivo no Estado. [...] O homem deve ao Estado tudo o que ele é; só nele tem a sua essência. Só pelo Estado tem o homem todo valor, toda a sua realidade efetiva e espiritual. [...] O verdadeiro é a unidade da vontade geral e da vontade subjetiva; o universal está nas leis do Estado, nas determinações universais e racionais. (Hegel, 1995, p. 97)

Temos neste fragmento hegeliano uma clara demonstração do

“endeusamento racional” do Estado, diferente da antagonia defendia por Nietzsche

entre o indivíduo e o Estado, Hegel defende que nossa individualidade só teria sua

plena efetivação no contato com o Estado.

No que se refere ao idealismo alemão, pelo menos no que tange o nosso

estudo sobre a religião, é muito importante termos em mente que a noção desta

“razão”, que se manifesta no dizer de Hegel no Estado, não pode ser confundido

com o conceito de uma razão finita e demasiadamente humana.

As “determinações racionais”, citadas no texto de Hegel, seriam a própria estrutura

do “real”; diferente das muitas ficções identitárias criadas pelos homens, que para

Nietzsche constituiriam a bojo ficcional que denominamos de real, para Hegel seria

o racional que forja o real durante o seu trajeto histórico.

Diferente de outros idealistas alemães como Fichte e Schelling, que, ora,

localizavam a plena exteriorização deste “absoluto racional” em um ”eu absoluto”,

ora, numa “identidade absoluta” que se manifestava panteisticamente em tudo,

Hegel defendia que a plena manifestação do “espírito absoluto” se dava na “cultura”

e, o Estado, a religião e outras instituições humanas, expressavam esta

racionalidade intrínseca ao real. É pensando nisto que o próprio Hegel escreveu:

Se, por outro lado, consideramos agora a subjetividade, descobrimos que o saber e o querer subjetivo é o pensar. Mas porque ao conhecer e ao querer sou pensante, quero o objeto universal, o substancial do que em si e por si é racional. Vemos, portanto, uma união em si, entre a vertente objetiva, o conceito, e a vertente subjetiva. A existência objetiva desta união é o Estado, que constitui assim o fundamento e centro de todas as outras vertentes concretas da vida do povo: arte, direito, costumes, religião, ciência. Toda a atividade espiritual tem por fim único tornar-se consciente desta união, isto é, da sua liberdade. (Hegel, 1995, p. 107)

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A liberdade de pensar o “universal” só se afetivava através do Estado,

segundo Hegel, o indivíduo necessitava das instituições culturais para pensar

objetivamente.

E, falando sobre o papel da religião neste contexto espiritualmente

institucionalizado, podemos ler:

Entre as figuras de tal união consciente encontra-se à cabeça a religião. Nela o espírito existente, o espírito mundano, torna-se consciente do espírito absoluto [...] ela é o primeiro modo da autoconsciência, a consciência espiritual do espírito do proprio povo, do espírito universal [...] a religião, a representação de Deus, constitui portanto o limite universal, o fundamento do povo. A religião é o lugar onde um povo proporciona a si mesmo a definição do que ele tem por verdadeiro. [...] A religião é a consciência que um povo tem do que ele é, da essência do supremo. Este saber é a essência universal. (Hegel, 1995, pp. 107-108)

Este “espírito absoluto”, que é inicialmente percebido no âmbito da religião, para

Hegel representava a esfera da autoconsciência, dimensão esta que

institucionalmente se ligava na tese hegeliana às produções superiores como a arte,

filosofia e de maneira primária a religião.

Porém, quando Hegel afirma que a religião é um dos canais privilegiados na

exteriorização histórica deste “espírito absoluto”, ele falava não da religião em

sentido genérico, mas sim da religião européia: o cristianismo.

Adotando uma linearidade ao estilo positivista, Hegel acreditava que o

cristianismo, com sua visão abstrata sobre Deus, representava a ápice da

espiritualidade de um povo, enquanto as “religiões naturais” eram consideradas um

estágio primitivo da autoconsciência humana. Sobre este ponto de vista podemos

ler:

Um povo que considera como seu Deus a natureza não pode ser um povo livre: só quando considera Deus como um espírito que está acima da natureza se torna ele próprio espírito e livre. Na consideração da religião espiritual, importa saber se conhece o verdadeiro, a idéia, só na sua separação ou na sua verdadeira unidade; na sua separação, isto é, Deus como ser abstrato supremo, senhor do céu e da terra, que reside mais além e está excluído de toda a realidade humana; na sua unidade, isto é, Deus como unidade de um universal e do particular, porquanto nele é intuído também o particular, na idéia da encarnação. [...] na religião cristã, a idéia divina revelou-se como a unidade das naturezas divina e humana. Eis a verdadeira idéia da religião. (Hegel, 1995, p. 108)

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E, por fim, pontuando a reciprocidade teleológica entre o Estado e a religião,

Hegel escreveu:

O Estado tem com a religião um mesmo princípio comum; esta não se lhe acrescenta a partir de fora, para regular o edifício do Estado e a conduta dos indivíduos, a sua relação com o Estado, mas é a primeira interioridade que nele se determina e realiza. Os homens devem ser educados na religião; a religião deve manter-se sempre… (Hegel, 1995, p.111)

Para o filósofo idealista a religião era vital para sobrevivência do Estado, afinal,

segundo sua ótica a imagem do Deus cristão nada mais era do que a imagem do

avanço espiritual europeu; uma representação clara da “maturidade que apenas

advém aos velhos Estados europeus”. (Hegel, 1995, p. 112)

Bem diferente desta visão romântica que sacralizava como expressão do

“espírito absoluto” às instituições européias, Nietzsche percebeu em seu tempo

declínio e o cansaço generalizado, para o filósofo genealogista, nem a religião, nem

tampouco o Estado, representavam corporificações de um pretenso “espírito

absoluto” transcendental.

A visão dos filósofos idealistas alemães, segundo o viés interpretativo

pautado no Anúncio da Morte de Deus, não passava de uma tentativa inócua de

retardar a percepção do terrível assassinato levado a termo pelos modernos. Foi

certamente esse habitual comportamento alienante de tais filósofos que Nietzsche

pretendia desmascarar quando escreveu:

Não se conhecer a si mesmo: a esperteza dos idealistas. O idealista: um ser que tem certas razões para permanecer na escuridão em relação a si mesmo e é bastante inteligente para também permanecer na escuridão em relação a essas razões. (Nietzsche, 2008, p. 189)

E, ainda sobre Hegel e seus parceiros idealistas, Nietzsche os acusa

diretamente de:

… haverem retardado longamente e perigosamente essa vitória do ateísmo; Hegel foi o seu retardador por excelência, segundo a grandiosa tentativa que fez de nos convencer da divindade da

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existência, enfim recorrendo até ao nossos sexto sentido, o “sentido histórico”. (A Gaia ciência, p. 255)

No idealismo alemão, segundo a visão nietzschiana, tivemos a última

tentativa mais bem orquestrada para minimizar os efeitos perturbadores da

chamada morte de Deus; herdeiro de um “deísmo” que já vinha sendo pensada por

franceses e ingleses, desde o início do século XVI, em Hegel temos um

abrandamento racionalizante do antigo cristianismo teísta.

No entanto, nem todos os filósofos da Alemanha comungavam com a dita

filosofia oficial hegeliana. Um dos seus maiores opositores iria influenciar

profundamente Nietzsche, falamos aqui do fecundo pensador Ludwig Feuerbach. A

importância deste filósofo na conjuntura que cercava Nietzsche justifica sem dúvida

nenhuma em exame mais apurado das principais teses de Feuerbach e, ao

fazermos tal exame, esperamos identificar uma das bases epistemológicas do

pressuposto da morte de Deus: o avanço do ateísmo.

2.1. O Ateísmo Antropológico

Durante praticamente toda a Idade Média a filosofia foi tratada como uma

serva da teologia, neste longo período da história humana a racionalidade

predominante era de teor “teocêntrico”, o que significa dizer que grande parte dos

fenômenos terrenos era analisada segundo a lógica da religião; o mundo passageiro

da materialidade configurava, dentro desta cosmovisão, tão somente um caminho

para “cidade de Deus”.

A cosmovisão teocêntrica situava sempre a questão da existência de Deus a

partir de sua criação (kósmos), por isso, a postura filosófica cosmocêntrica da idade

média, analisava as qualidades do divino segundo as perfeições encontradas na

natureza. No cristianismo medieval essa idéia de um Deus que se revela através da

natureza, foi produzida essencialmente pela influência que sofreu da filosofia grega.

Historicamente o Deus cristão nesta época sempre teve como pano de fundo duas

concepções retiradas dos gregos, ora os catecismos medievais se aproximavam de

um demiurgo platônico, que formou e modelou o mundo a partir do espaço caótico

original, ora pendiam mais para um motor-imóvel aristotélico, segundo o modelo de

um centro organizador e mantenedor de ordem do universo.

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Entre o século XVII e o XVIII, essa forma cosmocêntrica pautada numa

cosmovisão teológica começou gradativamente a ruir. Como já dito anteriormente

em nosso estudo, na idade moderna o modo de pensar ocidental foi drasticamente

alterado e, particularmente duas obras filosóficas cooperaram muitissimamente

neste novo rumo tomado pelo ocidente. Discurso do Método do filósofo Descartes e

o polêmico escrito A Religião nos Limites da Simples Razão, do filósofo alemão

Immanuel Kant. Esses escritos marcaram definitivamente uma nova forma de

pensar o mundo, nesse novo período a questão da existência de Deus volta a ser

abordada, porém, como a postura filosófica deixa de ser teocêntrica e, passa a

assumir uma inquietante e dinâmica postura antropocêntrica, uma maior liberdade

começou a vigorar nos círculos acadêmicos.

A racionalidade do cogito apela nesse novo momento para um conhecimento

que nasce da subjetividade, com isso, inaugura-se uma reviravolta antropológica:

não mais o homem buscaria na harmonia cósmica a melhor prova para a existência

de Deus, segundo essa revolucionária cosmovisão implantada por Descartes, tudo

começa no homem, e não na natureza.

Esta valorização epistemológica da subjetividade humana, inicialmente

promovida por Descartes, foi aprofundada pelo filósofo Kant, bem como ganhou um

novo relevo moral.

De modo audacioso Kant, ao falar da “Religião nos Limites da Simples

Razão”, mudou drasticamente o rumo da análise humana em referência ao divino.

Esse movimento gnosiológico subjetivista e antropocêntrico gerou como efeito

colateral certa humanização do “sagrado”, com isso, a subjetividade passou a ser a

verdadeira bússola desta nova senda.

Falando sobre a possibilidade do estabelecimento de um reino de Deus na

terra, Kant discorre sobre a ineficácia das leis externas usadas como um fator de

regulação deste hipotético reino e, em contraposição, defende a idéia de que o

único princípio de regência universalmente eficaz para a implantação de uma nova

ordem divina seria o das “leis internas morais” fundamentadas na razão, tal

arrazoamento pode ser percebido no seguinte fragmento:

Poder-se-ia igualmente conceber sem dúvida um povo de Deus regido segundo as leis estatutárias, ou seja, leis cuja observância comporta não a moralidade, mas unicamente a legalidade dos atos.

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Ter-se-ia então uma sociedade jurídica em que Deus seria, na verdade, o legislador (sua constituição seria, pois, teocrática), mas seriam homens que, enquanto sacerdotes, recebendo imediatamente dele suas ordens, dirigiam um governo teocrático. Uma constituição desse gênero, contudo, cuja existência e forma repousam inteiramente em razões históricas, não é aquele que forma o problema da pura razão, legisladora moral e cuja solução única representa aqui o objeto de nossas pesquisas (Kant, 2006, p.89).

Em oposição de um reino de Deus regulado por leis estatutárias externas,

Kant enuncia seu posicionamento dizendo que: “[...] só temos que considerar uma

constituição cuja legislação é puramente interior, uma república submetida a leis de

virtude [...] (Kant, 2006, p.89).

Diferente de uma religião externa, pautada em um regime exterior ao

indivíduo, o filósofo fala de uma religião individual, um posicionamento moral

independente dos ditames sacerdotais da religião institucionalizada, segundo Kant,

as leis da virtude seriam suficientes para realizar o reino de Deus na terra.

Para Kant, cada homem ao fazer o uso reflexivo da razão, torna-se-ia seu

próprio sacerdote, essa utopia racionalista é facilmente percebida nas seguintes

palavras:

A distinção aviltante entre leigos e clérigos cessa, a igualdade tem sua fonte na verdadeira liberdade, sem anarquia, no entanto, porque cada um obedece, na vez dada à lei não estatutária que se prescreve a si próprio, mas que deve ao mesmo tempo também considerar como a vontade do soberano do universo revelada pela razão, soberano que une invisivelmente todos os homens sob um governo comum, num estado que tinha sido antes pobremente representado e preparado pela igreja visível (Kant, 2006, pp. 89-

110).

Sob o império da razão, segundo o filósofo Kant deveria surgir uma

comunidade de homens de boa vontade, assim, sutilmente o pensador negava nas

entrelinhas o valor da igreja visível, colocando em seu lugar uma igreja invisível,

sustentada pelos pilares da razão. Ainda na linha deste raciocínio, o filósofo redefine

a idéia de “revelação”. Para ele o verdadeiro conhecimento religioso não seria

produzido empiricamente por doutrinação, bem ao contrário, esse conhecimento

moral seria inato, os deveres imperativos de nossa consciência moral,

representariam nesta religião interna, os mandamentos divinos.

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Kant promove uma verdadeira revolução. A partir de suas teorizações as

considerações filosóficas que tocam o problema de Deus e da religião, são

redimensionadas. A transcendência não mais foi discutida como um longínquo

fenômeno natural externo, nos tempos modernos, o homem tornou-se o foco central

desta transcendência, a valorização epistemológica da subjetividade foi o primeiro

golpe mortal na tese medieval de um Deus que se manifestava quase que

exclusivamente através do mundo natural.

Evidentemente, o racionalismo defendido por Kant estava longe de ser uma

teoria atéia, no cerne de seu questionamento não existia nenhuma negação em

referência a idéia de Deus, ele visava tão somente afirmar a soberania da razão. No

entanto esse viés subjetivista de forma indireta precipitou na tradição filosófica

ocidental um movimento gradativo de “desencanto” do universo material; o Deus da

tradição ficou cada vez mais distante da razão terrena, aquela divindade potente e

ativa do antigo teísmo, cedeu lugar ao Deus brando e pouco efetivo do deísmo.

É exatamente desta tradição deísta racionalizadora que o já examinado

filósofo alemão Hegel surge e, como foi demonstrado anteriormente, semelhante a

Descartes e a Kant, Hegel naturalizou de certa forma o divino e divinizou a razão,

porém, diferentemente do cartesianismo dualista de seus antecessores, Hegel

defendeu uma visão idealista unitária do mundo. Para ele o universo material era

uma realização do “espírito absoluto”, tudo de certa forma era idéia, o mundo era

plenamente inteligível em sua concepção.

Ao apontar para cultura (bildung) e, não para a natureza (physis), como

verdadeiro lugar da manifestação do divino, Hegel fortaleceu a razão

antropocêntrica da modernidade como o verdadeiro instrumento de mensuração do

real.

É essa mesma razão antropocêntrica que Feuerbach usou no núcleo

epistêmico de suas revolucionárias teorias, porém, de forma bem original este antigo

discípulo de Hegel, radicalizou na negação de qualquer “espírito transcendental”. Na

sua nova postura teórica, negou qualquer possibilidade de existência de uma

“razão” que vá além do homem, em Feuerbach a essência genuína do homem, bem

como de todo conhecimento produzido pelo mesmo, é sempre o próprio homem.

A idéia do “absoluto” é pensada por Feuerbach em termos antropológicos.

Como um autêntico filósofo pós-hegeliano ele discute a questão de Deus tentando

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livrar-se da herança do idealismo de seu antigo mestre, embora, num genuíno

movimento dialético de síntese, acaba por conservar alguns resquícios da escola

hegeliana.

Em suas preleções sobre os “Princípios da Filosofia do Futuro”, Feuerbach

acentuou recorrentemente a diferença entre a sua tese antropológica e a antiga tese

idealista de Hegel, em um desses trechos podemos ler:

A nova filosofia tem, pois, como seu princípio de conhecimento, como seu sujeito, não o eu, não o espírito absoluto, Istoé, abstrato, numa palavra, não a razão por si só, mas o ser real e total do homem. A realidade, o sujeito da razão é apenas o homem. É o homem que pensa, e não o eu, não a razão. A nova filosofia não apóia, portanto, na divindade, isto é, na verdade do homem total. Ou: apóia-se, sem dúvida, também na razão, mas na razão cuja essência é o ser humano; por conseguinte, não numa razão sem ser, sem cor e sem nome, mas na razão impregnada com o sangue do homem. Se, pois a antiga filosofia dizia – “só o racional é o verdadeiro e o real” –, então a nova filosofia diz, pelo contrário – só o humano é o verdadeiro e o real; com efeito, unicamente o humano é o racional: o homem é a medida da razão. (Feuerbach, 2002, pp. 93-94)

Objetivando criar uma sólida teoria materialista, que ele chama no texto de

“nova Filosofia”, Feuerbach vê sempre o homem como “corpo consciente”, nunca

como puro pensamento. A razão para o filosofo ateísta é uma produção humana

“impregnada com o sangue do homem”, jamais o efeito de um “sujeito

transcendental” ou de um etéreo “espírito absoluto”.

Quando Feuerbach afirma, fazendo certa paráfrase de Górgias, que “o

homem é a medida da razão”, temos aí a pedra fundamental para a idéia

nietzschiana de transvaloração de todos os valores, afinal, todo e qualquer valor

criado pela razão é, segundo esta lógica materialista, um efeito da ação valorativa

humana.

Também cabe apontar que a preocupação com um ser real, que é real

inicialmente por ser um “corpo”, frequentemente destacado por Feuerbach como um

dos princípios basilares de sua nova filosofia, reaparece constantemente nas letras

nietzschianas, isso porque, os dois filósofos materialistas encaravam a corporeidade

como o fenômeno principal para nossa ficção identitária estabelecer-se como um

“eu”.

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Outra característica marcante desta “nova filosofia” apresentada por

Feuerbach é a negação taxativa de uma divindade superior ao homem real de

carne, ossos e sangue. Porém semelhante ao que foi dito no início do presente

estudo, sobre o ateísmo defendido por Nietzsche, o ateísmo de Feuerbach não é um

ateísmo vulgar que apenas visa negar a existência de Deus, não; muito mais do que

isso, o filosofo ateísta desconstrói a idéia de Deus, pela primeira vez na filosofia um

pensador tenta explicar a montagem da imagem de Deus e, todo esse esforço

visava no fundo, valorizar o homem. Em sua visão filosófica, o ateísmo é um

instrumento da antropologia, nunca uma desumana arma da frustração.

Esse aspecto sistêmico e filosófico da negação de Feuerbach foi ressaltado

da seguinte maneira por Drailton Gonzaga de Souza, um especialista no tema em

questão:

Comumente, quando se estuda Feuerbach, ou quando se cita o seu pensamento, imediatamente coloca-se-lhe o rótulo de ateu. Mas há que se considerar o pensamento de Feuerbach numa perspectiva mais ampla; subjacente ao seu ateísmo está um projeto que, para ele, é, sem dúvida, muito mais importante: a antropologia (Drailton, 1994, p.15).

É certo dizer que Feuerbach foi um ateu, na realidade, até mais do que isso;

podemos legitimamente considerá-lo o precursor do ateísmo moderno. Porém, como

bem ressaltou Drailton, estudá-lo somente sobre esse aspecto é um grave erro,

afinal, seu ateísmo antropológico influenciou o surgimento de um novo paradigma

no estudo das religiões comparadas e da antropologia. Sua originalidade, bem como

sua acuidade intelectiva, foi tão marcante que seus escritos influenciaram

pensadores como Marx, Freud e o próprio Nietzsche. Por isso, muito descobertas

feitas por esses grandes baluartes do saber contemporâneo, abrigava veladamente

as impressões duradouras das ideias originais propostas inicialmente por

Feuerbach.

Em sua obra Princípios da Filosofia do Futuro, Feuerbach defende a

necessidade urgente de uma completa reforma da filosofia, segundo o seu ponto de

vista, essa reformulação teorética consistia particularmente na distinção entre a

filosofia e a teologia. Para ele o que predominava era uma espécie de “teofilosofia”

idealista, sendo Hegel, nesta perspectiva crítica, o verdadeiro “papa” desta ambígua

linha teórica.

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Sobre a necessidade de construção de uma genuína teoria negativa,

Feuerbach escreveu o seguinte:

A filosofia hegeliana foi a síntese arbitrária de diversos sistemas existentes, de insuficiências – sem força positiva, porque sem negatividade absoluta. Só quem tem a coragem de ser absolutamente negativo tem a força de criar a novidade. [...] não queremos mais nenhuma teologia [...] para o lugar da fé, entrou a descrença; para o lugar da bíblia, a razão; para o lugar da religião e da igreja, a política; a terra substitui o céu, o trabalho substitui a oração, a necessidade material o inferno, o homem o cristão [...] se, na prática, o homem entrou para o lugar do cristão, então também no plano teórico o ser humano deve substituir o divino. [...] este princípio expresso negativamente é apenas o ateísmo, isto é, o abandono de um deus distinto do homem. (Feuerbach, 2002, pp. 14-16).

Para fazer nascer uma nova postura filosofia, Feuerbach entedia que a

“negação” radical era o instrumento principal para a purificação de velhos resquícios

da teologia. No texto supracitado, ele acusa Hegel de não ter tido coragem de

implantar essa almejada negatividade em seu sistema de pensamento, por isso, sua

filosofia estava coberta de insuficiências, o que impossibilitava a execução de uma

verdadeira reforma teorética.

Sua proposta antropológica visava inverter o idealismo alemão, a terra

deveria substituir o céu; o homem idealizado como o “bom cristão”, deveria ceder o

lugar para homens reais, seres encarnados propensos a todos os angustiantes

limites da carnalidade. Para o filosofo alemão, somente o ateísmo trazia a

negatividade necessária para promover tamanha mudança na filosofia.

Como vimos anteriormente em nosso estudo, Hegel acreditava que o Estado

era a objetivação social do espírito absoluto, assim sendo, o Estado era a

concretização da razão, era a “fé religiosa” realizada na cultura européia. Esta visão

instrumental e idealista de Hegel, é frontalmente atacada por Feuerbach, ao tratar

em seu estudo sobre a questão do Estado, o filosofo diferentemente de Hegel

concluiu:

…não é a fé em Deus, mas a desconfiança em Deus que funda os Estados. É a crença no homem como Deus, do homem que explica subjetivamente a origem do Estado. [...] o Estado é a soma de todas as realidades, o Estado é a providência do homem. [...] o Estado [verdadeiro] é o homem ilimitado, infinito, verdadeiro, completo, divino. Só o Estado é o homem – o Estado é o homem que se determina a si mesmo, o homem que se refere a si próprio, o homem

absoluto (Feuerbach, 2002, p.17).

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Ao invés de um espírito absoluto, o filosofo prefere um homem absoluto; com

essa substituição Feuerbach desmente a idéia abstrata de uma razão transcendente

objetivada na figura do Estado. Segundo a nova linha de raciocínio, o Estado era um

subproduto de esforços humanos unificados, portanto, o verdadeiro deus,

sustentador do Estado, não era nenhum espírito absoluto, esse deus era o próprio

homem que se determina a si mesmo politicamente no Estado.

Feuerbach percebeu que o conceito hegeliano de um espírito absoluto, que

se realiza plenamente no Estado era na verdade a divinização do domínio político

de sua época, frente a essa percepção crítica, sua teoria atéia, visava também,

desvelar indiretamente a instrumentalidade por trás da teoria idealista.

No entanto, como é fácil de observar no trecho supracitado, faltava em

Feuerbach, provavelmente por causa da insipiência dos dados antropológicos da

sua época, uma ponderação sociológica mais profunda sobre a origem e a essência

do Estado, em consequência desta desconcertante superficialidade política, o termo

“Estado” ainda aparece em seus escritos um tanto idealizado. É evidente que

mesmo frente a essa carência teórica, é inegável que seu posicionamento

representou um considerável progresso em relação ao idealismo, afinal, ao invés da

ação alienígena de um “espírito absoluto”, o filosofo materialista destaca as

“relações humanas” como a verdadeira base causal do estado.

Continuando sua crítica ao modelo hegeliano de pensamento, Feuerbach diz

que: “… a lógica hegeliana é a teologia reconduzida à razão e ao presente, a

teologia feita lógica…” (Feuerbach, 2002, p.21). Com essa conclusão em mente, ele

parte para a análise da própria essência da teologia, isso é feito da seguinte

maneira:

A essência da teologia é a essência do homem, transcendente, projetada para fora do homem; a essência da lógica de Hegel é o pensamento transcendente, o pensamento do homem posto fora do homem. Assim como a teologia cinde e aliena o homem para em seguida, de novo com ele identificar a sua essência alienada, assim Hegel multiplica e cinde a essência simples, idêntica a si, da natureza e do homem para, em seguida, de novo reconciliar à força o que fora violentamente separado (Feuerbach, 2002, p.21).

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Na opinião do filosofo ateísta, tanto a velha teologia, como o seu disfarce

mais recente, a filosofia idealista, são acusadas por Feuerbach de cindirem o

homem. Como produto final desta separação violenta promovida pelo “pensamento

transcendente”, o homem acaba alienado de sua própria essência, com isso, acaba

por se desconhecer num “outro absoluto” colocado fora de si. O termo latino para

“outro” é “alienus”, assim ao usar o conceito de alienação como um dos princípios

básicos para sua filosofia atéia, Feuerbach quis evidenciar que a maior razão para

nosso desconforto existencial é sempre nosso “autodesconhecimento”, ao

estranharmos a nossa essência, sem nos aperceber buscamos em um “outro

projetivo”, aquilo que estruturalmente nos pertence.

Explicando o processo de alienação o filosofo diz que: “abstrair significa por a

essência da natureza fora da natureza, a essência do homem fora do homem, a

essência do pensamento fora do ato de pensar” (Feuerbach, 2002, p. 22).

Em termos gerais, Feuerbach explica que alienação é o fenômeno psíquico

pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, e, pelo efeito de um

conhecimento dissociante, acabam dando independência a essa criatura, como se

ela fosse um ente a parte dotada de vitalidade própria. No âmbito deste fenômeno

alienante, ocorre segundo sua lógica uma danosa inversão; o criador torna-se

criatura e a criatura torna-se o criador. O alienado, perdido no núcleo desta profunda

dissociação genealógica, é governado inconscientemente pelo próprio produto de

suas ideações.

Explicando a idéia de Deus, segundo esse pressuposto de alienação, para

Feuerbach o alienado tentando achar um sentido para existência, projeta fora de si

um ser supremo dotado de todas as qualidades ideais: inteligência, bondade,

justiça, vontade livre, entre outras qualidades que julga idealmente serem as

melhores. Simbolicamente, esse ser superlativamente perfeito, representa tudo

àquilo que não conseguimos ser em nós em grau maior e, como não sentimos essa

perfeição em nós, esse “outro” perfeito, torná-se um “estranho” que aponta para

nossas carências, assim com o tempo esquecemos que tal referencial de perfeição

foi criado pela nossa própria imaginação, e, para o filosofo ateísta é no âmbito deste

“esquecimento” que se produz a alienação. Passamos invertidamente a acreditar

que nossa criação é o criador, e por ser nosso criador, tem o legítimo direito de nos

governar como quiser.

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Semelhante ao projeto nietzschiano de transvaloração de todos os valores, o

princípio maior da filosofia arquitetada por Feuerbach, visava à superação do

aprisionamento ideológico. Era a libertação do ser alienado, em outros termos, seu

projeto visava promover um grande movimento epistemológico de “desalienação”.

Ele próprio enunciou sinteticamente tal projeto ambicioso dizendo:

O caminho até agora seguido pela filosofia especulativa, do abstrato para o concreto, do ideal para o real, é um caminho invertido. Neste caminho, nunca se chega à realidade verdadeira e objetiva, mas sempre apenas à realização das suas próprias abstrações e, por isso mesmo, nunca é verdadeira liberdade do espírito, pois, só a intuição das coisa e dos seres na sua realidade objetiva é que lhe liberta e isenta o homem de todos os preconceitos. A passagem do ideal ao real tem o seu lugar apenas na filosofia prática (Feuerbach, 2002, p. 25).

A filosofia que até aqui chamamos de idealista, é chamada nesse fragmento

de “filosofia especulativa”. Com este termo Feuerbach quis destacar a qualidade

ilusória de tal linha teórica que, segundo sua interpretação, fabricaria o “real” a partir

do “ideal”, assim, alienadamente, bem ao modelo do mito da caverna, os seres

humanos ficam presos num mundo de sombras que apenas reflete o real sensível.

O filósofo se opondo ao que chamou de filosofia especulativa, fala de uma

filosofia da prática e, segundo seu posicionamento crítico, somente esta filosofia da

“práxis” levaria a inversão da alienação produzida pelo idealismo. Nessa filosofia

para o futuro, o homem é pensado como uma consciência em um corpo, não uma

corporificação de uma consciência absoluta externa ao seu ser. Ele escreveu sobre

este novo postulado da seguinte maneira:

O ser, com que a filosofia começa, não pode separa-se da consciência, nem a consciência pode separa-se do ser. Assim, como a realidade da sensação é a qualidade e, inversamente, a sensação é a realidade da qualidade, assim, também o ser é a realidade da consciência, mas, inversamente, a consciência é a realidade do ser – só a consciência é o ser efetivamente real. A unidade real de espírito e natureza é unicamente a consciência (Feuerbach, 2002, p. 26).

Feuerbach, diferente de seu antigo mestre idealista, concebe a consciência

como algo que surge da matéria. A razão não é um espírito que paira livre no tempo

e no espaço, ela nasce das sensações de um corpo real e material inserido

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necessariamente no tempo e num espaço determinado pela contingência material

que a precede.

A consciência que pensa só se pensa em ato, não existe para Feuerbach um

“espírito” que esteja fora do tempo e do espaço, um espírito com este grau de

abstração seria um mero “fantasma”, por isso, contra essa abstrativação indevida

ele sentenciou: “o espírito absoluto é o espírito defunto da teologia, que assombra

como fantasma a filosofia hegeliana. [...] a teologia é a fé nos fantasmas”

(Feuerbach, 2002, p. 22).

Em seu materialismo ateísta, “ter fé em fantasmas” significa confundir

ideações com objetos reais, daí, pelo efeito da alienação, pensamos um deus que

achamos que nos pensa, conferimos projetivamente qualidades a um ser que nem

corpo possui, ao agir desta forma, para Feuerbach negamos alienadamente nossa

essência física em prol de um ideal incorpóreo. Esta negação é o marco divisor

entre a velha e a nova filosofia, isso pode ser confirmado nas seguintes palavras:

Se a antiga filosofia tinha como ponto de partida a proposição: sou um ser abstrato, um ser puramente pensante, o corpo não pertence à minha essência, então, pelo contrário, a nova filosofia começa com a proposição: sou um ser real, um ser sensível, sim, o corpo na sua totalidade é o meu eu, a minha própria essência (Feuerbach, 2002, p.82).

O ateísmo antropológico de Feuerbach, de acordo com a lógica evidenciada

no trecho acima, aponta sempre para a verdade do “corpo”. A filosofia que aponta

para um “corpo espiritual” como ideal humano, na realidade desumaniza o ser

sensível em sua estrutura existencial básica; desejar ser algo diferente de nossa

verdadeira essência material é, na argumentação proposta por Feuerbach, desejar

não ser nada para si mesmo.

O eu do ser real tratado pelo ateísmo antropológico, é acima de tudo um eu

corporal, portanto nesta perspectiva, nossa noção de pessoalidade é construída

inicialmente pela relação consciente que desenvolvemos com o nosso próprio corpo.

Um ser sem corpo, ou, com um hipotético corpo espiritual, é um ser que existe

somente como ente de razão. Ao existirmos fisicamente temos uma qualidade

especifica de ser e, é tal qualidade ontológica que possibilita as predicações de

nossos atos enquanto seres, um ser sem qualidade existenciais é um ser

inexistente, não pode ser predicado por não atuar no tempo e no espaço.

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Não há como não reconhecer neste ponto a forte influência que essas ideias

de Feuerbach exerceram sobre Nietzsche. Na realidade o destaque que é dado ao

corpo, como fonte primária de nossa ficção pessoal, pelo primeiro filosofo, é

praticamente reproduzida literalmente pelo segundo. Como vimos no primeiro

capítulo deste trabalho, o que Nietzsche chama de ideal ascético tem como princípio

motor, o repúdio pelo corpo e o apego pela alma; tal dinâmica visa anular os

instintos em nome de uma futura vida imaterial.

Tanto Feuerbach, como posteriormente Nietzsche, acreditavam que o

argumento da predicação dos seres existentes era o argumento que mais desafiava

teístas e deístas. Quando um teísta diz, por exemplo, que seu Deus é bom, sem se

dar conta ele coloca seu Deus dentro de um tempo e de um espaço, afinal, ser bom

é um predicado que só se justifica frente a uma ação, portanto, sua essência de

bondade precisa de uma relação (em linguagem aristotélica: uma atualização) para

manifestar-se como real, neste caso a qualidade só pode ser sentida onde existe

necessidade, assim, o Deus todo-poderoso dos teístas necessitaria de suas

criaturas para se efetivar como um ser bondoso, o que para os ateístas seria uma

desconcertante contradição, pois, neste caso, o “espiritual” seria intrinsecamente

dependente do “material”.

Segundo esta lógica circular da predicação, o caso dos deístas ainda seria

pior, afinal, tentando conferir uma roupagem mais intelectualizada para o seu Deus,

comumente essa segunda classe de crentes afirma que Deus pela suas

características transcendentais, não pode ser pensado segundo o modelo humano,

por isso, cosmicamente ele não é nem bom, nem tão pouco mal, Deus seria em

essência um ser “neutro”, não afetável em sua essência transcendental. Embora a

resposta deísta seja mais bem estruturada racionalmente, um Deus assim, na visão

de Feuerbach, equivale a uma mera “palavra”. Por não se deixar afetar, ele escolhe

ter por essência o “nada de efetividade”. Um tanto ironicamente, Feuerbach

escreveu o seguinte sobre o Deus dos deístas:

… como são ateus os deístas modernos, como na verdade rebaixam e renegam seu Deus enquanto glorificam-no com a boca ao atribuir à matéria ao mundo, ao homem um poder e uma atividade autônoma, independente dele, deixando para seu Deus apenas o papel de um contemplador ou inspetor ocioso e somente na extrema dificuldade o papel de um participante e ajudante (Feuerbach, 1989, p. 143).

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E ainda comentando as consequências indiretamente positivas da falta de fé

dos deístas, ele acrescentou:

… não devemos repreender os ocidentais por não levarem sua crença religiosa as suas conseqüências práticas, por antes desconsiderarem autocraticamente as conseqüências de sua fé, por negar sua fé na realidade, na prática; pois somente a essa conseqüência, e essa descrença prática, a esse ateísmo e egoísmo instintivo devemos todo o progresso… (Feuerbach,1989, p. 143).

Antecipando a essência do discurso do homem louco que anuncia a morte de

Deus, Feuerbach assinala que todo progresso ocidental foi fruto deste ateísmo

imanifesto dos modernos. Por negarem na prática a visão do teísmo

intervencionista, o ocidental deixou de buscar o “milagre” como via de manipulação

do mundo real e, procedendo assim, desenvolveu através de sua ciência uma forma

muito mais eficaz de manipulação do real.

Sua recriminação se dirige à falta de coragem que o homem moderno tem ao

negar-se em assumir seu ateísmo, segundo a visão do ateísta, isso faz com que

continue alienado de seu real potencial, por causa de sua atitude dissociativa, ele

valoriza com a boca a existência de um Deus que não tem participação nenhuma no

real. Assim, numa prática mundana não reflexiva, seu ateísmo velado é mais um

estilo de vida, do que uma verdadeira teoria para entender o mundo.

Para Feuerbach, o Deus dos deístas é um Deus tão absolutamente racional,

que só existe na razão do que o engedraram! A sustentação formal da crença em

Deus pelos intelectuais teria, para este pensador alemão, um sentido instrumental,

ou seja, a crença em uma nação cristã, dirigida por homens piedosos e tementes a

Deus, não passaria de um subterfúgio para o controle das massas.

Na verdade, pela interpretação feita por Feuerbach, o Deus dos racionalistas

seria simplesmente uma projeção do aspecto narcísico de seus idealizadores.

Fazendo uso desta imagem estereotipada oferecida pela tradição, com pequenas

modificações intencionais, os governantes unificavam as aspirações ideais dos

indivíduos dominados. Através da imagem tradicional da divindade tal manipulação

ideológica hábil, asseguraria a manutenção da tão almejada “ordem social”.

Já no seu tempo, praticamente no começo do capitalismo, Feuerbach

percebeu como era grande a instrumentalidade dos governantes de sua época e,

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como os conteúdos ideológicos retirados da religião eram propícios para tal

manipulação, sobre um contraditório decreto do monarca prussiano, ele escreveu:

O rei da Prússia decretou há pouco (janeiro de 1849) uma ordem militar onde lemos: “no ano passado, quando a Prússia teria sucumbido diante da traição e da corrupção, se não fosse a ajuda de Deus, conservou e colheu novamente minha armada a sua velha fama”. Mas que ser fraco é esse, cujas intenções podem ser contraditórias por influencias estranhas! Que ajuda de Deus é essa que não tem sucesso nem poder sem baionetas nem balas? Que plenipotência é que necessita da proteção do poder militar? Que deus é esse que divide sua glória com a armada imperial prussiana? Ou concedei somente a Deus a honra, como os antigos deístas e cristãos, que acreditavam que Deus pode ajudar sem baionetas nem balas e que se podia vencer inimigos através da mera oração, que oração, Isto é, o poder da religião ou (o que significa o mesmo) o poder de Deus é infinito; ou atribui a honra da vitória somente à brutalidade das forças materiais (Feuerbach, 1989, p. 142).

Esse apontamento jocoso, feito por Feuerbach, indica como na verdade o

homem moderno desconfia das forças sobrenaturais. Segundo sua lógica interna, a

argumentação do filosofo demonstra que temos sempre que racionalmente escolher

entre César ou Deus, porém, na prática é normalmente “César” que recebe os

nossos votos de confiança.

Em seus escritos Feuerbach sempre fez questão de frisar que a essência

verdadeira do sentimento religioso é, veladamente, o desejo de ser mais do que si é

no momento. O ser humano nunca está plenamente satisfeito com a sua atualidade,

como ele é um ser estruturalmente incompleto, ele olha para o futuro sempre como

a chance perfeita para sua realização; o sentimento religioso ajusta-se

perfeitamente a esse anseio prospectivo. Daí sua conclusão:

A religião é, portanto, não só um objeto da imaginação, da fantasia, mas também um objeto da faculdade apetitiva, no desejo e da ânsia do homem de evitar sentimentos desagradáveis e proporcionar a si sentimentos agradáveis, de conseguir o que não tem mais que gostaria de ter e se livrar do que tem mas gostaria de não ter, como, por exemplo, esse mal, essa deficiência, em síntese, ela é um objeto do desejo do homem ou teme e conseguir o bem que ele deseja, que sua fantasia lhe mostra[...] tudo que ele não é, mas quer ser imagina como existente em seus deuses; os deuses são os desejos do homem pensados como reais, transformados em entidades reais; um deus é a ânsia de felicidade do homem satisfeita na fantasia (Feuerbach, 1989, p. 168).

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Feuerbach acreditava que o fenômeno religioso era basicamente um meio

fantasístico de compensação; assim, diferente do pretenso altruísmo da religião, o

filósofo explica que o verdadeiro teor das ideias religiosas é sempre de fundo o

egoísmo, ou de outra forma, o utilitarismo é a base central da ideação religiosa. A

ideia de uma benévola providencia é uma importante arma contra a angústia, essa

crença gera uma sensação de sentido para as coisas. As injustiças e dificuldades

sentidas no mundo terreno seriam hipoteticamente reparadas e superadas

eternamente no “reino de Deus”.

Este desejo de conferir a existência um sentido absoluto, pode ser percebido

pela frase do senso comum que afirma que: “Deus tarda, mas não falha”. Porém, a

lógica do ateísmo de Feuerbach ensina que “além de sempre tardar, Deus sempre

falha”. Isso foi dito da seguinte maneira pelo filosofo:

... O além chega sempre tarde com suas curas; ele cura o mal depois que ele já passou, só com, ou após a morte [...] o amor que o além criou, que consola o sofredor, é o amor que cura o doente depois que ele faleceu, que dá água ao sedento que já morreu de sede e que dá alimento ao faminto depois que ele já morreu de fome [...] deixemos pois os mortos e só nos ocupemos com os vivos! Se não acreditarmos mais numa vida melhor mais quisermos, não isoladamente, e sim com a união das forças, criaremos uma vida melhor, combateremos pelo menos as injustiças e os males crassos, gritantes, revoltantes pelo quais a humanidade tanto sofre (Feuerbach, 1989, pp. 236-237).

O filosofo ateu expõe o consolo religioso como uma forma inadequada de

lidar com as carências da vida real. O que ele diz indiretamente neste trecho acima,

é que a cura religiosa é a própria morte camuflada como promessa, esperar a

manifestação de nossa potencia no além, e para ele abdicar de nossas verdadeiras

possibilidades existenciais, ou, em outras palavras, é viver a impotência em vida

com a esperança de tornar-se potente após a morte.

De acordo com esse viés ateísta proposto por Feuerbach, a difusão

sistemática das variadas promessas religiosas desempenham estrategicamente um

papel muito importante na perpetuação da miséria de um povo. Em sentido

simbólico, a discursividade mítica das religiões é um conjunto de falsas promessas

revolucionárias; no plano do discurso, todas as religiões dizem que há algo de

errado no real, porém, de forma prática, normalmente apontam para uma solução a

partir de uma intervenção sobrenatural, acreditam assim, que não o homem, mas

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sim, as “mãos divinas”, mudarão o rumo do nosso sofrido mundo. Criticamente

Feuerbach vê esta doce esperança como uma forma alienante de abafar nossas

reais responsabilidades terrenas, um obstáculo ideológico ao avanço de nosso

ímpeto revolucionário que pede mudanças efetivas. Assim sendo, acreditando em

uma grandiosa revolução vinda do céu, reforçamos a nossa covardia diária que nos

impede de enfrentar de forma concreta aqueles que nos oprimem.

Portanto, Feuerbach encarava a promessa de uma “pátria celestial”, feita

generalizadamente pelas religiões, como uma forma dissimulada de invasão de

nossa verdadeira pátria terrena; esperando usufruir a bela paisagem lúdica de um

paraíso pós- morte, para o filósofo deixarmos de construir os alicerces necessários

para uma sociedade mais justa.

Como é fácil de observar, o ateísmo apresentado por Feuerbach é

essencialmente uma teoria humanista, por isso, esta linha filosófica alega trazer

aquilo que todas as religiões dizem trazer: uma teoria pautada no bem maior do

homem. No entanto, como uma tese secularizada do “sagrado”, o ateísmo

humanista não intenciona levar o homem à contemplação da divindade, o

verdadeiro objeto de culto nesta escola de pensamento é sempre o próprio homem.

Rebatendo argumentativamente a falsa opinião dos que viam no ateísmo

humanista um perigo, Feuerbach explicou:

… Um dos lamentos mais comuns que os chorões religiosos e eruditos dirigem contra o ateísmo é que ele destrói ou desconhece uma necessidade essencial do homem, ou seja, a necessidade que ele tem de aceitar e adorar algo superior a si, tornando assim o homem um ser egoísta e soberbo. Mas, ao anular a superioridade teológica do homem, o ateísmo não anula a superioridade moral e natural. A superioridade moral é o ideal que todo homem deve ter para si tornar alguém de valor; mas esse ideal é e deve ser um ideal e uma meta humana. A superioridade natural é a própria natureza, são especialmente os poderes celestes dos quais nossa existência e nossa terra dependem; sim, a própria terra é apenas um membro deles e tudo o que ela é deve apenas a situação que ocupa dentro de nosso sistema solar (Feuerbach, 1989, p. 94).

Em sua colocação Feuerbach evidencia claramente que, diferente de ser

“desagregador”, o ateísmo humanista é integrador, isso porque, em seu núcleo

gnosiológico a realidade é pensada como um “sistema”, e, segundo esta eufonia

sistêmica o homem depende da terra, como também, inversamente a terra depende

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dele. Sem lugar para o sobrenatural, neste novo esquema, o homem é significado

pelo ateísmo como um ser puramente natural, daí que, zelar e conferir um sentido

positivo para o mundo é, em última instância, zelar por um aspecto de seu próprio

ser. Para Feuerbach o ateísmo antropológico não pode levar jamais o vivente às

malhas do egoísmo, o que se dá segundo sua opinião é exatamente o oposto deste

movimento empobrecedor, como a essência desta escola filosófica é o

“antropocentrismo”, o homem é levado a um “religare” consigo próprio e,

consequentemente com os seus semelhantes.

Sob esta perspectiva, o ateísmo humanista de Feuerbach é uma religião aos

“avessos”, uma religião sem cruz, sem deus, sem ladainha, porém, assentada sobre

uma sólida base ética humana. Por mais feio que seja o epíteto “ateísmo”,

Feuerbach afirma que a humanidade não precisa temer essa linha filosófica

negativa, isso porque, sua negatividade inicial leva à positivação do homem. Como

o filosofo bem destacou, o homem deve criar para si novos ideais baseados em sua

pura materialidade, diferente de ser um convite ao niilismo, o ateísmo humanista

pretende ser a superação do mesmo.

Na visão do filosofo ateísta, o verdadeiro perigo que rondava a humanidade,

era postura hipócrita e pouco consciente daqueles que diziam ainda acreditar em

Deus. Os mesmos, em sua visão, praticavam um ateísmo velado, um ateísmo

prático destituído de teoria, por isso, embora não haja formalmente uma

preocupação em negar Deus, neste ateísmo brando as pessoas vivem como se

Deus não interferisse na suas vidas. Como já afirmamos anteriormente, para o

filosofo Feuerbach os verdadeiros arquitetos deste ateísmo sutil, foram os

intelectuais racionalistas que resolveram “reformar” Deus em termos lógico.

O anúncio da morte Deus encaixa-se perfeitamente na intuição

feuerbachiana, dizia que, o homem moderno cedo ou tarde teria que encarar o

enorme vazio deixado pelo desabamento de seus antigos ideais. No âmbito desta

lacuna, o Deus fraco e racional dos deístas e, seu oposto, o Deus forte e irracional

dos teístas, representavam para Feuerbach máscaras que tentavam esconder o

niilismo avassalador dos tempos modernos. Para ele, tanto faz o Deus escolhido, no

fundo, ele seria uma tentativa desesperada de achar em um “sistema” um “sentido

transcendental” cada vez mais difícil de sustentar.

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Já falando num momento histórico onde o hegelianismo não representava

mais o “espírito europeu”, Nietzsche escreve:

Interpretar a história para glória de uma razão divina, como perene testemunho de uma ordenação moral do mundo e de intenções morais últimas; explicar as próprias vivências como durante muito tempo fizeram os homens devotos, como se tudo fosse previdência, aviso, concebido e disposto para a salvação da alma: Isso agora acabou, isso tem a consciência contra-si, todas as consciências refinadas o vêem como indecoroso, desonesto, como mentira, feminismo, fraqueza, covardia – devemos a este rigor, se devemos a algo, o fato de sermos bons europeus e herdeiros da mais longa e corajosa auto-superação da Europa. (Nietzsche, 2007, p. 256)

Como fiel genealogista que era, Nietzsche percebia que frente ao grande

avanço cientifico de sua época, avanço que especialmente acontecia na arqueologia

e na historiografia, a hipótese hegeliana de uma razão encarnada na história, não

mais se sustentava, ao invés de fatores conjuntivos que apontassem para um

espírito absoluto ordenador, os fatores disjuntivos da historia humana tornaram-se

mais claros.

É preciso, porém, observarmos que no fragmento nietzschiano a história

perde seu revestimento etéreo, no entanto, ganha um novo revestimento mais

substancial. Isso significa dizer que Nietzsche não desconsiderou totalmente o que

havia acontecido antes na filosofia de seu tempo, e, isso certamente incluía algumas

das teses hegelianas.

Em sua A Gaia Ciência, falando dos grandes alemães que cooperaram para o

avanço do espírito moderno, Nietzsche faz o seguinte comentário sobre Hegel:

… Hegel abalou todos os hábitos e vícios lógicos, ousando ensinar que os conceitos de espécie desenvolvem-se um a partir do outro: tese com a qual os espíritos europeus foram preparados para o último grande movimento científico, o darwinismo – pois sem Hegel não haveria Darwin. Há algo de alemão nessa novidade hegeliana, que introduz na ciência o decisivo conceito de desenvolvimento? – sim, sem dúvida. (Nietzsche, 2007, p. 254)

Nietzsche diz que o conceito dialético ensinado por Hegel, foi conclusivo para

a idéia darwiniana de “evolução”, isso se dá porque para Hegel toda antítese, ao

superar o momento anterior da tese, incorpora elementos da fase superada, assim,

a síntese só é possível pela assimilação e desenvolvimento das figuras anteriores.

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Esse modelo dialético aplicado à historia revelava o longo trajeto dos

europeus até à “morte de Deus”; no entanto, para Nietzsche, esse era o grave erro

da filosofia hegeliana: obnubilar metafisicamente um desenvolvimento histórico que

nada tinha de racional em si.

Ao contrário da tese idealista que apontava para um encontro histórico entre

“fé” e “razão”, os europeus se distanciaram cada vez mais das crenças religiosas e,

como já dissemos anteriormente, começaram a cultuar um novo deus: a ciência.

É exatamente neste mundo em que novos ídolos tentavam se afirmar, no

lugar vazio do Deus religioso, que Nietzsche observava a inquietude de seus

contemporâneos, por isso, ao comentar sobre esse período confuso de transição,

Habernas esclareceu:

Para Nietzsche a situação de partida é clara. Por um lado o iluminismo histórico apenas reforça as bipartições que se tornaram palpáveis nas conquistas da modernidade; a razão emergente na forma de uma religião cultural já não ostenta forças sintética capaz de renovar o poder unificador da religião tradicional. Por outro lado, a modernidade encontra barrado o caminho de regresso à restauração. (Habermas, 1990, p. 92)

Neste trecho de seu livro o discurso filosófico da modernidade, Habermas

expressa bem o dilema do mundo no qual Nietzsche estava inserido. O Iluminismo

com seu método científico desacreditou todo tipo de metafísica que se opunha à

nova maneira racional de examinar o mundo, porém ao mesmo tempo, não foi forte

o suficiente para sustentar por muito tempo a nova “religião cultural” que parecia

emergir. Como a fonte do método científico é por demais humana, logo o projeto de

iluminação tornou-se, pelo seu aspecto instrumental, mais um meio de

condicionamento social do que um meio de libertação consciencial.

Isso faz da modernidade uma época intrínsecamente paradoxal, ao mesmo

tempo em que às “verdades científicas” não conseguem o mesmo efeito de

apaziguamento das “verdades absolutas” propagadas no passado pela metafísica

e pela religião, essa razão pautada na relatividade das coisas veta, pela sua

essência desmistificadora, qualquer retorno ao “passado forte” das antigas

divindades.

Segundo o ponto de vista de outro notório membro da escola crítica, Max

Horkheimer, qualquer tentativa de tornar a ciência mais forte do que

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verdadeiramente ela é não passa de um regresso ao hegelianismo, isso foi dito da

seguinte maneira:

Essa hipostatização idealista e irracional está mais próxima do Weltgeist de Hegel do que pensam os seus críticos capciosos. Sua própria ciência absoluta é dada como a verdade, enquanto a ciência de fato é apenas um elemento da verdade. Na filosofia positivista a ciência tem até mais traços de um espírito santo do que o Weltgeist, que, seguindo a tradição do misticismo alemão, inclui explicitamente todos os elementos negativos da história. (Horkheimer, 2007, p. 88)

Transformar a ciência num “ente”, capaz de levar a humanidade a sua plena

realização através do esclarecimento iluminista, para Horkheimer não passa de

uma mera “hispostatização idealista” tardia; a idéia de uma todo poderosa “ciência

absoluta”, era, segundo o autor supracitado, pior ainda do que o misticismo

racionalista dos alemães que entendia sua cultura como o ápice da humanização,

isso porque, segundo o projeto de expansão iluminista, a história do mundo só se

justificaria a partir de então, pela ordenação “epifânica” da ciência.

A meta iluminista de uma “humanidade esclarecida” e, enfim, unificada pela

bandeira da racionalidade científica falhou flagrantemente. Espelhando a crítica

nietzschiana feita no final do século XIX, Horkheimer e Habermas atestam quão

limitadas é a eficiência “metafísica” das verdades científicas de nosso heterogêneo

mundo contemporâneo.

Na verdade, o anúncio da morte de Deus expande-se na direção de qualquer

possível ídolo que tente ocupar o lugar vazio da antiga divindade. Assim, substituir

a idéia metafísica de um Deus transcendente, por outra de uma humanidade

científicamente onipotente, não passaria de uma nova retórica “espiritualista”

transmutada. Neste ponto, Nietzsche não só se separa de Hegel, como também do

próprio Feuerbach, que, como vimos, ainda mantinha certo núcleo metafísico na

idéia de uma humanidade purificada pelo esclarecimento ateísta.

Diferente de um ateísmo para todos, Nietzsche só seguiu às pegadas de

Feuerbach, como Wagner e outros de seu tempo, até os limites de uma

“sensualidade sadia” (Nietzsche, 2004, p. 90), ou seja, o filósofo descrente era,

também, descrente o bastante para duvidar de movimentos de conversão universal

a favor do ateísmo, o que ele apenas visava era alcançar alguns despertos.

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Mas, poderia o próprio discurso nietzschiano, anti-metafísico livrar-se de

todos os resquícios metafísicos de outrora ou seria o mesmo a contra gosto de seu

próprio idealizador, uma metafísica sem Deus?

Esta é a questão que abordaremos no próximo capítulo: no entanto antes de

abandonar a questão proposta para este capítulo: “É Possível um Mundo Sem

Deus?”, devemos examinar após mais de um século do anúncio da morte de Deus,

como hoje alguns intelectuais dão ressonância a tal fatídico pronunciamento e,

dando voz aos novos ateísta, bem como, aos novos crentes, tentaremos

dimensionar melhor as possíveis respostas oferecidas contemporaneamente para

questão ora abordada.

2.2. Deus Continua Morto?

Segundo os apontamentos feitos por Phil Zuckerman em seu artigo estatístico

intitulado Ateísmo: números e padrões contemporâneos, estima-se que o total

mundial de ateístas, agnósticos e descrentes em Deus está entre os 505 milhões e

os 749 milhões (Zuckerman, 2010, p. 74).

Este cenário é bastante diferente daquele vivido por Nietzsche e seus

contemporâneos; se no final do século XIX o ateísmo achava-se em sua forma

embrionária, atualmente, de acordo com os dados apresentados por Zuckerman,

atingiu sua plena maturidade, afinal, segundo um quadro comparativo numérico

estabelecido pelo referido autor, os descrentes em Deus como grupo, ocupariam o

quarto lugar depois dos cristãos (2 mil milhões), mulçumanos (1,2 mil milhões) e

Hindus (900 milhões) em termo de posição numérica com os outros sistemas de

crenças comuns (Zuckerman, 2010, p. 74).

No entanto, se é praticamente inegável o fato de existirem muito mais

descrentes hoje no mundo que, na época em que o filósofo Nietzsche viveu,

estamos muito longe de um cenário mundano plenamente ateísta, na realidade, um

interessante paradoxo parece desmentir a visão futura de um mundo totalmente

“desencantado”.

Ainda no artigo a pouco citado, o autor em questão admite que em termos

gerais o ateísmo não está crescendo, ao contrário deste movimento ascendente ele

está em declínio em muitas partes do mundo. Isto se dá, segundo a visão de

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Zuckerman, principalmente por um fator demográfico, afinal, diferente das nações

estatisticamente mais irreligiosas, onde as taxas de natalidade são bem baixas, nas

nações mais religiosas as taxas de natalidade são muitissimamente mais altas

(Zuckerman, 2010, p. 79).

Portanto, a geografia contemporânea da religiosidade no mundo é

extremamente complexa; se é verdade que o ateísmo e a secularização aumentam

na maior parte das nações européias, e, em outros cantos do mundo como Japão,

Canadá, Austrália, nova Zelândia, Taiwan e Israel, não é menos verdade que na

maior parte das nações da África, América do sul, Médio oriente e Ásia, o ateísmo,

segundo os levantamentos expostos no supracitado artigo estatístico, praticamente

inexiste nesses lugares (Zuckerman, 2010, p. 82).

Tentando explicar as contradições numéricas e geográficas do campo atual

do sagrado, Zuckerman adota uma tese essencialmente sociológica para entender

esse fenômeno de fragmentação; para ele as nações com um maior grau de

segurança individual e social, estariam mais propensas ao ateísmo, já as nações

onde os graus de segurança, por causa das diversas contradições sociais, seriam

insuficientes, tenderiam para taxas maiores de religiosidade (Zuckerman, 2010, p.

82).

Para apoiar sua teoria explicativa, Zuckerman cita os dados colhidos do

relatório sobre o desenvolvimento humano (2004), relatório encomendado pelo

programa de desenvolvimento das nações unidas. Neste documento são

classificadas às 177 nações com maior índice de desenvolvimento. Coisas como

educação formal, o rendimento per capita, esperança de vida, entre outros

indicadores sociais, foram os elementos usados para o estabelecimento do

ranking. O relatório revelou que as cinco nações onde os índices de

desenvolvimento atingiram as maiores graus foram: Noruega, Suécia, Austrália,

Canadá e os países baixos. Assim, Zuckerman conclui, baseado na mostra

estatística do relatório da ONU, que, todos os países onde o índice de

desenvolvimento é alto, com exceção de um só pais (Irlanda), a taxa de ateísmo é

muito elevada, por isso, parece existir uma relação direta entre a qualidade de vida

de um grupo social e o número de ateus de sua população (Zuckerman, 2010, p.

77). Daí, o enunciado que serve como síntese das idéias gerais contidas no artigo:

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… a secularização limita-se muito a nações industrializadas avançadas específicas (com taxas de natalidade relativamente baixas), e não ocorreu em grande parte do resto do mundo (Zuckerman, 2010, p. 80).

Se nos pautarmos neste quadro oferecido por Zucherman, perceberemos que

o novo campo do sagrado pós-moderno não é algo fácil de ser descrito, isso

porque, não existe um cenário único que possa ser descrito como a nova “face do

sagrado”. Depois de mais de cem anos do anúncio da morte de Deus, estamos

bem longe da profetizada extinção da religião, aquela linearidade simplista que

pressupunha a gradual diluição da fé religiosa não se concretizou e dificilmente se

concretizará num futuro próximo.

Porém, com o advento da modernidade não há como negar que nossa antiga

maneira de nos relacionarmos com o sagrado foi radicalmente alterada, e, tentando

mensurar o peso do questionamento proposto na Europa, no final do século XIX, o

filosofo e historiador da contemporaneidade, Charles Taylor escreveu:

As formas de descrenças mais profundas e mais ancoradas surgidas no século XIX são fundamentalmente as mesmas das sustentadas hoje em dia. É possível ver os vitorianos como nossos contemporâneos de uma maneira que não podemos facilmente estender às pessoas do iluminismo. Focault e outros observaram o divisor de águas que a era romântica produziu no pensamento europeu, ao reconhecer um senso de realidade tão profundo e sistemático, na medida em que encontra suas origens bem abaixo de uma superfície imediatamente acessível, seja nas teorias econômicas de um Marx, na “psicologia profunda” de um Freud, ou nas genealogias de um Nietzsche. Ainda vivemos sob o desdobramento dessa passagem para o profundo, muito embora possamos contestar essas teorias especificas. Nesse sentido, podemos ficar tentados a dizer que a descrença moderna inicia-se nesse momento, e não realmente na era do iluminismo. O século XIX seria o momento quando “o moderno cisma” ocorreu. (Taylor, 2008, p. 436)

Como foi dito por Taylor, ainda hoje este método da “profundidade” anima

grande parte de nossos questionamentos racionais, e, aplicado ao âmbito da

religião, tal metodologia da suspeita mudou visceralmente nossa percepção do

“sagrado”. Semelhante a qualquer outro elemento da cultura, após os

questionamentos citados sinteticamente no trecho de Taylor, aprendemos a

questionar secularmente tudo aquilo que antes considerávamos intocável.

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O diferencial gnosiológico que marca nossa época não seria tanto uma nova

crença unificadora que viria substituir a religião (como muitos iluministas

acreditavam ingenuamente), mas sim a disponibilidade de múltiplas formas de

pensar um mesmo problema. Neste sentido, embora possamos concordar com

Taylor que “o moderno cisma” de fato ocorreu mais profundamente e

sistematicamente no século XIX, sua ressonância, segundo o mapeamento

realizado por Zuckerman, não sofreu uma difusão linear simples da “Europa para o

mundo”. Fatores históricos, educacionais, sociais, bem como fatores

idiossincráticos ligados a etnias específicas, são reais obstáculos na expansão da

famigerada “descrença européia”.

Assim, a ideia de uma evolução histórica que desembocaria na universalidade

de uma visão atéia do mundo, além de muito pouco provável, parece desmentir a

própria essência pluridiscursiva da modernidade. Aliás, se o ateísmo continua a

progredir em certas partes do mundo, em outras, paradoxalmente, ele literalmente

regride. Foi frente a tal ambigüidade que Gavin Hyman em seu artigo O Ateísmo na

História Moderna, escreveu:

Parece, pois, que no preciso momento em que o ateísmo alcançou o seu “zênite”, começou também imediatamente a esborroar-se. Estudos sociológicos recentes concluíram que apesar de a modernidade ter sem dúvida assistido a um afastamento de um comprometimento religioso baseado na tradição, isto não teve como resultado o ateísmo generalizado que muitos tinham previsto anteriormente. Na verdade, o ateísmo sem peias continua a ser uma confissão minoritária, com o mundo ocidental moderno a assistir à proliferação de “espiritualidades” alternativas de vários tipos [...] muitas pessoas sente-se insatisfeitas com o ateísmo, enquanto “verdade final” sobre a condição humana… (Hyman, 2010, p. 46)

O panorama atual do campo religioso não deixa de revelar, como foi dito por

Hyman, certo clima de indefinição; se como asseverou o autor, o homem

contemporâneo não se sente tão atraído pelas confissões religiosas tradicionais,

isto não indica um esfriamento generalizado da “fé”, na contra mão desta

“descrença desencantadora”, as novas crenças religiosas autônomas promovem

um verdadeiro “reencanto do mundo”.

Ainda em seu artigo, Hyman comenta da seguinte forma o quanto o futuro da

“religião”, e também, da “não-religião” continua aberto, lemos:

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Há quem argumenta que o eclipse da modernidade significa o eclipse, quer do teísmo moderno, quer do ateísmo moderno, permitido a possibilidade do regresso a formas mais medievais (e mais autênticas) de teísmo. [...] por outro lado, outros argumentam que o “pós-moderno” está tão ligado ao “moderno” que não permite qualquer suposto regresso do pré-moderno. O caminho adiante, sugerem, não é tanto um regresso ao teísmo pré-moderno mais, ao invés, tentativas inovadoras para pensar para lá ou entre o teísmo e o ateísmo, o que é, com efeito, uma tentativa de pensar para lá da metafísica[...]. O futuro, parece, está aberto; talvez mais aberto do que esteve desde há algum tempo. Isto torna as previsões mais arriscadas do que é normal. Mas de uma coisa podemos ter certeza: o destino do ateísmo parece inevitavelmente ligado ao destino da modernidade. (Hyman, 2010, p.60)

Dificilmente o recrudescimento do que Hyman chamou de “espiritualidades

alternativas”, poderia ser interpretado como um retorno ao teísmo medieval, como

ele coerentemente avaliou, uma posição lacunar entre o teísmo e o ateísmo parece

ser a verdadeira tônica discursiva do nosso campo do sagrado.

Mas afinal, qual o ponto em comum que uniria tanto ateus como crentes nesta

nova perspectiva do sagrado?

Se a discórdia sobre a existência ou não de Deus continua muito acesa e,

parece ter sido intensificada contemporaneamente, o mesmo não ocorre quando se

avalia o papel diferenciado que a religião vem assumindo nas sociedades

secularizadas, aliás, o próprio termo “secularização” é a palavra chave da relativa

convergência entre ateus e crentes.

Tanto um grupo como o outro são unânimes em afirmar que a religião mudou

drasticamente seu campo real de atuação. Na modernidade, o mundo subjetivo dos

indivíduos passa a ser sua principal morada, enquanto o espaço público sofre

lentamente um processo de “dessacralização”, não uma dessacralização que

evoca formalmente um repúdio pelas crenças, mas aquela que evoca uma

almejada “neutralidade objetiva” em prol de uma maior liberdade subjetiva

individual.

Embora discordando do valor desta interiorização excessiva pela qual a

religião passa, o filosofo britânico Terry Eagleton, defensor do retorno de uma

religião revolucionária ao espaço público, sintetiza muito bem a real condição da

religião em grande parte do mundo:

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A fé religiosa criou uma linha direta entre a interioridade pessoal e a autoridade transcendente [...] com o advento da modernidade, cultura e civilização aos poucos se separaram. A fé resvalou cada vez mais para o domínio privado ou para seara da cultura cotidiana, enquanto a soberania política passou às mãos do Estado secular. A religião representava mais crença do que o Estado liberal se viu apto a administrar, embora este possa seqüestrá-la para obter sua própria legitimação. Ao lado dos outros dois domínios simbólicos da arte e da sexualidade, a religião foi desligada, até certo ponto, do poder secular, e o resultado dessa privatização das três formas simbólicas acabou sendo uma faca de dois gumes. Por um lado, ela puderam atuar como fontes preciosas de valor alternativo e, como tal, de crítica política. Por outro, seu isolamento do mundo público fez com que se tornassem cada vez mais patologizadas. (Eagleton, 2011, pp. 150-151)

A vigorosa religiosidade exterior dos primórdios de nossa civilização, foi

gradativamente substituída por uma acanhada religiosidade quase que

absolutamente individualizada, como afirmou Eagleton, certas esferas simbólicas

foram expropriadas de sua relevância pública e, com esta mudança de status

societário, a esfera do sagrado, como a da sexualidade e da arte, sofreu uma

humanização idiossincrática irreversível.

Do lado oposto dos crentes, como Eagleton, o filosofo francês Luc Ferry,

falando sobre ateísmo humanista no livro O Homem Deus, explica da seguinte

maneira a privatização do sagrado:

Desde Nietzsche, ou mesmo desde a filosofia das “luzes”, com sua crítica a superstição, quantidade de análises consideram o nascimento do universo democrático efeito de uma ruptura com a religião. “morte de Deus”, “desencantamento com o mundo” (Weber, Gauches), fim do “teológico-politico” (Carl Schmitt), “secularização”, “laicização”: Mais ou menos controladas e controversas, essas expressões simbolizam hoje as múltiplas interpretações de uma mesma realidades: o advento de um universo leigo, no seio do qual a crença na existência de um Deus não estrutura mais o espaço político. Não que esse tipo de crença [...] tenha desaparecido. Mas se tornou, para a maior parte de nós, um negócio pessoal, remetendo-se à esfera do privado – sendo a esfera pública levada a observar um estrito neutralidade quanto a isso. (Ferry, 2010, pp. 32-33)

Semelhante ao autor anterior, Eagleton, Luc Ferry assinala no trecho

apresentado o movimento de privatização pelo qual a religião sofre um

enfraquecimento institucional em quase todas as partes do mundo, pelo menos nas

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sociedades onde a forma democrática predomina como política pública. Neste

novo universo valorativo leigo o “sagrado” assume cada vez mais o papel singelo

de “um dos elementos do real”, não aquele anterior papel de “marco inicial do real”,

papel esse que vivenciou por muito tempo em nossa civilização.

Quando se lê as discussões contemporâneas entre ateus e crentes, logo

percebemos que ambos os lados concordam nesta transmutação sofrida pela

religião, nem mesmo o crente mais ortodoxo pensa no sagrado nos mesmos

moldes do passado. As mudanças sociais pelas quais nossa civilização passou e,

ainda passa, vem nos ensinando a lidar com múltiplas faces do sagrado, se hoje

falta univocidade pública de uma confissão de fé, abundam variadas formas que

tentam ressignificar em âmbito individual certo vínculo com o transcendente.

Porém, faltando o quadro referencial das antigas certezas do passado, o

que verdadeiramente pode ser chamado de “sagrado” neste nosso mundo

secularizado?

Acreditamos que esta pergunta é altamente significativa ao campo das

ciências na religião, afinal, sua resposta leva-nos automaticamente a diversas

redefinições do sagrado. Entre estas tantas, uma extremamente original: a

possibilidade de um sagrado sem Deus.

2.3. Uma Espiritualidade Sem Deus

Por mais estranho que possa parecer, uma parte do ateísmo moderno tenta

redimensionar a idéia de “sagrado” em termos puramente humanos. Essa linha

costuma até mesmo falar de uma “espiritualidade sem Deus”, um sagrado

desprovido de divindades estranhas a essência do próprio homem.

Já um segundo grupo de ateus descarta totalmente a possibilidade de

reaproveitamento de categorias ligadas à religião (normalmente esta escola tem

um viés mais cartesiano), para esses ateus nem mesmo os termos usados pela

religião deveriam ser reaproveitados no discurso do ateísmo contemporâneo, ao

invés de uma transformação da idéia de “sagrado”, essa segunda vertente visualiza

o futuro uma plena superação do antigo ideário religioso, ou, em outros termos,

não há mais lugar no mundo para o sagrado.

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Como acreditamos que a primeira linha de pensamento ateísta se liga

historicamente mais ao discurso nietzschiano, iremos dispensar uma atenção

especial a tal escola e, só daremos uma atenção secundária a vertente positivista

do ateísmo, afinal, consideramos esta segunda configuração negativa, não

propriamente um ateísmo reflexivo ou filosófico, mais sim uma negação mais

próxima do senso comum.

Um dos maiores defensores deste “sagrado plenamente humanizado” é o

filósofo francês André Comte-Sponville, que no preâmbulo de seu livro O Espírito

do Ateísmo, esclarece qual a real meta deste ateísmo humanista: “Uma luta contra

a religião? Seria enganar-se de adversário. Mas pela tolerância, pela laicidade,

pela liberdade de crença e de descrença. O espírito não pertence a ninguém. A

liberdade também não”. (Sponville, 2009, p. 09)

Diferente de um ateísmo fechado, que reclama para si o direito de viver

soberanamente sozinho no mundo, Sponville fala de um ateísmo dialético capaz de

conviver com as diferentes formas de significar o mundo, para este autor, a

verdade necessita da liberdade para se afirmar como algo positivo na existência.

Em sua visão o próprio ateísmo precisa ser “espiritualizado”, senão seria um

niilismo negativo incapaz de oferecer um sentido positivo para os seres humanos,

por isso ele escreveu:

Tenho horror ao obscurantismo, ao fanatismo, à superstição. Também não gosto do niilismo nem da apatia. A espiritualidade é importante demais para que a abandonemos aos fundamentalistas. A tolerância, um bem precioso demais para que o confundamos com a indiferença ou a frouxidão. Nada poderia ser pior do que nos deixarmos encerrar num face-a-face mortífero entre o fanatismo de uns – seja qual for a religião que adotem – e o niilismo dos outros. É melhor combater todos eles, sem confundi-los e sem cair em seus respectivos defeitos. A laicidade é o nome desta luta. Resta, para os ateus, inventar a espiritualidade que a acompanha. (Sponville, 2009, p. 10)

O termo “laicidade”, pensado no contexto desta espiritualidade sem Deus, é

um sinônimo de não coercitividade ideológica, para o autor, tanto os crentes das

diversas confissões tradicionais ou, os recentes religiosos autônomos, bem como,

os variados ateístas, niilistas e humanistas, devem aprender o caminho da

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tolerância; embora isso não signifique apatia, afinal o debate de ideias é sempre

um forte indício de tolerância social.

Para Sponville o fundamentalismo não pode ser combatido racionalmente

pelo niilismo sem Deus e sem sentido, o autor afirma nas estrelinhas que é até

possível passar sem Deus e a religião, só não é possível passar nenhum sentido

para existência. Assim, sua espiritualidade ateísta, não abre mão de um sentido

humanamente positivo para o mundo.

Esse posicionamento humanista é óbvio quando Sponville oferece uma

resposta direita a um antigo questionamento:

Pode-se viver sem religião? Vê-se que a resposta, de um ponto de vista individual, é ao mesmo tempo simples e matizada: há indivíduos, sou um deles, que passam muito bem sem ela, na vida cotidiana, ou que passa, como podem, quando um luto os atinge. Isso não significa que todos possam ou devam viver sem ela. O ateísmo não é nem um dever nem uma necessidade. A religião também não. Só nos resta aceitar nossas diferenças. A tolerância é a única resposta satisfatória à nossa questão, assim entendida. (Sponville, 2009, p. 20)

Usando o seu próprio exemplo, o autor supracitado diz que para viver o

individuo não precisa ser necessariamente religioso ou ateu; fazer de uma postura

ideológica à única via para vida é na verdade reduzi-la segundo seu ponto de vista;

a existência seria maior do que qualquer forma pessoal de concebê-la.

Bem diferente de uma “panacéia” universalizante, Sponville expõe seu

ateísmo como uma possibilidade entre tantas outras, sua teoria de uma

espiritualidade sem Deus não é uma nova “tábua de salvação”, é apenas um ponto

de vista sobre velhas coisas e, por inferência, isso inclui uma nova maneira de

vivenciar o “sagrado”.

Mas, em sentido mais profundo, em que consistiria realmente esta

espiritualidade ateísta? Quais os valores que a sustentariam?

Antes de tudo é necessário esclarecermos que, ao falarmos de

espiritualidade, em nenhum momento isso deve confundir-se com “espiritualismo”,

afinal, embora o termo lembre quase que automaticamente a tese religiosa da

existência de “almas”, o que Sponville apresenta é em última conseqüência

“materialismo”, portanto, espírito neste contexto anti-sobrenaturalista é um termo

retórico que sintetiza de fundo processos naturais, por isso ele escreveu:

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A natureza é para mim o todo do real, (o sobrenatural não existe), e existe independentemente do espírito (que ela produz, que não a produz). [...] A natureza existe antes do espírito que a pensa, disso estou convencido. É onde o naturalismo, para mim leva ao materialismo. Mas nem por isso o espírito deixa de existir, ou antes, só isso permite que exista. Ser materialista, no sentido filosófico do termo, é negar a independência ontológica do espírito. Não é negar sua existência (porque, nesse caso, o próprio materialismo se tornaria impecável). O espírito não é a causa da natureza. É seu resultado mais interessante, mais espetacular, mais promissor – pois só há interesse, espetáculo e promessa para ele. A espiritualidade decorre daí, e ela não é outra coisa senão e vida. [...] O fato de o espírito ser corporal não é uma razão para deixar de utilizá-lo, nem para condená-lo exclusivamente às tarefas subalternas! Um cérebro não serve apenas para ler um mapa rodoviário ou para fazer compras pela internet. (Sponville, 2009, p. 131)

Ter espiritualidade é estar interessado nas grandes realizações do “espírito”,

mesmo que se entenda por espírito só aquilo que é pertinente a materialidade

humana. Embora nesta leitura não haja lugar para o sobrenatural, o mesmo não

acontece com a noção de sagrado, tudo aquilo, que, pelo exercício de nossa

espiritualidade, supera a esfera das “tarefas subalternas”, pode legitimamente ser

considerado “sagrado”.

Aquilo que existe não precisa ser pensado para que venha a existir, porém,

ao pensarmos aquilo que existe ganha um novo relevo no mundo, o relevo do

“sentido” ou do “valor”, deste momento em diante a vida torna-se transcendente no

âmbito de sua própria imanência, o ser pensante é a própria natureza se

pensando.

Assim, espiritualidade é um aspecto reflexivo da vida, e não da religião, por

isso o autor francês escreveu:

Toda religião pertence, ao menos em parte, à espiritualidade; mas nem toda espiritualidade é necessariamente religiosa. Quer você acredite ou não em Deus, no sobrenatural ou no sagrado, de qualquer modo você se verá confrontado com o infinito, a eternidade, o absoluto – e com você mesmo. Para isso, basta a natureza. Para isso, basta a verdade. Nossa própria finitude transitória e relativa basta. Não poderíamos de outro modo nos pensar como relativos, nem como efêmeros, nem como finitos. (Sponville, 2009, p. 129)

Segundo o ponto de vista de Sponville, a espiritualidade não é uma

particularidade da vida religiosa, mas sim um elemento de toda vida

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verdadeiramente reflexiva. As mesmas questões que afetam crentes, afetam os

ateus, o que difere são as respostas oferecidas pelos diversos grupos humanos.

Nesse sentido Sponville é um ateu moralista para ele a reflexão existencial

deve melhorar o homem, não desanimá-lo e, por fim, jogá-lo no abismo do niilismo.

A confrontação com nossa finitude deve nos conduzir a uma noção teleológica de

absoluto, ou, fazendo uso de suas próprias palavras: “ser ateu não é negar a

existência do absoluto; é negar a sua transcendência, a sua espiritualidade, a sua

personalidade – é negar que o absoluto seja Deus”. (Sponville, 2009, 129)

O absoluto neste contexto não é algo externo à própria natureza, seria

apenas o conjunto geral de tudo aquilo que existe e, o espírito, epifenômeno desta

conjuntividade, é a função (não uma substância) capaz de organizar esses

diversos elementos existenciais numa cosmovisão.

No entanto, mais que uma mera percepção intelectual do absoluto, Sponville

diz que podemos pensar numa espécie de “misticismo ateu” (Sponville, 2009, p.

117), onde o absoluto seria vivido e não apenas pensado. Para falar desta

experiência ele usa o termo francês “simplicité”, ou em português “simplicidade” e,

tal termo ganha no contexto de sua teoria atéia a noção de uma ação meditativa

capaz de suspender a dualidade entre o sujeito e objeto. Ele mesmo explicou tal

estado da seguinte maneira:

Suspensão da dualidade interna, da representação (no duplo sentido da idéia e do espetáculo), de toda a comédia do ego: colocação do ego entre parênteses. É o que chamo de simplicidade. Você não finge mais ser o que é (é por isso que a simplicidade é o contrário da má-fé, no sentido sartriano do termo), nem ser outra coisa (é por isso que a simplicidade é uma recusa do existencialismo: experimente um pouco, no presente, não ser o que é ou ser o que você não é). Aliás, você não é nada, em todo caso não é um ser nem uma substância: você vive, você sente, você age. (Sponville, 2009, p. 156)

É fácil de perceber nessa descrição de uma “espiritualidade prática”, a forte

influência da tese budista que propõe a anulação do eu (chamam tal prática

meditativa de Anatman), influência que o próprio autor reconhece indiretamente.

Porém, mais importante que as fontes orientais para tal idéia, cabe-nos fazer sentir

a forte influência nietzschiana por trás deste “misticismo ateu”. Aliás, é o próprio

Sponville que cita o dito nietzschiano: “Sou místico, e não creio em nada”

(Sponville, 2009, 177) para ressaltar como seu pensamento se aproximava do

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filósofo alemão. Assim, seu conceito de “simplicidade” certamente foi embasado

nas ideias nietzschianas que frisavam constantemente o valor da sensibilidade

corporal como verdadeiro núcleo de nossa existência pessoal.

O ateísmo de Sponville, com sua espiritualidade imanentista, visa produzir

uma filosofia prática capaz de integrar o ser total, sem apelar nunca para o

transcendental, por isso lemos: “Espiritualidade da imanência, em vez de

transcendência [...] adoro as capelas românicas. Admiro as igrejas góticas. Mas a

humanidade, que as construiu, e o mundo, que as contém, me ensinam mais que

elas” (Sponville, 2009, p. 186).

Ao dizer que seu conhecimento se realiza na “humanidade” e no “mundo”, ao

invés do mundo transcendental da religião, Sponville insere-se definitivamente na

fileira dos ateístas humanistas. A imanência citada pelo autor francês, no trecho

acima, é a referência de uma moral que dispensa uma fonte sobrenatural, por isso,

em contraste com a beleza arquitetônica dos templos religiosos, que aponta para a

pretensa grandeza do espiritual, Sponville visa sensibilizar-nos apontando para

beleza imediata do mundo que nos cerca.

Outro autor francês, o já citado Luc Ferry, está muito próximo desse tipo de

ateísmo defendido por Sponville, proximidade que levou Michel Onfray a taxar o

humanismo transcendental de Luc Ferry e a espiritualidade ateísta de Sponville de

“ateísmo cristão” (Onfray, 2007, p.42). O epíteto pensado por Onfray é de certa

forma coerente, afinal, embora não aceitem a tese da existência de Deus, tanto

Sponville, como também Luc Ferry, normalmente oferecem uma releitura laica da

moral cristã, não a sua superação teorética.

Defendendo seu humanismo transcendental, Luc Ferry escreveu:

Deve-se, então, afastar o mal-entendido segundo o qual a modernidade, reduzida a uma “metafísica da subjetividade”, estaria na equação: onipotência do ego = individualismo narcísico = fim da espiritualidade e da transcendência [...] pode ocorrer, no exato posto desses lugares-comuns ordinários das ideologias antimodernas, que o humanismo, em vez de abolir a espiritualidade, mesmo que em benefício da ética, nos dê acesso, pelo contrário e pela primeira vez na história, a uma espiritualidade autêntica, livre de seus ouropéis teológicos, enraizada no homem e não em uma representação dogmática da divindade. (Ferry, 2010, p. 38)

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Ao contrário da opinião comum, Luc Ferry bem ao estilo Sponville, diz que

ateísmo humanista não vem abolir a espiritualidade; na verdade, em sua opinião,

pela primeira vez na história humana temos acesso a uma espiritualidade

autêntica, ou seja, uma transcendência que não acaba em Deus. O sagrado

apenas muda de lugar, não cessa. A laicização seria para Luc Ferry, não o

esvaziamento do sagrado, mais sim a humanização oportuna do mesmo.

Escrevendo sobre esta mudança do sagrado, lemos:

… a passagem de uma transcendência vertical a uma transcendência horizontal [...] muda a relação do homem com o sagrado, sem implicar absolutamente seu desaparecimento por completo, até e inclusive na ordem do coletivo. A nova transcendência não suscita menor respeito do que a antiga, mesmo que de outra maneira: ela permanece como apelo a uma ordem de significação que, mesmo se enraizando no ser humano, não deixa, nem por isso, de se referir a uma exterioridade radical. (Ferry, 2010, p. 108)

A horizontalidade na qual o novo homem se inscreve, obriga-lhe a assumir

outra relação com o sagrado, ele continua a se comprometer com uma

exterioridade que o traspassa, só que a mesma não lhe vem de cima para baixo

como no passado, agora a linearidade do seu novo olhar leva-lhe ao olhar

recíproco de um semelhante, não a um olhar altivo de um deus.

O que Luc Ferry anuncia é a divinização do próprio homem e de uma ética

que lhe sirva, para ele um ateísmo sem ética é um ateísmo irresponsável e

perigoso em sentido existencial. Como em sua opinião o ser humano é

essencialmente um ser moral, qualquer teoria, mesmo de teor ateísta, que

desconsidera tal dimensão não é uma tese boa para o homem, daí sua conclusão:

… o reducionismo não cessa de pôr quem o defende em desacordo consigo mesmo: no conteúdo do seu discurso, ele é relativista, denuncia a transcendência, [...] mas ele, em seu interior e como qualquer outro, está convencido da verdade das suas descobertas e das suas afirmações [...] ele sai da regra geral, reintroduzindo, em suma, sua subjetividade livre sem poder assumi-la como tal. E é essa negação da pessoa real que retira do materialismo a possibilidade de plenamente se auto-revindicar como humanista. Por isso sua ligação com o tema – pertinente nessa situação – da “morte do homem”, que supostamente deve seguir de perto a de Deus. (Ferry, 2010, p.197)

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O filósofo acusa o ateísmo reducionista, que nega a possibilidade de uma

moral universal, de desonestidade epistemológica. Em sua argumentação o

relativismo que ele aplica, em relação à análise que faz da realidade humana, não

é o mesmo critério usado em suas afirmações absolutistas. Ao negar tudo aquilo

que parece afirmativamente ser universal em certos valores, Luc Ferry vê neste

procedimento um anti-humanismo precipitado; o ateísmo anticristão acaba por

desconsiderar valores morais produzidos pelo árduo caminho evolutivo humano.

Ele faz questão de acentuar a diferença entre sua tese humanista e o que ele

considera o niilismo dizendo:

O humanismo do qual tentei até agora esboçar os traços se enraíza em uma tradição de pensamento bem diversa. Sua relação com a religião cristã é mais sutil, pois não rejeita a sagrado nem a transcendência, apesar de recusar concebê-los pelo modo dogmático do teológico- ético. (Ferry. 2010, p. 197)

O teológico-ético para Luc Ferry é dogmático por apelar para uma

transcendência que vai além do homem, não é o sagrado que deve ser atacado

pelo ateísta humanista, mais sim o deslocamento que produzimos em nome deste

sagrado alheio.

Mas, senão o sagrado da religião, qual o outro que nos é dado?

Para tentar nos explicar as bases deste sagrado, Luc Ferry recorre à

sabedoria dos gregos, é dito:

… os gregos já têm do divino uma concepção que remete, sob alguns aspectos, ao que entendo por transcendência na imanência: pois o divino, no fundo, é ordem do mundo enquanto tal, a harmonia cósmica, que é ao mesmo tempo transcendente em relação aos humanos (exterior e superior e eles) e, entretanto, perfeitamente imanente ao real. (Ferry, 2008, p. 62)

E, criticando a idéia de que os valores humanos foram “criados” pelos

próprios homens, ele nos dá mais uma pista do seu sagrado humanizado:

… os seres humanos jamais fabricaram os valores, tanto hoje em dia quanto no passado. A autonomia não tem nada a ver com a fabricação de valores. Em outras palavras, que poderão surpreender algumas pessoas, os valores são hoje em dia tão exteriores e superiores à humanidade quanto numa perspectiva tradicional. Eu não invento a verdade, eu a descubro. [...] não invento os valores

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morais, como os direitos humanos, por exemplo. Eu os descubro como algo que se impõe a mim, com sua coerência, seu rigor e, se posso dizer assim, sua “dureza” própria. Donde essa estrutura do sagrado que parece ser-lhes inerente, essa encarnação de um invisível no visível, que recebo como algo que tem o caráter de divino (Ferry, 2010, p. 75).

O termo “divino”, escolhido por Luc Ferry para designar a idéia de uma

transcendência imanente, lembra o “espírito absoluto” da tese hegeliana. Em sua

opinião a autonomia do homem moderno não lhe trouxe o poder de criar valores,

segundo seu viés interpretativo, esta autonomia no máximo nos permite escolher

tais valores, nunca verdadeiramente fabricá-los.

Neste ponto podemos perceber como Luc Ferry e, por causa da similitude de

algumas ideias, Sponville também, estão distantes do ateísmo de Feuerbach e

Nietzsche, aliás, ao dizer que os valores são “descobertos” o autor em questão

revela-se mais kantiano do que nietzschiano.

O sagrado para este ateísmo espiritualista de Luc Ferry, seria a percepção de

leis racionais que não defendem do homem para sua existência, valores absolutos

que naturalmente devem reger a vida humana. É isso que ele diz ao declarar:

O humanismo transcendental é, então, um humanismo abstrato, no sentido que tem esse termo quando se trata de compreender a grande declaração: não é no fato de pertencer a uma comunidade que residem os direitos, pois eles são inerentes à humanidade do homem como tal, abstraindo-se seus enraizamentos particulares. Passam os valores universais a serem chamados a fazer junção, enquanto os laços singulares criam sempre o risco, se forem mal compreendidos, de dividir: da religião, o humanismo transcendental, então, conserva o espírito, a idéia de um laço de comunidade entre os homens. Esse laço, simplesmente, não se situa mais em uma tradição, em uma herança imposta a partir do exterior, em uma herança imposta a partir do exterior, em um ponto anterior á consciência, mais posterior, que é onde devemos, de agora em diante, pensar o que pode ser o análogo moderno das tradições perdidas: uma identidade pós-tradicional. (Ferry, 2010, p. 203)

Para o filósofo francês a única forma de enfrentar o niilismo anômico, faceta

ateísta que se fixou com a morte de Deus, é ressuscitando o divino como esfera

consciêncial do próprio homem. Ele diz que só um “universal ético” pode tirar o

homem da zona de risco do relativo, segundo seu posicionamento epistemológico,

a consciência seria capaz inerentemente de fazer uma leitura moral do mundo.

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Luc Ferry cria com seu “humanismo transcendental” uma espécie de

religiosidade laica, onde Deus é substituto por valores humanos transcendentais;

isso seria o que ele recorrentemente alude como o “divino no homem”.

Em seu discurso transcedentalista chega até mesmo falar de uma

sobrenaturalidade humana (Ferry, 2008, p. 73), ou seja, o sagrado seria uma

condição onde o homem racionalmente resolve se sacrificar pelos valores mais

nobres da existência, ultrapassa os limites de sua animalidade em prol de uma

meta “sobrenatural”.

Lógico que essa moral transcedentalista de Luc Ferry, bem como, a

espiritualidade mística atéia de Sponville, não são as únicas formas atéias de lidar

com a enorme vacuidade aberta pela morte de Deus, um segundo grupo de ateus

tenta também ser ouvido.

Estes segundo grupo ateísta é totalmente contrário a manutenção do

vocabulário usado pela religião e, diferente de uma releitura que parte das mesmas

noções entesouradas pelo ideário religioso, propõe uma superação radical da velha

forma de pensar o sagrado.

Para esse segundo grupo ateísta os valores morais não existem por si

mesmos, logo, silogisticamente, não existem verdades morais, só interpretações

morais distintas e sempre criadas pelos homens. Os pensadores desta escola

normalmente são chamados de “niilistas morais” e, habitualmente acreditam que

após o Ateísmo ser aceito por um indivíduo, sua conseqüência mais natural é a

percepção radical de quão sem sentido é a realidade mundana.

Isso não quer dizer que tais pessoas defendam a irracionalidade como melhor

caminho para humanidade, eles apenas denunciam tal método de organização

humana como uma escolha (aliás, normalmente aceitam a escolha racional, como

a melhor para manutenção da espécie) entre outras, ou seja, não importa o que

façamos no mundo, nossos comportamentos nunca são por natureza “bons” ou

“maus”.

Se, para Luc Ferry e Sponville, a contemporaneidade é marcada por uma

espécie de humanização do divino, o que segundo esses autores consiste na

“tradução” quase literal dos conteúdos teóricos e práticos da religião, numa

linguagem humanista, os membros desta outra, escola de pensamento ateísta não

enxergam nesta empreitada exegética algo positivo, acreditam que esta divinização

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do homem é produzida inconscientemente pela nossa falta de coragem de

abandonar totalmente os critérios religiosos que até hoje dominaram nossa

civilização.

Pessoas como Marcel Gauchet e Michel Onfray, contestam frontalmente o

que pode ser chamado paradoxalmente de “ateísmo religioso”. Para eles a

interpretação pós-moderna do mundo deve revelar como nos afastamos de Deus e

da religião, a verdadeira laicização humanista deve criar outros critérios

interpretativos para o real, ao invés do reaproveitamento da linguagem religiosa,

propõem a criação de uma nova linguagem totalmente secularizada.

Num debate histórico entre Marcel Gauchet e Luc Ferry, o primeiro se opôs

veementemente contra a idéia de que a percepção da “morte de Deus” deveria nos

levar ao “homem-Deus”, homem este, divinizado e pronto para assumir a vacância

do antigo Deus da religião. Para Gauchet a pós-modernidade deve revelar

plenamente um “Homem sem Deus”, o sagrado deve ser esvaziado em prol de um

“absoluto terrestre”. Segundo a ótica desencantada deste pensador, a consciência

de quão órfãos somos existencialmente é o único caminho verdadeiramente novo.

Falando sobre o valor desta dessacralização pós-moderna, Gauchet escreveu:

… Não vejo como se possa falar de sagrado no mundo atual, a não ser por uma derivação metafórica mais enganosa que esclarecedora. Quando dizemos que a vida humana é “sagrada”, afirmamos que ela encarna o invisível, que materializa o sobrenatural, que é habitada por uma transcendência, no sentido religioso do termo [...], que ela tira de um outro lugar o valor que exige seu respeito? Não creio. Trata-se apenas de uma imagem, que a reflexão deve nos poupar de tomar ao pé da letra. Esse fato não retira a realidade da interdição protetora da qual a vida é objeto. [...] Há uma superioridade da humanidade em relação a si mesma que não merece o nome de sagrado sem que isso retire algo da força das prescrições que a ele se ligam. Não estamos presos numa escolha binária entre sagrado e profano. [...] A profanação não impede a existência de absolutos sem a garantia sacra (Gauchet, 2008, PP.50,51).

Gauchet denuncia neste trecho como às vezes as palavras são vazias, em

sua opinião o homem contemporâneo não usa mais o termo “sagrado” com a

mesma conotação do passado; falar de algo sagrado hoje em dia é apenas uma

das maneiras de nos referirmos a algo de grande valor humano e afetivo, não

evocamos com esta palavra o sagrado cultivado pela religião.

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É importante notarmos que Gauchet faz questão de ressaltar que o fim do

sagrado religioso não implica no fim de valores absolutos, o que ele tenta mostrar,

é que os mesmos não precisam de um fiador divino, ao “profanar” o sagrado da

religião, segundo a interpretação que o ateísta faz, o homem estaria pronto para

assumir a responsabilidade plena pela suas escolhas.

Ainda interessado em refutar a hipótese de Luc Ferry, que vê na

contemporaneidade de um movimento de “humanização do divino”, Gauchet

destaca um processo contrário onde o divino encontra-se cada vez mais distante

dos assuntos humanos:

… não percebo o que a humanização do divino de que você fala pode recobri. Tudo mostra, a meu ver, que somos testemunhas do movimento contrário. Deus não nos é mais pensável, seja no abstrato da filosofia, seja no concreto existencial da crença, se não num trabalho para separá-lo ou afastá-lo da humanidade. [...] Deus – o Deus dos crentes, assim como o dos incrédulos, insisto nesse ponto- desantropormorfiza-se, em primeiro lugar, no terreno político-social. Ele é contrário à sua idéia de crer que Deus intervém nos assuntos humanos e na organização das comunidades políticas. [...] aos olhos do fiel mais devoto, não há ordem divina. Deus não se ocupa em nos entregar Leis. Há muitos valores cristãos que pesarão nas escolhas dentro do debate coletivo, mais este obedece às suas razões internas (Gauchet, 2008, pp. 52-53).

Deus, na opinião de Gauchet, sai cada vez mais de cena; a fé religiosa não

representa mais uma bússola para nossa atuação pública, diferente de uma

humanização do divino, ele vê o exato oposto desta afirmação, nem o Deus dos

crentes, nem o deus dos descrentes como Sponville e Luc Ferry se sustenta no

mundo profundamente secularizado da pós-modernidade.

Nessa perspectiva o ponto central da visão desantropomorfizadora de

Gauchet, é o de que o desencanto iniciado com a morte de Deus no século XIX

atinge seu apogeu em nossos dias. Porém, diferente de Luc Ferry, que vislumbra

um “religioso humanizado” após a saída da religião, Marcel Gauchet vislumbra um

mundo laico sem Deus e sem a religião, pelo menos no que toca à esfera pública.

O esvaziamento do sagrado, para Gauchet, levaria a um absoluto terrestre, sendo

o mesmo não a divinização da realidade, mas sim a verdadeira evidenciação da

face humana da mesma. Por isso ele explicou:

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Há, no homem, o absoluto - dado que não há outra palavra para a designar o inderivável, o irredutível, o intransigível que encontramos em nossa experiência da verdade, do outro, de valores que nos fazem sair de nós mesmos. Mas por tal motivo mereceria esse absoluto o nome de divino? Não penso assim e estou mesmo convencido do contrário. Ele é humano, não demasiadamente humano, mais nada além de humano. Acredito precisamente que é esta a originalidade de nossa situação: deixando completamente de nos olharmos no espelho de Deus, podemos enfim ver o homem. Graças á dissociação do absoluto terrestre por si mesmo, escapando à falsa alternativa entre o absoluto religioso ou a relatividade demasiadamente humana (Gauchet, 2008, p. 55).

O que é chamado neste texto de “absoluto terrestre” é simetricamente o

oposto do “absoluto religioso”, o segundo, em última instância é apenas outro

nome para Deus, já o primeiro, segundo o posicionamento de Gauchet, é algo que

nasce no homem, e nunca extrapola a base de sua origem. Daí, não precisamos

nunca olhar para além de nossa humanidade para nos fixarmos eticamente em

relação dos semelhantes. O outro e não Deus, é o verdadeiro espelho para nossa

personalidade, pensa Gauchet.

Neste fragmento fica evidente que Marcel Gauchet, com seu absoluto

terrestre, defende também um ateísmo humanista, o que apenas tenta fazer de

diferente, em relação ao seu debatedor (Luc Ferry), é tornar esse humanismo um

pouco mais livre da influência religiosa. Por isso, então, confessou: “O debate entre

nós é um debate de interpretação a respeito de fatos sobre os quais estamos de

acordo. A questão é saber quais são as categorias apropriadas para descrever e

compreender esses fatos” (Gauchet, 2008, p. 58).

Próximo da linha defendida por Gauchet, outro importante filósofo francês

ganhou bastante notoriedade aqui no Brasil com seu “tratado de ateologia”,

falamos de Michel Onfray, aquele que consideramos o mais nietzschiano desta

nova safra de ateus humanistas.

Este pensador ao falar de um “ateologia” visa construir uma teologia às

avessas, uma tese ateísta capaz de desconstruir as reais e humanas motivações

das religiões.

Na primeira parte de seu compêndio sobre a ateologia Onfray sintetiza os três

maiores princípios de sua tese ateológica. Em primeiro lugar o filósofo ateologista

visa executar uma desconstrução dos três maiores monoteísmos religiosos

(judaísmo, cristianismo e islamismo), tenta por esse processo evidenciar que suas

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diferenças são aparentes, o ódio por este mundo material e, a vontade de falsear

um mundo suprahumano, são para Onfray, os reais pilares dos três monoteísmos,

no dizer do próprio francês, o que existe é: “variação de grau, não de natureza”

(Onfray, 2007, p. 45)

Em segundo lugar visa de forma especifica desmistificar o judáico-

cristianismo; evidenciando que a imagem mítica de Jesus foi em grande parte

forjada historicamente nos dois séculos que seguiram após sua morte. Certamente

influenciado pela literatura nietzschiana, ainda no âmbito deste segundo princípio,

Onfray examina particularmente, a figura de Paulo de Tarso. Como um dos

maiores responsáveis por essa falsificação ideológica (Onfray, 2007, p.46).

Como terceiro princípio ateológico Onfray apresenta a necessidade de uma

desconstrução das teocracias, ou seja, diferentes das democracias, onde haveria

de forma ideal a soberania imanente dos cidadãos, os regimes teocráticos são por

natureza os regimes mais cruéis e ditatoriais, por isso, a ateólogo, deve esclarecer

como tais regimes políticos foram usados, e ainda são, para impedir a avanço de

um mundo laicizado (Onfray, 2007, p. 47).

A concepção que Onfray tem de um verdadeiro ateísmo pós-moderno está

bem longe de uma “espiritualidade ateísta”, no entanto, sua idéia de ateísmo

também difere muito de uma visão positivista estreita, é por isso que é dito:

O ateísmo pós-moderno abole a referência teológica, mas também científica, para construir uma moral. Nem Deus nem a ciência, nem céu inteligível nem o arranjo de proposições matemáticas, nem Tomás de Aquino nem Auguste Comte ou Marx. Mas a filosofia, a razão, a utilidade, o pragmatismo, o hedonismo individual ou social, convites para evoluir no terreno da imanência pura, na preocupação dos homens, por eles, e não por Deus, para Deus (Onfray, 2007, p. 44).

Semelhante ao posicionamento de Gauchet, Onfray defende o abandono

radical de referenciais religiosos na construção do ateísmo pós-moderno, porém,

mais próximo do ideal nietzschiano, ele defende uma soltura filosófica capaz de

livrar o ateísmo do reducionismo da ciência positivista. O hedonismo é a prática

desta nova forma filosófica de encarar o mundo, a primazia do corpo, e não a da

alma, orienta a nova vivência do homem secularizado.

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No entanto, esse comportamento hedonista não significa o fim de toda e

qualquer moral, indica apenas a necessidade de construção de uma nova moral

utilitária, não pautada na obrigação, mas sim na liberdade de ser o que se é, daí o

comentário do autor:

Bem e mal existem não mais porque coincidem com as noções de fiel ou infiel em uma religião, mas com respeito à utilidade e à felicidade do maior número possível. O contrato hedonista - impossível ser mais imanente... – legitima toda intersubjetividade, condiciona o pensamento e a ação, prescinde totalmente de Deus, da religião e dos padres. Não há nenhuma necessidade de ameaçar de um inferno ou de seduzir com um paraíso [...] uma ética sem obrigações nem sanções transcendentais (Onfray, 2007, pp. 44-45)

Na visão de Onfray o homem pós- moderno deve assumir seu ateísmo e

aprender a viver sozinho neste mundo, aliás, não tão sozinho, afinal o autor

defende que temos na democracia o verdadeiro remédio para as mazelas

teocráticas até aqui tão comuns.

Evidentemente inspirado nas letras nietzschianas, Onfray fala de uma moral

imanente, um “contrato hedonista” onde as individualidades sejam respeitadas

acima de tudo; a criação de “além-mundos” já não é mais necessária para motivar

os homens, sob a égide desta nova consciência ética ambiciona-se um mundo sem

Deus, porém com melhores homens.

Onfray, seguino de perto o modelo nietzschiano, acusa o discurso religioso de

ser esquizofrênico, ao falarem das vantagens do além os religiosos geram

reativamente um desprezo imenso pelo que é sensível e real, por esse motivo ele

escreveu sobre essa discrepância:

Por encontrar-se entre essas duas instâncias contraditórias, cria-se um buraco no ser, um ferimento ontológico impossível de fechar. Desse vazio existencial sem preenchimento nasce o mal-estar dos homens. (Onfray, 2007, p. 80).

Assim, para Onfray é vital nos livrarmos da influência da religião para

vencermos este mal-estar, segundo seu viés interpretativo, não se decidir a favor

de uma plena materialidade, é manter-se com um buraco existencial aberto, é

padecer de uma esperança impossível de se realizar.

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Embora esse ateísmo defendido por Onfray, transpareça quase sempre a

impressão de ser pura agressividade contra a religião, em nenhum momento o

filósofo defende o “fim de religião”, apenas pensa a possibilidade de uma

sociedade onde as diferenças sejam mais respeitadas, um espaço onde ateus e

crentes possam conviver pacificamente como parceiros interessados num mundo

melhor. Infelizmente, Onfray, semelhante Gauchet, ao criticar a moral cristã deixa

de falar mais profundamente de sua moral alternativa, assim, ficamos sem saber

em que sentido real e prático essa nova moral pós-moderna difere daquilo que já

conhecemos.

Fora da França, ateístas como Richard Dawkins, biólogo da universidade de

Oxford, tentam evitar a pergunta desconcertante: qual a moral que devemos seguir

após a morte de Deus?, com uma resposta pouco filosófica. Para Dawkins, não

devemos perder muito tempo filosofando sobre uma nova moral para homem

contemporâneo, com uma visão estritamente biológica sobre este assunto, o

mesmo tenta nos convencer que a moral e, suas implicações com o altruísmo,

generosidade, compaixão e a empatia, são subprodutos de fatores genéticos à

nossa espécie.

Ele explica que nos primórdios pré-históricos de nossa espécie, a seleção

natural programou impulso altruísta para preservação dos grupos humanos

(inicialmente bandos) e, aquilo que inicialmente foi usado como proteção dessas

pequenas unidades sociais, logo se expandiu geneticamente. Isso é dito

literalmente no trecho que se segue:

Nos tempos ancestrais, só tínhamos a oportunidade de ser altruístas em relação aos parentes próximos e a potenciais replicadores. Hoje essa restrição não existe mais, mas a regra geral persiste. Por que não persistiria? É a mesma coisa que o desejo sexual. Não podemos fazer nada para deixar de sentir pena quando vemos um desafortunado chorando (que não seja nosso parente e não seja capaz de retribuir), assim como não podemos fazer nada para deixar de sentir desejo por um integrante do sexo oposto (que pode ser estéril ou incapaz de se reproduzir). As duas situações são “erros”, equívocos darwinianos: equívocos abençoados e maravilhosos (Dawkins, 2007, p. 288).

Devemos entender que o que Dawkins denomina no final do trecho

supracitado, de “equívocos darwinianos”, não traz a conotação habitualmente

negativa da palavra “erro”, ele apenas está apontando um “desvio funcional”; aquilo

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que primariamente seria usado para manutenção direta da nossa prólen,

elasticamente transforma-se em amor fraternal.

Com seu argumento Dawkins espera mostrar que um ateu não precisa de

Deus para ser bom, afinal, a moral e, suas consequências práticas mais

conhecidas, são epifenômenos originados de funções básicas de auto-preservação

do indivíduo e da espécie.

Achamos que a interpretação que Dawkins oferece sobre a fonte da moral é

muito interessante e pertinente, porém, discutir a origem não é o mesmo que

discutir o “tipo” de moral escolhida, por isso, acreditamos que o viés usado por

esse autor, não atinge o âmago do questionamento contemporâneo. Mesmo que

saibamos que a moral é um efeito colateral da função básica de auto-preservação,

a socialização (sublimação) dá origem a diversas “morais” excludentes, é por esse

motivo que um dos questionamentos mais aberto no âmbito do ateísmo se refere

exatamente ao tipo de moral que viria substituir a chamada moral cristã. Embutido

neste problema, temos, ainda, a questão quantitativa do grau a ser substituído em

prol desta nova moral.

Infelizmente, a escola de ateísmo norte americano, que inclui Richard

Dawkins, Christopher Hitchens, Carl Sagan, entre outros expositores, não costuma

favorecer o exame filosófico sobre que moral devemos adotar daqui para frente,

por isso, consideramos tal abordagem um tanto superficial do ponto de vista

filosófico (talvez tal precariedade seja fruto da pouca formação filosófica dos

ateístas desta escola) e, por esse motivo achamos o exame mais profundo deste

tipo de ateísmo, assaz desinteressante para o contexto do presente trabalho, afinal

como os ateístas humanistas, essa escola mais positivista acredita que podemos

na contemporaneidade passar sem Deus, porém, não oferecem consistentemente

uma teoria metateórica do “depois da religião”.

Todavia, paradoxalmente, dentro da própria teologia norte-americana, um

grupo de ateístas formou-se sob forte influência das teses nietzschianas e,

diferente dos positivistas que tentam encerrar a discussão sobre o “depois da

religião” com um sonoro “não terás nenhum Deus”, essa vertente busca uma

alternativa moral para a época em que vivemos, daí concordarem até certo ponto

com a premissa de que podemos viver sem Deus, no entanto, alertam que não

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podemos viver sem uma noção de um “absoluto” que venha substituir a antiga

divindade morta.

Examinaremos nas linhas que se seguem este viés pouco convencional da

teologia.

2.4. O Mal-Estar na Teologia

Refletindo sobre a laicização do mundo contemporâneo e seu

consequentente esvaziando moral, o filósofo e teólogo Martin Burber escreveu:

Eclipse da luz celeste, eclipse de Deus é, com efeito, o que caracteriza o momento do mundo em que vivemos. [...] Admitamos agora que o homem tenha provocado “a completa remoção do mundo supra-sensível subsistente em si” e que não existam mais os princípios e ideias que, de alguma maneira e em qualquer medida, tenham aderido a ele, ao homem. [...] quando não existe mais um “Deus do homem”, perde sua razão de ser: aquele que se designa por esse nome vive na luz de sua eternidade. Mas nós, seus “matadores”, permanecemos abandonados à morte, residindo nas trevas. (Buber, 2007, pp. 25-26)

Para o teólogo Martin Buber a “morte de Deus” deve ser entendida como uma

espécie de “eclipse de Deus”, ou seja, o homem atual encontra-se desorientado

porque resiste à luz divina, segundo seu ponto de vista, não foi Deus que

verdadeiramente morreu, na verdade, é o homem que se encontra mortificado pela

sua cegueira espiritual.

Porém, ao invés de um distanciamento permanente e irreversível, a metáfora

de um “eclipse” traz a figura de uma obnubilação espiritual temporária.

Otimisticamente, Buber, semelhante a outro teólogo e filósofo, Denis Lecompte, que

acreditava que: “[...] o ateísmo ou materialismo ateu ou ainda o secularismo

ideológico mostram-se pouco sustentáveis; o retorno do religioso contemporâneo

tende a prová-lo [...]” (Lecompte, 2000, p.191), visionava o retorno de um vínculo

mais forte entre o homem e o sagrado.

Normalmente essa ideia de “retorno ao sagrado” é a representação da visão

tradicionalista de grande parte dos teólogos, no entanto, outra linha de teólogos não

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acredita neste retorno, para estes o movimento de secularização veio para ficar; o

corte entre fé e espaço público tende a se aprofundar.

Representando essa segunda maneira de entender a secularização, o teólogo

católico e diretor do centro de estudo das tradições religiosas (CETR), Marià Corbí,

em seu livro Para Uma Espiritualidade Leiga, escreveu o seguinte:

No futuro, não haverá um substituto para a religião que desempenhe os papéis que ela realizava, porque as sociedades pré-industriais não voltarão e porque a epistemologia mítica se tornou inviável.

A religião era um projeto de vida individual e coletivo; um sistema de interpretar o mundo, a humanidade e a vida; um sistema de avaliação e de organização familiar e social; um sistema de moralidade; um sistema inquestionável de crenças [...] uma solução para a vida e para a morte; a religião dava sentido à vida humana. [...] quando se torna impossível, a religião como sistema de crenças perde a capacidade de exercer essas funções, que passam a depender da pura decisão e construção humana. Sempre foi assim, mas não o sabíamos; agora o sabemos com toda a clareza (Corbí, 2010, pp. 201-202)

Nas sociedades pré-industriais, segundo a maneira de Corbí entender o

surgimento da modernidade, a vivência individual e coletiva eram razoavelmente

estáticas, por isso a religião como sistema de crenças era o principal aparelho

ideológico para fixação dos valores, sistema valorativo que por ser inquestionável,

não precisava concorrer com outros sistemas.

As sociedades surgidas após a revolução industrial mudaram todo cenário

pré-moderno; nas sociedades modernas tudo é móvel, coisa nenhuma deve ser

concebida como fixa, a principal qualidade dessas novas sociedades é sua grande

capacidade de adaptação, tudo pode mudar, desde que isso seja conveniente. De

acordo com esse novo fluxo interpretativo, a avaliação moral e espiritual do mundo

busca uma maior maleabilidade, com isso, a religião perde a sua mais cara

qualidade: a perenidade do idêntico a si mesmo.

Como foi acentuado por Corbí, o futuro multidiscursivo da humanidade parece

vetar o retorno ao “sagrado pleno” de nosso passado pré-industrial. Entretanto, isso

não significa que não se tentará múltiplas formas de ressignificação deste tema,

surpreendentemente, até mesmo uma forma de ressignificação denominada de

“ateísmo cristão”, foi pensada no terreno da cristandade como uma possível solução

para o impasse pós-moderno da secularização.

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A ideia, para muitos estranha, de um cristianismo a religioso, parece ter tido

sua origem com um clérigo protestante chamado Bonhoeffer, líder religioso que foi

detido em abril de 1943 na Alemanha por causa de seu engajamento político. Por

motivos ligados a sua visão ecumênica e sua franca posição libertária, acabou

sendo executado na Alemanha hitlerista no campo de extermínio de Flossenburg, na

alta Baviera, pela acusação de alta traição. A execução ocorreu na madrugada de 9

de abril de 1945. (Cibellini, 2002, p. 115)

Para Bonhoeffer, a época moderna foi entendida como o período do “mundo

tornado adulto” (Cibellini, 2002, p.115). Assim, ele acreditava que a fé religiosa

neste mundo adulto deixaria de ser uma coisa relevante, ou seja, caminhamos para

uma época totalmente não-religiosa, onde mesmo a visão cristã, deve sofrer uma

secularização radical (Cibellini, 2002, p.118).

O anúncio da morte de Deus foi entendido por esse teólogo como prenúncio

de outro momento para humanidade, em sua leitura o homem estava amadurecido e

pronto para vivenciar o vazio deixado pelo declínio das certezas religiosas.

Em sua obra a teologia do século XX, Rosino Cibellini comenta da seguinte

forma essa visão desafiadora de Bonhoeffer:

Ao desafio do processo moderno em direção à autonomia do homem, Bonhoeffer responde traçando as linhas de uma theologia crucis; a impotência intramundana de deus na cruz de cristo é vista como o Pendant da autonomia do homem da autonomia do homem: Deus não se ergue sobre a fraqueza do homem, mas se revela na impotência da cruz, no centro da realidade secular, e chama à vida e à particularização na dor de Deus na história (Cibellini, 2002, p. 120)

Ao invés de tentar justificar teleogicamente o sofrimento humano, em sua

teologia o homem torna-se participante da própria dor de Deus; divindade que nessa

época moderna precisa morrer para facultar a autonomia dos seus antigos

adoradores. Segundo esse novo posicionamento teológico, a incapacidade de Deus

pai livrar da cruz o Deus filho, foi uma antecipação da própria incapacidade futura

que a divindade enfrentaria para manter-se viva.

Interessantemente, Bonhoeffer com essa mensagem ácida, dirigida à religião

institucionalizada, não visava o fim do cristianismo, nem tão pouco uma espécie de

“ateísmo cristão”, tinha como interesse apenas uma mudança de centro

gravitacional no sagrado, em sua visão, a religião só continuaria viva falando de

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“dentro” do mundo, na modernidade o sagrado deveria sofre uma mundanização

dos seus conteúdos outrora pensados como exteriores ao homem. Falando sobre

essa nova perspectiva da religião pós-morte de Deus, Cibellini diz o seguinte sobre

o novo cristianismo proposto por Bonhoeffer:

… um cristianismo não de fuga, mas da fidelidade ao mundo: de um

cristianismo que deve ser vivido na responsabilidade, na participação

e na solidariedade; de um cristianismo universal em processo de

desocidentalização, que passa a outros povos e se torna capaz de

novas palavras e de novas ações (Cibellini, 2002, p. 121)

Assim, Bonhoeffer não defende em sentido direto um ateísmo cristão,

buscava apenas entender que a secularização do mundo era inevitável, desta

maneira, o melhor para o cristianismo era perceber a nova face do mundo e, com tal

percepção adaptar-se à moderna configuração mundana.

Porém, se como dissemos Bonhoeffer não era um ateísta cristão, suas

palavras levaram alguns de seus discípulos a tal postura radical; a ideia de um

“mundo maduro” foi interpretada como uma nova situação na qual o homem

contemporâneo devia se ver no mundo como um “órfão”. A morte de Deus, nessa

nova leitura radical, deixa de ser pensada como uma metáfora de transição, para

ganhar relevo de “condição histórica necessária” no nascimento de um novo mundo

e de um novo homem.

No início dos anos sessenta, dois teólogos americanos, Willian Hamilton, do

Theological Seminary de Colgate-Rochester e Thomas Altizer, da Emory University

(Atlanta), tornaram-se mundialmente conhecidos com a publicação de uma espécie

de manifesto intitulado A Teoria Radical e a Morte de Deus (1966). Com tal

publicação tivemos uma primeira sistematização do que viria a ser conhecido como:

“teologia radical”.

Avaliando a crise de fé na teologia de seu tempo, Altizer faz a seguinte

descrição do que pensava ser o verdadeiro cenário religioso:

De modo paradoxal, a teologia se vê forçada a usar a linguagem que proclama a morte de Deus. Neste setor os estudos bíblicos tem dado um passo adiante, uma vez que a consciência histórica não é simplesmente um sinal de decadência ocidental, como Nietzsche

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afirmava. Tem sido, ao contrario, um meio primitivo de desejar a morte de Deus, mudando a transcendência em imanência, com a compreensão de uma nova e estranha forma de autonomia humana [...] A forma original do evangelho, que antes era considerada território de “fé”, se reduz ao nível do “mito”. Fundamentalmente, o verdadeiro estudioso da bíblia se dedica a destruir mitos. [...] Uma teologia voltada para o futuro deve existir primeiro no presente, que será não uma extensão do passado, mas a sua culminância e, para nós, um momento de vazio e de falta de sentido (Altizer e Hamilton, 1967, pp. 32-33)

Refletindo sobre a terrível vacuidade da teologia de seu tempo, Altizer

esclarece que a crítica histórica era usada não como mais um elemento intelectual

para fundamentação da “fé”, ao contrário, era usada com instrumento de

desconstrução mítica, promovendo dessa forma não o aumento da crença em Deus,

mas sim a descrença camuflada em erudição.

Fica evidente no texto apresentado a forte influencia do anúncio nietzschiano.

Para o teólogo radical, toda teologia contemporânea respirava subterraneamente a

consciência dolorosa da morte de Deus.

Para o pensador a “culminância” desta nova teologia se manifestava como

consciência madura que flertava com o vazio e com a falta de sentido de nossos

tempos. Segundo Altizer, a renovação de uma nova teologia dependia da aceitação

da morte de Deus, só assim uma interpretação radical, pautada num mundo

totalmente humanizado poderia vingar, daí escreveu:

A aceitação do presente exige a aceitação da morte de Deus, o desejo da morte de Deus. Não há outro caminho para o presente profano senão a aceitação livre da morte de Deus. Assim, de certa maneira, o cristão vive preso à existência de um mundo sem Deus; sob outra perspectiva, a existenz profana descoberta pelo nosso destino poderá ser ainda o caminho para uma forma universal de fé (Altizer e Hamilton, 1967, p.77)

Altizer não coloca a consciência da morte de Deus como uma possibilidade,

mas como uma condição necessária para o amadurecimento da “fé”. Seu viés é

aquele que defende uma consciência atéia radical, o caminho contemporâneo é o

da secularização, um caminho aberto pela lacuna surgida com a morte de Deus.

Neste novo mundo sem Deus o sagrado vai parar no mesmo espaço simbólico do

profano, ou seja, embora Deus tenha morrido, o sagrado não é reduzido a nada,

apenas é ressignificado no âmbito da mundaneidade plena.

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Porém, como entender a proposta de uma nova “fé universal” depois da morte

de Deus? Não seria o Deus morto o único “centro” capaz de sustentar a promessa

de uma fé verdadeiramente universal?

O teólogo ateísta Altizer coloca a ideia de um “centro significador” fora do

mundo espiritual, em sua opinião, o verbo que se fez “carne”. É o único centro viável

num mundo materialista e dessacralizado, por isso ele explicou:

No entanto é agora que o mundo cristão está desmoronando e, contraditoriamente, é agora que a fé deve incorporar a si mesma o total significado e realidade do mundo. O verbo se fez carne no nosso mundo; deve portanto, de maneira plena e total, tornar-se “carne”, torna-se profano e negar todas as formas de encarnação que realizem um compromisso não-dialético entre carne e espírito. O verbo que realmente se faz “carne” não é mais “espírito”, do mesmo modo que a “carne” que é transfigurada pelo “espírito” não pode mais ser “carne”. [...] portanto, a única linguagem adequada para a encarnação é a linguagem do paradoxo mais profundo e, talvez a linguagem do profano radical possa unicamente testemunhar o pleno advento da encarnação (Altizer e Hamilton, 1967, pp. 37-38).

A nova linguagem da “fé” não é mais a linguagem de quem negava a “carne”

em prol do “espírito”, para Altizer uma carne transfigurada pelo espírito é aquela que

habita em sua plena materialidade. No entanto, isso não significa negar um novo

“centro espiritual” pautado na imagem ideal de “cristo”, o verbo encarnado é a

representação de uma ética cristocêntrica resgatada a partir da imanência.

Explicando como essa ética cristocêntrica deve operar em nosso mundo sem

Deus, o parceiro intelectual de Altizer, Willian Hamilton escreveu:

A morte do Deus Protestante parece ter invertido a relação usual entre fé e amor, teologia e ética, Deus e o próximo. Do pólo – Deus é fé – deslocamo-nos para uma atitude de amor e interesse pelo próximo, não como consequência do amor de Deus mas, ao contrário, como fruto de uma sensação de perda de Deus. Consideramos que essa sensação deve ser apenas constatada; não é motivo de alegria nem de tristeza, nem tampouco um fato que todas as pessoas devam sentir. Assim, enquanto esperamos, ficamos no mundo ao lado do nosso próximo e do nosso inimigo (Altizer e Hamilton, 1967, p. 68).

A ética cristológica de Hamilton não é a ética apática do niilismo, diferente de

um sentimento interno de desprezo ou indiferença, por descobrir que o mundo não

tem um sentido transcendental, o ateísta cristão deve envolver-se radicalmente com

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as coisas do mundo. O amor oferecido ao próximo, antes justificado como reflexo do

amor de Deus, agora tem como fonte a perplexidade da situação comum de

desamparo sentida pelo gênero humano. Não amamos os semelhantes por causa

de nossa pretensa superioridade espiritual, segundo o pensamento de Hamilton,

nosso amor nesta nova fase da história humana, deve brotar pelos poros, antes

ocultos, de nossa carnalidade agonística.

O discurso construído por Altizer e Hamilton, se aproxima muito do discurso

humanista de outros ateus laicos já abordados em nosso trabalho, em última

instancia, a fé deveria se transformar em amor e, a teologia transmutada em uma

ferramenta humana, deveria tornar-se uma ética de responsabilidade com nosso

mundo real.

O único elemento que diferencia o ateísmo cristão da teologia radical, do seu

irmão laico de viés humanista, e a figura paradigmática de Jesus. Na teologia da

morte de Deus a exemplaridade da vida humana de cristo é pensada como “centro

ético” dessa nova vivência mundana, por isso, embora tais pensadores saiam dos

grupos dos “deísta” e “teístas”, permanecem eticamente vinculados aos cristãos.

Assim, um dos pontos de convergência mais evidentes entre os diversos

grupos ateístas, é aquele que afirma de diversas maneiras que o homem pode viver

muito bem sem Deus e a religião, porém, isso não significa viver sem uma

referência ética absoluta, mesmo que essa referência seja entendida como uma

“ilusão necessária”. Em outras palavras, existe ainda muita polêmica sobre que tipo

de moral deve servir como base de vivência do novo homem, todavia, parece que

todas essas discussões apontam para um ponto em comum: não há como sustentar

humanamente este novo mundo sem uma nova moral.

2.5. Os Efeitos Silenciosos da Secularização

Como último tópico deste capítulo, devemos ainda analisar brevemente como

o “Anúncio da Morte de Deus” (anúncio que se manifesta mais evidentemente, como

vimos, na laicização do mundo), pode ser sentido de uma forma mais sutil e menos

explícita fora do próprio discurso ateísta, muitas vezes, até mesmo embutido,

subterraneamente nos diversos discursos religiosos contemporâneos, bem como, na

prática destes novos grupos “religiosos”.

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No Brasil, o fenômeno da secularização é bem ambíguo, normalmente o

discurso secularizado não ganha “ares” de uma escola bem sistematizada, ao

contrário de uma “mensagem laicizante” que faça prosélitos entre os crentes,

podemos sentir o efeito da laicização na “prática” religiosa cotidiana.

Citando os dados estatísticos de uma conhecida revista evangélica, o

reverendo presbiteriano Augustus Nicodemus, em seu livro O Ateísmo Cristão e

Outras Ameaças à Igreja, diz que após uma entrevista realizada entre jovens

evangélicos de 22 denominações, sendo grande parte dos entrevistados solteiros e

freqüentadores assíduos dos ofícios religiosos (muitos nascidos em lar evangélico),

foi constatado que 52% dos entrevistados já haviam tido relações sexuais e, entre

estes, cerca de metade confessaram ter uma vida sexual ativa (Nicodemos, 2011, p.

99).

O reverendo em questão se mostrou estarrecido com o resultado desta

pesquisa e, em tom de preocupação acaba por dizer que, se essa pesquisa fosse

atualizada (a reportagem que ele usa como fonte tinha sido publicada, em setembro

de 2002), ele acreditava que teríamos números últimos ainda mais elevados (Ibid.,

p. 99).

Baseados nos dados oferecidos pelo reverendo protestante, podemos

vislumbrar a grande alteração pela qual passa o cenário do tradicionalismo

evangélico no país, aquilo que antes era considerado pela grande maioria dos

praticantes um “grave pecado”, modernamente passa a ser tolerado como “pecado

menor” e, em alguns casos específicos, as relações sexuais fora de casamento são

interpretadas com fase normal do amadurecimento humano.

Entre os católicos essa mudança de cenário é também evidente. Numa

pesquisa realizada pelo ibope, onde o questionamento visava revelar o número de

religiosos que apoiavam o “casamento homossexual”, 50% dos católicos se

mostraram favoráveis a união homoafetiva (Globo, 2011).

Nesta pesquisa realizada pelo ibope os evangélicos são citados como o

grupo religioso mais resistente no que toca a união homoafetiva, só 23% dos

mesmos é favorável a união entre homossexuais. Porém, esse número pode ser

considerado alto se considerarmos que num passado recente, tal número de

aceitação seria impossível e, é preciso lembrar que recentemente o pastor Marcos

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Gladstone, fundador da igreja contemporânea, institucionalizou a união homoafetiva

em sua denominação religiosa (Época, 2007).

No entanto, a prática sexual não é a única esfera da vida humana afetada

pela secularização, na realidade até mesmo a maneira habitual de pensar a religião

e o sagrado sofre radical alteração. Não é incomum hoje situarmos as variadas

igrejas da contemporaneidade no setor social de “prestadoras de serviço”, ou seja, a

secularização leva-nos a encarar as diversas denominações religiosas como

empresas.

Tratando em seu livro Bispo S/A: a igreja universal do reino de Deus e o

exercício do poder, o cientista da religião Odêmio Antônio Ferrari, descreve algumas

das mudanças iniciadas pelos chamados movimentos neopentecostais no cenário

religioso brasileiro:

… no Brasil, na década de 1970, a caminhada pentecostal, sob influência de novas correntes pentecostais norte-americanas e da teologia da prosperidade, originou um novo pentecostalismo. O ícone desse movimento é a igreja universal do reino de Deus [...] a igreja universal distanciou-se do pentecostalismo clássico ao construir um „novo jeito de ser crente‟, o qual não mais se pautou no isolamento e na espiritualidade da privação. [...] O neopentecostalismo percebeu que não é mais possível estabelecer uma religião de proibição aos frutos do progresso tecnológico e comercial. A teologia da prosperidade foi absorvida e vivida intensamente pelos neopentencostais, vivência que se refletiu no culto e no agir do “novo crente”. Sua clientela foi instigada a viver inserida no mundo globalizado, assumindo os valores do mercado (Ferrari, 2007, p. 11).

O autor supracitado revela no trecho colhido de seu livro, que a nova teologia

do neopentecostalismo é uma teologia de mercado, a fé é reduzida a mais uma das

variadas mercadorias do sistema de consumo, o membro ou adepto, das antigas

comunidades religiosas, é substituído por um “ávido cliente” disposto a “investir na

fé”.

A figura do pastor carismático e sedento por “ganhar almas” é gradualmente

apagada pelo perfil ideal. Hoje em dia, mais do que o “profeta carismático” do

passado, o líder religioso converteu-se numa espécie de empresário da fé, assim,

suas metas se tornam cada vez mais “econômicas”, os projetos organizacionais não

visam espiritualizar o grupo de religiosos, ao contrário, o ambição desmedida por

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acúmulo de bens materiais é abertamente defendida como a verdadeira intenção

dos “novos e prósperos filhos de Deus”.

Segundo o ponto de vista de Ferrari, a expansão e popularização do modelo

capitalista favorece muitissimamente o crescimento dessas novas igrejas, bem

como, num progresso inverso de retroalimentação, o próprio crescimento das novas

denominações favorece a solidificação da visão de consumo do capitalismo, sobre

isso ele escreveu mais especificamente:

Estamos numa época de transição e crise de projetos entre a modernidade é a pós – modernidade. A economia e política mundial estão regidas por um novo “avivamento” do capitalismo em escala planetária, interferindo em todos os aspectos do viver dos povos. O fenômeno religioso tem uma presença marcante nesse contexto. O sagrado volta a receber atenção da humanidade, visto que as filosofias iluminista e o tecnicismo econômico não conseguem responder ás grandes questões humanas. A secularização em declínio dá lugar à “dessecularização”, tornando o sagrado fonte de legitimações ideológicas na sociedade globalizada (Ferrari, 2007, p.p 13,14).

Para Ferrari, as religiões nesse novo contexto globalizado são um importante

instrumento mercadológico para fortalecimento do capitalismo, suas bases

teológicas refletem não mais o anseio pós-morte de uma vida espiritual melhor, o

novo crente quer a sua recompensa neste mundo material e, o fato de prosperar

economicamente é interpretado teologicamente como prova visível do beneplácito

divino.

Ainda sobre a opinião defendida por Ferrari, embora concordemos com a

maior parte de sua argumentação, só não podemos aceitar a ideia de que o mundo

passa por um processo de “dessecularização”, afinal, é mais fácil observarmos uma

espécie de sacralização do antigo profano, ou, em outras palavras, a secularização

do mundo contemporâneo impõe silenciosamente uma nova configuração ao campo

religioso. Também, é importante ressaltarmos que a secularização que vem

acontecendo no Brasil tem suas características próprias. Diferente de um discurso

teoreticamente forte intelectualmente, como o difundido por toda Europa, aqui no

Brasil a discursividade laica esconde-se atrás de uma religiosidade pragmática e

pouco reflexiva, assim, paradoxalmente pode-se viver como um ateu, apenas

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interessado na materialidade da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, preservar certas

crenças místicas ou religiosas.

Essa postura um tanto anômala de uma “secularização mística” do povo

brasileiro, provavelmente tem como fonte de inspiração o que acontece nos Estados

Unidos da América. O filósofo Theodor adorno, em seu livro As Estrelas Descem à

Terra, depois de analisar a coluna de astrologia do Los Angeles Times, observou

como essas superstições aparentemente inócuas, favorecem o recrudescimento do

capitalismo e, ao mesmo tempo, produzem uma secularização saturada de

elementos místicos. Ele explicou o sucesso de tal superstição da seguinte maneira:

A astrologia, embora às vezes aspire a uma intimidade com a teologia, é basicamente diferente da religião. A irracionalidade na sua fonte não é apenas mantida remota, como envolve um tratamento impessoal e coisificado [...] a filosofia subjacente à astrologia está na linha do que poderia ser chamado de sobrenaturalismo naturalista. [...] na mesma medida em que o sistema social é o “destino” da maioria dos indivíduos, independentemente de sua vontade e interesses, ele é projetado nas estrelas de modo a, assim, obter um grau maior de dignidade e justificação, do qual os indivíduos esperam eles mesmos participar. [...] O envolvimento com a astrologia pode oferecer àqueles que se deixam levar por ela um substituto para o prazer sexual de natureza passiva. Em primeira instância, isso significa a submissão à força desenfreada do poder absoluto. Entretanto, esta força e este poder que, em última análise, derivam da imago do pai são completamente despersonalizados pela astrologia. (Adorno, 2007, p.45)

Muito diferente do que ocorre com a religião institucionalizada, o discurso

relativamente secularizado das novas religiosidades místicas, tomando o exemplo

emblemático oferecido por adorno em seu estudo sobre a astrologia, abrem mão até

certo ponto da imagem tradicional de um Deus. O sentido da vida não estaria mais

ligado a leis fixadas por um “senhor do universo”, agora o próprio universo é

personalizado como senhor, cabe aos humanos apenas descobrirem as melhores

influências cósmicas para seu destino. O termo “sobrenaturalismo naturalista”,

criado por Adorno, é bem ilustrativo. Na astrologia, o próprio sobrenatural é reduzido

à noção de uma natureza oculta que se revela tecnicamente pela arte do

conhecimento astrológico, sem a necessidade de rezas, orações ou qualquer outra

mediação especial.

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Ao mesmo tempo em que esta forma autônoma de religiosidade secular

confere um sentido para o universo (humanização), este sentido não é pensado

como “obrigação moral” para um Deus, mais sim um processo de atomização do

seu próprio destino pessoal.

Ainda falando sobre a forte ilusão de liberdade ocasionada por esta nova

religiosidade autônoma, e, como essa bela fachada esconde a intenção oculta de

nivelamento instrumental das consciências individuais, Adorno escreveu:

… a ideia de que a liberdade do indivíduo resulta em agir da melhor maneira possível, com a base no que uma determinada constelação permite, implica a ideia de ajustamento, com a qual a astrologia está alinhada [...] de acordo com esse conceito, a liberdade consiste em que o indivíduo tome voluntariamente como seu aquilo que, de qualquer maneira, é inevitável. Desse modo, a casca vazia da liberdade é zelosamente preservada. Se o indivíduo age de acordo com dada conjuntura, tudo dará certo; se não, tudo dará errado. [...] talvez se pudesse dizer que, na astrologia, há uma metafísica implícita de ajustamento por atrás do conselho concreto de ajustamento na vida cotidiana (Adorno, 2007, p. 50).

O filósofo de Frankfurt, no trecho apresentado, está afirmando que esta

metafísica de ajustamento é mais um instrumento ideológico em prol da hegemonia

capitalista. A ideia abstrata de ajustar-se a determinadas influências astrais, seria

apenas um disfarce para lógica mercadológica imposta a todos.

Isso explica muito bem, em sentido análogo, o espantoso sucesso dos

“romances espíritas” e outros “livros místicos” aqui no Brasil; na verdade tal literatura

oferece uma religiosidade descompromissada e profundamente individualizada. O

Deus da teologia é substituído por um “destino cármico despersonalizado” e, como

foi muito bem observado por Adorno, o indivíduo só deve buscar o “ajuste”, afinal,

seu destino não é escolhido por uma divindade, mas sim pela adaptação as leis

cósmicas que normalmente reproduzem a sua própria vontade egocêntrica.

Adorno, ao examinar a necessidade que, as ditas sociedades civilizadas

apresentam em usar certos esquemas que possibilitem instrumentalmente o uso

favorável da irracionalidade para apoiar o “sistema”, comentou o seguinte sobre

esse propósito alienante:

Para o indivíduo, a crença astrológica não é uma expressão espontânea de sua vida mental, não é “algo seu” da mesma forma que o conteúdo do sonho, mas sim algo que ele encontra pronto,

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uma irracionalidade cuidadosamente preparada e pré-digerida. Nessa medida, o termo “fábrica de sonhos” aplicado aos filmes aplica-se também à astrologia. É precisamente esse caráter pré-digerido da astrologia que produz sua aparência de normalidade e sua aceitação social, e tende a diluir a fronteira entre o racional e irracional que é geralmente bem demarcada quando se trata do sonho e da vigília. De forma muito semelhante à indústria cultural, a astrologia tende a eliminar a distinção entre fato e ficção: seu conteúdo é muitas vezes exageradamente realista, ao mesmo tempo em que sugere atitudes baseadas em fontes inteiramente irracionais… (Adorno, 2007, p. 59).

O fenômeno da secularização aumenta a razoabilidade das mensagens

vindas dessa grande “mídia mística” que de forma bastante sutil acabam assumindo

o papel antes ocupado pelas instituições religiosas tradicionais. Adorno compara a

alienação produzida pela astrologia aos sonhos vividos de forma automática ao

dormirmos; da mesma forma que o conteúdo onírico é produzido espontaneamente

pelo “inconsciente”, certo “inconsciente social” é produzido para que possamos

“sonhar acordados”, assim, a irracionalidade das mensagens místicas recebe uma

camuflagem montada a partir de variados elementos cotidianos. Novamente,

devemos lembrar como aqui no Brasil o realismo de certos romances espíritas, bem

como, mais recentemente, produções cinematográficas caríssimas, vem

empolgando um número cada vez maior de consumidores sedentos por histórias

que misturem ficção e realidade de forma mais plausível. Como foi dito por Adorno,

o apelo realista da indústria cultural, visa certo entorpecimento cognitivo que deve

abafar de forma ilusória as nítidas diferenças entre o “real” e “imaginado”, assim, de

forma subliminar, ideais como “destino”, “carma”, “reencarnação”, entre outras ideias

que nos levam a um ajuste com as leis cósmicas, são introduzidas ocultamente com

as novas bússolas teleológicas da contemporaneidade.

Essa “religiosidade secularizada”, embora aconteça modernamente fora das

instituições religiosas tradicionais, acaba por estabelecer um quadro de referência

societária comum, por isso, mesmo não acreditando nas referências simbólicas das

religiões do passado, essa nova experiência de uma religiosidade autônoma, faz

com que esse novo homem transcenda sua finitude individual e sinta-se acolhido

num novo universo simbólico onde o individualismo e o subjetivismo das crenças

ganha ares e status de “sagrado”.

O já citado reverendo presbiteriano, Augusto Nicodemus, na sexta parte de

seu livro sobre o ateísmo cristão, fala desses religiosos autônomos como os

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“desigrejados”, e explicando os possíveis motivos para o surgimento desta nova e

crescente conjunção de pessoas, escreveu:

O surgimento de milhares de denominações evangélicas, o poderio apostólico de igrejas e seitas neopentencostais, a institucionalização e secularização das denominações históricas, a profissionalização do ministério pastoral, a busca de diplomas teológicos reconhecidos pelo Estado, a variedade infindável de métodos de crescimento de igrejas, a falta de crescimento das igrejas tradicionais, o fracasso das igrejas emergentes - tudo isso tem levado muitos a se desencantarem com a igreja institucional e organizada (Nicodemus, 2011, p.153).

Interessantemente, aqui no Brasil a secularização não é produzida

reflexivamente como resultado de uma “filosofia do desencanto”, na verdade, como

escreveu Nicodemus ela é mais culpa dos “teólogos” de que dos “filósofos”, ela

nasce do mesmo terreno que antes se cultivava a “fé”.

Porém, o afastamento religioso não é somente um subproduto do fracasso

institucional das religiões, o próprio reverendo (sendo este um tradicional), acaba

por confessar que tal fenômeno também se liga ao “espírito da época”, sobre isso

lemos:

Mas esse tipo de atitude anti-instituição, antidisciplina, antirregras, antiautoridade, antilimites de todo tipo se encaixa perfeitamente na mentalidade secular e revolucionária de nosso tempo, que entra nas igrejas travestida de cristianismo (Nicodemus, 2011, p. 156).

Segundo o ponto de vista do reverendo protestante, no Brasil o verdadeiro

inimigo do cristianismo não é o ateísmo (pelo menos não neste momento histórico),

mas sim os próprios cristãos.

A mentalidade secular que cada vez mais invade às fileiras religiosas produz

uma criticidade pouco compatível com o pensamento dogmático e, como disse o

reverendo Nicodemus, a busca por uma adequação formal com o espaço público,

cada vez mais secularizado, acaba por “implodir” reativamente as últimas colunas

do tradicionalismo religioso.

O antropólogo católico René Girard semelhante ao reverendo Nicodemus,

atesta o movimento aparentemente irreversível de secularização pela qual a religião

institucionalizada passa, porém, aponta para possíveis perigos trazidos no bojo de

laicização radical, ele escreveu:

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Hoje devemos perguntar-nos o que significa viver em um mundo onde se pretende menosprezar a religião. Não é isso um perigo, em particular o perigo de um desencadear da violência? Em um mundo onde, como sabemos, estamos movendo-nos em uma direção que leva verdadeiramente à possibilidade de chegar ao fim do mundo como nós o conhecemos, não é que o desaparecimento da religião nos expõe a perigo do desencadear-se de uma dimensão “apocalíptica”? [...] nós hoje nos movemos como se fôssemos os donos do mundo, como se fôssemos os senhores da natureza sem qualquer mediação ou arbitramento, como se tudo o que fazemos não pudesse ter repercussões negativas. Mas sabemos todos, muito bem como esses tabus arcaicos tinham um valor e um significado. Os seres humanos, assim como as nações, não podem viver sem uma ética (Girard e Vattimo, 2010, p.32).

O “Apocalipse” como imagem metafórica usada neste contexto por Girard não

é aquele apocalipse protestante onde Deus usa sua “violência sagrada” para acabar

com o mal, ao contrário, para o antropólogo é o “mundo tornado mal” por uma

secularização absoluta, onde nem mesmo uma ética humana se sustente. Isso é

que pode levar a um desastroso fim.

Como já dissemos antes em nosso estudo, o que é dito pelo antropólogo

René Girard em essência, é o maior de todos os pontos de convergência entre

ateus humanistas e religiosos liberais, o homem moderno até pode passar sem

Deus, no entanto, não pode passar sem uma nova representação valorativa que

assuma algumas das qualidades universalizantes da antiga divindade, ou em termos

mais diretos: não podemos viver sem uma moral.

No entanto, alguns religiosos não enxergam na secularização um “perigo

apocalíptico”, ao contrário disto vêem alguns pontos positivos nesse processo de

desencantamento do mundo. O filósofo católico Gianni Vattimo está entre esses

pensadores mais otimistas e, num debate que tinha como tema o cristianismo e o

relativismo, disse o seguinte sobre a secularização:

A palavra-chave que comecei a empregar [...] é precisamente secularização, como efetiva realização do cristianismo como religião não sacrifical. E nessa direção eu avanço, vendo como positivo muitos fenômenos aparentemente escandalosos e “dissolutos” da modernidade. A secularização não seria o abandono do sagrado, mas a integral aplicação da tradição sacra a determinados fenômenos humanos. [...] nesse sentido, tenho uma teoria positiva da secularização, que parte da reinterpretação não-vitimaria das escrituras, por parte da igreja. O cristianismo é finalmente a religião

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que abre o caminho para uma existência não estritamente religiosa, no sentido dos laços, da imposição, da autoridade… (Girard e Vattimo, 2010, pp. 28-29).

Para Vattimo, a secularização é de certa maneira a própria essência do

cristianismo, afinal, a laicização pressupõe o enfraquecimento da autoridade

eclesiástica e uma maior autonomia do crente leigo, segundo sua interpretação, a

religião sacrifical, que exigia abusivamente a fidelidade do adepto, é que está com

seus dias contados, já o sagrado, diferente do perigo de extinção, passa por uma

redefinição positiva no âmbito da secularização.

Em certo sentido Vattimo está afirmando que a verdadeira religiosidade não

deve temer a modernidade, apenas deve encontrar o seu novo papel no mundo

secularizado. Para o filósofo nunca teremos a superação total dos antigos

referenciais religiosos, apenas aprenderemos a conviver melhor com o “diferente”.

Numa linha de raciocínio semelhante à Vattimo, a escritora inglesa e ex-freira

católica Karen Armstrong, em seu livro Em Defesa de Deus, escreveu o seguinte

sobre o ambiente ambíguo inaugurado pela secularização do mundo:

Achamos que a religião deve nos fornecer informações. Existe um Deus? Como o mundo surgiu? Mas essa é uma aberração moderna. Não compete à religião dar respostas para perguntas que ultrapassam a capacidade da razão humana. Esse é o papel do logos. O papel da religião, estreitamente relacionado com o da arte, consiste em nós ajudar a ter uma convivência criativa, pacífica e até prazerosa com realidades que não são facilmente explicáveis e com problemas que não conseguimos resolver: mortalidade, sofrimento, desespero, indignação em face a injustiça e da crueldade da vida.

[...] A racionalidade científica pode nos explicar por que temos câncer, pode até curar nossa doença. Mas não pode aplacar o pavor, a decepção e a tristeza que sentimos ao receber o diagnóstico, nem pode nos ajudar a ter uma boa morte. No entanto, a religião não funciona automaticamente requer muito esforço e não leva a nada se é fácil, falsa, idólatra ou autocomplacente (Armstrong, 2011, p.313).

A escritora inglesa compara a racionalidade religiosa à do artista, para ela ao

fazermos questionamentos científicos ou filosóficos, no âmbito da religiosidade,

cedemos a uma tendência deturpada da modernidade.

A ex-freira fazendo uma espécie de “análise funcional”, diz que a

cientificidade de um mundo secularizado não pede necessariamente a obliteração

da religião, apenas a obriga a enxergar uma setorização societária que antes não

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era tão evidente. A religião e, por conseqüência a crença em Deus, pode subsistir

num mundo secularizado desde que encontre, na opinião de Armstrong, sua

verdadeira vocação. A crença em “algo maior”, mesmo que não se justifique como

uma crença racional, segundo o posicionamento de Armstrong, servirá sempre

como um amparo moral para enfrentarmos nossas muitas crises existenciais. Por

isso, a inscrição afetiva da religião torna-a indispensável para que tenhamos uma

vida harmoniosa com nossos semelhantes, bem como, para que tenhamos no final

de nosso trajeto pessoal, uma “boa morte”.

A argumentação de Armstrong, muito semelhantemente a usada por Vattimo,

apela para uma religiosidade “não–idólatra”, para esses crentes contemporâneos só

uma religiosidade deste tipo poderia fazer sentido num mundo secularizado como o

nosso. Daí a secularização não significar automaticamente o fim do sagrado, mas

na verdade o surgimento de um sagrado construído sobre os alicerces da liberdade.

Essa posição dos “novos crentes” sem dúvida nenhuma representa um grande

avanço em relação à visão estreita dos fundamentalistas, porém, parece conter

ainda o seu “calcanhar de Aquiles” argumentativo.

Como vimos nesta sessão de nosso estudo, a secularização, pelo menos

como vem acontecendo no Brasil, não parece produzir uma religiosidade mais

reflexiva, ao invés disso, um pragmatismo mágico parece ser a única coisa que faz

sentido neste novo mundo globalizado. Assim, tal religiosidade seria capaz de

produzir uma nova ética integradora para o mundo contemporâneo? E, ainda, como

midiaticamente o que vemos é a expansão de certa “teologia da prosperidade”, essa

outra “teologia ética”, que tem como núcleo o ser humano, não seria uma visão

idealista e academicista pouco praticável? Por fim, se como Armstrong bem disse,

“religião” e “ciência” são operacionalidades distintas, e a última dessas esferas ainda

repudia toda interferência do sobrenatural em nosso mundo natural, que força irá

convencer o homem moderno da necessidade de uma ética universal?

Achamos que da mesma forma que os ateus humanistas ainda discutem qual

a moral adequada para o homem de nossos dias, o novos religiosos, cristãos ou

não, também ainda não responderam como o mundo será novamente moralizado

sem a assistência do antigo “sobrenatural”.

A realidade é que a secularização do mundo contemporâneo é tanto para

“ateus”, como para “crentes”, ainda um grande enigma.

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Infelizmente, a proposta Nietzschiana de gerar um novo homem para um

novo mundo, ainda está longe de ser entendida pelo homem contemporâneo. O

“buraco” deixado pela morte de Deus não foi preenchido por um mundo mais

humano, ao contrário, um potente “sistema” globalizado assumiu o lugar vazio de

nossas antigas certezas metafísicas.

Os estrategistas do grande sistema mundial de consumo percebem que o ser

humano está sedento por um novo “sentido para o mundo”; ao invés de filosofar

sobre os possíveis caminhos dessa nova fase da humanidade, os ideólogos do

sistema fortalecem uma visão fetichista do mundo, onde se atribui aos bens

econômicos e seu consequente acúmulo material, o poder de aplacar o profundo

vazio existencial do homem contemporâneo. Neste mundo coisificado, tanto o

discurso religioso, como também o discurso não-religioso, próprio do mundo

secularizado, são instrumentalizados para servirem como base de ajuste do sistema

capitalista. Assim, manipulam-se expectativas e a própria capacidade simbólica

humana, procedendo desta maneira a dimensão subjetiva do ser humano, que

habitualmente busca respostas para sua situação no mundo, agora se contenta

basicamente em obter bens materiais e, por força desta nova disposição mundana

para o consumo, acabamos por conferir certo revestimento religioso ao mundo

fetichizado do capital.

Como muitos dos pensadores apresentados nesta parte de nosso trabalho,

acreditamos também que a secularização do mundo é irreversível, porém, isso não

significa de pronto um fenômeno “bom” ou “mal”, o tipo de secularização que iremos

viver daqui para frente depende da nossa capacidade de gerar novos valores.

Achamos que o homem moderno vivencia um período de crise valorativa

marcada por um comportamento pouco reflexivo. Por isso, voltaremos na próxima

parte de nossa dissertação a discutir a secularização pensada idealmente por

Nietzsche. Fazendo isso, esperamos demonstrar, como na opinião do filósofo

alemão, um mundo sem Deus poderia produzir uma religiosidade laica capaz de

reconduzir o homem ao seu verdadeiro lugar: o centro significador do mundo.

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Capítulo III

Uma Nova Metafísica, Demasiadamente Humana...

Como tentamos demonstrar nos capítulos anteriores, o anúncio da morte de

Deus foi um marco na história do mundo ocidental, porém, às consequências, de tal

acontecimento fatídico ainda não são muito claras no horizonte deste novo mundo

secularizado.

Os mais otimistas frequentemente endossam o seguinte ponto de vista

defendido pelo filósofo Gilles Lipovetsky, em relação ao mundo estruturado pós-

anúncio da morte de Deus:

… a sociedade pós-moderna se caracteriza por uma tendência global a reduzir as atitudes autoritárias e dirigidas e, ao mesmo tempo, aumentar a oportunidade das escolhas particulares, a privilegiar a diversidade e, atualmente, a oferecer fórmulas de “programas independentes” nos esportes, nas teorias psicanalíticas, no turismo, na moda casual, na relações humanas e sexuais. A sedução [do sistema de consumo] nada tem a ver com a representação falsa e alienada das consciências; é ela que dirige o nosso mundo e o modela de acordo com um processo sistemático de personalização cuja finalidade consiste essencialmente em multiplicar e diversificar a oferta, em oferecer mais para que você possa escolher melhor, em substituir a indução uniforme pela livre escolha, a homogeneidade pela pluralidade, a austeridade pela satisfação dos desejos. [...] a vida sem imperativo categórico, a vida kit que pode ser modulada em função das motivações pessoais, a vida flexível na era das combinações, das opções e das fórmulas independentes é possível graças a uma oferta infinita [...] o processo de personificação reduz os quadros rígidos e coercitivos, funciona com suavidade respeitando as inclinações do indivíduo, seu bem-estar, sua liberdade e seus interesses (Lipovetsky, 2009, p.3)

Embora tenhamos que concordar com alguns dos pontos positivos apontados

por Lipovetsky, achamos que tal descrição é no mínimo exagerada; o fato do

discurso da contemporaneidade se montar sobre o ideal do individualismo, não

significa que de forma “real” vivamos os “frutos” de tal perspectiva otimista.

Para Lipovetsky o grande vazio que vivenciamos é quase que

automaticamente um convite à liberdade, entretanto, como vimos no capítulo

anterior, o acontecimento da morte de Deus (ocorrido no final do século XIX) não

levou o mundo ao um esperado “paraíso da liberdade”, pelo contrário, o homem

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atual tem se comportado mais como um “autômato”, do que como o homem superior

(Übermensch) pensado por Nietzsche.

Na realidade, nos escritos nietzschianos o que somos no mundo está

intimamente ligado à forma por que interpretamos o mesmo, isso porque, para ele

toda teoria leva a uma ação prática, assim sendo, se o homem atual age como se

fosse um “robô”, é porque foi absorvido por um “pensar maquinal” que despreza

visceralmente a profundidade reflexiva do pensamento.

Por isso, o homem atual não é livre para escolher como opinou Lipovetsky,

diferente do que disse o filósofo neoliberal, o que mudou em nosso mundo não foi

propriamente a “situação” de domínio pelo qual o individuo passa desde seu

nascimento, mas sim a “forma” pela qual se executa esse domínio.

Acreditamos que no mundo secularizado a dominação precisa ganhar novas

formas de racionalização, uma delas é exatamente a ideia falaciosa de que os

regimes “democráticos” contemporâneos são norteados pelo ideal da liberdade

pessoal, assim o domínio rígido das sociedades do passado foi substituído pelo

respeito e pela possibilidade de escolha dos cidadãos.

Compartilhamos da opinião do filósofo alemão Erich Fromm, que interpretou

essa pretensão libertária do atual sistema global de consumo, como uma mera

ilusão moderna, para ele o homem contemporâneo não é mais livre do que foi seus

antepassados, apenas se “sente mais livre”, isso porque, a autoridade visível e

concreta dos tempos passados, foi sutilmentente substituída por uma autoridade

invisível e anônima.

Fromm diz isso da seguinte maneira:

Em meados do século XX a autoridade mudou de caráter: já não é uma autoridade manifesta, mas anônima, invisível, alienada. Ninguém dá ordens, nenhuma pessoa, nenhuma ideia, nenhuma lei moral; porém todos nós nos submetemos tanto ou mais do que as criaturas sujeitas a uma sociedade fortemente autoritária. Na realidade, ninguém é autoridade, exceto “aquilo”. Que é aquilo? – o Lucro, as necessidades econômicas, o mercado, o senso comum, a opinião pública, o que a pessoa faz, pensa e sente. As leis da autoridade anônima são tão invisível quanto as leis do mercado, e exatamente tão invioláveis quanto estas. Qual a pessoa que pode atacar o invisível? Quem pode rebelar-se contra ninguém? (Fromm, 1974, p. 153).

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Em sua interpretação do mundo pós-moderno, Fromm, bem diferente de

Lipovetsky, não considerou o homem atual um ser liberto e propenso a felicidade

plena. Para o filosofo alemão o mundo contemporâneo é muito mais “compacto”

ideologicamente do que o mundo antigo, a expansão territorial do mundo ocidental,

bem como sua consequente globalização, é apenas a representação da hegemonia

conquista às custas da nova cultura de massas.

Para Fromm, o homem moderno é vigiado e dominado por uma “autoridade

anônima”, autoridade invisível que se manifesta através de uma complexa e extensa

malha de controle social. Segundo ele, novos ídolos são fabricados para

personificarem o niilismo dos dias atuais. Palavras como “lucro”, “mercado”, “opinião

pública”, entre outras, são usadas como “elos” visíveis de uma dominação

ideológica mundial.

No mundo secularizado o “céu” do homem contemporâneo muda de lugar,

como o espírito foi dessacralizado, o mundo capitalista foi lentamente sacralizado

como o novo “paraíso do aquém”, Fromm comentou tal espiritualização profana

assim:

O homem está hoje em dia fascinado pela possibilidade de comprar mais coisas, coisas melhores, e, acima de tudo, coisas novas. Está sedento de consumo. O ato de comprar e consumir converte-se em uma finalidade compulsiva e irracional, porque é um fim em si, com pouco relação com o uso ou prazer das coisas compradas e consumidas. [....] O homem moderno, caso ousasse falar claramente de sua concepção do céu descreveria uma visão que pareceria a maior loja de departamento do mundo, apresentado coisas e engenhocas novas, e ele entre elas com dinheiro bastante para comprá-las. Andaria boquiaberto por esse céu de engenhocas e mercadorias, sendo condição apenas a de que existisse número cada vez maior de coisas novas para ele comprar, e talvez também a de os seus vizinhos serem um pouco menos privilegiados do que ele... (Fromm, 1974, p. 137)

Ao dizer que o homem hoje se encontra “fascinado” pelo novo mundo de

consumo ilimitado criado pela sua própria força alienada, Fromm dá uma conotação

“religiosa” para tal sentimento que o traspassa, algo como uma verdadeira

“veneração” é sentido em relação ao reluzente “céu mercadológico” do mundo

capitalista.

Isso aplicado ao contexto de um mundo secularizado, onde a religião perde

seu antigo papel de “condutora espiritual”, faz a mesma renascer após uma

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necessária adaptação mercadológica, com isso manipula-se a carência religiosa ao

ponto dos objetos de consumo serem compreendidos como entes divinizados,

assim, tal como insinuado por Fromm, os variados elementos materiais são

magicamente impregnados de uma dimensão religiosa paradoxalmente profana.

Diferente do “inferno” tradicional, hoje em dia o verdadeiro inferno é estar

excluído do gigantesco mundo de consumo, a partir de uma hipnótica técnica de

comunicação, o poderoso fetiche mercadológico conduz a esfera material para além

do real, atiçando nas pessoas o desejo avassalador de obter bens materiais, e, após

essa sacralização, os objetos de consumo são revestidos, nessa nova conjunção

valorativa, de certo simbolismo religioso. Cria-se com isso, uma prática fetichista

que dota os bens de consumo de uma atraente “aura transcendental”, assim, o

alienado acaba por se convencer que, seu doloroso vazio existencial, será aplacado

pela aquisição das muitas bugigangas ofertadas em “nome de Deus” (leia-se

mercado).

O também filósofo Paul Ricoeur, em seu livro A Crítica e a Convicção, pontua

o processo de secularização do nosso mundo a partir de três características

básicas, sobre isso podemos ler:

Poderíamos descrever a primeira característica da secularização como uma restrição do campo de influência da instituição eclesial em relação às outras instituições [...] o traço marcante é, pois, antes de mais nada, a libertação de toda a cadeia das instituições da sociedade civil em relação à sociedade muito específica que é a sociedade eclesial. Em segundo lugar, é a interiorização desse processo em cada um dos membros dessas instituições enquanto as vemos funcionar como “ordens de reconhecimento” [...] esta relação desentola-se também fora do religioso. Vemo-nos reconhecidos na nossa efetividade de agentes sociais, capazes de intervir em sistemas que são autônomos, sendo o religioso então heterônomo. Um terceiro traço seria a transformação do horizonte histórico de todo o conjunto institucional, da rede que ele forma, o seu deslize para um futuro desprovido do horizonte escatológico que lhe fornecia o religioso. [...] O segundo estádio desta mutação do horizonte histórico, ligada à perda da transmissão constituída pelas formas laicizadas da escatologia, consiste no aparecimento de um modo de viver numa história sem fim último, portanto numa historia que se move de prazos breves em prazos domináveis a curto prazo pelas diferentes comunidades. (Ricoeur, 1995, pp. 227-228)

No capítulo anterior enfocamos o fenômeno da secularização como uma das

marcas principais da modernidade, por isso, a primeira característica citada no

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trecho de Ricoeur, a diminuição da influência eclesial nas novas sociedades, é o

princípio maior para que haja um mundo transmutado; sem a diminuição do

“religioso” não haveria condição do processo de laicização chegar a termo.

Porém, neste momento de nosso estudo, consideramos os dois itens

seguintes apontados por Paul Ricoeur como de extremamente relevância à nossa

compreensão no que toca o fenômeno de secularização.

Os atores sociais, nesta nova conjuntura secularizada, internalizam essa

nova maneira “desencantada” de agir no mundo e, em ressonância deste ato de

interiorização, o “religioso” como esfera vivencial perde parte da sua antiga

autonomia, agora, diferente do que ocorria antes, é a “moral secularizada” que se

transfere para o núcleo das religiões institucionalizadas.

Como terceiro traço da secularização, o filósofo fala de uma “mutação do

horizonte histórico”, onde, a teleologia religiosa deixa de ser usada como parâmetro

para nossas planificações futuras; o “por-vir escatológico” é substituído pela figura

soberana do “aqui-agora”, com isso segui-se uma extensa transposição do antigo

vocabulário religioso para uma linguagem racional adequada aos novos tempos

mundanos.

Assim, a pós-modernidade não acabou propriamente com o que Ricoeur

chama de “o religioso”, apenas transformou sua influência numa instância subjetiva

e individualizada. A religiosidade foi desligada do antigo compromisso coletivo e,

com esse afrouxamento, a mediação institucional foi relegada a meras sugestões

comportamentais.

Infelizmente, o fato do homem moderno ter se tornado mais livre em relação

às organizações religiosas, não significa como vimos com Fromm, uma real

liberdade sistêmica, como enfocamos no capítulo anterior, os efeitos silenciosos da

secularização são sentidos aqui no Brasil pela instrumentalização dos antigos ideais

religiosos, mais até do que a negação atéia, o capitalismo globalizante se utiliza de

um processo de ressignificação mercadológica dos elementos religiosos

convencionais.

Desta maneira, o “vazio do sentido”, que é mais profundamente o reflexo de

uma cultura massificada, é minimizado por variadas técnicas de fundo mágico. O

individualista pós-moderno, que se converteu em um “átomo isolado”, busca refúgio

às vezes em soluções místicas de cunho particularizado. Portanto, mesmo com o

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enfraquecimento das religiões institucionalizadas, diversas superstições são usadas

em prol do ajuste societário do homem capitalista.

Refletindo sobre essa profunda crise existencial da humanidade, o escritor

Odêmio A. Ferrari, teceu o seguinte comentário sobre a real condição do sujeito

contemporâneo:

A modernidade é envolvida pela ideologia de “morte do sujeito”, o que inviabiliza a formação de uma visão crítica e o construir de um viver consciente, apoiando a liberdade pessoal numa razão dinâmica de abertura aos variados valores e dimensões do existir. O triunfo da modernidade tecnificada significa seu enfraquecimento humanitário e libertador, devido ao desprezo às culturas locais e aos seus sujeitos. O sujeito perdeu-se no domínio generalizado do individualismo e na cultura de massas com seus desencantamentos (Ferrari, 2007, p.28).

Ao invés de um homem “forte”, nascido do vácuo causado pelo evento da

morte de Deus, segundo o ponto de vista de Ferrari temos diante de nossos olhos

um homem que aprendeu a não ser “senhor si mesmo”. Na verdade, como o autor

sentenciou, vivemos o período da “morte do sujeito”, morte esta que representa sua

total submissão aos novos ídolos do sistema de consumo, ou em outras palavras, o

desencanto do mundo levou-o ao desencanto de sua própria pessoalidade.

Certamente, não era esse tipo de “além-homem‟ que Nietzsche esperava

substituir os niilistas de seu tempo. O que ocorreu não foi à superação positiva da

morte de Deus, mas sim, uma “segunda morte”, porém desta feita, á morte dos

próprios “coveiros de Deus”.

Como já dissemos antes em nosso trabalho, Deus não foi substituído no

âmbito da secularização por um “homem melhorado”, foi sim, substituído por um

ideal sistêmico de consumo. Daí, ao invés do crescimento do homem, vivenciamos o

pleno esmagamento de sua pessoalidade.

Por isso, a partir de agora nos voltaremos novamente às letras nietzschianas

e, fazendo isso tentaremos examinar mais detalhadamente qual a sugestão

oferecida pelo próprio Nietzsche no enfrentamento do que ele chamou de o “mais

inquietante de todos os hóspedes”. De forma especial usaremos o seu livro Assim

Falava Zaratustra, livro este no qual o filósofo de forma romanceada e poética, fala-

nos de um mundo capaz de subsistir sem Deus, porém, possível de se manter em

pé, só a partir de uma nova “vontade humana”.

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3.1. Um Profeta Sem Deus

Nietzsche expôs a fraqueza do discurso religioso, discurso que era a

representação dos ideais supremos de nossa civilização, a partir de um contra-

discurso escatológico.

Assim, por mais estranho que pareça, seu livro intitulado Assim Falava

Zaratustra, apresenta uma “religião às avessas”. O estilo teológico e poético deste

escrito parece ser um recurso retórico que visava, ao mesmo tempo, inverter tudo

aquilo que era pelos homens considerado “sagrado” e, no âmbito desta profanação,

instaurar um “novo sagrado” transvalorado.

O profeta plasmado ideativamente por Nietzsche, não celebrava em sua

exteriorização mundana nenhum compromisso com o além, sua missão era

exatamente modificar o lugar para onde os homens olhavam. Visava ensinar um

novo olhar para as coisas terrenas, foi por isso que o próprio Nietzsche advertiu

dizendo: “aqui não fala nenhum “profeta”, nenhum daqueles horrendos híbridos de

doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões” (Nietzsche, 1995,

p19).

Paradoxalmente, a figura messiânica e profética elucubrada por Nietzsche,

era uma antítese de tudo aquilo que o profetismo religioso considerava valioso. O

profeta nietzschiano era o “anti-profeta” mais inspirado “por si mesmo” que já pisou

na terra. Era a manifestação da vontade de poder sem a mediação de uma potência

estranha ao homem.

O filósofo alemão considerou o seu “Zaratustra” a sua obra mais preciosa, ele

acreditava que tal livro marcaria (se bem compreendido) um novo início para

humanidade, daí confessar suas expectativas: “entre minhas obras ocupa o meu

Zaratustra um lugar à parte. Com ele fiz à humanidade o maior presente que até

agora lhe foi feito (Nietzsche, 1995, p. 19).

Ao escrever seu Zaratustra, Nietzsche vivenciou uma experiência extasiante,

comparável a antiga noção de “revelação” vivida por alguns dos “aedos” e “profetas”

do passado. Ele mesmo descreve isso da seguinte forma:

Alguém, no final do século XIX, tem nítida noção daquilo que os poetas de épocas fortes chamavam de inspiração? Se não, eu o descreverei. – havendo o menor resquício de superstição dentro de

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si, dificilmente se saberia afastar a ideia de ser mera encarnação, mero porta-voz, mero médium de forças poderosíssimas. A noção de revelação, do sentido de que subitamente, com inefável certeza e sutileza, algo se torna visível, audível, algo que comove e transtorna no mais fundo, descreve simplesmente o estado de fato (Nietzsche, 1995, p. 85).

Escrever filosofia sob inspiração; eis aí a verdadeira face do Zaratustra

nietzschiano. Diferente dos demais filósofos de seu tempo, Nietzsche rompe

radicalmente com estilo acadêmico ao romancear seus pensamentos através da

ação figurada de seu personagem profético.

Falando sobre a mudança estilística introduzida na filosofia por Nietzsche, por meio da singularidade alusiva do Zaratustra, o escrito Roberto Machado comenta o seguinte:

Esta singularidade estilística do Zaratustra se manifesta de duas maneiras principais: a) pelo deslocamento de uma linguagem conceitual a uma linguagem artística, ou, mais precisamente, a uma linguagem poética; b) pelo deslocamento de uma linguagem sistemática, argumentativa, que propõe uma teoria, característica da filosofia em quase sua totalidade, a uma linguagem construída de forma narrativa e dramática (Machado, 1999, pp. 20 - 21).

Utilizando-se do recurso poético, como disse Machado, Nietzsche desconstrói

a própria maneira de se fazer filosofia, seu Zaratustra foge do estereótipo dos

tradicionais tratados de filosofia e, inaugura um atrevido “estilo livre”. Com a sua

genialidade, Nietzsche conseguiu escrever “boa filosofia” sem se prender ao estilo

pouco criativo de seus contemporâneos.

Também, como seu Zaratustra era um “libertador”, e não um “doutrinador” ou

mais um “criador de religiões”, Nietzsche faz seu personagem desfilar livre. Seu

profeta não é um sistematizador de teorias filosóficas, mas como ele mesmo disse:

“Zaratustra é um dançarino” (Nietzsche, 1995, p. 90).

Mas, afinal, por que escolheu Nietzsche a figura mítica de um profeta para

anunciar o tempo da transvaloração? E ainda, porque justamente o profeta iraniano

Zaratustra?

É o próprio Nietzsche em sua obra Ecce Homo, que oferece boas razões para

essas questões tão intrigantes, ouçamos:

Não me foi perguntado, deveria me ter sido perguntando, o que precisamente em minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra: pois o que constitui a imensa singularidade deste pensa na história é precisamente o contrário

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disso, Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas - a transposição da moral para o metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta. Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em conseqüência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo (Nietzsche, 1995, p.p 110, 111).

O Zaratustra de Nietzsche é, segundo suas próprias palavras, o oposto do

profeta iraniano real. Nascido, de acordo com especialistas, próximo do ano 570 a.c

(Brandon, 1945, p. 1493), o Zaratustra histórico era a própria materialização do viés

interpretativo moral. Este profeta do antigo Irã teve sua visão inicial no trigésimo ano

de sua vida e a partir de uma revelação de ahuramazda (o senhor sábio), entendeu

que o universo é constituído de uma dualidade moral eterna, “bem” e “mal” são

princípios imanentes à própria realidade cósmica. Depois desta revelação, seu

nome real (espitama) foi substituído por Zaratustra (estrela de ouro) e, quando

somava quarenta e dois anos de idade passou a pregar à verdade luminosa da

dualidade de todas às coisas (Drioton, 1958, p. 119). Semelhante a outros profetas

messiânicos, Zaratustra anunciava o advento de um novo mundo; segundo o que

explicava, no final dos tempos haveria um grande julgamento que iria separar os

partidários do bem e os do mal, os eleitos, a partir daí, seriam conduzidos a eterna

habitação da luz (Drioton, 1958, p. 121).

Aquele que Nietzsche chama de Zaratustra, é simetricamente o oposto desse

anunciador do “além”. Como o filósofo alemão explicou em seu Ecce Homo, seu

“anti-profeta” vem inverter essa conjunção valorativa dualística, sua mensagem

procura desmentir qualquer tipo de dualidade imanente, na verdade, semelhante o

seu criador, o personagem nietzschiano era um “imoralista”.

Podemos dizer que o nome Zaratustra em Nietzsche nada mais era do que

um sinônimo de “transvaloração”, assim, como transvalorar significa para Nietzsche

o ato de superar os velhos valores e, ao mesmo tempo, ser capaz de estabelecer

novos valores, Zaratustra é pensado como o profeta das novas “tábuas valorativas”.

Sua postura inovadora é sintetizada no capítulo “das antigas e das novas tábuas”,

na seguinte fala:

O criador é a quem ele mais odeiam: aquele que quebra as tábuas e os valores antigos; a esse destruidor chamam criminoso.

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[...] crucificam aquele que grava novos valores em tábuas novas; sacrificam para si o futuro; e crucificam o futuro dos homens! (Nietzsche, 2008, p. 278).

Para Nietzsche, todo criador é antes um destruidor, portanto, seu Zaratustra

não era apenas um mensageiro da “velha ordem estabelecida”, sua mensagem ao

invés de consolo, inicialmente visava jogar por terra toda esperança falsa, por isso,

gerava no ouvinte uma terrível sensação de vazio, porém, este vazio era uma das

faces do futuro a ser criado pelos novos valores.

É lógico que essa metáfora das novas tábuas, lembra muito a imagem mítica

dos criadores de religiões que, normalmente alegavam ter recebido dos deuses á

mensagem a ser transmitida, no entanto, num tom de provocação, o profeta das

“novas tábuas” não devia a ninguém sua perturbadora mensagem.

Semelhante ao Zaratustra histórico, a Zaratustra nietzschiano começa sua

missão aos quarenta anos, entretanto, o mesmo não se achou iluminado por

“ahuramazda”, ou qualquer outra divindade da luz, sua mensagem foi fruto da sua

própria auto-reflexão, isso é dito da seguinte maneira por Nietzsche:

Quando Zaratustra completou trinta anos, abandonou sua pátria e foi para a montanha. Ali, durante dez anos, alimentou-se de seu espírito e de sua solidão, sem deles se fatigar.

Mas, um dia, finalmente, transmutou-se-lhe o seu coração – e, de manhã, ao levantar-se com a aurora, pôs-se ante o sol e assim falou:

-grande astro! Que seria de tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas?

Há dez anos ascendes até a minha caverna e ter-te-ias cansado de tua luz e deste trajeto, se não estivéssemos lá, eu, minha água e minha serpente (Nietzsche, 2008, p. 13).

Ao contrário do Zaratustra histórico, que dizia ter sido iluminado por uma “luz

divina”, o Zaratustra da transvaloração humaniza a “luz solar” como um dos

aspectos especulares de seu longo trajeto consciencial, assim, a felicidade do astro

rei torna-se dependente de um olhar que signifique tal ocorrência como um

“espetáculo natural”.

Por dez anos Zaratustra se oculta dos homens; sua ascensão à montanha

representa o isolamento necessário daqueles que, como a águia, querem enxergar

um pouco além dos que estão no plano inferior da montanha. Porém, aqueles que

ascendem não devem se apartar radicalmente das coisas terrenas, portanto, como a

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cobra que “rasteja no chão”, Zaratustra é um profeta apegado às coisas da “terra”, o

vôo largo da água, não o faz esquecer-se de sua natureza terrena. A companhia dos

dois animais de Zaratustra é símbolo da unificação do “céu” e da “terra” promovida

pela transvaloração, diferente do dualismo moral do profeta iraniano, o Zaratustra de

Nietzsche, vem acabar com essa clivagem metafísica. Ainda no prólogo, Zaratustra

depois de dez anos de isolamento explica retoricamente ao sol porque precisa

novamente descer até aos homens, lemos:

Vê: estou enfastiado de minha sabedoria, como a abelha que acumulou demasiado mel. Necessito de mãos que se estendam para mim. [...]

Por isso devo descer ás profundidades, como tu durante a noite, astro exuberantemente rico, quando mergulhas abaixo do mar para levar a tua luz ao mundo inferior. [...]

Bendiz-me, portanto, olho tranqüilo, que podes ver sem inveja até o excesso de felicidade! [...] Bendiz o cálice que vai desbordar [...] olha! Este cálice deseja esvaziar-se outra vez quer tornar-se homem!

Assim começou a descida de Zaratustra. (Nietzsche, 2008, p. 14).

Seu longo período de reflexão trouxe-lhe um super acumulo de sabedoria, daí

o desejo de descer e compartilhar com os homens a “doçura” do seu auto-

aprendizado.

É evidente que a metáfora da “descida” de Zaratustra é uma referência á

descida mítica de “Jesus”, observando a similitude entre esse dois profetas, Maria

Cristina e Franco Ferraz, na obra Nietzsche: o bufão dos deuses, sobre essa

convergência imagética escreveram:

Para compreender de uma maneira mais matizada o papel e o sentido de Zaratustra, é necessário distinguir sua relação com o cristianismo de sua visão da figura de Cristo. Nesse sentido, algumas passagens de assim falou Zaratustra revelam que o personagem de Nietzsche chega a se identificar, sob certos aspectos, com Jesus (Cristina e Ferraz, 1994, pp. 91-92).

Quando no prólogo Zaratustra diz que quer novamente “tornar-se homem”, é

lógico que aí temos uma referência à noção teológica da “encarnação”, porém, o

profeta nietzschiano não é um subproduto de uma “união hipostática” sobre

humana, é, sim, o representante de uma nova consciência terrena.

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Ao descer de seu sossego solitário da montanha, Zaratustra encontra numa

floresta um velho santo que, há dez anos havia presenciado a subida do profeta à

montanha e, espantado com a repentina decisão de Zaratustra; exclamou: “mudado

é Zaratustra; Zaratustra tornou-se criança, despertou Zaratustra. Que queres agora

entre os que dormem? (Nietzsche, 2008, p.15).

O homem santo percebeu que a aparência transmutada de Zaratustra

indicava sua elevada consciência. A aparência de criança neste contexto é uma

referência ao grau mais elevado das três metamorfoses que o homem teria de

processar antes de chegar a transvalorar seu antigo modo de existir: “três

metamorfoses do espírito vos mencionei: de como o espírito se mudava em camelo,

de camelo em leão, finalmente, em criança” (Nietzsche, 2008, p. 42).

Na figura do “camelo” temos o “Bicho Homem” carregando o pesado fardo da

moral, nesta imagem Nietzsche sintetiza o tipo de homem moral criado por nossa

civilização cristã.

O “leão” é imageticamente a representação do momento em que o espírito

começa a se libertar, ao contrário de aceitar passivamente a imposição moral de um

pesado “tu deves”, o espírito leonino afirma-se pelo rugido sonoro de um: “eu quero”

(Nietzsche, 2008, p.40).

Entretanto, mesmo representando um avanço consciencial em relação ao

nível camelo, o leão não é ainda aquele que pode criar novos valores, afinal, seu

rugido afirmativo, deve ainda livra-se de todo ressentimento e, tal postura inocente e

desprendida é prefigurada na imagem da criança, figura que sintetiza o “novo

começar” da transvaloração de todos os valores (Nietzsche, 2008, p.42).

Assim, quando o velho santo viu em Zaratustra a imagem da criança, isso

significa que o mesmo estava “desperto”, havia acordado em meio a um mundo

ainda adormecido. Daí, a surpresa do velho santo; ele não entendia como alguém

desperto podia querer habitar entre os dormentes.

Diferentes de Zaratustra que queria partilhar sua sabedoria com os homens,

o santo achava-se profundamente decepcionado com os mesmos, por isso disse a

Zaratustra: “Agora, “amo a Deus; não amo os Homens”. O homem é para mim uma

coisa excessivamente incompleta. O amor ao homem matar-me-ia” (Nietzsche,

2008, p.17).

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No fundo, o amor que o velho santo alegava sentir por Deus, era apenas

uma defesa contra o “niilismo” de sua época. Aquele velho ermitão era a

representação da “antiga consciência religiosa, consciência esta que não podia mais

habitar entre os homens, pelo menos no sentido vigoroso de sua soberana

habitação do passado.

A aparente desinformação do santo causou certa estranheza em Zaratustra e,

quando já estava sozinho, após se despedir do velho, pensou consigo mesmo: “–

será possível? Esse santo ancião não ouviu em sua floresta que Deus morreu?”

(Nietzsche, 2008, p.18).

Este pequeno fragmento ajuda-nos situar em que momento Histórico

Zaratustra desceu aos homens. Como a morte de Deus ocorre na segunda metade

do século XlX, e, Zaratustra se refere a tal evento como já tendo acontecido, sua

mensagem torna-se relevante no final deste século em questão.

Mas, visto que Zaratustra era um profeta “sem Deus”, o que de fato

prenunciava com sua pregação?

Como o “João Batista” do cristianismo, o Zaratustra tinha como missão

preparar o caminho de alguém maior do que ele próprio. No entanto, esse alguém

não era um “homem-Deus” descido do céu, esse “outro” era um novo homem

nascido da transvaloração de todos os valores, por isso temos: “vede: Eu sou o

anunciador do raio, sou uma pesada gota caída da nuvem; mas esse raio chama-se

o além- homem”. (Nietzsche, 2008, p.23).

O profeta criado por Nietzsche era o anunciador de um novo tipo de homem.

O “além-homem” simbolizava alguém capaz de superar o vazio sentido como

“niilismo” e, no âmbito do próprio niilismo, tornar-se ativo ao ponto de criar novos

valores. Esse novo homem avalia o mundo a partir de novos critérios existenciais,

inicialmente ele nega que qualquer valor tenha um fundamento metafísico fora do

próprio homem, porém, essa afirmação da relatividade dos valores não o leva ao

“ostracismo”. Ele não desiste do mundo como faz o niilista ressentido; seu niilismo

ativo tem a leveza do “pensar da criança”, que vê no novo sempre uma

oportunidade para se reinventar.

Assim, a vontade de ser criador é o princípio que torna possível a libertação

do niilismo deletério que se montou reativamente pela percepção da morte de Deus

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e, Zaratustra como anunciador deste tipo mais forte de avaliar, ensina que seus

contemporâneos são “pontes” para esse tipo de homem do futuro.

Podemos perceber essa mensagem transitiva nas palavras do próprio

Zaratustra:

O homem é uma corda estendida entre o animal e o Além-Homem: uma corda sobre um abismo. Perigoso passar um abismo, perigoso seguir esse caminho, perigoso olhar para trás, perigoso temer e parar. A grandeza do homem consiste em ser uma ponte e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma ascensão e um declínio (Nietzsche, 2008, p.22).

Aquele que se constitui como “corda” desconsidera a profundidade do

abismo, depois de sentir o imenso vazio causado pela morte de Deus, o que

Zaratustra ama no homem é a coragem de continuar seu destino, mesmo sabendo

que agora nenhum consolo metafísico lhe será mais suficiente.

Infelizmente, segundo a interpretação do profeta Zaratustra, não seriam

todos os homens que aceitariam essa ultrapassagem na imagem do além-homem, a

grande maioria ficaria presa no niilismo reativo. Isso foi observado da seguinte

maneira:

Eu vos digo: é necessário ter um caos em si para poder dar à luz uma estrela bailarina. Eu vos digo: tendes ainda um caos dentro de vós.

Ah! Aproxima-se o tempo em que o homem será incapaz de dar à luz uma estrela bailarina. O que vem é a época do homem mais desprezível entre todos, que nem poderá mais desprezar a si mesmo.

Vede! Eu vos mostro o último homem. “Que é o amor”? “que é o criar”? “que é o anelar”? “que é a estrela”? Assim perguntará o último homem, piscando os olhos.

A terra tornar-se-á exígua, e, sobre ela,veremos saltitar o último homem que tudo amesquinhará. Sua espécie é indestrutível como a da pulga; o último homem é o que viverá por mais tempo. (Nietzsche, 2008, p.27).

É impossível desconsiderar o forte teor “messiânico” deste trecho do

Zaratustra. Da mesma forma que o “anticristo”, que se opõe ao novo reino do

“cristo”, o “último homem” é o contra-tipo do que representa o “além-homem” na tese

Nietzschiana.

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Ambos os personagens escatológicos Nietzschianos, “último homem” e

“além-homem”, são filhos do caos instaurado com o evento da morte de Deus, no

entanto suas posturas frente ao enorme vazio moral da modernidade são muito

distintas.

O último homem é mesquinho por se acomodar diante da quebra de sentido

dos dias escuros da modernidade. Como um niilista passivo ele é incapaz de pensar

novos valores, bem ao contrário até deste ímpeto criativo, essa espécie “pequena e

resistente” como à “pulga”, visa zombar de todo aquele que cultiva uma “estrela

bailarina”, ou seja, de todo aquele que traz dentro de si à semente luminosa de

novos valores.

Quando Zaratustra diz que a grandeza do homem consiste em ser uma ponte

e não uma meta, o personagem Nietzschiano passa-nos a idéia de que o futuro está

aberto, podemos escolher o caminho íngreme do criador de novos valores, ou

acovardar-nos diante de tal grandiosa tarefa e, com isso, escolhermos “não

escolher” o nosso próprio destino. É esta forma inautêntica de vida que Nietzsche,

por meio de seu Zaratustra sintetizou na imagem desprezível do “último-homem”.

Comentado esse período de transição inaugurado pela morte de Deus,

Machado teceu o seguinte argumento explicativo:

Essa metáfora da ponte para a outra margem coexiste com outra metáfora espacial talvez ainda mais expressiva: a da subida e da descida. Segundo essa imagem, o homem pode seguir o caminho para o alto, para o super-homem. E o caminho para o alto, para o super-homem, ou para baixo, em direção ao último homem. E o caminho para o alto, caminho da auto superação de auto- ultrapassagem, é o antídoto que Zaratustra oferece à falta de sentido ou à ausência de valor decorrentes da morte de Deus (Machado, 1999, p.75).

Assim, como diz machado, a mensagem do Zaratustra Nietizschiano contém

o antídoto para o niilismo corrosivo de nossos dias, embora Zaratustra tenha se

mostrado um profeta sem Deus, o mesmo não pode ser acusado de ter sido um

profeta sem “esperança”. Em sua “metafísica às avessas” demonstrava um forte

otimismo quando ao futuro, tinha “fé” de que o homem caminharia em direção ao

“além-homem”.

É lógico que como Zaratustra não era “inspirado” por nenhuma divindade, sua

mensagem não era nenhuma leitura infalível do futuro, o que tentava era apenas

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oferecer “possibilidades” calçadas nas novas condições existenciais da

modernidade; os homens deveriam enfrentar de frente o desencanto que o mundo

sofreu com a morte de Deus e, estribados em novas tábuas valorativas, geradas por

eles próprios, deveriam eles mesmos se tornarem deuses de seus destinos.

Mas, tão distantes do “sobrenatural”, seriam eles capazes de levar a termo tal

epopéia vitoriosa só às expensas de suas forças? A idéia de homens tão decididos

em se tornarem “criadores”, não seria uma espécie de crença metafísica?

De fato, a mensagem do Zaratustra de Nietzsche tem muitos elementos que

podem em sua essência serem considerados “metafísicos”, desde que entendamos

esse termo dentro de uma conotação ampliada.

3.2. A Metafísica da Vontade de Poder

Sobre a possibilidade de triunfo deste novo homem transvalorado e

transvalorador, Zaratustra assim falou:

E será o grande meio dia, quando o homem esteja à metade de seu trajeto, entre a besta e o além-homem, e celebrará como sua esperança suprema o seu caminho para o crepúsculo: por que será o caminho para um novo amanhecer.

Então, no momento de perecer, ele se bendirá a si mesmo, a fim de passar para o outro lado, e o sol de seu conhecimento estará no meio-dia.

Todos os deuses morreram; agora queremos que viva o Além-Homem! Tal será um dia, ao chegar o grande meio-dia, o nosso último querer! (Nietzsche 2008, p.112).

O grande meio-dia neste contexto futurista significa a “hora” de maior

claridade e, consequentemente, a dissipação das trevas das muitas incertezas,

nascidas com a dolorosa morte dos deuses.

Porém, tal luminosidade só seria alcançada pela afirmação do “querer”; na

realidade, a figura do “Além-Homem” nada mais é do que a personificação de um

“novo querer valorativo” capaz de reconstruir as bases morais do mundo, desta

forma constituindo um novo cenário existencial totalmente renovado. Neste novo

cenário transmutado o homem deve olhar para frente em busca do além-homem,

como foi dito pelo próprio Zaratustra:

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Outrora, quando se olhavam os mares longínquos, dizia-se: “Deus”; mas agora eu vos ensino dizer: “Além-Homem”. Deus é uma conjectura; mas eu quero vossa conjectura não mais longe que a vossa vontade criadora. Podereis criar um Deus? Pois então não me faleis de deuses! Contudo podereis criar o Além-Homem (Nietzsche, 2008, p.118).

O “Além-Homem”, segundo esse fragmento nietzschiano, deve ser “criado”

pela vontade criadora daqueles que estão dispostos a não ir além de suas próprias

forças inventivas, elucubrar aquilo que não pode ser criado humanamente, na lógica

ensinada por Zaratustra, é apenas um desperdício intelectivo. Daí a recomendação

de não falar em “deuses”, devemos falar e divulgar a vinda do grande meio-dia, dia

luminoso da manifestação do “Além-Homem”, como foi dito pelo próprio Zaratustra:

Oh! Bendita a hora do raio. Ó, mistério do que precede o meio-dia! Há de chegar um dia em que eu os converta num incêndio que se propaga, e precursores de Línguas de Fogo; e anunciarão um dia, com línguas de chamas: aí vem, já se aproxima o grande meio-dia! (Nietzsche, 2008, p.229).

Não há como não reconhecer neste trecho uma ideia próxima ao do evento

mítico do “pentecoste” cristão. Aqueles que entenderam a urgência da vinda do

“Além-Homem”, segundo a recomendação de Zaratustra, devem com “línguas de

fogo” falar da proximidade do esperado dia do “grande meio-dia”. No entanto,

diferente de um “espírito santo” o que habilita os discípulos do Zaratustra

Nietzschiano, é a força ativa que muitas vezes aparece nos escritos do filósofo

alemão como “vontade de poder”. Em sentido real, as metáforas do “grande meio-

dia” e a do próprio “Além-Homem”, são alusões ao uso desta vontade de poder!

O filósofo Heidegger, elucidando a verdadeira essência do aclamado “além-

homem”, deixa claro que tal personagem é apenas a representação figurada da

vontade de poder. Sobre isso podemos ler:

O “além-do-homem” não é nenhum ideal supra-sensível; ele também não é nenhuma pessoa que se anuncia em um momento qualquer e que entra em cena em um lugar qualquer. Enquanto o sujeito supremo da subjetividade consumada, ele é a pura dinâmica de poder intrínseca à vontade de poder. [...] O Além-Homem vive, na medida em que a humanidade quer o ser do ente do como a vontade de poder (Heidegger, 2007, p. 231).

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Para Heidegger, a fala poética do Zaratustra, em relação à figura

“messiânica” do “Além-Homem”, não deve ser interpretada literalmente como o

anúncio da chegada de uma pessoa real, mas sim como referência metafórica de

uma “época” em que a humanidade estaria pronta para “valorar” segundo os

critérios da “vontade de Poder”.

Mas, de fato, o que seria esta “vontade de poder”? E, consequentemente,

quais os novos critérios valorativos que dela promanariam?

A vontade de poder é antes de tudo um novo posicionamento no mundo, é

vontade de criar, vontade de comandar. Isso foi dito por Zaratustra assim:

Onde encontrei a vida, encontrei a vontade de potência, e até na vontade do servidor, encontrei a vontade de ser mestre. Se o fraco serve ao forte, o faz inclinado por sua vontade, que quer, por sua vez, tornar-se senhora dos mais fracos que ela; é o único prazer ao qual não pode renunciar (Nietzsche, 2008, p.157).

Onde existe vida, ensina Zaratustra, se manifesta vontade de poder, portanto,

a vontade de Nietzschiana não é uma vontade por coisas “palpáveis”, é antes de

tudo uma vontade subjetiva por poder.

No texto supracitado fica evidente que até mesmo na servidão à vontade de

poder está presente, porém a mesma mostra-se como “passividade”; o servo é

aquele que domina pela fraqueza.

Na figura do “Além-Homem” Nietzsche visualiza o fluxo mais natural da

vontade de poder; neste caso a vontade é de comandar, e vontade de ser senhor.

Essa postura ativa é a base do domínio de si que esses novos homens do

futuro deverão exercer para executar a transvaloração de todos os valores. Porém o

profeta anunciador adverte que tal vontade de comando não é tão fácil de ser

sustentada. Isso porque aquele que comanda arrisca sua própria vida, sobre isso é

dito:

Em toda parte onde encontrei a vida, ouvi falar de obediência. Tudo o que vive obedece. [...] manda-se naquele que não sabe obedecer a si mesmo. [...] mandar é mais difícil que obedecer. Não somente porque aquele que manda assume a carga de todos os que lhe obedecem, e que essa carga arrisca esmagá-lo, mas porque reconheci que mandar comporta uma aventura e um risco, e cada vez que manda, arrisca a vida (Nietzsche, 2008, p.157).

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Exercer ativamente a vontade de poder é muito mais difícil que aceitar ser

comandado; o comandante precisa acima de tudo comandar-se, daí porque

Zaratustra considera o mandar uma “aventura e um risco”, afinal, aquele que

comanda é o sujeito que aprendeu a obedecer a sua própria voz de comando.

O comandante neste contexto Nietzschiano é a representação do niilista ativo

que busca gerar novos valores; enquanto o comandado, é o niilista passivo incapaz

de ser criativo frente ao vazio, sua postura normalmente levá-o a ficar preso num

corrosivo pessimismo. Sobre essas diferenças de tipo, o filósofo Heidegger

escreveu:

… O pessimismo que só vê declínio provém da “fraqueza”: ele busca por toda parte o elemento sombrio, fica à espera das ocasiões em que o fracasso se dá e acredita ver assim como tudo virá. [...] o “niilismo incompleto” nega os valores supremos até aqui, mas não faz outra? se não colocar novos ideais no lugar dos antigos (no lugar do “cristianismo originário”, o comunismo, no lugar da cristandade, a música wagneriana). Esse caráter parcial retarda a reposição decidida dos valores supremos. O retardo encobre o decisivo: o fato de com a desvalorização dos valores supremos até aqui precisa ser alijado o lugar que lhes é correspondente, o “supra-sensível” que subside em si (Heidegger, 2007, p. 212).

Como foi dito por Heidegger, o niilista incompleto é aquele que não chega a

completar a transvaloração, na verdade ele só substitui os velhos “ídolos” por “ídolos

novos”. Como sua transvaloração nasce da “fraqueza” e não da “vontade de poder”,

ele não questiona o núcleo valorativo dos antigos ideais supremos, ele muda mais o

aspecto superficial do valor, do que propriamente sua estrutura valorativa.

Segundo Heidegger, o niilista ativo é animado por outra disposição, sobre

esta diferença lemos:

Para se tornar completo, o niilismo precisa atravessar o “extremo”. O “niilista extremo” reconhece que não há nenhuma “verdade eterna” em si. Na medida em que só se conforma determinantemente com essa intelecção e em que escreva a decadência dos valores supremos até aqui, ele permanece passivo. Em contra partida, o niilismo “ativo” intervém, revoluciona. [...] o niilismo extremo, mas ativo, afasta os valores até aqui justamente com o seu “espaço” (o supra-sensível) e cria pela primeira vez possibilidades para a nova instauração de valores (Heidegger, 2007, pp. 212, 213).

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Neste “Niilismo Extremo” o supra-sensível é totalmente superado, assim, o

existir não tem por si mesmo nem valor nem finalidade, o homem sempre foi e

sempre será o criador dos valores.

Porém, como foi assinalado por Heidegger, a descrença em valores

supremos não leva o niilista ativo a uma desesperança crônica ou desilusão em

relação ao mundo, bem ao contrário disso, ele compreende que deve criar novos

valores, porém agora sabe que todo e qualquer “sentido”, promana da sua

revolucionária capacidade de comando.

É importante não confundirmos neste momento essa nova postura valorativa

com uma espécie de “ditadura transvalorativa”, afinal, embora aquele que comanda,

esteja obrigado pela própria essência da vontade de poder, a sempre “criar um

sentido” para a existência, este sentido é provisório, pois, o novo valorar é por si

mesmo uma postura valorativa aberta, não um novo “consolo” para encobrir o vazio

real que nos cerca.

Isso foi dito por Lauter da seguinte maneira:

O fixar não serve apenas à facilitação da vida. Ao contrário, ele é primeiro o modo pelo qual uma vontade de potência organiza as forças a ela submetidas e pelo qual busca sobrepujar as forças ainda não submetidas. Ela impõe sua perspectiva absolutamente. Isso significa que ela aspira a dominar perspectivas que se lhe contrapõem. Visto que se trata da vontade de potência, não é permitido querer, contudo, que a fixação seja definitiva. Compreende-se o mundo, o todo das constelações de potência na transformação contínua. A vontade que sempre quer mais potência tem de levar em conta também essa transformação, à mesma que ela mesma se transforma. Mas essa mudança só pode ser bem sucedida se a própria perspectiva de verdade não for posta ou petrificada de modo absoluto (Lauter, 2011, p.190).

Quando o niilista diz não acreditar no “sentido da vida”, ele apenas está

dizendo que, nenhum “sentido absoluto” pode por fim a nossa busca por “sentidos

provisórios”, porém, pelo fluxo contínuo do devir, toda crença em um sentido deve

ceder lugar a outras possibilidades de leitura do real, num mundo transvalorado, não

há mais lugar para “verdades absolutas”. Como foi dito por Lauter, o criador de

novas perspectivas deve aceitar o jogo permanente de recriação do mundo, visto

que tudo se transforma, sua própria perspectiva insere-se no bojo geral destas

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infindáveis transformações. É esta a vontade de superação contínua que sintetiza o

que Nietzsche denomina de vontade de poder.

Para Heidegger, é essa vontade sempre presente de poder, muitas vezes

afirmada por Nietzsche, que torna o discurso do mesmo uma espécie de metafísica,

isso é comentado da seguinte forma:

… a vontade de poder é o caráter fundamental do ente enquanto tal. Por isso, a essência da vontade do poder só pode ser questionada e pensada com vista ao ente enquanto tal, isto é, metafisicamente. A verdade desse projeto do ente com vistas ao ser no sentido da vontade de poder possui um caráter metafísico. Ela não tolera nenhuma fundamentação que se reporte ao modo e à constituição do ente a cada vez particular porque esse conclamado enquanto tal só é demonstrável se o ente já é projetado de antemão com vista ao caráter fundamental da vontade de poder enquanto ser. (Heidegger, 2007, p. 200)

Heidegger diz que o discurso nietzschiano é uma metafísica no sentido de

buscar um fundamento último para toda expressão de vida, portanto, embora o

filósofo desminta uma unidade transcendental chamada de “alma”, a algo “fixo” e

“imutável” na operacionalidade do devir, este algo é aquilo que ele determinou como

vontade de poder.

Parece que esta interpretação que Heidegger faz da vontade de poder de

Nietzsche, está em consonância com o espírito das letras do filósofo, afinal foi o

mesmo que escreveu: “[...] a essência [Wesen] mais íntima do ser [Seins] é vontade

de poder [...]” (Nietzsche, 2008, p. 351).

A diferença entre a vontade de transvalorar pela metade, do niilista passivo, e

a vontade forte do niilista ativo, explica-se exatamente pela razão que diz que o

segundo, assume o querer sempre como essência do verdadeiro querer.

Provavelmente foi isso que levou o filósofo Heidegger a escrever sobre esse

querer ativo:

Não há a vontade por si, da mesma forma que não há o poder por si, vontade e poder, tomados a cada vez por si, solidificam-se e transformam-se em fragmentos conceituais arrancados à essência da “vontade de poder” só a vontade de poder é vontade, a saber, de poder no sentido do poder para o poder. [...] Toda mera conservação de poder já é decadência da vida. O poder é o comando para o mais-poder (Heidegger, 2007, p. 203).

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O poder tem como meta o próprio poder, por isso, como disse Heidegger, a

vontade de poder não é nunca uma mera vontade de conservação, é sempre a

busca contínua pelo “mais-poder”.

Nesta nova metafísica nietzschiana não há mais dualidade entre “ser” e

“querer”, a verdadeira vontade é aquela que se expande como natural busca pelo

crescimento, com disse Heidegger, qualquer tentativa de sustentar o poder no nível

já alcançado, é, na visão nietzschiana, um esforço decadente.

Com isso Nietzsche negou o vínculo clássico entre ser e pensamento

verdadeiro, para o filósofo a maneira de pensar está intimamente relacionada ao tipo

de “vontade” exercitada pelo sujeito. Em sua concepção aquele que “é”

verdadeiramente é porque aceitou dar vazão à natureza sempre ativa da vontade;

este é o querer que naturalmente busca mais poder, não a conservação de um mero

pensar tradicional.

Por isso, nesta nova maneira metafísica inaugurada por Nietzsche, o único

“permanente” ou “sempre igual”, é a essência de uma vontade que sempre procura

expandir-se à procura de mais poder, todas as outras coisas são desdobramentos

acidentais desta potência natural.

Ainda falando desta metafísica do poder, Heidegger esclareceu:

Desta forma, na medida em que se essencializa como vontade de poder, todo ente é perspectivístico.

[...] A questão é que a “perspectiva” nunca permanece um mero campo de transpassamento pela visão, no qual algo é visualizado. Ao contrário, o visualizar que atravessa com o olhar visa às “condições de conservação-elevação”. O “valor” possui o caráter do “ponto de vista”. Valores valem e não “são em si”, para, então também se tornarem ocasionalmente “pontos de vista” (Heidegger, 2007, pp. 204-205).

A meta metafísica desta vontade de poder não é a “verdade”, pelo menos não

aquela “verdade última” preconizada pelas metafísicas religiosas. Essa nova forma

de valorar fixa temporariamente apenas “pontos de vista”, nunca “verdades

absolutas”.

Portanto, toda verdade neste novo mundo do devir evoca apenas certa

“perspectiva” em relação ao mundo.

Essa nova subjetividade apela não para “representação do mundo”, mas sim

para uma representação que justifique a essência da vontade daquele que

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representa: a vontade de poder. Em outros termos, não basta procura a verdade ou,

ao contrário, como faz o niilista passivo, não buscar mais nenhuma verdade. Cabe-

nos gerar “pontos de vistas” que manifestem uma vida útil e propensa a sua

expansão natural.

É esse retorno contínuo do poder para seu próprio núcleo: o poder, que faz

uma segunda ideia nietzschiana ser possível de ser interpretada, falamos aqui de

sua tese do “eterno retorno do mesmo”.

É vital, para que possamos entender a metafísica da vontade de poder,

falarmos um pouco sobre essa enigmática teoria e, ao fazermos isso, entenderemos

porque a transvaloração mostra-se tão urgente neste nosso mundo desencantado.

3.3. O Eterno Retorno na Metafísica Nietzschiana

No seu Zaratustra, Nietzsche apresenta seu profeta como o revelador do

eterno retorno, na verdade o filósofo alemão coloca na boca dos “animais” de

Zaratustra tal constatação, podemos ler:

Que teus animais bem sabem quem és, Zaratustra, e o que deves chegar a ser: tu és o profeta do eterno retorno das coisas.

E este é agora o teu destino!

[...] Olha; nós sabemos o que ensinas: que todas as coisas retornam eternamente, e nós com elas; que nós já existimos uma infinidade de vezes, e todas as coisas convosco (Nietzsche, 2008, p. 287).

Poderia haver palavras mais metafísicas que estas? Tão espantosamente

herméticas e metafísicas, que até parecem conduzir a um regresso às antigas

metafísicas das religiões de mistério.

Porém, não devemos esquecer que Nietzsche apresenta suas teses no

Zaratustra de uma forma poética e alusiva, portanto, o “retorno de todas as coisas” é

apenas uma metáfora usada para nos conduzir a outras ideias importantes no bojo

geral de suas teorias.

Esse pensamento sobre o “eterno retorno”, antes mesmo de aparecer no

Zaratustra, foi um dos temas do livro A Gaia Ciência, publicado originalmente em

1882, no qual encontramos essa misteriosa tese:

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O maior dos pesos. –E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mais cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma seqüência e ordem – e também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!” – Você não se portaria a rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: você é um Deus e jamais ouvi coisa tão divina! “Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa. “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes? Pesaria sobre os seus atos como maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última eterna confirmação e chancela? (Nietzsche, 2007, p. 230).

Nesta cena o “eterno retorno” é denominado por Nietzsche: o “pensamento

mais pesado”. Ou seja, um tipo específico de pensar que é significado

existencialmente como o “maior dos pesos”. Juntos com o pensador, todas as

coisas que estão no cenário descrito pelo “demônio”, estão destinadas a se repetir

compulsoriamente pela eternidade, a “perene ampulheta do existir” prende todos os

elementos em um único movimento de retorno constante ao mesmo lugar de

partida.

Dentro desta cena hipotética, como o pensador desse “maior dos pesos”

significaria esta recursividade temporal e espacial em sua vida?

Segundo o texto apresentado, isso dependeria do “tipo” de vida escolhida

pelo pensador, esta surpreendente comunicação dada pelo demônio do eterno

retorno, poderia soar como uma inefável benção ou, o oposto disto, uma terrível e

dolorosa maldição.

No texto do Zaratustra intitulado “da visão e do enigma”, um detalhe

esclarecedor nos é oferecido para que possamos entender melhor a tese

nietzschiana do eterno retorno do mesmo. Na cena descrita por Zaratustra, ele

caminhava entre despenhadeiros, numa íngreme senda até um misterioso pórtico.

No caminho até esse lugar, seu demônio, o espírito da gravidade, ou como traduziu

o termo alemão (Mario Ferreira dos Santos, tradutor da versão usada neste

trabalho), o espírito de “pesadume”, espírito este, que aparece na figura de um

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“anão”, que durante todo trajeto dificulta a caminhada do profeta, estando

desconfortavelmente dependurado grande parte da jornada, às costas do

personagem nietzschiano. Ao chegar diante do pórtico só um dos dois personagens

deverá continuar, por isso o profeta Zaratustra disse:

– Alto, anão! – disse-ou eu ou tu! Eu, porém, sou o mais forte dos dois: tu não conheces o meu mais profundo pensamento. Esse... não poderias suportar.

Então se me aliviou a carga, porque o anão, curioso como é, saltou dos meus ombros para o chão.

Acocorou-se sobre uma pedra diante de mim. Onde estávamos, encontrava-se casualmente um pórtico.

-Anão! –prossegui. –Olha para este pórtico, anão! – disse a seguir: – tem duas faces. Aqui se reúnem dois caminhos: ainda ninguém os seguiu até o fim.

Esta rua larga que desce, dura uma eternidade; e essa outra longa rua que sobe: é outra eternidade...

Estes caminhos se entrecruzam, opõem-se um ao outro, e aqui, neste pórtico, se encontram. O nome do pórtico está escrito no frontão: chama-se “instante” (Nietzsche, 2008, pp. 211-212).

Por meio desta bela representação imagética, Nietzsche, através da

sabedoria do seu mestre do eterno retorno, ensina-nos o segredo de sua metafísica

existencial, segredo este, que, é desvelado na palavra escrita no frontão do pórtico:

”instante”.

Porém, antes de contextualizar essa palavra “instante”, no bojo metafísico

construído por Nietzsche, é oportuno entender o que representa o “anão”, o espírito

de pesadume que durante todo trajeto impele o profeta para o chão.

No capítulo do Zaratustra intitulado “Das Antigas e das Novas Tábuas”, o

profeta nietzschiano revela a verdadeira natureza do demônio pesadume:

Tenho a visão do inimigo nato, o espírito do pesadume, e de tudo quanto foi criado por ele; a coação, a lei, a necessidade, a conseqüência, o fim, a vontade, o bem e o mal (Nietzsche, 2008, p. 261).

Fica evidente que tal personagem representa tudo aquilo que se opõe a

transvaloração de todos os valores, o pesado anão é a imagem de tudo que existe

de “pequeno” em nós, nossa parte covarde que resiste a ideia de nos

assenhorarmos de nosso próprio destino terreno.

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Também, no contexto histórico, no qual o Zaratustra foi produzido, como diz

Roberto Machado: “[...] o anão personifica [...] o niilismo, o espírito negativo, a

perspectiva do bem e da verdade introduzida por Sócrates e Platão na filosofia e

pelo cristianismo na religião” (Machado, 1999, p. 122). Assim, o espírito da

gravidade é tudo aquilo que tradicionalmente visa impedir a leveza dos criadores de

novos valores, é a síntese valorativa das antigas tábuas que se opõem às novas

tábuas transvaloradas.

Tendo isso em mente, a palavra escrita no pórtico torna-se mais

compreensível. Na realidade a mesma é a essência do espírito que fomenta a

transvaloração dos valores, a chave de entendimento para metafísica nietzschiana

da vontade de poder.

O filósofo Deleuze, comentando o enigmático eterno retorno, teceu o

esclarecedor comentário:

O segredo de Nietzsche é que o eterno retorno é seletivo. E duplamente seletivo. Primeiro como pensamento. Porque nos dá uma lei para a autonomia da vontade desgarrada de toda moral: o que quer que eu queira (a minha preguiça, a minha gulodice, a minha covardia, o meu vício como a minha virtude), “devo” querê-lo de tal maneira que lhe queira o eterno retorno. Encontra-se eliminado o mundo dos semi-quereres, tudo o que queremos com a condição de dizer: uma vez, nada senão uma vez. [...] E o eterno retorno não é só o pensamento seletivo, mas também o ser seletivo. Só volta a afirmação, só volta aquilo que pode ser afirmado, só a alegria volta. Tudo que pode ser negado, tudo o que é negação é expulso pelo próprio movimento do eterno retorno. [...] porque o ser se afirma do devir, ele expulsa de si tudo o que contradiz a afirmação, todas as formas do niilismo e da reação: má consciência, ressentimento... Só os veremos uma vez (Deleuze, 2007, pp. 35-36).

Ao nos livrarmos do “anão”, que nos impedi de apressarmos os passos em

direção à transvaloração, podemos olhar sem nenhum temor, as palavras do portal.

Como explicou Deleuze, a ideia do eterno retorno é uma metáfora que fala da

atitude afirmativa da vontade de poder, aquele que entendeu que não há “deuses do

destino”, tornar-se-á de certa maneira, seu próprio Deus do destino, isso porque,

aquele que afirmativamente resolve ir para além do bem e do mal, construirá um

caminho valorativo só seu.

Deleuze afirma que o eterno retorno é duplamente “seletivo”. Em primeiro

lugar, tudo aquilo que pensamos, só é pensado nesta liberdade afirmativa, por nós

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mesmos, não há nenhum padrão moral que possa nos guiar, somos totalmente

responsáveis pelo círculo de pensamentos que nos preenche.

Em segundo lugar, a maneira de pensar está determinada pelo nosso próprio

ser, daí a ideia de que o que nos decidirmos ser, poderá fazer da “lei” metafórica do

eterno retorno uma verdadeira “libertação”, aquele que escolhe a partir da sua

vontade de poder, terá sempre a sua realidade se retroalimentando na fonte

inesgotável do seu próprio poder.

Sobre essa recursividade existencial transvalorada, os fieis animais de

Zaratustra lembraram ao profeta a seguinte lição:

Então os animais disseram:

-Zaratustra, para os que pensam como nós, todas as coisas bailam, vão dão-se as mãos, riem, fogem... E retornam.

[...] tudo se destrói, tudo se reconstrói; eternamente se edifica a mesma, casa da existência.

Tudo se separa, tudo se saúda outra vez; o anel da existência conserva-se eternamente fiel a si mesmo.

A existência principia em cada instante; em torno de cada “aqui” gira a esfera do “acolá”. O centro está em toda a parte. O caminho da eternidade torna sobre si mesmo (Nietzsche, 2008, p. 284).

Na nova metafísica construída por Nietzsche a verdadeira existência não é

aquela que começa no grande “amanhã espiritual da eternidade”, a existência só

tem verdadeira substancialidade no presente “instante”; o passado já não existe, e o

futuro só é uma virtualidade hipotética de alguém que só se realiza enquanto

efetividade no “aqui”.

O verdadeiro “ser” por trás da transvaloração não é uma “alma imaterial”,

nesta nova metafísica do “instante” e do “aqui”, a corporeidade assume o “centro” da

nossa vontade de poder, por isso, no capítulo denominado Dos que Desprezam o

Corpo, Nietzsche põe na boca do Zaratustra o seguinte ensinamento:

Mas o homem desperto, o sábio, diz: “todo eu sou corpo, e nada mais; a alma não é mais que um nome para chamar algo do corpo”.

[...] detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um amo mais poderoso, um guia desconhecido, o que se chama “o próprio Ser”. Habita em teu corpo; é corpo (Nietzsche, 2008, p. 51).

Na tese nietzschiana, defendida através da imagem de seu profeta, o corpo é

conduzido ao núcleo temporal e espacial de todo possível pensar, o “ser” que existe

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no círculo eterno de uma existência que sempre volta para seu “centro”, é o ser

corporal, ser este que por causa de sua materialidade entende-se reflexivamente

como um eu.

Por isso que em seu livro Zaratustra: o corpo e os povos da tragédia, Carlos

Henrique Escobar afirmou que: “O eterno retorno” não é um sistema ou um

pensamento acabado. [...] o “eterno retorno” é o que é, uma corporeidade que se

procura em sim mesma [..]” (Escobar, 2000, p.190).

Transvalorar é antes de tudo começar no lugar certo esta transvaloração, ou

seja, o eterno retorno do mesmo como metáfora, só faz sentido num corpo

significado com ponto de partida desta vontade de retorno. O eterno retorno como

disse Escobar, não é um “sistema” ou um “pensamento acabado” é um princípio

inerente a vida forte que tende a expansão, ou em outras palavras, é uma

“condição” que faz do corpo seu instrumento principal de exteriorização hierárquica

no mundo como vontade de poder.

É esta vontade “encarnada”, que pretende se realizar enquanto “ser-no-

mundo”, que abre espaço para recriação valorativa transvalorada, vontade que

dentro da elasticidade do eterno retorno deve se afirmar como nova “dona” do

mundo, daí Nietzsche ter comentado incisivamente:

Tudo vem a ser e eternamente retorna- escafeder-se não é possível! – posto que pudéssemos ajuizar o valor, o que se segue disso? O pensamento do retorno como princípio de seleção [...] 1. O pensamento do eterno retorno: suas pressuposições, que haveriam de ser verdadeiras se ele fosse verdadeiro. O que se segue dele. 2. Como o pensamento mais pesado: seu provável efeito caso não se tome precaução, isto é, caso todos os valores não sejam transvalorados. 3. Meios de suportá-lo: a transvaloração de todos os valores: não mais o prazer na certeza, mas na incerteza; não mais “causa e efeito”, mas o constante criativo; não mais vontade de conservar-se, mas antes vontade de poder etc., Não mais o modo de dizer humilde “tudo é somente subjetivo, mas sim “isso é também nossa obra”!, fiquemos orgulhosos com isso! (Nietzsche, 2008, p. 508).

Com a “morte de Deus” o homem foi conduzido ao seu verdadeiro papel de

“criador do mundo” (pelo menos o mundo valorado como algo distinto do “caos”

natural que o cerca) e, a partir do novo conhecimento que descobriu, em referência

a sua própria capacidade de “dar sentido” ao que não contém sentido em si, atingiu

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um nível de maturidade gnosiológica nunca antes experimentada. Porém, como diz

Nietzsche no trecho apresentado, tal vantagem epistemológica, em relação aos

nossos antepassados, precisa ser “positivada” pela nossa atitude afirmativa frente

ao vazio da contemporaneidade; tomando a metáfora do “eterno retorno” como uma

verdade insuperável, percebemos como somos responsáveis diante destes

“pensamentos mais pesado”, afinal, o que escolhermos voltará eternamente como

virtualidade pessoal decidida por nós.

Essa forma humilde que dita à regra de que “tudo é somente subjetivo”, é de

certa forma criticada por Nietzsche porque pode esconder uma tendência niilista de

“relativizar” para não “criar”, ou seja, a relativação niilista visaria a conservação e não

a expansão do poder. A “atomização” das opiniões “especializadas” do nosso mundo

contemporâneo busca mais a hegemonia dos “diferentes que não se encontram” do

que, o embate de forças antagônicas em prol do novo.

A subjetividade proposta por Nietzsche é aquela que não tem medo de

“avançar”, isso foi muito bem percebido por Heidegger, daí seu comentário:

… a vontade de poder é a subjetividade incondicionada, e, porque ela é a subjetividade invertida, ela também é pela primeira vez a subjetividade consumada – uma subjetividade que esgota ao mesmo tempo a essência da incondicionalidade por força de uma tal consumação [...]

Nela, a razão representativa é inversamente reconhecida por meio da transformação do pensamento instaurador de valores, mas somente para ser colocada a serviço da dotação de poder à superpotencialização. Com a inversão da subjetividade do representar incondicionado na subjetividade da vontade de poder cai o primado da razão como via diretriz e tribunal para o projeto do ente (Heidegger, 2007, p. 229).

E, ainda falando como a “subjetividade incondicionada” guiada pela vontade

de poder, encaixa-se no projeto desta nova metafísica nietzschiana, o grande filósofo

alemão e comentador de Nietzsche escreveu:

… a vontade de poder enquanto a subjetividade consumada é o sujeito supremo e único, ou seja, o além-do-homem. Esse além-do-homem não vai além apenas niilisticamente da essência humana até aqui, mas, enquanto a inversão dessa essência, também vai ao mesmo tempo além de si mesmo em direção ao seu incondicionado; e isso significa, sobretudo, o seguinte: em direção ao cerne da integralidade do ente, em direção ao eterno retorno do mesmo (Heidegger, 2007, p. 230).

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O eterno retorno do mesmo, segundo comentário tecido por Heidegger, é

uma conquista da integralidade volitiva do ser, a superação do niilismo só é possível

em sua opinião, a partir de uma subjetividade consumada que, após se reconhecer

com fonte de toda valoração mundana, não sofra uma “entropia”, mas sim, continue à

buscar a superpotencialização.

Mesmo a racionalidade científica, representada de forma simplificada pelo

binômio “causa e efeito”, deve ser superada quando surge como promessa de

explicação para a essência do ser. A subjetividade incondicionada não deve ter

compromissos fixos com ”certezas”, a “incerteza” permanente de um ser que sempre

se reinventa a cada novo “instante” é a única coisa certa ditada por esse “ens

metaphysicum” que pede mais poder.

Desta forma, como dito por Heidegger, a razão representativa desta nova

forma de valorar, não deve buscar sua medida num pretenso “ente racional” último.

Enquanto vontade que se realiza plenamente em nossa individualidade, deve inverter

aquela subjetividade que ainda é humildemente cativa de um “absoluto normativo”.

Talvez por isso que Nietzsche tenha escrito: “não a humanidade”, mas antes o super-

homem é a meta! (Nietzsche, 2008, p. 483).

Quando o filósofo Nietzsche faz menção do “pensamento mais pesado”, ele

revela com isso quão abismal se faz o mundo sem o amparo metafísico do “além”,

entretanto, sua nova metafísica da vontade de poder pretende ser a possível

superação deste “abismo”, não por meio de uma nova consolação, mas sim pela

criação de uma nova consciência capaz de lidar positivamente com o lado trágico da

existência.

Sobre as discrepâncias que marcam o mundo dessacralizado que vivemos

desde a morte de Deus lemos:

Aqui surge o problema da força e da debilidade:

1- Os fracos arrebentam com isso; 2- Os mais fortes destroem o que não arrebenta; 3- Os mais fortes de todos superam os valores de juízo.

Tudo isso junto constitui a época trágica (Nietzsche, 2008, p. 43)

Os “mais fortes de todos”, citados por Nietzsche, são aqueles que não se

desmancham com o desmanchar dos valores, ao contrário, adquirem uma

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“consciência trágica” capaz de levá-los a criação positiva de outros valores, não se

contentam em só destruir aquilo que por si jaz destruído, compreendem que viver

nesta época trágica é mais uma condição de crescimento do que um motivo de

desfalecimento. Este tipo classificado por Nietzsche como os “mais fortes de todos”,

se opõe a “liberdade negativa” do tipo meramente “forte”, este segundo tipo é a

representação do niilista passivo, que ainda, na metáfora das três metamorfoses,

equivaleria ao espírito do leão, forte em destruir, porém, pouco capaz de construir

novos valores. Assim, como a “criança” da última metamorfose, os “mais fortes de

todos” brincam inocentemente com o “trágico” e, mesmo sem um “sentido natural”

para o mundo, resolvem humanizar positivamente todo seu entorno.

Falando da mensagem “trágica”, proferida de forma poética por Zaratustra, o

filósofo Heidegger faz o seguinte comentário sobre o conceito de tragédia em

Nietzsche:

Com Zaratustra começa “A era trágica” [...] o trágico no sentido Nietzschiano não tem nada em comum com o mero turvamento produzido por um pessimismo autodestrutivo, Mas também não se confunde com o delírio cego de um otimismo perdido no mero desejo; o trágico no sentido de Nietzsche está afastado dessa contradição, e isso já pelo fato de ser uma posição da vontade e, com isso, do saber em relação ao ente na totalidade cuja lei fundamental reside na luta como tal. (Heidegger, 2007, p. 245)

Este “ente na totalidade”, citado por Heidegger, é aquele que pelo princípio

organizador do “querer-mais-poder”, aceita o embate constante entre forças opostas

que se agrupam e desagrupam hierarquicamente em momentos diferentes da

existência, como uma alternância natural e salutar em prol do equilíbrio geral.

Vontade de poder não é apenas vontade, é o jogo contínuo das muitas perspectivas

que se afirmam como formas parciais e temporárias da “vontade maior” por poder.

O novo homem da tese nietzschiana, com bem explanou Heidegger, é um

meio termo entre o “pessimista” e o “pacóvio”, não deve se enterrar no “chão da

indiferença” como faz o niilista, porém, não deve “voar no céu da ilusão” como faz

aqueles que buscam “além-mundos”. Deve manter-se sóbrio e ativo, sob a égide de

sua vontade de poder deve ser capaz de dizer “sim”, mesmo diante de um universo

desencantado.

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Essa postura existencial aberta faz do “eterno retorno”, uma ocorrência

metafísica positiva, isso porque, quando o poder retorna para o poder temos a

superpotencialização da verdadeira essência do ser. O “pensamento mais pensado”

só se torna algo temerário naqueles que a “fraqueza” ocupa o lugar da vontade de

poder, neste estado deletério do querer, temos negativamente a “eclipse do ser”.

Assim, a tese metafísica de Nietzsche, bem que poderia ser pensada como

uma nova religiosidade transvalorada. O sentido mais comum conferido à religião, o

de “religare”, se adapta perfeitamente a ideia de um “eterno retorno do mesmo”,

desde que entendemos que, no sentido Nietzschiano, pela transvaloração somos

convidados a um religamento com nossa verdadeira essência de poder.

No último tópico deste capítulo, tentaremos mostrar como as tipificações

religiosas são transvaloradas pelo projeto nietzschiano e, ao estudarmos o aspecto

“dionisíaco” das teses nietzschianas, descobrimentos como a religiosidade é

ressignificada pelo filósofo.

3.4. Uma Religiosidade Transvalorada

O discurso nietzschiano se constitui essencialmente por elementos discursivos

retirados da “teologia” e, grande parte das imagens metafóricas usadas por ele, foram

elucubradas a partir do ideário mítico religioso. Com isto não estamos afirmando que

o interesse do filosofo era o de produzir “textos teológicos”, bem longe disto,

semelhante ao seu antigo mestre, Feuerbach, ele acaba por reduzir toda teologia a

uma espécie de “Antropologia”. Porém este reducionismo não pode, como já vimos,

ser comparado ao reducionismo “cartesiano-materialista”. Nietzsche quis combater a

“religião” preservando certa “religiosidade”, afinal, esta segunda, junto com a arte,

eram pensadas por ele como tentativas de superação das variadas fissuras do real.

Por isso, ao pensar em um “além-homem” Nietzsche introduz na modernidade

um discurso híbrido que, embora pareça destinado a superar radicalmente o antigo

discurso religioso, conserva certo tom metafísico que acaba por não permitir a

ultrapassagem plena em direção ao esquecimento do primeiro, desta forma, ao invés

da total obliteração do “teológico”, o alemão acaba por nos conduzir ao

“metateológico”.

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No segundo livro de sua obra vontade de poder, no tópico intitulado “Crítica da

Religião”, o filosofo alemão comentou sucintamente qual o destino que a religião teria

no âmbito de sua transvaloração, sobre isto lemos:

Toda beleza e sublimidade que emprestamos às coisas reais e imaginadas, quero exigir de volta como propriedade e produto do homem: como a sua mais bela apologia. O homem como poeta, como pensador, como Deus, como amor, como poder: Oh, para além da sua régia generosidade, com a qual ele contemplou as coisas, a fim de empobrecer a si mesmo e se sentir miserável! Este foi até agora o seu maior altruísmo, que ele admirasse, adorasse e soubesse ocultar de si mesmo que era ele precisamente, que criava aquilo que, em seguida punha-se a admirar (Nietzsche, 2008, p.95).

Muito próximo do que foi dito por Feuerbach, Nietzsche neste aforismo diz

que o homem sofreu à alienação de sua própria essência criadora e, a partir desta

projeção, não se reconheceu no próprio produto de suas ideações. Assim,

transvalorar é, antes de tudo, reconduzir o homem ao seu verdadeiro lugar de

“criador”. Entretanto, como fica subentendido no texto, reconduzir não significa

trocar a beleza alienada da religião, pela feiúra da apatia niilista, afinal, isso

constituiria um “empobrecimento” às avessas; a proposta nietzschiana era a de

preservar o deslumbre artístico causado pela religiosidade, porém, agora encarnado

na fonte real deste extasiante deslumbre: o homem.

Portanto, o que a pouco denominamos de “metateológico”, seria esta

religiosidade desalienada que, embora não tenha como meta o supra-sensível da

religião, não repudia a aguda “sensibilidade” da religiosidade. Em outros termos,

esta metateologia diz não a institucionalização dos sentimentos humanos, sem com

isso dizer não a própria condição essencialmente humana de “sentir”.

Emblematicamente podemos perceber a diferenciação entre a “religiosidade

Institucionalizada” e a “religiosidade interior” na comparação que Nietzsche faz entre

Jesus e a igreja judaica, ele escreveu:

Jesus dirige-se diretamente à situação, o “reino do céu” no coração, e encontra o meio não na observância da igreja judaica – ele conta mesmo como nada a realidade do judaísmo [...] ele é puramente interior – do mesmo modo ele não se importa absolutamente com as fórmulas grosseiras em curso sobre Deus: defende-se contra toda doutrina de expiação e de reconciliação; mostra como se deve viver para sentir-se “divinizado” – e como não se chega a isso com

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expiações e contrições sobre os pecados: “o pecado não conta para nada”, eis a sua principal sentença (Nietzsche, 2008, pp. 106-107)

Neste fragmento, na postura anti-institucional de Jesus, Nietzsche ilustra

como uma religiosidade interior, que tem como meta maior a divinização do homem,

se contrasta com a postura instrumental da religiosidade transformada em “religião”.

Para ele, todas as “formulas grosseiras” que hipoteticamente visavam

conduzir o fiel a Deus, eram na realidade esquemas de domínio que visavam a

domesticação do ser, segundo Nietzsche, a prática verdadeiramente “cristã”,

apregorada por Jesus, era manifestamente contrária a todo tipo de ajuste

dogmático.

Ainda sobre o tema da falsificação da verdadeira mensagem de Jesus,

Nietzsche escreveu:

O reino do céu é um estado do coração (– das crianças, foi dito, “pois delas é o reino do céu”); nada que seja “sobre a terra”. O reino de Deus “vem”, não de modo cronológico- histórico, não segundo o calendário, não é algo que um dia estivesse aqui em um dia antes, não: ele é antes uma “modificação de sentido no indivíduo”, algo que sempre vem e que sempre ainda não está aqui... (Nietzsche, 2008, p. 107).

Nesta religiosidade “voltada para dentro”, segundo o viés interpretativo de

Nietzsche, Jesus visava não a transvaloração do mundo, mas sim do indivíduo. O

reino do céu seria um “estado de coração”, não uma regência teocrática externa

como a religião ensinava. Para Nietzsche o que Jesus ensinava era a

transvaloração dos valores tradicionais, por isso, a chegada do “reino de Deus”

significava na verdade uma “modificação de sentido do indivíduo”; o súdito não seria

dominado neste caso por uma potência externa, era convidado a descobrir a

regência de sua própria potência.

Não há como não lembrar o tema das metamorfoses ensinadas por

Zaratustra quando Nietzsche se refere ao ensino de Jesus sobre as crianças

agraciadas com o “reino dos céus”. Fica evidente que tal prêmio é interpretado como

uma metáfora da “transvaloração”. A ingenuidade da criança é neste contexto

nietzschiano (claramente influenciado pela metáfora cristã), uma imagem figurada

do seu eterno retorno, isso porque, a criança com sua mente plástica e livre de

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qualquer sentimento pesado de ressentimento, era aquela que mais estava

preparada para “novos começos”.

Também o fato frisado por Nietzsche de que o “reino de Deus”, na fala de

Jesus, era algo sempre para “vir”, não propriamente algo presente, encaixa-se bem

na ideia de uma vontade que é sempre aspiração de um “mais-poder”, isso porque,

sua falta de realização plena, aponta sempre para uma possessão futura do poder

vislumbrado como meta.

Daí porque para Nietzsche, a realização material do “reino de Deus”,

enquanto “igreja”, foi sempre pensava como o oposto do cristianismo originário, em

sua concepção: “– A igreja é exatamente aquilo contra o que Jesus pregou – e,

aquilo contra o que ele ensinou seus discípulos a lutar” – (Nietzsche, 2008, 109).

Neste sentido, seu personagem Zaratustra foi certamente muito influenciado pela

postura libertaria de Jesus, influência que o fez dizer que: “[...] o meu Alfa e o

Ômega é tornar leve tudo quanto é pesado, tornar dançarino todo o corpo, e

pássaro todo o espírito: na verdade, é assim o meu alfa e ômega” (Nietzsche, 2008,

p. 300).

Porém, na construção de sua “metateologia” Nietzsche não se utilizou

somente de referências tiradas do cristianismo, os elementos recolhidos da

adoração grega, pesaram muitissimamente na construção de sua malha

argumentativa.

Análogo ao Jesus revolucionário, que ensinou entre os judeus uma prática

subversivamente contrária à institucionalização, entre os gregos uma divindade de

nome “Dioniso”, ocupou, segundo a interpretação de Nietzsche, um lugar

semelhante ao do carpinteiro subversivo.

De todas as divindades do panteão grego, Dioniso era o mais distante de

todos os demais deuses olímpicos, seu modo de manifestação o colocava muito

próximo dos seres humanos. Na verdade tão próximo que o êxtase ritualístico de

seu culto levava alguns a incorporação maníaca do próprio deus.

Por causa desta proximidade entre “deus” e o “adorador”, o culto a Dioniso se

tornou muito popular na Grécia, embora tal adoração quase sempre fosse realizada

às escondidas, afinal, Dioniso era pensado como um deus “selvagem” e, por isso,

um tanto perigoso a ordem social apolínea.

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Falando sobre a forte impressão que tal culto produzia no adepto, Mircea

Eliade teceu o seguinte comentário sobre a experiência dionísiaca cúltica:

Sob uma ou outra forma, encontra-se sempre, no centro do ritual dionisíaco, uma experiência estática de uma alucinação mais ou menos violenta: A mania. Essa “loucura” constituía de certo modo a prova da “divinização” (éntheos) do adepto. A experiência era certamente inesquecível, pois participava-se da espontaneidade criadora e da liberdade inebriante, da força sobre-humana e da invulnerabilidade de Dioniso. A comunhão com o deus fazia com que se manifestasse e explodisse, por certo tempo, a condição humana, mas não chegava absolutamente a transmudá-la. Não existe alusão à imortalidade nas bacantes, fato que tampouco se verifica numa obra tão tardia quanto as Dionisíacas de nono. (Eliade, 1978, p. 211)

Como esclarece Mircea Eliade, o principal atrativo do culto Dionisíaco não era

uma promessa futura de imortalidade; ao invés disto o adepto buscava a potência

do deus aqui mesmo nesta vida e, recebendo-o em seu próprio corpo, tornava-se

receptáculo da imortalidade do deus.

Outro elemento importantíssimo ressaltado por Eliade é aquele que toca a

“sensação de liberdade” sentida pelo adepto do culto, nesse ambiente cúltico, o

participante gozava de um forte afrouxamento moral, orgias que objetivavam o

prazer sensível e carnal, reclamavam a primazia absoluta do corpo.

Ainda sobre esta liberdade dionisíaca, Mircea Eliade escreveu as seguintes

palavras esclarecedoras:

O êxtase dionisíaco significa antes de mais nada a superação da condição humana, a descoberta da libertação completa, a obtenção de uma liberdade e de uma espontaneidade inacessíveis aos homens. Que entre essa liberdade tenha figurado igualmente a libertação dos interditos, dos regulamentos e das convenções de ordem ética e social, isso parece certo; o que explica em parte a adesão maciça das mulheres (Eliade, 1978, p. 209).

A adoração dirigida a Dioniso era essencialmente, uma adoração dirigida à

vida forte dos instintos, uma celebração da vida forte dos instintos, um culto à vida

natural. O deus apelava para o desejo sempre presente de afrontar as rígidas

amarras societárias, com Dioniso aquilo que habitualmente era reprimido na vida

ordinária, transformava-se em elemento básico para libertação do adepto.

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Até mesmo as mulheres, como esclareceu Eliade, tão menosprezadas na

cultura patriarcal grega, eram graciosamente aceitas no culto a Dioniso e, até certo

ponto, recebiam uma atenção especial dentro deste culto.

Outra particularidade extremamente original do culto dionisíaco era o

desvelado valor que se dava a experiência “não racional do adepto”. Sobre essa

liberação efusivamente instintual, o pesquisador brasileiro Junito de Souza Brandão,

escreveu:

… através desse estado de semi-inconsciencia, os adeptos [...] acreditavam sair de si pelo processo do ékstasis, o êxtase. Esse sair de si significava uma superação da condição-humana, uma espontaneidade que os demais seres humanos não podiam experimentar. [...] A mania e a orgia provocavam uma como que explosão de liberdade e, seguramente, uma transformação, uma liberação, uma distenção, uma identificação, uma kátharsis, uma purificação (Brandão, 2005, pp. 136-137)

A aparente “irracionalidade” do culto Dionisíaco ocupava uma importante

função; como ressaltou Brandão, a base orgiástica do referido culto, visava uma

“libertação”, ou seja, buscava a “desmedida” como uma nova e vital experiência de

transbordamento do ser existente. O autor chega a comparar tal experiência a algo

“catártico”, em outros termos ele diz que através do êxtase Dionisíaco, o adepto

vivia uma experiência purificadora que o livrava temporariamente, do forte peso

normativo imposto pela sociedade.

Do lado oposto ao deus Dioniso, encontrava-se o deus Apolo, sendo este

último, a simétrica inversão de tudo aquilo que o primeiro representava entre os

gregos.

Apolo era a plena materialização imagética do “racional”, em sua figura

repousavam ideias como “equilíbrio”, “repressão dos instintos”, “ordem social”, entre

outras noções que apelavam para contenção do indivíduo. Se em Dioniso a

“desmedida” se afigurava como uma meta, em Apolo a “medida” era pura essência

de todo seu culto.

O deus Apolo era a representação da vida citadina, assim, toda normatividade

cúltica, na adoração deste deus urbano, era na verdade uma representação mítica

do próprio valor institucional da vida regrada da “pólis”.

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Diferente deste compromisso estrito com as leis humanas, Dioniso buscava a

“naturalização” de todos os seus adeptos, daí o oportuno comentário de Brandão:

“Dioniso é um deus essencialmente agrário, deus da vegetação, deus das potências

geradoras, e por isso mesmo, permaneceu por longos séculos confinados no

campo” (Brandão, 2005, pp. 123-124).

Sendo o deus das “potencias geradoras” do mundo natural, a sexualidade era

muito valorizada nos cultos dionisíacos, tanto nas procissões, como também, nas

variadas pinturas que representam o deus, um dos elementos mais comum deste

“deus da fertilidade”, era a imagem cúltica do “falo”.

Sobre este detalhe Carl Kerény, grande pesquisador do deus selvagem

Dioniso, teceu o comentário:

O falo é um companheiro constante de Dioniso. Ao que tudo indica, rara era a procissão dionisíaca de que ele estava ausente. Os que nelas tomavam parte atavam-no a si [...] era também erigido como monumento comemorativo do desempenho de coregos. O deus jamais o usa; mas seus companheiros, os silenos e os sátiros, são intifálicos. Procissões fálicas e alegres festivais dionisíacos ocorriam em todo o território Helênico (Kerény, 2002, p. 245).

A potência fálica, como muito bem comentou Kerény, era uma das

representações mais usadas para simbolizar a potência natural do deus da

fertilidade Dioniso. No culto, além do falo do próprio deus, seres fálicos como os

silenos e os sátiros, como esclareceu Kerényi, sempre eram representados como

fieis companheiros do deus.

Como esse deus selvagem representava às forças instintuais do mundo

natural, às vezes tal divindade era representada pelas imagens de animais como

“touro” e o “bode”, ambos animais selvagens difíceis de serem domados.

Este aspecto anômico, ligado a peculiaridade de alguns animais selvagens, é

miticamente lembrada na imagem híbrida do “sátiro”, figura mitológica que sempre

estava próxima de Dioniso. Este ser fantástico era representado como um misto

entre o “corpo humano” e o de um “bode”, evidentemente, tal hibridismo imagético,

denunciava a liberdade instintual que tal ente usufruía no âmbito de sua natureza

predominantemente animalesca.

A imagem desafiadora desses seres místicos gregos, meio homem, meio

animal, foram tão marcantes e, tão facilmente ligadas ao perigo da perda da

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consciência civilizada, que em seu estudo O Diabo no Imaginário Cristão, Carlos

Roberto F. Nogueira comenta como a imagem medieval do demônio, foi influenciada

por tipificações mitológicas gregas:

O grande modelo que influenciou toda uma iconografia diabólica foram as clássicas imagens de pã e dos sátiros: criaturas meio bode, com cifres, cascos partidos, olhos oblíquos e orelhas pontiagudas. [...] entre as características emprestadas à antiguidade, que tornaram a figura de pã extremamente conveniente para a sua incorporação a uma demonologia cristã, estavam o seu apetite sexual desenfreado e a sua selvageria - sua hostilidade e qualquer ordem instituída. De outro lado o seu parentesco com o bode, que, junto a essa antiga divindade, é outra representação privilegiada do maligno. No novo testamento, os bodes estão firmemente relacionados com o mal e, na cena do juízo final, os bodes e os cordeiros – os maus e os bons – são separados, sendo os primeiros precipitados ao inferno (Nogueira, 2002, p. 67).

Assim, tudo aquilo que se relacionava com a vida instintual quase sempre foi

interpretado com algo perigoso à civilização, como foi dito por Nogueira, o próprio

diabo cristão sempre foi pensado como uma síntese imagética do lado sombrio e

irracional do ser humano. Na verdade, não fica difícil de imaginar que tudo aquilo

que Dioniso e seus companheiros bestiais representavam no mundo antigo, nossa

civilização ocidental demonizou.

Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, esta luta contra o

“dionisíaco”, tomando partido contra toda “desmedida”, em prol de uma

racionalidade apolínea, se solidificou, segundo Nietzsche, na filosofia racional

preconizada por Sócrates. Em seu livro Ecce Homo, ao fazer uma revisão de sua

obra O Nascimento da Tragédia, o próprio Nietzsche se refere a este combate entre

a racionalidade Socrática e a efetividade instintual de Dioniso, da seguinte maneira:

Uma “ideia” – a oposição entre Dionisíaco e apolíneo – transposta para o metafísico; a própria história como desenvolvimento dessa ideia; na tragédia, a oposição elevada a uma unidade; desta ótica, coisas que nunca se haviam vislumbrada, súbito colocadas frente a frente [...] as duas decisivas novidades do livro são, primeiro,a compreensão do fenômeno dionisíaco nos gregos –oferece a primeira psicologia dele, enxerga nele a raiz única de toda a arte grega. Segundo, a compreensão do socratismo: Sócrates pela primeira vez reconhecido como instrumento da dissolução grega como típico décadent. “Racionalidade” contra instinto. A “racionalidade” a todo preço com a força perigosa, solapadora da vida! (Nietzsche, 1995, p. 62).

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Nietzsche comenta neste trecho do Ecce Homo, que sua obra o nascimento

da tragédia, um dos seus primeiros livros (1872), veio revelar algo extremamente

revolucionário: o socratismo não representou um avanço filosófico, ao contrário, é

em nome desta estrutura teorética que os gregos começaram a reprimir

morbidamente os instintos mais fortes, sintetizados na imagem mítica de Dioniso.

Também, no Nascimento da Tragédia Nietzsche fala de uma arte grega

fortemente saturada pela imagem de Dioniso, daí o filósofo ter escrito:

É uma tradição incontestável que a tragédia grega em sua configuração mais antiga tinha por objeto somente a paixão de Dioniso e que por muito tempo o único herói cênico que houve foi justamente Dioniso. Mas com a mesma segurança poderia ser afirmado que nunca, até Eurípides, Dioniso deixou de ser o herói trágico, e que todas as figuras célebres do palco grego, prometeu, Édipo e assim por diante, são apenas máscaras desse herói primordial, Dioniso (Nietzsche, 2005, pp. 31-32).

No texto apresentado, Nietzsche diz que por mais apolínea que a arte grega

tenha se tornado, especialmente após a fixação do socratismo, ainda de fundo, toda

criação grega, respirava os “ares” dionisíacos do Deus terrivelmente despedaçado

pelos titãs. Como no mito dionisíaco, onde o deus ressuscitava triunfantemente para

vida, segundo a ótica de Nietzsche, cada novo personagem das “tragédias gregas”

prefiguravam o retorno mágico do deus, bem como suas infinitas mortes.

Para o filósofo alemão, foi a dualidade entre um “mundo verdadeiro” e um

“mundo de aparências”, que lentamente soterrou a metafísica da efetividade do culto

dionisíaco. Em prol do estabelecimento pleno da racionalidade Socrática, o homem

aprendeu a desprezar o corpo e suas exteriorizações instintuais com meras

“sombras” do “real”.

Em seu livro As Máscaras de Dioniso: filosofia e tragédia em Nietzsche,

Márcio Jose Silveira Lima comentou da seguinte forma essa mudança

paradigmática dos gregos:

O motivo pela qual a tragédia padeceu foi a divisão metafísica perpretada pelo socratismo; somente postulando um mundo superior e verdadeiro é que se poderia demonstrar a veracidade do saber, estando esta assentada na razão; com isso, condenava-se o modo de ser daqueles que estavam imersos no encanto da tragédia, uma vez que dela só participava quem estava sob o jogo dos afetos; por

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outro lado, só a racionalidade poderia atingir, a essência daquele “outro mundo” (Lima, 2006, p. 97).

A “razão” como operacionalidade superior, o instinto como operacionalidade

inferior, o primeiro como caminho para ascensão, o segundo como caminho para

degeneração do “espírito”. No comentário de Lima, a dualidade socrática, imposta a

arte dionisíaca, estabeleceu uma lacuna entre o verdadeiro e o aparente que

acabou por desvalorizar a afetividade do instinto, foi assim que o socratismo passou

a supervalorizar o “outro mundo”. Nietzsche desmente essa dualidade socrática e,

no âmbito de sua nova metafísica da vontade de poder, reconhece o antigo deus

Dioniso como a melhor representação da unidade entre o “mental” e o “corporal”, em

seu ímpeto selvagem, o deus se manifesta como vontade contínua por “mais-poder”.

Neste sentido nietzschiano, Jesus pode até mesmo ser comparado com

Dioniso, afinal, o pregador da Judéia falava de um reino de Deus no “coração” de

seus seguidores. Semelhante a Dioniso, que era adorado fora da “legalidade” cúltica

da polis, afinal a essência de seu culto era o questionamento desta legalidade

castradora da efetividade natural, o Jesus, pensado por Nietzsche, era um sujeito

não propenso a domesticação social, por isso o filósofo alemão escreveu:

O cristianismo originário é uma abolição do Estado: ele interdita o juramento, o serviço militar, os tribunais, a autodefesa e a defesa de qualquer totalidade, a distinção entre nacionais e estrangeiros; inclusive a ordenação em classes. [...] O cristianismo é também uma abolição da sociedade (Nietzsche, 2008, p. 129).

Segundo este fragmento nietzschiano, o cristianismo de “Jesus” (chamado no

texto de originário), trazia certas qualidades dionisíacas, afinal, sua principal meta,

para Nietzsche, não era o ajustamento societário, mas sim a tentativa de

materializar o “reino de Deus” enquanto efetividade prática.

Com esse tipo de pregação, Jesus, semelhante ao deus da “desmedida”

Dioniso, levava seus seguidores a uma liberdade existencial incompatível com

“razão” societária dominante. Essa ideia nietzschiana, de um Jesus originariamente

anômico, predisposto mais a efetividade do corpo, do que a alegria do “espírito”,

parece se ajustar bem a duas imagens oferecidas em dois fragmentos bíblicos. O

primeiro relato é aquele que fala da transformação miraculosa de água em vinho

(João 2:6-11). O segundo, que consideramos mais significativo para sustentação da

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tese nietzschiana, é a fala atribuída a Jesus em referência a como alguns ajuizavam

seu comportamentos:

… veio João, que não come nem bebe, e dizem: um demônio está nele! Veio o filho do homem, que come e bebe, e dizem: eis aí um glutão e beberão amigo de publicanos e pecadores! Mas a sabedoria foi justificada pelas suas obras (Mat. 11: 16-19).

Nestas duas referências bíblicas, Jesus aparece envolvido com um dos

símbolos mais recorrentes do culto dionisíaco: o vinho. Dioniso era conhecido

também pelo nome de “Zagreu”, nome que se vinculava normalmente ao Dioniso

“deus do vinho”.

Comparativamente, a fala de Jesus em referência a seu comportamento, o

coloca como um “Zagreu comportamental”; diferente de João Batista, que em suas

palavras era a personificação da “medida”, o carpinteiro se coloca como uma

antítese do mesmo, por isso, a pura materialização do prazer sensível.

Portanto, o ascetismo sacerdotal que foi implantado no cristianismo, foi uma

deturpação “apolínea” posterior à morte de Jesus e, segundo a interpretação

nietzschiana, a religião que se ergueu à custa de seu nome, trocou o “reino de

Deus” interno, dos primeiros dias de seu pretenso fundador, por um reino externo

confiado aos sacerdotes.

Em sentido de comparação, poderíamos dizer que da mesma forma que a

filosofia socrática era antípoda da arte dionisíaca, Nietzsche compreendeu o

cristianismo, posterior a Jesus, principalmente a partir de Paulo, como um desvio da

mensagem originária.

Assim, qualquer teoria da religião em Nietzsche, deve considerar uma

possível “religiosidade trágica transvalorada”, a partir de um movimento regressivo

onde o pensamento mítico-religioso ainda não estava cindindo entre dois mundos.

Como filósofo que recorrentemente reivindicou o posto de discípulo do deus Dioniso,

Nietzsche ressaltou em praticamente toda sua obra que a verdadeira meta humana,

deve ser não o distante “céu” das religiões, mas sim uma mentalidade transvalorada

capaz de lidar com nosso desamparo ontológico.

Esta nova postura “trágica”, recomendada varia vezes pelo filósofo alemão

em seus escritos, foi belamente sintetizada nas poéticas palavras de Zaratustra,

que, ao falar aos seus discípulos ensinou:

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Vós ergueis os olhos quando aspirais a elevar-vos. Eu, como estou no alto, desço o meu olhar.

Quem de vós pode estar alto e rir ao mesmo tempo? Quem escala altos montes, ri-se de todas as tragédias da cena e da gravidade trágica da vida.

Valorosos, despreocupados, zombeteiros, imperiosos, assim nos quer a sabedoria.

Ela é mulher, e não poderia amar senão a um guerreiro (Nietzsche, 2007, p. 59).

A consciência trágica, segundo as palavras de Zaratustra, é aquela que não

precisa recorrer ao “alto” para manter-se incólume, certa “altivez” deve nutrir esse

novo “homem trágico” que ri do seu próprio destino, não importando qual seja sua

sina. Por isso Nietzsche usa a imagem do guerreiro; este, mesmo frente à

possibilidade de perecer na batalha, ama a possibilidade de “lutar”, e, procedendo

desta forma, acaba por tornar secundária a preocupação com o resultado final da

peleja.

Esta postura destemida e afirmativa diante da vida foi chamada pelo filósofo

alemão de “amor fati”, termo que em consonância com sua tese do “eterno retorno

do mesmo”, leva as últimas consequências o ato de escolher “quem si é”. Em seu

livro A Gaia Ciência, sobre tal destinação transvalorada Nietzsche escreveu:

Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: – assim me tornarei um aqueles que fazem belas as coisas. Amor fati [amor ao destino]: seja este, doravante o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja o desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz sim! (Nietzsche, 2007, pp. 187-188).

Neste trecho apresentado, Nietzsche ensina retoricamente que toda

avaliação verdadeiramente transvalorada é uma glorificação da vida como ela

genuinamente é, e, essa nova maneira de avaliar estabelece valores positivos em

nossa relação com a mesma. Aquele que aceita o novo amor [amor fati], não precisa

recorrer à mistificação religiosa para amar a vida, ao contrário, afirmando a vida

como ela é nós reinventamos o sagrado; assim tornar-se possível uma “religiosidade

dionisíaca” que é pura afirmação da efetividade.

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Está “metateologia” pensada a partir do pensamento nietzschiano, não divide

a realidade em duas facetas divergentes, afinal, toda realidade é constituída por

“aparências” e, toda aparência é formadora de “realidades interpretativas” novas.

Assim, para aqueles que aceitarem ir “para além do bem e do mal”, buscando

afirmativamente novos critérios valorativos para existência, o anúncio da morte de

Deus não deve pesar como uma maldição, isso porque, o homem trágico não

precisa buscar a “verdade”, apenas deve buscar novas possibilidades interpretativas

que valorizem à vida. Por isso Zaratustra disse: “deveis buscar o vosso inimigo e

fazer a vossa guerra, uma guerra por vossos pensamentos! E se vosso pensamento

sucumbir, vossa lealdade, contudo, deve cantar vitória” (Nietzsche, 2007, p. 71).

Num mundo secularizado como o nosso, essa postura “guerreira” significa

antes de tudo, ir além do “quietismo” sistêmico imposto sutilmente às massas.

Devemos lutar não por novas “teorias”, mas sim por teorias capazes de se

materializarem positivamente como práticas mundanas renovadas.

É importante frisar que a imagem do guerreiro, tantas vezes explorada por

Nietzsche, é ainda muito oportuna (talvez até mais oportuna, aplicada aos nossos

dias), pois, a transvaloração só é possível a partir da “luta” e, como acontecia nos

dias do filósofo alemão, a maioria dos seres humanos não querem a “angústia da

batalha”, acabam por preferir a dócil postura da resignação. Foi diante desta postura

apática que Nietzsche escreveu:

… o moderno misarquismo (forjando uma palavra feia para uma coisa feia) de tal modo se transformou e se mascarou no que é espiritual, espiritualíssimo [...] colocou-se em primeiro plano a adaptação, ou seja, uma atividade de segunda ordem, uma reatividade [...] mas com isto se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder, com isto não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadores de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a “adaptação”… (Nietzsche, 2004, p. 67).

A relação que homem dionisíaco deve ter com o mundo, não é uma passiva

relação de adaptação. Segundo as letras nietzschianas, deve ser uma relação ativa

de “transformação”; visto que tal homem é movido pela vontade do “mais-querer”, a

“desmedida” criativa daquele que sempre busca o novo, é a sua única senda

possível.

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É lógico que este comportamento “nômade”, inerente àquele que busca

constantemente novas “terras”, nem sempre traz o conforto enganoso dos que ficam

“parados”; por isso, a consciência trágica é aquela que consegui avaliar o seu

próprio nível de desamparo, porém, frente a todo esse abismo, não se acovarda

escolhendo a desistência como destino.

Num belo poema de seus Ditirambos de Dioniso, Nietzsche, usando uma vez

mais a imagem de seu Zaratustra, fala metaforicamente da situação positivamente

trágica do buscador, lemos:

Ó Zaratustra!

cruel Nimrod!

Ainda há pouco caçador de Deus,

rede para fisgar toda virtude,

flecha do mal! –

Agora-

por ti mesmo caçado,

presa de ti mesmo,

em ti mesmo penetrado...

Agora-

solitário contigo,

“a dois” no próprio saber,

entre cem espelhos,

falso ante ti mesmo,

entre cem recordações

incerto,

cansado de todo ferida,

frio de todo gelo,

estrangulado em teu próprio laço,

Conhecedor de si!

Carrasco de si!

Por que te amarraste

com o laço de tua sabedoria?

Por que atraíste a ti mesmo

ao paraíso da velha serpente?

Por que te insinuaste, rastejaste

para dentro de ti – de ti?...

[...] Buscaste o fardo mais pesado:

e encontraste a ti –,

não te despojas de ti...

(Nietzsche, 2007, pp. 107-109).

A referência ao personagem bíblico Nimrod é evidentemente uma alusão ao

“assassinato de Deus”, agora, os mesmos que caçaram e abateram Deus, são

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aqueles que precisam significar positivamente suas vidas, no entanto, nesta nova

condição existencial, sem contar com a orientação metafísica da antiga divindade.

Poeticamente Nietzsche descreve a verdadeira situação humana num mundo

radicalmente desencantando; agora que sabemos que todo “bem” e “mal” procedem

da nossa própria capacidade valorativa, nossas avaliações devem se sustentar às

nossas próprias custas.

Nesta nova fase humana, o conhecimento é apenas um valor que deve ser

contextualizado entre uma pluralidade de valores, para Nietzsche os melhores

valores não são os verdadeiros, mas sim os que afirmam a vida forte, afinal, não

existe a “verdade”, apenas perspectivas.

Porém, é lógico que essas novas perspectivas não estão “soltas ao vento”.

Tendo como “núcleo” à vontade de poder, as novas interpretações orbitam ao redor

de uma moral transvalorada. Destacando o potencial criativo da transvaloração

proposta por Nietzsche, criatividade valorativa que busca superar seu aspecto

destrutivo inicial, Pierre Héber-Suffrin escreveu:

“[...] a intenção profunda de Nietzsche é positiva, criadora; Nietzsche só rejeita e destrói para construir [...] Nietzsche só destrói uma moral para substituí-la por outra, e as exigências do imoralismo que ele defende são o contrário das facilidades da imoralidade. Assim, se Zaratustra se alegra com a morte de Deus, é que esse fato torna possível novas construções, é que esse fato histórico constitui um novo princípio metafísico [...] (Héber-Suffrin, 1999, p.35).

É no âmbito desta abertura gnosiológica absoluta que segundo Nietzsche, o

homem torna possível a sua reinvenção, o “amor fati” não é em nenhum momento

uma atitude resignada diante do “futuro”, ao contrário, é uma profunda alteração no

modo de encarar o tempo. Agora que já não estamos mais no “tempo de Deus”, pois

ele está morto, a unidade de sentido em ação no nosso mundo é sempre aquela

querida e escolhida por nós mesmos.

Assim, no nosso mundo secularizado, e, portanto, multidiscursivo, o que

verdadeiramente importa não é se somos “ateus” ou “religiosos”, o que faz

verdadeiramente diferença é como nossas crenças modelam nosso “agir”.

Em nosso tópico presente, que trata da possibilidade de uma “religiosidade

transvalorada”, acreditamos ter deixado claro que o que chamamos de

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“religiosidade” é mais uma postura existencial que considera as potências da vida

“sagradas”, do que um “culto passivo” às mesmas.

Uma religiosidade Dionisíaca que tem como soberana a efetividade da vida

real, tanto mentalmente, como também instintualmente, é aquela que convida o

“crente” e o “não-crente” para uma dança festiva que comemore a “vida”. Só uma

religiosidade deste tipo poderia justificar o seguinte canto do profeta Zaratustra:

“Homem, escuta!

Que diz a profunda meia-noite?

Tenho dormido, tenho dormido!

De um profundo sono despertei:

O mundo é profundo, mais profundo

do que o dia imagina.

Profunda é a sua dor e a alegria mais profunda a do que o sofrimento!

A dor diz passa!

Mas toda alegria quer uma profunda,

profunda eternidade! “(Nietzsche, 2007, p. 394).

Talvez nesta nova “metafísica” Nietzschiana, ou até mesmo se preferirmos,

nesta nova “religiosidade transvalorada”, não possamos ir tão longe como nossos

antepassados esperavam ir sob a égide da antiga religiosidade. Porém, tendo

aprendido com o filósofo alemão a valorizar aquilo que efetivamente é possível, nos

contentaremos em vislumbrar um mundo humanamente melhor, afinal, esta é a

meta última de seu projeto de transvaloração.

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Capítulo IV

Novos Rumos Epistemológicos Para as Ciências da Religião.

Como vimos nos capítulos precedentes, não há como negar, a partir do

século XIX, as profundas alterações no campo dos estudos religiosos em todo

mundo ocidental. Deste momento histórico em diante, o fenômeno religioso

começou a ser tratado como mais um dos variados fenômenos sociais, seu status

anterior de “elemento transcendental”, inserido provisoriamente num mundo natural,

foi lentamente subjugado por novas necessidades epistemológicas e, a partir de

então, o estudo das religiões foi conduzido a outros quadros referenciais (psicologia,

sociologia, antropologia, entre outras abordagens) que, gradativamente,

modificaram nossas antigas interpretações sobre esse arcaico fenômeno humano.

Neste sentido, o fatídico anúncio nietzschiano sobre a “morte de Deus”,

preconizou indiretamente uma radical transformação no campo filósofo do estudo

das religiões. Aquela antiga univocidade dogmática que, reservava à religião um

lugar “especial” no mundo, foi substituída por uma nova metodologia multifacetada,

que, não mais lhe reservava tal privilégio discriminativo. Com a modernidade a

religião sofreu uma extrema e contínua humanização.

Essa modificação do “campo religioso”, como já abordamos nos capítulos

anteriores, não ocorreu de forma isolada, mas sim de forma sistêmica. O antigo

conceito de cultura perdeu, na modernidade, a sua eficácia totalizante, as novas

descobertas arqueológicas, os estudos antropológicos que revelaram a enorme

complexidade dos variados mundos recém- descobertos, bem como o surgimento

de uma crítica literária capaz de analisar comparativamente textos antigos (muitos

destes consideramos sagrados), colocaram em xeque a ideia estática de “tradição”

e, com isso, uma perspectiva evolucionista e relativista foi ganhando corpo como

novo paradigma epistemológico.

A visão sociológica comteana se configurou como a melhor síntese do novo

espírito interpretativo da modernidade. Em seu modelo explicativo a fase teológica

da humanidade havia terminado, como uma criança que atingiu por fim sua maior

idade, a humanidade, através do novo paradigma científico, atingiu sua maior idade

racional. Essa interpretação linearmente evolucionista inaugurou progressivamente

o movimento já estudado neste presente trabalho com o nome de “secularização”,

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sendo que, tal termo aplicado modernamente, designa normalmente, o processo de

dessacralização pelo qual o mundo passou desde o final do século XIX.

A tese evolucionista dessa primeira fase de secularização associou o declínio

do pensamento religioso a ideia de progresso; às exigências de uma realidade

humana “positiva”, obrigaram a religião a ficar cada vez mais circunscrita ao âmbito

da idiossincrasia individual, sua atuação coletiva foi drasticamente reduzida.

O autor Thomas F. Ódea, em seu livro sociologia da religião, descreveu da

seguinte forma a essência da “secularização”:

Pode-se dizer que a secularização consiste, fundamentalmente, de duas transformações relacionadas do pensamento humano. Existe, em primeiro lugar, a “dessacralização” da atitude com relação a pessoas e coisas – o desaparecimento do tipo de participação emocional que é encontrado na resposta religiosa, na resposta ao sagrado. Em segundo lugar existe uma racionalização do pensamento – o desaparecimento da participação emocional na maneira de pensar o mundo. [...] A secularização da cultura, que combina dessacralização e racionalização, significa que uma interpretação religiosa do mundo já não é o esquema básico para o pensamento. Surge uma outra interpretação do mundo, que já não é sagrado e passa a ser composto de coisas que devem ser manipuladas. Esta interpretação leva, cada vez mais, a interpretação religiosa do mundo para a esfera da experiência “intima”, e se torna o modo de pensamento na esfera pública (Ódea, 1969, p. 115).

Dessacralizar o mundo é evidentemente “desapropriar” a religião de seu

antigo lugar de destaque, como dito por Ódea, a religião se retira da esfera pública

e, neste novo mundo laicizado, fica restrita à esfera subjetiva do individuo.

O fenômeno que o autor supracitado chama de “racionalização” é segundo

seu ponto de vista o segundo motivo de transformação do pensamento humano

moderno. No âmbito deste fenômeno teríamos a mudança da regência emocional,

para regência “racional”, neste segundo modo de pensamento, para Ódea, a relação

com o mundo passa a ser uma relação instrumental, o homem deixa de apenas

participar da dinâmica do mundo, para de certa forma “dominar” tal dinâmica.

É importante lembrar que essa nova lógica instrumental, foi em muito

influenciada pelo surgimento do capitalismo moderno. A partir do surgimento dessa

nova forma sistêmica de produção, se desenvolveram novas exigências

organizacionais, isso porque, as relações internas entre os indivíduos e instituições

foram redimensionadas nos novos sistemas sociais hodiernos. Nesta nova rede de

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relações, a coesão social não é mantida mais às custas de uma única e inflexível

visão do mundo. A racionalidade social capitalista se articula em domínios

institucionais autônomos e parcialmente independentes: daí o motivo central de ser

até certo ponto desnecessária a antiga legitimação religiosa, antes oferecida ao

“sistema”.

Também, refletindo sobre as importantes mudanças ocorridas no mundo após

a “secularização”, em seu O Dossel Sagrado, Peter L. Berger avalia como o

fenômeno por ele chamado de “individualização” fortaleceu o declínio da

religiosidade pública, sobre isso escreveu:

Uma dessas características essenciais [da secularização] é a da “individualização”. Isso significa que a religião privatizada é assunto de “escolha” ou “preferência” do indivíduo ou do núcleo familiar, ipso facto carecendo de obrigatoriedade. Uma tal religiosidade privada, independentemente de quão “real” apareça para os que a adotam, não pode mais desempenhar a tarefa clássica da religião: construir um mundo comum no âmbito do qual toda a vida social recebe um significado último que obriga a todos. Ao contrário, essa religiosidade limita-se a domínios específicos da vida social que podem ser efetivamente segregados dos setores secularizados da sociedade moderna. Os valores que dizem respeito à religiosidade privada são, tipicamente, irrelevantes em contextos institucionais diferentes dos da esfera privada. [...] Não é difícil ver que essa segregação da religião no âmbito da esfera privada é bastante “funcional” para a manutenção da ordem altamente racionalizada das instituições econômicas e políticas modernas (Berger, 1985, p.145).

Após a expansão do fenômeno moderno da secularização, a religião perdeu

muito de sua coercitividade institucional, assim, como explicado por Berger, hoje em

grande parte do mundo civilizado a religiosidade não é mais um fator obrigatório na

vida social. Uma prova desta mudança, como vimos no capítulo II do presente

trabalho, é o crescimento do número de ateístas no mundo contemporâneo.

A “religiosidade privada” da contemporaneidade, segundo o invés

interpretativo de Berger, não tem mais o poder de criar uma cosmovisão que

unifique todos os setores da sociedade, ao contrário, são as diversas instituições

religiosas que hoje buscam seu “lugar” no mundo.

Antes as religiões eram usadas pelas sociedades do passado como agências

reguladoras do pensamento e da ação social, o que chamamos de “senso comum”

era quase que exclusivamente modelado pela força do “ideário religioso”, porém,

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com a dessacralização de grande parte das sociedades contemporâneas a “razão

instrumental” passou ocupar o lugar de “principal formadora ideológica”. Deste

momento em diante, a própria religiosidade começou a ser modelada por esta

racionalidade secularizada.

Interessantemente, como já explicamos anteriormente, esse enfraquecimento

da religião não a levou a sua completa obliteração, ela apenas se retirou da esfera

pública, para habitar mais seguramente o mundo íntimo dos indivíduos. Ainda

descrevendo esse fenômeno da passagem do coletivo para âmbito restrito do

individual, Berger usa o termo “polarização” para explicar como é possível a

sobrevivência das religiões em nosso mundo secularizado:

… a moderna sociedade industrial produziu um setor “localizado” no centro que é algo assim como um “território livre” com relação à religião. [...] uma conseqüência interessante disso foi uma tendência para a religião “polarizar-se” entre os setores mais público e mais privado da ordem institucional, especificamente entre as instituições do Estado e da família. [...] O efeito global da “polarização” mencionada acima é muito curioso. A religião manifesta-se como retórica pública e virtude privada. Em outras palavras, na medida em que a religião é coletiva, ela deixa de ser “real”; na medida em que é “real”, deixa de ser coletiva. Essa situação representa uma severa ruptura com a função tradicional da religião, que era precisamente estabelecer um conjunto integrado de definições de realidade que pudesse servir com um universo de significado comum aos membros de uma sociedade. Restringe-se assim o poder que a religião tinha de construir o mundo ao da construção de mundos parciais, universos fragmentários, cuja estrutura de plausibilidade, em alguns casos, pode não ir além do núcleo familiar. (Berger, 1985, pp. 141-146)

No âmbito desta denominada “polarização”, como explica Berger, a função

das instituições religiosas fica praticamente circunscrita à esfera familiar, embora

como dito pelo autor, certa religiosidade “fraca” pode ser sentida como pano de

fundo ideológico de alguns setores públicos.

Nesta nova ordenação discursiva da modernidade, o discurso religioso é

apenas mais um a tentar se impor no plano pluridiscursivo das sociedades

secularizadas, como foi assinalado por Berger, quanto mais afastado o discurso

religioso se faz ouvir da esfera pública, mais “real” o mesmo se mostra ser.

Assim, o aparecimento ocasional de certa retórica religiosa no espaço

público, já não é acompanhado pelo forte apelo de autoridade que gozava no

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passado, logo que “pronunciado” sofre certo abafamento no plano multidiscursivo da

contemporaneidade.

Mesmo o “discurso religioso”, não pode hoje ser estudado como um discurso

unitário e coeso, ao esclarecer que o campo religioso produz “universos

fragmentários”, Berger está denunciando a estrutura porosa e multifacetada deste

complexo campo, por isso, o nível de plausibilidade foi reduzido a uma esfera

“celular”, cada religião institucionalizada agora concorre para manter-se viva.

Depois que a ideia da “naturalização cultural” foi questionada no início da

modernidade, o conceito de “religiosidade por natureza” sofreu um considerável

abalo de credibilidade, tal fato obrigou às religiões entrarem na nova lógica racional

do “convencimento”. Dessa forma as diversas instituições religiosas inseriram-se

forçosamente na malha da “livre concorrência”.

Ainda Berger, em sua obra já citada, faz o seguinte comentário sobre essa

nova situação de competitividade institucional, lemos:

A característica-chave de todas as situações pluralistas, quaisquer que sejam os detalhes de seu pano de fundo histórico, é que os ex-monopólios religiosos não podem mais contar com a submissão de suas populações. A submissão é voluntária e assim, por definição, não é segura. Resulta daí que a tradição religiosa, que antigamente podia ser imposta pela autoridade, agora tem que ser colocada no mercado. Ela tem que ser “vendida” para uma clientela que não está mais obrigada a “comprar”. Nela, as instituições religiosas tornam-se agências de mercado e as tradições religiosas tornam-se comodidades de consumo. E, de qualquer forma, grande parte da atividade religiosa nessa situação vem a ser dominada pela lógica da economia de mercado (Berger, 1985, p. 149).

Cada vez mais, em consonância com o que foi dito por Berger, presenciamos

o surgimento de competitivas agências religiosas de mercado. Grande parte das

religiões atuais busca eficazmente novos consumidores para as diversas “crenças

religiosas”, consumidores estes, que, por não terem nenhuma obrigação de se

fixarem em determinada instituição religiosa, migram recorrentemente para os

variados cultos oferecidos.

Essa forma volátil que o campo religioso vem cada vez mais assumindo,

acha-se intimamente relacionada com a dinâmica econômica do mercado; no

capitalismo a necessária ampliação territorial do universo de consumo, acaba por

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obrigar os diversos campos sociais a servirem como replicadores desta lógica

expansionista.

Quando analisamos a fundo esta nova situação do mundo secularizado, logo

percebemos um paradoxo aparentemente intransponível. Como a lógica teocêntrica

foi abandonada, ou pelo menos circunscrita ao plano da subjetividade, houve uma

humanização teorética absoluta dos saberes usados para “conhecer” o mundo. No

entanto, essa humanização teorética não atingiu positivamente nossa “práxis”

contemporânea, por isso, a humanização do mundo, acabou por acarretar na

“desumanização” do próprio homem.

Desta maneira, o próprio movimento de humanização tornou-se um

instrumento do “anti-humanismo” sistêmico, da mesma forma que a religião foi

coisificada, tornando-se uma mera “mercadoria”, o ser humano encontra-se também

reificado pelo processo de capitalização do mundo.

Por isso, o estudo do campo religioso em nossos dias, é muito mais complexo

do que era nos dias do filósofo Nietzsche, afinal, muitas das coisas que o filósofo

alemão concebeu como “possibilidade”, já se fazem como “coisas realizadas” em

nosso mundo atual.

O fenômeno religioso se dinamizou, não podemos hoje em dia analisar

monoliticamente esta ocorrência humana. Como já dissemos, estudar em nossos

dias as religiões é antes de tudo, estudar as variadas facetas deste intrigante

fenômeno, a partir de novas perspectivas.

Entretanto, é importante reconhecer que se o nível de complexidade

aumentou neste campo de estudo, isso se dá pelo próprio nível de aprofundamento

que fomos capazes de atingir; sem dúvida nenhuma, hoje estamos

gnosiologicamente muito mais aparelhados para executar tal empreendimento

intelectual.

Na época do filósofo Nietzsche, o estudo das religiões quase sempre ficava

pautado numa análise descritiva da mesma, e, infelizmente, não era incomum este

esforço intelectual ter como meta uma “apologética do fenômeno religioso”.

Com o filósofo Nietzsche foi possível ultrapassar esse primeiro degrau

“descritivo” do estudo das religiões, com ele, dois novos aspectos analíticos são

possíveis de serem articulados no âmbito do atual estudo das religiões, falamos

aqui: do “aspecto funcional” e do “aspecto crítico”.

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Achamos que este dois eixos analíticos, facilmente perceptíveis no

pensamento nietzschiano são de grande valor para os estudos atuais das religiões,

e, acreditamos que só a partir destes dois elementos, um verdadeiro e científico

estudo da religião pode ultrapassar o antigo modelo descritivo-comparativo.

4.1. Análise Funcional em Nietzsche

Como já tivemos oportunidade de demonstrar, o projeto de transvaloração

não pode ser em nenhum momento confundido com um mero ateísmo, por isso,

Nietzsche não trata à religião como uma “coisa em si”, passível de ser analisada

isoladamente. Sua transvaloração visa a cultura de forma geral e, só

secundariamente a religião como um dos elementos da cultura, pode ganhar relevo

em seu estudo genealógico.

Assim sendo, quando falamos de uma análise funcional da religião em

Nietzsche, devemos ter em mente que tal análise aplica-se não só à religião, como

também a tudo aquilo que confere sentindo ao mundo, isso porque, em sentido

estritamente nietzschiano, a religião é apenas mais uma forma cultural de conferir

sentido a algo que em si nenhum sentido tem.

Com o termo “função”, queremos dizer que toda “ficção cultural” tem um

propósito pautado na lógica sistêmica que lhe dá sustentação, porém, com isso não

devemos pensar na “ficção religiosa em si”, a mesma, só se concretiza como

ideação a partir de uma funcionalidade que lhe ampare. Nietzsche esclareceu isso,

mas seguintes palavras:

… todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, em uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas nem precisam estar relacionado entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual (Nietzsche, 2004, p.66).

A função não é uma “coisa”, como Nietzsche diz, é antes um “indício“ de

certa qualidade relacional, uma espécie de sintoma que indica de forma indireta

certa hierarquia de forças. Portanto, uma função não é uma coisa imutável, ao

contrário, como a funcionalidade é determinada pela disposição dos elementos

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significantes de uma dada malha cultural, ela ganha sentido de função apenas

situada no âmbito dessa virtualidade significada historicamente. Em outras palavras,

o sentido de uma crença cultural é o sentido que ela ocupa em certa estrutura

histórico-temporal.

Para determinar a função de certas ideias ou valores, o filósofo usou aquilo

que ele mesmo chamou de “método genealógico”. Diferente do método histórico-

comparativo que existia em sua época, o método genealógico nietzschiano não

visava chegar à “essência” das coisas, sua genealógica não buscava a “verdade”,

mas sim, buscava desvelar as “interpretações” construídas historicamente. A própria

ideia de “história” é redimensionada no âmbito de seus esforços genealógicos, em

sua análise histórica, o dualismo “essência” e “aparência” já não tem sentido. Ele já

não se guia em busca de uma interpretação inquestionável da história, para ele a

história é um bojo de ficções articuladas com um propósito interno de “mais-poder”,

por isso, não existe de fato a “história verdadeira”, o único substrato incondicionado

seria a vontade de poder que anima certas ficções, não propriamente a “ficção em

si”, esta seria em última estância só “aparência”.

O filósofo francês Michel Foucault, refletindo sobre o novo método proposto

por Nietzsche, explica qual diferença da nova genealogia nietzschiana em

comparação com a pesquisa da origem do método histórico clássico, sobre isso

podemos ler:

Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões a pesquisa da origem (ursprung)? Por que, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si [...] é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira (Foucault, 1990, p. 17).

Segundo Michel Foucault, a pesquisa da origem seria uma tese essencialista,

daí o pesquisador ainda contar com a ideia de uma “verdadeira última”. Como

explicou Foucault, Nietzsche encontrava-se bem longe deste viés, o filósofo alemão

não queria com seu método “desmascarar” a história, afinal, para ele, só existiam de

fato “máscaras”. Ele não buscava com sua genealogia saber se a ficção era

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“verdadeira” ou “falsa”, em sua visão qualquer juízo de valor dependia das

condições de vida e, por isso, nenhum valor ou ideia sobre a vida é fixa, o valor,

como uma “ficção orientadora”, era para ele um sintoma de uma espécie

determinada de vida.

Foucault ainda no âmbito da diferenciação entre o “historiador essencialista” e

o “genealogista”, teceu o seguinte comentário sobre estes distintos métodos:

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mais o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. [...] fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua “origem”, negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será, ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos começos; prestar uma atenção escrupulosa a sua derrisória maldade; esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro; não ter pudor de ir procurá-las á onde elas estão [...] deixar-lhes o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma verdade as manteve jamais sob sua guarda (Foucault, 1990, pp. 17-19).

Uma “crença”, pelo viés da genealogia nietzschiana, não se explica

propriamente pela sua origem, mas sim pela fixação que ganha funcionalmente

dentro de certa rede de “sentido” cultural. Porém, Foucault no trecho acima

apresentado, analisando o pensamento Nietzschiano, evidencia que a ordem do

“sentido” não se faz pela “natureza das coisas”. A disposição dos elementos

ficcionais depende de uma construção histórica que a justifique, assim, poderíamos

dizer, que sem um “cenário” às máscaras isoladas (valores) perderiam todo seu

“sentido”.

Daí o genealogista, diferente do metafísico, que busca o verdadeiro “ser” das

coisas, se contentar com a recomendação nietzschiana: [...] “não existe um tal

substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir; “o agente” é uma

ficção acrescentada à ação – a ação é tudo (Nietzsche, 2004, p. 36).

Devemos perceber neste curto fragmento apresentado, que Nietzsche diz que

atrás de uma ficção só existe certo exercício da força, portanto, o valor não oculta o

“ser verdadeiro”, é apenas uma máscara para vontade de Poder.

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Aplicando esta noção genealógica ao estudo das religiões, somos levados a

visão metodológica inicial que reduz todas as crenças religiosas a meras ficções

culturais; segundo o viés nietzschiano, as mesmas seriam representações do

impulso primário por poder, ou em outros termos, são medidas ficcionais que visam

o controle e a exteriorização de certos impulsos.

Assim, uma ideia religiosa não seria valorizada pelo indivíduo por causa de

sua “veracidade”, mas sim, por mostra-se “útil” dentro de certa perspectiva de

controle; mesmo que esse controle seja ilusório. Em outras palavras, a crença

religiosa é uma maneira de lidar com nossas muitas inseguranças existenciais, uma

forma de manipular fantasisticamente o imponderável.

Esse “utilitarismo psíquico”, ligado às crenças religiosas, foi profundamente

estudado por antropólogos que conviveram com selvagens, entre estes, o trabalho

de campo realizado por Malinowsky, se afigura ainda hoje como um importante

referencial nesta área de pesquisa.

Ao falar de sua experiência nas ilhas Trobriand, Malinowsky explica que os

selvagens reservaram o uso da magia às tarefas mais difíceis de seu cotidiano. Por

isso, quando às técnicas racionais, o treinamento e os instrumentos reais falhavam,

ou pelo menos se mostravam limitados para execução de um trabalho, normalmente

recorriam à magia, daí sua observação:

É curiosos notar que, no que se refere à pesca na lagoa, em que o homem pode confiar absolutamente no seu conhecimento e perícia, a magia não existe, ao passo que na pesca em pleno mar, cheia de perigos e incertezas, encontramos já um vasto ritual mágico para garantir segurança e bons resultados (Malinowsky, 1984, p. 32)

Neste curto fragmento o antropólogo enfatiza o valor pragmático da crença

mágica, os ritos, sortilégicos e rezas, não visavam uma adoração sem valor prático,

tais práticas eram uma medida mágica de controle.

Usando outra situação limite, o mesmo antropólogo escreveu:

E mais uma vez, na guerra, os nativos sabem que a força, a coragem e a agilidade desempenham um papel decisivo. No entanto, também neste campo praticam a magia, a fim de dominarem os elementos do acaso e da sorte (Malinowsky, 1984, p.32)

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Ao enfrentar a imensurabilidade fenomênica do mundo que o cerca, nem

sempre os recursos instrumentais são suficientes para fazer o vivente sentir-se

seguro, por esse motivo, como bem ilustrou o pesquisador supracitado, a crença

num poder invisível que nos assessora, desde os primórdios da humanidade

mostrou-se como uma valiosa defesa contra a ansiedade.

Frente a esse grande valor instrumental, Malinowsky chegou a seguinte

conclusão sobre tais crenças mágicas:

A função da magia é ritualizar o otimismo do homem, enaltecer a sua fé no triunfo da esperança sobre o medo. A magia exprime para o homem o maior valor da confiança em relação à dúvida, da firmeza em relação à indecisão, do otimismo em relação ao pessimismo. [...] sem o seu poder e orientação [da magia], o homem primitivo não poderia ter superado como superou as suas dificuldades de ordem prática, assim como não poderia ter progredido para estádios de cultura mais avançados. (Malinowsky, 1984, p.93)

Em sua análise “funcionalista” sobre a magia, semelhante a Nietzsche, o

antropólogo reconhece o valor funcional das crenças mágicas, portanto, indiferente

delas serem “verdadeiras” ou “falsas”, elas surgem como um desdobramento

imaginário da ânsia interna de poder.

Por meio da magia e, depois pela sua sucessora, a religião, o homem

conseguiu aperfeiçoar sua ação no mundo, a crenças mágicas e religiosas

conferiram um ar de familiaridade ao mundo, com isso o homem primitivo conseguiu

combater razoavelmente suas múltiplas inseguranças existenciais.

Tratando desta questão da “projeção” que o homem realizou através do

ideário mágico-religioso, o antropólogo Lévi-Strauss em seu livro O Pensamento

Selvagem, pode escrever:

[...] num certo sentido, pode-se dizer que a realidade consiste em uma humanização das leis naturais e a magia em uma naturalização das ações humanas – tratamento das ações humanas como se elas fossem uma parte integrante de determinismo físico – não se trata dos termos de uma alternativa ou das etapas de uma evolução. O antropomorfismo da natureza (em que consiste a religião e o fisiomorfismo do homem pelo qual definimos a magia) formam dois componentes sempre dados e cuja dosagem apenas varia. [...] não existe religião sem magia, nem magia que não contenha pelo menos um grão de religião (Lévi - Strauss, 2002, p. 247)

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Na visão de Lévi-Strauss, tanto o fisiomorfismo da magia (com a ilusão de

que o mundo e seus variados fenômenos são uma espécie de extensão da estrutura

fisiológica humana), como também o antropomorfismo religioso que humaniza o

mundo através da projeção de sua moral, são recursos habituais do homem durante

todo seu trajeto histórico, ao contrário de um processo de estranhamento, pelas

ideações mágico – religiosas tornamos o universo um lugar acessível aos nossos

desejos.

Portanto, a verdadeira “lógica” do desejo não é estruturada pela busca da

“verdade”, no pensamento mágico – religioso o homem se projeta como o “dono” ou

“senhor” do mundo, assim sendo, a vontade de encontrar sua “própria vontade”

como núcleo de regência para os fenômenos do mundo, ora, se realiza mais

diretamente na magia, ora, se realiza indiretamente pelo deslocamento de nossa

potência para os deuses.

Consonante à visão proposta modernamente por Lévi-Strauss, Nietzsche

num fragmento póstumo já havia comentado que:

Todo orgânico que “julga” age como o artista: ele cria um todo a partir de estímulos e excitações, deixa muitas particularidades de lado e cria um simplificatio, expõe e afirma sua criação como ente. O lógico é o próprio impulso, que faz com que o mundo transcorra logicamente e de acordo com nosso julgamento (Nietzsche, 2005, p. 174).

Como um artista, que através de sua obra confere um sentido “belo” para as

coisas, o homem se projeta “artisticamente” (usando a metáfora nietzschiana),

conferido assim, um sentido humano para o mundo. Para o filósofo, a verdadeira

lógica deste mundo humanizado não estaria no próprio mundo, e sim no olhar

daquele que flerta com o mesmo.

Desta maneira, na visão de Nietzsche, “todo orgânico que julga” acaba por

ultrapassar a organicidade do mundo sensível, com isso o “sensível” torná-se

“inteligível”, algo dotado de propósito moral.

Falando sobre essa dotação teleológica, estranha aos fenômenos naturais,

usando o exemplo da leitura mágico – religiosa em relação ao anômico fenômeno

da morte, feita pela primitiva tribo dos azande, o antropólogo Evans-Pritchard faz um

comentário que vem corroborar a ideia nietzschiana, ele escreveu:

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… a morte não é somente um fato natural - é também um fato social. Não se trata simplesmente de um coração ter parado de bater, e dos pulmões não mais bombearem ar para o interior de um organismo; trata-se também da destruição de um membro de uma família e grupo de parentesco, de uma comunidade e uma tribo. A morte leva à consulta de oráculos, à realizações de ritos mágicos e à vingança – dentre todas as causas da morte, a bruxaria não exclui o que nós chamamos de “causas reais”, mas superpôe-se a estas, dando aos eventos sociais o valor moral que lhe é próprio (Evans-Pritchard, 2005, p. 55).

Neste exemplo oferecido pelo antropólogo, percebemos embrionariamente

como a ideação mágico-religiosa é importante, não só ao indivíduo, como também

para todo grupo social. O fenômeno angustiante da morte é “socializado” na

bruxaria, independente das causas fisiológicas reais, causas estas que não são

totalmente desconsideradas, como explicou o pesquisador, acha-se magicamente

por meio da bruxaria uma intencionalidade humana para a ocorrência, assim, aquilo

que é apenas um fenômeno biológico, é transformado num “fenômeno moral”.

Isso se ajusta perfeitamente à perspectiva nietzschiana que ensina:

… a ordem da finalidade já é uma ilusão. Enfim, quanto mais superficial e mais grosseiramente for resumido, mais o mundo parecerá valioso, determinado, belo e significativo. Quanto mais profundamente olharmos dentro dele, tanto mais desaparecerá nossa apreciação. A falta de significado se aproxima! Fomos nós que criamos o mundo que tem valor! (Nietzsche, 2005, pp. 180-181).

Fundamentalmente a argumentação nietzschiana reduz a “zero” qualquer

propósito “natural” do homem. Toda teleologia seria neste caso uma “ilusão”

culturalmente criada. Em consequência disto, as crenças religiosas que falam de um

“absoluto ordenador”, nada mais seriam do que a vontade humana de achar

“sentido” nas coisas do mundo.

Porém, se é verdade que Nietzsche recorrentemente aponta para esse “vazio

de sentido” como a face real do mundo, ele não deixa também de frisar

repetitivamente que às “faces” ilusórias que criamos para o mesmo, são de certa

forma úteis, às custas deste falseamento nos preservamos da falta de significado da

existência. Isso é dito com todas as letras, da seguinte maneira por Nietzsche:

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Que o valor do mundo está na nossa interpretação [...] que as interpretações existentes até agora são avaliações de perspectiva, em virtude das quais nos conservamos na vida, ou seja, na vontade de poder, de crescimento do poder; que toda elevação do homem traz consigo a superação de interpretações estreitas, que todo fortalecimento alcançado e toda ampliação de poder abre novas perspectivas e acredita em novos horizontes: tudo isso passa por meus escritos. O mundo que nos importa em certa medida é falso, ou seja, não é um estado de coisas, mas o resultado da invenção e do arredondamento de uma escassa soma de observações; ele se encontra no “fluxo” como algo que se transforma, como uma falsidade que está sempre se deslocando, que nunca se aproxima da verdade; pois não existe “verdade” alguma (Nietzsche, 2005, pp. 223-224).

Podemos perceber nitidamente o aspecto funcionalista da tese nietzschiana

nas palavras acima. Em sua genealogia dos valores, embora tome como princípio

epistemológico norteador, a idéia de que não existe nenhum valor “em si”, ele não

descarta a idéia de que tais “ficções” são necessárias para a vida humana, até o

contrário, ele afirma que o mundo que verdadeiramente nos interessa é o “falso”,

isto é, para vivermos precisamos “inventar” um mundo onde as coisas façam

sentido.

Mas isso, como já dissemos, só ocorre dentro de uma estrutura que signifique

as coisas (na verdade as ideias sobre as coisas), nunca ocorrendo isoladamente a

partir da própria “coisa”:

As propriedades de uma coisa são efeitos sobre outras ”coisas”: se abstrairmos as outras “coisas”, uma coisa deixa de ter propriedades, ou seja, não há uma coisa sem as outras, o que significa que não há uma “coisa em si” (Nietzsche, 2005, p.221).

Segundo essa regra metodológica enunciada por Nietzsche, tudo que ganha

sentido, só ganha por meio de uma cadeia valorativa que (lhe confira tal sentido e,

ao aplicarmos este princípio às idéias religiosas, entendemos que semelhantemente

ao que ocorre com outras ideias criadas pela cultura, as mesmas só se fixam após o

procedimento de controle e legitimação que as tornam funcionais.

Com isso estamos dizendo que toda ficção cultural (isto inclui essencialmente

as ideias religiosas), cumpre um propósito dentro de determinada malha social,

embora uma crença nunca exista “em si” por força da natureza, seria um grave erro

desconsiderar seu valor funcional. Tudo aquilo que os homens criaram em seu

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variado universo simbólico, cumpre inicialmente a missão de “um sentido provisório

para existência”.

Próximo da visão nietzschiana, que explica que o “valor” que conferimos as

coisas, visa retroalimentar ilusoriamente uma noção confortadora de um mundo

cheio de “sentido”, os sociólogos Thomas Luckmann e Peter Berger, falando do

valor integrador do universo simbólico humano, escreveram:

O universo simbólico oferece a ordem para a apreensão subjetiva da experiência biográfica. Experiências pertencentes a diferentes esferas da realidade são integradas pela incorporação ao mesmo envolvente universo da significação. [...] Esta função nômica do universo simbólico para a experiência individual pode ser definida de maneira muitos simples dizendo que “põe cada coisa em seu lugar certo” (Berger e Luckmann, 1983, p.134-135).

Para que existamos individualmente e coletivamente, temos que criar um

universo valorativo, que bem mais do que “algo integrado”, seja um instrumento

“integrador” em nossas vidas, é impossível ao homem passar sem esse

“falseamento”. No campo integrativo das ilusões culturais, achamos um sentido para

nossa permanência no mundo.

É lógico que quando falamos do aspecto “funcional” da ilusão e, mais

especificamente a ilusão religiosa, devemos entender que o “tipo” de ilusão (ou

facilitadora, ou o oposto disso, dificultadora, da manifestação da vontade de poder),

não é a coisa mais importante, afinal, essa característica crítica é o segundo

movimento da genealogia nietzschiana, embora, tenhamos que reconhecer que a

análise “funcional” e “crítica”, são faces distintas de um mesmo método de

“desconstrução epistemológica”.

Portanto, ao tratar a “ilusão” como um fenômeno existencial necessário à

conservação da vida humana, Nietzsche sob o aspecto funcional, reconhece que

mesmo a ficção religiosa é um instrumento imaginativo da vontade de poder, por

isso, ao se referir ao “sacerdote ascético”, criador natural das ilusões metafísicas,

tece o seguinte comentário: [...] este sacerdote ascético, este aparente inimigo da

vida, este negador-ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e

afirmadoras da vida... (Nietzsche, 2004, p.110).

Como para Nietzsche “… o mundo aparente” é o único: o „mundo verdadeiro‟

é apenas acrescentado mendazmente... “(Nietzsche, 2006, p.26), toda ficção

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cultural, mesmo aquela mais deletéria, é a manifestação de certa vontade de poder.

O que difere qualitativamente e quantitativamente, nada tem haver com o fato de ser

verdadeira ou falsa (afinal toda visão de mundo é para Nietzsche uma falsificação

do real), mas sim, com o fato de promover mais ou menos a vida.

Indiferente da ilusão que usamos para viver, a preservação de um campo

ilusório interno é vital para a experiência cultural, neste sentido poderíamos dizer

que nossa sanidade depende de certa capacidade de nos “auto-iludirmos”. Neste

contexto nietzschiano, o termo “auto-ilusão”, escolhido por nós para sintetizar a

maneira funcionalista de encarar uma “ficção”, não tem uma conotação pejorativa,

estamos apenas com isto querendo dizer que o ser humano depende de certa

porção de ilusão para viver.

Os diversos universos simbólicos criados pelo homem são ilusões

necessárias para defender o frágil indivíduo dos terrores da existência, ou para

sermos mais exatos, para defendê-lo do supremo terror de um mundo sem sentido.

Um bom exemplo da aliança sutil entre nossa necessidade individual de

sentido para o mundo e a lógica simbólica criada socialmente como via de controle

de nossa constante angústia existencial, pode ser ilustrada pela institucionalização

do fenômeno existencial mais atemorizante de todos: a morte. As celebrações

fúnebres, as ladainhas, a presença de sacerdotes, as condolências, as vestimentas

de luto, o próprio caixão, entre tantos outros detalhes observáveis durante a cena

mortuária, fazem parte do bojo de significantes que visam integrar a experiência da

morte aos domínios da existência social. Essas variadas estratégias culturais

desenvolvidas em torno do fenômeno da morte buscam oferecer uma aparência de

transcendência da ordem institucional, mesmo depois da morte, o indivíduo parece

ainda dependente das estruturas protetoras da ordem institucional.

No fundo todas estas medidas artificiais criadas em torno de situações limites

da existência, são na verdade medidas defensivas que servem como uma fina

crosta que procura ocultar o “buraco” existencial do “não-sentido”, como em certas

ocasiões o nível de ansiedade do indivíduo se agiganta e, com isso, a estabilidade

prospectiva do sujeito é perturbada, a civilização tenta preencher as lacunas que se

abrem com suas muitas ficções.

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Em suma, o homem só se relaciona com o mundo a partir de certa malha

ficcional; é a sua produção simbólica que cria um tanto inconscientemente, o mundo

da “verdade” e da “identidade”.

Porém, se só existem “interpretações” e, portanto, a “verdade” não passa de

uma “ficção utilitária”, como podemos justificar a faceta crítica da genealogia

nietzschiana? Afinal, em que sentido às verdades transvaloradas seriam melhor que

às verdades tradicionais da religião? Ainda mais, como esse segundo movimento

crítico da genealogia nietzschiana pode favorecer os estudos atuais das religiões?

Passemos agora para estes oportunos questionamentos.

4.2. Análise Crítica em Nietzsche

A História do mundo ocidental pode ser entendida, segundo o pensamento

nietzschiano, como a História da montagem e da solidificação do conceito de

“identidade”. Nossas muitas crenças individuais geram um campo de

“conhecimento” que alimenta e é, retroalimentado, pelo pressuposto de “verdade”. É

nesta circularidade valorativa, que as crenças religiosas são usadas para legitimar e

reforçar o antigo ímpeto ocidental pelo “verdadeiro”.

No âmbito da religião a crença em “coisas idênticas”, no sentido metafísico de

uma essência permanente, ganha na imagem de “Deus” o grau maior da crença

identitária, nessa esfera de ideação, Deus é compreendido como sendo o “todo

idêntico” dos demais idênticos contingenciais.

O método genealógico, baseado num movimento de desconstrução “Histórico

causal” coloca em questão a ideia de origem, de essência, de identidade, e, a partir

deste questionamento, introduz um viés crítico permanente no estudo filosófico do

“mundo”. Por isso, o anúncio da morte de Deus, no contexto nietzschiano, indica

criticamente uma nova condição valorativa que “nasce” com a morte do “todo

idêntico” da antiga metafísica.

No entanto, como foi explicado no terceiro capitulo do presente trabalho, a

crítica nietzschiana não visou apenas evidenciar o fim da metafísica, em seu

aspecto positivo inaugurou uma nova maneira “metafísica” de valorar, metafísica

esta, que não depende, da “verdade”, mas sim, da “vontade de poder”.

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Nesta nova metafísica a única essência da vida é o “querer-mais” por trás de

toda vida, ou seja, afirmar que a essência da vida é vontade de poder é, nas

entrelinhas dizer, que a única coisa permanente na vida é a vontade de poder, e

como tal vontade é marcada permanentemente por mudanças, somente a mudança

permanece “imutável”.

Assim, se o termo “essência” no antigo vocabulário metafísico, indicava um

estado de “permanência”, a “essência” no novo vocabulário nietzschiano vem

descrever sinteticamente o resultado de uma guerra constante entre forças

antagônicas. Por isso, o conceito de uma “verdade” absoluta e imutável, é trocado

por uma visão processual da verdade, como o próprio Nietzsche explicou em suas

palavras:

… a verdade não é algo que estaria aí e que poderia ser encontrada e descoberta, mas algo que deve ser criado e que nomeia um processo, mais ainda, uma vontade de dominação, que em si não tem fim: infundir a verdade como um processus in infinitum, como uma determinação ativa, não como uma conscientização de algo, que “em si” seria fixa e determinada. Trata-se de uma palavra para “vontade de poder” (Nietzsche, 2005, p.243).

Sob a égide da provisoriedade, Nietzsche ensina que todo “verdade” nesta

sua nova forma de valorar tem “início e fim”, o mundo, sem poder se fiar mais em

Deus (metafísica última da Identidade), vive agora a constante desintegração dos

valores, não existindo mais o fundamento último da antiga metafísica, a

transformação, como Heráclito já havia ensinado, se torna o único fundamento ou

princípio aceitável.

Neste sentido, como já afirmamos antes, para Nietzsche o que existe de fato

no mundo é só a “aparência”, daí entendermos que toda verdade, por este viés, não

passa de uma ficção utilitária, por isso, nós não queremos a verdade pelo que ela

propriamente é, mas sim, pela aparência de sentido que consegui oferecer ao

mundo.

Foi nesse sentido que Roberto Machado, em sua obra Nietzsche e a

Verdade, teceu o seguinte comentário sobre a necessidade de “verdades”

estabelecidas socialmente:

Não existe instinto de conhecimento no sentido de uma inclinação

natural para a verdade, de um amor à verdade. O que se chama

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verdade é uma obrigação que a sociedade impõe como condição de

sua própria existência: uma obrigação moral de mentir segundo uma

convenção estabelecida. É porque o homem esquece essa

obrigação que foi instituída socialmente, é porque mente

inconscientemente que imagina a existência de um instinto de

verdade. Verdades são ilusões que foram esquecidas como tais.

(Machado, 2002, p. 101).

Machado, refletindo bem o espírito nietzschiano, fala de nossa recorrente mania

de “mentir coletivamente”, como bem ressaltou o autor supracitado, é no âmbito da

construção dessa “mentira convencional”, que a vida social torna-se possível.

O processo de “esquecimento” da fonte real de nossas verdades (nós

mesmos) é também muito bem construído socialmente. Antes de o indivíduo ter

consciência de sua vida “pessoal”, ele passa por um longo processo de formatação

institucional; para que o novo sujeito seja considerado “funcional”, ele terá que

aprender a decodificar tudo aquilo que a sociedade entende como importante para

ele.

Pela natureza própria da religião, podemos dizer que é nela, ou mais

apropriadamente, nós seus domínios simbólicos, que o “esquecimento” é mais

poderosamente realizado na aculturação institucional. Através da aculturação

religiosa os elementos culturais são “superdimensionados”. Neste campo de

formação simbólica o que é social e, portanto, humano, é sentido pelo sujeito como

algo “sobrenatural”, por meio desta estratégia institucional, o conhecimento sobre o

mundo parece vir de “fora” do próprio mundo. Assim, se uma das estratégias mais

comum do processo de institucionalização é tender a “naturalização” do

conhecimento social, para que o mesmo seja internalizado mais facilmente pelo

individuo, na religião temos a “supernaturalização” do conhecimento, afinal, ao dizer

que determinada “crença” é originária de uma fonte “sobrenatural”, estamos na

verdade naturalizando o conhecimento “duas vezes mais”.

Foi exatamente percebendo através de seu método genealógico o caráter

fictício de nossas muitas “verdades” culturais e, entre as tais as reluzentes crenças

religiosas, que Nietzsche avaliando a necessidade instrumental dessas ficções

utilitárias, pôde escrever:

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A falsidade de um juízo não representa para nós uma objeção contra

ele; é nisso que reside, talvez, o caráter mais estranho de nossa

linguagem. Trata-se de saber em que medida esse juízo favorece e

conserva a vida, mantém ou até desenvolve a espécie. E nossa

tendência é afirmar que os juízos mais falsos (de que fazem parte

dos juízos sintéticos a priori) são para nós mais indispensáveis, que

o homem não poderia existir sem admitir as ficções lógicas, sem

medir a realidade pelo mundo puramente fictício do absoluto, do

idêntico-a-si mesmo, sem falsificar constantemente o mundo pelo

número, que renunciar aos juízos falsos seria renunciar à vida, negar

a vida (Nietzsche, 2005, p. 16).

Inicialmente estas palavras de Nietzsche podem soar como “estranhas” ao

serem comparadas ao antigo método valorativo da “metafísica do verdadeiro”. Para

o filósofo pouco importa estabelecer se determinado juízo é “verdadeiro” ou “falso”,

afinal, o viés transvalorativo reduz todo juízo à categoria de ficção. Assim sendo,

não existe juízo verdadeiro, o verdadeiro apenas é determinado em função de sua

maior ou menor capacidade de positivar a vida.

É neste ponto que a crítica nietzschiana à religião se diferencia radicalmente

da crítica feita pelo filósofo alemão Karl Marx. Este segundo concebia a religião

como uma ideologia que agia como uma “falsa consciência”; uma espécie de

obnubilação do mundo verdadeiro, produzida por falsas ideias sobre o mundo e

sobre as variadas relações humanas.

Em Nietzsche não encontramos esse dualismo simplista, se é verdade que

ele também concebia a religião como uma “ideologia” (afinal toda crença cultural é

uma ideologia), a mesma não escondia nenhum mundo verdadeiro em sua

interpretação.

Sua crítica em referência a religião não tem como princípio primário o

“desmascarar” das ilusões religiosas, diferente dos positivistas, que esperam

desmentir as falsidades religiosas, para enaltecer as “verdades cientificas”, o filósofo

genealogista tem outro tipo de critério valorativo. Para ele uma “crença verdadeira” é

aquela que possibilita o fluxo livre da vontade de poder, uma ficção que favoreça a

vida, que estimule o crescimento e a expansão da força humana. Em conseqüência

disto, uma “crença falsa”, não é falsa por se opor a algo verdadeiro no antigo sentido

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metafísico, é falsa por se opor à vida, por se constituir como obstáculo ao

crescimento e expansão do “mais-querer”.

Toda crença que gere um “apequenamento” do homem, é pensada por

Nietzsche como uma forma deletéria de conceber a vida e, acaba por afetar

negativamente as nossas muitas relações com a mesma.

Por isso, a crítica em relação às crenças judaico-cristãs, só é justificada no

contexto nietzschiano, quando lembramos que ele via neste quadro ideológico, a

pura materialização do “ressentimento” contra o lado forte da vida.

O profundo sociólogo e estudioso das religiões Max Weber, destacou da

seguinte maneira a pertinência da critica nietzschiana, em relação à “ética do

ressentimento” construída inicialmente pelos judeus, lemos:

E é por essa razão que, no âmbito da religiosidade ética de redenção própria dos judeus, adquire grande importância um elemento – ao qual Nietzsche foi o primeiro a dar atenção – que está totalmente ausente de toda religiosidade de castas, mágica ou animista: o ressentimento. No sentido que Nietzsche lhe atribui, é um fenômeno concomitante da ética religiosa dos negativamente privilegiados, que, invertendo diretamente a antiga crença, se consolam da repartição desigual dos quinhões terrenos ao atribuí-la ao pecado e a injustiça daqueles que tem privilégios positivos, o que, mais tarde ou mais cedo, teria que desencadear contra eles a vingança de Deus. Sob a forma dessas teodicéia dos privilegiados negativamente, o moralismo serve, então, como meio de legitimação da sede consciente ou inconsciente de vingança (Weber, 2006, pp. 155-156).

Como foi dito por Weber, Nietzsche foi o primeiro a levantar a hipótese de

que o tipo de religiosidade defendida pelos judeus valorizava ocultamente a

fraqueza dos desvalidos como “virtude”, desta maneira, a verdadeira força desta

teologia do ressentimento era aquela que enfraquecia para dominar.

Weber lembra que no ideário judaico palavras como “pecado”, “injustiça”,

entre outras, às vezes mais ofensivas, foram usadas contra aqueles que dominavam

pela “força”, por isso, representando muito bem o pensamento nietzschiano, o

sociólogo disse que o filósofo leu neste tipo de moralidade, o puro desejo de

“vingança”. A ideia de que Deus se vingaria no futuro em nome dos “justos”, como

explicou Weber, nada mais era do que o desejo projetivo dos fracos, convertido em

“esperança escatológica”.

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Portanto, o núcleo do questionamento nietzschiano não é propriamente a

“religiosidade” (afinal, não importa qual seja o bojo de crenças, este será sempre

como os outros elementos da cultura, um bojo de ilusões), mas o tipo da

religiosidade em questão. Toda religiosidade que desmerece a vida sensível, em

prol de uma vida supracorpórea, toda religiosidade que oferece “além-mundos”, no

lugar da terra, para Nietzsche, visa sempre anular a efetividade do ser real.

A razão maior da crítica nietzschiana em relação ao judaísmo e, logo depois

sua continuação gentia, o cristianismo, se sustenta em sua noção de que ambas as

configurações religiosas escondiam uma revolta contra à vida, segundo seu ponto

de vista, judaísmo e cristianismo eram outros nomes para a degeneração dos

melhores instintos.

Isso fica muito claro quando Nietzsche compara o cristianismo à religião dos

gregos, mesmo partindo do seu habitual ateísmo, por isso, considerava ambas as

religiões meras projeções humanas, ele consegue enxergar certa superioridade nos

deuses inventados pelos helenos, sobre isto lemos:

… em si a concepção de deuses não conduz necessariamente e essa depravação da fantasia que tivemos de considerar por um instante [depravação cristã], que existem maneiras mais nobres de se utilizar a invenção dos deuses, que não seja para essa violação e autocrucifixão do homem [...] a todo olhar lançado aos deuses gregos, esses reflexos de homens nobres e senhores de si, no quais o animal no homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo! Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para manter afastada a “má consciência”, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus. (Nietzsche, 2004, p. 82).

Neste fragmento de sua genealogia, Nietzsche argumenta dizendo que a

criação de deuses não é em si a razão da decadência de um povo, mas sim o que

quer se dizer por meio desta criação. Em sua opinião, os deuses gregos,

projetivamente representavam os instintos fortes de seus adoradores, por meio de

tais divindades os gregos viviam imaginativamente sua vontade guerreira de poder.

Os deuses do Olímpio, para o filósofo alemão, não agiam com “castrados” e

nem buscavam “castrar” seus cultuadores, eles não incentivavam a “contemplação”,

mas o exato movimento contrário a isso, mobilizavam os gregos a viver a vida como

ela é.

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Em sua critica Nietzsche coloca o cristianismo (e, consequentemente a sua

fonte o judaísmo) como o oposto desta “liberdade da alma”; com a religiosidade

cristã, segundo o viés nietzschiano, temos a plena realização da “má consciência”.

Diferente dos gregos que, projetavam em seus deuses a vontade nobre de dominar,

de crescer, de expandir-se como “mais-querer”, no cristianismo, para Nietzsche,

temos o embotamento desta vontade ativa de poder; no Deus cristão a passividade

de espírito é cultuada como a meta maior do crente.

Nietzsche, em relação a esse processo de repressão instintual, realizado

magistralmente pelo cristianismo, escreveu o seguinte:

Ele [o cristão] apreende em “Deus” as últimas antíteses que chega a

encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais, ele

reinterpreta esses instintos como culpa em relação a Deus [...] ele se

retesa na contradição “Deus” e “diabo”, todo o não que diz a si, à

natureza, naturalidade, realidade de seu ser, ele o projeta fora de si

como um Sim, como algo existente, corpóreo, real, como Deus,

como santidade de Deus, Deus juiz, como Deus verdugo, como

além, como eternidade, como tormento sem fim, como inferno, como

incomensurabilidade do castigo e da culpa (Nietzsche, 2004, p. 81).

No cristianismo, para Nietzsche, temos a cisão moral do próprio mundo, tudo

é encarado segundo o binômio “bem-mal”, tudo que agrada os sentidos é visto com

certa desconfiança, ou, em outras palavras, o cristianismo torna “pecado” e, portanto

demoníaco, tudo aquilo que efetivamente existe neste mundo. O diabo neste

contexto nietzschiano é a representação do instintual, da mesma forma que o deus

Dioniso era a antítese do deus Apolo, sendo que esse último representava a

repressão da animalidade selvagem do primeiro, no cristianismo o “diabólico”, na

interpretação de Nietzsche, era a imagem sintética das forças selvagens que ainda

permaneciam ativas inconscientemente no sujeito ajustado pela moral.

O filósofo brasileiro Gilvan Fogel, comentando sobre essa situação de

clivagem gerada pela postura moral e contemplativa do cristianismo, escreveu o

seguinte:

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O tipo contemplativo, o tipo desinteressado finge não querer, não projetar, mas sub-repticiamente, movido e promovido pela mecânica ou pela astúcia da má consciência, deseja infinitamente, ilimitadamente-insaciavelmente, isto é, voluptuosa ou lascivamente. Essa volúpia é obra do esforço desesperado de escamotear, de esconder, enfim de envergonhar-se no e do desejo. O contemplativo, o desinteressado, negando a constituição necessária de vida (a saber, por, finitude, e a partir daí, então o uso e apropriação na ação, na atividade, em suma, o desejo), mente sempre. Tal modo de ser, que visa e gera um determinado tipo de conhecimento, é uma interminável, uma infinita mentira (Fogel, 2005, p. 178).

A passivação moral realizada no âmbito do cristianismo, como foi comentado

por Fogel, não significa de fato a destruição do “desejo imoral”, apenas representa a

repressão temporária de tal faceta anômica. Espelhando o pensamento

nietzschiano, Fogel ressalta neste curto trecho apresentado, que o “tipo

contemplativo” não é um sinônimo de verdadeira elevação consciencial, é apenas a

representação de uma má consciência que tenta iludir-se em nome de um ideal

reativo. O desinteresse pelas coisas do “mundo” neste caso, como frisou Fogel, é

meramente aparente, na verdade o desejo reprimido acaba por reforçar um contra-

desejo inconsciente que volta recorrentemente à consciência como um “demoníaco”,

por isso, a situação deste sujeito fendido é tão paradoxal, que ao mesmo tempo em

que o desejo reprimido aumenta a consciência de culpa, a culpa também acaba por

aumentar subterraneamente o “desejo pecaminoso”, com isso, uma vivência

extremamente inautêntica fixa-se.

A genealogia nietzschiana, em seu aspecto critico, não aborda as religiões

como um vulgar desmentido ateísta; como método de estudo dos valores humanos,

a genealogia se importa só secundariamente com as representações religiosa, isso

porque, um tipo especifico de religiosidade estudada, só se torna relevante neste

método, quando levamos em conta o “tipo especifico de sujeito” que valora por trás

de tal configuração.

Desta forma, transvalorar não significa trocar o “falso” pelo “verdadeiro”, pelo

menos não no sentido que as antigas tábuas valoravam o “bem” e o “mal”. O

método genealógico oferecido por Nietzsche, busca revelar que “tipo” de seres

queremos ser ao escolhermos nossas crenças, a ficção que projetamos como

“valor” no mundo, segundo a ótica nietzschiana, é sempre uma representação

velada da positividade de nova vontade de poder, ou, o contrário disto, a

representação deletéria de uma degenerada “vontade de nada”.

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Portanto, a transvaloração depende muito mais da substituição do tipo de

homem que valora, do que propriamente das crenças a serem substituídas. No final

de sua segunda dissertação, em sua Genealogia da Moral, Nietzsche fala deste

novo tipo de avaliador da seguinte forma:

Para aquele fim [a transvaloração] seria preciso uma outra espécie de espíritos, diferentes daqueles prováveis nesse tempo: espíritos fortalecidos por guerras e vitórias, para os quais a conquista, o perigo e a dor se tornaram até mesmo necessidade; seria preciso estar acostumados ao ar cortante das alturas, a caminhadas invernais, ao gelo e aos cumes, em todo sentido. Seria preciso mesmo uma espécie de sublime maldade, uma última, securíssima petulância do conhecimento, própria da grande saúde, seria preciso, em suma e infelizmente, essa mesma grande saúde! [...] Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo, esse toque de sino do meio-dia e da grande decisão, que torna novamente livre a vontade, que devolve à terra sua finalidade e ao homem sua esperança, esse anticristão e niilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem que vir um dia... (Nietzsche, 2004, pp. 84-85).

Transvalorar é muito mais que apenas trocar de sistema ideológico, segundo

o trecho nietzschiano, uma verdadeira transvaloração, capaz de vencer “Deus” e o

“nada”, ao mesmo tempo, só é possível a partir do surgimento de uma nova

“espécie de espíritos”, espíritos livres, capazes de significar positivamente o mundo,

mesmo após a morte de Deus. Esse homem do futuro é o esperado além-homem de

Zaratustra e, na linguagem nietzschiana, tal personagem representa uma nova

postura valorativa que não dependa de nenhuma metafísica que vá além da

metafísica intrínseca da vontade.

A mudança do “tipo avaliador”, segundo o ponto de vista crítico de Nietzsche,

levará automaticamente o homem a outro patamar existencial; o que não significa

que os “homens atuais” estejam prontos para largarem o consolo da religião, ao

contrário do fim rápido da mesma, o que já está acontecendo é seu enfraquecimento

público, fenômeno estudado no presente trabalho com o nome de secularização.

Sobre a diminuição do valor das crenças religiosa em nosso mundo

contemporâneo, o que Marcel Gauchet escreveu é muito pertinente:

Não é preciso imaginar uma substituição instantânea de um modo de crença de um tipo de discurso ao outro. A religião não evapora de

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um dia para o outro. Simplesmente, ela perde sua função política, sua autoridade legitimadora suprema. E ela se encontra em concorrência com um discurso radicalmente oposto a suas premissas, no interior de um mundo social que ela não engloba nem regula mais, por mais numerosos, até mesmo majoritários, que sejam os crentes. Uma situação e um discurso que vão, pouco a pouco, muito lentamente, contaminá-la e transformá-la (Gauchet, 2009, p. 117).

Não é necessário que a religião “desapareça” para que ocorra o

aparecimento do além-homem nietzschiano, como foi muito bem explicado por

Gauchet, o fato da mesma não mas regular moralmente o mundo atual, já significa

uma abertura à criação de novas “morais”.

Como a crítica nietzschiana não se baseia numa espécie de evolucionismo

epistemológico, a crença que defende que a religião sumirá num futuro próximo, e,

todos os homens se acharão esclarecidos pela “luz inefável da razão”. È no mínimo

exagerada. O desaparecimento da mesma não é uma necessidade, apenas uma

possibilidade no que diz respeito ao seu papel institucional, pelo menos no sentido

institucional que hoje concebemos o termo “religião”.

Mais importante do que a completa anulação da religião, como vimos nos

capítulos anteriores, é a redefinição do campo do sagrado. Por isso, com o fim da

religião que esconde a fraqueza atrás de nomes “sagrados”, talvez uma

religiosidade dionisíaca, que coloque o homem como centro de suas ideações possa

fixar-se no futuro.

Nietzsche, em sua critica à religião, percebe, como já vimos, que a morte de

Deus representa um risco para o homem, afinal, o vazio deixado por este

acontecimento pode levar não só a negação dos valores divinos e metafísicos, mas

também, a negação niilista de qualquer novo valor, daí entendermos que a meta de

sua criticidade metodológica é, de fundo, sempre positiva, na ideia do além-homem,

o filósofo nos oferece um novo preenchimento humano.

Assim, na nova metafísica pensada por Nietzsche, tudo é avaliado a partir de

uma certa perspectiva, não existem mais verdades absolutas, apenas verdades que

cooperam para expansão da vida, desta maneira, tudo é relativo, com exceção da

“não-relatividade” da vontade de poder.

A soberania desta vontade livre, na perspectiva de Nietzsche, deve levar-nos

a novas paisagens onde velhas figuras do conhecimento humano (como crenças e

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descrenças), serão de certa forma superadas, desta maneira, qualquer religiosidade

que subsista a força deste devir, poderá ser considerada digna do epíteto de: uma

religiosidade dionisíaca.

4.3. A Operacionalidade da Suspeita

O método genealógico proposto por Nietzsche, como esclarecermos nas

linhas anteriores, organiza-se a partir de duas formas distintas de avaliação: a

análise funcional e a análise crítica.

Estabelecido o duplo eixo, no qual a argumentação do filósofo articula-se,

cabe-nos como último esforço deste capítulo, falar um pouco mais sobre a lógica

interna de seu método genealógico.

A operacionalidade hermenêutica de seu método de análise, só é possível a

partir de certo afastamento em relação ao objeto estudado, visto que tal “objeto” é

sempre um “valor” e, não uma coisa objetiva, Nietzsche promove instrumentalmente

um “ceticismo metodológico” em relação a todas as crenças estabelecidas.

Foi falando desta “suspensão de juízo”, que opera internamente no seu

método genealógico, que Nietzsche esclareceu qual o nível de radicalidade

pretendia alcançar:

Buscando novos tesouros cavamos,

nós, os novos subterráqueos: (“insaciáveis”)

outrora, aos antigos parecia ser contra os deuses

perturbar as estranhas da terra buscando tesouros;

de novo ocorre essa negação do divino:

não estais a ouvir toda a funda comoção da ira intestina?

(Nietzsche, 2002, p. 226).

A nova negação do “divino”, citada no texto acima apresentado, equivale

dizer que em seu método de investigação todo valor, por mais “valioso” e “sagrado”

que pareça ser, deve ser questionado transvalorativamente, ou seja, nada é tão

sagrado que não possa ser reduzido a uma explicação humana. Aplicando isto ao

nascimento da moral, Nietzsche pretende demonstrar que os valores supremos da

civilização nada mais são de que invenções humanas, por isso, a antiga reverência

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diante de tais crenças humanamente engendradas é considerada desnecessária em

sua nova abordagem metodológica.

De certa maneira sua postura filosófica lembra a “epoché” dos céticos

antigos, para estes filósofos gregos a “abstenção de juízo” era o princípio

gnosiológico norteador, afinal, tal grupo acredita que nenhum conhecimento

absoluto sobre as coisas era possível, nada era evidente ao ponto de ser conhecido

absolutamente. Comentando sobre como o cético Pirro procedia ao exercitar seu

ceticismo moral gnosiológico, Giovanni Reale e Dario Antiseri, em sua história da

filosofia, enumeram as três regras básicas da epoché:

… as coisas: 1) são igualmente sem diferenças; logo nem nossa sensações nem nossas opiniões são verdadeiras ou falsas. 2) não é pois necessário ter fé nelas, mas permanecer sem opiniões, sem inclinações, sem agitação, dizendo a respeito de tudo: “não é mais do que não é”, “é e não é”ou “nem é, nem não é”. 3) Aos que se encontrarem nessa disposição [...], derivará em primeiro lugar a apatia, depois a imperturbabilidade ( Reale e Antiseri, 2003, p. 268).

Segundo o fragmento exposto, o cético é aquele que por meio da epoché

(suspensão do juízo), analisa sem emitir um juízo absoluto sobre as coisas

analisadas. Quando é dito que nessa nova disposição intelectual não é “necessário

ter fé”, tal pressuposto feria frontalmente a visão dogmática dos que acreditavam

ingenuamente nas “palavras dos deuses” decantadas nas praças públicas pelos

aedos.

Essa nova postura filosófica deveria causar no cético à “ataraxia”, ou seja, uma

ausência de perturbação, um estado de espírito sereno, uma disposição mental

propícia à análise imparcial dos objetos estudados.

O método genealógico nietzschiano incorpora muito da antiga metodologia

pensada pelos céticos gregos, sua meta transvalorativa só se faz possível a partir

da “epoché” dos antigos. No entanto, se as duas metodologias têm muitos pontos

em comum, não seria correto concluir, a partir destas semelhanças, que são

totalmente equivalentes. Em Nietzsche, além da suspensão dos “juízos”, temos o

esclarecimento genealógico da fonte de todos os juízos, a vontade de poder.

Por isso, em Nietzsche a impossibilidade de chegarmos à verdade não se dá

pela imperfeição de nosso aparelhamento perceptível ou por uma limitação cognitiva

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pessoal, tal impossibilidade liga-se ao fato de não existir nenhuma verdade no

mundo.

Aliás, a própria ideia de “mundo”, já é uma disposição arbitrária inventada

pelos humanos, em nível de natureza não temos, segundo a ótica do filósofo

alemão, nenhum “cosmo”, mas sim, um “caos” que só ganha sentido depois de ser

filtrado delas malhas de nosso “conhecimento”. Desta maneira, conhecer não é o

ato simples de desvelar a verdadeira natureza das coisas, é antes, o próprio ato de

conferir “natureza” às coisas.

Certamente, a visão nietzschiana de um eterno devir, que temporamente se

organiza no âmbito do conhecimento como “perspectiva”, espelha bem o espírito do

velho Heráclito que dizia: “o mesmo é vivo e morto, acordado e adormecido, novo e

velho: pois estes, modificando-se, são aqueles e, novamente, aqueles, modificando-

se, são estes” (Heráclito, 2002, p. 204).

Daí a suspeita metodológica que reduz toda verdade a uma mera

“aparência”, não existe um verdadeiro “ser” das coisas a ser desvelado, o verdadeiro

e único ser das coisas é o devir, a transformação contínua que exterioriza o “ser da

afetividade” em dado “instante”.

Comentando sobre essa “realidade” mutável em Nietzsche e Heráclito, o

escritor Manfred Riedel fala das conseqüências epistemológicas desta tese:

Aquele para quem esta verdade [a mudança] se apresenta ante os olhos com a maior visibilidade, acessível para cada um, tem, segundo Nietzsche, que seguir também imediatamente com Heráclito, e concluir que o ser todo da realidade [Wirklichkeit- efetividade] é justamente apenas atuar [Wirken - efetuar] e que não há nenhuma outra espécie de “ser” além do eterno devir. Ela desperta a experiência do “entrar no ser estranho”, um sentimento que se abate sobre os espectadores do festival dionisíaco e é o que está mais próximo da sensação com a qual alguém no meio do mar e o em um terremoto vê tudo movendo-se e perde a confiança na terra firme. Por isso precisar-se-ia de uma espantosa força para transpor este efeito … (Riedel, 1996, p. 437).

Acreditar que este “devir” ontológico, que se manifesta na efetividade das

coisas presentes como “vontade de poder”, é como diz o autor supracitado, “entrar

no ser estranho” das coisas eternamente impermanentes; é viver a contradição de

querer um ser permanente e apenas deparar-se enquanto ser mundano, com a

transitoriedade do absoluto vir-a-ser.

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Consequentemente, quando aceitamos a tese nietzschiana de que a auto-

superação, enquanto vontade inerente de poder, e a dinâmica oculta de constituição

de todas as coisas, nossa análise do fenômeno religioso deve partir da suspeita

sistêmica de coisas veneradas como “essenciais”, visto que no viés interpretativo

sustentado por Nietzsche, a “essência” é apenas um valor que uma determinada

perspectiva aplica às coisas.

Ao pesquisador das religiões que se propõe a usar a genealogia nietzschiana

como recurso metodológico, devemos lembrar que a soberania da efetividade,

tantas vezes frisada por Nietzsche, como o “grande real” de todas as realidades

possíveis, diminui a crença em “verdades universais”. Todas as verdades que

parecem se estender a todos os seres humanos devem ser entendidas como

fragmentos da grande vontade humana de achar um sentido único para as coisas.

Tomar a “suspeita” como lógica interna de nossa pesquisa, não deve ser

confundido com o desejo agressivo de desclassificar as ideações religiosas como

“Pueris”, apenas deve significar o desejo metodológico de revelar as motivações

humanas, demasiadamente humanas, por trás daquilo que aparentemente não “é

deste mundo”.

Operar a partir da suspeita é manter-se distante da avaliação moral do

sagrado”, ao mesmo tempo, representa uma postura aberta em relação ao

pesquisado.

É importante esclarecer, que a atitude de “constante suspeita” em relação a

todo e qualquer tipo de conhecimento e, privilegiadamente isto se aplica ao

conhecimento dito “sagrado”, não equivale ao questionamento cartesiano que usa

como base a “dúvida hiperbólica” de Descarte.

No cartesianismo, a religião é desconstruída racionalmente até chegar ao

nível da mera superstição vulgar, porém, o positivista acaba por poupar a própria

“razão” deste método de desconstrução; assim, fixando teoricamente a

irracionalidade da ideação religiosa, as ideações racionais parecem se fixar em

oposição imediata como “puras verdades” sobre o mundo.

Na genealogia nietzschiana, que se sustenta às custas de uma “suspeita

crônica”, nem mesmo a “razão” é pensada como uma “coisa em si”. Segundo o viés

interpretativo de Nietzsche, pensar a “Ciência” e seu “método racional” como formas

seguras de chegar a “verdade do mundo” é apenas outra superstição moderna.

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Em seu livro A Gaia Ciência, Nietzsche esclarece que a racionalidade não é a

única forma pela qual, pensamos o mundo, até o oposto disso, nossa relação com o

mundo e muito pouco racional, lemos:

A nós nos chega à consciência apenas as últimas cenas de conciliação e ajuste de contas desse longo processo e por isso achamos que intellere é algo conciliatório, justo, bom, essencialmente contrário aos impulsos [...] o pensamento consciente foi tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira inconsciente e não sentida por nós [...] o pensamento consciente em particular o do filósofo, é a espécie menos vigorosa de pensamento e, por isso, [...] o filósofo pode se enganar mais facilmente sobre a natureza do conhecer (Nietzsche, 2001, pp. 220-221).

Ao analisarmos o fenômeno religioso, tomando com base a referência do

pensamento verdadeiro da razão discriminativa da consciência, como bem frisou

Nietzsche, no trecho de sua A Gaia Ciência, nos iludimos em referência a

verdadeira natureza do “conhecer”, isso porque, muitos processos afetivos

inconscientes são projetados na nossa maneira “racional” de pensar o mundo.

Devemos suspeitar até da neutralidade racional. A mesma como método

pode servir não para “esclarecer”, mas sim, para oferecer um “sentido” absoluto

para o mundo e, neste caso, para Nietzsche, a ciência estaria apenas ocupando o

lugar da antiga religião onipotente.

O conhecimento racional tornou-se soberano na contemporaneidade, não

porque ele é “verdadeiro”, mas porque através dele “dominamos” mais o mundo das

coisas, portanto, um conhecimento é “real”, não pela sua “verdade” em si, mais

porque faculta um maior domínio humano. Dizer que a “ciência” é verdadeira e, a

religião é falsa, é moralizar um método que deve estar inseto de moralização, ao

fazermos isso, convertemos a ciência numa nova metafísica.

Para Nietzsche, o estudo do sentido religioso, como qualquer outro sentido

dado ao mundo (sentido filósofo, sentido científico, sentido comunista, etc), deve ser

processado no âmbito do estudo da moral, afinal, não importa quão “nobre” e

“superior” um sentido pareça, ele é tão somente uma moldura moral aplicada ao

mundo.

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Desta maneira, a crítica nietzschiana em referência às variadas “verdades

religiosas”, devem ser entendida como um questionamento “moral”, assim, o que

verdadeiramente interessa ao pesquisador genealogista, é o entendimento de como,

onde e porque, foi possível a construção de certa estrutura moral e, após entender

às condições de nascimento da mesma, precisar se a mesma facilita ou dificulta o

livre fluxo da vontade de poder.

Tendo em vista que o método genealógico, não tem como objeto primário o

questionamento do “conteúdo religioso”, mas o questionamento do tipo de homem

que valora atrás de determinado conteúdo, talvez, ao invés da crítica nietzschiana

destruir a religião, ela sirva de depuração para sobrevivência da mesma. Afinal,

uma religiosidade transmutada, pode ser vislumbrada no comentário feito sobre

Jesus, pelo próprio Nietzsche: Jesus disse aos teus judeus: “A lei foi feita para os

servos–amem a Deus como eu o amo, como seu filho! Que nos importa a nós filhos

de Deus, a moral!” (Nietzsche, 2005, p. 164).

Nesta nova religiosidade do futuro onde a moralidade das “pequenas

diferenças” tenderá a seu desaparecimento, tanto crentes, como também, ateus,

poderão oferecer positivamente, mesmo frente suas reais diferenças ideológicas,

um verdadeiro culto à vida e a liberdade.

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Considerações Finais

Acreditamos após ter terminado o percurso estabelecido para o presente

trabalho, ter demonstrado sucintamente como o “anúncio da morte de Deus” pode

ser usado como princípio hermenêutico de leitura para as diversas mudanças

ocorridas no campo religioso desde o final do século XIX.

No primeiro capítulo nos esforçamos para situar historicamente como se deu

a constatação nietzschiana da “morte de Deus” e como tal enunciado sintético

tentava resumir a terrível crise de sentido precipitada pelo declínio generalizado dos

valores morais do mundo ocidental.

Ainda neste capítulo, expomos as principais críticas nietzschianas em relação

à moral “socrático-platônico-cristã”, fazendo isso, tentamos demonstrar que bem

mais do que um vulgar ateísmo, Nietzsche pretendia uma verdadeira revolução no

âmbito da moral. De fato, seu projeto de transvaloração de todos os valores, não

pretendia a mera destruição dos valores antigos, na verdade, seu principal objetivo

era oferecer uma nova maneira de valorar o mundo, maneira esta, capaz de superar

o niilismo contemporâneo, sem com isso retornar a antiga maneira ascética de

ajuizar.

Vimos ainda neste primeiro capitulo que segundo a interpretação

nietzschiana, o cristianismo dualístico e ascético é mais uma criação posterior, do

que verdadeiramente algo pensado por Jesus. Para Nietzsche, Paulo de Tarso foi o

real arquiteto da tese cristã surgida após a morte do carpinteiro. Segundo esta

leitura nietzschiana do cristianismo paulino, a moral construída após a morte de

Jesus, era uma "moral de escravo”. Uma aviltante forma de se vingar da vida, por

isso, uma tese que resumia uma atitude altamente depreciativa em relação à

realidade sensível.

Já no segundo capítulo do presente trabalho, consideramos algumas das

consequências do fenômeno chamado de “secularização”.

Iniciamos nossa exposição, resumindo algumas das teses filosóficas que

provavelmente mais influenciaram Nietzsche. Vimos como o “espírito absoluto” do

filósofo Hegel, parecia já no início do século XIX, antecipar o declínio do velho Deus

da teologia alemã e, à custa de uma nova roupagem racional, o filósofo tentava

salvar por meio de racionalizações filosóficas a decadente teologia cristã ocidental.

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Na figura de Feuerbach, ex-discípulo de Hegel, vimos panoramicamente o

surgimento moderno do que pode ser considerada a tese ateísta mais sistematizada

até aquele momento. Ao apresentar o filósofo Feuerbach, visamos mostrar como

algumas da ideias do mesmo, certamente serviram como esteio teorético para o

ateísmo anticristão de Nietzsche.

Ainda nos limites desse segundo capítulo, buscamos entender melhor o

fenômeno da “secularização”, fenômeno este, que parece ser uma consequência

direta da “morte de Deus”. Citamos nesse momento do estudo, a opinião de

diversos especialistas que concordam com a ocorrência de um movimento mundial

de laicização, em sentido mais generalizado, isso significa dizer, que, a religião na

contemporaneidade, já não é mais o centro organizador da moral do “mundo”, ao

contrário disso, sua relevância pública foi drasticamente reduzida.

Tentamos demonstrar que o fenômeno da secularização é uma ocorrência

complexa, com isso, estamos querendo dizer, que tal movimento não significa

necessariamente o fim da religiosidade, até porque, paradoxalmente, temos

presenciado o recrudescimento de certas formas de religiosidades autônomas. O

que parece ocorrer, inegavelmente, no núcleo deste fenômeno, é o enfraquecimento

generalizado da “função” legitimadora da moral, antes ocupada pelas instituições

religiosas.

Notamos como o enfraquecimento da religião deu origem a diversas “teses

ateístas morais”, segundo o pensamento de alguns destes “novos ateus”, é possível

de pensar até mesmo uma religiosidade sem Deus, neste caso, o “sagrado” é

revivido no campo da ética.

Porém, mesmo que cheguemos ao consenso de que é possível viver sem

Deus, parece ser também um consenso a conclusão de que não podemos passar

sem uma “nova moral”.

Tendo em vista este terrível impasse da contemporaneidade, o terceiro

capítulo do nosso trabalho tenta analisar uma possível religiosidade sem Deus em

Nietzsche.

Usando o “Zaratustra" nietzschiano como referência do estabelecimento de

uma nova metafísica, vimos como o filósofo alemão tenta transferir a antiga primazia

dada ao “além mundo” pela metafísica religiosa ascética, para o mundo terreno da

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efetividade. Por meio da imagem do profeta sem Deus Zaratustra, o homem é

convidado a voltar para seu verdadeiro centro: seu corpo.

Nesse capítulo aprendemos que o verdadeiro princípio metafísico, desta nova

religião dionisíaca sem Deus, e a vontade de poder, vontade esta que deve servir

como base da superação do niilismo moderno. O profeta Zaratustra de Nietzsche,

não conclama seus ouvintes a vir “adorar”, mas sim, a vir “criar”. Ao invés de um

messias que “descerá do céu”, Nietzsche fala de um além-homem que será gerado

das vísceras da terra, além-homem, que é uma metáfora de uma nova maneira de

valorar o mundo.

Vimos também, que o que Nietzsche chamou de o “pensamento mais

pesado”, ou seja, o “eterno retorno do mesmo”, é uma valiosa metáfora da

responsabilidade que temos num “mundo sem Deus”. Não existindo no mundo

sinais que apontem para o “bem” ou para o “mal”, temos que escolher qual o

“destino” que melhor nos cabe, porém, uma vez feito a escolha do mesmo, tudo se

repetirá infinitamente, afinal, não existindo Deus, somos deuses das nossas próprias

escolhas.

Já no quarto e último capítulo de nossa dissertação, buscamos evidenciar

como o método genealógico é importante no estudo das “crenças humanas”, e, em

sentido mais particular, no estudo das crenças religiosas.

Mais do que um método meramente descritivo, a genealogia nietzschiana

articula-se a partir de dois eixos centrais: o funcional e o crítico. O aspecto funcional

do método nietzschiano visa perceber como as ficções culturais são importantes

para conferir um sentido ao mundo, porém, pelo aspecto crítico de sua genealogia,

Nietzsche evidencia que todos esses sentidos são meras roupagens para o “não-

sentido” da existência.

Ao aplicarmos o método genealógico às religiões, uma suspeita metodológica

é sempre aconselhável, isso porque, a análise dos “elementos do sagrado” não é a

análise de “coisas”, mas sim, a análise de “valores” dados às coisas. Por isso, ao

estudarmos as crenças religiosas, devemos como, verdadeiros genealogistas, tentar

entender as razões circunstânciais para o surgimento da mesma, daí, o método

nietzschiano criar intersecções com outras disciplinas contíguas (linguística,

Antropologia, Psicanálise, Sociologia, entre outras).

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Esperamos num trabalho futuro explorar melhor as possíveis relações entre o

método genealógico nietzschiano, e as outras disciplinas que podem reforçar seu

foco epistemológico. No momento acreditamos que essas considerações finais

apenas pontuam um pequeno estado inicial numa direção epistemológica ainda

muito distante. Porém, ao saber que já iniciamos nossa caminhada, ficamos felizes

em exibir um pequeno impulso em direção a um possível destino maior.

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