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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
O sujeito humano – maquínico nas configurações sociais propostas pelo cinema de ciência – ficção.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
- Graduação em Comunicação da
Universidade Paulista – UNIP para obtenção
do título de mestre em Comunicação.
MARIA AUXILIADORA LEITE COSTA
SÃO PAULO
2006
2
UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
O sujeito humano – maquínico nas configurações sociais propostas pelo cinema de ciência – ficção.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
- Graduação em Comunicação da
Universidade Paulista – UNIP para obtenção
do título de mestre em Comunicação.
MARIA AUXILIADORA LEITE COSTA
SÃO PAULO
2006
3
Costa, Maria Auxiliadora Leite
O sujeito humano - maquínico nas configurações sociais propostas pelo cinema de ciência ficção / Maria Auxiliadora Leite Costa. – São Paulo, 2006.
236 f. Dissertação (Mestrado) – Apresentada ao Instituto de Ciências Sociais e Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo, 2006. Área de Concentração: Comunicação e cultura midiática.
“Orientação: Profº. Dr. Juan Guillermo Droguett”
1. Comunicação 2. Cinema 3. Recepção 4. Grupos sociais I. Costa, Maria Auxiliadora Leite. IV. Título.
Cada momento é absolutamente preenchido por incontáveis instantes, cada instante é ponto singular e se destaca pela multiplicidade. O deslocamento deste instante pontual desenha a linha do tempo. E foi neste macro cruzamento de circunstâncias particulares e singulares que surgimos nós dois (Edith Derdyk)
Para Helder por estar ao meu lado.
4
5
Agradecimentos
Gostaria de agradecer imensamente ao meu orientador Juan Droguett por
ter me levado pela mão a uma incursão no mundo do saber, pela sua
delicadeza, paciência e generosidade, e por ter me ensinado a respeitar os
grandes pensadores.
Quero agradecer a Romy Tutia e Patrícia Fonseca pela compreensão e
incentivo que recebi para ir adiante neste projeto.
A Sueli Garcia e Suzana Avelar amigas - irmãs de todas as horas.
A Clarice Keiko pela presteza e amabilidade com que atendeu aos meus
pedidos de socorro.
A Valéria Pereira que dedicou horas preciosas do seu tempo na revisão
deste trabalho.
Aos meus amigos de trabalho que tiveram a paciência na hora exata.
Aos meus alunos que souberam compreender os momentos de ausência.
E, principalmente, ao meu pai (in memoria) que me ensinou o gosto pela
leitura e a minha mãe de quem herdei a capacidade para realizar os meus
objetivos.
6
RESUMO
O sujeito humano – maquínico nas configurações sociais propostas pelo
cinema de ciência – ficção é o título desta dissertação, que tem como
objetivo caracterizar uma construção midiática da sétima arte, oferecida
como um produto cultural de identificação ao grande público receptor.
Sendo a comunidade - grupos sociais - de artistas e cientistas, que
aparecem na obra de Blade Runner - O caçador de andróides, os
principais responsáveis pela configuração do tempo e do espaço prefigurado
pelo cinema de ciência – ficção, o trabalho analisa tal produção como um
paradigma social da passagem da Modernidade à Pós – Modernidade na
trama narrativa dessa ficção.
O principal problema enfrentado na pesquisa está relacionado à definição
de Modernidade diretamente ligada ao fenômeno de massa e às Revoluções
Industriais, que encontram no cinema – invenção moderna por excelência –
um outro tipo de revolução, mais difícil de definir por seu caráter estético,
advindo do modo de subjetivação que transforma as condutas desses
grupos sociais empenhados em se perpetuar por meio das suas
representações.
O objeto desta dissertação resulta de uma construção do imaginário
cultural que as sociedades promovem, em seu desejo de capturar o tempo.
Neste sentido, formula-se uma trajetória metodológica que vai desde a
contextualização cultural, com o surgimento do fenômeno de massa até a
aplicação das seguintes categorias, escolhidas em função de nosso
trabalho: natural versus artificial; homem versus máquina; o real e o
7
imaginário; a desumanização das cidades e a identidade humana
enunciadas pelo próprio idealizador Ridley Scott que, baseado nos
pressupostos de sua prática de cineasta e de pesquisador, reflete em sua
obra a relação do sujeito com seu correlato maquínico.
A partir destes pressupostos, enunciados a modo de temática,
transformamos estas categorias de análise para evidenciar a trajetória
cultural do ser humano em sociedade.
Os principais referenciais teóricos usados neste trabalho se ancoram em
obras tais como: A rebelião das massas (2002) de José Ortega Y Gasset;
Humano demasiado humano (2005) de Friedrich Nietzsche; Ensaios e
conferências (2006) de Martin Heidegger, O discurso filosófico da
modernidade (2002) de Jürgen Habermas para extrair delas as causas do
fenômeno de massa e os efeitos que este provocou na sociedade
contemporânea.
Para questões sobre teorias do cinema, utilizamos a obra de Gilles
Deleuze La imagen – movimiento (1984), que situa o leitor no âmbito da
ciência – ficção e dos efeitos receptivos da câmera, da montagem e da
própria filmagem.
Enfim esta dissertação discute mais do que questões do gênero de
ficção, uma temática social e um mal-estar instalado na cultura sobre o
futuro do sujeito, mostrado pelo meio da clarividência do cinema.
Palavras – chave: sujeito humano – maquínico, cinema, configurações
sociais.
8
Abstract
The human subject - in the social proposal for the science of cinema in the
mechanical configurations - fiction is the heading of this dissertation that has
an objective to characterize the construction of the seventh art presented as
a product of cultural identification for the public.
Being a community - social groups - artists and scientists, who appear in
the film Blade Runner, as the primary ones responsible for the configuration
of time and space preconfigured for science-fiction cinema, the work
analyzes the production as a social paradigm, the passing from modernity to
post – modernity. This is the plot narrative of this piece of fiction
The main problem faced in the research, is related to the definition of
Modernity directly linked with the phenomenon of mass and the Industrial
Revolutions, which is found in cinema - modern invention par excellence -
another type of revolution, much more difficult to define for its aesthetic
character, coming from the subjective transformation of their behavior in
these social groups, committed to perpetuate by means of their
representation.
The object of this dissertation results in an imaginary construction of a
cultural, one that society promotes in its desire to capture time. In this way,
formulating a methodology trajectory that goes from the cultural
contextualization with the appearance of the mass phenomenon until the
application of the categories, chosen in function of our work : natural versus
artificial; man versus machine; Real and imaginary; the dehumanization of
the cities and human identity expressed by the idealizer himself Ridley Scott,
9
based on the presumption of his cinematographer career and research
reflected in his art the relationship between the citizen and his mechanical
correlative. .
From these presuppositions expressed in a thematic way, we
transform these analytic categories to show the cultural trajectory of the
human being in society.
The main theoretical references used in this work is based on such pieces
of work as: A rebelião das massas (2002) by Jose Ortega Y Gasset;
Humano demasiado humano (2005) by Friedrich Nietzsche; Ensaios e
conferências (2006) by Martin Heidegger, O discurso filosófico da
modernidade (2002) by Jürgen Habermas to extract from them the cause of
the mass phenomenon and the effects that this provoked on modern society.
For questions on cinematographic theories, we use the work of Gilles
Deleuze La image - movimiento (1984) that puts the reader in the realm of
science-fiction and of the accepting effect of the camera, the setting and the
filming itself.
Finally this dissertation discusses more than just the questions of the type
of fiction, a social theme and a bad feeling installed in culture about of future
of the subject shown by the clairvoyance of cinema.
Keyswords:
human subject – cinema – social proposal
SUMÁRIO
10
INTRODUÇÃO, 02
Capítulo I – Cultura de massa – o início das grandes revoluções, 05
1. Do ser humano– massa ao sujeito maquínico das grandes revoluções, 09
2. Efeitos da Revolução Industrial, 35
3 Técnica e tecnologia no auge de uma nova era, 54
Capítulo II – Blade Runner – O caçador de Andróides, 67
1. A relação humana – maquínico em Blade Runner – decupagem das
principais cenas, 69
2. A relação maquínico – humana, 92
3. Projeção do espaço humano – maquínico, 115
Capítulo III – Estruturas sociais do sujeito maquínico na configuração midiática, 131
1. O sujeito moderno, 133
2. O sujeito pós – moderno, 170
3. O sujeito maquínico, 196
CONSIDERAÇÕES FINAIS, 215
BIBLIOGRAFIA, 219
ANEXO I, 225
ANEXO II, 230
ANEXO III, 235
INTRODUÇÃO
11
As mudanças acentuadas nas esferas sociais, políticas e econômicas
engendradas pelas Revoluções Industriais ocorridas principalmente na
Inglaterra legitimaram o conhecimento objetivo, a razão e a capacidade
intelectual do ser humano como indivíduo autônomo engenheiro do seu
próprio destino. No século XX e XXI, este sujeito que surgiu das revoluções
industriais se depara com uma outra revolução, esta de caráter estético e
que chamamos neste presente trabalho de Revolução Estético –
Tecnológica que está ligada às questões dos meios de comunicação de
massa e a virtualização através de seus produtos culturais.
No primeiro capítulo serão abordados os elementos dessa
reestruturação da sociedade advinda das Revoluções Industriais que solicita
uma reflexão na medida em que parece indicar uma importante ruptura ante
a confirmação de uma maquinação do humano na esfera bioquímica e que
dá início ao estudo do sujeito humano – maquínico desta dissertação.
Este presente trabalho utiliza o cinema, concebido como uma das
grandes invenções do século XIX, e que nos servirá como suporte técnico na
sua vocação de ficção como uma arte essencialmente realista, uma arte
ilustrativa do mundo e da ciência. Consideramos que o cinema foi, desde o
seu nascimento, o espaço da representação da realidade do sujeito,
colocando-o frente a frente com o seu duplo refletido nas telas. Sendo
também, um suporte capaz de antecipar por meio do caráter prefigurativo as
conseqüências sociais, políticas e psicológicas das sociedades
representadas na tela, e por isso mesmo o instrumento ideal para as
análises que ora iremos desenvolver.
O segundo capítulo utilizando o suporte fílmico escolhido para este
estudo, Blade Runner – o caçador de Andróides (1982), do diretor inglês
12
Ridley Scott, tratará de analisar os efeitos do crescimento desenfreado da
sociedade emergente das revoluções industriais, por meio da decupagem
das principais cenas do filme em questão.
O terceiro capítulo será dedicado à análise do sujeito moderno, a crise
do sujeito e a passagem do sujeito moderno para a condição de sujeito pós-
moderno evidenciando uma outra característica do sujeito: a de sujeito
maquínico, bem como outras questões, não menos importantes, como por
exemplo, a criação pelo homem de um duplo à sua imagem e semelhança
por meio da biotecnologia e os contrastes entre a alta tecnologia e a
decadência das cidades.
Esta dissertação é de caráter teórico que se fundamenta no estudo de
Erick Hobsbawn sobre as Revoluções Industriais, nos pressupostos
filosóficos do sujeito, tratado por autores como Friedrich Nietzsche, Ortega y
Gasset, Martin Heidegger e Walter Benjamin e na concepção de montagem
fílmica e definições de tempo e espaço cinematográficos de Giles Deleuze .
As categorias de análise no primeiro capítulo de fundamentação serão
extraídas das três Revoluções ocorridas consecutivamente na cultura e que
nos serviram como antecedentes para pensar o sujeito humano – maquínico
como objeto desta dissertação.
Os dois últimos capítulos serão extraídos da decupagem das
principais cenas do filme Blade Runner – o caçador de andróides bem como
dos conceitos na própria análise do filme para demonstração das categorias
idealizadas dos sujeitos e das cidades na criação cinematográfica de Ridley
Scott.
13
Neste contexto nossas referências tradicionais se vêem fragilizadas e
talvez só possamos compreender o que se passa recorrendo às lições de
filmes como Blade Runner - o caçador de Andróides.
14
Capítulo I
Cultura de massa – o início das grandes revoluções.
Este capítulo tratará das grandes transformações sociais ocorridas
com o advento da Segunda Revolução Industrial, que se concretizou através
da reprodutibilidade técnica das artes, ofícios e produtos, destinados à
grande massa (BENJAMIN, 1992: 77). Tratará também de estudar este
período que glorificou o poder do ser humano na transformação e no
progresso da sociedade, surgindo nesta época um sujeito autônomo e
singular assombrado pelo desenvolvimento de um saber tecnocientífico e
pela invasão das invenções, o que viria a ser uma transformação do sujeito –
massa em sujeito – maquínico.
Conforme o historiador Eric Hobsbawm (2003:49), a Revolução
Industrial pode ser dividida em duas fases subseqüentes. A primeira
Revolução Industrial, que ocorreu na Inglaterra de 1760 até meados do
século XIX, na qual a energia a vapor foi a principal fonte de transformação
da sociedade. E a segunda Revolução Industrial que se prolongou até o final
do século XIX, cujas transformações deram conta da descoberta e do uso,
em todos os setores da sociedade, da energia elétrica. O uso da energia
elétrica avança pelo século XX em aplicações revolucionárias como, por
exemplo, o uso público, através da iluminação dos espaços urbanos, e da
transformação radical da comunicação, com o advento do telégrafo, cinema
e do rádio. Devido às grandes descobertas, a Segunda Revolução Industrial
também é conhecida como Revolução – tecnológica 1.
1 Em sentido restrito, a expressão "revolução industrial" serve para designar o conjunto de transformações técnicas e econômicas que se caracterizam pela substituição da energia física pela energia mecânica, da ferramenta pela máquina e da manufatura pela fábrica, no processo de produção capitalista (HOBSBAWN, 2003:57).
15
Atropelados pelas mudanças sociais e econômicas, o sujeito do
século XIX teve que enfrentar alterações abruptas impostas pelas
revoluções do seu tempo. Estas revoluções estão imbricadas com o avanço
da economia, do capitalismo e do progresso social. Este progresso social
delineou uma nova forma de sociedade, de ocupação dos espaços urbanos,
de convivência com os outros sujeitos no dia–a–dia, bem como da
adaptação destes aos inventos que proliferavam com uma rapidez
espetacular. Esses progressos são reconhecidos, nas ciências sociais, como
os atributos básicos da construção de um sujeito estruturado em torno de
uma sociedade de consumo, da reprodução em série, do pensamento
padronizado, dos simulacros, do hedonismo, da efemeridade e das
tecnologias2.
Partindo das revoluções industriais, que colocaram o sujeito em
contato com uma cultura dita mundializada, a linguagem cinematográfica foi
considerada a primeira forma de arte industrializada. Neste sentido, os
Estados Unidos, através de Hollywood, organizaram a arte cinematográfica
em uma lógica industrial baseada na otimização de todas as fases de
fabricação de um produto segundo estratégias comerciais, direcionando o
cinema para um mercado vasto de público. Os teóricos da Escola de
Frankfurt criticaram fortemente a influência de Hollywood na formatação de
uma lógica econômica e industrial do cinema, transformando esta nova arte
em mero produto industrializado.
Além desse aspecto, o cinema também é reconhecido como uma
linguagem universal e está inserido na vida cotidiana do sujeito objeto de
2 Sociedade de consumo, reprodução em série, pensamento padronizado, simulacros, hedonismo, efemeridade e tecnologias – conceitos estes que serão explorados no decorrer do projeto em questão e no desfecho dessa dissertação.
16
estudo desta dissertação, assim o cinema será o nosso suporte para o
estudo dessas transformações sociais, dos seus efeitos e das crises
vivenciadas pelo sujeito moderno.
Estudaremos neste capítulo alguns aspectos da ficção tanto literária
quanto do cinema. Os contos e as lendas são os pontos de partida: o mito
grego de Prometeu, a lenda judaica do Golem. Fausto de Goethe (1808) e
Frankenstein de Mary Shelley (1818) abrem o caminho para que possamos
entender algumas destas questões, os personagens e as situações de
estranhamento. No período moderno, Frankenstein (1818) de Mary Shelley
é considerado como o primeiro romance de ficção – científica. Os filmes do
Expressionismo alemão inauguram uma forma de pensar e mesmo de
antecipar as conseqüências sociais, políticas e psicológicas provocadas por
este novo desenvolvimento técnico-científico, pois colocam o sujeito frente
ao medo da morte, da sua maquinização, das sombras, de encontrar o seu
duplo e do desconhecido.
Estes períodos das revoluções colocam o sujeito diante de dilemas
como a ruptura do passado próximo, a quebra de tradições, as grandes
descobertas científicas, a industrialização da produção e de produtos
culturais e o surgimento dos sistemas de comunicação de massa. Essa
quebra de tradições e a industrialização da cultura põem em curso uma
outra revolução, uma Revolução Cultural, que conforme Walter Benjamin
coloca a obra de arte vista sob “o signo da união do autêntico com o
efêmero” sendo regida pela economia de mercado e pelas técnicas de
reprodução.
17
Internet, ciberespaço e realidade virtual são algumas formas de
integração homem – máquina. Para compreendermos o que se passa,
recorremos à ficção – científica para demonstrar sua proximidade com as
questões da cultura contemporânea: as múltiplas desconstruções, as
diferenças entre natural e artificial, humano e não-humano, vivo e não vivo,
real e virtual; as mutações e as reconstruções dos corpos humanos.
Neste cenário aprofundaremos o início do que é considerado como a
era das grandes revoluções.
18
1. Do ser humano – massa ao sujeito maquínico das grandes
revoluções.
“... Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor –
bom ou mau – por razões especiais, mas que se sente “como
todo mundo” e, certamente não se angustia com isso, sente-se
bem por ser idêntico aos demais...” (ORTEGA Y GASSET, 2000:
45).
Ortega y Gasset, ao cunhar o conceito do ser humano – massa, fez
uma alusão direta ao valor que tem o ser de reconhecer-se a si na sua
capacidade de sentir e sentir-se em sintonia com o mundo, no que se refere
à apreensão do conhecimento e das experiências que o tornam semelhante
àqueles com quem partilha a vida. Neste sentido justifica – se a premissa do
autor que diz: “eu sou eu e a minha circunstância”, isto é, o ser humano é
um sujeito individual e ao mesmo tempo um ser em sociedade.
O contexto social a partir do qual Ortega y Gasset formula o conceito
de massa está relacionado com os efeitos mais imediatos da Revolução
Industrial. A Revolução Industrial foi uma das grandes transformações pela
qual passou a sociedade no setor da produção, em decorrência dos avanços
das técnicas de cultivo e da mecanização das fábricas. Segundo o
historiador Eric Hobsbawm, em seu livro A Era das Revoluções (2003), a
invenção e o uso da máquina permitiram o aumento da produtividade, a
diminuição dos preços e o crescimento do consumo e dos lucros.
Ainda segundo Hobsbawm (idem: 178), as Revoluções Industriais
compreendem transformações econômicas, políticas e sociais surgidas na
Grã – Bretanha a partir de meados do século XVIII, estendendo – se depois
19
para outros países europeus. Tais Revoluções caracterizaram-se pelas
passagens da oficina artesanal–manufatura para a fábrica – máquinas e da
sociedade rural para a urbana – burguesia e proletariado –, com o
aparecimento da organização fabril em detrimento das corporações de
ofício.
Essa caracterização do homem–massa está diretamente ligada aos
resultados dos avanços tecnocientíficos que começaram a dominar o mundo
e com os quais os sujeitos passaram a conviver. Um mundo dominado pelo
trabalho de homens e máquinas, lugar possível para a realização de todos
os desejos materiais através do domínio da técnica. Esse mundo
tecnicamente perfeito também é aludido em Blade Runner – o caçador de
andróides (1982); aliada à alta tecnologia na concepção de simulacros
humanos por meio da engenharia genética dos “replicantes”, que são
considerados a expressão máxima dessa sociedade industrializada3
(HARVEY, 2004:278).
Nos séculos XVIII e XIX a tecnologia vai adquirindo seu caráter
moderno de ciência aplicada e as descobertas e invenções encontram
rapidamente aplicação prática na indústria ou no desenvolvimento da
ciência. Estas descobertas e transformações também trouxeram o
desenvolvimento dos transportes e dos meios de comunicação dessa época.
Dedicados ao fazer artesanal, o ser humano tinha muito pouco ou quase
nada para que pudesse almejar novos postos na escala social; relegados à
sua própria sorte, não vislumbravam outros horizontes senão o da
continuidade.
3 Replicantes – reproduções autênticas, indistinguíveis em quase todos os aspectos dos seres humanos. Eles possuem força, inteligência e de poderes que estão no limite, ou até maiores que os seres humanos comuns. Os replicantes são frutos do trabalho de engenharia genética e foram fabricados com o intuito de ajudar na colonização interplanetária (idem, 277).
20
Retomando o pensamento de Ortega y Gasset, (2002:86) que
caracteriza o ser humano como carregado pelas limitações impostas pelas
condições em que nasceu; o sujeito que emerge das Revoluções vê diante
de si este cenário sofrendo profundas transformações, dando início a um
novo limiar à vida em sociedade. Nesta presente dissertação estamos nos
referindo a três categorias de revoluções: a Revolução Tecno – Industrial,
cujo princípio foi a produção em série; a Revolução Tecno – Científica, que é
a síntese da técnica com a ciência e que representou as descobertas e os
avanços tecnológicos e, por último, a Revolução Estético – Tecnológica, que
apresenta de maneira bastante eloqüente o poder que a mídia tem de
reivindicar a virtualização através de seus produtos culturais. Coloca – se
aqui também o fato de que desde os eventos das Revoluções Industriais e
durante todo o século XX, o conceito de sujeito está atrelado à ciência e às
técnicas, como um referente desta condição “do fazer” humano.
A imbricação da técnica e da ciência produziu o avanço tecnológico
que substituiu o sujeito nas ações básicas do modo de fazer e de produzir,
criando máquinas que, ao mesmo tempo em que aliviam e melhoram suas
condições de vida, não passam de um simulacro desse semblante humano
projetado em estruturas de aço e nas próteses de silicone.
O desenvolvimento tecnocientífico das revoluções industriais
reestruturou o sujeito na esfera social. Neste sentido, as ciências humanas e
sociais abraçaram uma nova concepção desse ser humano emergente
desdobrado ou projetado na máquina.
No entanto, aqui surge um problema fundamental que a filosofia,
matriz de todas as ciências, logo esclarece: o humano e o maquínico são
duas naturezas distintas do ser que não se podem misturar. Porém, o
21
desenvolvimento tecnológico criou artefatos e maquinarias suficientemente
capaz de operar em um sistema de produção artesanal, antes de domínio do
humano, para um sistema fabril que se opera através das máquinas,
máquinas como as de última geração que são providas de organização, que
interagem com o ambiente e executam tarefas cognitivas, habilidades até
então reservadas ao humano.
Por sua vez, os avanços científicos promoveram interações
moleculares e programas genéticos, produzindo uma maquinação do
humano na esfera bioquímica. Além dessa maquinização do humano e da
humanização das máquinas, a inteligência artificial, as biotecnologias e a
engenharia genética produzem próteses, implantes, tecnologias que tornam
ambíguas as diferenças entre natural e artificial, pensante e não-pensante,
orgânico e maquínico (OLIVEIRA, 2004).
Frente aos novos caminhos impostos pela tecnologia, o sujeito do
século XXI encontra–se desapropriado de suas funções, desterritorializado,
sente – se perdido em meio às transformações que ele mesmo idealizou: a
substituição do humano pelas máquinas. Esta inversão de papéis, em que a
máquina ocupa o lugar do humano, e quando esse mesmo ser humano pode
reconstituir-se através da manipulação científica, acaba consolidando o que
vem a ser chamado de crise de identidade, pois o sujeito vê sua essência
decodificada através da manipulação genética (SANTAELLA, 2004:31).
Durante o século XIX e o século XX, esse sujeito passa a ser
comparado com outros modelos de sujeito humano que ele próprio ajudou a
construir. O sujeito é confrontado com a capacidade que ele mesmo tem de
reinventar – se e de criar novos elementos constitutivos do seu corpo,
colocando em xeque a condição do humano. Esse sujeito que pensava ser o
22
centro do universo no século XIX chega ao século XXI fragmentado, em
desconstrução, em crise, descortina – se no outro, no estar no mundo com
outros, outros que podem não ser tão humanos quanto pensam que são
(idem: 16). É através das técnicas e dos artefatos tecnológicos que este
sujeito se vê transformado, modificado, descorporificado, hibridizado.
Vê diluídas as fronteiras que davam suporte ao que podia ser
considerado humano enquanto corpo, desaparecendo o limiar entre orgânico
– inorgânico, artificial – natural, real – simulacro (ibidem: 29). Fala – se da
morte do sujeito, pois este que emerge das revoluções é singular, é um
sujeito à procura de seu eu, da sua representação como corpo e rosto que é.
O sujeito que surge no século XIX não vê impedimentos para viver,
tem agora ao seu dispor todas as facilidades para resolver os seus
problemas: materiais ou espirituais, ele se percebe livre das amarras morais
e civis, aprende que todos os homens são legalmente iguais (ORTEGA y
GASSET; 2002: 87). Libertos das condições pouco favoráveis o sujeito vê –
se diante de uma nova circunstância de vida, de quebra de tradições e
conceitos, percebe que ele próprio pode criar seu destino, pode criar o
cenário para sua existência, pode através das técnicas e artefatos se
refazer4. O sujeito que começa a ser lapidado no século XIX vem sendo
construído durante toda a história da humanidade, mas este que foi
denominado de moderno é diferente dos seus antecessores. Por quê?
4 “A vida humana é sempre a de cada um, é a vida individual ou pessoal e consiste em que o EU que cada qual é se encontre tendo de existir em uma circunstância – o que costumamos chamar mundo - sem segurança de existir no instante imediato, tendo sempre de estar fazendo algo - material ou mentalmente, - para assegurar esta existência. O conjunto desses afazeres, ações ou comportamentos é a nossa vida. Só é, pois humano no sentido estrito e primário, o que faço por mim mesmo e em vista dos meus próprios fins ou, o que é a mesma coisa, o fato humano é um fato sempre pessoal” (ORTEGA Y GASSET, 1973: 45).
23
Este sujeito se descobre capaz de criar, de fabricar, de produzir, de
traçar o seu próprio destino, descobre – se como o centro do mundo. Ele é o
centro; não mais a natureza, não mais Deus, o sujeito é o senhor do seu
próprio caminho. Seu mundo passa a ser construído pela sua capacidade de
inventar e tornar real aquilo que imagina. Seu mundo é o do trabalho, da
produção de coisas, do artificial (ARENDT, 2004: 15). Um mundo que pode
ser construído tecnicamente perfeito, sem limites nem barreiras para
realização de todos os seus desejos. Esse sujeito aprende que é necessário
inovar para sobreviver, construir para desconstruir; este é um dos grandes
paradigmas do sujeito do século XIX, é a incerteza, a agitação que o move
para frente. O sujeito dos séculos XIX e XX aprende que, para estar de
acordo com o seu tempo é preciso querer mudar, mais do que isso, é
preciso aspirar à mudança em todos os aspectos de sua vida, tanto social
quanto pessoal (BERMAN, 2003:109). É o sujeito construído dentro de uma
sociedade de consumo, sociedade que se forma para se renovar, destruindo
o que está pronto: tudo é feito para ser refeito, das roupas ao pensamento,
tudo tem que ser despedaçado, fragmentado para ser reestruturado
velozmente. Um sujeito criado em meio às máquinas com semblantes cada
vez mais desumanizados, um sujeito sem raízes, autômato a partir das suas
próprias ações, um sujeito desterritorializado, indiferente, perdido num
mundo onde tudo pode ser ficção.
Esse sujeito é fruto dessa era chamada de tempos modernos.
Tempos modernos que trazem consigo uma aura de poder e força
inigualáveis a qualquer outra época que já existiu.
...Conforme escreveu Hegel no prefácio à Fenomenologia do
espírito, “que nosso tempo é um tempo de nascimento e de
passagem para um novo período. O espírito rompeu com seu
mundo de existência e representação e está a ponto de submergi-
lo no passado e [se dedica] á tarefa de sua transformação... A
frivolidade e o tédio que se propagam pelo que existe e o
pressentimento indeterminado do desconhecido são os indícios
de algo diverso que se aproxima. Esse desmoronamento
gradual... é interrompido pela aurora, que revela num clarão a
imagem do novo mundo...” (HABERMAS, 2002: 11).
Neste contexto surgem as palavras, cujos significados até hoje são
considerados pertinentes para definir tempos modernos: revolução,
progresso, emancipação, desenvolvimento, crise, etc. (idem: 12).
Encontramos os significados e os efeitos da Revolução Industrial
retratados no filme Tempos Modernos (1936) de Charles Chaplin, no qual o
ser humano vive subjugado e à mercê das máquinas; o sujeito não convive
apenas com a revolução tecnológica, mas também, com uma revolução de
hábitos, costumes e valores humanos5. Tempos Modernos (1936) levanta
ainda uma questão importante do século XX: o conflito homem versus
máquina, no qual o progresso é direcionado para reduzir o ser humano à
condição de uma peça a mais na linha de produção industrial (VIVEIROS,
2003:38).
Fig. 1 Tempos Modernos (1936).
24
5 Tempos Modernos (título original – Modern Times); filme lançado em 1936, em preto e branco, com duração de 87 minutos. Charles Chaplin dirigiu e protagonizou Tempos Modernos, cujo enredo foi ambientado nos anos 30, era da Depressão Americana após a queda da bolsa em 1929. O filme procura retratar às conseqüências nefastas da industrialização, da substituição do homem pelas máquinas. Usando a linha de montagem proposta por Henry Ford, Chaplin mostra que as máquinas são engrenagens que escravizam, atormentam e enlouquecem os operários "em nome" do progresso tecnológico e a serviço de lideranças gananciosas (VIVEIROS, 2003: 39).
O sujeito é confrontado com a sua própria criatividade e os abismos
que essa mesma criatividade foi capaz de inventar. Ao mesmo tempo
maravilhado com o progresso, o sujeito também é assombrado pelo futuro
que desconhece, pela expansão do seu poder através da racionalidade e
das descobertas científicas. Homens e mulheres – sujeitos humanos em
potencial que experimentam as possibilidades de descobertas científicas,
compartilhando tempo e espaço, seus e dos outros, vivenciando as
alterações sociais dos novos tempos e o turbilhão de transformações que se
sucedem uma após outra, vivem o que se denominou modernidade.
Encontramos, às portas do século XX, um fenômeno que transforma
todo o contexto que permeou a vida em sociedade do homem comum. Este
fenômeno estreitamente ligado à vida nas grandes cidades que se
originaram a partir da Revolução Industrial é denominado de multidões, ou
melhor, massa (ORTEGA y GASSET, 2002: 41).
Esta massa é dotada de uma influência social jamais vista, tem um
caráter peculiar, o de fazer prevalecer sua vontade. Essa massa quer ser
igual, quer ser uniforme, quer ter acesso a todos os bens, sejam materiais,
espirituais ou culturais. Esse fluxo de pessoas, que preenche todos os
espaços urbanos, teatros, cafés, hotéis e ruas, deseja a “posse dos locais e
utensílios criados pela civilização”, deseja ver – se reproduzida em imagens
e sons, quer alcançar tudo e todo ao mesmo tempo, quer nivelar – se por
igual, nos quatro cantos do mundo, deseja recriar o próprio corpo. Corpo que
é a representação espacial do seu eu no mundo (idem: 42). É a
padronização do sujeito humano, da industrialização da cultura desse
mesmo sujeito.
25
26
A palavra cultura, dentro de suas inúmeras definições, pode ser
pensada enquanto herança do ser humano, passada de geração a geração
em um grupo específico; costuma – se também equivaler cultura à tradição6.
Em 1871, Edward Tylor definiu “cultura” como “o conjunto de crenças, artes,
leis, moral, costumes, e qualquer outra capacidade ou hábito adquirido pelo
homem enquanto membro da sociedade” (TYLOR, 1871 apud WARNIER,
2000: 11 – 12). Essa noção de cultura permeia a identidade do indivíduo
enquanto ser único no mundo. Identidade aqui definida como o conjunto dos
repertórios de ação, de língua e cultura que permitem a uma pessoa
reconhecer sua vinculação a certo grupo social e identificar-se com ele.
Cultura e identificação têm um papel importante ao propor repertórios de
ação e representação, prontos para serem usados, permitindo que os
sujeitos ajam de acordo com as normas do grupo. Ao adotar estes
repertórios, eles afirmam sua vinculação, ao mesmo tempo em que agem
por conta própria, inclusive nos conflitos de poder e de interesse que se
opõe aos outros sujeitos (Idem: 18).
Pode – se afirmar ainda que a cultura é complexa, pois se estabelece
através de um conjunto de normas, de hábitos, de ação em conjunto com os
outros, e que é parte de um todo – o indivíduo enquanto membro de uma
sociedade. A cultura se define também pelo conjunto de práticas religiosas e
regras definidas sobre organização de família, do parentesco e dos grupos
políticos. Além desses atributos, a cultura é considerada única, com posição
geográfica definida ou localizada, e é um fator de identificação dos grupos e
de indivíduos e de diferenciação entre eles. As transformações do contexto
6 Tradição “é o que persiste de um passado no presente em que ela é transmitida. Presente em que ela continua agindo e sendo aceita pelos que a recebem e que, por sua vez, continuarão a transmiti-la ao longo das gerações” (PUILLON,1991 apud WARNIER, 2000:12).
27
histórico reformulam as culturas e a sua transmissão através dos tempos
(SANTAELLA, 2000: 23).
A noção de cultura está ligada ao sentido da unicidade, da
identificação dos grupos, e da diferenciação entre eles. Estas diferentes
culturas existentes ao redor do mundo sempre estiveram em contato entre
si, e em condições de troca umas com as outras, mas eram tidas pelos seus
membros como sendo um ponto central a ser seguido a partir dos grupos de
origem, garantindo assim a sua vinculação por vontade própria ao grupo a
que pertenceu desde que nasceu. Assim, a cultura pode ser padronizada,
pois os comportamentos tendem a serem repetidos, criando uma estrutura
reconhecível (SANTAELLA, 2003: 44). Estas ações garantiram que cada
cultura distinta fosse reconhecida como tal, ou seja, usos e costumes eram
associados a determinado povo, em determinado lugar do mundo, mesmo
em situações de troca com outras culturas. Porém, com o advento das
revoluções industriais, este contexto histórico começou a mudar.
Os avanços técnicos permitiram aos países envolvidos nestas
revoluções desenvolver produtos, ditos “culturais”, além de meios capazes
de difundir de forma homogênea estes produtos mundo afora. Segundo Jean
Pierre Warnier, em seu livro A mundialização da cultura (2000: 27).
“...foram consideradas como indústrias culturais aquelas cuja
tecnologia permitia a reprodução em série de bens que
evidentemente fazem parte do que é chamada cultura. As
imagens, a música e a palavra fazem parte das culturas
tradicionais. Conseqüentemente, o cinema, a produção de
suportes de música gravada (discos e fitas) e a edição de livros e
de revistas foram considerados como indústrias culturais...”.
28
De modo rápido, os países envolvidos com as Revoluções Industriais
puderam difundir sua própria cultura, além da cultura de outros para o resto
do mundo. Assim surgiu o que viria depois a ser chamado de indústria
cultural pela Escola de Frankfurt7. Denomina – se Escola de Frankfurt o
grupo de filósofos e pesquisadores alemães que, a partir da década de 20,
desenvolveu um pensamento crítico ligado principalmente à cultura de
massa e aos produtos culturais. Dedicaram – se também às reflexões e
críticas sobre a razão, a ciência e o avanço do capitalismo. Os pensadores
da Escola de Frankfurt consideraram a racionalidade tecnológica do mundo
moderno uma nova forma de dominação. A idéia de deixar a ciência mais
acessível à sociedade e, assim favorecer a reflexão coletiva marca o
trabalho desses filósofos. Suas idéias influenciaram o movimento estudantil
alemão norte – americano no final dos anos 60. Entre os filósofos desta
Escola destacamos: Walter Benjamin, que discutiu a arte e a cultura do
século XX em A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade
Técnica (1936), reflexões sobre a perda da aura. Por aura entende-se o
conjunto dos traços de autenticidade, autoridade e unicidade das obras de
arte, aquilo que faz do objeto de arte algo único e irreproduzível. Essa perda
da aura abordada por Benjamin vem acompanhada de alterações impostas
pelo surgimento da cultura de massa e pela reprodução técnica, que em
certo sentido, altera os pressupostos sociais do que vem a ser considerado
como obra de arte (CARCHIA, 2003:45). Até o século XIX, a obra de arte era
vista como inacessível e irreproduzível, mas diante da emergência da
7 Escola de Frankfurt – escola que reuniu filósofos influenciados pelas idéias de Karl Marx e Max Weber (1864-1920), e que se contrapõe ao Iluminismo e ao Funcionalismo de Émile Durkheim (1858-1917), concebe a sociedade como um organismo com funções específicas, desconsiderando o processo histórico. Entre os pensadores vinculados ao grupo de Frankfurt destacam-se Walter Benjamin (1892 – 1940), Theodor de Adorno (1903 – 1969) e Max Hokheimer (1895- 1973). Junta-se a eles, mais tarde, Jürgen Habermas (1929 -), responsável pela difusão da Teoria Crítica, conjunto de textos dos principais filósofos frankfurtianos (WIGGERSHAUS, 2002: 56).
29
massa, o surgimento da fotografia e, posteriormente, do cinema tornam a
reprodução do original indistinguível da cópia, anulando a distância entre a
obra de arte e as massas. Sem a aura, a recepção da obra de arte deixa de
ser contemplativa e ótica e passa a ser mais tátil, dirigida a olhares
ocasionais, fragmentados. O cinema, dentro deste contexto, encarna a
aproximação das artes à massa. Surge um novo modo de usufruir a obra de
arte, um modo de usufruir distraído, anestésico, sem reflexão, sem
referencial. Assumindo, deste modo, o lugar das artes tradicionais,
encontramos a edição de livros impressos, o cinema, a televisão, o
espetáculo, e a mídia que cria um universo paralelo.
Theodor Adorno, outro filósofo da Escola de Frankfurt, dissemina o
conceito de indústria cultural que diz respeito aos bens produtos – culturais,
difundidos pelos meios de comunicação de massa, que impõem formas de
comportamento e consumo. Segundo Adorno, a indústria cultural caracteriza
– se pela exploração comercial e pela vulgarização da cultura, produzindo o
entretenimento e não a reflexão (WIGGERSHAUS, 2002: 103). Além dessas
contribuições, os filósofos da Escola de Frankfurt previram, de modo
profético e prefigurativo, os efeitos da Revolução Industrial sobre a cultura
de modo geral, a desterritorialização e a crise do sujeito do século XXI. Os
pensadores da Escola de Frankfurt construíram uma reflexão profunda sobre
a formação da cultura em torno de uma indústria de entretenimento como
efeito das Revoluções Industriais do século XIX (idem: 105).
A partir da fabricação em série dos produtos ditos culturais surge uma
terceira Revolução, denominada Estético – tecnológica,diretamente
imbricada com as transformações sociais e econômicas entre o século XIX
30
e XXI Trata-se de uma nova forma de produção das artes, que foi
denominada por Walter Benjamin como a era da reprodutibilidade técnica.
Essa questão se coloca diante dos novos meios de produção que surgiram e
que impulsionaram a fabricação em série de produtos culturais e o acesso a
estes bens a uma grande massa de consumidores. Nesta questão, Benjamin
deixa claro que não se refere à imitação da arte como forma de aprendizado,
mas à reprodução com fins de obtenção de lucros. Esta reprodutibilidade
técnica caracteriza a perda da autenticidade na criação artística. Este
processo de reprodução técnica foi se formando ao longo da história, sendo
concretizado como forma de arte em série entre o século XIX e XX. A pintura
foi reproduzida pelas artes gráficas, pela fotografia e por fim, ganhou
movimento no cinema e na televisão. O século XX foi o palco dos
espetáculos da era da reprodutibilidade técnica, presenciando a evolução do
cinema, a invenção do rádio, da televisão, e por último, a rede de
comunicação virtual – Internet. Estes meios denominados midiáticos foram
além de qualquer expectativa estabelecida, surgindo um fenômeno cunhado
de cultura de massas. Segundo Santaella, esse fenômeno é derivado “da
explosão dos meios de reprodução técnica – industriais: jornal, foto, cinema -
seguido da onipresença nos meios eletrônicos de difusão – rádio e televisão”
(2003: 52).
Dentro deste contexto, a relação entre o homem e a técnica é
marcada por mutações ocorridas ao longo dos tempos, visíveis em uma
materialidade associada à idéia de progresso, mas também na própria
definição do papel da técnica. Toda a experiência humana passa,
necessariamente, pelo campo da técnica. As suas manifestações são
irreversíveis e fundadoras de ambigüidades. Embora, na cultura ocidental, a
31
máquina seja naturalmente considerada como símbolo da atividade técnica,
a verdade é que se trata de um campo complexo que abarca outro tipo de
experiências, para além do fabrico de artefatos, remontando aos primórdios
da existência humana. A compreensão da sua natureza é indissociável do
próprio percurso da razão e das suas manifestações materiais. Nesta
dissertação a questão da técnica estabelece os caminhos que levam à
concepção do sujeito contemporâneo e à necessidade de revelar o segredo
da criação de um sujeito por meio do seu simulacro corpóreo e da
representação da sua vida cotidiana.
Assim, o tema das criaturas construídas à imagem do homem passa a
ser abordado por um conjunto de linguagens, que recorrem tanto à literatura,
à religião ou à arte, bem como à linguagem da ciência e da técnica. Cada
época introduz a sua solução para a construção dessas criaturas. Na
modernidade será, assim, sucessivamente assumida pela magia, pela
mecânica, pela automação, pela informática, pela biologia (BRETON, 1995:
15 a 17).
Apesar do caráter de modernidade de que se reveste o tema das
criaturas construídas à imagem do homem, este tema constitui uma
realidade antiga, sucessivamente abordada quer pela mitologia, quer pela
religião ou pela magia, quer pela literatura, quer pelo cinema ou ainda pelo
universo da ciência e da técnica. Existe alguma ligação entre todas as
criaturas construídas à imagem do homem ao longo dos séculos? (idem: 9)
Nota-se que a convergência desta ligação está centrada na consciência do
homem da sua própria existência, consciência esta subjetiva, que o
confronta com o fato indiscutível de que é um ser finito, e que seu domínio
ou poder sobre a vida e sobre o confronto inevitável com a morte é nulo. Ao
longo da vida, o sujeito se depara com sentimentos, emoções, conflitos de
toda espécie, o desconhecido que se impõe a todo o momento, experiências
humanas com as quais o sujeito aprende a conviver dia após dia.
A necessidade de encontrar uma explicação e de dar sentido aos
mistérios da vida sempre fez parte da natureza humana desde os tempos
mais remotos; o sujeito, além de observar a natureza, observava a si próprio,
a morte, a dor, os sonhos, o medo, a angústia, o desejo de criar, de capturar
a si mesmo e de se recriar através de um dispositivo artificial maquínico,
moldado, segundo a época. Criando, assim, um ser à própria imagem, o
sujeito pressupõe ter desvendado o segredo da vida, da beleza, da
imortalidade, da inteligência (ibidem: 11). O homem, ao longo da história,
projeta o seu desejo de ser Deus através da invenção de criaturas à sua
imagem e semelhança, na esperança de reproduzir os segredos da criação
divina.
As lendas sobre a iniciativa do ser humano de fabricar um outro ser à
sua imagem e semelhança existem em praticamente todas as culturas. São
narrativas que transitam ao longo dos tempos contando que algum titã, um
mago ou xamã, desafiando os céus e as forças divinas, deu vida a uma
criatura qualquer. Relatos que herdamos da Grécia desde os tempos em que
surgiu o mito de Prometeu e que nos chegam até hoje, envoltas com outros
nomes e novas fórmulas, mas que na verdade tratam da mesma coisa: o
extraordinário desafio do homem de criar um ser à sua imagem e
semelhança.
Para explicar a origem do saber, os gregos criaram o mito de
Prometeu. Este mito relata uma querela entre deuses, e mostra o início do
32
mundo. Neste mundo, a vida humana nada significava para os deuses.
Prometeu, ao tomar para si a tarefa da criação, tornou a humanidade
superior, foi ao Céu e acendeu no Sol uma tocha que trouxe para a terra
entregando esta fagulha de luz ao homem 8 (HAMILTON, 1997: ).
Prometeu, ao roubar uma fagulha de fogo e entrega – la ao homem,
promove o deslocamento deste, de seu estado de acomodação para o do
aprendizado, construindo o mito da técnica, no qual através do fogo, o
homem aprende a construir casas, a iluminar as trevas noturnas, a prolongar
a vida, a tratar de doenças, a inventar variados instrumentos, aprende a lidar
com números, aprende à escrita e a interpretar os sonhos. A posse do
fogo representa o despertar do homem para sua realidade material, a saída
das trevas, o dom da consciência transcendental da condição humana.
Desse modo, o mito de Prometeu traça o caminho do homem em busca do
saber inerente à condição do “fazer humano”.
Fig. 2 Prometeu leva o fogo á humanidade
Criaturas artificiais, seres de ficção, robôs e autômatos sempre
estiveram presentes na cultura Ocidental, desde suas raízes até os dias de
33
8 O material para a narrativa deste mito foi extraído de dois poetas, o grego Ésquilo e o romano Ovídio.
hoje. Há um desejo de se capturar e compreender o humano imitando-o,
representando – o e fabricando cópias através de dispositivos artificiais.
Pode-se dizer que boa parte da mitologia antiga: grega, romana ou oriental,
enfatiza as virtudes e os perigos em que incorre o ser humano, ao tentar
ultrapassar os limites fixados pelas leis naturais que regem o universo.
Existem, em quase todas as culturas, uma infinidade de narrativas que
registram essas tentativas fracassadas ante o destino inexorável da
humanidade.
Fig. 3
Lilith – a segunda Eva
Em certo sentido, poderíamos dizer que o primeiro destes mitos
encontra-se na própria narrativa sobre a criação do homem, na Bíblia, no
Livro do Gênesis. Afinal, Deus molda o homem a partir de uma mistura de
água e terra, e por essa razão, é chamado “Adão”, nome oriundo de “terra”,
Adamá; e depois lhe insufla o sopro da vida. Lilith também é uma dessas
figuras mitológicas. Segundo escreve Siegmund Hurwitz, em seu livro
Lilith – a primeira Eva (2006), o primeiro capitulo da Bíblia conta a história
de Adão e Eva, porém, segundo o Zohar - comentário rabínico dos textos
sagrados - Eva não teria sido a primeira mulher de Adão. Quando Deus criou
Adão, ele fé – lo macho e fêmea, depois o cortou ao meio, e chamou a esta
nova metade Lilith e deu – a em casamento a Adão. Mas Lilith recusou, não
34
queria ser oferecida a ele, tornar – se desigual, inferior, e fugiu para ir ter
com o Diabo, por isso Lilith é identificada com os atributos dos seres
noctívagos e, por extensão, com as trevas, a escuridão sendo sua natureza
maligna, demoníaca, de espírito violento e tempestuoso.
A partir dessas narrativas bíblicas surge à lenda do Golem, uma
criatura artificial da tradição mística judaica, baseada no plano divino, da
ressurreição, e da salvação. Isaac Bashevis Singer no livro O Golem (1991)
nos fala desse singular personagem que surgiu no contexto da teodicéia
judaica e que legou sua contribuição para o mito da criação de um ser
humano artificial.
Residia em Praga, no século XVI, um rabino chamado Judá Loew ben
Bezalel, que dispunha do poder de curar os enfermos conjurando forças
sobrenaturais. Para ajudá-lo na missão de defender sua comunidade, o
rabino criou um Golem de barro, com um dos nomes de Deus gravados na
testa. Com o poder do Sagrado Nome, o Golem viveria o tempo suficiente
para realizar a missão a que fora destinado – proteger os demais judeus no
gueto de Praga.
35
Fig. 4 O Golem - Como Veio ao Mundo
(1920)
O rabino, orientando – se pelas instruções existentes nos escritos
sagrados, aprendeu que as disposições alfabéticas indicavam que era
preciso, partindo das letras IHVH, faze – las combinar 231 vezes para dar
36
vida a uma criatura, ou o dobro, isto é, 462 vezes, se desejasse fazer com
que ela, depois de posto em pé, voltasse ao pó original. Deu – se o milagre:
do monte de pó uma figura humana começou a ter vida. Era um Golem, algo
amorfo, sem formas ainda, que não disfarçava sua aparência de ter vindo do
barro. Dizem que o rabino, para dar um sopro de vida àquela argamassa de
aspecto humano, escreveu então sobre a testa da criatura a palavra EMET
– Verdade.
Após algum tempo, o rabino resolveu que já era hora de o Golem
voltar ao pó de onde havia saído, pois já havia cumprido a sua missão . O
rabino então se curvou sobre ele e recitou uma pequena oração apagando a
primeira letra do Sagrado Nome Emet da testa do Golem, ficando assim o
termo Met – Morte; beijou a argila onde o Santo Nome estivera gravado, o
Golem deu um último suspiro e deixou de ter vida.
Como outros mitos e lendas, este conto em particular tem sido ligado
aos avanços da inteligência, sendo relacionado à tecnologia e à informática,
e para o nosso contexto serve para ilustrarmos que, no decorrer do tempo,
essa característica de inventar ou criar um ser à nossa imagem e
semelhança permeia toda história humana. Além desse significado mágico e
mecânico, o mito do Golem pode ser encontrado em várias expressões
artísticas da era moderna, do Romantismo ao Expressionismo, da literatura
à ficção cinematográfica.
Bonecos de barro, criaturas nefastas são próprias da criação de um
simulacro humano: nem vivo nem morto, nem máquina inerte nem humano
certo. Ser sem alma ou sem consciência, é um eterno errante que,
37
exatamente pela sua condição, não cessa de aparecer, de se apresentar
ante o olhar “estranho” dos indivíduos. O zumbi, o robô, o sonâmbulo, o
monstro, o replicante são algumas representações do simulacro corpóreo.
Quase três séculos depois do Golem de barro judaico, no ano de
1816, à beira do lago Genebra, na Suíça, os poetas Lord Byron e Percy
Shelley discutiam sobre a natureza da origem da vida e de que forma coisas
inanimadas poderiam voltar a mexer – se. Na mesma sala, escutando – os
atentamente estava Mary Shelley, mulher de Percy, que, algum tempo antes,
interessara – se pelas histórias fantasmagóricas dos tempos góticos da
Alemanha, entre elas, possivelmente, a lenda do Golem.
No início do século XIX, os europeus estavam impressionados pelas
experiências de Luigi Galvani com a "eletricidade animal". Luigi Galvani
havia descoberto, em torno de 1780, que quando se tocava uma
extremidade de um músculo dissecado da perna de uma rã, com um metal e
a outra extremidade com outro metal diferente, colocando – se em contacto
dos dois metais, o músculo se contraía.
A nova fonte de energia estava no nascedouro e logo se imaginou a
possibilidade de aplicar – se uma carga qualquer a um corpo inerte e ver o
que acontecia. Inspirada pelos avanços da época, Mary Shelley começou a
escrever aquela que viria ser considerada a primeira obra de ficção
científica. O romance relata a história de Victor Frankenstein, um estudante
de Ciências Naturais que constrói um monstro em seu laboratório, a partir de
restos de cadáveres, criando um corpo fragmentado e que ganha vida
através de descargas elétricas.
A história de Frankenstein tornou-se um clássico do gênero: o rabino
Judah Loew de Praga foi substituído por um cientista, o doutor Victor
Frankenstein de Ingolstadt. E, claro, as combinações cabalísticas cediam à
vez às experiências de Galvani, executadas pelo jovem doutor. O Golem
renascia atualizado, produto da tecnologia da Revolução Industrial em
marcha. Porém, como o monstro feito de barro do gueto de Praga, a criatura
do Dr. Frankenstein não era agradável de ser vista. Se, tecnicamente o
trabalho do sábio fora perfeito, meticuloso, preciso, a aparência do produto
final era espantosa, terrível, assustando quem quer que pusesse os olhos na
criatura, ante o horror daquela visão de uma figura fragmentada e construída
com retalhos de cadáveres.
Como se vê, comum, as duas histórias aqui mencionadas, a medieval
e a moderna, cabalística ou científica, predomina a crença de que alguém
assim fabricado, além de representar um ato de impiedade, acaba por fugir
ao controle do seu criador, trazendo grandes desgraças para a comunidade.
Fig. 5 Dr. Victor Frankenstein e sua criatura
(1931).
Acredita-se que o romance Frankenstein (1818), de Mary Shelley
tenha sido fundamental no estabelecimento de uma visão negativa da
ciência, mostrando pela primeira vez a imagem do cientista tomado pela
38
paixão e pela loucura, "criando" um monstro que foge ao seu controle e
ameaça a sociedade. Surgia o "cientista louco" e a ciência como um
instrumento perigoso e incontrolável; ciência e tecnologia reconstruindo um
corpo fabricado em laboratório, à imagem e semelhança do homem.
No século XIX, quando o domínio da técnica, as Revoluções
Industriais e as descobertas científicas transformaram radicalmente o modo
de vida do sujeito deste período, à projeção do humano, na literatura passou
a ser representada com uma aura de fascinação e de horror ao mesmo
tempo, criaturas inspiradas pelo desenvolvimento e pelo progresso da
ciência.
Fig. 6 Fausto (1926)
O Fausto de Goethe (1808) é uma dessas criaturas9. O Fausto
proposto por Goethe decorre da necessidade do próprio autor de representar
um novo tempo, tempo das grandes construções e das transformações
39
9 Em 1808 Goethe publicou a primeira parte do livro Fausto. Nesta primeira parte, o demônio, Mefistófeles, obtém permissão nos céus para tentar Fausto, um intelectual desiludido com o mundo. Em seu gabinete, Fausto medita sobre sua existência e o sentido da vida, que não consegue desvendar; e pensa em suicídio. O demônio se apresenta e lhe propõe acompanhá-lo em sua vida terrena, em troca de sua alma, no além. O contrato é selado com o sangue de Fausto, que daí por diante tem uma vida de maravilhosas aventuras. Goethe dramatizou um relato histórico sobre um verdadeiro Fausto, que teria vivido na Alemanha no final do século XVI. Era um mágico, astrólogo
40
sociais do mundo em constante mudança, ampliando – se para todos os
lados e obrigando aos que nele vivem a uma constante adequação às novas
circunstâncias da vida.
“No princípio era a Ação”, assim Fausto (1808) redefine o papel de
Deus e assume o lugar Dele no mundo terreno, um Deus voltado para a
ação, para o “fazer”. Fausto faz um pacto com o diabo – Mefistófeles – um
pacto diferente, pois envolve “o desejo de desenvolvimento”, desejo de
poderes humanos elevados à máxima potência, o poder para imitar Deus,
desejo esse vinculado às transformações do mundo físico, moral e social em
que Fausto vive (BERMAN, 2003: 53). O poder de Fausto está em conseguir
reunir recursos materiais, em dominar a técnica, transformando esse
domínio em novas estruturas da vida social. Sendo uma obra concebida na
Era das Revoluções, Fausto mostra uma sociedade dinâmica,
empreendedora e livre, na qual o sujeito vive a mercê do desenvolvimento.
O contraponto desse sujeito livre para ir ao encontro das mudanças é
encontrado no Frankenstein de Mary Shelley, (1818). Ao contrário de
Fausto, que necessita do mundo para encontrar a sua essência criadora, Dr.
Frankenstein busca a solidão absoluta para poder criar a vida, inspirado
pelos avanços da ciência.
Criaturas nefastas e monstruosas corporificam os medos e as
esperanças da sociedade de cada época, retratando em imagens e mitos a
própria idéia da criação de um ser à imagem e semelhança do homem, bem
como a idéia do progresso da ciência, que povoa o imaginário dos indivíduos
e alquimista que andava pelo país gabando-se de poder predizer o futuro, explorando a credulidade do povo ignorante e supersticioso, e dele se dizia que tinha parte com o demônio.(HAUSER, 1998: 595).
41
ao longo da história. A concepção profética de um sujeito demoníaco, dotado
de poder ou desumanizado pela ciência, adquire relevância quando estes
mesmos elementos, antes imaginados, tornam – se realidade através do
espaço e do tempo ficcionais. Dentro deste contexto, o cinema é capaz de
evidenciar misteriosamente estes determinantes, mostrando o simulacro
daquilo que um dia poderá ser a realidade cotidiana daquele sujeito (MORIN,
2005:13).
Simulacro que surge como paradigma em um mundo manipulado pela
técnica, pela ciência, em uma sociedade que se move por meio de modelos
e na qual tudo pode ser simulado. Simular significa imitar, representar,
reproduzir, mas significa também mentir, enganar ou fingir. Baudrillard
considera a simulação como modelo hipotético, distante da idéia tradicional
de representação, mas relacionada com os meios de comunicação de
massa. Braudrillard classifica os simulacros em três categorias:
1. Simulacros naturais baseados na imagem, na imitação e no
fingimento, harmoniosos, otimistas e que visam à restituição ou
à instituição ideal de uma natureza à imagem de Deus;
2. Simulacros produtivos baseados na energia, na força, na sua
materialização pela máquina e em todo sistema de produção.
Objetivo “prometiano” de uma mundialização e de uma
expansão contínua, de uma libertação de energia indefinida;
3. Simulacros de simulação, baseados na informação, no modelo,
no jogo cibernético (BAUDRILLARD, 1991: 151).
O filósofo francês Jean Baudrillard apresenta o termo simulacro como
sendo uma realidade além da realidade, que, apreendida por todos no
cotidiano, transforma tudo, do mais próximo ao mais distante, em uma noção
de realidade construída ao modo da verossimilhança, ou seja, semelhante à
42
verdade, ou que parece verdadeiro. Segundo Braudrillard, são considerados
simulacros todo tipo de estereótipo, de modelo, cujo significado funciona por
si só, sem a necessidade de um referente físico ou factual.
São signos ou imagens com sentidos próprios, produzindo realidades
autônomas além da realidade de fato. Com o avanço das tecnologias de
comunicação, podemos hoje “viver” situações que, em um plano de verdade
mais palpável, não existem, ou melhor, são medidas de tal modo que o
existente é apenas a versão, o modelo, ou o simulacro. A própria ficção de
nossa época utiliza – se da metalinguagem dos simulacros para construir
mundos imaginários no qual tudo que “existe”, na verdade, “não existe”. A
noção humana da realidade se dá por meio de modelos apreendidos durante
toda uma vida em sociedade e da interação com outros. Simulacros é a
extrapolação destes modelos, assumindo estes o papel da própria realidade
vivida.
A conseqüência desses simulacros nos leva à hiper – realidade, que
engana a consciência por separar qualquer engajamento emocional real,
pois parece que nela mesmo as emoções são de certo modo e em alguma
escala condicionada por elementos hiper – reais, concebidos previamente
com essa intenção, e reproduções de aparência fundamentalmente vazia,
nas quais se tenta implantar um pseudo – preenchimento. Podemos
considerar exemplos de simulação de uma hiper – realidade:
• Uma árvore de Natal de plástico que parece melhor do que uma
árvore de verdade poderia ser;
• Uma revista com fotos de modelos "retocadas" por computador;
• Quaisquer fatos históricos, do presente ou do passado, promovidos
massivamente, como que ressuscitados;
43
• A TV e o cinema em geral, devido à criação de um mundo de fantasia
e dependência que o telespectador estabelece com esses mundos
fantásticos;
Ciência, técnica, tecnologia, padronização e simulação são palavras que
fazem parte da reprodutibilidade técnica que estão arquitetando o sujeito –
maquínico da nossa hodierna sociedade.
Em poucos anos, a humanidade caminhou decisivamente no sentido
do domínio técnico dos artefatos vivos. Este domínio da técnica tem
produzido vários questionamentos, que têm levado à reconsideração da
noção do sujeito. Um sujeito formatado a partir das imagens sugeridas pela
comunicação de massas, pela televisão, pelo cinema, pelo ciberespaço, um
sujeito criado a partir do que se supõem as imagens de um ideal de sujeito
hibridizado pelas máquinas.
Partindo destes pressupostos vindos do simulacro como efeito das
Revoluções Industriais, é possível analisar sob outra ótica, à luz do cinema –
utilizando o filme Blade Runner (1982) - os atuais imaginários da ficção –
científica que cercam as tecnologias dos sujeito – maquínico desta
dissertação.
44
2. Efeitos da Revolução Industrial.
“...Existe um outro tipo de linguagem, uma outra forma de
comunicação: a comunicação através de sentimentos e imagens.
Trata – se do contato que impede as pessoas de se tornarem
incomunicáveis e que põe por terra todas as barreiras. Vontade,
sentimento, emoção – eis o que elimina os obstáculos entre as
pessoas que, de outra forma, encontrar-se-iam nos lados opostos
de um espelho... A tela se amplia, e o mundo, que antes se
encontrava separado, passa a fazer parte de nós, tornando-se
uma coisa real...” (TARKOVSKY, 2002: 9).
É notório que o cinema, através das narrativas de ficção científica, leva
ao público sentimentos, emoções e dúvidas com as quais esse mesmo
público não teria contato de outro modo. Portanto, existe na representação
cinematográfica uma magia que perpassa o imaginário do espectador, lugar
no qual imaginação e realidade se misturam. Deste modo, a ficção científica
traz para a tela os híbridos na figura dos robôs, replicantes, clones e
"cyborgs", criaturas simultaneamente homens, animais e máquinas,
produzidos por meios naturais, mas também construídos, cuja criação se dá
de forma manipulada, não prevista sem a interferência técnica. Esses seres
criados em laboratórios não possuem história, tradição, memória. Esta foi a
grande questão do filme Blade Runner, os replicantes sentiam e se
emocionavam como nós, os espectadores.
O século XIX nos legou um dos inventos mais originais, o cinema – a
imagem em movimento. Imagens que passam pelos olhos sem se fixar e
que dão à ilusão de movimento. Movimento este que dá corporeidade aos
objetos, concedendo–lhes uma alma, uma autonomia ao sonho projetado na
tela, uma forma de tempo, tempo impresso nos negativos dos filmes e que
se harmonizam e se equilibram através das montagens cinematográficas
(idem: 64).
O cinema é capaz de se apropriar do tempo, registrando de forma
incondicional as manifestações e realidades humanas, de dar alma às
memórias. Desse modo, os filmes tornam – se cúmplices dos sonhos
humanos, os filmes marcam de modo indelével na memória dos
espectadores o tempo passado na tela, fixa na alma desses espectadores
vestígios que só o tempo vivido é capaz de trazer em seu interior (idem: 66).
As inovações técnicas e as investigações sobre a ótica e a mecânica
alcançaram seu desenvolvimento pleno no cinematógrafo dos irmãos Louis e
Auguste Lumiére. Este aparelho permitiu que fossem projetadas imagens em
movimento em uma tela, dando origem ao que hoje conhecemos como
cinema. Foi em 1895, no Grand Café de Paris, que os irmãos Lumiére
oficializaram esta nova arte com a primeira projeção pública, tornando – se,
com o tempo, uma das mais expressivas formas de arte da sociedade de
massa.
Georges Méliès, um dos espectadores da sessão de 1895, viu no
cinema uma forma de explorar e melhorar seus espetáculos de magia. Se
em um primeiro momento, Méliès usa o ilusionismo, através de truques de
montagem, em um segundo momento transfere os meios do teatro para a
tela, introduzindo elementos como: argumento, direção de atores, guarda-
roupa, caracterização, cenários, iluminação, divisão em atos, os quais
transformam o cinema em um meio de representação (VIVEIROS; 2003: 20).
45
Fig. 7
Viagem à Lua (1902) – Geoges Méliès
46
Nunca antes uma invenção havia afetado tantos indivíduos, levando-
os ao mundo do imaginário, do irreal e da fantasia com tanta realidade.
Descobriu – se que seria permitido daquele momento em diante “sonhar de
olhos abertos” (DROGUETT, 2004: 159). Esta era a única fábrica que ainda
não tinha sido inventada, uma fábrica de sonhos, de fantasias e de mistério.
Enfim, o homem do século XIX vê a possibilidade de representar o que viria
a ser a reprodução de si próprio, a industrialização da sua alma, do seu
espírito, que se processa nas imagens projetadas na tela (MORIN; 2005:
13). Essa conjunção entre a realidade da imagem em movimento e a
corporeidade das formas e objetos projetados na tela levou o espectador da
nova arte a uma sensação de vida concreta e à percepção de uma realidade
objetiva, pois ele vê a tradução de si próprio para um tempo – espaço que já
existiu, mas não existe mais. Dentro deste contexto, o sujeito se vê
reproduzido por um modelo idêntico a si próprio, simulacro bastante
convincente, a qual ele concede o poder subjetivo da realidade (METZ,
2002:34). Ainda sob o impacto das revoluções, o sujeito se vê diante de uma
nova possibilidade, a de se recriar a partir da ficção cinematográfica. O
cinema foi o suporte ideal para representar os contrastes violentos, das
sombras, da névoa sinistra, das visões criadas por um estado de alma
sombrio e atormentadas pelos efeitos das revoluções, das guerras do
começo do século XX e do futuro que estava por vir.
Estes elementos puderam ser transpostos com rara fidelidade para o
cinema, que lhes forneceu um suporte a um só tempo concreto e irreal. No
início do século XX, os meios visuais do cinema tiveram a oportunidade de
expressar sua força de alcance, ao serem utilizados para mostrar as nações
em guerra, as atividades básicas dos seus adversários (FURHAMMAR e
ISAKSSON, 1976: 7). Os filmes passaram a refletir sobre os pensamentos e
47
atitudes da sociedade, sofrendo influências dos movimentos de arte
existente em cada época. Apropriando – se de elementos comuns
preferidos pela sociedade, o cinema tornou – se um fenômeno de massas,
passou a satisfazer o seu público seguindo normas estéticas, religiosas e
políticas com as quais a grande massa se identificava. O cinema americano,
no início do século XX é o maior expoente dessa indústria, voltada para a
satisfação de todos, principalmente no que diz respeito à arrecadação de
altas somas nas bilheterias. Em 1907, a indústria americana já estava
organizada em três níveis: produção, exibição e distribuição, divisão esta
que proporcionou a estandardização do cinema. Nesta mesma época, o
cinema inicia o desenvolvimento de uma arte de narrar histórias através de
imagens, de mostrar padronizações de pensamentos e comportamentos
humanos, da representação simbólica da realidade do humano e de sua vida
como tal.
Dentro deste contexto, o sujeito do século XX reproduziu no cinema
um espelho da realidade da terra e do homem. Um olho mecânico que capta
a vida para reproduzi – la, são as imagens da vida real reproduzidas como
forma de espetáculo, espetáculo que muitas vezes se revela para o sujeito
como um estranhamento de si próprio, pois o sujeito se vê refletido na tela,
com alma e sentimentos que só a ele podem ser atribuídos, mas que não
são seus, já que um outro tomou o seu lugar.
Por esse viés encontramos no Expressionismo Alemão uma das
formas mais representativas do mundo e do homem modernos10. O caráter
apocalíptico do Expressionismo atinge tanto os objetos da realidade quanto
os produtos da imaginação pura. A capacidade de evocar imagens fúnebres
10 Vanguardas artísticas e literárias abriam espaço para experimentos estéticos, opondo-se às estruturas de poder autoritárias provenientes do período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial.O Expressionismo foi um movimento artístico de vanguarda que surgiu na primeira década do século 20, um fenômeno hegemônico cultural que surgiu na Alemanha, presente nas artes gráficas, nas pinturas, na escultura, no teatro, na musica, na dança e no cinema, assumindo formas mais radicais, onde a expressão do sentimento tem mais valor que a razão (DIAS, 1999:14).
e nefastas, em busca do eterno e da inquietação de um sujeito aterrorizado
pelos fenômenos que constata ao seu redor, são traços da incapacidade do
sujeito moderno de decifrar os mistérios à sua volta A percepção desse
sujeito emergente do caos da guerra e do desenvolvimento técnico e
científico que o atormentam, são também elementos que caracterizam o
sujeito humano – maquínico, objeto de estudo nesta dissertação (EISNER,
1985: 21).
O Expressionismo, com suas visões abstratas, dramáticas e
apocalípticas, tornou-se extremamente popular na Alemanha do pós –
Primeira Guerra Mundial, e influenciou decisivamente o surgimento do
cinema expressionista, inaugurado com o clássico O Gabinete do Dr.
Caligari, de Robert Wiene, em 1919, seguido por Metropolis de Fritz Lang,
em 1926, períodos que integram a República de Weimar. Os anos da
República de Weimar ocupam um papel central na história do cinema
alemão, registrados na memória coletiva como os "anos dourados", em que
a atmosfera cosmopolita, liberal e urbana deu o tom ao repertório cultural do
país.
48
Fig. 8 Nosferatu (1922) F.W. Murnau
A República de Weimar, assim chamada porque a sua constituição foi
assinada em Weimar, uma cidade da Saxônia, logo após a derrota da
Alemanha na Primeira Grande Guerra Mundial. Como expressão artística o
49
cinema foi um dos principais representantes da República de Weimar e pode
ser dividido em três fases. A primeira, entre 1919 e 1924, com o surgimento
do Expressionismo; a segunda, entre 1924 e 1929 – os anos da Nova
Objetividade (Neue Sachlichkeit) – e a terceira, entre 1929 e 1933, os anos da
introdução do cinema falado e de uma politização que precedeu a ascensão
dos nazistas ao poder (SANTANA, 1993: 136).
O Expressionismo, no cinema alemão, é uma representação de
determinados aspectos do mundo, inspirada no temor ao desconhecido e ao
sobrenatural. O cinema expressionista busca a essência das coisas, daquilo
que não se vê, mas que se sente. São visões anti – naturalistas que
demonstram o medo do racional e do irracional, de um mundo povoado por
incertezas e sombras, da representação do horror à morte, dos sentimentos
de terror e misticismo, reflexos de uma cultura em crise e do desalento
espiritual nascido nos campos de batalha da Primeira Grande Guerra. Este
momento vivido pela Alemanha; a derrota na guerra, a miséria e a
preocupação constante com o futuro próximo, aliados à atração pelo obscuro
e pelo indeterminado, bem como, tudo aquilo que foge a lógica da
casualidade e a abstração da realidade são a base do movimento em
questão. O teórico Wilhelm Worringer, em sua tese de doutorado
publicada em 1907, “Abstraktion und Einfühlung”, argumentava que
esta abstração nascia da grande inquietação que experimentava o homem
aterrorizado pelos fenômenos que se passavam à sua volta, e cujas relações
ou misteriosos contratempos eram incapazes de decifrar11.
11 Wilheim Worringer (1881- 1985), historiador de arte e um dos mais importantes teóricos da arte expressionista, cujas propostas aparecem em “Abstraktion und Einfühlung” (Abstração e Empatia), sua obra mais conhecida. O Expressionismo tratado aqui foi uma definição popularizada a partir de 1911 por Willheim Worringer para qualificar um conjunto de obras pictóricas, especialmente dos fauvistas Derain, Dufy, Braque e Marchet, então expostas em Berlim; e para opô-las ao Impressionismo. Mais tarde, o termo passou a definir toda a arte na qual a forma nasce não diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade (EISNER, 2002: 20).
50
Na dinâmica expressionista, o homem deixa de ser um elemento
ligado a uma moral ética ou religiosa, a uma obrigação social, à família, a
uma sociedade. A imagem do mundo se reflete no expressionista em sua
pureza primitiva, a realidade é subjetiva e existe apenas em nós. O
Expressionismo significa um subjetivismo levado aos extremos, a afirmação
de um Eu totalitário e absoluto, que forja o mundo à sua imagem e
semelhança. Retrata o homem formado pela situação social crítica e da
desesperança vivida pela Alemanha do pós – guerra, segundo escreveu o
autor anteriormente citado.
Os filmes expressionistas agrupam – se de acordo com a ruptura da
representação direta da realidade, realidade incapaz de ir além do visível.
Para o Expressionismo as coisas parecem não ser mais do que sonhos, são
apenas sombras às quais a vida lhes foge – “o homem já não vê, mas tem
visões” ou seja, vê através de visões o que está escondido por detrás da
realidade sensível (EISNER, 2002: 19). Os filmes expressionistas têm como
princípio uma visão subjetiva do mundo. Buscam na memória imagens para
a representação dessa visão; para atingir este estado de representação, os
expressionistas lançam mão de recursos como a iluminação estilizada, os
contrastes acentuados, os cenários incongruentes e excêntricos, os temas
surreais e góticos relacionados a realidades sobrenaturais, projetando na
tela um mundo subjetivo e louco, repleto de evocações fúnebres, de horrores
e de uma atmosfera de pesadelo. Assim, o crime, a morte, o terror e o
fantástico dominam o Expressionismo e expõem uma galeria de seres
sobrenaturais vindos das lendas e literatura alemãs.
Por conta das dificuldades do pós – guerra, os diretores de teatro
alemães estavam impossibilitados de produzirem cenários elaborados para
as suas produções expressionistas; o diretor Max Reinhardt confiou nos
cenários pintados, nas perspectivas bizarras e nos efeitos de luz para criar o
ambiente pretendido e atrair a atenção para as emoções individuais de cada
personagem. Estas técnicas inusitadas estariam na base de um novo
cinema do qual O Gabinete do Dr. Caligari (1919), de Robert Wiene, é o
primeiro exemplo paradigmático. O filme marca uma transição entre um
modelo de narração e filmagem arcaicas, dos primórdios do cinema, para
uma linguagem mais desenvolvida. No filme, dois homens sentados no
banco de um parque, em um asilo para loucos, trocam entre si relatos
insólitos. O mais jovem conta para seu interlocutor uma estranha história
ocorrida na pequena vila medieval de Holstenwall, de um hipnotizador que
controla um homem sonâmbulo para os seus propósitos malévolos. Sendo
a história de um louco, o filme leva – nos para um mundo que é a expressão
da sua loucura. A criação desta atmosfera pesada e fantasiosa foi criada a
partir de uma concepção estética expressionista na cenografia e objetos
cênicos, nos personagens, na iluminação (KRACAUER, 1985:65).
Fig.9 O Gabinete de Dr. Caligari (1919).
51
Em Caligari (1919), a cenografia expressionista conseguiu construir,
através de cenários pintados, a representação de uma pequena aldeia
medieval, com ruelas tortuosas e escuras, passagens estreitas espremidas
52
entre casas arruinadas. As linhas e planos tortuosos, oblíquos e abruptos do
cenário provocam no público um efeito muito diverso do que o que seria
obtido por uma composição visual mais harmônica. Os planos são
inclinados, as janelas são mais largas na parte de cima do que na base,
portas deslocadas se abrem alucinadamente. A soma destas imagens
expressionistas representa um mundo "interior", uma construção mental que
nega a realidade objetiva (idem: 75).
A visão de perspectivas falseadas e imprevisíveis, de formas
distorcidas, e a consciente intenção de evitar linhas verticais e horizontais,
despertam no espectador os sentimentos de insegurança, inquietação e
desconforto. Os figurinos usados pelos atores, os móveis e os demais
objetos cênicos incorporam – se fielmente a esta concepção. As
personagens, por conseguinte, movem – se num universo que lhes é sempre
incômodo e traiçoeiro, à exceção de Caligari e Cesare, mentores deste
mundo. Ruas sinuosas, edifícios com inclinações impossíveis, quartos
claustrofóbicos e cenários contorcidos criam uma imagem de extrema
instabilidade. A atmosfera é completamente surreal. O uso de linhas
oblíquas serve igualmente para dirigir o nosso olhar. Em O Gabinete do Dr.
Caligari (1919) há um caráter centrípeto da imagem, que concentra todo o
conteúdo. Nota-se ainda uma influência teatral, na qual não é utilizado o
conceito de fora de campo e a ação está perfeitamente controlada dentro do
quadro12 .
Dentro deste contexto, o filme O Gabinete do Doutor Caligari
(1919), com sua estética vanguardista atingiu um grau máximo de abstração
12 Fora de campo - o campo definido por um plano de filme é delimitado pelo quadro, mas acontece, freqüentemente, que elementos não vistos (situados fora do quadro) estejam, imaginariamente ligados ao campo por um vínculo sonoro, narrativo e até mesma visual (AUMONT, 2006: 132).
53
do universo real, de desconstrução da realidade sensorial e dos dados
objetivos da consciência. A nova arte, o domínio da imagem em movimento
conseguido pelo cinema, possibilitou que os elementos essenciais do
Expressionismo dessem vida a mundos paralelos, povoados por visões
subjetivas, misteriosas agitações do inorgânico e profecias inquietantes
sobre uma nova era, que foi chamada Modernidade.
Como já foi dito, o Expressionismo das sombras e incertezas tinha
como pano de fundo a instabilidade social e política que sucedeu à primeira
Guerra Mundial, e trouxe às telas cenários macabros e assustadores, que
podem ser considerados um reflexo do inconsciente da época. Definido
através de determinadas características formais e narrativas, o
Expressionismo alemão remete a uma profunda crise de identidade na
sociedade de massas. Sob o ponto de vista formal, pode-se dizer que o
Expressionismo foi um "fenômeno visual", através do qual conflitos como a
incerteza e o medo provocados pela instabilidade política e econômica foram
levados à tela por intermédio de personagens sombrios e perigosos. No que
diz respeito à narrativa, os filmes expressionistas tinham com freqüência os
perigos e as atrações da metrópole moderna como fio condutor.
Fritz Lang é outro grande símbolo da estética expressionista. Para ele
a tela passa a ser um espelho do que se entendia então por vida moderna e
urbana. O cinema de Lang marcou época, tanto na Alemanha quanto nos
Estados Unidos, ao abordar, com revolucionária concepção visual, temas
como a fatalidade e a luta inevitável do homem para escapar ao seu destino.
Seu filme Metropolis, produzido em 1926, traz à tona a questão da máquina
versus humanos, da escravidão dos operários e do surgimento das grandes
cidades (VIVEIROS, 2005: 51).
Fig. 10 A cidade do filme Metropolis
(1926)
Metropolis (1926) é um retrato do que poderia ser a consumação das
previsões mais sombrias dos tempos modernos, prognósticos nefastos e
ameaçadores para os seres humano, caótico para os espaços urbanos
das grandes cidades que surgiram com a Revolução Industrial. A descrição
representa o imaginário característico da época, quando a Revolução
Industrial já atingira seu ápice e o sistema econômico de produção
capitalista começava a dar sinais evidentes de desgaste. A história se passa
no século XXI, em 2026, um século depois do lançamento do filme. Fritz
Lang constrói um mundo frio, mecânico e industrializado, alertando por meio
das suas idéias sobre as conseqüências do caminho da produção
desenfreada. Seres humanos e tecnologia intrinsecamente unidos em uma
relação de dependência que ilustra o terror da modernidade frente ao
pretenso poder dominador da técnica sobre o ser humano. Previsões
trágicas, aterrorizantes, a cidade como um universo caótico, a tecnologia
massacrando a humanidade... Um simulacro do humano no lugar do
humano (EISNER, 2002:154-155).
54
Algumas das mais sólidas bases para a ficção científica
cinematográfica são aqui lançadas e irão influenciar a construção de
outras Metropolis, como a Los Angeles de 2019, de Blade Runner – O
caçador de andróides (1982), este último, suporte fílmico desta
dissertação.
Fig.11 Metropolis (1926)
Em Metropolis (1926), Freder Fredersen é o herói romântico e
ingênuo que se envolve com a idealista Maria, ambos humanistas13. Em
oposição a eles, encontram – se John Fredersen, o tecnocrata, aquele que
se julga soberano e controlador dos homens e das máquinas; Rotwang, o
cientista deslumbrado com as possibilidades da tecnologia, e um robô, que
representa, na visão dos personagens (o tecnocrata e o cientista) e no
contexto social tecnológico da era industrial, o trabalhador "ideal". Este
robô, esta máquina, o simulacro humano do filme, sintetiza para o diretor
Fritz Lang o conceito de uma época e seu posicionamento frente à
tecnologia e à "ciborgização" 14.
O robô aparece como um substituto do homem, a máquina ocupando
definitivamente o espaço humano nas relações de trabalho, determinantes
naquele modelo econômico. Este simulacro humano assume as feições da
humanista Maria, mas diabolicamente transformada. Tudo o que lhe falta é
55
13 Doutrina segundo a qual o homem, do ponto de vista moral, deve ligar-se exclusivamente àquilo que é de ordem humana. O humanismo designa uma concepção geral de vida (política, econômica, ética), fundada sobre a crença da salvação do homem pelas simples forças humanas (LALANDE, 1999:481). 14 Ciborgue em ficção, seria a junção de um ser robótico com partes humanas. Diferente do robô, que possui apenas partes mecânicas e dos andróides, que apenas aparentam ser um ser humano por fora, mas não possuem quaisquer tecidos humanos mesclados ao metal, o cyborg ou simplesmente "ciborgue”, em português, é uma máquina mais humanizada por possuir externamente ou internamente fragmentos (tecidos, órgãos, braços, pernas, etc.) de um ser humano (SANTAELLA, 2000:204).
56
uma alma, e esta é providenciada, mas também manipulada, para que
incorpore à máquina apenas as características nefastas do homem. Com ou
sem alma, o simulacro é uma ameaça. Metropolis (1926) representa uma
síntese da proposta expressionista que colocou o cinema alemão na
vanguarda da produção cinematográfica dos anos 20. Não é apenas um
clássico da ficção científica cinematográfica, mas representa a importância
do cinema, enquanto meio de comunicação de massa, inserido no fluxo de
uma determinada era cultural, em manifestar e dar corpo, através das
imagens, aos aspectos sociais, filosóficos e relacionais da situação do
homem perante seu tempo, perante o outro e perante a técnica (VIVEIROS:
2003, 51).
Assim como O Gabinete de D. Caligari (1919) e Metropolis (1926),
Blade Runner – O caçador de andróides (1982) dirigido por Ridley Scott,
também é um marco do cinema expressionista contemporâneo. O filme foi
uma adaptação do famoso romance Do Androids Dream of Electric
Sheep? (1968) de Philip K. Dick, considerado o precursor do cyberpunk, um
subgênero da ficção científica que utiliza elementos de romances policiais,
film noir e desenhos animados japoneses. Ridley Scott também se inspirou
em Metropolis (1926) de Fritz Lang, para construir o cenário futurístico de
Los Angeles. Blade Runner (1982) tornou – se filme representativo da pós –
modernidade, na descrição de uma sociedade deteriorada e desconfiante
em face do progresso irrefreado da indústria, da ciência e da tecnologia.
Ambientado em Los Angeles no ano de 2019, Ridley Scott mostra um
cenário opressivo e caótico, exibindo lugares nos quais se contrastam os
ambientes futuristas de altas torres, arquitetadas para permitir o acesso de
veículos aéreos, com ruas sujas e decadentes, típicas de centros de grandes
metrópoles. Asfixiante e decadente, A cidade é habitada por refugiados dos
cinco continentes, sintetizando a confusão babilônica em uma linguagem
mestiça que se ouve pelas ruas de Los Angeles. Nesse mundo futuro, nada
funciona, “exceto a tecnologia”, capaz de manter colônias ativas em
sofisticadas estações interplanetárias.
57
Figura no. 12 Los Angeles no filme Blade Runner
Blade Runner (1982) descreve um futuro em que a humanidade inicia
a colonização espacial; para enfrentar esta tarefa são criados seres
geneticamente desenhados e criados em laboratórios – os replicantes –
utilizados em missões específicas, pesadas, perigosas ou degradantes nas
novas colônias. Fabricados pela Tyrell Corporation como sendo "mais
Humano que os Humanos", os modelos Nexus 6 são fisicamente idênticos
aos seres humanos, mas são mais fortes e ágeis. Devido a problemas de
instabilidade emocional e reduzida empatia, os replicantes são submetidos a
um desenvolvimento agressivo, e por este motivo o seu período de vida é
limitado a quatro anos15.
15 Replicantes – ver glossário ao final desta dissertação
Fig. 13 A replicante Pris
Os replicantes do filme Blade Runner podem ser considerados
resultados da bio – robótica: organismos de tecido vivo e células criadas
artificialmente, robôs que emulam ou simulam organismos biológicos vivos.
Seis destes replicantes, após um motim, voltam à Terra para reclamar junto
ao seu criador um tempo maior de “vida”. Os blade runners são policiais
especializados em “eliminar” os replicantes, que estão fora da ordem
estabelecida16.
O cinema, invenção moderna, apresenta uma impressão da realidade,
através do movimento que este é capaz de dar às imagens. A conjunção
entre a realidade do movimento e da representação do sujeito, atrelada a um
contexto social e político projetados na tela, e que dão a “impressão” de
realidade objetiva, na qual o que é projetado na tela tem uma alma. Esta
alma, representada pelas técnicas cinematográficas, é a que reproduz as
imagens em movimento, capaz de metamorfosear espaço e tempo criando o
universo da ficção. Ficção que apresenta a vida, a morte, as aspirações, os
desejos, os temores e terrores que modelam a imagem para projetá-las
segundo a ordem lógica dos sonhos, mitos e crenças. Desta forma, a ficção
cinematográfica transforma-se, para o sujeito, na mágica da alma que sonha
(MORIN, 2001:72-73).
58
16 Robótica – ver glossário ao final desta dissertação.
59
Esta dualidade, a própria ambigüidade da ficção, entre a realidade e o
sonho, entre verdade e ilusão, entre o ser e seu duplo, e o estranhamento
humano ao deparar – se com o real produzido por ele mesmo, encontra
antes do cinema um vasto campo para discussão. Esta questão do duplo e
do estranho foi tratada por Freud em seu artigo “Unheimlich” publicado em
1919. Segundo Freud “... o tema [do duplo] tem a ver com reflexos, com
espelhos, com sombras, com espíritos guardiões, com a crença na alma e
com o medo da morte...” (FREUD, 1996:252). A palavra alemã “unheimlich”
não tem tradução direta para o português; um possível equivalente na língua
portuguesa seria a palavra “estranho” ou “sinistro” lembrando o significado
do espanhol. Em alemão, “unheimlich” pode significar tanto algo que não é
familiar, não é conhecido, como algo que é familiar, usual. Segundo as
reflexões de Freud, no artigo “O Estranho” (1919), isto é muito significativo,
pois o estranho caracteriza – se justamente por algo que era familiar e se
torna súbita e inexplicavelmente estrangeiro, estranho. Segundo ele, o
estranho deriva seu terror não de alguma fonte externa ou desconhecida,
mas, pelo contrário, de algo estranhamente familiar que supera quaisquer
esforços do indivíduo para se separar dele.
No conto o Homem de areia (HOFFMANN apud Freud, 2006), um
jovem, Nathanael, afastado de sua família por razões de estudo, encontra
um vendedor de barômetros e acredita ser este o mesmo advogado
Coppélius responsável, quando Nathanael ainda era criança, pela morte
violenta de seu pai. Esta lembrança de Nathanael remete à figura
aterrorizante de um "homem de areia", artimanha impingida às crianças para
convence – las a ir para a cama, fazendo-o lembrar também do advogado
que visitava o pai com alguma freqüência, sempre à noite. Lembranças que
60
o assombra e o atemoriza na atualidade, trazendo de volta uma experiência
fantasmática da infância - a morte do pai.
Assim como o conto O Homem de Areia, existem na literatura vários
autores que tratam da narrativa fantástica, que tem como fim primacial
mostrar a “irrealidade da realidade”.
Um desses autores é Jorge Luís Borges (1899-1986). Na obra do
escritor argentino as metáforas do tempo, do espelho e do labirinto ajudam
a decifrar aspectos fundamentais em seus escritos. Sua concepção de
labirintos, espelhos, etc., representa a multiplicidade dos caminhos
humanos. Para Borges, o tempo é um eterno retorno, e por isso não se pode
afirmar que este mundo é real, mas um simulacro, e por isso, não se pode
decifrá – lo. Sendo assim, o homem que nele habita é também um
simulacro, pois repete os mesmos atos mecanicamente há séculos.
O submundo e a escuridão da rua são componentes essenciais da
narrativa fantástica e nos remontam às origens góticas da ficção-científica, o
ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o etéreo são constituintes da
literatura gótica do final do século XIX, tendo em Edgar Allan Poe alguns de
seus textos fundadores. O fantástico dos seus contos surge como um
intensificador do belo, pela estranheza inquietante que introduz. Estes aliam
o horror gótico à intrincadas narrativas em que a lógica expressionista
deixava antever consideráveis potencialidades cinematográficas. Obras que
misturam elementos entre o sobrenatural, o mórbido, o sinistro, o repulsivo,
o suspense e o aterrorizante. A base do trabalho de Poe vem do fantástico,
das excitações da natureza humana, das alucinações, das mentes inquietas,
61
de personagens neuróticas; o duplo de cada homem carregado de sombras
e elementos de morte e fatalidade.
Este contexto pode nos servir para pensarmos sobre os efeitos de
sentido provocados pelo fenômeno do “estranhamento”. O cinema explora o
“estranho” o “duplo”, pois permite que o estranho projetado na tela seja
muito mais fértil do que na vida real, segundo Freud “... pois contém a
totalidade do imaginado, sem limites, contém algo mais além disso, algo que
não pode ser encontrado na vida real...” (ibidem: 266).
Ao homem moderno, separado do seu duplo pela tela, só lhe resta ser
observador desta identificação, que por vezes ainda emerge, só que agora
como fenômeno sobrenatural, assombração, ou mesmo de ficção. É, assim,
a delimitação desse sujeito, permitindo que a eventual ausência de
mediação simbólica entre o real e o imaginário seja aterradora. É esta
identificação parcial, esporádica, entre o eu e o outro que proporciona a
aparição do real, do “unheimlich”.
Deste modo, o cinema cria um espaço diferente, imaginativo, livre, um
espaço ficcional sem a necessidade do teste da realidade, cujo ponto de
partida – a técnica de montagem – cria um lugar de interação entre o ponto
de chegada - os efeitos receptivos no espectador, sendo que o que resulta
desta interação é, em primeiro lugar paradoxal, pois muito daquilo que não é
estranho na ficção projetada neste espaço interativo, não seria possível de
ser vivido na vida real.
A história de Blade Runner é paralela àquela em que um monstro
sem nome, mais tarde reconhecido pelo sobrenome do seu inventor, exulta
62
ao matar com as mãos o irmão menor do Dr.Frankenstein: “Posso, eu também,
criar o desespero!”.
Os sentimentos e ressentimentos do monstro são postos no centro da
narrativa literária de Shelley, assim como os sentimentos, os sonhos e os
ressentimentos dos replicantes são postos na narrativa fílmica de Blade
Runner.
O que se pode, e o que não se pode conhecer; quem pode, e quem
não pode sonhar – estão postas as questões que aproximam e afastam a
reflexão estética, da técnica e da tecnologia a serviço da subjetividade em
Blade Runner.
63
3. Técnica e tecnologia no auge de uma nova era.
“...A essência da técnica é de grande ambigüidade. Uma
ambigüidade que remete para o mistério de todo
desencobrimento, isto é, da verdade... A questão da técnica é a
questão da constelação em que acontece, em sua propriedade, em
desencobrimento e encobrimento, a vigência da verdade”...
(HEIDEGGER 2006: 35)
A vida humana é principalmente uma atividade, um estado de
produção constante, de permanente autoconstrução e de execuções de
projetos. Essa característica do ser humano tornou – se mais evidente com
as transformações vivenciadas desde o século XIX, a partir das Revoluções
Industriais, conforme já mencionado anteriormente e com as implicações
que o domínio da técnica passa a exercer sobre este sujeito. A técnica pode
ser entendida como um meio do fazer do homem, como um instrumento de
criar e usar os meios para o “fazer” humano (HEIDEGGER, 2006: 9). Sendo
um meio do fazer do sujeito, é a técnica um processo, um conjunto de ações
que se fundem e definem o sujeito, colocando – o frente à possibilidade de
ação dialógica com o próprio meio. Heidegger entende a técnica como um
conjunto de processos que colocarão o sujeito frente a frente com o objeto,
cujo aspecto material e utilitário é resultado do fazer deste sujeito.
A técnica permite fabricar e usar utensílios, aparatos e máquinas,
sendo ao mesmo tempo pertencente às necessidades e aos fins a que
servem. Não sendo só privativa do homem, segundo Maturana e Varela
(2005: 57), a técnica também pode ser encontrada nas atividades dos seres
vivos para a preservação e sobrevivência da sua espécie, porém, no sujeito,
a técnica é a própria ação e possibilita um desdobramento do seu potencial
64
orgânico. Também no sujeito a técnica surge da sua relação com o meio e
apresenta características especiais tais como: consciência, reflexão,
invenção e individualidade. Os seres humanos são capazes de construir
inventivamente técnicas que podem tornar um pensamento em objeto
verdadeiro, para satisfazer seus desejos e necessidades, transformando o
meio em que este ser humano vive.
Segundo Gilbert Simondon (SIMONDON apud FILHO, 1996: 37), os
objetos técnicos assumem o papel de mediadores entre a natureza e o
homem, complementando – se entre si, ou seja, máquina e homem se
fundem em uma relação complexa, uma complementação entre homem e
técnica revelando a existência de uma associação de elementos que se
estruturam reciprocamente. Na sociedade contemporânea, rodeada por
objetos técnicos, o homem tem como papel principal o de organizador; ele
não é submisso às máquinas, mas não tem poderes totais sobre suas
definições e articulações. Este conjunto formado pela relação homem versus
máquina, que se comunica entre si e/ou com outras máquinas e outros
homens puderam gerar fenômenos sociais e estéticos. Assim, técnica e
tecnologia, que começaram a estar presentes na vida quotidiana em fins do
século XIX, avançaram pelo século XX para promover uma espécie de
onipresença nos atos mais triviais do ser humano no século XXI, liberando o
homem de enormes gastos energéticos para confia – los às máquinas e ao
mesmo tempo sujeitar o homem à lógica quantitativa dos artefatos
tecnológicos17. Esta representação corrente da técnica, segundo a qual é
17 Tecnologia – palavra de origem grega: techne "ofício" + logia "que diz" – é um termo bastante abrangente que envolve o conhecimento técnico e científico e as ferramentas, processos e materiais criados e/ou utilizados a partir de tal conhecimento. Estudo dos procedimentos técnicos, naquilo que eles têm de geral e nas suas relações com o desenvolvimento da civilização (LALANDE, 1999: 1111).
65
um meio e um fazer do homem pode, conforme Heidegger em seu
artigo A
questão da técnica (2006), ser considerada como a definição instrumental
e antropológica da técnica.
Segundo Heidegger, a técnica moderna é um meio para atingir certos
fins; desse modo, o homem moderno preocupa – se com o fato de querer
manejar as técnicas, de querer ter “o domínio destas em suas mãos”. Esta
vontade de dominar faz – se tanto ou mais urgente quanto à ameaça da
técnica de escapar ao domínio do homem. Essa ameaça está relacionada
com o fato de que, em sua essência, a técnica não é puramente um meio,
mas um modo de sair do oculto, de desvelar a verdade. O desejo de dominar
a técnica é, para o sujeito, a consciência do seu potencial inventivo e ao
mesmo tempo o seu domínio perante a própria invenção, que muitas vezes
passa a ser desconhecida pelo seu inventor.
Esta revelação do que está oculto é para Heidegger um processo de
desvelar o real, indo além do conceito atrelado aos artifícios tecnológicos,
pois provoca a natureza, exigindo que esta prove o seu potencial, enquanto
fornecedora de elementos energéticos. Esta provocação da natureza pode
ser entendida também no sentido de desocultar a energia que ela armazena,
de extrair o máximo possível do seu potencial. Analogicamente, a relação
entre o desocultar da natureza e o desvelar do sujeito está, no que se refere
a extrair do sujeito o máximo do seu potencial, transformando - o em objeto,
deixando – o na condição de um recurso a ser explorado, esvaziando toda e
qualquer subjetividade desse mesmo sujeito, modificando sua relação com o
real e consigo mesmo (DROGUETT, 2003: 72).
Dentro deste contexto, conforme explica Heidegger, o sujeito, ao
impulsionar a técnica, busca nela um dispositivo para que possa revelar a si
66
mesmo; a técnica moderna passa a provocar o sujeito, que busca uma forma
de existência, uma forma de se situar, de estruturar sua localização no real,
no próprio imaginário que habita este sujeito 18. Este situar-se no real não é
técnico, não é maquínico, é um modo segundo o qual o real e o efetivo do
ser humano saem do oculto como formas de vida. O conjunto integrado
entre as técnicas e o revelar humano constitui a coligação com o sujeito, que
localiza no real um modo de revelar o que se esconde na sua própria
existência (HEIDEGGER, 2006: 15).
Esse homem da era das técnicas consegue, com dispositivos
cristalizados no cinema, revelar aquilo que se escondia na sua mente, nos
seus sonhos, de certo modo consegue se localizar e estruturar no seu real,
projetando na tela aquilo que percebe ser sua existência, revelando o drama
do seu eu oculto.
A esta concepção do filme como suporte técnico para a fixação da
realidade visível e tangível, vem somar-se outra: a do cinema de ficção como
uma arte essencialmente realista, prefigurativa. Blade Runner – o caçador
de andróides (1982) desvela aquilo que o ser humano busca através da
manipulação das técnicas, criar um sujeito a sua imagem e semelhança.
Estes sujeitos que em tudo lembram os humanos, mas que para provar sua
existência buscam na fotografia, um dispositivo antecedente ao cinema, um
passado mesmo que manipulado e irreal, mas que o legitima enquanto ser
humano que não é. No filme as fotos dos replicantes são os objetos que o
tornam mais próximos dos humanos, concedendo – lhes uma família, um
passado, uma vida.
18 Real no sentido metafísico, aquilo que existe por si mesmo, autonomamente, que é relativo às coisas, da idéia ou da representação que formamos da “realidade”. Realidade que corresponde à experiência vivida que o sujeito desse real tem e situa-se no campo do imaginário (JAPIASSU, 1996: 230-231)
Não se pode deixar de destacar a importância da fotografia, que
antecede a técnica cinematográfica. Muito já se discutiu acerca do
parentesco do cinema com a fotografia, haja vista o suporte do dispositivo
cinematográfico tradicional, não digital. Obviamente, o cinema está
intimamente ligado à fotografia, desde as primeiras experiências de Jules-
Marey e Muybridge. Diversos autores se detêm sobre a relação entre as
mídias fotográfica e cinematográfica, as quais, via de regra, partilham o
mesmo suporte. Um dos textos mais famosos a respeito deste assunto é
“Ontologia da Imagem Fotográfica”, em O Que é o Cinema? (1997), de
André Bazin. Neste ensaio, o teórico francês vale-se da reafirmação do
parentesco cinema – fotografia para reforçar sua tese de realismo
cinematográfico.
Fig. 14
O Cinematógrafo - 1894
O cinema, abreviação de cinematógrafo, é a técnica de projetar
fotogramas em quadros de forma rápida e sucessiva para criar a impressão
de movimento, bem como a arte de se produzir obras estéticas, narrativas
ou não. A projeção de imagens estáticas em seqüência para criar a ilusão
de movimento costuma ser de no mínimo 24 fotogramas por segundo, para
67
68
que o cérebro humano não detecte que são, na verdade, frames isolados
(DELEUZE; 1984: 14) 19.
A reprodução da realidade humana proporcionada pela ilusão técnica
cinematográfica é considerada como uma das artes mais próximas das
massas. Este meio artificial de reprodução da realidade através das técnicas
de montagem fílmica dá à produção cinematográfica um caráter estético. O
cinema, como forma mecânica de se contar uma história, dispõe de um sem
números de técnicas que vão desde a exploração dos cenários, a utilização
de vários planos até a montagem das cenas. Esta condição do fazer cinema
não está somente ligada à técnica, mas à capacidade da imaginação
humana em explorar as técnicas disponíveis, da capacidade do sujeito de se
revelar na expressão da realidade ficcional.
Segundo a ótica de Deleuze, o cinema, ao narrar uma história, evoca
as formas do mundo exterior – o espaço, o tempo e causalidade – ajustando
– as ao mundo interno do sujeito: à memória, à imaginação e à emoção.
Estas histórias ganham sentido, do ponto de vista de Deleuze, manipulando-
se as imagens por meio da montagem. Para ele a imagem-movimento nasce
de uma sucessão de planos fixos que ganham coerência com a montagem;
assim, as técnicas de produção de um filme definem a estética
cinematográfica. Neste contexto, a montagem, para além do seu papel
narrativo, tem uma função sintática e de pontuação. Estrutura o filme, seja
qual for o seu gênero, sendo uma das técnicas principais que se
transformam em uma função estilística, produzindo efeitos rítmicos e
plásticos. Ainda conforme Deleuze, a montagem é a composição, a
19 Frame (moldura em português): a noção de moldura/quadro está ligada inicialmente à pintura. A fotografia aproximou o significado entre o quadro do instantâneo e o olhar (do fotográfo) que a foto traduz. Mas as palavras “enquadrar” e “enquadramento” apareceram com o cinema, para designar o conjunto do processo, mental e material, pelo qual se chega a uma imagem que contém certo campo visto de certo ângulo (AUMONT, 2006: 248).
disposição das imagens – movimento como parte da criação de uma
imagem indireta do tempo.
O cinema vai sendo influenciado pelos movimentos vanguardistas de
cada época. No início do século XX, a montagem tem a função de acelerar
as imagens, que refletem a rapidez do mundo urbano, ou de acentuar,
através das técnicas de justaposições o efeito do choque, de contrastes.
Dentro deste contexto, retornaremos ao cinema expressionista alemão,
cujas técnicas retratam este caráter estético do cinema gótico20.
No cinema expressionista alemão, as técnicas com as quais os
cineastas elaboraram a construção dos filmes correspondem de imediato à
ação da luz como sendo o fundamento para criar as imagens em movimento,
movimento este de intensidade. A força da luz se opõe às trevas com uma
força igualmente infinita e sem a qual não poderiam se manifestar. Trata –
se de uma oposição, de uma mescla entre o claro/escuro. O domínio desta
técnica no Expressionismo aponta verdadeiros mestres desta estética
cinematográfica; são eles Murnau, Fritz Lang, Robert Wiene e Ridley Scott.
Scott contribuiu com uma nova estética cinematográfica ao se inspirar em
Metropolis (1926) e nos filmes noir dos anos 40 para filmar Blade Runner –
o caçador de andróides (1982).
z Lang-1926
69
20 Vanguarda - palavra que a partir de meados do século XIX começa a ser aplicada às tendências artísticas que proclamam a ruptura com o passado e a transformação da sociedade, sendo que, apenas no século XX, passa a designar habitualmente aquelas tendências artísticas que atuam como movimentos de inovação e ruptura, rejeitando a arte precedente e propondo-se como procura de novas formas, bem como de uma diferente função social da arte (XAVIER, 2005:99).
Fig. 15 Cenário do filme Blade Runner
70
Ridley Scott utiliza as superposições e os efeitos visuais, bem como a
integração de diversos elementos arquitetônicos, detalhes do vestuário e
símbolos de diferentes culturas e épocas, fazendo uma mescla destes
elementos para causar assombro e sintetizar a confusão babilônica nas ruas
de Los Angeles. Ridley Scott explorou os fundamentos da estética
cinematográfica gótica utilizando – se dos efeitos das luzes e sombras.
Como no Expressionismo alemão, raios e explosões enchem o céu de luz,
mas a escuridão é impenetrável, o pessimismo sobre os limites do
conhecimento do ser humano e a decepção com a tecnologia moderna, a
qual, embora abra os horizontes, destrói o mundo que o ser humano habita,
fizeram de Ridley Scott um criador que estabeleceu uma estética individual
segundo leis próprias e que são muito próximas da estética gótica dos filmes
do Expressionismo alemão.
Os efeitos obtidos com os contrastes entre o branco e o preto ou as
variações do claro/escuro são como dois graus distintos capturados no
mesmo instante, criando no espectador a sensação, no sentido metafórico,
da visão da noite que dissolve os corpos, e do dia, que dissolve a alma.
A técnica de iluminação das cenas permeou todo o cinema
expressionista alemão; assim, o choque do claro/escuro, a iluminação súbita
de um personagem ou de um objeto por um foco de um projetor – e
concentrando sobre ele a atenção do espectador – é acompanhada às vezes
por um reflexo avermelhado, brilhante, cintilante; são técnicas de iluminação
que foram identificadas nas cenas da criação do robô de Metropolis
71
produzido em 1926, assim como de Frankenstein produzido em 1931
(Deleuze; 1984: 80).
O cinema expressionista também rompe com o princípio da
composição orgânica instaurado por Griffith21. O Expressionismo não utiliza
a quantidade de movimentos, mas apresenta uma visão da vida e dos
objetos dissolvidos pelas sombras, submersos nas trevas que ignoram os
limites do organismo. Segundo Deleuze, sob este ponto de vista, todas as
coisas naturais e os produtos artificiais não se diferenciam, são as sombras
das casas que correm pelas ruas, são os móveis, as casas e seus telhados
inclinados que espreitam e se movem. Em todos os casos, o que se opõe ao
orgânico não é o mecânico e sim o vital, comum ao animado e ao
inanimado, vital que se expande por toda a matéria.
O termo Expressionismo foi utilizado pela primeira vez pelo teórico
Worringer e foi definido pela oposição do impulso vital à representação
orgânica, pelo uso das linhas quebradas que não formam nenhum contorno
e onde não se distinguem nem a forma nem o fundo. Deste modo, os
autômatos e robôs não são mecanismos, são zumbis, sonâmbulos que
expressam a intensidade dessa vida inorgânica (EISNER) 22.
21David Griffith (1875-1948), nascido nos Estados Unidos, é considerado o criador da linguagem cinematográfica. É o primeiro a utilizar dramaticamente o close, a montagem paralela, o suspense e os movimentos de câmera. Em 1915, com Nascimento de uma Nação, realiza o primeiro longa-metragem americano, considerado como a base da criação da indústria cinematográfica de Hollywood. Com Intolerância, de 1916, faz uma ousada experiência, com montagens e histórias paralelas. A montagem paralela, isto é, a alternância de duas ou mais linhas de ação, e o “last minute rescue” (salvamento de último minuto) são duas formas de construir o suspense, e foram exploradas exaustivamente por David Griffith.
22 Worringer – Ver citação na página no 52.
Ainda conforme Deleuze, as técnicas do Expressionismo do cinema
alemão obedecem a linhas geométricas que regulam o movimento no
espaço. É uma geometria que constrói o espaço ao invés de descreve – lo;
as linhas se prolongam fora de toda medida, é uma geometria que opera por
projeções e sombras, com perspectivas oblíquas. Estes agrupamentos
geométricos se relacionam diretamente com o corpo humano, corpo
estilizado que se transforma, pois dissolve as diferenças entre o mecânico e
o humano, em proveito da vida orgânica das coisas.
Fig. 16 O gabinete de Dr. Caligari (1919)
O jogo de efeitos de contrastes, claro/escuro e suas variações, são
como dois graus distintos capturados ao mesmo tempo, intensificados por
reflexos de luzes brilhantes, fosforescentes, cintilantes. Conforme já foi
mencionado, estes efeitos foram usados nas cenas da criação do robô Maria
em Metropolis, porém foi Murnau o principal operador destes efeitos,
criando uma atmosfera que anuncia a chegada do diabo e da cólera de
72
73
Deus, através das cenas de Nosferatu (1922) e Fausto (1926) 23. Em
Nosferatu, Murnau passa por todos os aspectos das técnicas de luz do
Expressionismo, do claro/escuro à contra luz e à vida orgânica das
sombras.Assim, os filmes de Murnau retratam um mundo que remete à
dialética: entre o terror da vida orgânica das coisas e da vida sublime do
espírito humano.
Deleuze (idem: 85) analisa algumas técnicas de montagem que para
ele tem uma importância vital e que constituem as visões dos cineastas e a
maneira com que estes manejaram a construção de suas narrativas24. Para
Deleuze, as montagens vão além do caráter técnico, são elas que se
relacionam com o todo da narrativa, dão sentido ao tempo e espaço fílmico,
projetando na tela e passando ao espectador a impressão da realidade
objetiva. Dentro deste contexto, o cinema assume seu caráter de invenção
moderna, na medida em que as técnicas permitem a conjunção da realidade,
do movimento e da aparência das formas passando a ser a base objetiva
para a compreensão desta arte (METZ, 2002:35).
Colocando as técnicas como meio de construção narrativa de uma
história situada num tempo – espaço imaterial, a descoberta da montagem
paralela e do primeiro plano por Griffith permitem uma expressão direta de
23 Friedrich Wilhelm Plumpe, conhecido como F. W. Murnau nasceu em Bielefeld, Alemanha, em 28 de dezembro de 1889. Figura relevante do Expressionismo no cinema, Murnau revolucionou a criação do filme, ao concebê-lo como obra dinâmica e ao usar a câmera para interpretar os estados emocionais dos personagens. Por volta de 1910 entrou em contato com as inovações do diretor teatral Max Reinhardt, que muito o influenciaram. Seu primeiro filme importante foi Nosferatu (1922), que incorpora inovações técnicas e efeitos especiais, como a imagem em negativo de árvores brancas sobre o céu negro.
24 Deleuze tratou em seu livro La imagem - movimiento (1984) de quatro tipos de montagem. São elas: montagem orgânico-ativa, característica do cinema americano, que deu origem às narrativas; a montagem dialética do cinema soviético, orgânica ou material; a montagem quantitativo-psíquica da escola francesa e sua ruptura com o orgânico, e por fim, a montagem intensivo-espiritual do Expressionismo alemão, que une uma vida ainda orgânica das coisas a uma vida espiritual do ser humano. Deleuze estudou a variedade pratica e teórica dos tipos de montagens, segundo as concepções orgânica, dialética, extensiva e intensiva da composição das imagens-movimentos.
74
simultaneidade e justaposição, que possibilitam a integração entre épocas,
entre estados de consciência, entre o passado da memória, o presente da
percepção e o futuro do desejo, entre enredos paralelos e entre experiência
e imaginação. Desta maneira, o cinema, ao invés de limitar-se a
representar conteúdos históricos e culturais, dá forma concreta à
experiência histórica da tendência de fragmentação, de heterogeneidade e
de desintegração do mundo moderno, criando uma nova unidade – possível
materialmente pela película do filme – percebida através do ritmo da
imagem, como alusão a um fluxo infinito e contínuo da experiência interior
do tempo qualitativo, descrito por Bérgson no seu livro A Evolução Criadora
(2005) como "duração – continuidade”.
O tempo perde no cinema a sua irreversibilidade cronológica, em
retrospecções, repetições, lembranças e visões premonitórias, e a imagem
em movimento possibilita relações simultâneas entre acontecimentos
distantes, entre histórias paralelas e entre experiências desconexas no
espaço e no tempo, permite:
“a experiência de tantas coisas tão diferentes, distintas e
irreconciliáveis em um mesmo momento, e que, por outro lado,
diferentes sujeitos em diferentes lugares têm, muitas vezes, a
experiência das mesmas coisas, de que as mesmas coisas
sucedem ao mesmo tempo em lugares completamente isolados
uns dos outros. Este universalismo das quais as técnicas
modernas tornaram possível que o homem contemporâneo
tivesse consciência são, talvez, a real fonte do novo conceito do
tempo e de todo o modo abrupto como a arte moderna descreve
a vida" (HAUSER, 1998: 991).
Desligada da ação direta dos personagens, a narratividade na
75
imagem em movimento figurou uma "linguagem" (DELEUZE, 1984: 86),
que constrói uma simulação estruturada em nossos cérebros das relações
entre as imagens como uma possibilidade objetiva de pensar o tempo. Em
seu estudo sobre o cinema, o filósofo francês insiste na expressão direta da
realidade do tempo nas imagens cinematográficas. Por um lado, na
imagem-movimento, isto é, na imagem que "espacializa o tempo" em uma
relação dinâmica entre imagens que dispensa a ação do herói e concretiza
o puro movimento, e, por outro, na imagem – tempo, que "temporaliza o
espaço", criando uma cristalização do tempo, em que passado, presente e
futuro são dimensões acessíveis, liberadas da cronologia. Deleuze valoriza
no cinema a realidade do tempo como concretizado diretamente em
imagens, sem depender de uma percepção subjetiva. Sua interpretação da
filosofia de Henry Bergson supera a perspectiva fenomenológica e propõe
considerar a “duração – continuidade” como idêntica à consciência,
consciência entendida como um aspecto do tempo materialmente presente
nas imagens e nas relações entre imagens.
Desta forma, o cinema foi considerado como uma das formas de arte
que resultou dos “tempos modernos”, que tratou essas questões de tempo
e espaço de uma narrativa fílmica, entrelaçando-as de forma inteligente por
meio do “uso serial de imagens, bem como a capacidade de fazer cortes no
tempo e espaço em qualquer direção” (HARVEY, 2004:277).
Quebrando o paradigma cinematográfico do cinema moderno, Blade
Runner - o caçador de andróides (1982), de Ridley Scott surge como uma
obra considerada pós – moderna25. Neste filme, os aspectos abordados
expressam a falência do urbanismo moderno e da era da máquina. A
realidade do final do século XX não correspondeu às utopias imaginadas
25 O pós – moderno será um dos tópicos a ser abordado no capítulo subseqüente dessa dissertação.
76
pelas Revoluções Industriais. Blade Runner é um retrato do mundo
contemporâneo, que exprime os extremos de uma sociedade de alta –
tecnologia convivendo com velhas estruturas modernas que lutam por sua
sobrevivência, mas que ainda permitem o uso de espaços de convívio
humano.
CAPÍTULO II
Blade Runner – O caçador de Andróides.
Na era do progresso tecnológico, marcada por grandes avanços,
permanecem atividades nas quais a força bruta ainda é utilizada como força
motriz, a despeito da existência da máquina. Como interpretar as imagens
de Blade Runner – o caçador de Andróides (1982), repletas de homens
que vagueiam pela cidade suja e poluída, empurrando carros – de – mão no
confuso mercado de produtos genéticos fabricados artificialmente e
extremamente sofisticados, senão como um dos traços da pós –
modernidade, de uma era na qual o futuro se afirma e o passado ainda não
deixou de existir, mesmo nos grandes centros?
Miséria e degradação manifestam – se em torno dos interstícios do
desenvolvimento tecnológico e da riqueza. Talvez seja mais apropriado
considerar Blade Runner como uma visão sobre a passagem da
modernidade para a pós – modernidade, exatamente o fio condutor de um
momento ao outro.
77
No que tange a visualização dessa passagem, o cinema que atinge a
grande massa passa a ser o símbolo de todas as formas de representação
visual estética, baseada nas novas tecnologias que surgiram com a era
chamada modernidade. Por essas características, o cinema será o nosso
suporte, para que possamos estabelecer os aspectos fundamentais da
evolução cultural do sujeito moderno, do sujeito pós – moderno e do
sujeito – maquínico que abordaremos no capítulo III. Por isso, neste
capítulo, decuparemos as principais cenas de Blade Runner, cujos
elementos nos servirão para descrever o que será essa passagem. O filme
nos revela a visão de tempo e espaço dos sujeitos que o produzem e trazem
para a tela visões prefigurativas e vinculadas às tradições e ideologias
presentes nestes sujeitos.
Enquadrando suas ações exemplares em seqüências diretas, o
cinema nos encaminha para a idéia de transformação de uma realidade
social. Desde seu nascimento em 1898, o cinema é capaz de trazer para o
espectador realidades e inquietudes que se manifestam no dia–a–dia dos
sujeitos. Ademais, consegue codificar novos significados, profetizando
tecnologias e avanços científicos que tomam forma no novo milênio.
Neste contexto, o filme do gênero ficção científica Blade Runner – o
caçador de andróides (1982), do diretor inglês Ridley Scott estabelece, por
meio de uma visão do futuro, os efeitos dessas revoluções tecnocientífica
que afetaram o sujeito contemporâneo e que se referem à criação, pelo
homem, por meio de manipulação genética, de um duplo à sua imagem e
semelhança. Os elementos visuais e filosóficos do filme nos ajudarão a
refletir os modos de ser, viver e pensar nas sociedades pós – modernas dos
sujeitos – maquínicos.
78
1. A relação humana – maquínico em Blade Runner – decupagem das
principais cenas.
... No início do século XXI a Tyrell Corporation criou os robôs
da série Nexus virtualmente idênticos aos seres humanos. Eram
chamados de replicantes. Os replicantes Nexus 6 eram mais ágeis
e fortes e no mínimo tão inteligentes quanto os engenheiros
genéticos que os criaram. Eles eram usados fora da terra como
escravos em tarefas perigosas da colonização interplanetária.
Após um motim sangrento de um grupo de Nexus 6, os
replicantes foram declarados ilegais sob pena de morte. Policiais
especiais, os blade runners, tinham ordens de atirar para matar
qualquer replicante. Isto não era chamado execução, mas sim
“aposentadoria”...
Este texto está na abertura de Blade Runner – o caçador de
andróides (1982) do diretor inglês Ridley Scott. O filme trata da inquietação
vivida pelos humanos diante de um mundo em extinção e da realidade, a
partir da criação em laboratório por meio da biotecnologia, de seres
79
humanos mais que humanos, como apregoa a Tyrell Corporation – fabricante
dos replicantes, colocando em xeque as bases intangíveis da natureza
humana e do seu futuro.
Visão quase profética de tão atual, Blade Runner nos surpreende até
hoje, vinte e cinco anos depois do seu lançamento, por nos mostrar um
futuro não muito distante e que parece ser um futuro possível, conseqüência
dos avanços das técnicas e do desencantamento dos seres humanos. Um
mundo povoado por seres artificiais e máquinas, lugar no qual o ente natural
perdeu o seu posto para os artefatos tecnológicos criados para servi-lo.
Blade Runner – o caçador de andróides é uma adaptação do livro de
Philip K. Dick: Do Androids Dream of Electric Sheep? (1968), autor
também responsável por um vasto leque de romances que originaram
alguns filmes, tais como Total Recall (1990) de Paul Verhoeven ou Minority
Report (2002) de Steven Spielberg. Ridley Scott e a sua equipe de
argumentistas (Hampton Fancher e David Peoples) trabalharam no alicerce
do livro e edificaram um filme que transcende o próprio romance de Philip K.
Dick, aprofundando – o. A obra de Ridley Scott marcou por sua incrível
beleza, minúcia estética e pelo efeito de caleidoscópio de suas imagens.
Passados os 118 minutos obsessivamente sombrios do filme, guarda – se a
impressão de ter assistido a um espetáculo de elementos poéticos, como se
Ridley Scott tivesse emprestado às imagens e aos sons de sua obra uma
outra voz: uma melodia codificada na ordem das formas do sonho.
No universo criado pela sétima arte, a hiper – realidade, enquanto
imitação do real, não se limita a uma mera reprodução do mesmo; perde-se
a distinção entre os objetos e suas representações, restando somente o que
Baudrillard, no livro Simulacros e simulação (1991), denominou de
simulacros. Simulacros que não se referem a nada senão a si próprios. Os
meios de comunicação, como os anúncios de televisão e os efeitos
especiais que imperam hoje no mundo cinematográfico, reproduzem
uma realidade já existente, assumindo – se esta como uma falsa realidade,
sendo por isso exemplos característicos desses simulacros. Porém, neste
cosmos hiper – real encontramos situações mais inspiradoras, mais belas,
aterradoras e geralmente mais interessantes do que no quotidiano de
qualquer ser humano. O cinema está, por isso, ligado a uma estética do
simulacro enquanto desaparição da realidade.
Fig. 17 Roy Batty – líder dos replicantes
Blade Runner, o cult–movie de ficção científica, oferece – nos uma
descrição futurista da humanidade com seres geneticamente desenvolvido
em laboratório, criados à semelhança do homem. Neste filme somos
confrontados com uma humanidade que se desenvolve em um mundo
fragmentado e construído sob ruínas. Blade Runner mostra – nos o tipo de
sociedade que emergiu a partir da ascensão das tecnologias. Nas ruas da
cidade suja, escura e decadente, encontramos uma desconstrução da
própria realidade em que vivemos, para dar lugar a uma outra realidade. No
80
final, o “humano” apaixona – se pela máquina e têm ambos direito a um final
feliz. Afinal a máquina também pode sonhar. As imagens dão origem a
outras imagens, que não possuem, necessariamente, uma base no real
extra – tela.
Para observarmos esta relação humano – maquínica em Blade
Runner, faz – se necessário o pressuposto técnico, com a ficha da obra, a
sinopse e a decupagem das principais cenas.
81
Título Original: Blade Runner
Gênero: Ficção Científica
Tempo de Duração: 118 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1982
Estúdio: The Ladd Company
Distribuição: Columbia TriStar / Warner
Bros.
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Hampton Francher e David W.
Peoples, baseado no livro de Philip K.
Dirk
Produção: Michael Deeley
Música: Vangelis
Direção de Fotografia: Jordan Cronenweth
Desenho de Produção: Peter J. Hampton e Lawrence G. Paull
Direção de Arte: David L. Snyder
Fig. 18 Cartaz do filme Blade Runner (1982)
82
Figurino: Michael Kaplan e Charles Knode
Edição: Marsha Nakashima
Efeitos Especiais: Dream Quest Images
Elenco:
Harrison Ford (Deckard), Rutger Hauer (Roy Batty), Sean Young
(Rachael),Edward James Olmos (Gaff), M. Emmet Walsh (Capitão Bryant),
Daryl Hannah (Pris), William Sanderson (J.F. Sebastian),Brion James
(Leon), Joe Turkell (Tyrell), Joanna Cassidy (Zhora), James Hong (Hannibal
Crew), Morgan Paull (Holden)
Sinopse: Blade Runner – o caçador de andróides (1982) trata de um
pequeno grupo de seres humanos geneticamente criados em laboratório,
chamados de “replicantes”, que voltam a terra para enfrentar seus criadores.
Fabricados pela Tyrell Corporation, cujo slogan publicitário é "Mais Humano
que os Humanos", os modelos Nexus – 6 foram desenvolvidos com um
propósito específico: trabalhar como escravos, executando tarefas altamente
especializadas em ambientes inóspitos na colonização espacial. Os
replicantes são dotados de força, de inteligência igual ou até maior que os
seres humanos comuns, e possuem dispositivos sentimentais que em alguns
anos se transformam em emoções próprias, idênticas aos humanos – ódio,
amor, medo, raiva, inveja – pois assim conseguem se adaptar às exigências
de suas tarefas, tarefas que muitas vezes exigem julgamentos que se
igualam aos dos seres humanos naturais. Uma vez que eles têm a
capacidade de sentir, e com isso podem representar em algum momento um
perigo à ordem estabelecida, seus fabricantes criaram um mecanismo de
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proteção – um tempo de vida limitado a apenas quatro anos. Os replicantes
não são meras imitações, mas reproduções autênticas, indistinguíveis dos
seres humanos, exceto por três pormenores: os olhos emocionais, ausência
de memória e vida extremamente curta.
Em novembro de 2019, seis replicantes, após um motim, fogem de
uma das colônias para a terra com o objetivo de encontrar seu criador e
exigir uma modificação genética que lhes aumente o tempo de vida26. Este
incidente transforma os replicantes em seres ilegais na Terra, sendo
condenados à pena de morte. Os policiais especiais, de elite, como são
considerados os blade runners, são responsáveis pela caça e “aposentadoria”
dos replicantes que excedem este tempo de vida ou, como no caso, se
rebelam contra as condições que lhes são impostas. Os blade runners têm
ordem para matar os fugitivos, porém para seguir as leis impostas na
sociedade, este ato de execução é chamado de aposentadoria. Para
localizar e executar os replicantes um ex – blade runner (Harrison Ford) é
convocado para o serviço.
Os primeiros minutos de Blade Runner bastam para traçar uma
radiografia da vida humana em Los Angeles, no ano de 2019. Dois homens,
em um falso diálogo em que se procura determinar a "não humanidade" do
interlocutor, reúnem – se em torno de um instrumento, único juiz a sondar a
pupila de sua vítima, como se fosse um furo na parede. Não há lugar para
sentimentos. O terror da ordem e do protocolo que se instalam, e nos
conduzem ao primeiro crime, que encerra a cena.
26 Há um erro de continuidade talvez proposital quanto ao número de replicantes, por exemplo, Deckard caça quatro replicantes que estão soltos na cidade – Roy, Leon, Zhora e Pris, e os dois que faltam podem estar se referindo a Rachel – sobrinha de Tyrell – que descobre ser replicante durante a trama, transformando-se em fugitiva, e o outro ao próprio Deckard.
Rick Deckard, o policial solitário, vagando nas mais profundas camadas
sociais abandonadas pela ordem, entre a histeria dos néons e a exuberância
barroca das fachadas, começa sua empreitada nas ruas sob um signo de
tolerância – "dois mais dois igual a dois"; breve clarão de esperança no
diálogo surrealista com o chinês da barraca. Deckard procura libertar – se do
sol negro sob o qual passa seus dias em sonolência. Movido pela obrigação
profissional, ele sente, portanto, a cada passo, o apelo insistente de certo
abandono, sacrifício tanto mais apavorante em Los Angeles, reino da
indeterminação e do caos, da visão e da razão, antro da crise das
aparências e do corpo, um deserto espiritual. Não mais se conhece a
linguagem dos sentimentos; como diz Bergman no livro A Evolução
r Harrison Ford
Criadora (2005), não mais se distingue os sentimentos da lembrança dos
sentimentos.
Esta angústia vinda do caos e da indeterminação, presente em Blade
Runner é o que Kracauer, o autor de De Calligari a Hitler (1985) opõe à
iminência da tirania na Alemanha de sua época. Este autor alemão
descrevia uma sociedade de tal insegurança, na qual cada indivíduo era
suspeito de ser o "olho do poder". No filme Blade Runner, cuja inspiração é
retirada do expressionismo alemão, procura – se então a nova forma de
poder nessa desordem, e encontramos a resposta nas alturas de uma
pirâmide inacabada, meio Babel, em um mundo obcecado pela conquista
colonialista do além, pelo domínio da técnica e pelos avanços da engenharia
genética.
Ridley Scott, artista plástico e publicitário, privilegia e desenvolve o
tema da percepção visual, instrumento da consciência. A história começa
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sob um olhar que se pousa sobre os homens, ao mesmo tempo em que se
anuncia a chegada dos misteriosos replicantes. Em Blade Runner o poder
parece medir – se pela capacidade do homem de conhecer sua própria
existência, extraindo da técnica todo o avanço necessário à manipulação da
criação de um ser humano.
Neste caso, o aspecto dos replicantes não nos deixa saber sem
vacilarmos se eles são um artefato ou um ser humano “natural”, ou seja, a
modelagem em laboratório ou o simulacro criado é mais perfeito que o
natural. Simulacro que receberá dados de memória que não são deles,
sentimentos e vivências que não são seus. Simulacros humanos melhores
que os humanos, criados para viver em um mundo paralelo à realidade.
Fig. 19 J.F.Sebastian designer
genético e suas criações
85
Blade Runner pretende expressar as suspeitas de que as realidades
mais cotidianas são máscaras com que se revestem o extraordinário avanço
da ciência. O poder supostamente ilimitado dos meios tecnológicos, em
Blade Runner, faz com que duvidemos sem cessar das nossas percepções,
pois, no filme é concedido um papel importante aos artefatos técnicos que se
inserem cada vez mais na vida cotidiana. Cabe aqui a pergunta: seria a
técnica um simples meio para representar o mundo, ou pelo contrário, as
imagens geradas artificialmente já se têm convertido em parte de nossas
percepções e memórias? Em um tempo no qual a tecnologia abre os
horizontes do possível, o cinema é uma arte dedicada a por à prova os
limites da percepção humana. Por isto, não nos deveria surpreender que os
filmes estivessem continuadamente alimentando – se conscientemente da
suspeita de que a vida não é mais que uma refinada ilusão.
Esse caráter ilusório da vida fica mais evidente com o filme Matrix
(1999), dirigido pelos irmãos Andy Wachowski e Larry Wachowski. Matrix
deixa claro para nós, espectadores, a analogia entre o uso do computador
para a criação de simulações, com base nos modelos armazenados na
memória cultural da humanidade. Por esse prisma, o filme pode ser lido
como uma espécie de comentário dos Wachowski ao seu próprio processo
de criação: a concepção e desenvolvimento artificiais de um mundo paralelo
ao nosso, repleto de referências intertextuais às narrativas criadas ao longo
da história do mundo. Nesse sentido, o universo simulado pela Matriz do
filme – o mundo de 1999, recriado pelas máquinas – é, efetivamente, o
nosso mundo contemporâneo, ou uma versão muito fiel dele, onde
intertextualidade, discussões filosóficas sobre o estatuto da realidade e o
surgimento de uma nova onda de religiosidade e misticismo aparecem como
traços marcantes.
Fig. 20 Matrix (1999). 00
86
87
Dentro deste contexto, os sistemas originais que se pretende simular
já são simulações: a imensa gama de histórias do universo ficcional que
constitui o patrimônio cultural da humanidade, no filme, já está disponível
digitalmente. A Matriz usou como base para a criação de sua simulação do
mundo de 1999 não o mundo "real", que se encontrava "lá fora", exterior a si
mesma, mas as inúmeras narrativas que constituem o nosso universo
ficcional, e que estavam disponíveis em sua memória. Por uma questão de
economia de tempo e energia, era mais fácil apropriar – se da realidade já
convertida em informação do que recria – la do zero.
Em Matrix (1999), estamos diante do mundo virtual. Um mundo onde
as coisas existem potencialmente, em estado de latência. Onde há espaço
para a ordem e para a desordem. Este mundo virtual se localiza entre o
mundo real e o imaginário. Por um lado, transporta operações diretas da
realidade, por outro tem a imaterialidade de um universo carregado de forças
simbólicas que transitam além das culturas. Pensar estes elementos como
forma de criação e fragmentação no que concerne a um modelo
estabelecido herdado da imagem estática, tende a delimitar o campo da
representação e permite pensar a simulação como um campo em
construção que suporta as configurações dinâmicas possíveis, não as
sintetizando, mas sustentando as tensões que estas produzem,
estabelecendo um nexo possível entre a representação no campo da arte e
no campo da ciência.
O método dominante de representação do espaço, desenvolvido ao
largo da história moderna da cultura ocidental, esteve baseada na
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perspectiva artificial, logo “naturalizada”. Assim, a forma de representação
aspira a mostrar de forma eficiente a profundidade do mundo real por meio
de um suporte bidimensional, uma abstração em duas dimensões, capaz de
gerar a imagem mais próxima possível ao objeto real tridimensional. Desse
modo, a representação, no conceito tradicional, está ligada à semelhança da
aparência do objeto reproduzido.
Os filmes Blade Runner (1982) e Matrix (1999) colocam a questão da
aparência sob os aspectos existenciais; não só em relação ao corpo, mas
também no que se refere ao sentir e ao pensar. Memória sentimental e
memória do corpo, sentimentos e lembranças, separados pelo abismo no
qual se instala o instrumento técnico, insidiosamente. Como encarar, nesse
mundo, o projeto da célebre frase: "Conhece – te a ti próprio" inscrita no
templo de Apolo em Delfos? Como se armar de coragem para fazer as
verdadeiras perguntas, como os replicantes em busca do ser demiúrgico,
cujo crime projeta a sombra sobre suas vidas breves? Pois, para conquistar
o além, era necessário criar escravos; e para que fossem utilizáveis, estes
deveriam ter uma vida curta o bastante para que não aprendessem os
sentimentos, e para que não começassem a questionar. Em Blade Runner,
Tyrell, o gênio, cientista biomecânico e tecnocrata com feições clericais,
criou a vida perfeitamente útil e em Matrix, Neo habita o deserto do real
onde tudo é possível.
Os replicantes de Blade Runner foram feitos para produzir, e parecem
empenhados em uma busca desenfreada pelas atividades humanas
improdutivas: os desejos e os sonhos ou distrações que entorpecem.
Buscam esta “alegre primavera” do tempo leviano, em oposição ao tempo
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pesado e lento da virtual escravidão em que se encontram. É interessante
notar que para entender sua existência, os replicantes tenham chegado ao
conhecimento de que, ao contrário da sua aparente superioridade em
relação aos organismos com base de carbono, não são seres totalmente
liberados da carne e do sangue: são também escravos de uma existência
determinada e limitada pela finitude de um tempo, programados pela Tyrell,
que os faz descartáveis e substituíveis.
Anuncia – se o consumo voraz, a efemeridade das coisas, a passagem
do tempo e a fugacidade da vida, conceitos aos quais se refere Baudrillard,
no seu livro A Sociedade de Consumo (2000). Sociedade de consumo que
é expressa pelos produtos da indústria cultural e de bens de consumo que
são adquiridos, músicas que podemos ouvir, filmes e programas que
podemos assistir, etc., produzindo um ambiente em que proliferam
elementos apropriáveis segundo uma dinâmica lúdica, despreocupada, que
parece ser o oposto exato da premência do trabalho maçante e repetitivo a
que seres humanos estão condicionados normalmente na vida cotidiana.
O fundamento da cultura do consumo é o da apropriação estética do
gozo narcíseo de manipular ludicamente qualquer coisa que se afigure como
signo da inteireza de si mesmo. Em outras palavras, a grande fantasia que
move o indivíduo contemporâneo é a de que ele possui um ego
suficientemente forte, capaz de prolongar a sensação de prazer que ele
busca em cada um dos objetos que poderiam refletir a sua imagem. Tudo o
que é pretendido dos objetos é apenas que eles confirmem que o nosso
desejo tem certa legitimidade, desejos expressos nesta marcha inexorável
da vida, estendendo – se na medida em que se consegue gerar um tecido
razoavelmente homogêneo, capaz de circunscrever toda a nossa libido até
se apossar dos objetos como se quisesse apossar – se do próprio eu.
Na ânsia de buscar esta solidez, propiciada pelo consumo e almejada
como o cume da felicidade, o sujeito também parece perder aquilo que ele
tanto procura que é o limite que circunscreve a sua própria identidade. Os
objetos nos dão uma identidade fragmentada, constituída por esta trama de
relações espaciais e de multiplicidade temporal expressas nos filmes,
programas de televisão e nos produtos que são freneticamente postos ao
alcance do sujeito e por ele são comprados na mesma rapidez com que são
fabricados.
Fig. 21 Zhora – replicante dançarina
No filme Blade Runner, a sociedade de consumo atingiu um alto grau
de sofisticação, consegue – se de tudo, desde oportunidades em outras
galáxias, bem como seres artificiais, graças aos avanços da engenharia
genética. Tornou – se possível produzir não só animais artificiais, já que a
maioria das espécies entrou em extinção, como também protótipos humanos
que podem ser adquiridos como empregados. Essa sociedade de consumo
é representada em Blade Runner pela personagem Zhora. Esta replicante
trabalha em uma espécie de casa de shows, onde tudo é exibição, um
espetáculo, e a imagem pública é essencial, a começar pelos freqüentadores
do lugar com suas roupas exóticas, um revival de várias épocas, anos 40,
dançarinas de cabarés, anos 30... A própria replicante é a imagem do
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espetáculo, com sua cobra artificial e o seu corpo exibido através das
roupas que veste.
Fig. 22 Zhora é eliminada por Deckard
Peças de vestuário que deixam o corpo à mostra e, lembrando uma
vitrine, ela coloca uma capa de plástico transparente e se põe a fugir de
Deckard pelas ruas labirínticas de Los Angeles. Na cena da sua morte,
Zhora é atingida nas costas por um tiro disparado pelo blade runner Deckard e
atravessa camadas e camadas de vitrines, nas quais estão expostas vários
tipos de mercadorias e produtos. Além dessas características próprias do
consumo moderno, Blade Runner apresenta um mercado livre, onde se
pode encontrar outros produtos, como simulacros de animais que foram
extintos da natureza, peles artificiais, olhos humanos, produtos da
engenharia genética e das tecnologias proporcionada pelos avanços da
sociedade pós – moderna presente no filme.
Na cena final vemos o interrogatório do início transformado em
perseguição: o caçador tornou-se a presa. O replicante Roy, fruto da
engenharia genética, ser construído com os produtos do mercado pós –
moderno, dança em êxtase, uivando, irradiando a força; ele guarda todas as
saídas do apartamento em que se encontram. Aterrorizado, o herói Deckard,
escala a fachada do prédio até o alto. Sua única escapatória é saltar no
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vazio para alcançar o prédio vizinho – o policial blade runner prepara-se para
dar o pulo… Deckard pendurado pelas mãos, vê apenas Roy, o filho
prodigioso de Tyrell imitar seu salto, como se voasse. Parece um semideus;
neste estado exaltado encontra a vontade positiva de salvar Deckard, que
lhe estende a mão em seu desespero trágico. Deckard alcançou o limite da
mediocridade, Roy o limite da morte: a figura do sacrifício, um estado de
abandono.
Blade Runner é uma odisséia de sujeitos – homens e mulheres –
humanos e pós–humanos, em busca da sua essência. Esta busca conduz o
espectador a uma indagação sobre o que é ser humano. É um filme que
contém uma reflexão filosófica sobre o problema da identidade humana,
debilitada pela fragmentação e pelo medo que sente o sujeito diante da
vigência de estruturas mecanicistas e dos avanços biotecnológicos.
Fig. 23 O gabinete de Dr. Caligari
(1919)
Para trazer a atmosfera do medo e do desconhecido, Ridley Scott
inspirou-se no filme noir como possibilidade de aproximar – se do futurismo
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empreendido pelos diretores alemães expressionistas como F. W. Murneau
e Fritz Lang. Estes diretores transformaram – se em mestres do cinema, e
vieram depois a inspirar o cinema noir das décadas de 40 e 50 dos filmes
americanos. Uma das características desses diretores do cinema alemão
pós - primeira Grande Guerra foi expressar o medo do homem daquela
época frente ao desconhecido, ao horror da guerra e a mecanização pela
qual o mundo estava passando. Além disso, a Alemanha enfrentava uma
séria crise financeira e o cinema conseguiu sobreviver com orçamentos
baratos, graças à incursão de arquitetos e profissionais vindos do teatro, que
utilizavam uma cenografia simples como uma boa solução aos altos
custos27. Nesse contexto, Ridley Scott trabalhou o cenário futurista por meio
de maquetes e sobreposições de imagens, o que trouxe para as telas uma
idéia da fragmentação dos sujeitos e do mundo contemporâneo. Estes
artifícios cênicos criaram um efeito de caleidoscópio e, de certo modo,
tornaram possível a materialização de um mundo confuso e destruído,
amedrontador, tal qual nas cenas dos filmes do expressionismo alemão.
O expressionismo alemão, conforme já citamos anteriormente, é uma
cultura de crise, um reflexo do profundo desalento espiritual gerado nos
campos de batalha da Primeira Guerra Mundial. A face da morte, estampada
nos rostos de milhões de jovens precocemente ceifados, despertou os
sentimentos de terror, misticismo e magia, adormecidos na alma alemã. A
certeza positiva dos sonhos de glória do imperialismo germânico cedeu
espaço à sombra da derrota, da humilhação e do desespero. O
27 O filme noir basicamente significa “filme escuro”, uma variação do termo francês do século XIX “novela escura” – referindo-se a qualquer número de dramas policiais carregados de significados psicológicos, gênero cinematográfico expressivo dos anos 40 e 50. Há sete elementos em um filme noir que Raymond Borde e Etienne Chauteton apontam em Panorama du film Americain: um crime; a perspectiva vista dos criminosos, e não da polícia; uma visão invertida das tradicionais fontes de autoridade, tal como a corrupção policial, alianças e lealdades instáveis; a femme fatalle - a mulher que causa a ruína e a morte de um bom homem; violência bruta; motivação e mudanças em complôs bizarros.
renascimento do horror foi, pois, o fermento ideal para o surgimento do
espírito expressionista, fim de todas as ilusões de poder. Povoado de
incertezas e sombras, surgia, inclemente, um novo mundo, e o movimento
expressionista, apoteose do indistinto e do vago, se transformaria na estética
perfeita para esta realidade atroz.
Neste contexto podemos afirmar que Ridley Scott, em Blade Runner,
traça um paralelo entre o horror da guerra vivida pelos alemães e o
estranhamento da evolução tecnocientífica vivida pelo homem pós –
moderno. Por meio de sua visão expressionista, torna recorrente a descrição
de um futuro no qual a humanidade é controlada de modo absoluto pelas
máquinas ou pelos grandes conglomerados que monopolizam a tecnologia,
tais como a Tyrell Corporation, a empresa de engenharia genética que fabrica
os replicantes. No filme, a técnica se converte em um meio para a fabricação
de seres vivos, sejam eles humanos ou não, simulacros da natureza perdida.
Figura no. 24 Cena do filme Blade Runner
Os objetivos, tanto da Tyrell como dos replicantes, parecem convergir:
a Tyrell busca a fabricação de seres perfeitos “mais humano que os
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humanos” e para isso, cria o mecanismo de implantes de memórias, para
dar a falsa impressão ao replicante de que ele é humano. Já os replicantes
fugitivos buscam um aperfeiçoamento de sua genética para aumentar a sua
expectativa de vida. O drama dos replicantes é o drama humano, ou seja, ao
ouvir do seu criador que não podem ter um tempo de vida maior, os Nexus 6
colocam – se diante do limite da inteligência humana. Diante dessa
impossibilidade de realizar o seu desejo – viver mais – em uma das cenas
mais significativas do cinema no século XX, Roy mata Tyrell, a cena do
criador sendo dilacerado pela própria criatura remete a uma morte
metafísica, a morte de Deus, do criador sugerida por Nietzsche.
Há duas versões para o filme de Ridley Scott. A primeira, lançada
comercialmente em 1982, continha uma narração em off, por imposição dos
executivos do estúdio, e feita por Harrison Ford - protagonista do filme,
intérprete de Deckard. Na versão do estúdio, o policial Deckard (Harrison
Ford) termina com a replicante Rachel (Sean Young) sobrevoando num
spinner, em um céu azul sobre um prado verde, um verdadeiro happy end
hollywoodiano. Completando este final feliz, os executivos determinaram que
Rachel era um tipo de replicante especial e que ninguém sabia quando ela
morrerá.
A outra versão foi lançada em 1991, em DVD, e é chamada versão do
diretor. Nesta versão Scott reivindicou a sua genuína visão, sem a
adulteração dos estúdios. Nela, o diretor deixa mais claro que Deckard é um
replicante, elimina a narração em off e o final “feliz”, menos ambíguo,
imposto pelos estúdios. O final do filme é assombroso, violento e envolvente.
A fantástica visão gótica de Scott é expressa por meio dos belos efeitos
plásticos como: a iconografia, o futurista mundo alquebrado, a fotografia, a
composição musical e o instigante argumento que deificam a história.
Fig. 25 Rick Deckard
Ridley Scott concebeu Blade Runner como uma história futurística,
uma grande metrópole dominada por asiáticos em um vasto centro urbano.O
desenvolvimento da sociedade do capital é o desenvolvimento ampliado de
suas contradições sociais, seja no campo da técnica e da tecnologia, seja no
da sociabilidade e subjetividades humanas e também do ecossistema
urbano – social. O “estranhamento” atinge o trabalho e a reprodução social,
o que significa que desefetiva a memória e a identidade do homem,
dilacerando seus referentes de espaço – tempo, comprimindo – os e
imprimindo neles sua marca indelével. A manipulação de homens e coisas
assume dimensões cruciais. A sociedade pós – moderna tende a se tornar
uma imensa coleção de objetos – mercadorias complexos, criados pelas
tecnologias de engenharia genética. No limite, a produção de mercadorias
atinge a produção de supostas inteligências artificiais e de objetos –
replicantes no limiar do ser humano.
A ordem industrial pós – moderna parece dar lugar a novos princípios
de organização estruturados em torno do conhecimento, não da relação
trabalho/capital, baseados na máquina para ampliar o poder mental, ao invés
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da força muscular. No filme, o conhecimento em expansão produziu um
comércio no qual a engenharia genética introduziu um simulacro humano.
Os replicantes vivem em um mundo que superou suas limitações de
tempo/espaço, graças às tecnologias e à globalização do mundo. Mas a
antiga classe trabalhadora ainda não desapareceu totalmente. Seres
humanos vindos de países pobres vivem em Los Angeles e formam o
proletariado pós – industrial explorado. É essa mescla cultural, intensificada
pelos novos meios de comunicação, que confere ao pós – moderno seus
pontos de referências sociais.
Fig. 26
Vídeo – wall em Blade Runner
O filme dirigido por Ridley Scott atravessou o imaginário do futuro com
sua construção de identidades difusas, especialmente prematuras para
1982, mas que a globalização e as tecnologias de informáticas trataram de
ilustrar na continuação do tempo. Na cidade de Los Angeles há o triunfo da
cultura oriental e das próteses corpóreas, um futuro no qual convivem a
técnica e o homem que alteram as leis naturais, replicantes em busca da
consciência, do passado, da memória nunca possuída e a vertigem das
cenas noturnas, com as luzes da metrópole transfiguradas pelo sentido
artificial da angústia das próteses vivas e humanizadas.
97
A decadência da sociedade é retratada através de imagens de
destruição, destruição do mundo e dos seus habitantes por meio de um
sistema de fabricação de produtos desordenado e descontrolado. Estas
imagens estão presentes principalmente nas figuras dos próprios
replicantes, com seu design idêntico aos seres humanos, sendo produtos
descartáveis, iguais a tantos outros da sociedade contemporânea,
fabricados para ter uma vida útil curta; além disso, as imagens de
decadência também se refletem na fragmentação da própria vida.
Blade Runner envolve temas pós – modernos situados em um
contexto de compressão de tempo – espaço. O conflito ocorre entre pessoas
que vivem em escalas de tempo diferentes e que vivem e vêem o mundo de
formas diferentes. A cidade de Los Angeles é a representação de um futuro
em ruínas, uma paisagem decrépita de desindustrialização e de decadência
pós – industrial, reflexo de uma sociedade em crise e em busca de respostas
que resolvam os problemas que a sociedade inventou.
Fig. 27 A cidade de Los Angeles
A Los Angeles do futuro representa a (des) ordem da sociedade
subjugada por um Estado de vigilância e controle. A ordem é assumida pelas
corporações pós – industriais, que usam seu poder para criar réplicas
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humanas criadas para servir a estas corporações. Com o surgimento desses
seres fabricados, dá – se o surgimento de formas de vida de sujeitos que
não são humanos, mas que têm mais sentimentos que os próprios humanos.
Dentro deste contexto, o propósito de se criar novas formas de sujeitos
deriva do desejo de conseguir uma existência supra – humana e de se
estabelecer novas formas de controle.
Os replicantes de Blade Runner são a sublimação do desejo de criar
um ser superior em inteligência e dotado de vida, mas subordinado e
escravo da vontade humana e das corporações que os criaram. Os
replicantes são o substituto ideal, para as atividades pesadas que são
executadas fora da terra, o substituto idôneo e perfeito do humano frágil; não
se queixa, rende mais e trabalha melhor, seu desgaste é mínimo e seu
salário inexistente. Os replicantes pertencem à Tyrell Corporation – uma
grande corporação que garantiu a sua sobrevivência em troca da sua
liberdade, submetendo-os ao sistema de produção sem questionamentos e
sem que eles se rebelem contra o seu poder.
Outra característica marcante em Blade Runner é a música. A
atmosfera sombria do filme é enriquecida pela trilha sonora criada por
Vangelis28. Vangelis trabalha sobrepondo suas performances umas às
outras, em um gravador multifaixas - multitrack record - tocando virtualmente
toda a peça musical sozinho. Esta trilha em particular é um esforço
tecnológico, atraindo a força conjunta de uma bateria de sintetizadores e
28 Vangelis Papathanassiou – compositor grego, autor da trilha sonora do filme Blade Runner – o caçador de andróides.
100
outros equipamentos. Algumas das principais razões pelas quais a trilha
sonora de Blade Runner ainda parece contemporânea, foram a escolha dos
instrumentos usados e também o modo como Vangelis combinou sons
acústicos e eletrônicos para produzir texturas sonoras evocativas, muito
originais, como por exemplo, a combinação de instrumentos de percussão
orquestral e linhas completas onipresentes com sintetizadores, ouvidas no
tema de abertura, tocadas no sintetizador predileto de Vangelis, o Yamaha
CS80. Este sintetizador analógico pode ser ouvido em quase todas as faixas
da trilha sonora de Blade Runner, tornando-se um impressionante veículo
sonoro. No caso específico de Blade Runner, é a música emocional que
parece dar vida, envolvendo em uma atmosfera inquietante os mundos frios,
duros e tecnológicos representados na tela.
Blade Runner e seus replicantes são singulares, seja na música, seja
na história. Do mesmo modo que Frankenstein escapa das mãos de seu
criador, os replicantes também fogem em busca do seu tempo perdido. O
mistério da vida e o enigma de sua diversidade desabam como a chuva em
Los Angeles do século XXI.
101
2. A relação maquínico – humana.
A história se passa em data e lugar concretos: “Los Angeles, novembro
de 2019”. A partir deste posicionamento espaço – temporal, Ridley Scott
desenvolve questões que podem ser divididas em categorias dialéticas
filosóficas que são tratadas no filme e que analisaremos neste tópico e no
subseqüente. Estas dialéticas estão assim categorizadas: natural versus
artificial; homem versus máquina; o real e o imaginário; a desumanização
das cidades e a identidade humana.
a) Natural versus artificial
A oposição entre natural e artificial é assim o operador de todo um
conjunto de passagens e de transgressões que nos revelam o homem como
um ser arrancado de sua mera verdade física e biológica. O homem é um
ser de fronteira que assume seu lugar como um ser capaz da transformação
criativa do mundo. O paralelo do natural e do artificial estava frente ao
avanço da técnica como um devir da literatura de ficção científica
transfigurada para a sétima arte. No filme, Ridley Scott traça um paralelo
entre o que é natural e o que artificial representado pela criação de um
conjunto de seres artificiais inteligentes com capacidade de produzir
autonomamente a sua própria expressão da vida ao levantar um conjunto de
questões, não só no que se refere ao que é artificial, mas acima de tudo à
própria idéia do humano.
Fig. 28 O olho humano em Blade Runner
Em uma das primeiras cenas, em claro contraste com o vasto
panorama urbano, aparece um olho humano no qual se refletem as luzes da
metrópole. É um olho vigilante – talvez o olho do espectador, talvez o olho
do diretor – que ocupa toda a tela como uma espécie de monitor ou espelho
no qual se refletem as ameaçadoras bolas de fogo que cruzam o céu.
102
A tomada seguinte mostra uma colossal construção: duas pirâmides,
símbolos do conhecimento, poder e morte. De novo aparece o olho, que
agora nos recorda um hieróglifo egípcio. Trata – se de várias coisas: um
órgão sensorial que durante o filme revela – se importante para a
identificação e a diferenciação dos replicantes; uma sala de projeção, lugar
no qual o espectador estará vivenciando o mundo real do filme; e os
103
símbolos do poder humano: conhecimento, força e morte. Nesta tomada a
íris é filmada em primeiro plano: o centro do olho parece agora um sol negro
rodeado de fagulhas de luz que nele se refletem; o universo espelhado no
olho se apresenta mesclado, interdependente e indivisível.
Gradualmente a câmara se dirige às pirâmides. Em uma das janelas
podemos ver o interior da construção, e encontramos um objeto
extremamente antiquado para esta megalópole futurista: um ventilador de
teto que revolve o ar pesado de fumaça de cigarro. Estamos no
departamento pessoal da Tyrell Corporation. Novamente nos deparamos com
a visão de um olho que agora parece ameaçador. Trata – se sem dúvida de
um olho artificial, de um aparelho fixo na pupila de Leon, um dos replicantes.
Em continuidade, na cena aparece algo mais familiar, uma tela que lembra
nossos monitores de computador. Por meio de um questionário especial, o
interrogador descobrirá que Leon é um replicante, uma obra mestra da
engenharia genética, muito difícil de se distinguir de um ser humano.
“Fale-me das boas coisas sobre sua mãe” – é assim que o investigador
de Blade Runner formula o que acabou sendo a última questão de um
interrogatório que tinha como objetivo testar se o seu interlocutor era um
humano ou um replicante."Minha mãe.... Devo falar sobre minha mãe..." -
não apenas a pupila de Leon não se dilata nem se contrai sob emoção, mas
o replicante nesse momento reage com um tiro a uma lembrança que ele
não possuía e a uma história que ele não poderia apresentar, ferindo o
investigador.
Fig. 29
O replicante Leon
Nesta cena, em que se desenrola o interrogatório, Ridley Scott traça
um paralelo entre o olho humano e o olho da câmara, entre o original
desenhado pela natureza e a imitação artificial. Olho e câmara se
confundem, como que querendo mostrar a origem de um e do outro. Ambos
conseguem muito mais que gerar imagens da realidade: os dois, câmara e
olho, são pontos de encontro e intercâmbio entre o mundo exterior e o
interior, entre percepção e identidade. Identidade retratada no filme que ora
analisamos por um dos blade runners – o policial Gaff –que aparece a
princípio como uma figura negativa, mas encarna um amplo espectro de
identidades, é fruto de uma mescla de várias raças, culturas e idiomas. Com
o enfoque mais positivista deste personagem, Blade Runner retrata uma
sociedade multicultural que une todas as raças, culturas e idiomas do
mundo.
Observamos em Blade Runner que o homem se livrou das limitações
do instinto para ajustar e variar as suas técnicas, não segundo suas
necessidades, mas segundo seus desejos. Na história do ser humano, de
modo geral, a técnica foi vista como “aplicação” da ciência – e nega assim
qualquer especificidade à inventividade como prova de um engenho
humano. Mas Martin Heidegger deixa claro no seu ensaio sobre a técnica
104
(2006) que a essência da técnica nada tem de técnico, ou seja, em outras
palavras, que essa essência é metafísica, e coloca para o mundo os seus
recursos à disposição do ser humano. Ridley Scott mostra os sujeitos
humanos ou artificiais como seres singulares que são, seres inteligentes
sempre em busca de novas descobertas. Sujeitos que não se adaptam ao
meio, mas que pelo contrário, adaptam o meio aos seus desejos, que se
revelam tão insaciáveis quanto diversos.
Fig. 30 Os replicante Pris e Roy
No filme, graças ao uso da essência da técnica, o homem se afirma
não como um ser de necessidades ou de razão, mas como um ser de
desejos. Estes desejos são identificáveis na epopéia do homem, ao criar um
duplo à sua imagem e semelhança totalmente artificial, mas que o
tornam tão perfeito, indistinguível do ser humano natural.
- Por que olha para nós, Sebastian? – pergunta Roy, o líder dos
replicantes.
- Por que são tão diferentes, tão perfeitos. De que geração
vocês são? Pergunta Sebastian, o designer genético da Tyrell.
- Nexus 6 – responde Roy.
105
- Eu sabia. Sou projetista genético da Tyrell Corporation. Há um
pouco de mim em vocês. Mostrem-me algo. - pede Sebastian.
- Não somos computadores, Sebastian. Somos seres vivos – diz
Roy.
- Penso, Sebastian, logo existo – completa Pris.
106
Fig. 31 Aparelho de Voigt Kampff
Em Blade Runner, o corpo artificial criado em laboratório em
nada difere do corpo natural criado pelo sistema biológico humano. O
filme trata do avanço da biotecnologia na construção do simulacro dos
homens, tão perfeitos que não são identificáveis, nem pelos
personagens do filme e nem pelos espectadores. Essa identificação
passa a ser possível por meio do teste Voight Kampff que é aplicado
aos suspeitos de serem replicantes29.
“... É a própria singularidade e exclusividade do humano
que se dissolvem quando vem à existência de uma criatura tecno
– humana... que simula o humano, que em tudo parece humana,
que se comporta como humano, mas cujas ações e
29 Voight kampff – ver terminologia ao fim desta dissertação.
107
comportamentos não podem ser atribuídos a nenhuma
interioridade, a nenhuma racionalidade, a nenhuma qualidade que
se costuma utilizar para caracterizar o humano” (SILVA, 2000: 15
a 16).
Por isso, no filme, a idéia dos replicantes é tão aterradora, pois
questiona a originalidade do humano na sua essência. A questão da
essência humana se dá no contexto de uma antropologia filosófica. Ela foi
elaborada pelos gregos à luz da questão do cosmos, pelos medievais à luz
do Deus Criador, pelos modernos à luz da Ciência e hoje esta questão se
coloca à luz dos atos tecnocientíficos, ou seja, pode – se dizer que o homem
é seu genoma. É uma definição muito perto de ser cientificamente exata: o
homem é a totalidade de seus genes mapeados e conhecidos em suas
funções.
No Dicionário de Filosofia (2001: 896 a 906), de autoria de Ferrater
Mora, encontramos uma observação do filósofo Max Scheller a respeito da
essência humana que anuncia o conflito do sujeito na pós – modernidade:
"Na história de mais de 10.000 anos, pela primeira vez o Homem tornou – se
problemático para si mesmo. O Homem não sabe mais quem ele é e se dá
conta de não sabê – lo. Já não temos do Homem uma definição global e de
aceitação universal, como na Grécia e na Idade Média; mais gravemente,
não sabemos definir o que é o ser humano”.
Ainda conforme Ferrater Mora, no que se refere à ontologia, a
questão da essência humana pode ser expressa assim: é a união do espírito
com o corpo, ou seja, o espírito define a especificidade humana. Portanto, a
alma racional nos diferencia radicalmente dos outros seres vivos. Esta
diferença é tão profunda que demanda uma intervenção divina.
108
Este é o núcleo metafísico e permanente do ser humano; dele
emergem como conseqüências naturais, a inteligência, a liberdade, a
criatividade, a consciência ética, a capacidade de diálogo, a sociabilidade,
enfim, todas as qualidades superiores do homem. Evidentemente, estas
qualidades são muito importantes, mas não são fundantes da estrutura
radical do homem: são somente conseqüência e manifestação de uma
estrutura mais profunda e ontológica, ou seja, a essência humana como a
união do Espírito com o corpo.
O ser humano é transcendente não só no sentido de uma intervenção
divina especial, mas no sentido de que é o produto mais avançado da
evolução da natureza. Nele e por ele a natureza dá um salto qualitativo e
alcança o estágio superior. Isto é, no homem e pelo homem a natureza salta
do estágio meramente físico, biológico e determinista para o estágio da
História presidida pela inteligência e pela liberdade.
Estas questões, à luz do filme, colocam a essência humana em
xeque: o homem se iguala a Deus, pois consegue criar um corpo por meio
de manipulação genética, intervindo no que deveria ser um ato biológico e
da natureza. Além disso, consegue dar uma alma, que seria um dom divino,
a um ser feito à sua imagem e semelhança e, por meio de próteses,
consegue dar a este ser potencialidades e possibilidades pelo exercício do
pensamento.
Diante da possibilidade de que tudo poder ser convertido em
simulacros, a distinção entre natural e artificial praticamente deixa de ter
sentido, só encontrando ainda uma necessidade de justificar esse sentido na
qualidade humana. O sujeito passa a ser projetado na existência de uma
máquina, enquanto que a máquina é a existência projetando a
109
potencialidade do criador. Uma ontologia centrada sobre a distinção entre
natural e artificial falha no essencial desta nova situação, ou seja, no fato de
ela própria oferecer uma condição comum a todas as coisas, tão
radicalmente comum quanto a da própria natureza, pois também ela contém
o humano e o não – humano e, ainda, o real informacional. Em todos estes
domínios parece viável a emergência de novas sintetizações
tecnobiológicas, tecnoquímicas e tecnofísicas.
b) O homem versus máquinas
A oposição entre orgânico e mecânico, na qual o pensamento moderno
tendeu a fixar – se desde a invenção dos primeiros mecanismos
automáticos, foi o primeiro pólo aglutinador da comparação entre os homens
e as coisas. O organismo, realidade a que a biologia moderna deu um lugar
central, importava como grande imagem da vida, da sua organização e da
sua complexidade, e como possibilidade de esclarecimento do seu mistério.
Mas o que começou a tornar – se verdadeiramente obsedante,
nomeadamente entre o séc. XVII e séc. XIX foi a possibilidade de
compreender e controlar a fronteira entre vida e não vida, como mostram as
miragens literárias de criação de seres artificiais e o desejo de animar as
imagens, como o cinema, a televisão e a interação do sujeito com as
diversas mídias que surgiram durante o século XX.
As tecnologias existentes mostram o outro através de inventos high tech
e se tornam evidentes e invasivas. No filme o olho mecânico tem a função
de vigiar e controlar o replicante por meio dos dispositivos tecnológicos,
avaliando as respostas e as ações dos replicantes denunciando sua
110
verdadeira identidade. A câmara de segurança, que mostra o olho
manipulado pela engenharia genética do replicante, é o olho onipresente e
onisciente da lei e da ordem, implantado pela Tyrell Corporation para
identificar os próprios replicantes que criou e não consegue mais distinguir
dos próprios humanos. O replicante cede ao olho vigilante, pois o seu olhar é
a possibilidade real de identificá – lo como ser não – humano que é.
A seqüência do Esper Machine é bastante ilustrativa no que se refere à
questão mecânica, envolvendo a reflexão das multimídias, especialmente as
mídias fotográficas e cinematográficas. A seqüência analisada concentra
todo um discurso referente à potência da imagem, as inter – relações
midiáticas e o impacto das tecnologias de informação nas sociedades
contemporâneas30.
Ao dar início à sua investigação, Deckard revista o quarto de hotel em
que Leon morava – um dos replicantes fugitivos, responsável por ter atirado
em outro blade runner chamado de Holden, ao se submeter ao teste Voigth
Kampff – teste da íris - que é aplicado nos replicantes. Ao vasculhar uma das
gavetas, Deckard encontra algumas fotografias que são coletadas como
provas para um exame posterior. Entre as referidas fotografias há uma que
chamará a atenção do investigador, que retrata um interior – provavelmente
do próprio quarto em revista. Nesta fotografia percebe – se um homem com
o braço direito refletido sobre a mesa, à esquerda da imagem, alguma
mobília e objetos domésticos espalhados pelo espaço e, mais ao centro – do
lado direito, um espelho redondo, fixo a uma parede – é pertinente lembrar
que a atmosfera da fotografia, sua iluminação, disposição dos objetos, o foco
30 Esper Machine – ver terminologia ao fim desta dissertação.
111
e o espelho retratados evocam a obra de Jan van Eyck – O Matrimônio
Arnolfini (1434), um quadro que mostra os protagonistas, além do pintor e
seu assistente, refletidos em um espelho, seqüência que conduz o
espectador a uma viagem pela arte ocidental.
Algumas seqüências adiante, no filme de Scott, Deckard encontra – se
sozinho em seu próprio apartamento, quando decide investigar a fotografia
encontrada no quarto de Leon. Ele insere a foto em um esper machine sobre
uma TV e automaticamente a imagem é reproduzida no vídeo. O blade
runner inicia uma investigação minuciosa da fotografia, operando comandos
vocais que ordenam ao aparelho ampliar determinadas regiões da imagem,
rastrear outros espaços, mudar de ângulo, reduzir e reenquadrar diversas
vezes. Com este artifício Deckard literalmente disseca a fotografia,
investigando cada região da imagem, cada vestígio suspeito, valendo – se
até mesmo de uma segunda imagem presente na primeira: o reflexo no
espelho circular. É nessa complexa investigação que Deckard irá descobrir,
após diversas ampliações, reenquadramentos e giros de ângulo, a imagem
de um indivíduo até então ignorado na fotografia a olho nu: uma mulher com
uma tatuagem no pescoço. Após centrar o foco sobre o rosto da
mulher e ampliar consideravelmente a imagem, Deckard solicita uma
cópia impressa em papel. Esta pista levará o blade runner a outro replicante
e dará início efetivo à caçada nas ruas de Los Angeles. Conforme observa
Bukatman em seu livro Blade Runner (2003), ficam evidentes as
características que definem o envolvimento entre a máquina e o humano.
Fig. 32
Aparelho esper machine.
A foto é inserida no esper machine, que reproduz a imagem
esquadrinhada no vídeo. O dispositivo é uma extensão tecnológica da visão
humana, capaz de desbravar minúcias de um universo em contato constante
com o virtual. Ainda conforme Bukatman, a investigação criminalística ocorre
extra loco, sendo que a busca de pistas é operada em um terminal
eletrônico. Além disso, o palco dessa mesma busca de pistas não deixa de
ser um fragmento de memória externalizado: deparamos neste ponto com
uma nova dimensão das relações entre o real e o virtual. O Esper Machine,
aparelho dissecador de imagens, amplia consideravelmente o poder da
visão, transportando o homem a outro patamar de realidade: renderizado e
virtual.
A fotografia pertencente ao replicante Leon, ampliada no vídeo é
investigada por meio de travellings, zooms e reenquadramentos, tudo isso
relatado em uma seqüência fílmica exposta ao espectador, que põe em
evidência a fotografia, o vídeo e o cinema, explicitando relações entre
diferentes suportes midiáticos. O filme de Ridley Scott, como aponta a
referida seqüência, é portador de um discurso relativo às simulações e
simulacros da pós – modernidade. O universo de Blade Runner é
extremamente simulado e ambíguo, baseado em tecnologias como extensão
112
do homem, conforme explica Marshall McLuhan no seu livro Os meios de
comunicação como extensões do homem (1996), as únicas capazes de,
ainda que fragilmente, distinguir a natureza do artifício. Assim como as
fotografias, os replicantes são mecanicamente reproduzidos à semelhança
dos humanos, e se constituem como a prova de uma humanidade que uma
vez houve, mas não existe mais.
As fotografias têm no filme uma simbologia especial: serviam para
legitimar as falsas lembranças dos replicantes. Em uma das mais tocantes
passagens do filme, a replicante Rachel, por quem Deckard se apaixona,
mostra para ele uma antiga fotografia, onde aparece ainda menina junto com
sua mãe. Rachel, que não tinha consciência de sua condição de replicante,
enxerga na fotografia uma maneira de comprovar suas lembranças e seus
laços afetivos com outros humanos. Esta imagem, completamente falsa para
o espectador, é o único indício que Raquel possui de seu passado, vivência
que, na realidade, só existe na fotografia.
Fig. 33 Deckard e suas investigações.
A investigação da realidade, do que é natural em oposição ao que é
fabricado, chega ao nível microscópico, conforme observamos na seqüência
em que uma mulher asiática atesta a artificialidade de uma escama de
cobra, examinando – a ao microscópio eletrônico, por meio do qual se pode
constatar o “número de série do fabricante”. A imagem da escama de cobra
ampliada no microscópio eletrônico para que se possa identificar a
113
114
impressão do número de série do fabricante, quase em nível molecular,
remete a um novo patamar de realidade, pois os artifícios da técnica já são
capazes de forjar a natureza, e começar a pôr em xeque a própria
concepção do real, em um universo no qual a imagem é passível de assumir
o caráter de verdade absoluto.
c) O imaginário e o real
Ridley Scott situa o real e o imaginário em Blade Runner por meio de
alguns dispositivos ligados à memória visual, tais como as fotografias e os
implantes que são colocados nos replicantes. Os replicantes não têm
passado: “nascem prontos”, para durar apenas quatro anos, são
emocionalmente inexperientes e produzem incansavelmente um acervo de
memórias visuais, as quais colecionam como um bem precioso, afinal é algo
que os humaniza. Os replicantes adoram suas preciosas fotos, lembranças
fragmentadas de uma vida não vivida, e guardam passagens de suas vidas
através de uma memória visual que lhes será recorrente em vários
momentos – “Eu vi coisas que vocês humanos não acreditariam”, exclama
Roy Batty em determinado momento do filme.
Memórias protéticas, fotografias arranjadas transformam a realidade do
tempo, e a existência em objetos tangíveis. Em Blade Runner essas
memórias e fotografias tornam – se a prova cabal de que seu portador vive.
As fotografias colecionadas pelos replicantes, como podemos constatar na
personagem Rachel, são como uma caução da sua própria existência. A
memória visual e sua materialidade momentânea constituída pelas fotos
“constroem” a identidade de objetos técnicos que almejam o status humano.
A foto da replicante Rachel, a sua prova de existência humana, no
entanto, revela – se uma fraude: as lembranças da replicante não passam
de um “implante de memória”. Se as fotografias de Leon fazem parte do seu
acervo de memórias, a despeito de sua materialidade e disponibilidade
no plano real, no caso da replicante Rachel a manipulação do
particular vai ainda mais longe: seus implantes de memória são um
experimento da Tyrell Corporation, com vistas a amortizar a inexperiência
emocional de seres com existência pré – determinada, bem como
aperfeiçoar a semelhança entre replicantes e humanos. “Mais humano que
um humano, esse é o nosso lema” - menciona o empresário Eldon Tyrell –
desmoronando a fronteira entre o real e o imaginário, entre o privado e o
público. As memórias de Rachel são de outro indivíduo, suas supostas
experiências são de conhecimento comum. Assim como o unicórnio que
aparece em sonho a Deckard, reproduzido em origami pelo personagem
Gaff – outro policial – no fim do filme, também são implantes colocados no
blade runner.
Fig. 34 A replicante Rachel.
Rachel, uma replicante de fabricação mais sofisticada, tenta convencer
Deckard de sua autenticidade como pessoa, produzindo uma fotografia de
sua mãe e uma menina que diz ser ela. No filme as fotografias são feitas
como uma prova de história real, mesmo que ela tenha sido forjada. A
imagem passa a ser a prova de realidade, e as imagens podem ser criadas e
manipuladas. Desse modo, imagem e memória acabam sendo suportes
115
116
essenciais da identidade, como diz o historiador Ulpiano Bezerra de
Meneses:
“O conceito de identidade implica semelhança a si próprio,
formulada como condição de vida psíquica e social. Nessa linha,
está muito mais próximo dos processos de reconhecimento do
que de conhecimento. (...) A Antropologia e a Sociologia, por sua
vez, nos informam que a identidade, quer pessoal, quer social, é
sempre socialmente atribuída, socialmente mantida e também só
se transforma socialmente. (...) Isto é, não se pode ser humano
por si, por representação própria: os valores, significações, papéis
que me atribuo necessitam de legitimidade social, de confirmação
por parte de meus semelhantes. Pode-se dizer, assim, que é em
virtude de definições que existem indivíduo e sociedade. Dentro
dessa ótica, é fácil entender que o processo de identificação é um
processo de construção de imagem, por isso terreno propício a
manipulações” (MENESES: 1987, 182 a 191).
Mais do que os meandros biológicos da vida, em que ainda hoje se
embrenham as discussões sobre o corpo “orgânico” ou “pós – orgânico”, são
os meandros metafísicos que estão em pauta nesta nova comparação entre
o ser humano e os objetos. Aliás, as imagens prospectivas de uma “vida
artificial” parecem dispensar crescentemente a idéia de um corpo, de um
espaço temporal de vida. Os objetos técnicos como os replicantes cobiçam
os atributos do humano manifestando precisamente uma pretensão ao que
nele há de mais intangível – a sua alma, ou aquilo que pensamos estar sob
a sua égide. O mundo artificial do mecanismo, centrado sobre as
compatibilidades e incompatibilidades entre o objeto e o corpo está dando
lugar a uma nova miragem: a tecnologia dos artefatos técnicos ou objetos
117
técnicos, do objeto que pensa, que sente, que simula as mais elevadas
capacidades da vida humana. Esta tecnologia promete, através de uma
inteligência artificial e de uma sensibilidade artificial, animar um mundo
imaterial, para o qual poderíamos fazer transitarem muitas das nossas
experiências humanas. As ficções destas novas animações inquietam e
seduzem inevitavelmente o mundo animado do cinema, como por exemplo,
o universo de Blade Runner (1982), Videodrome (1983) e, mais
recentemente, de Matrix (1999) e eXistenZ (1999). Por mais imateriais que
sejam os suportes deste novo mundo de coisas animadas, elas não deixam
por isso de ser coisas e de ser coisas que manifestam antes de nada mais o
seu modo pós – moderno de ser - o da sua disponibilidade para a
manipulação, que o virtual tecnológico aparentemente vem acentuar, por
meios de situações como “interatividade”, “conectividade”, “hibridação”.
O cinema, desde os primórdios, é pródigo na apresentação dessa
desestabilização das experiências humanas, bem como de experiências
fantásticas que vão desde a representação de seres sobrenaturais, humanos
ou artificiais, traduzidas em atitudes ambíguas em relação às
transformações científicas, combinando cinema com ciência – ficção. O
cinema também se consolidou como o lugar das celebrações da era da
máquina, instituindo o império da modernização, das novas tecnologias e
dos novos princípios científicos, sobretudo pela divulgação dos valores
utilitários que começaram a organizar o comércio e a produção e a alterar,
de maneira irreversível, o panorama da vida cotidiana.
Coube ao cinema parte importante da tarefa de domesticação desses
novos aparatos que povoaram o mundo moderno, gerando o novo universo
de consumo e desejo. Resumindo, o cinema é o terreno adequado para a
118
acolhida desta forma de narrativa que fala de hibridações, misturas, outras
experiências espaços – temporais, outras subjetividades, inteligências e
mesmo anatomias.
Dentro deste contexto, pode – se reconhecer no termo conjunto ficção
– científica um paradoxo, já que aí se juntam a liberdade da ficção e o rigor
da ciência, que atua, no entanto, produzindo e refletindo sobre a produção
das misturas. Podemos dizer que a modernidade formulou na ficção –
científica e no domínio privilegiado do cinema, do seu primórdio, desde
Metropolis (1926) de Fritz Lang, Blade Runner (1982) até a trilogia dos
irmãos Wachowski: Matrix (1999), Matrix Reloaded (2001) Matrix
Revolutions (2003), ou os filmes Videodrome (1983) e eXistenZ (1999) de
David Cronenberg, entre tantos outros, revelando graças à sua própria
forma híbrida de arte e indústria, as suas suspeitas e suas apostas diante
das possibilidades existentes nos hibridismos entre homens, animais e
máquinas, gerando assim versões possíveis de nós mesmos e “descrevendo
a vida tal como não a conhecemos”.
Assim explica – se o duplo vetor de interesse de filósofos e teóricos
da cultura como Baudrillard, Deleuze, Bukatman, Morin etc, buscando na
ficção – científica os sintomas e tendências da nossa época; e autores como
Ridley Scott, os irmãos Wachowski, David Cronenberg, e tantos outros, que
fazem implícita ou explicitamente menções a estes autores em seus filmes.
Listando os temas mais freqüentes da ficção – científica, temos: o fim
dos tempos; os paradoxos temporais; a comunicação com “inteligências
demonstrando formas de vida diferentes”; as desconstruções múltiplas das
diferenças entre natural e artificial, humano e não – humano, vivo e não –
vivo, real e virtual; as mutações e reconstruções dos corpos humanos, etc.
119
É evidente que se pode encontrá – los, em combinações próprias, na
cinematografia contemporânea, mas é possível também mapear sua
presença no conjunto da história da ficção – científica: literatura e cinema, o
que nos permite dizer que foi aí que estes temas primeiro apareceram para
nós. Em particular, a tecnologia ampliada pela ficção – científica no cinema,
nas suas realizações e potencialidades, parece destruir fronteiras
estabilizadas, expandido até domínios inimagináveis a experiência humana e
reconfigurando a capacidade cognitiva dos indivíduos.
Reconhecemos no mundo contemporâneo um leque composto pelas
biotecnologias, pela engenharia genética e pelas ciências cognitivas
relacionadas diretamente com o campo da inteligência artificial e da robótica
e as ciências da informação, que atuam na área dos computadores e das
redes e atualizam nossas experiências de simulação, realidade virtual,
ciberespaço, cibercultura, etc.
Os filmes que recentemente têm tematizado as ligações entre as
tecnologias do virtual e a transcendência, a máquina já não aparece mais
em sua materialidade como figura essencial, nem como objeto nitidamente
identificável. Não é possível detectar os signos de reconhecimento
tradicionais: engrenagens, botões, parafusos, brilho metálico, etc. Em Matrix
(1999), por exemplo, sabe – se que os “agentes” são programas de
computador que existem apenas enquanto entidades virtuais. As outras
“máquinas” apresentadas no filme possuem um aspecto que em nada
lembra as máquinas de filmes como Metrópolis (1926), um dos primeiros a
apresentar uma máquina – robô; e são poucos os elementos que permitem
reconhece – las como máquinas. Elas nos dão a impressão de serem
criaturas orgânicas: aranhas, polvos, besouros...
120
Fig. 35 Videodrome (1983)
O universo de David Cronenberg apresenta as duas obsessões que
prevalecem neste tipo de cinematografia: a intersecção sangrenta entre a
tecnologia e as bizarrices da mente humana, que desafiam a noção de
realidade. Um de seus filmes, Videodrome (1983) é uma perturbadora
película que revolve as influências da imagem do vídeo na mente humana,
desafia as nossas expectativas, e abre – nos para o estranhamento, sendo
também uma bizarra premonição de futuro: basta substituírem a tecnologia
do vídeo pelas tecnologias digitais, e Videodrome torna-se uma
prefiguração do futuro virtual da humanidade.
Videodrome narra o percurso em queda livre de Max Renn, diretor de
um pequeno canal de televisão via cabo, a Civic TV, especializada em
conteúdos pornográficos. Numa tentativa de aumentar a audiência, Max está
sempre à procura de produtos novos, que testem os limites, indo sempre
um pouco mais além daquilo que já é oferecido. Ele descobre, por meio de
um dos seus funcionários, através da pirataria, uma emissão de sinal de TV
que é constituída apenas por torturas e assassinatos de caráter sexual
perpetrados em uma simples sala vermelha, e que deixam Max Renn
121
fascinado. Esta emissão, simplesmente intitulada Videodrome, é para ele o
futuro do seu canal. Mas Renn depara – se com estranhas personagens que
vivem à margem de uma cultura audiovisual centrada na tela da televisão.
Vê – se assim, um campo de batalha em que se digladiam um
teórico/teólogo da transcendência da humanidade através do vídeo, um
personagem inspirado pelo influente teórico cultural que foi Marshall
McLuhan, e os interesses ocultos da corporação multinacional que produz o
Videodrome.
O sinal do Videodrome gera alucinações na mente de Max Renn; o seu
corpo começa a sofrer mutações físicas. Em uma das cenas mais
arrepiantes, Max Renn é programado através da inserção de um cabo de
vídeo, que respira e se mexe nas mãos dos programadores, em um orifício
estranhamente vaginal que se abre no seu peito. Em outra cena, a mão de
Max Renn transmuta-se num apêndice biomecânico, fundindo – se com uma
arma. Como toda a história é contada sob o ponto de vista de Max Renn,
nunca percebemos se as alucinações são ou não reais; na mente de Renn,
as fronteiras da realidade dissolvem – se, as imagens televisivas se
sobrepõem às imagens reais. A televisão tornou – se a retina dos olhos da
sua mente e prepara – se para transcender a sua humanidade e transformar
– se na nova carne.
Videodrome (1983), ao debater as fronteiras entre a realidade e a
virtualidade, preconizou as noções de "realidade virtual" e "realidade
aumentada", em que os dados digitais se sobrepõem às percepções dos
nossos sentidos, para gerar a realidade que a nossa mente percebe. Depois
Cronenberg realizou eXistenZ (1999), que de certa forma atualiza os temas
de Videodrome, explorando as intersecções físicas e mentais entre a
realidade e a virtualidade, levando – nos a questionar se o que vemos e
pensamos é, realmente, verdadeiro.
122
Fig. 36 eXistenZ
Em eXistenZ (1999), os personagens encontram – se em um cenário
de jogos de computador e da realidade virtual, que retrata os encontros de
usuários de um videogame, neste jogo a máquina é literalmente um ser
vivo e orgânico, que se pluga simbioticamente na espinha de seus
usuários, imergindo – os em um mundo de experiências absolutamente
virtuais, porém tão ou mais “reais” do que a realidade. Durante um encontro
destinado a testar o novo jogo eXistenZ, alguém tenta assassinar a
criadora e designer do jogo, Allegra Geller. Ted Pikul, um pacato estagiário
de marketing, é incumbido de zelar pela segurança da atemorizada designer.
Geller está preocupada, acima de tudo, com os danos infligidos ao programa
e solicita a Pikul que se conecte com ela, para poderem jogar e fazer os
testes necessários. Mas Pikul é um dos poucos que não possuem um Bio –
Port, a ligação na base da coluna que permite ligar os pods diretamente ao
sistema nervoso, fornecendo ao jogador ilusões impossíveis de distinguir na
realidade. O casal é perseguido através de cenários que podem, ou não,
fazer parte do mundo real. Essa desmaterialização da figura das máquinas é
acompanhada por uma desmaterialização do corpo humano. A máquina
passa a ser apenas um ruído para aqueles usuários conectados em
123
sistemas de rede e que depois de horas imersos, vêm experimentar a
realidade.
Neo, o protagonista de Matrix (1999), trava suas batalhas sem fazer
uso de seu corpo real, por meio de uma “imagem digital” de si mesmo, o que
caracteriza a identidade dos sujeitos não é a presença do corpo humano,
mas sim a “humanidade” de sua personalidade, ainda que esta seja uma
construção inteiramente virtual e artificial.
Scott Bukatman, no seu livro Blade Runner define com perfeição
esse novo estado de coisas: “Os símbolos visíveis da aspiração tecnológica (...)
desapareceram de nossa visão e de nossa consciência. As novas tecnologias eletrônicas que
agora proliferam na era da informação são invisíveis, circulando fora de nossas
experiências do espaço e do tempo” (1998: 2).
Bukatman analisa esse “desaparecimento” da tecnologia, bem como
a diluição do humano no maquínico no contexto da “ficção científica pós –
moderna”. Ao novo modelo de identidade – imaterial – surgida nesse
cenário, o autor chama de “identidade terminal”. A identidade terminal
representa, assim, uma “dupla articulação na qual encontramos tanto o fim do
sujeito como uma nova subjetividade construída na estação de computador ou na tela da
televisão” (Idem: 9).
As categorias que foram analisadas no filme Blade Runner, e os
aspectos das novas possibilidades de hibridização entre o sujeito e as
tecnologias vistas em Videodrome, Matrix e eXistenZ evidenciam o que
vem a ser a vida artificial modelada pelas tecnologias de comunicação e o
impacto dessas hibridizações, reconfigurando as diferenças entre o sujeito
moderno o sujeito pós – moderno.
124
Se o sujeito tradicional desaparece de fato, é uma questão que ainda
deixa margem a muitas dúvidas. Mas é inegável a proliferação de
representações culturais que dão conta dessa morte ou virtualização do
sujeito, projetado no espaço humano – maquínico.
3. Projeção do espaço humano – maquínico
Uma imensa cidade que parece sem fim, intensamente verticalizada,
negra e febril, fortes explosões de gigantescas chaminés quase atinge uma
máquina voadora. A cidade sendo observado por um olho que reflete as
luzes desta megalópole. Assim somos apresentados ao mundo e ao que
seria a projeção do espaço humano – maquínico de Blade Runner (1982).
O mundo da experiência urbana; lugar onde o ser humano vive seus dias no
caos por ele criado, mundo no qual a natureza não existe, ou, quando existe,
é artificial e criada pelo próprio homem.
d) A desumanização das cidades;
A cidade do futuro de Blade Runner situa a Tyrell Corporation no centro
da metrópole e as demais estruturas estão ao seu redor. Na marginalidade
das fábricas, corporações e indústrias estão os grupos sociais. Os membros
desta sociedade localizada na metrópole de 2019 do século XXI se
organizam em clãs que lutam entre si para possuir o território. Estão
claramente identificados em um espaço de caos, no qual a anarquia
prevalece. Uma metrópole onde as leis e o poder assumem uma postura
repressora que propicia a segmentação, privilegiando algumas classes em
detrimento de outras.
Fig. 37 Los Angeles, 2019
O filme retrata a cidade nos seus extremos, cidade sem fim que agride,
aprisiona, mas que é o ambiente do ser humano, portanto onde a luta pela
125
126
vida se dá. A cidade pós – futurista do filme é um ambiente hostil, mas que
proporciona a vida a diferentes tipos de seres humanos. Lugar em que reina
o caos, espaço onde se dá a tensão entre a tecnologia avançada - no caso
os replicantes - e a luta pela sobrevivência de seres humanos, lugar da
selvageria das ruas imundas e do ar irrespirável. Cidade multicultural,
fragmentada, alucinante, caótica. Cidade pós – moderna: a cidade que
representa o fim das utopias.
Os prédios são gigantescos, quatrocentos andares do chão para cima,
formando canyons artificiais por onde a chuva ácida se acumula. No nível da
rua, a multidão – uma exótica mescla de raças – se amontoa com seus
guarda – chuvas com luzes de néon. Centenas de pessoas, asiáticos, punks,
gangues de ruas, hare krishnas, caminham pelas ruas exibindo um vestuário
exótico. A cidade vomita fogo. As chaminés das fábricas iluminam o céu
com imensas explosões, o ar está contaminado, os céus escuros, turvos
pela poluição das fábricas, uma chuva incessante cobre a cidade. A cidade
que aparece nas primeiras cenas mostra a decadência irreversível do
sistema urbano e a desumanização das cidades.
Raios de luz cortam a cidade labiríntica e enormes video-walls exibem
imagens publicitárias aparentemente acima do nível das ruas. Não sabemos
identificar sua territorialidade física, mas percebemos que estamos
mergulhando nas intricadas redes de uma megalópole futurista, nas suas
estruturas rizomáticas, na angústia do caos dentro da obscuridade da cidade
que se alastra sem limites, envolvendo a cidade e seus habitantes.
Fig. 38
Los Angeles século XXI
A cidade de Los Angeles que aparece em Blade Runner mostra os
aspectos de uma cidade em decadência pós – industrial. Armazéns vazios e
instalações abandonadas são atingidos ininterruptamente por uma chuva
ácida provocada pela poluição. A névoa toma conta de tudo, o lixo está
acumulado em toda parte, as infra – estruturas estão em desintegração, à
cidade é um imenso canteiro de obras, não para construir, mas para
consertar a cidade destroçada. Mas acima das ruas, da decadência e do
caos urbanos, há um mundo de alta tecnologia, veículos velozes sobrevoam
as ruas, balões dirigíveis de publicidade anunciam uma nova oportunidade
de vida fora da terra nas colônias interplanetárias.
Em Blade Runner, Los Angeles aparece tanto como um parque
temático, quanto uma simulação, combinando símbolos da era espacial de
alta – tecnologia com a visão vitoriana do crescimento desordenado e não
planejado. A cidade também é como uma entidade negativa, um espaço
escuro e super povoado, quebrado por formas e luzes em néon e estruturas
corporativas.
No nível da rua a cidade é caótica em todos os sentidos. Os projetos
arquitetônicos são de uma mescla de estilos que culminaram com o pós –
moderno que David Harvey denominou em seu livro A condição Pós –
127
128
Moderna (2004). A Tyrell Corporation está abrigada em um edifício que
parece uma réplica das pirâmides egípcias; a arquitetura é uma mescla de
colunas gregas e romanas que se misturam à arquitetura dos maias, dos
orientais, da era vitoriana e a contemporânea lembrando os shoppings centers
(2004: idem, 279). Shopping centers pós – moderno representado pelo grande
mercado global a céu aberto que se tornou a cidade, onde se compra todo
tipo de mercadorias, de roupas a cobras artificiais, um imenso shopping center
de simulacros.
Bukatman, no seu livro Blade Runner (1998) explica que essa
representação do espaço aponta para uma desorientação ou um
deslocamento de um mapa cognitivo, para que o sujeito possa compreender
os novos termos da existência na contemporaneidade. É nesta questão
relacionada a espaços e distâncias – podendo ser a separação entre as
pessoas, entre humanos e não humanos, entre planetas, entre ambientes
físicos e eletrônicos – que está a definição da existência contemporânea dos
personagens de Blade Runner, pois é nesse entre – lugar que se dá
configuração e a reconstrução da identidade e da memória. É dentro desse
contexto que a cidade aparece como elemento definidor e central da
existência humana.
A Los Angeles de Blade Runner apresenta um mundo no qual a
principal nota distópica é a mistura. Nada é o que pretende ser, tudo se
mescla e se imbrica, há um idioma que parece um esperanto degenerado,
falado pelas etnias que habitam a cidade. A arquitetura é um conjunto de
obras que remetem às arquiteturas egípcia, maia e neogótica. Esse mosaico
é a própria distopia, visto que elimina toda possibilidade de um mundo
purificado.
Fig. 39 O mundo de Blade Runner
Há conflitos entre as camadas da sociedade, entre pessoas que vivem
em escala de tempos diferentes e como resultado, vêem e vivem o mundo
de maneiras bem distintas. Os replicantes não têm história real, mas podem
fabricar uma, e a história foi, para todos, reduzida à prova da fotografia.
Mesmo que a convivência em sociedade ainda seja necessária e importante
para a história pessoal, também pode ser reproduzida, como mostra a
replicante Rachel. O simulacro é fortemente presente em todas as partes
desta sociedade. Deckard e os replicantes possuem um vínculo social –
tanto o policial quanto os replicantes são controlados e escravizados por um
poder corporativo dominante. Ao final do filme há uma certa tolerância por
parte das autoridades, quando o policial Gaff deixa Deckard e Rachael
fugirem para destino ignorado. Desse modo, o problema dos replicantes fica
sem solução, assim como as péssimas condições da imensa massa humana
que habita as ruas criminosas de um mundo considerado pós – moderno,
decrépito, desindustrializado e decadente (HARVEY, 2004: 281).
129
130
e) O desequilíbrio ecológico;
O mundo que é mostrado na tela do filme Blade Runner está
devastado pela poluição das indústrias químicas. Em primeiro plano vemos,
no horizonte, milhares de refinarias e usinas funcionando
desordenadamente. Este meio – ambiente apresentado no filme está
terrivelmente contaminado, dúzias de bolas – de – fogo explodem, deixando
uma névoa densa de produtos químicos expelidos das chaminés das
refinarias e usinas. A chuva ácida cai incessantemente sobre as ruas
abarrotadas de gente em Los Angeles. Mas seus habitantes parecem mais
melancólicos que essa chuva, perfilada como finas agulhas de cristal. A luz
não vem de nenhum lugar definido, mas de todos os pontos, do céu, dos out
– doors que sobrevoam a cidade, dos guarda – chuvas de néon, dos letreiros
luminosos das barracas. Tudo tem sua luz, mesmo que seja artificial, a
cidade brilha.
Em Blade Runner o meio – ambiente está exaurido pelas guerras, pela
poluição e pela superpopulação. O clima é quente e úmido devido ao
aquecimento global. A natureza está ausente do filme – quando se menciona
algum encanto natural, ele é artificial, pertencente apenas aos bem –
aventurados que podem se refugiar nas colônias interplanetárias.
“Uma nova vida espera por você nas colônias
interplanetárias. A chance de começar novamente em uma terra
dourada de oportunidades e aventuras. Novo clima, facilidades
de divertimento... Use seu novo amigo como um empregado
pessoal ou um incansável operário: feito sob medida,
geneticamente construído, uma réplica humana desenhada
especialmente para suas necessidades. Vamos para as colônias!
Este anúncio é um oferecimento da Shimago – Dominguez
Corporation. Ajudando a América a entrar num novo mundo”
(cena do filme Blade Runner).
Esta relação com a Natureza retorna no filme através da utopia
genética. Em um mundo sintético e funcional, introduz-se o sucedâneo
possível do natural – assim há uma coruja artificial vigilante no grande
escritório da corporação do Dr. Tyrell, existe uma jibóia artificial para
fazer o número com a replicante – dançarina Zhora, a primeira
replicante a ser removida por Deckard. Sebastian vive rodeado de
brinquedos construídos por ele, que andam e falam como se tivessem
vida. É um mundo onde se baniu a natureza e o natural, mas não seus
simulacros.
Fig. 40 Simulacros de Blade Runner
Em Blade Runner, a divisão de classes assume, de forma
radical, dimensões sócio – territoriais: os homens, embora proprietários
da força de trabalho ou de mercadorias que vendem no bazar global,
de fato, herdarão a Terra, mas uma Terra devastada enquanto
ecossistema, pela lógica da produção desenfreada. Estamos diante do
resultado supremo da sociedade de classes. Diante de um espaço
territorial exaurido no decorrer de uma modernização predatória, os
131
132
capitalistas decidem “curtir” sua vida e uma suposta identidade
humana em paraísos distantes “... terra dourada de oportunidades e
aventuras”, colônias espaciais, artifícios urbano – sociais, servidos por
escravos replicantes, novos servos pós – modernos, simulacros
funcionais de homens e mulheres. Na sua derradeira cena, o
replicante Roy traduz o que é próprio da condição humana sob o
sistema do capital e da vida imposta aos replicantes. Disse ele: “Uma
experiência e tanto viver com medo, não? Ser escravo é assim”. O
capital tende sempre a criar novas fronteiras de colonização para si,
mesmo que possuam o sentido ilusório de um “Novo Mundo”.
f) O que é a essência da identidade humana;
Ainda no que se refere à fotografia, encontramos no teste de Voight –
Kampff alguns aspectos referentes à relação entre fotografia, identidade e
história.31 Logo no início do filme, em uma espécie de prelúdio a toda a
ação, o replicante Leon é submetido ao teste pelo blade runner Holden – até
então não é dada ao espectador nenhuma explicação do que está
ocorrendo. Conforme será explicado algumas seqüências depois, o teste
consiste num esquema de perguntas cujo objetivo é motivar uma resposta
empática do indivíduo submetido – enrubescimento, flutuação da pupila,
dilatação da íris. A rigor, replicantes não têm emoções, nem mesmo uma
história, portanto não são capazes de demonstrar empatia. Mas o que mais
interessa é a natureza das perguntas com vistas a motivar uma resposta
empática; durante a inquisição do replicante Leon, a pergunta formulada por
Holden, definitiva para o desfecho da s eqüência é: “diga – me, em poucas
31 Teste de Voight-Kamff – ver terminologia ao final desta dissertação.
133
palavras, tudo que você se lembra de bom em relação à sua mãe”. Ora uma
vez que foram “manufaturados”, os replicantes desconhecem o significado
da palavra mãe, especialmente como elemento fundamental da própria
história pessoal de cada um. Em contrapartida, a replicante Rachael, dotada
de memórias “falsas”, procura atestar a verdade e o direito de sua existência
por meio de uma fotografia virtualmente sua, quando pequena, abraçada por
sua mãe. “Veja, essa sou eu com minha mãe”, exclama Rachel, exibindo a
Deckard a imagem, que ontologicamente comprovaria a veracidade de sua
existência. Conforme Roland Barthes escreve em seu livro A Câmara Clara:
Reflexões sobre fotografia (2000) as memórias são centradas na figura da
mãe, à medida que esta se relaciona com toda a questão da história. A
fotografia e a mãe são o elo perdido entre passado, presente e futuro.
No filme a mãe é necessária para contar uma história, à afirmação de
uma identidade no decorrer do tempo. Aquela fotografia – de posse de
Rachel, na qual se vêem uma mulher e uma criança – representa o traço de
uma origem e, logo, uma identidade pessoal, a prova de ter existido e,
portanto ter o direito de existir. Deste modo, Rachel, mesmo sem ter a
certeza de ser replicante, sente – se profundamente incomodada com sua
condição de não – humana. É próprio de sua natureza, ser incapaz de
possuir memória de vida pessoal única. Para ela, a memória é um simulacro
expresso em imagens fotográficas. Rachel, como o mundo midiático de
Blade Runner, está totalmente imersa em um universo de imagens
fotográficas; basta verificar, por exemplo, o próprio apartamento de Deckard
– a presença de inúmeros quadros de fotografias é marcante, o que mais
uma vez afirma que também Deckard é um replicante. O replicante está em
busca de sua identidade, nem humano nem máquina, o replicante é um
134
produto elaborado pelo ser humano, mas torna – se rejeitado por seus
próprios criadores, assim como o Frankenstein de Mary Shelley. São
apenas vítimas de experiências para serem simulacros vazios dos seus
criadores. Porém algo é subvertido no meio do caminho, de caçador à caça,
e o blade runner Deckard vai descobrir que nada é o que realmente parece.
Nem ele mesmo.
Os replicantes não possuem memória, mas implantes de lembranças e
recordações de outras pessoas. A ausência de memória dos replicantes não
os torna inferiores a outros humanos, mas, pelo contrário, é o que os torna
singulares. Eles têm um tempo de vida limitado e, tendo adquirido emoções
humanas, passaram a viver com uma melancolia tipicamente humana: a
não aceitação da finitude. Criados para serem escravos das colônias
interplanetárias, queriam libertar – se – queriam tempo. A angústia da
brevidade da vida se converte em uma presença inelutável para os
replicantes, uma vez que eles tomam consciência dessa fugacidade
temporal. O tempo “retirado” é a duração dos corpos manipulados pela
engenharia genética: quatro anos. Esta “idade ligeira” mudará, ou melhor,
eliminará a viagem em busca da vida de Roy e seus acompanhantes.
Em Blade Runner os replicantes se rebelaram contra o Estado,
representado pela Tyrell Corporation que os criou, fugitivos começam uma
luta sangrenta por sua liberdade. Os replicantes do filme estabelecem tanto
uma luta pela vida, quanto esta luta se estabelece contra o seu criador.
O ponto alto desta busca infindável de mais tempo é a seqüência em
que J.F.Sebastian, trabalhador terceirizado pela indústria genética de Tyrell,
e fabricante de brinquedos que lhe fazem companhia, solitário e doente
encontra – se com Roy – o líder dos replicantes – em seu apartamento, para
irem em busca do seu inventor – Criador, o genial Dr. Eldon Tyrell.
135
Fig. 41 A morte de Eldon Tyrell
A metáfora do filho pródigo que volta querendo esclarecimentos de seu
Pai e Criador é um dos momentos mais instigantes do filme. Roy ouve de um
Tyrell amedrontado e fascinado que ele é a sua obra mais bem – acabada.
Então por que tão pouco tempo é dado para um replicante? - retruca Roy.
Tyrell tem explicações que nada explicam. O filho rebelde tem que se
contentar com os “insondáveis desígnios” da Criação. Roy esmaga o
pescoço e fura os olhos do seu Criador. Vingado, desce para as ruas,
iluminado como Lúcifer, “anjo da luz”, exultante com a lucidez sem solução
da criatura precária datada para morrer. Além de Lúcifer, ele é Prometeu, o
“ladrão do fogo”, briga pela condição humana contra a arbitrariedade cruel
dos deuses.
Fig, 42
Roy Batty
136
Uma das cenas mais poéticas do filme é a morte do replicante
Roy, na qual ele comenta com Deckard sobre as coisas maravilhosas
que vivenciou nos confins das galáxias e lamenta – se que: “Eu vi
coisas que vocês nunca acreditariam. Naves de ataques em chamas
perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na
comporta de Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no
tempo como lágrimas na chuva. Hora de morrer!” Na iminência do
cessar de sua vida, Roy salva Deckard, que o perseguiu durante todo o
filme sob a justificativa de que – talvez, porque naquele momento, a
vida fosse infinitamente preciosa para ele.
Roy, preocupado com a decadência corporal à qual foi
condenado, não encontra respostas; ele busca encontrar na riqueza
das recordações a possibilidade de reclamar uma origem. Mas
finalmente é derrotado pelo sistema que o criou e que determinou o
tempo de sua vida, dominando sua temporalidade e não lhe permitindo
fugir ao modo de produção vigente. Torna – se impossível para ele
escapar, ultrapassar as fronteiras de sua condição e vencer a
brevidade do seu tempo de vida. Time to die - Tempo de morrer!
O dilema humano se amplia no replicante Roy, cujo grau de
subjetividade atinge o padrão mais próximo do humano – quando pergunta a
Deckard se ele "sabe o que é viver com medo“. Sua angústia e seu medo
vêm da iminência da morte; ao ver coisas extraordinárias, ele que foi
produzido para destruir, mas ao longo do seu curto período de vida evoluiu e
sensibilizou-se, ganhando uma dimensão humana. Prestes a morrer, Roy
solta uma pomba branca – símbolo do Espírito Santo na religião cristã – que
137
mergulha em um vôo em direção ao céu que se mostra levemente azul claro.
O replicante sente a angústia do tempo, destacando a unicidade e a
fluidez da sua experiência singular de vida. Roy serenamente descansa a
sua cabeça sobre seu peito deixando a vida.
O olho é o órgão guia de quem naquele ambiente procura a vida. O
caçador de replicantes (ele também um replicante?) procura na sua coleção
de fotografias aquele tempo perdido que sua memória não pode oferecer. Os
replicantes procuram em seu criador, o humano, a chave para ultrapassar
aquela memória implantada que só a fotografia pode lhe dar. O replicante e
o humano são filhos do mesmo ambiente. Ambiente esse que, por lhes
negarem a vivência, os transformam em caçadores. A cidade é a selva
desse enlace pós – moderno, ao mesmo tempo é quem dá a vida e quem a
rouba. Blade Runner expressa o limiar da passagem do moderno para o
pós – moderno, a falência da utopia moderna. Passado, presente e futuro
estão contidos numa mesma temporalidade.
Como Já foi dito no capítulo anterior, a possibilidade de se criar uma
máquina inteligente, e se possível mais inteligente do que nós, sempre
esteve presente nos sonhos humanos, ora como ambição, ora como
pesadelo. Para nós, do Golem aos replicantes, a história é conhecida. Na
primeira fase, dos primórdios até aos anos oitenta do século XX, o modelo
para a construção dessa máquina foi o próprio homem, tanto na forma,
quanto na configuração da própria inteligência, ou seja, tanto no fenótipo
quanto ao genótipo. Daí a construção de desajeitados bonecos de lata ou o
objetivo de ver um computador derrotar o campeão mundial de xadrez, uma
e outra coisa foram realizadas sem sobressaltos. Isto nos leva ao caminho
da reprodutibilidade técnica, seja de produtos, seja das imagens. No que
138
tange à reprodutibilidade da imagem, esse caminho percorrido vai desde a
pintura, passando pela invenção da fotografia, depois com a criação da
imagem em movimento do cinema e da televisão e também das imagens
digitalizadas.
A invenção do cinema e o aparecimento do computador conduziram a
uma alteração nos domínios da imaginação e da visualização. Aquilo que a
invenção da fotografia significou como desligamento da realidade, a imagem
criada para o cinema e a imagem digital radicalizou um novo tipo de
realidade, chamada de virtual. Uma realidade que efetivamente não existe
fisicamente em parte alguma, mas que produz efeitos, tão ou mais profundos
do que a realidade vivida. A realidade virtual vem demonstrar que o nosso
cérebro não faz distinção entre o mundo físico e o mundo imaginado. Coisa
que já sabíamos a partir dos sonhos, mas que adquire uma outra dimensão
fenomenológica, já que com o cinema temos sonhos perfeitamente
acordados.
Somam – se as expressões provenientes da fotografia e do cinema:
revelar, velar, obturar, super expor, aplicar filtros. Assim, hoje é possível
rebobinar o filme da vida, operar flashbacks ou cortes abruptos em certas
seqüências, focalizar ou aplicar zoom sobre um determinado detalhe, evocar
uma cena em câmera lenta ou realizar uma decupagem cuidadosa, fazer um
rápido travelling em uma paisagem ou em um cenário particular, efetuar um
close-up sobre um rosto específico, repassar uma seqüência inteira do próprio
passado de maneira linear e pormenorizado, priorizar a trilha sonora de um
determinado episódio ou editar a montagem de diversos eventos como se
139
fosse um vídeo – clipe. E, ainda, reproduzem – se cada vez com mais força
as metáforas procedentes do universo informático: agora também é possível
arquivar ou deletar algum dado da nossa mente, escanear na memória
procurando algo esquecido, gravar uma informação com segurança
redobrada, clicar no ponto certo e abrir um inesperado link hipertextual.
Não são inocentes estas alterações nas formas com que pensamos
as recordações, os mecanismos da memória humana e a própria vida como
um relato. A vida passa a ser, com freqüência crescente neste novo
contexto, uma história inspirada nos modelos cinematográficos e
multimidíaticos que permeiam e recriam constantemente o mundo, enquanto
o “eu” se espelha nos personagens que desbordam das telas e modelam o
real. Esta evidência permite-nos encarar a criação de mundos paralelos que,
por serem virtuais, não são menos reais do que o mundo que nos é dado
existir. A realidade virtual da era digital é na realidade expandida, uma nova
dimensão que se acrescenta.
Além disso, o mundo do trabalho de Blade Runner é constituído por
uma mancha de “informalidade”, de trabalhadores autônomos, alguns
altamente especializados, que utilizam a alta – tecnologia. Deckard recorre
aos serviços de uma artesã hightech para identificar o número de código de
um fragmento de escama encontrado nos vestígios deixados por Zhora, uma
replicante Nexus 6, no apartamento de Leon. Ora, no cenário pós – moderno
de Blade Runner, conciliam-se degradação ambiental e pessoal com high
tecnology. O mundo do trabalho é um imenso bazar de atividades de serviços
industriais subcontratados e de entretenimento de caráter mafioso, e
expressão de sobrevivências seculares da sociabilidade urbana degradada,
como o saloon de Taffey Lewis, onde se apresentava a replicante Zhora com
seu número “Sra. Salomé e a Cobra”.
Fig.43 Zhora e a cobra artificial.
A recorrência à fotografia, às questões de origem, às tecnologias da
informação e à própria figura dos replicantes, simulacros do humano
que perderam o elo com seu próprio referente, remetem a uma busca de
identidade. A construção realiza-se no âmbito da morte, da destruição e do
final como um começo lembrando o eterno retorno. O filme, fragmentado em
universos descontínuos e paralelos, evidencia um tempo e um lugar repleto
de características ligadas à pós – modernidade: simulacro, o bem – estar
estrutural, a ruptura entre o corpo e a linguagem e o futuro do virtual.
Blade Runner expressa, no melhor estilo pós – moderno, uma
bricolage de situações típicas da temporalidade estendida e presente do
capital. Passado, presente e futuro estão contidos em uma temporalidade
hipertensa. Enfim, não existem, a partir da ótica da narrativa, perspectivas
de “negação da negação”. No bom estilo de Hollywood, as contradições
sociais se traduzem em meras saídas individuais – mas perguntaríamos,
parafraseando Gaff, são realmente saídas? Afinal, quem escapa?
140
141
Capítulo III
Estruturas sociais do sujeito – maquínico na configuração midiática.
Este capítulo será dedicado ao estudo das transformações do sujeito
gerado no cerne de uma sociedade em transformação: o sujeito moderno
formatado a partir da idéia do que é Modernidade, e o sujeito pós – moderno
do século XXI.
Começamos definindo o que é Modernidade, Modernidade
considerada como a era da transformação do conhecimento científico em
tecnologia, da industrialização da produção, da criação de novos ambientes
humanos a partir da destruição dos antigos, da explosão demográfica, dos
sistemas de comunicação de massa dinâmicos e híbridos. Modernidade que
traz a questão do sujeito moderno e o coloca frente a frente com o humano e
o não – humano.
Porém, no século XXI, diante do que chamamos de Revolução Tecno
– estética, outra experiência está por se formar e, portanto, encontra – se
ainda em curso, chamada de Pós – Modernidade. Estamos diante desta
experiência, de tempo e espaço, de si e dos outros, das possibilidades da
vida, momento no qual surge outra concepção de sujeito, o qual se
convencionou chamar de sujeito pós – moderno.
Em um curto espaço de tempo, a humanidade caminhou
decisivamente em direção ao domínio técnico, tanto de artefatos quanto dos
seres vivos. Nesta caminhada o ser humano viu surgir diante de si
passagens significativas dessa sua história. Os avanços da inteligência
humana, ilustrados através dos progressos tecnológicos, puseram em
142
evidência a evolução da ciência em função do domínio das técnicas, domínio
este voltado para a construção de um sujeito pós – moderno que a
sociedade científica e tecnológica está colocando em curso.
Ao longo do tempo, o homem imaginou inúmeras versões do humano.
Muitas dessas versões, por mais interessantes ou inteligentes que
parecessem foram efetivamente descartadas, enquanto outras, também
inteligentes ou execráveis, foram guardadas no museu de horrores que a
humanidade sempre se mostrou capaz de produzir. Mas as versões que se
tornaram aceitáveis e que adquiriram corpo histórico nunca se impuseram
em um só dia, sem erros, dramas e convulsões (LECOURT: 2003 14). A
época da tecnologia é, para a consciência humana, uma época de
esperança e horror, ambígua e confusa. Enquanto, em um dado momento, a
tecnologia é igualada ao progresso e à promessa de um mundo de
abundância, livre de labuta, em outro ela evoca a visão de um mundo
enlouquecido, fora de controle, remetendo às visões de Mary Shelley em
Frankenstein (1808) ou de Goethe no Fausto (1818).
Possuímos, mesmo que de maneira confusa, a consciência de viver
um desses momentos, em que somos incumbidos da responsabilidade de
“criar” uma nova concepção, uma nova prática do que é o sujeito em
sociedade (Idem: 16).
Neste contexto, procuraremos elaborar o caminho que o sujeito tem
percorrido para construir – se e se reconstruir no processo civilizatório.
143
1. O sujeito moderno
Para definirmos o que é sujeito moderno é necessário, em primeiro
lugar, definir o que é Modernidade. Modernidade, como entendemos, é uma
designação abrangente para uma série de mudanças materiais, sociais,
intelectuais e políticas que ganharam visibilidade a partir do final do século
XVII e início do XVIII, com a emergência e a difusão do Iluminismo, até se
consolidar durante o século XIX e na primeira metade do século XX.
Anthony Giddens (1991:13) define a Modernidade como sendo um conjunto
de descontinuidades em relação ao período anterior (pré – moderno), em
que dominavam as tradições e as crenças irracionais, instituindo modos de
vida diferente dos anteriores. Touraine (1994:12) afirma que “a
Modernidade rompeu o mundo sagrado, que era ao mesmo tempo natural e
divino, transparente à razão, lugar no qual o bem e o mal deixam de ser
definidos por uma tradição ou mensagem divina”.
Portanto, o sujeito moderno é aquele que incorpora uma identidade,
que possui valores pautados pelos elementos característicos da
subjetividade, tais como as questões de ordem moral, de Estado, culturais e
artísticas, e que estabelecem as bases para a convivência em sociedade.
A Modernidade é, muitas vezes, definida em relação ao
Humanismo, seja para saudar o nascimento do sujeito, seja para anunciar a
sua morte. Paralelamente a esta discussão, encontra – se também o
nascimento da questão relativa à “não – humanidade” das coisas, dos
objetos e o surgimento de um Deus destituído de seu poder Criador. Este
conjunto de situações também contribuiu para o surgimento da
Modernidade; em um plano no qual proliferavam os objetos híbridos, criando
144
mundos separados, dividindo entre o que está acima e o que está abaixo,
entre os humanos de um lado e os não – humanos de outro.
Por isso, Blade Runner (1982), de Ridley Scott, com seu conjunto de
metáforas, mostra a passagem do período compreendido como
Modernidade para a Pós – Modernidade. Visto sob este ponto de vista,
consideramos o filme como um suporte metodológico do qual extrairemos
nossa constatação teórica. Ridley Scott aborda a transição da Modernidade
para a Pós – Modernidade por meio de dialéticas traduzidas, em sua
maioria, por situações nas quais os personagens, seus sentimentos e a
ambientação do filme, são dotados de certa ambigüidade. Nestes ambientes
o novo e o antigo convivem, confirmando esta dialética.
O desenvolvimento das sociedades modernas expressa – se pela
formação de esferas de valores como o Estado, a sociedade, a ciência, a
moral e a arte, entendidas como encarnações do princípio da subjetividade.
Subjetividade representada no filme pelo protagonista Deckard, que é
obrigado pelos dispositivos controladores da sociedade – os policiais
corporativos – a “aposentar” os replicantes. Apesar de ter – se aposentado,
no sentido usual do termo, Deckard é convocado a utilizar a sua habilidade
de investigador policial, de blade runner, para caçar os replicantes da geração
Nexus 6. Sua vida pregressa é obscura, escondendo talvez algo
incriminador, pois percebe – se que, para “convencer” Deckard a cumprir
sua missão, é feito um jogo de chantagem pelo chefe de polícia Capitão
Bryant. Como diz ele: “Conheço o jogo, meu chapa. Se não topar, está
acabado”.
A passagem de uma sociedade pré – moderna e teo – determinada,
secular e ascética para a Modernidade, teve como figura emblemática o
145
filósofo René Descartes. Contudo, essa passagem não se deu com uma
ruptura brusca, ignorando tudo o que veio antes de uma maneira radical –
daí o termo “descontinuidade” de Giddens. Stuart Hall (2005: 27), explicando
essa descontinuidade, diz que “Descartes acertou as contas com Deus ao
torna – lo o primeiro Movimentador de toda a Criação; daí em diante, ele
explicou o resto do mundo material inteiramente em termos mecânicos e
matemáticos”. Em Blade Runner, Rick Deckard, personagem interpretado
por Harrison Ford é uma das alusões filosóficas subjacentes do filme; não é
por coincidência que a fonética do nome do protagonista do filme Deckard é
idêntica ao do filósofo francês Descartes. Outras alusões também são
colocadas no filme, por exemplo, a morte de Deus anunciada por Nietzsche,
questionamentos sobre a essência humana e sobre os avanços das técnicas
e da ciência.
Descartes concedeu privilégio absoluto à mecânica, supondo uma
organização geral da natureza, porém pressentiu o movimento da vida, a
espessura da história e a desordem, difícil de ser dominada, da natureza.
Mergulhado em um mundo dominado pela perfeição reguladora do relógio,
Descartes procura definir o homem – ou pelo menos a sua essência –
através da exclusão: o universo pode ser como uma máquina; o corpo,
inclusive o humano, pode ser como uma máquina; mas a alma ou a mente,
e, portanto, aquilo que faz de nós de fato humanos, terá necessariamente
de escapar a este universo do mecanismo. No seu quadro teórico, que é
ainda equiparável ao de muitas doutrinas contemporâneas, só o dualismo
entre o ghost e a machine permite salvar o livre – arbítrio de uma concepção do
mundo progressivamente mais determinista. Desse modo, o embate entre os
replicantes – não – humanos contra seus criadores – humanos pode ser
considerado como a metáfora do dualismo da máquina e do espírito. Quanto
146
mais nos aproximamos da era contemporânea, mais o dualismo cartesiano,
quando observado segundo a perspectiva aqui eleita, parece resultar da
necessidade obstinada de se conceder ao homem um último reduto de
autonomia face à técnica, a qual, de tanto moldar o mundo e a sua imagem,
ameaçaria arrastar o homem à metáfora do universo como máquina e do ser
vivo como autômato.
O que não deixa de ser intrigante, pois acerca desta época ainda se
poderia afirmar que é o homem quem controla as suas invenções. Nesse
sentido, a alegoria marxiana do aprendiz de feiticeiro pode ser entendida
como a expressão mais acabada daquilo em que se transforma o
cartesianismo, quando levado às últimas conseqüências. Ou então de uma
espécie de pós – cartesianismo estranhamente coincidente com um
“animismo” invertido: a época atual em que a nova metáfora por excelência é
a do computador. Na cena do interrogatório em que o replicante Leon
elimina seu inquisidor, ao responder com dois tiros à pergunta: fale sobre
sua mãe? - é bastante elucidativa no que se refere ao “animismo” invertido,
pois a máquina tende a eliminar o problema para o qual não tem resposta.
Falar em subjetividade significa necessariamente falar em René
Descartes, o que não significa dizer que essa questão tenha surgido com a
filosofia moderna. Ao investigar os domínios da subjetividade, este pensador
do século XVII transformou – a em referencial central para o conhecimento e
a verdade. É na perspectiva do racionalismo que a filosofia moderna constrói
sua subjetividade, no interior da qual mantém as mesmas exigências e os
mesmos objetivos do discurso de Platão: a busca da objetividade pela razão.
Diante da incerteza quanto à realidade do mundo objetivo, Descartes afirma
a certeza do cogito. Porém, em Blade Runner esta certeza já não é
147
suficiente, como disse a replicante Pris para J.F. Sebastian: “Penso,
Sebastian, logo existo”. Isto é, não basta apenas “pensar para existir”; a
referência à famosa frase de Descartes, no filme, sugere uma critica ao
racionalismo cartesiano, base da filosofia do sujeito e da civilização do
capital. Em Blade Runner, o homem demonstrou ser capaz de dar a vida
aos artefatos – os replicantes Nexus 6 – mas não conseguiu ainda ser capaz
de dar – lhes um sentido para viver, condenando – os a sofrer de forma
infinitamente intensa esta experiência trágica.
É interessante verificar que Descartes coloca a tônica no pensamento,
enquanto o eu fica praticamente de fora de sua filosofia. Quando fala do eu,
não se refere a um sujeito, mas a uma substância pensante, substância esta
que é composta de linguagens e imagens. Por mais paradoxal que possa
parecer, a máxima cartesiana cogito ergo sum assinala a emergência da
subjetividade, mas não a do sujeito32. O homem presente em sua filosofia é
espécie ou gênero. Esta perspectiva é de racionalização do indivíduo e do
que se denominou pensamento cartesiano.
Com seu “penso, logo existo”, Descartes deslocou o centro das
coisas, de Deus para o homem individual, racional, centrado em si,
constituído pela sua capacidade de pensar e raciocinar por si – o sujeito
autônomo, “iluminado”, agente – sendo por isso chamado de sujeito
cartesiano.
A etimologia da palavra sujeito advém de sub + etno: em baixo,
situado. Inicialmente é um termo que se refere à substância das coisas
materiais, ao mundo objetivo e não ao sujeito. Atualmente, porém, o termo
sujeito faz sentido em oposição ao objeto, remetendo à idéia de substância.
32 “Penso, logo existo” - máxima do pensamento cartesiano.
148
Desta forma, remete a uma concepção essencialista, a uma noção de
interioridade. A noção de subjetividade, advinda do sujeito, refere – se a
sentimentos, à interioridade, em oposição ao mundo objetivo e aos outros
sujeitos.
Já a denominação indivíduo diz respeito ao que é indivisível,
compondo – se em oposição à idéia de sociedade. Neste sentido, este
conceito adquire significado no deslocamento da sociedade para o homem.
A identidade, em conseqüência, é o que mais ressalta o aspecto grupal e
coletivo da formação do indivíduo, opondo – se à similaridade com outros
indivíduos e à diferença dentro do grupo. Stuart Hall no livro Identidade
Cultural na Pós Modernidade (2005), afirma que a identidade moderna é
descentrada, ou seja, é deslocada ou fragmentada, havendo uma perda do
sentido de si como um elemento estável e um descentramento do sujeito de
seu lugar no mundo e com relação a si mesmo.
Os replicantes não possuem estes lastros da experiência humana.
Aliás, podem até possuí – las, mas são meras próteses, implantes de
outros sujeitos. Por exemplo, a experiência de memória de Rachel é um
implante da experiência de vida da sobrinha de Tyrell. Rachel chega a dizer,
imersa em uma crise de identidade: “Não sei se sou eu ou a sobrinha de
Tyrell”. Enfim, suas memórias pessoais não pertencem a ela, mas são de
outrem. Nos replicantes a própria memória passa a ser o descentramento do
seu lugar no mundo e em relação a si mesmo.
Segundo Hall, Raymond Williams acrescenta os seguintes
significados de indivíduo: indivisibilidade e singularidade, distinção e
unicidade. Aponta os movimentos históricos que atuaram no sentido de
149
construir esta concepção do indivíduo, a Reforma e o Protestantismo. Tais
movimentos teriam libertado a consciência individual das instituições
religiosas da Igreja. O Humanismo Renascentista, por sua vez, colocou o
Homem no centro do universo e as revoluções científicas conferiram ao
Homem a faculdade e as capacidades para inquirir, investigar e decifrar os
mistérios da Natureza. Desta forma, o Iluminismo centrou a imagem do
Homem racional, científica, libertado do dogma e da intolerância perante o
qual se estendia a totalidade da história humana, para ser compreendida e
dominada. O sujeito moderno, racional, centrado e unitário, na avaliação pós
– moderna, é uma construção muito particular do projeto iluminista, que o
pressupunha como capaz de opções racionais conscientes e autônomas em
relação à sociedade, desde que devidamente educado. Isso o tornava peça
fundamental na organização econômica e social dos Estados modernos. A
construção desta idéia de sujeito, universal e atemporal, só se tornou
possível graças aos aparatos discursivos e lingüísticos que, historicamente,
o manufaturaram.
O sujeito da razão, com o desenvolvimento dos aparatos da
Modernidade – Estado nacional, por exemplo, tornou – se enredado nas
maquinarias burocráticas e administrativas, que forneceram as bases para a
constituição da noção sociológica de indivíduo. Esta noção, apoiada nas
proposições da biologia darwiniana e nas ciências sociais constituiu um
sujeito biológico e socializado. Assim, a ‘internalização’ do exterior no
sujeito, e a ‘externalização’ do interior através da ação no mundo social
constituem a descrição sociológica primária do sujeito moderno e estão
encapsuladas na teoria da socialização (HALL, 2005: 12). Estas noções
foram se deslocando, a partir de algumas contribuições teóricas. Neste
150
sentido, tiveram efeito as críticas de Freud ao sujeito psicológico, as críticas
da razão instrumental da escola de Frankfurt e as críticas da filosofia da
linguagem ao sujeito constituinte de sentido.
Seguindo a argumentação de Hall, podemos apontar algumas
rupturas, tanto no nível teórico quanto no político, que possibilitaram o
surgimento da idéia de identidade enquanto algo não definível, não fixado.
Inicialmente, podemos colocar a tradição do pensamento marxiano, com a
idéia de que não há uma essência universal do homem e que essa essência
não é atributo de cada indivíduo singular. Posteriormente, com a crítica que
o inconsciente freudiano instaurou, colocando a noção de que há um
sistema preexistente ao sujeito, e há um outro da razão produzindo efeitos,
isto é, o recorte freudiano afirma que o inconsciente produz efeitos que o
consciente – lugar da razão – não controla.
Ainda no período da Modernidade, a crise da identidade e os
processos sociais estimularam o declínio das antigas identidades e o
surgimento de novas identidades que desconstroem o sujeito moderno. Tais
processos fazem proliferar situações, experiências, estímulos ilimitados e em
ritmo acelerado, fazendo os sujeitos transitarem entre demandas e desejos
diversos, impossibilitando-os de se constituírem como "sujeito unificado". O
sujeito que emerge desse processo é pura possibilidade, entrecruzamento
de identificações e diferenciações, como sujeito mutante e gestor de
"identidades próteses", que além de diferenciadas, são muitas vezes
contraditórias.
As fotografias da replicante Rachel são necessárias para afirmar para
si própria o simulacro de sua identidade pessoal. Tais representações, ou
151
melhor, signos de memórias, é quase uma extensão de si. O se que coloca,
a partir da experiência de Rachel em Blade Runner é o seguinte: até que
ponto nossas memórias pessoais são nossas e não representações ou
signos protéticos, implantados pelo complexo midiático vigente do sistema
do capital que produzem, por exemplo, nostalgia de um tempo não – vivido,
mas percebido no plano imagético? Dentro deste contexto o mundo social de
Blade Runner é o mundo de aguda manipulação da subjetividade.
No entanto, é preciso entender que a subjetividade moderna é capaz
de comportar uma pluralidade de identidades, pois está imersa em práticas
sociais descontínuas, que são sucessivamente reformuladas, instituindo
processos de identificação que sustentam a idéia da “política da diferença".
Estamos vivendo uma proliferação de processos e movimentos de
formação de identidades, sejam de caráter social, político, religioso, cultural,
étnico, nacional, sexual entre outros. Assim, nas sociedades
contemporâneas os indivíduos já não têm um lugar estável, seguro no
mundo social. Falta-lhes uma identidade que fixe e assegure um lugar e
significados. Ao contrário, estão imersos em processos e existências que
estimulam a pluralidade de ser e o fragmentam, descentrando-o em
"identidades abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas", como diz
Hall (2005: ibidem 36). O personagem Gaff – um blade runner – encarna um
amplo espectro de identidades e é fruto da mescla de várias raças, culturas
e idiomas. Este personagem anuncia uma sociedade multicultural que
integra as raças e os idiomas da terra.
Essa permanente busca, essa vontade de ser, coloca o sujeito diante
do imponderável – circunstância indefinível, mas que influencia o fazer e o
sentir – para encontrar a autenticidade desejada de fazer coincidir o que se
quer ser com o que se é. Rachel sente – se profundamente incomodada com
sua condição de replicante. É próprio de sua natureza ser incapaz de possuir
memória de vida pessoal única. Rachel, como o universo midiático de Blade
Runner, está totalmente imersa em um mundo de imagens fotográficas, por
exemplo, tanto o escritório do chefe de polícia – Capitão Briant – que
conversa com Deckard logo no início do filme quanto o próprio apartamento
de Deckard é possível encontrar a presença de inúmeras fotografias, o que
pode nos levar a refletir: se seriam eles todos replicantes, ou será que são
meros seres humanos em processo de desconstrução de sua identidade
humana por meio da corrosão da memória pessoal ou por meio da
manipulação avassaladora de suas experiências de vida passada?
Memórias protéticas e fotografias transformam a realidade do tempo e
da existência em objetos tangíveis. Em Blade Runner, esses objetos tornam
– se a prova cabal de que seu portador “vive” – paradoxalmente, em
consonância com a ambigüidade que permeia toda a sua estrutura, o filme
também irá insistentemente pôr à prova a noção da fotografia como prova de
um fato verdadeiro, e os replicantes buscam na fotografia sua identidade
perdida e aquilo que eles não são e nunca poderão ser – humanos.
\
Fig.44 Fotografias
152
153
Os sujeitos modernos buscam esta identidade perdida em uma
sociedade intensamente narcisista e individualista, como tem sido estudada
por Baudrillard em seu livro A Sociedade de Consumo (2000). É uma das
facetas do individualismo que emerge no contexto de uma lógica social do
consumo onde tudo e todos são transformados em formas produtivas.
O sujeito do Iluminismo fundamentava-se na idéia de um ser humano
centrado, unificado, racional, científico, dotado de consciência e ação. Seu
"centro" surgia no nascimento da pessoa e se desenvolvia ao longo da
existência, porém permanecia essencialmente o mesmo ao longo da vida.
Esse "centro essencial" era a identidade do indivíduo. A partir do Iluminismo,
o homem passa a ser entendido como um ser dotado de razão e capaz de
administrar a si próprio e a sociedade, sem a tutela de um ser superior. O
Iluminismo baseou-se nas leis da física de Isaac Newton; se estas
prescrevem a racionalidade da natureza, a natureza humana também
deveria ser regida pela razão. A Modernidade, portanto, estende ao sujeito
os mesmos princípios de estabilidade, unidade, equilíbrio e permanência que
caracterizavam a natureza. O sujeito do humanismo moderno é aquele que
está totalmente presente em si mesmo, auto – suficiente, racional e
possuidor de livre arbítrio.
No filme, os replicantes rejeitam o sonho da Idade Moderna, que
acreditava fielmente que a técnica era o paraíso sobre a terra. Se os novos
recursos tecnológicos são capazes de construir duplo de humanos, por que
não seriam capazes de conduzi – los à liberdade? Os replicantes querem
“humanizar” e “eternizar” os benefícios das tecnologias. Os seus sonhos –
almejam o direito à vida e a natureza perdida. Eles rejeitam a técnica que os
154
condenam a viver tão limitados, reivindicando novos recursos tecnológicos
para vivenciar experiências sem limites no presente.
O homem faz parte da natureza, mas suas capacidades específicas
de pensar, de ter consciência de si e de constituir uma cultura, distinguem –
no, concedendo – lhe a superioridade sobre os outros animais. É um ser que
se constitui como sujeito a partir de sua diferenciação com os objetos do
mundo. No entanto, ele é também objeto de conhecimento, o que lhe
confere o estatuto de sujeito e objeto, simultaneamente.
Porém, na medida em que as sociedades modernas se tornavam
mais complexas, elas adquiriram uma forma mais coletiva e social. As leis da
economia política, da propriedade, do contrato e da troca tinham que
prevalecer, depois da industrialização. O capital de Marx foi transformado
nos grandes conglomerados empresariais da economia moderna. O sujeito
individual tornou – se enredado nas maquinarias burocráticas e
administrativas do Estado moderno (HALL, 2005: 31). Surge a concepção do
sujeito sociológico, que reflete a crescente complexidade do mundo
moderno. A grande mudança ocorre na visão acerca do "centro essencial"
do indivíduo. Ele deixa de ser autônomo e auto – suficiente, estruturando –
se a partir das relações estabelecidas com outras pessoas responsáveis por
mediações de valores, símbolos e sentido – ou seja, a cultura. Assim, a
identidade é o espaço entre o "interior" e o "exterior", entre o mundo pessoal
e o mundo público do ser humano. O mundo social de Blade Runner é um
mundo capitalista, com a presença visível dos ícones das corporações
globais – Pan Air e Coca – cola – cintilando em luzes néon em um cenário
distópico.
155
O sujeito passou a ser visto como mais localizado e “definido”, no
interior dessas grandes estruturas e formações que passaram a sustentar a
sociedade moderna. Além disso, ele passou a ser localizado em processos
de grupo e nas leis coletivas. O homem sociológico refletia a complexidade
do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do indivíduo
não era autônomo, e sim formado em sua relação com outras pessoas: a
identidade da pessoa é formada na interação entre o eu e a sociedade.
Emerge desse processo uma noção de sujeito e de identidade mais
perturbadora; esta noção está vinculada aos movimentos estéticos e
intelectuais associados ao surgimento da Modernidade. Identifica – se a
figura do sujeito isolado, exilado ou alienado, em uma multidão ou em uma
metrópole anônima e impessoal, assim como vemos em Blade Runner – o
caçador de Andróides (1982).
Gianni Vattimo em seu livro O Fim da Modernidade (2002) aborda
as reflexões de Heidegger e de Nietzsche sobre o fim da época moderna e o
início da Pós – Modernidade. Nestas reflexões Vattimo aponta duas
questões importantes que conduziram o sujeito moderno a se deparar com o
momento de ruptura com as tradições modernas.
Segundo Vattimo, em primeiro lugar, Heidegger considerou que, a
partir do momento no qual o sujeito passa a ter um valor de troca, sendo
apropriado por outrem, surge a questão da redução de tudo que a técnica
pode criar, colocando o sujeito frente à dissolução do ser no valor de troca.
O sujeito se vê frente à crise diretamente ligada ao surgimento das técnicas,
que foram consideradas como a causa de um processo de desumanização,
e da perda da subjetividade humana (VATTIMO: 2002: 13). Enquanto
156
mercadorias complexas, os replicantes estão submetidos à lei do valor.
Portanto, devem ter um tempo de vida útil restrito. Deste modo, não é
apenas contra a perversidade dos limites objetivos da ciência e da técnica
da Tyrell Corporation que se revoltam os replicantes, mas contra a lei do valor
e a lógica contraditória do capital, que frustra as promessas de uma vida
plena de sentido, seja para homens, seja para os replicantes Nexus 6, em
uma etapa avançada do processo civilizatório.
Em segundo lugar, Vattimo associa as considerações de Nietzsche
sobre o niilismo e a morte de Deus a uma reflexão sobre o fim da
Modernidade. Sobre o niilismo, Nietzsche alega que a Modernidade chega
ao fim face ao que ele considera a decadência européia, a ruína dos
valores tradicionais consagrados pela civilização do século XIX. Nietzsche,
por intermédio do niilismo, desacredita em um futuro ou destino glorioso da
civilização, opondo – se, portanto, à idéia do progresso; e pela afirmação da
“morte de Deus”, negando a crença em um absoluto, fundamento metafísico
de todos os valores éticos, estéticos e sociais da tradição. O niilismo de
Nietzsche deve, no entanto, levar – nos a novos valores que sejam
“afirmativos da vida”, da vontade humana, superando os princípios
metafísicos tradicionais. A “morte de Deus” anunciada por Nietzsche existe
precisamente na medida em que o saber não precisa mais chegar às causas
últimas, o homem não precisa mais acreditar que ele possua uma alma
imortal (Idem: 9).
A partir da crise desencadeada pela técnica abordada por Heidegger
e do niilismo de Nietzche, Vattimo assinala o fim da Modernidade:
157
“... a consumação do niilismo, a vicissitude do valor da troca, da
dessacralização do humano... As características da existência na
sociedade capitalista, da mercadorização totalizada em
“simulacralização”... No mundo do valor de troca generalizado
tudo é dado – como sempre, mas de maneira mais evidente e
exagerada – como narração, relato da mídia essencialmente que
se entrelaça de inextrincável com a tradição das mensagens que a
linguagem nos traz do passado e das outras culturas...” (ibidem:
13).
O século XX foi fundamental para o estabelecimento da
reestruturação da sociedade; é a partir da consolidação dos processos
comunicacionais fomentados no século XIX – a fotografia e o jornal –
que começa a ser construída uma cultura semeada por processos de
produção, distribuição e consumo comunicacionais, classificada por
Santaella como “cultura das mídias”. Esses processos são distintos da
lógica massiva e vieram fertilizando gradativamente o terreno sociocultural
para o surgimento da cultura virtual ora em andamento (2000: 13) .
Como conseqüência das tecnologias de comunicação aparecidas no
século XX, e das circunstâncias geopolíticas configuradas na mesma época,
a cultura de massa desenvolveu – se a ponto de ofuscar os outros tipos de
cultura anteriores e alternativos a ela. Antes de existir o cinema, o rádio e a
TV, falava – se em cultura popular, em oposição à cultura erudita das
classes aristocráticas; em cultura nacional, componente da identidade de um
povo; em cultura clássica, conjunto historicamente definido de valores
estéticos e morais; e em um número tal de culturas que, interagindo entre si,
formavam identidades diferenciadas das populações.
158
A chegada da cultura de massa, porém, acaba submetendo as
demais “culturas” a um projeto comum e homogêneo — ou pelo menos
pretende essa submissão. Por ser produto de uma indústria de porte
internacional e, mais tarde, global, a cultura elaborada pelos vários veículos
então emergentes esteve sempre ligada intrinsecamente ao poder
econômico do capital industrial e financeiro. A massificação cultural, para
melhor servir esse capital, requereu a repressão às demais formas de
cultura — de forma que os valores apreciados passassem a ser apenas os
compartilhados pela massa.
A cultura popular, produzida fora de contextos institucionalizados ou
mercantis, teve de ser um dos objetos dessa repressão imperiosa.
Justamente por ser anterior, o popular era também alternativo à cultura de
massa, que por sua vez pressupunha — originalmente — ser hegemônica
como condição essencial de existência. O que a indústria cultural percebeu
mais tarde, é que ela possuía a capacidade de absorver em si os
antagonismos e as propostas críticas, ao invés vez de combatê – los. Desta
forma, a cultura de massa alcançaria a hegemonia: elevando ao seu próprio
nível de difusão e exaustão qualquer manifestação cultural, e assim
tornando – a efêmera e desvalorizada.
No contexto da indústria cultural — da qual a mídia é a maior porta – voz
— são totalmente distintos e independentes os conceitos de “popular” e
“popularizado”, já que o grau de difusão de um bem cultural não depende
mais da sua classe de origem para ser aceito por outra. A grande alteração
da cultura de massa foi transformar todos em consumidores que, dentro da
lógica iluminista, são iguais e livres para consumir os produtos que
desejarem.
159
Os anos oitenta do século XX constituem a ponte que liga um mundo
monocentrado nas grandes narrativas, como escreveu Jean – François
Lyotard no seu livro Linguragens: real versos virtual (1999), a um outro
mundo no qual o midiático e a instantaneidade se unem ao estreitamento
espacial do universo – a globalização – e, sobretudo, à pluralidade ou
fragmentação de códigos, referências e valores, descontruindo a identidade
do sujeito da razão. A subjetividade cartesiana vem sendo substituída
gradualmente por outras subjetividades, como escreve Lúcia Santaella no
seu livro Corpo e Comunicação...
“Subjetividade distribuída, socialmente construída, dialógica,
descentrada, múltipla, nômade, fala-se de subjetividade inscrita
na superfície do corpo, produzida pela linguagem, etc...”
(2004:17).
Esse pressuposto de um sujeito universal, centrado e unitário vem
sendo questionado neste intervalo entre a passagem de um pensamento
cartesiano, para um pensamento formatado a partir do surgimento de uma
nova era, a era da comunicação midiática, ou do sujeito midiático, em vias
de se tornar um sujeito virtual, face a cultura digital do século XXI.
Entendemos por ‘midiático’ o atributo característico de todas as entidades
cuja existência é determinada por uma rede, ou conjunto de circuitos, ou
seja, os novos limites que advêm da expansão do sujeito tecnológico.33
O midiático impõe – se numa época nova em que os grandes códigos
totalizantes deixam de mobilizar as sociedades, como já referimos, e, no
momento em que, por outro lado, surgiram novos moldes de interação e
espaços ciberespaciais, assim como uma assinalável ficcionalidade da
experiência, corporizada pelas redes midiáticas e ainda por uma
33 Digital: que se refere à simulação e ao computador.
reconfiguração radical do agir livre do sujeito e do objeto que se tornaram
globais.34
Fig. 45 Cena do filme Blade Runner
David Harvey, no livro A Condição Pós – Moderna (2004) apresenta
uma teorização sobre o espaço, na qual o encolhimento do mundo é
entendido como sendo um efeito de compressão do espaço – tempo, isto é,
da aniquilação do espaço pelo tempo resultante do desenvolvimento das
indústrias de transportes, comunicação e informática. Podemos concluir que
os fatores velocidade e simultaneidade são as bases estruturais para a
criação do mundo contemporâneo, pois ambos concorreram de forma
decisiva para o seu encolhimento e para o aumento da percepção
fragmentada do mundo, ao colocarem à disposição velozmente da
sociedade de massas uma incrível e inusitada quantidade de estímulos e
informações. Velocidade traduzida em Blade Runner pelos veículos que
sobrevoam a cidade e pelos raios de luz que cortam a cidade e os outdoors
que desfilam imagens no espaço repleto de significações, mas que não
160
34É na obra de William Gibson, Neuromancer, de 1984, que aparece pela primeira vez o termo ciberespaço (cyberspace). Neuromancer é um romance descrito pelo autor como uma “alucinação consensual” da mente, alcançada através da técnica do “jack in” – conexão do cérebro através de um plugue implantado na nuca. Cyberespaço tornou-se um sinônimo para a Internet e para a intrincada relação entre o virtual e o real no mundo contemporâneo (GIBSON: 2003, 5).
161
possui, no entanto, centro definido. Não sabemos identificar a sua
territorialidade física, mas percebemos que estamos a um passo de
mergulhar nas estruturas rizomáticas da cidade de Ridley Scott.
A velocidade, hoje, tornou – se um fato corriqueiro em nossas vidas;
os atuais meios de transportes deram um salto vertiginoso em termos de
velocidade e tecnologia, do começo do século XX até os nossos dias. O
trem, o navio, o carro e o avião são símbolos da Modernidade. Eles
possibilitaram o transporte mais rápido e seguro de pessoas e,
principalmente, agilizaram o comércio internacional.
Por outro lado, os aparelhos de simultaneidade – o satélite, a
televisão, o telefone e a internet – contribuíram sobremaneira para a criação
de realidades que, não sendo nossas, são vividas como tais. Esta
virtualidade facilita e energiza a mistura hipercomplexa de pessoas, capital e
informações, provocando dessa maneira uma profusão de informações que
os habitantes da nossa sociedade têm de processar.
Para poder processar tal quantidade de informações, o homem
moderno teve que adotar uma linguagem única, globalizada, provocando,
como conseqüência, a perda de sua identidade cultural, dos regionalismos,
das particularidades que o diferenciavam do outro. Ocorre então uma
uniformização que leva a uma alienação não só do discurso do sujeito, mas
também uma desreificação da realidade – o virtual torna tudo possível.
Estas considerações podem nos fornecer uma visão geral de como as
modificações, na cultura, levadas a cabo através da mídia, interferiram na
construção da subjetividade do sujeito, fazendo com que ocorresse um
162
descentramento da questão do sujeito como sujeito do desejo, para a do
sujeito do consumo transformado em objeto.
Quanto ao tecnicismo da sociedade, este “colaborou” para a
descaracterização do sujeito racional. Telefone, Internet, chats, celulares, e –
mails, tudo contribuiu para a constituição do e – indivíduo; onde quer que
estejam, centenas de milhões de pessoas, em um espaço virtual para uma
vivência digital, unindo fragmentos, pedaços do que não é; vivenciando a
comercialização da informação e a comercialização do indivíduo. Várias
redes em todo mundo, teias que o prendem a essa era tecnológica,
possibilitando – lhe várias formas de expressão, de existência.
Dentro desse contexto, a transição da sociedade moderna para uma
sociedade pós – moderna representa o desenvolvimento ampliado de suas
contradições sociais, quer no campo da técnica e da tecnologia, quer no da
sociabilidade e subjetividades humanas e também do ecossistema urbano –
social. O estranhamento atinge o trabalho e a reprodução social, o que
significa que desconstrói a memória e a identidade do homem, dilacerando
seus referentes de espaço – tempo, comprimindo – os e imprimindo neles
sua marca indelével. A manipulação de homens e objetos assume
dimensões cruciais. A sociedade em transição tende a se tornar uma imensa
coleção de múltiplo objeto - mercadorias complexas criadas pelas
tecnologias de engenharia genética. No limite da transição das sociedades
moderna para a pós – moderna, a produção de mercadorias atinge a
produção de supostas inteligências artificiais e do objeto – replicante no
limiar do ser humano.
163
Em uma perspectiva de confiança humanista na docilidade
instrumental do conhecimento técnico – científico, que alimentou grande
parte da aventura moderna, era possível pensar ainda que conhecíamos ou
compreendíamos melhor aquilo que precisamente fazíamos ou
realizávamos, nós mesmos. Mas, a aceleração do progresso técnico,
sobretudo a partir do século XIX, assim como alguns dos seus efeitos
problemáticos sobre a vida, trouxe consigo a impressão quase generalizada
de que a técnica corresponde a uma espécie de processo autônomo.
Processo pelo qual seríamos arrastados e cuja natureza escaparia aos
desígnios e finalidades estabelecidos pelo homem, algo que alguns filósofos
acabaram por descrever como a realização impensada de uma potência
libertada pela metafísica ocidental, mas não controlável pela sua ética, pela
sua moral, ou por qualquer outra filosofia prática. Grande parte da reflexão
sobre alguns importantes domínios da tecnociência contemporânea tem sido
feita sob o signo do fim do humano, ou do que alguns designam como o
“trans – humano” ou o “pós – humano”, nomeadamente diante das novas
possibilidades de manipulação e design da vida, em concorrência com a
própria natureza. Ainda que esta perspectiva seja abraçada por alguns com
entusiasmo, senão mesmo com euforia, não é possível evitar, no mínimo,
uma inquietação justificada: aquilo que estamos em vias de realizar e de
alcançar como novas conquistas e nova etapa da cultura humana se nos
apresenta como imensamente estranha ou incomensurável em relação à
própria idéia de humano, contradizendo a velha máxima de Terêncio: “nada
do que é humano me é estranho”.
Na era do “design completo” um estranho paradoxo parece, pois, se
instalar: a dominação artificiosa dos mistérios do mundo natural não
164
torna necessariamente o mundo mais humano ou mais familiar, como obra
nossa, mas sim, de novo, estranho e inquietante, senão mesmo mágico,
quase tão inapreensível e inapelável como uma nova natureza. O humano,
que nos habituamos a pensar como um processo de incrustação continuada
da cultura no que é natural, parece debater – se hoje com a imposição
cultural ou artificial de uma nova natureza. Foi sempre nesta oposição entre
natureza e cultura em que esteve fixado o pensamento da antropologia
moderna. Aquilo a que chamamos “natureza humana” constitui – se, não
sobre um conjunto de atributos essenciais conferidos pela história natural,
mas sobre uma questão ontológica: aquela que precisamente une e separa
“natureza” e “humano”.
Os replicantes de Blade Runner reconfiguram a idéia defendida pelo
romantismo alemão, que conferiu a figura do duplo – um sentido trágico e
maléfico. Mais uma vez, o temor em relação à presença da técnica, que na
concepção romântica tomaria o lugar do homem, é questionável. Trata – se
de uma falsa dicotomia entre técnica e homens sapiens, na tentativa de
esconder a natureza humano – maquínica dos seres humanos.
O problema do humano é assim o problema do nosso lugar e da
nossa ação no seio de todas as coisas existentes. E a resposta a este
problema veio, desde logo, por meio de um conjunto de gestos que visavam
e implicavam em si a natureza, operando transformações decisivas no seu
seio, e aprofundando a cisão do homem relativamente a ela. O gesto técnico
surge como decisivo, desde tempos imemoriais, para uma determinação do
humano e da sua relação à natureza. E, por isso, foi desde cedo evidente
para uma antropologia filosófica, que o crescente desenvolvimento da
técnica poderia vir a revelá – la como uma “segunda natureza”. Esta
“segunda natureza” em Blade Runner é desvelada por meio do artefato
“humano” desenvolvido pela Tyrell Corporation, pois o verdadeiro objetivo do
criador Eldon Tyrell é alcançar a perfeição fabricando artefatos técnicos
“mais humanos que os humanos”.
O olhar da moderna paleontologia confirma esta visão de uma
segunda natureza, transformando – a mesmo em uma espécie de narrativa
fundadora: a narrativa de um homem que surge, verdadeiramente, quando
nele se manifesta a capacidade de compreensão e manipulação do mundo à
sua volta, concomitante, por sua vez, ao surgimento da própria capacidade
simbólica. Para o olhar dos modernos não há invenção do humano sem
reinvenção da natureza e, por isso, todo o mistério da origem do humano
aparece como indissociável da oposição do artifício e do desígnio humanos
a uma plenitude do que é natural.
Fig. 46 Natural x artificial
A oposição entre natural e artificial é assim o operador de todo um
conjunto de passagens e de transgressões que nos revelam o sujeito como
um ser arrancado à sua mera verdade física e biológica. O sujeito é, assim,
um ser de fronteira e da transformação criativa do mundo, por ação
deliberada dele próprio, o sujeito cria processos nos quais se inscreve todas
as coisas dessa mesma fronteira entre natural e artificial. O modo de ser
165
166
daquilo a que chamamos “mundo” ou “humano” parece, pois, desde sempre,
indissociável de uma verdade ontológica, inscrita no coração das coisas, que
repete a própria cesura do homem. Esta cesura representa a todo o
momento o que permite ao homem a transcendência do que lhe aparece
como dado, mas também o peso desse dado sobre a invenção de outros
possíveis, isto é, o peso da criatura sobre o gesto criador. A humanidade
sente a constante necessidade de exceder os limites, criando formas
artificiais de vida, explorando a natureza e retirando dela elementos que se
tornam essenciais para suas criações. Blade Runner, através da cisão entre
os homens e as coisas por ele fabricadas, planta questões filosóficas e
morais, e prevê uma sombria distopia.
Se acreditarmos nas descrições e previsões atuais acerca das
possibilidades de ação e de intervenção do homem sobre todas as coisas,
nomeadamente sobre a vida e sobre si mesmo, dir-se-ia estar em
constituição uma nova ontologia em que tal cesura se apagaria: uma
ontologia do artificial, isto é, um modo de ser inteiramente intencionado pelo
homem. O apagamento da cesura do natural e do artificial faria com que
tudo não fosse senão testemunho do homem, em um certo sentido, portanto,
"demasiadamente humano" para ser ainda do homem e por isso, talvez,
“trans – humano” ou “pós – humano”. A ontologia do artificial requer uma
ontogenia que o próprio humano não parece suportar e que recai então
sobre a técnica, como se esta se emancipasse da própria esfera do humano
e da cesura que nela a inscreve.
A possibilidade de um universo artificial parece depender assim,
inteiramente, da hipótese de um estatuto autônomo e ontogênico da
tecnociência moderna. Tal possibilidade assenta, por sua vez, em um
167
pressuposto propriamente metafísico, o qual, em outros momentos, foi da
máxima importância para a ontologia, para a cosmologia, para a teologia
cristã e mesmo para a própria história natural - o princípio de “plenitude”,
conforme relembra o sociólogo português Hermínio Martins no seu livro
Hegel, Texas e outros ensaios de teoria social (1996). Segundo o
princípio metafísico da plenitude, tudo o que é possível é, foi, ou será atual,
isto é, realizado. Compreende – se, assim, esse sentimento fundamental do
nosso tempo: o sentimento de que a técnica é algo que nos impele, nos
conduz como um destino e não como um desígnio, algo que se substitui à
própria história ou a toda teleologia, algo perante o qual todos os debates,
nomeadamente éticos ou simplesmente metodológicos, acerca da imposição
de determinadas finalidades ou de determinados usos à técnica parece, no
mínimo, extremamente frágeis.
Encontramos na narrativa cinematográfica de ficção científica o
“Princípio da Plenitude”, no qual tudo é possível, pois na medida em que
esta investiga os modos de produção de subjetividade em uma sociedade
tecnocientífica, transforma tudo ou quase tudo o que é imaginado em
atualidade. Deste modo, Blade Runner prefigura a dissolução de fronteiras
entre humano e não – humano, factual e ficcional, visível e invisível, ciências
humanas e teórico – experimentais, trazendo para as telas o que poderá ser
transformado em objetos ou técnicas que farão parte do cotidiano do
indivíduo em um futuro próximo.
Em Blade Runner vê–se que a identidade do homem como sujeito da
Modernidade prometeica encontra – se irremediavelmente obliterada. Blade
Runner tende a negar, em si, qualquer identidade do homem consigo
mesmo. É possível destacar, dentre os múltiplos detalhes significativos do
168
filme, alguns elementos sobre a identidade do sujeito fragmentado. A
Tyrell Corporation é uma empresa – rede, tendo em vista que ela utiliza o
trabalho subcontratado de fornecedores para a produção das mercadorias –
objetos tecnicamente complexos – os replicantes, sujeitos não – humanos,
fragmentados em sua fabricação, produzindo apenas um determinado
componente daquela estrutura biotecnológica.
Por exemplo, quando o replicante Roy visita a oficina de trabalho de
um dos subcontratados da Tyrell, percebe que o fornecedor desconhece os
demais componentes de um organismo Nexus 6. Especializou – se apenas
em fabricar os olhos, mas nada sabe sobre o dispositivo capaz de dar mais
tempo de vida aos replicantes. É sintomático que Ridley Scott tenha
escolhido a atividade do produtor dos olhos para expressar a fragmentação
da atividade produtiva, atividade que nomeamos de “design completo”, seja
para a produção dos artefatos humanos ou para a fabricação de objetos. No
filme, os que produzem os olhos estão cegos sobre o produto final. Eis uma
dimensão suprema do estranhamento desse sujeito fragmentado.
Somando todos os caminhos percorridos pelo sujeito do Iluminismo,
chegamos a uma condição de transição do sujeito racional, moderno, para
um sujeito que sabe traçar o próprio caminho por meio do domínio da
técnica e da criação de um mundo no qual os artefatos e objetos, humanos
ou não, alcançarão a perfeição estética. Roy Batty, o líder dos replicantes, é
a tradução da perfeição estética humana tratada no filme. Belo replicante do
sexo masculino, é alto, louro, forte e ágil, além de inteligente, representando
a perfeição do design genético
169
O fato é que estamos nos aproximando de um momento de
transformação radical da nossa cultura, que poderíamos definir como a
entrada em uma era do design. Tal não significa apenas o reconhecimento
usual de que tudo ou quase tudo vai incorporando a sofisticação de
uma conjugação estética e funcional, como acontece, hoje em dia, com o
mais insignificante objeto, utensílio, aparelho ou máquina. De fato, o
reconhecimento do caráter crescentemente expansivo do design é, em geral,
identificado com uma ascensão de quase todas as coisas a uma discursão
social e cultural.
A era do “design completo” será, pois, a era na qual tudo ou quase
tudo parecerá ser o resultado de uma história natural, sendo ao mesmo
tempo, contudo, inteiramente intencionado, inteiramente concebido e
inteiramente desenhado, manipulado. Ou seja, a cultura, no seu estado de
“design completo” é a cultura inserida na era do apagamento da fronteira
entre natural e artificial, o momento em que aquilo que é inteiramente
intencionado pelo homem, tenderá a apresentar-se como puramente natural.
Na realidade, este pensamento vai ao encontro do próprio sentido da
palavra design, aparentada com a idéia de iludir, enganar, ou de criar
elementos que eliminarão os obstáculos que se apresentam à ação do
homem. Já que design , quer como nome quer como verbo significa
não apenas intencionar, visar segundo um plano, mas também esboçar com
sucesso uma simulação de algo sobre o qual possuímos um conjunto de
intenções. É neste plano que a idéia de design mais intimamente se reúne
às noções de arte, de técnica - techné e, ainda, de mecânica e de
máquina,
170
aproximáveis, todas elas de um pensamento artificioso que caracteriza o
sujeito como artefato manipulável e um ser de cultura.
No caso da distopia de Ridley Scott, existe um intenso jogo de
manipulação, objetivo e subjetivo, que podemos reportar à questão
da comunicação contemporânea. O ato de manipulação não ocorre apenas
na dimensão da exterioridade - a manipulação que outrem exerce sobre
mim, como é perceptível nas propagandas de néon em Blade Runner;
porém, a manipulação percorre a dimensão da interioridade, aparecendo
como intensa auto – simulação, na qual o ego manipula a si mesmo,
buscando constituir uma identidade pessoal auto – referenciada, como no
caso das fotos dos replicantes.
Este sujeito, resultado da tecnociência atual, vê – se diante de
programas radicais de substituição das realidades naturais em vários
domínios – biológico, químico e geoquímico, capazes de manter a
adequação de um meio ambiente crescentemente depauperado; programas
de hibridação, sobretudo no domínio da diversidade biológica; e, ainda,
como metodologia de simulação, ou como virtualização dos objetos –
artefatos. Como diz Hermínio Martins: uma prodigiosa fertilidade de
produção de novos seres, não só físicos, químicos, biológicos, mas híbridos,
de várias ordens e graus de hibridismo, em que tudo se pode combinar e
articular. Hibridismo realizável em grande parte pelo prisma da informação,
em que todos os seres vivos se encaram como sistemas de processamento
de informação, comensuráveis pelo código genético, e mais geralmente pela
aritmética binária e a digitalização, que torna possível a sua manipulação e,
portanto a sua miscigenação sem limites.
171
O sujeito moderno ganha força pelo fato da técnica permanecer de
olhos postos nas qualidades, nas formas e nas ocorrências do que é natural.
Mais do que uma transcendência da natureza o que a técnica nos propõe,
com enorme sistematicidade, é a sua imitação radical, isto é, uma imitação
que, desta vez, pretende dispensar toda a mediação. Por isso domina
mesmo nos programas mais ousados das ciências que visam
biologicamente ou informacionalmente a reproduzir a vida, uma terminologia
efetivamente ligada à mimesis - “clonagem”, “replicação”, “simulação”.
Independentemente das novas realidades e até dos novos seres que
possamos ver surgir destes programas, trata – se de uma criatividade cujo
fundamento é, ainda, o da imitação, pelo menos formal, de processos e
movimentos da vida, pois o sujeito moderno ainda tem que conviver com
velhos processos de criação. Os replicantes, cópias humanas, representam,
para a pedagogia da práxis mimética, aquilo que Aristóteles considerava
fundamental no próprio ato da educação. Em Aristóteles, a arte de aprender
se reduz a imitar e a copiar por muito tempo. Desse modo o homem, para
atingir a condição de criatura perfeita, procura recriá – la, copiando em tudo
o que acredita ser humano. Já os replicantes querem em tudo imitar os seus
criadores, buscando viver mais para aprender mais e se tornarem iguais
àqueles que os criaram.
Na época contemporânea, o sujeito está preocupado em estabelecer
uma nova ontologia do artificial por meio de uma análise e recomposição do
existente, imitando os efeitos sintéticos da natureza, mas não,
verdadeiramente, seus procedimentos. A potência dessa ontologia manifesta
– se, contudo, na forma como os seus procedimentos parecem atravessar e
172
embaralhar todos os domínios, ameaçando dissolver não apenas a fronteira
entre o que é natural e o que é fabricado pelo homem, mas também as
distinções precisas que estabelecem o seio da natureza: a distinção
entre seres orgânicos e não orgânicos, entre seres animados e inanimados,
entre seres inteligentes e não inteligentes, entre seres que sentem e seres
que não sentem etc.
O que chamamos de sujeito moderno tem sido pensado como um
cruzamento preciso de alguns destes atributos, organizando à sua volta uma
certa cosmogonia. O limite inferior desta cosmogonia era o dos animais e o
seu limite superior o de Deus. Mas se a distinção entre Deus e o sujeito e
entre o sujeito e o animal são distinções fundantes de toda a nossa cultura, é
também verdade que o homem se pensou, necessariamente, a partir delas,
como sendo, quer uma “espécie de animal”, quer, também, uma “espécie de
Deus” ou um “quase Deus”.
Neste contexto é interessante uma análise da cena em que Tyrell,
dono da corporação industrial que produz os replicantes encontra – se com
Roy, em um embate entre criador e criatura. Tyrell é um gênio solitário,
cercado de objetos vivos, artificiais. É provável que Tyrell cultive um prazer
estético, quase erótico, pelos seus objetos vivos, inclusive os replicantes. Na
cena do seu encontro com Roy e conseqüentemente da sua morte, Tyrell
está em seu quarto, que lembra em vários aspectos um altar religioso, com
móveis em estilo barroco, velas acesas, suas vestes – um roupão – lembra a
indumentária clerical. A cena da chegada de Roy é associada à volta do filho
pródigo que volta para encontrar o seu pai:
173
"A criatura sobe pelo elevador e chega ao sofisticado
apartamento do criador. O criador não se espanta. A criatura
lhe pede: eu quero mais vida, Pai... O criador explica, paternal,
que alterações em sistemas orgânicos são fatais. Uma vez
estabelecida, a seqüência codificada não pode ser modificada. A
criatura pergunta, por quê? E segue-se a partir daí um diálogo
científico, no qual o criador junto com a sua criatura trava um
jogo de conhecimento. Por fim o criador reconhece que as
soluções propostas pela criatura para aumentar seu tempo de
vida são brilhantes, mas impossíveis de dar certo. A criatura se
cala. O criador, comovido, diz que tudo isso é acadêmico e
procura abraçar sua criatura. “A criatura, com um sorriso de
desespero, aceita o abraço – para matar o criador” (Cena do filme
Blade Runner).
Os termos científicos da cena pertencem às especulações da
engenharia genética. O diálogo do criador com a criatura representa o
confronto de saberes que não se sabem, que não salvam a criatura – e não
perdoam o criador.
De fato, o sujeito é o único ser que atravessa toda a extensão desta
cosmogonia, desde o seu limiar inferior até ao seu limiar superior e, por isso,
a possibilidade de um pós – humano afeta não apenas uma visão do sujeito,
mas, necessariamente, a visão de tudo à sua volta. Nesta travessia do
sujeito moderno para o sujeito pós – moderno, só as coisas, as coisas
inertes e inanimadas, parecem constituir a verdadeira alteridade do humano.
Voltando à sociedade de consumo e segundo uma expressão de
Walter Benjamin, no seu livro Modernidade e os modernos (2000): “ agora
é a coisa que atrai toda a nossa atenção, (...) que se converteu ao mesmo tempo
em centro de todas as inquietações e em promessa de felicidade”. No limite,
estaríamos diante de um devir coisa do mundo, à qual os modernos
precisamente denunciaram por várias formas, como uma “reificação”, o que
queria geralmente dizer, alienação do humano.
Fig.47 Linha de montagem de cyborgs
A visão tecnológica de hoje dá seguimento a este pensamento como
uma alienação dos atributos do humano, que poderiam agora ser
redistribuídos pelas coisas. Tudo não seria senão coisas, mas elas poderiam
chamar a si uma infinidade de atributos que, em princípio, lhes são
estranhos: organicidade, vida, movimento, inteligência, sensibilidade.
O sujeito moderno vislumbrou a possibilidade de um devir coisa do
humano, e de um devir humano da coisa, que contém por inerência uma
nova cosmogonia. Ao distribuir indistintamente os atributos do homem, esta
nova cosmogonia surge ainda dominada pela idéia do humano, mas deixa
de poder concebe – lo como a figura organizadora e central dessa
hierarquia vertical que nos situava em um ponto da escala entre a vida e a
sua transcendência divina. A nova cosmogonia lança tudo na
horizontalidade, distribuindo o homem aos pedaços pelas coisas,
174
fragmentando – o. Coisas quase vivas, quase humanas, e até quase
mágicas, como Deuses.
Fig.48 Cyborg
A ficção científica há muito que se entretêm a fabricar uma nova
etologia imaginária de seres artificiais: robôs, andróides, cyborgs, replicantes
que não são verdadeiramente classificáveis como espécies, mas sim como
coisas, através dos seus modelos, gamas, patentes, séries de fabricação,
etc.
A oposição entre organismo e mecanismo, na qual o pensamento
moderno tendeu a fixar – se, desde a invenção dos primeiros mecanismos
automáticos, foi o primeiro pólo aglutinador da comparação entre os homens
e as coisas. O organismo, realidade a que a biologia moderna deu um lugar
central, importava, antes demais, como uma grande imagem da vida, da sua
organização e da sua complexidade, e como possibilidade de
esclarecimento do seu mistério. A possibilidade de redesenhar a vida, desde
o mais elementar movimento - kínesis - que a expressa, até ao mais inefável
ânimo que a sustenta, é a miragem da enorme galeria de seres fantásticos
que estranhamente povoam o imaginário da entrada na era da técnica
175
moderna, e de que são espécimes inesquecíveis o Frankenstein de Mary
Shelley (1808) e o robô Maria de Metropolis (1926).
Fig.49 O mecanismo artificial
O mundo artificial do mecanismo, centrado sobre as compatibilidades
e incompatibilidades entre a coisa e o corpo, está decisivamente dando lugar
a uma nova miragem: a tecnologia da animação, da coisa que pensa, da
coisa que sente, da coisa que simula as mais elevadas capacidades da vida
humana. Esta tecnologia de vocação «psicodélica» promete, através de uma
inteligência artificial e de uma sensibilidade artificial, animar um mundo
imaterial, para o qual poderíamos fazer transitarem muitas das nossas
experiências.
Dentro deste contexto, na seqüência em que Deckard utiliza o
aparelho Esper Machine para investigar uma foto, é possível observar a
descrição que Ridley Scott faz de um mundo largamente baseado nas
tecnologias da informação e nos dispositivos ampliadores do potencial dos
sentidos. O Esper Machine, aparelho “dissecador” de imagens, nada mais é
do que uma extensão tecnológica da visão humana, que amplia
consideravelmente o poder do sentido em questão. A fotografia investigada
por Deckard através de seu aparelho miraculoso extrapola seu caráter
ordinário, de imagem estática e bidimensional.
176
Fig.50 Bioport
As ficções destas novas animações inquietam e seduzem
inevitavelmente o mundo animado do cinema, como por exemplo, o universo
de David Cronenberg em Videodrome (1983) ou em ExistenZ (1999). Por
mais imateriais que sejam os suportes deste novo mundo de coisas
animadas, elas não deixam por isso de ser coisas e de ser coisas que
manifestam antes de mais nada o seu modo moderno de ser coisa - o da
sua disponibilidade para a manipulação. Coisas disponíveis e armazenáveis
são, também hoje, o conhecimento, as emoções e as impressões que
encontram nas inúmeras espécies de ligação tecnológica uma espécie de
dispensador universal de experiências. Por isso o design se aplica já hoje a
desenhar essas experiências, às quais, como coisas, virão a corresponder
registros de patentes.
A discussão sobre a distinção entre coisa e não coisa vem sendo
talvez atualizada na oposição entre real e virtual, bem como outras
distinções que se fariam necessárias nesta discussão para diferenciar este
mundo moderno: a distinção fundamental entre jogo e não jogo, distinção
que o simples gesto já não permite fazer, quando trata – se apenas de
acionar um botão – que pode ser o de uma máquina fotográfica, o on ou o off
de uma televisão, ou o comando de um brinquedo eletrônico, ou o enter do
computador. 177
178
Dentro deste contexto, nenhuma reinvenção do humano será
arrancada à pura imaginação criativa, à pura vontade de demiurgia, mas sim
a muitos gestos, pequenos e grandes por intermédio dos quais, a todo o
momento, implicamos um destino. De novo, como primordialmente acontecia
no seio da natureza, o humano parece ser uma frágil condição, sem
verdadeiras garantias. Neste sentido, a nova cosmogonia horizontal em que
estamos lançados só encontra de fato paralelo nessa situação
absolutamente primeva da história humana, quando não estava ainda
garantida a supremacia do homem sobre os outros seres, nem inventada a
supremacia de nenhum Deus sobre os homens. É neste sentido que tal
condição merece, sem dúvida, o nome de uma nova natureza.
Diante desta questão - uma nova natureza - o sujeito moderno
transcende a fronteira para descobrir – se como sujeito pós – moderno.
Nessa passagem, o sujeito moderno depara – se com um fato novo na
época contemporânea, que é a crescente penetração dos corpos pela
técnica. Não é casual que a medicina e a genética se tornaram
absolutamente centrais, convergindo para o digital com o Programa
Genoma. Processos que até aqui só tinham lugar no cinema de ciência –
ficção estão na ordem do dia. A clonagem, a replicação, a robótica ou o
uploading da consciência está provocando uma crise profunda nas nossas
visões sobre a natureza do corpo. A fragilidade da carne que outrora era
“eternizada” teologicamente, parece invocar um hiper – corpo, criado
tecnicamente.
Na ficção cientifica, na visão prefigurativa do cinema, a brevidade da
vida e a fugacidade do tempo estão presentes como uma preocupação
179
angustiante. Devemos partir da premissa de que os modos de sentir não são
arbitrários ou carentes de efetividade na história da cultura. A troca material
supõe reações e reelaborações das formas de interpretar o mundo. Assim
como representado em Blade Runner, o sujeito contemporâneo busca
formas de representar a si mesmo, dando ênfase ao monopólio sobre o
segredo da inovação técnica acerca de si próprio. Dentro deste contexto, o
sujeito moderno se vê impelido a construir novos dispositivos para a
produtividade, seja no sentido da construção de objetos, seja na construção
de suas potencialidades enquanto ser humano, encontrando através da
ciência dispositivos postos a serviço de um processo de produção em
laboratório, de mecanismos que poderão lhes aumentar a vida, ou mesmo
criá – la com o propósito de torná – lo imortal, concedendo – lhes o poder de
manipular o seu próprio corpo.
O momento atual caracteriza-se pela expansão mundial da tecnologia
e pelo esmaecimento de fronteiras que têm propiciado novas condições de
possibilidade de subjetividade e novos espaços, como o ciberespaço e a
realidade virtual para a experiência humana. A época moderna trouxe à tona
processos técnicos avançados gerados no âmbito da simulação, permitindo
formas híbridas de interação entre sujeitos e máquinas reconfigurando as
possibilidades de experiência dos homens. Esta reconfiguração permite
novos modos de produção de subjetividade, ampliando o poder humano de
se reconstruir. Desse modo, o sujeito moderno concedeu às máquinas,
através dos seus sistemas avançados, o poder de criar simulações e
simulacros à sua imagem e semelhança, possibilitando a simulação de um
organismo vivo a partir de um sistema interativo.
180
2. O sujeito pós – moderno.
Neste início do século XXI, o sujeito tem sido abalado por uma
complexa combinação de crises e transformações profundas na sociedade,
que desencadeou processos originais que têm desafiado a sua explicação
pelas ciências sociais. É inegável que são muitos os enigmas que
emanaram do desenvolvimento histórico da sociabilidade humana
contemporânea, e que é igualmente premente a sua decifração intelectual.
Dentre as múltiplas problemáticas, destaca – se a questão da constituição
da individualidade, em um processo de entrecruzamento relacional das
dimensões sociais e psíquicas e dos condicionantes objetivos e subjetivos
que estão presentes na formação histórica do sujeito.
Nas últimas décadas tem havido um enorme e diversificado esforço
intelectual de reflexão sobre a natureza, as características e as implicações
dos fenômenos e das transformações que se processam no âmbito das
sociedades humanas. Nessa discussão, surge a noção de que essas
mudanças e os novos problemas vividos pela humanidade significam ou
indicam uma situação histórica sem precedentes, configurando a própria
“crise da Modernidade”. Houve um “envelhecimento” da era moderna e a
“crise da Modernidade” é uma constatação consensual e o ponto de partida
para análises com diagnósticos extremamente diferenciados, feitos a partir
de perspectivas teóricas e ideológicas muito heterogêneas (LYOTARD:
2001, 34).
Partindo das constatações de Lyotard, o pensamento pós – moderno
se afirma como a expressão intelectual de uma suposta nova ordem
societária que se estaria formando em contraposição à Modernidade em
181
crise. Desse modo, o pensamento pós – moderno instauraria uma nova
modalidade de “racionalidade” e de cultura, que é a expressão de um
conjunto de transformações econômicas, sociais e políticas, produzindo uma
mudança qualitativa nas instituições da sociedade moderna. Assim, o
pensamento pós – moderno significaria, simultaneamente, uma crítica e uma
ruptura com a Modernidade, com implicações que atingem desde a vida
cotidiana até a produção do conhecimento social, bem como aquilo que
conhecemos como identidade humana.
A identidade humana em Blade Runner é debilitada não apenas pelo
cenário distópico da Los Angeles de 2019, com seu urbanismo opressor e
sua humanidade utópica, mas pelo próprio desenvolvimento tecnocientífico e
pela engenharia genética que criou os novos objetos vivos, os replicantes,
imagens perfeitas do homem, “mais humano que os humanos”. Objetos
técnicos complexos que desencantam irremediavelmente qualquer idéia de
uma unicidade humana e remetem ao que Walter Benjamin já demonstrou: a
reprodutibilidade técnica tende a ocasionar a perda da aura da obra de arte
e diríamos nós, da própria vida, no caso dos replicantes.
As mudanças experimentadas pelas sociedades contemporâneas nos
últimos tempos alteraram as formas como os homens sentem e representam
para si mesmos o mundo onde vivem. Há uma enorme dificuldade de sentir
e representar o mundo contemporâneo, pois a sensação vigente é de
irrealidade, de vazio e de confusão. Estaríamos diante do predomínio de um
princípio esvaziador que atuaria em todas as esferas do mundo e da
sociedade modernos, envolvendo suas instituições e suas formas
simbólicas. Assim, por exemplo, estariam em processo a
desreferencialização do real, a desmaterialização da economia, a
desestetização da arte, a desconstrução da filosofia, a despolitização da
182
sociedade e a dessubstancialização do sujeito. Ou seja, tudo o que existe
estaria marcado pela efemeridade, pela fragmentação, pelo descentramento,
pela indeterminação, pela descontinuidade, pelo ecletismo das diferenças e
pelo caos paradoxal.
O cotidiano constitui o espaço onde encontram – se condensados os
traços definidores da Pós – Modernidade. Atualmente, a nossa cotidianidade
está atravessada pela individualização, pelo consumismo e pelo predomínio
da informação. Por meio da midiatização, que invadiu todas as brechas da
vida do homem – no trabalho, na escola, no lazer, nas ruas, nos transportes
ou em casa –, ocorreu a estetização dos objetos de consumo e a
personalização das mercadorias. Os meios de comunicação passaram a ser
dimensões indispensáveis para existência de todas as coisas do mundo,
desmaterializando a realidade social.
Para Lyotard, no livro A Condição Pós – Moderna (2002) ciência e
sociedade se constituem, em nossa contemporaneidade, em uma complexa
rede de jogos de linguagem, com seus próprios conteúdos e regras de
legitimação, sem possibilidade de entendimento. A interpretação homogênea
dos acontecimentos, que, no início da era moderna, era dada através
das narrativas científicas ou filosóficas legitimadoras do saber, perdeu
sua validade.
A conquista de novos conhecimentos no interior dos "jogos de
linguagem" – narrativos – legitimadores torna – se restrita aos que podem
mais, aos que dispõem de melhores condições financeiras, pois o saber está
diretamente subordinado ao lucro. Na ótica de Lyotard, o conhecimento,
hoje, está sempre se codificando e recodificando das mais diferentes
183
maneiras, em função da transformação das condições técnicas e sociais da
comunicação.
Dentro deste contexto, Lyotard considera que a sociedade pós –
moderna se configura como uma nebulosa de “jogos de linguagem” que
tecem os vínculos em sociedade. Os sujeitos sociais dissolvem – se pela
atomização do social em redes flexíveis de jogos de linguagem
heteromórficos, que se disseminam e que não podem ser disciplinados por
regras gerais. A realização diferenciada e heterogênea de jogos de
linguagem cria instituições sociais “em pedaços”, de onde emanam regras
de enunciação que definem o que pode ser dito e como pode ser dito.
Porém, esses poderes institucionais, dispersos em nuvens de elementos
narrativos, não estabelecem limites absolutos, pois essas regras de
enunciação são mutáveis e flexíveis. A sociedade, assim, teria se
transformado num conjunto descentrado e pluralista de redes de enunciados
de diferentes tipos.
Em uma perspectiva distinta, mas complementar a essa Baudrillard,
em A sociedade de consumo (2000), afirma que a comunicação de massa,
que caracteriza a sociedade contemporânea, ao autonomizar a
produção de signos em relação a qualquer referente concreto, transformou a
realidade em simulacro: um mundo artificial que substitui o mundo real. Isso
ocorre através da produção de objetos que tentam ser mais reais do que a
própria realidade, gerando – se uma hiper – realidade. O personagem J.F.
Sebastian é um criador, em Blade Runner, destas hiper – realidades.
Projetista genético, designer dos Nexus 6, que, tal como eles, sofre de
decrepitude acelerada, vive sozinho, rodeado de bonecos e brinquedos
vivos, aos quais Sebastian chama de amigos.
184
Haveria um esvaziamento da realidade material, com a emancipação
dos signos que produzem uma realidade aparente como puro simulacro.
Como exemplo acabado disso, os meios midiáticos atuariam como um jogo
sobre si mesmos, deixando de existir um diálogo entre o emissor e o
receptor, que são as massas inertes, fascinadas com o poder da
comunicação. Assim, as mercadorias perdem sua materialidade e seu valor
de uso e só adquirem sentido por intermédio da mídia, que faz da imagem
um simulacro da mercadoria. A comunicação de massa transferiria a
vivência no real para a vivência no signo. Portanto, a cultura pós – moderna
seria a cultura do simulacro.
Entretanto, para Jameson, no seu livro Teoria de La Post
Modernidade (1998) – em uma instigante abordagem teórica que supera
certos limites da análise frankfurtiana da indústria cultural, mesmo tendo – a
como premissa – o Pós – Modernismo significa a lógica cultural do
capitalismo avançado. A produção cultural foi assimilada pela produção de
mercadorias em geral, na qual a inovação e a experimentação estéticas
passaram a ter uma função estrutural essencial diante da necessidade
frenética de produzir uma infinidade de novos bens com uma aparência cada
vez mais nova.
Com a expansão das tecnologias comunicacionais, a produção e a
circulação de informações passaram a ser uma das mercadorias mais
importantes no capitalismo contemporâneo. Assim, os conflitos e as
contradições, antes relacionados principalmente à produção material,
espalham – se e invadem também a produção cultural. E tudo isso se faz
acompanhar de uma profunda mudança nos hábitos e atitudes de consumo
e nas relações intersubjetivas que ocorrem no mundo cotidiano. O Pós –
Modernismo inaugura uma nova superficialidade, onde o mundo objetivo é
185
convertido em um conjunto de textos e simulacros, e as coisas são
reduzidas à imagem de suas superfícies externas.
A produção cultural foi assimilada pela produção de mercadorias em
geral, onde a inovação e a experimentação estéticas passaram a ter uma
função estrutural diante da necessidade frenética de produzir uma infinidade
de novos produtos aparentemente inovadores. Os meios midiáticos criam
consumidores que devem estar permanentemente insatisfeitos, intranqüilos,
ansiosos e entediados, para que o consumismo se afirme como verdadeiro
modo de vida nas sociedades capitalistas.
Na visão do senso comum, em geral, confundem – se o narcisismo
com o hedonismo, o auto – interesse, o egoísmo e a indiferença social. No
entanto, o narcisismo, muito mais do que individualismo anti – social,
significa uma individualidade plasmada em uma cultura na qual não mais se
distinguem a realidade e o reflexo da realidade, e não mais se consegue
diferenciar a fantasia da realidade. Não há distinção entre o eu e o mundo
dos objetos. As fronteiras entre o indivíduo e o mundo exterior circundante
foram apagadas. A personalidade narcisista atravessa uma profunda crise
de identidade, pois o eu narcisista não tem segurança sobre seus próprios
limites. O narcisismo produz a disposição de ver o mundo como um espelho
ou como uma projeção dos próprios medos e desejos do indivíduo. Neste
contexto, a estética de Blade Runner põe em questão a problemática da
estética das superfícies, das aparências e da realidade, das identidades
falsas e verdadeiras. A construção do corpo perfeito, a juventude, embora
por um curto espaço de vida, o aspecto físico de Roy alto, louro e forte é
uma referência direta ao super – homem imaginado por Nietzsche, ou os
replicantes que são fabricados de acordo com um modelo – Pris modelo de
prazer, Zhora modelo de combate e de prazer, Leon modelo de trabalho.
É assim que surge um conjunto de novos descontentamentos. O
consumo de mercadorias promete suplantar o tédio, o cansaço, a futilidade e
o vazio, vividos cotidianamente pelas pessoas, jogando sedutoramente com
o mal – estar peculiar à vida pós – moderna. A mercadoria passa a conferir
prestígio social a quem a consome, configurando – se uma sociedade
dominada fundamentalmente pelas aparências, na qual os múltiplos e
complexos sentidos do ser humano estão subordinados ao exclusivo sentido
do ter.
Fig.51 O design das coisas
A sociedade em que vivemos está enredada numa trama cultural
marcada por um amálgama de elementos aparentemente díspares, onde o
indivíduo cada vez mais sente dificuldades de se firmar em algo que seja
minimamente estável e que lhe assegure alguma sensação de tranqüilidade
e bem – estar íntimos. Estamos imersos em um tempo em que os valores
dominantes estão polarizados em torno do consumismo, do individualismo e
do hedonismo. Ao mesmo tempo em que tenta e vai conseguindo
sobreviver, o homem está envolto por um estado permanente de
insatisfação, ansiedade, intranqüilidade, apatia e uma enorme sensação de
vazio interior na vivência do seu cotidiano.
186
Fig. 52
Tom Cruise e Angelina Jolie
A cultura de massas parece dissolver o mundo das coisas materiais e
substituí – lo por um mundo vago e fluido de imagens, abalando
profundamente o nosso senso de realidade. Assim, a realidade parece
coincidir cada vez mais com as imagens que dela se produzem e veiculam.
Ou seja, a realidade sofre um processo de “desmaterialização”, sendo
substituída por imagens e por um mundo especular. A realidade foi
completamente tomada e saturada por todo o tipo de imagens que permeiam
o conjunto das relações sociais e são uma mediação necessária da
sociabilidade humana no mundo contemporâneo. A realidade foi subsumida
à imagem, que passou à condição de elemento fundante de todo o real. A
vida societária aparece, portanto, como mundo hipostasiado de pura
especularidade e espectralidade. Enfim, como nos sugere Harvey em A
Condição Pós-moderna (2004), a cultura pós – moderna constitui o mundo
como o “espelho dos espelhos”.
Na esfera estética teve início o uso do termo “pós – moderno” para
cuidar do movimento de crítica e negação do Modernismo que acontecia na
arquitetura e na literatura, a partir do final dos anos 50 e do início da década
de 60. As tecnologias, como a televisão, o vídeo e o computador, eram
vistas com grande entusiasmo como novas possibilidades de produção
artística. Provocando o fim das fronteiras entre a arte popular e de massas e
187
188
a arte erudita, estas expressões artísticas foram reconhecidas pela
superficialidade e pelo recurso ao ecletismo e à colagem de estilos e de
linguagens, no seu esforço de estetização do cotidiano.
Por outro lado, o predomínio e a universalização da comunicação de
massa são acompanhados pela produção de signos e de imagens que se
autonomizaram de qualquer referente concreto, substituindo o mundo real
pelo mundo artificial do simulacro. Um signo pode ser um objeto material,
figura ou som que toma o lugar de uma coisa ausente ou impossível de se
perceber, que traz em si uma realidade oculta (LALANDE: 1999,1012). Aqui
os signos são, ao mesmo tempo, auto – referentes e mais reais do que a
própria realidade, que se tornou uma hiper – realidade. Dessa forma, a
comunicação de massa desloca a experiência do real para a vivência no e
do signo. A realidade social se desmaterializou, tornando – se o domínio do
signo auto – referente e o cotidiano se transformou na vivência imediata do
simulacro e da hiper – realidade, com a centralidade da informação na
sociedade de massas.
Estaríamos, assim, assistindo à emergência da Pós – Modernidade,
que imprimiria a marca da fragmentação, do simulacro, da efemeridade, da
indeterminação, da descontinuidade, da alteridade e do ecletismo paradoxal
a tudo e a todos.
Em sua origem, Pós – Modernismo significa a perda da historicidade e
o fim da "grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma
tradição de mudança e ruptura. A concepção do sujeito pós – moderno
aponta para a fragmentação do indivíduo. Ele não tem apenas uma, mas
várias identidades e, assim, o sujeito pós – moderno não possui identidade
fixa, essencial ou permanente. Diferentemente dos sujeitos modernos, nos
189
quais, a um corpo, a um indivíduo acoplava – se uma identidade que o
acompanharia por toda uma vida, uma vida em relação, em interação com a
sociedade, mantendo, entretanto “o núcleo interior” (HALL, 2005: 11).
Segundo Stuart Hall em Identidade cultural na pós – modernidade
(2005), o conceito de identidade, no período da Pós – Modernidade, está
posto em xeque. O autor questiona os estágios que imprimiram uma versão
particular do ‘sujeito’ – com certas capacidades humanas fixas e um
sentimento estável de sua própria identidade e lugar na ordem das coisas na
Modernidade e como esta versão está sendo ‘descentrada’ na Modernidade
tardia. Neste sentido Hall, cita autores diferentes como Giddens e Harvey,
que abordam as mudanças ocorridas no mundo chamado
convencionalmente de pós – moderno, concordando que a descontinuidade,
a fragmentação, a ruptura e o deslocamento são características do momento
histórico de final do século XX:
“O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o eu ‘real’,
mas este é formado é modificado num diálogo contínuo com os mundos
culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (Idem:
12).
Contemporaneamente, diferentemente dos modernos como
colocado anteriormente, o sujeito pós – moderno tem sua identidade
em constante mutação, ele é instado a ser múltiplo. Sua identidade é
formada e transformada continuamente nas relações que estabelece
com os sistemas culturais, que também sofrem transformações. Surge
um sujeito conceitualizado como não possuidor de uma identidade fixa
permanente.
190
“...A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam...”
(Ibidem: 13).
O sujeito então assume diferentes identidades em diferentes
momentos, identidades estas que não são unificadas em torno de um Eu
coerente e :
“....à medida que os sistemas de significação e representação cultural
se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar” (Ibidem: 14).
Neste desenrolar, a mídia possui um papel fundamental,
possibilitando a um grande contingente de pessoas o acesso, através
de suas mensagens e imagens, a diferentes culturas, diferentes modos
de ser, mesmo que formatados por um olhar ocidental, que agirá
reflexivamente sobre nós. Então, diferentemente dos modernos, nos
quais a uma identidade acoplava – se um corpo sempre igual a si
mesmo, o sujeito pós – moderno irá (re)produzir – se em diferentes
corpos, projetados para diferentes ocasiões, ou projetados para serem
a expressão de um desejo, de um corpo que se fará presente de
acordo com a imagem esperada e desejada de si.
Ao imaginarmos o corpo e suas implicações com o virtual no que
afeta a ação e a percepção sobre o mundo, bem como a virtualização de sua
superfície, fazendo surgir pele sobre pele, tornando possível à visão de seu
interior, torna – se claro que a tecnociência aplicada ao corpo é um fator de
transformação e atualização. A partir daí definimos o corpo pós – moderno
191
como o do mutante: a tecnociência enseja múltiplas maneiras de
(re)construção e (re)modelação do corpo, maneiras estas que passam pela
dietética, pela moda enquanto prótese corporal, pelo body building, pelo body
modification que inclui desde escarificações, piercings, tatuagens, até cirurgias
plásticas, passando pela intrusão de chips sob a pele que provocarão
movimentos involuntários, não programados; assim como outros processos
que colocarão em questão: intervenções sobre o corpo, o que seja o belo, o
feminino e o masculino, devir em si mesmo um outro, de modo a pôr em
questão o estatuto do corpo e do sexo na sociedade atual35.
Pensando no corpo, devemos levar em conta suas performances,
seus limites e considerá – lo como elemento constitutivo do universo
semiótico, onde as subjetividades são produzidas. Tal qual a identidade que
se faz múltipla, o corpo acompanha esta mutação em identificações que não
se fazem permanentes.
Aberto ao novo e à diferença, o sujeito pós – moderno torna – se frágil
frente à verdadeira avalanche que a atualidade lhe traz. Sem o aval das
antigas certezas – Deus, Ser, Razão, Verdade, Totalidade, Estado, Família,
– ele se torna cambiante e exposto ao lado perverso da tecnociência,
quando esta se alia ao poder político e econômico; presa fácil de artefatos e
serviços que não lhe oferecem nenhum “valor” moral além de um
desbravado delírio hedonista e consumista. Ele acaba por consumir
imagens, identifica – se em sua fragilidade com os modelos que lhe são
ofertados pela mídia.
Este indivíduo sente viver em um mundo que foge à natureza e à
cultura, real e irreal, privado e público. O corpo hoje se (re) inventa, faz parte
do objetivo de consumo; nem mesmo a certeza de um código que nos defina
35 Body building, body - modification - construção e modificação do corpo respectivamente.
192
é mais possível, visto que este é também passível de manipulações. E ao se
inventar, “neste momento de crise, o corpo deixa de funcionar enquanto dado de
identidade fixa e natural, lugar de delimitação e referência estável, para assumir
paradoxalmente, a expressão da identificação pela mutação, simulação e pela
performance” , adquirindo um papel na produção da subjetividade (VILLAÇA,
1999: 24).
Vivemos imersos em uma cultura tecnológica que embaça as antigas
oposições modernas; as fronteiras não são mais seguras, as ondas
eletromagnéticas atravessam o planeta e os corpos. Já não se pode dizer o
que é real ou irreal, o que é corpo e o que é mente, o que é vida e o que é
morte. Ao imbricar – se com os artefatos tecnológicos, o indivíduo colocou
o mundo e a si mesmo em cheque. Quando seus olhos e ouvidos puderam
mover – se a longas distâncias, num tempo simultâneo do aqui e agora, por
meio dos sistemas de comunicação - máquinas sensórias - outras oposições
embaralharam-se: local e global, privado e público, aqui e lá. O sujeito
desacreditado de si aprende a avaliar – se face aos outros e se vê através
dos olhos do outro. Percebe que a imagem que projeta conta mais que a
experiência e as habilidades adquiridas. Nas sociedades pós – industriais,
baseadas no consumo, onde a superfície é a base, chega – se ao estágio da
indiferenciação entre o eu e o seu invólucro. E é neste invólucro, o corpo –
superfície da pele – lugar de liberdade, mas também de submissão, que a
tecnociência, aliada ao poder político e econômico, como já foi apontado
anteriormente, através das tecnologias da informação – desde as
tecnologias da comunicação até a manipulação genética – que virtualizam o
corpo, conduzindo o indivíduo à fragilização e à fragmentação de si próprio.
193
Fig.53
Corpo fragmentado
Esse sujeito fragmentado vê – se diante de avanços científicos que
permitiram com que a genética e a biologia molecular constituíssem uma
grande capacidade tecnológica, que se torna cada vez mais efetiva, como,
por exemplo, modificar substancialmente vírus, bactérias, plantas, animais e
os próprios seres humanos. No mundo contemporâneo, processa – se uma
nova revolução, cujos alcances extrapolam tanto as fronteiras das ciências,
da organização social, da estrutura econômica, quanto o novo modo de
pensar sobre a natureza humana, no caso, por intermédio das dimensões
filosóficas e jurídicas. Estes avanços científicos em Blade Runner ainda
não conseguiu compatibilizar vida intensa e a maior inteligência ao maior
tempo de vida. Ao pedir mais tempo de vida, o replicante Roy ouve de seu
criador Tyrell o seguinte: “Fazer alterações na evolução de um sistema
orgânico é fatal”. Um código genético não pode ser alterado depois de
estabelecido. Roy e Tyrell estão diante de um limite objetivo da engenharia
genética. Tyrell está justificando a impossibilidade de alterar o código
genético de Roy e de seus amigos replicantes. O que não significa a
impossibilidade de alterá – lo para as demais gerações de Nexus 6. O
próprio Tyrell trabalha em um sistema mais avançado e sofisticado de
replicante – Rachel que tem implantes de memória e que pode viver mais de
quatro anos.
Na era da biotecnologia, destaca – se a bioética, que tem fascinado
muitos escritores ao longo deste século, estimulando – os a vislumbrar e
194
sonhar uma maneira nova de construir o mundo humano, cheio de utopias,
tanto no campo da arquitetura, da manipulação de espaços vitais nas
grandes cidades, na conquista do espaço sideral e na própria manipulação
da vida. Temáticas anunciadas como prefigurativas de uma sociedade pós –
moderna, tais como o Admirável Mundo Novo, (2001) de Huxley, ou Blade
Runner (1982) de Ridley Scott, que englobavam as previsões de conquistas
da medicina, da clonagem e do design genético, do mapeamento do genoma
humano, bem como as previsões econômicas e políticas pessimistas para o
século XXI, que já se concretizaram em parte.
O objeto já não é a radical alteridade do sujeito. A eliminação das
distâncias e das mediações traz o objeto para dentro do que era
tradicionalmente a esfera do sujeito, eliminando – os como opostos. O corpo,
lugar dessa união, perde por isso a sua familiar evidência e torna – se, em
contrapartida, lugar de crise. A confusão entre o corpo e o humano é uma
das ramificações da raiz dessa crise.
Um dos traços característicos da Pós – Modernidade surge da
profunda transformação sofrida pelo objeto, enquanto categoria, o que faz
dele um conceito inquietante. O objeto era o mundo do qual nós aprendemos
a nos destacar, era o “radicalmente outro” do sujeito, condição da sua
diferença. O humanismo moderno distinguia o homem como sujeito racional
a partir dessa diferenciação em relação aos objetos do mundo. O sujeito
impunha – se pela sua capacidade de pensar, pela consciência que tinha de
si e do que o rodeava, pelo seu agir no mundo. E o corpo era o lugar dessa
identidade, a fronteira entre o sujeito e o outro.
Tanto Ieda Tucherman no livro Breve história do corpo e de seus
monstros (1999), como Donna Haraway no Manifesto para os cyborgs
(1994) fazem referência às três rupturas que, tendo marcado o final do
século XX, se revelam fundamentais para pensar e compreender a
contemporaneidade: humano – animal, animal – humano – máquina, e físico
– não físico, rupturas estas que emergem da ação da técnica e que atingem
não só a idéia de corpo como totalidade e fronteira como também,
conseqüentemente, a própria idéia de humanidade.
Fig.54 O sujeito metamorfoseado
Transplantes, implantes, próteses, conexões, substituições, rompem a
pele que fechava e delimitava o território do sujeito, transformando o corpo
em um feixe de ligações entre elementos distintos. O antagonismo cede
lugar à simbiose e o corpo emerge como processo, como projeto, forçando –
nos a repensar o nosso estar no mundo e as possibilidades do nosso devir
(in) humano. A penetração da vida e do corpo pela técnica anuncia a
obsolescência do dualismo humano – não humano, fazendo emergir a figura
do pós – humano. Percebemos estas intervenções no universo de David
Cronenberg, em Videodrome (1983) e eXistenZ (1999), o corpo
195
196
Humano tem uma entrada para que este se conecte a uma realidade virtual
que se confunde com a realidade vivida.
O cultivo da pós – humanidade está, por norma, hifenizado à
obsessão pelo aperfeiçoamento da condição humana, que encontra em
ciências como a Genética, a Nanotecnologia, a Microbiologia, a Realidade
Virtual, a Vida Artificial, a Neuropsicologia, a Inteligência Artificial, entre
outras, terrenos férteis em entusiasmo. Um mundo sem carne, sem corpo,
sem limite é, para muitos, o ápice desse aperfeiçoamento. Para David Le
Breton em Adeus ao corpo – antropologia e sociedade (2003) , o
momento que marca definitivamente a ruptura entre o homem e o seu corpo
é o ato de dissecação, por intermédio do qual os anatomistas profanam pela
primeira vez a barreira da pele, iniciando o desmantelamento do cadáver.
Maravilhados pelo mecanismo que descobriram, subjacente ao
funcionamento do corpo, biólogos e cirurgiões rapidamente chegam à
constatação da sua fragilidade, da precariedade que o expõem a lesões tão
definitivas como o envelhecimento ou a morte. Morte ou óbito são termos
que podem se referir ao término da vida de um organismo. Biologicamente, a
morte pode ocorrer para o todo, para parte do todo ou para ambos. Por
exemplo, é possível que células individuais, ou mesmo órgãos morram, e
ainda assim o organismo, como um todo, continue a viver. Também é
possível que o organismo morra, por exemplo, no caso de morte cerebral, e
que suas células e órgãos vivam, e sejam usadas para transplantes. A morte
é uma constatação que dá origem ao desejo de superar essa fragilidade,
criando “peças” eficazes e funcionais com as quais se substituem os
elementos falhos da máquina corporal.
197
São os anatomistas que, ainda antes de Descartes e da filosofia
mecanicista, fundam o dualismo que estará no centro da Modernidade e que
distingue o sujeito do seu corpo físico, tornado objeto e destituído de valor
próprio. Mas esta é apenas mais uma das muitas contribuições que, ao
longo da história, têm colaborado para fabricar uma noção de corpo que,
conseqüentemente, se revela cada vez mais abstrata, ambígua e pouco
evidente.
A Modernidade e a progressiva secularização da sociedade originam
uma nova compreensão do corpo, para a qual são determinantes as
descobertas da medicina, a qual, através da observação e da dissecação,
revela o seu funcionamento mecânico, substituindo a alma pelo fluxo
sanguíneo e pelas reações nervosas como fonte de “animização” do corpo.
O sujeito pós – moderno, dotado de consciência e corpo próprios,
ascende à categoria de indivíduo, tendo nesse corpo próprio o limite da sua
individualidade, a marca de identidade do seu ser e estar no mundo. As
imagens sombrias e melancólicas de Blade Runner, que descrevem o
caminho do caçador de replicantes Rick Deckard rumo a uma nova visão da
vida, em um corpo orgânico ou sintético, acaba por confirmar que os
artefatos técnicos - os replicantes - constituem meras extensões, projeções e
amplificações das capacidades próprias ao corpo humano.
É a rudeza da carne, a sua contingência e perecibilidade, que
emergem no corpo em falha, convocando todos os esforços para expulsá –
las da visão e restaurar a imagem do corpo, que o pensamento pós –
moderno associa não à ordem da natureza, mas sim à ordem da razão e da
cultura. A Pós – Modernidade assume a carne como material de trabalho e
suporte dos avanços da técnica. Penetrada, modificada, desintegrada, a
198
carne é o palco das fusões que anunciam não o fim, mas as possibilidades
do humano no futuro evolutivo da espécie. É deste universo de possíveis
que surge a mais atual imagem do corpo: um corpo ao qual Kerckhove, em
A pele da cultura uma investigação sobre a nova realidade eletrônica
(1997) chama biotécnico e que exibe as suas ligações. Os replicantes não
se livraram do corpo e da carne humana. Seus corpos, embora construídos
em laboratório, têm nas veias sangue e na sua composição músculos, que
lhes dão a estrutura necessária para se locomover. Construídos de pedaços,
o criador Tyrell se converte no Dr. Frankenstein pós – moderno e os
replicantes em suas criaturas, que espalham o terror não por suas
aparências, mas pela violência com que querem resolver seus problemas.
Nos corpos ‘dentro’ e ‘fora’ se desvanecem, cedendo lugar a uma
nova premissa: ‘através’ do corpo, espelho da atual dificuldade em
estabelecer uma fronteira precisa. A relação homem – máquina que emerge
do progresso tecnológico começa, logo no século XIX, a deixar as suas
marcas no imaginário sócio – cultural da época, traduzindo – se na criação
de toda a espécie de híbridos, que simbolizam já esse misto de fascínio e
terror suscitado pelas possibilidades da técnica.
A história do Golem do período talmúdico constitui, segundo Philippe
Breton em À imagem do homem – do Golem às criaturas virtuais (1995),
uma das origens das narrativas que encenam a criação de um ser artificial
moldado à imagem do ser humano. O Golem, o ser feito de barro que
atravessa a tradição hebraica – vai inspirar e influenciar as criaturas que a
literatura do século XIX produziu tão generosamente, sendo Olímpia, a
heroína mecânica de O Homem de Areia, de Ernst Hoffman (1816), e o
monstro de Frankenstein, de Mary Shelley (1818) talvez seus exemplos
mais significativos. Dentro deste contexto histórico concluímos que a fusão
199
entre a ciência e a tecnologia se dá no campo artístico por meio do cinema.
O cinema, que interagindo com estes grupos sociais, cria o espaço que
denominamos de cibercinema. Lugar no qual se dá o entrelaçamento social,
científico e artístico do pensamento, lugar por excelência do casamento
entre ciência e arte.
Técnica e ficção se complementam no desejo de superar o poder
criativo e criador da natureza, mas as suas produções revelam – se
monstruosas e nefastas, lugar de violência e maldade, fonte de atração e
repulsa. Embora a história seja pródiga na confecção de criaturas artificiais,
é sem dúvida o século XX que mais proficuamente contribuiu para esta
galeria de horrores, sobretudo através das criações cinematográficas, que
emprestam animação ao nosso imaginário ficcional. robots, replicantes,
mutantes, andróides, cyborgs, são a nova face do avanço tecnológico que,
no fim do segundo milênio, associa mais do que nunca o terreno ficcional
e o imaginário social às conquistas da ciência, cada vez mais pródiga nas
suas próprias criações artificiais, tornando progressivamente mais difusas as
fronteiras da ligação homem – máquina e da própria idéia do que é ficção e
do que é realidade, à medida que a tecnologia se inscreve mais e mais
fundo no corpo humano, levando – o ao limite.
A hibridação que se impõe como imagem de marca da
contemporaneidade é justamente responsável por tornar muito menos nítido
e operacional todas as oposições radicais – eu – outro, corpo – mente,
criador – criatura, verdade – ilusão, real – irreal, orgânico – inorgânico –, que
marcaram a história do pensamento. Mas, claro, este desvanecimento de
antigos e confortáveis dualismos não poderia ser isento de conseqüências
nem deixar incólume a nossa condição humana, ou melhor, a idéia que
temos dessa condição.
Será o cyborg, de fato, a nova ontologia, o nosso devir, o corpo da
nossa pós – humanidade? O termo cyborg (cybernetic organism) surge nos anos
60 quando, no contexto da conquista espacial, é pensada a criação de um
homem capaz de resistir a condições distintas das oferecidas pela Terra.
Fig.55 O ser humano conectado
Este organismo
cibernético seria um híbrido homem – máquina, um corpo reforçado com as
mais diversas próteses, onde orgânico e inorgânico, carne e metal se
encontram e mesclam, produzindo uma figura – limite que não é nem ‘eu’
nem ‘outro’. O interesse que nos suscita o cyborg reside não no que o
distancia, mas naquilo que o aproxima de nós. Independentemente da sua
configuração, este organismo cibernético é uma desfiguração do
‘mesmo’, algo com o qual não nos confundimos, mas do qual também não
conseguimos diferenciar – nos totalmente. É interessante ressaltar que a
diferença entre os robôs, replicantes e cyborgs está justamente na sua
estrutura. O robô é formado de matéria inorgânica, os replicantes de matéria
orgânica manipulada e os cyborgs por matéria orgânica e inorgânica. O filme
Blade Runner explora a possibilidade de simbioses entre o corpo humano e
máquinas. Corpos artificiais, que transitam na cidade neogótica de Ridley
200
Scott, onde está em jogo a forma terminal de uma dialética da servidão
dissimulada sob as vestes da liberdade.
Até que grau de deformação ou estranheza permaneceremos
humanos? Eis a questão que o cyborg e os replicantes nos coloca. E, de fato,
até que ponto resistirá a imagem humana, tal como a conhecemos? A
quantas outras intervenções resistirá mais?
201
Fig. 56
O estranho humano
A importância desta questão prende – se à concepção do corpo como
lugar do humano e da identidade. Ao criar o monstro Frankenstein, Mary
Shelley anuncia a crise de referências aberta pela intervenção da técnica no
corpo:
“O corpo do monstro (...) construído como uma colcha de retalhos de pedaços de
outros corpos, sem memória e sem nome, criava uma vida de identidade impossível. A
sua existência, absurda e anônima, negava-lhe a possibilidade de auto-referência, nenhum
signo (nome) o tornava idêntico a si mesmo” (SHELLEY, 1808).
O apagamento das fronteiras culturalmente estabelecidas que o
híbrido simboliza interpõe – se como obstáculo à realização do processo
identitário no seio dessa mesma cultura; e, ao perder a identidade, a
subjetividade pode correr o risco de se transformar num signo vazio. Mas
também pode acontecer que desta hibridização nasça um novo tipo de
202
subjetividade, ou seja, que a simbiose origine a semiose, gerando um outro,
um novo sentido para o nosso corpo futuro.
A questão de um ‘corpo futuro’ e todas as possibilidades por ela
abertas surgem particularmente hifenizadas à idéia de que o nosso ‘corpo
presente’ possa estar obsoleto. No entanto, essa obsolescência não tem de
se traduzir impreterivelmente em uma atitude de repulsa em relação ao
corpo, significando antes a necessidade de redesenhá – lo e reconstruí - lo.
No esteio deste pensamento, que vê na realidade física a grande crise
do nosso tempo, a utopia da imortalidade, da durabilidade, solicita um corpo
perfeito, revisto e corrigido, desembocando, nas correntes mais extremas, no
desejo da ausência do corpo. De fato, como refere Le Breton, são já muitas
as vozes que sugerem que a espécie humana corporal já não está à altura
de acompanhar o ambiente técnico e informativo que criou, esmagada pela
velocidade, precisão e poder da tecnologia e pela quantidade e
complexidade da informação acumulada. Dissociar o corpo da carne e
imaterializar a espécie é, portanto, a meta destes “novos gnósticos”, que
vêem na derradeira fusão com a máquina o devir lógico da bioevolução.
A desintegração da realidade corporal, o fim do humano concreto,
conecta – se diretamente à idéia de um corpo e, conseqüentemente, de um
sujeito em crise, uma vez que esse corpo era a principal referência a partir
da qual os sujeitos constroem a sua identidade.
A idéia de necessidade que preside historicamente à inovação técnica
se desvanece na medida em que essa mesma técnica evolui para uma logo
– técnica, para uma técnica racionalizada, tornada discurso, desembocando
em uma crescente tendência para a imaterialização. O distanciamento entre
máquina e utensílio/ferramenta já havia sido analisado por Heidegger, a
propósito da passagem do trabalho feito pelo homem ao trabalho efetuado
203
pela máquina, algo que, para ele, significava a passagem da realidade para
a possibilidade.
De acordo com Heidegger, a principal característica da máquina é a
sua capacidade de fabricar não só o real como o possível – um possível
formal que, como tal, ao abrir espaço para a concepção de todas as formas
possíveis, desemboca hoje numa total abstração, levada ao clímax na idéia
de espaço virtual ou ciberespaço. Mergulhar em ambientes tridimensionais,
imergir na paisagem digital, já não são experiências exclusivas do patrimônio
imaginário do sujeito pós – moderno. A liberdade de viajar sem peso nem
contrariedade para qualquer ponto do planeta vai imbuir o sujeito
contemporâneo em uma universalidade que não deixará de defini – lo como
pessoa. No entanto, há na relação do sujeito com a idéia de realidade virtual
algo de inevitavelmente alucinatório, pela absoluta libertação de si que essa
relação implica – libertação é sempre desdobramento, libertação que é
também, ou, sobretudo, diluição e ausência ao mesmo tempo em que é
hiper – presença. Na condição fragmentária e acidentada do self enquanto
corpo incessantemente possuído e despossuído, conectado e desconectado
pelos dispositivos da sociedade globalizada, adivinha – se a sensação de
um sujeito em vertigem, fragmentado até ao infinito nesse espaço que lhe
permite ser quantos de si desejar, sob o anonimato de máscaras textuais e
imagéticas. Os replicantes de Blade Runner são fabricados aos pedaços,
confeccionado por fabricantes terceirizados que fazem às vezes dos
cemitérios por onde andava o Dr. Frankenstein a cata dos pedaços de
corpos para fabricar sua criatura artificial.
Jean – François Lyotard é um dos teóricos que sustenta que a
evolução da técnica desembocará inevitavelmente na emergência de
configurações desincorporadas, dotadas da natureza leve da linguagem. De
204
fato, um dos truísmos da teoria contemporânea é o de que o discurso
escreve o corpo, cuja materialidade sucumbe, em nível de importância, às
estruturas lógicas e semióticas que ele encerra, ou seja, à sua dimensão
lingüística e discursiva. Por outro lado, a atual obsessão pela tradução do
ser humano em um código genético e o sucesso das pesquisas que têm feito
do gene o verdadeiro “ícone cultural” dos nossos tempos, transforma em
possibilidade a fantasia do corpo – discurso ou do corpo – informação. É sob
a égide da informação que se dá a mais íntima aproximação entre
organismo e mecanismo. Já não se trata de fusão ou invasão. A informação
nivela a existência, considerando todas as formas de vida como sendo uma
soma organizada de mensagens e dissolvendo – as nos seus componentes
mais elementares, de modo a reduzir a complexidade do mundo a um
modelo único que, ao permitir uniformizar realidades de início absolutamente
diferentes, colocando – as em um mesmo plano, torna – as comparáveis.
Este esvaziar da vida e do inerte da sua substância, valor e sentido, de
modo a torná – los traduzíveis em um mesmo código, vão gerar formas
abstratas que se podem constituir e desconstituir, codificar e decodificar,
indo perfeitamente ao encontro da idéia da dissolução do corpo num fluxo ou
feixe de informações promovido pela tecnologia.
Segundo David Le Breton, este fascínio pela Genética surge da
esperança de que a transparência do gene possa significar a transparência
do sujeito. Se assim fosse, o genoma seria o graal que finalmente nos
revelaria o significado de se ser humano. No entanto, para Le Breton, “o
corpo humano não tem a transparência dos bits”, o que, em sua opinião,
invalida a freqüente associação da identidade última do ser humano a um
problema de DNA ou código genético.
205
Neste sentido, a inserção em um computador de um código que fosse
o nosso equivalente numérico poderia não vir a se traduzir na nossa integral
e fiel reconstituição imaterial no interior da máquina. A questão é: seríamos,
de fato, nós mesmos? Conseguiríamos nos reconhecer? Haveria ainda algo
para reconhecer? A verdade é que não sabemos se a nossa evolução pós –
biológica, a concretizar – se, vai ou não residir na fusão do homem com a
máquina. Apesar do interesse ou da curiosidade suscitados pelas teorias
mais extremistas, a maioria das teses, entre as quais as de Donna Haraway,
apontam não para o desaparecimento de uma das partes, mas para a
redefinição de ambas. A tendência é para a confluência entre organismo e
mecanismo, observável no fato de nos assemelharmos cada vez mais às
máquinas, tal como elas se assemelham cada vez mais a nós. Apesar de
continuarmos a insistir em que somos diferentes, baseando essa diferença
no fato de termos emoções, um corpo e um intelecto; na realidade, é
atualmente quase impossível pensar o ser humano sem relação com a
máquina. Por outro lado, embora insistamos em nos diferenciarmos, não
resistimos ao fascínio de perseguir e tentar concretizar o sonho da máquina
inteligente, ou seja, de vencer na máquina aquilo que ainda a diferencia de
nós.
206
3. O Sujeito Maquínico
As teorias da Pós – Modernidade, o contexto da sociedade
contemporânea, a aceleração e a propagação das tecnologias de
comunicação têm gerado diversos fenômenos sociais e estéticos. Como
descreveu Baudrillard em A sociedade de consumo (2000), estamos
rodeados de objetos por todos os lados e esses objetos adquiriram uma
“vida” através da tão proclamada reificação, ou seja, da sua elevação ao
status de quase mágicos, imprescindíveis, como se jamais pudéssemos ter
vivido sem tais objetos, ou melhor, como se toda a humanidade jamais
pudesse ter existido sem eles.
A idéia de uma alquimia, apresentada em Blade Runner, entre
corpos e máquinas, que hoje começa a ser sugerida a propósito das sempre
crescentes capacidades de manipulação das tecnociências biomédicas,
nada tem de metáfora casual ou fortuita. Com efeito, não só a tradição
alquímica privilegiou a manipulação dos corpos com as escassas
possibilidades que então lhe conferia a técnica pré – moderna, como foi a
memória viva dessa ambição transformadora que moldou o imaginário do
homem científico que conduziu boa parte das explorações da biotecnologia
contemporânea.
Autores mais recentes, como Philippe Breton, esmiuçaram ainda mais
os modos pelos quais os estudos científicos das biotecnologias aplicadas ao
humano, sobretudo nos domínios da genética e da vida artificial, têm
contribuído para materializar a idéia de se construir seres vivos.
A sociedade pós – moderna exibe, entre muitos outros, um paradoxo
que pode parecer desconcertante. Por um lado, percebe – se um evidente
enaltecimento do corpo humano. Último grande refúgio da subjetividade, o
207
corpo é obstinadamente submetido a toda uma série de estratégias de design
epidérmico que apontam para o cultivo das “boas aparências”, em uma era
na qual a visibilidade e o reconhecimento no olhar alheio são fundamentais
na definição do que cada um é. É interessante observar que o instrumento
capaz de identificar os replicantes Nexus 6 é um aparelho de leitura da íris
dos olhos – o Voight Kampff. Por meio do olhar, em Blade Runner
encontramos ou não respostas emocionais; a imagem dos olhos é
expressão da “janela da alma”, da subjetividade do olhar avassalado do
homem diante do sistema do capital.
Segundo Habermas em O futuro da natureza humana (2004), o
progresso das ciências biológicas e o desenvolvimento das biotecnologias
ampliam de modo urgente não apenas as possibilidades de ação já
conhecidas, mas possibilitam um novo de tipo de intervenção no sujeito.
Esses avanços aliados à informática, às telecomunicações e às
biotecnologias são fundamentais para a tecnociência contemporânea. Tais
saberes contribuem fortemente para a produção dos corpos e das
subjetividades deste início de século, apresentando todo um leque de
promessas, temores e sonhos. Dentre eles, surge uma possibilidade
inusitada: o corpo humano, na sua antiga configuração biológica, estaria
tornando – se “obsoleto”.
Nesse sentido, os cientistas definem seu trabalho como uma tentativa
de redefinir o humano redesenhando o corpo, idéia concretizada em si
mesma, no decorrer dos últimos vinte anos, adicionando os mais diversos
mecanismos eletrônicos e magnéticos ao corpo humano, no intuito de
expandi – lo e superar as suas limitações, tanto físicas como psicológicas. O
replicante quer mais vida, porque o seu tempo traz limite datado e próximo;
208
exige isto do criador, ou melhor, da ciência - mas a ciência não resolve o
problema que ela mesma gerou. O criador, por sua vez, é o cientista que
formulou o código genético completo dos replicantes; comove – se com o
desejo do ser que foi além de toda programação porque quis mais, porque
sentiu falta. Descarta a discussão técnica por ser acadêmica, quando se
defronta com o tamanho da vontade do outro. Vontade que se transforma no
desespero trágico e demasiado humano.
O que tempos atrás era denominado de natureza orgânica e podia ser
“criado no cultivo”, move – se atualmente no campo da intervenção orientada
para um objeto específico. A atualização cientifico – tecnológica da velha
estrutura orgânica já não segue, então, as velhas ordens da evolução
biológica. Com ela, pelo contrário, estaríamos inaugurando uma nova era: a
da “evolução pós – humana” ou “pós – evolução”, que supera amplamente,
em velocidade e eficiência, os lentos ritmos da evolução natural.
Seguindo as reflexões do sociólogo português Hermínio Martins,
podemos ver estes fenômenos sob o viés de certa tradição fáustica do
pensamento ocidental sobre a tecnociência. Em oposição à tradição
prometéica, que pensa a tecnologia como a possibilidade de estender
e potencializar gradativamente as capacidades do corpo humano, a corrente
fáustica enxerga na tecnociência a possibilidade de transcender a própria
condição humana. Valendo – se da nova alquimia tecnocientífica, o “sujeito
pós – biológico” estaria em condições de superar as limitações impostas
pela sua organicidade, incluindo as doenças, o envelhecimento e até a
morte. A visão do replicante Roy após matar seu criador, remete às figuras
míticas de Prometeu e de Fausto. Ao descer o elevador, Roy traz nos olhos
o brilho do olhar de Lúcifer, do Fausto atormentado pelos seus desejos de
progresso e ao mesmo tempo, lembra Prometeu que tenta roubar uma
209
fagulha de sabedoria do seu criador e não consegue, mas lhe rouba algo
mais precioso: a vida.
Em Blade Runner percebemos a aguda contradição entre o
desenvolvimento das forças produtivas do homem, capaz de criar vida
inteligente e complexa, e as relações sociais capitalistas, imersas na lógica
do controle do tempo e do tempo restringido em função da utilidade do
capital. Mas é importante destacar o seguinte: a incapacidade da ciência e
da técnica da Tyrell Corporation em estender a vida dos replicantes não é
apenas um dado objetivo, mas é algo socialmente determinada pelo sistema
do capital.
Para os sujeitos produtores dessas intervenções, surge uma nova
auto – referência, que alcança o nível mais profundo do substrato orgânico.
Neste caso a possibilidade real e nova de intervenção está ligada à questão
de manipulação do genoma humano. Essa potencialidade “demiúrgica”
dos homens contemporâneos parece estar marcando a ruptura entre
“humanidade” e “pós – humanidade”: agora o homem tem condições de se
auto – criar, de produzir seu próprio corpo. Outro corte radical decorre da
dissolução das velhas fronteiras entre o organismo natural – o próprio corpo
– e o arsenal de artifícios que a tecnociência coloca nas mãos do novo
demiurgo humano para que ele administre a sua “pós – evolução”.
Segundo Francis Fukuyama em Nosso futuro pós-humano (2003), a
biotecnologia fornecerá os instrumentos que nos permitirão realizar o que os
especialistas em engenharia social não conseguiram. Neste estágio,
teremos encerrado definitivamente a história humana, porque teremos
abolido os seres humanos enquanto tais. Então começará uma nova história,
para além do humano. Segundo o autor o espectro da eugenia – isto é da
reprodução deliberada de pessoas com certos traços hereditários escolhidos
210
– tem pairado por sobre o campo da genética contemporânea, introduzindo
dessa forma uma nova eugenia, mas que não levará a uma eugenia mais
delicada esvaziando a parte de horror a que está tradicionalmente
associada. Segundo Habermas, até os dias de hoje, o pensamento
embasado na Modernidade, tanto quanto a crença religiosa, parte do
princípio de que a constituição orgânica do homem recém – nascido é o
início de sua futura história de vida, que escapa à programação e
manipulação de qualquer ordem feita por terceiros.
Para David Le Breton, o indivíduo na sociedade contemporânea
pensa o corpo como um material, como simples suporte e veículo do sujeito,
que o faz andar e pensar; desse modo o sujeito pós – moderno parece se
afastar cada vez mais do seu próprio corpo e concebê-lo como uma matéria
imperfeita, corrigível e, finalmente dispensável, revelando a
contemporaneidade do dualismo cartesiano.
O pensamento de Le Breton demonstra como esse grande desprezo,
essa vontade de corrigir e eliminar o corpo estão principalmente veiculados
pelas tecno – ciências – medicina, genética, robótica, informática – que
pretendem liberar o homem do seu corpo, mudar a condição humana,
declarando o fim do corpo e das suas imperfeições e anunciando uma
profunda mutação epistemológica: pensar um homem sem corpo.
“Hoje, o corpo é escaneado, purificado, gerado, remanejado,
renaturalizado, artificializado, recodificado geneticamente, decomposto e
reconstruído ou eliminado, estigmatizado em nome do grande 'espírito' ou do
gene 'ruim'. A sua fragmentação é conseqüência da do sujeito. O corpo
aparece hoje como o maior desafio político, ele é o analisador fundamental
das nossas sociedades contemporâneas" (BRETON: 2003, 21).
211
Para o autor acima mencionado as representações pós – modernas
do corpo e as novas técnicas corporais ocidentais, e o espaço que separa o
homem do seu corpo se estenderam. Para ele, já entramos no tempo "pós –
biológico" da história humana, período no qual a humanidade busca superar
as fragilidades e as imperfeições ligadas a sua condição "corporal". As
inovações tecnológicas, com seus discursos, suas experiências e suas
descobertas, sonham com um corpo biônico, tão perfeito e controlável
quanto um computador, e nos convidam a conceber a carne do corpo como
um puro feitiço, do qual seria melhor se livrar logo.
A ficção científica sempre esteve muito interessada nas
conseqüências que as tecnologias poderiam ter sobre o corpo; do cinema à
literatura, muitos foram os romancistas que entenderam que, no "futuro", o
homem iria querer mudar sua condição corporal e que a noção de corpo se
constitui como uma grande musa da imaginação futurista. Na ficção
científica de Blade Runner (1982), assim como em Matrix (1999), o uso do
corpo humano como um material biológico disponível coloca sempre em
cena personagens cuja evidência "humana" é rompida e cujo estatuto
antropológico suscita o medo. Em Matrix, a carne é considerada como uma
doença, a condição corporal vista como epidemia e os corpos humanos são
fabricados e controlados industrialmente pelos próprios robôs, que
inverteram os papéis e demonstraram a superioridade dos materiais
eletrônicos sobre as matérias vivas, da eternidade sobre a morte. Este poder
de "dar a vida" que têm os robôs no filme parece muito com os poderes que
querem adquirir os geneticistas e os engenheiros da Inteligência Artificial do
final do século XX.
212
Le Breton coloca em evidência a velocidade das transformações nas
representações e nos usos sociais e medicinais do corpo humano.
Tradicionalmente inspirada pelas últimas descobertas científicas e as suas
possíveis perspectivas futuras, a ficção científica de hoje está sendo,
paradoxalmente, cada vez mais "realista". A aceleração das descobertas nas
biociências e os avanços tecnológicos produzem um "efeito de real" que
ultrapassa muitas vezes o próprio desafio "futurístico" da ficção científica:
descrever um futuro radicalmente diferente do presente, uma ficção do
tempo no mundo. Nesse marco, a sociedade atual assiste ao surgimento
das mais variadas “visões ficcionais”, aspirantes a “um saber total quase
divino”, capaz de controlar a vida superando todas suas limitações
tipicamente orgânicas. Inclusive a mais fatal de todas elas: a mortalidade.
Na segunda metade do século XX, dois acontecimentos
tecnocientíficos permitiram desconstruir as fronteiras e os conceitos que
sustentavam a experiência moderna e, conseqüentemente, seus modos de
subjetivação: o desenvolvimento das tecnologias comunicacionais e das
tecnologias biocientíficas.
Como mencionamos no primeiro capítulo desta dissertação, estas
tecnologias tornam contígua a linha entre animais, homens e máquinas, ao
mesmo tempo em que reconfiguram as noções de tempo, espaço, modos de
interação e limites da experiência, rompendo com os modos como
pensávamos a subjetividade e suas condições de produção. Este novo
cenário embaralha os conceitos de natureza, cultura, ciência e técnica,
forçando – nos a nos deslocarmos e repensarmos o sujeito em suas novas
conexões com o mundo.
213
A natureza humana racional e singular é desafiada de modo
inquietante pela sociedade tecnologicamente avançada. As máquinas das
últimas gerações tornaram ambíguas as diferenças entre natural e artificial,
corpo e mente, orgânico e metálico. Os animais têm sido humanizados pela
ciência que descobre seus sentimentos e expressões, e as idiossincrasias
de grupos culturalmente estruturados. Os humanos, ao contrário, têm sido
“desumanizados”. Cientistas, pensadores e artistas plásticos defendem a
total ruptura de fronteiras entre corpos biológicos e mecânicos, engendrando
hibridismos e metamorfoses que já permeiam nosso presente e parecem ser
a tônica do futuro, representando o paradigma da Modernidade e Pós –
Modernidade.
No lugar do corpo próprio, surge o que Pierre Lévy chama de hiper –
corpo. A virtualização do corpo incita todo tipo de troca. Os transplantes
favorecem o intercâmbio entre seres humanos vivos ou mortos. Os
implantes e as próteses imbricam os limites entre o vivo e o mineral. O
sangue foi desterritorializado e percorre uma rede internacional de corpos. O
corpo coletivo modifica a carne primária. “Cada corpo individual torna – se parte
integrante de um imenso hiper – corpo híbrido e mundializado” (LÉVY, 1996: 31).
Desse modo os sujeitos e suas identidades atuais são fluidas,
desterritorializadas, híbridas; referem – se apenas a diferenças relativas e
não à diferença absoluta, em si mesma. Os processos de subjetividade
permitem pensar a diferença absoluta. Nesta perspectiva, o homem pode ser
entendido como um ser de possibilidades infinitas, como aquele que tudo
pode e nada é. A subjetividade não se fixa a significados e identidades.
Permite que os corpos produzam sentidos e estejam em permanente
214
processo de produção a partir das experiências que realizam e não por
significados definidos por identidades.
Unindo estas experiências fragmentadas de identidade e de
subjetividade surge no contexto maquínico a tecnologia, pois não estando
presente fisicamente em nenhum lugar, e podendo estar em todos ao
mesmo tempo, o virtual, para alguns, carrega consigo a sombra do
monstruoso.
Do campo do humano surgem as dúvidas mais inquietantes. Diante
da humanização de animais e máquinas, aos quais são imputados
comportamentos inteligentes e reações emocionais, diante da abstração do
corpo na realidade virtual e da produção de corpos híbridos e metamórficos,
até onde podemos nos transformar e misturar sem perder nossa
humanidade? Ainda existe algo que singularize o humano?
A sociedade pós – moderna, maquinica, convive no mundo real com
os cientistas que criam camundongos com enxertos de orelhas humanas nas
costas; os filmes mostram a Humanidade ameaçada por cyborgs e replicantes.
Os monstros parecem ter escapado da ficção e invadido nossas revistas
científicas, programas educativos e laboratórios bem conceituados. E o mais
surpreendente: nós nos sentimos à vontade com eles. Essa banalização de
corpos monstruosos — que a ciência denomina híbridos — instiga – nos a
compreender as mudanças de nosso tempo, nas quais o deslocamento do
sentido de monstruoso parece articular – se inextricavelmente com as
noções de crise do corpo e perda de referência do humano.
Nesse palco de construção de identidades e diferenças, a
comunicação e o corpo desempenham papéis principais. A comunicação é
ela própria um mecanismo de identificação. Permite atenuar as diferenças
entre os indivíduos de uma cultura, criando vínculos e mediações simbólicas
que organizam as alteridades internas. O corpo é constituinte e constituído
pela identidade cultural que lhe reveste com significações e valores próprios
de cada cultura.
Fig. 57
Hibridação (1)
Talvez seja esta a razão da aceitação dos corpos monstruosos: ou
porque os monstros derrubaram as cercas que traçavam, no imaginário e na
prática, os limites do humano; ou talvez porque diante da possibilidade de
corpos híbridos e metamorfoseados precisemos nos confortar com monstros
cada vez mais aterrorizantes que permitam construir novas identidades. Os
replicantes de Blade Runner seduzem com os seus corpos plenos de
beleza e juventude, o que realmente os tornam aterrorizantes é a violência
de seu comportamento, a vontade de exterminar aqueles que se interpõem
em seu caminho.
Enquanto a Modernidade singularizava o humano por sua capacidade
de pensar e a imagem do corpo articulava – se com o logos, na atualidade a
215
216
tecnologia faz conexões com a carne - physis. A engenharia genética e as
neurociências trabalham com o biológico, com a matéria. Clonagem,
próteses, manipulações genéticas são associações diretas com a carne. A
manipulação da natureza em grande escala configura uma situação nova,
cheia de conseqüências transcendentais de ordem social, política,
econômica, legal e estética. Jamais, em nosso passado histórico, aconteceu
tamanha manipulação da natureza e das bases da vida, tal qual como
estamos assistindo atualmente no ciberespaço.
Devemos nos lembrar que, em virtude das potencialidades
tecnológicas e científicas atuais, somos levados a vislumbrar que tudo isso
será apenas o início. Esta faceta histórica é conhecida como a era da
dominação da Biotecnologia, ou seja, a cultura, sob o ponto de vista do
processo biológico e tecnológico, ou ainda, da transformação da natureza
por meio de um novo processo criativo ou destrutivo.
Um processo humano que por sua vez pode ser decisivo, por
implicar em um processo irreversível do homem sobre a natureza e sobre si
próprio, essa dimensão traz possibilidades criativas e ao mesmo tempo de
destruição, ambos atributos do ser humano. Seguindo esse caminho,
podemos afirmar que o ser humano é consciente de que ele pode realizar
definitivamente sua historicidade. Historicidade, nesse caso, sempre
pensada na perspectiva demiúrgica e impregnada pelo impulso de alcançar
sua imortalidade pela própria idéia criativa e transformadora, sob o prisma
de uma nova cultura instalada por meio de transformações científicas,
estendida sobre a vida humana em todos os sentidos.
217
A tecnociência contemporânea visa à ultrapassagem das limitações
biológicas ligadas à materialidade do corpo humano e que restringem as
suas potencialidades. Várias dessas limitações pertencem ao eixo “temporal”
da existência humana. Nesse sentido, está bem representada pelas atuais
descobertas e projetos na área das biotecnologias – transgênicos,
clonagem, genoma, etc., que colocam o arsenal cientifico – tecnológico na
luta contra o envelhecimento e a morte.
Segundo Hermínio Martins, as biotecnologias “não buscam
meramente facultar melhoramentos cosméticos e mais próteses para
organismos humanos e não – humanos, mas criar novas formas de vida”.
Tais ferramentas da mais recente tecnociência não pretendem “estender” ou
“ampliar” as capacidades do corpo humano; pelo contrário, elas têm uma
“vocação mais decididamente ontológica”. É a vocação
“transcendentalista” que enxerga no arsenal tecnocientífico a possibilidade
de ultrapassar as limitações inerentes à condição humana. Como diz
Martins: as formas de vida artificial iludem as fronteiras naturais e os limites
da evolução biológica ‘normal’. A atual agenda biotecnológica também inclui
a criação de formas de vida mistas, biológicas e mecânicas.
Com as suas “criações ônticas”, a biotecnologia contemporânea
redefine as antigas fronteiras, “rediferencia, desdiferencia e re – estratifica a
cadeia pré – existente de seres naturais como matéria puramente
manipulável, afirma Hermínio Martins. Subvertida a velha prioridade do
orgânico sobre o mecânico, impõe – se o que Martins denomina “a agenda
da demiurgia tecnológica atual”, da qual faz parte “a criação de novas tecno
– espécies, envolvendo várias combinações do orgânico e do inorgânico, do
natural e do artificial, do humano e do não – humano”.
Fig. 58 Hibridização (2)
Assim como os corpos dos homens, na sociedade biotecnológica
também o mundo e o cosmos se tornaram “pós – biológicos” e “pós –
orgânicos”. As biotecnologias colocam em questão as velhas fronteiras entre
esses mundos, bem como entre o natural e o artificial.
No processo de hibridização com as máquinas, o corpo humano
poderia se livrar da sua natural finitude. Os cientistas que hoje trabalham em
projetos de inteligência artificial, por exemplo, visam remover a mente do
cérebro humano e transferi – la para uma máquina. “Todos os poderes da
mente humana - concebida como uma espécie do gênero de sistema de
processamento de informação – poderiam, em princípio, ser integralmente
transferidos para programas de computador”, constata Hermínio Martins.
O mito do cyborg como proposto por Donna Haraway poderia nos
libertar das hierarquias sociais e das dicotomias reinantes na civilização
ocidental. Haraway define como cyborg um organismo cibernético, híbrido de
homem e máquina, orgânico e inorgânico; surge em um universo de
fronteiras rompidas; tessitura de natural e artificial, desconhecendo
oposições binárias, bem como a diferenciação dos sexos – auto –
reprodutora. É heterogêneo e múltiplo, não aspira à totalidade, aberto a toda
mistura; inteiramente conectável. Torna imprecisa a distinção identidade/
218
219
alteridade. Sua neutralidade pode, segundo Haraway, mudar o mundo: um
mundo sem sexualidade dominante, sem classes sociais, sem política de
dominação hierárquica e desejos de posses. As tecnologias cyborgs podem
ser, segundo Haraway, restauradoras, normalizadoras, reconfiguradoras -
construção de criaturas pós – humanas semelhantes aos humanos, mas
diferentes deles – e melhoradas relativamente aos seres humanos.
Entretanto, como bem salienta Haraway, a prole “ilegítima” é com muita
freqüência infiel às suas origens. Construídos fragmentados, no grande
bazar capitalista, por produtores especializados em fabricar pedaços
humanos, os replicantes desconhecem sua origem, exceto o seu criador – a
empresa sede e seu dono Tyrell e não hesitam em matar seu criador quando
contrariados.
O cyborg, para Haraway, não busca uma origem ou finalidade: surge no
cruzamento de mundos outrora separados, ou seja, em um entrecruzamento
de limites entre o homem e o animal, entre o homem e a máquina e entre a
natureza e a técnica. Ao ter lugar no cruzamento destes mundos,
antes separados, cruzamento propiciado pelos progressos da ciência e das
técnicas, o cyborg se coloca como fruto da seqüencialidade das atividades
tecnocientíficas, daí não reivindicar uma origem e por conseqüência um fim.
“O cyborg não sonha com a comunidade a partir do modelo da
família orgânica... Não reconheceria o paraíso, não é feito de barro e não
pode sonhar com a volta ao pó” (HARAWAY: 1994, 246).
Repetindo o abalo das fronteiras antes estabelecidas, o cinema tornou
possível o cyborg, como um mito, uma ficção, uma narrativa, que nos permite
pensar a sociedade tecnológica contemporânea.
220
Para concluirmos nossas reflexões recorremos mais uma vez ao
sociólogo português Hermínio Martins que nos seus ensaios Hegel, Texas:
tema de filosofia e sociologia da Técnica e Tecnologia, Modernidade e
Política (1996), vale – se de duas figuras míticas, as quais nos reportam ao
início deste trabalho, da cultura ocidental para analisar a tecnociência
moderna e contemporânea.
A tradição “prometéica” e a tradição “fáustica” constituem duas linhas
de pensamento sobre a técnica, que podem ser detectadas nos textos de
diversos autores dos séculos XIX e XX. Martins conclui que é na segunda
dessas duas tendências que se inscreve a filosofia subjacente à
tecnociência contemporânea: as suas características “fáusticas” podem ser
inferidas nos diversos projetos, pesquisas e descobertas que brotam da
prolífica agenda tecnocientífica de nossos dias. Para explorar as razões de
tal alinhamento e analisar a maneira peculiar com que a construção do
“homem pós-orgânico”, cyborg, replicante, do duplo, enfim qualquer que seja
o desejo humano de construir – se em laboratório, se encaixa nessa
problemática.
Segundo Hermínio Martins, em primeiro lugar, se a tradição
prometéica pretende dominar tecnicamente a natureza, o faz visando “fins
humanos”, mais especificamente: “o bem humano, a emancipação da
espécie inteira e, em particular, das ‘classes mais numerosas e pobres’”.
Apostando no “papel intrinsecamente libertador do conhecimento científico”,
visa atingir o “melhoramento tecnológico das condições de vida da espécie”,
graças à dominação racional da natureza. Confiantes no progresso, os
cientistas prometéicos têm uma visão instrumental da técnica, cujo
desenvolvimento levaria à construção de uma verdadeira “sociedade
científico – industrial”, capaz de superar a opressão e a miséria humanas.
221
Do outro lado, onde se instalam os cientistas faústicos, Martins coloca
como pretensa forma de superação “ultrapassar os parâmetros básicos da
condição humana – a sua finitude, contingência, mortalidade, corporalidade,
animalidade, limitação existencial – aparece como um móbil e até como uma
das legitimações da tecnociência”.
Nos discursos percorridos neste trabalho, percebe – se claramente tal
intenção de superar a condição humana, a viscosidade do corpo orgânico,
os limites espaciais e temporais ligados à sua materialidade, e inclusive as
doenças, o envelhecimento e a própria morte. Em síntese: transcender a
humanidade.
As reflexões de Martins permitem enxergar, tanto nas promessas
quanto nas realizações dos programas de informática e biotécnicos, a
necessidade de se transcender radicalmente a condição humana e não
simplesmente de melhora – la e habilitar os seres humanos a triunfarem
sobre forças naturais hostis.
Tal característica encontrada neste programas é marcadamente
fáustica, em oposição às ambições prometéicas do projeto científico
moderno. É fáustico o “tecno – transcendentalismo” associado aos discursos
sobre o nascente “homem pós – biológico”. A partir dos projetos
transcendentalistas da tecnociência mais recente encontramos: horror ao
orgânico, repugnância pelo corpo, aversão pelo natural, à viscosidade das
coisas é sentida como radicalmente inimiga do espírito, esclarece o próprio
Martins.
A tecnologia da informática e das telecomunicações parece estar
disposta a realizar tais sonhos, pois, com a sua tendência “virtualizante”, a
aparelhagem digital converte tudo em “informação”, inclusive os próprios
corpos humanos. Como já foi mencionado, o corpo que interage intimamente
com estas vertentes da tecnociência contemporânea – a informática e as
biotecnologias – é um corpo – informação. Deixando para trás o modelo
mecânico do corpo – máquina, os novos corpos da era pós – industrial se
inspiram no modelo da informação digitalizada, composta de luz, feita
apenas de uns e zeros, que não precisa de um suporte material para
atravessar tempos e espaços. Adotando a terminologia proposta por
Hermínio Martins, então, diremos que esta rejeição da materialidade
orgânica e esta vontade de “virar luz”, ultrapassando as limitações
temporais e espaciais ligadas ao fato de sermos “orgânicos,
demasiadamente orgânicos”. De acordo com esta tendência, então,
estaríamos virando “pós – orgânicos” e, com isso, “pós – humanos”,
apontando para a imortalidade e a virtualidade.
O que é humano? O que é maquínico? O que é a vida? As condições
cambiantes da reprodução da vida social e os impactos dos avanços
tecnológicos sobre nossas representações tornaram estas antigas questões
mais candentes do que nunca. Sem dúvida, o papel da tecnologia é crucial
neste âmbito já que é uma mediação entre nós mesmos, o mundo natural e
artificial. Nossa espécie está definitivamente presa a um sistema de retro-
alimentação que envolve nossos corpos, o mundo externo e nossa
habilidade de controlá – lo e aperfeiçoá – lo em proveito próprio.
Fig.59 Humano – maquínico
222
223
As possibilidades de cruzamento dos avanços científicos –
tecnológicos e da engenharia genética – trazem para o imaginário ficcional
do cinema, expresso por meio da ficção científica e da popularização de
inovações pelos meios de comunicação de massa, visões de cérebros
inteligentes, transplantes, próteses perfeitas, chips implantados, clones
humanos, que saem progressivamente da ficção ampliando cada vez mais o
reino dos simulacros. Defrontamo – nos com uma ampliação do universo
desses simulacros e simulações, com outro regime de visualidade com suas
implicações para as formas de perceber e representar o mundo, implicações
com impactos que se estendem da formação da subjetividade à formação de
grupos sociais.
Vemos como o impulso de ampliação, via tecnologia, da capacidade
corporal e da mente, coloniza cada vez mais nosso mundo,
problematizando díades antes consideradas fixas e intransponíveis como
natureza/cultura, orgânico/inorgânico, real/imaginário, criando ou
exacerbando porosidades, trânsitos, fusões, novas relações entre os
elementos destes pares. Como pano de fundo, o capital que, via
biotecnologia, alcançou a própria lógica da cadeia da vida, e, via
ciberespaço, realiza seus desígnios de poder e acumulação no próprio
universo virtual.
Freud, ao explorar os elos entre as tecnologias e o desejo de
transcendência, de onipotência e onisciência projetadas nos deuses
transformados em espelhos e ideais inatingíveis, assim condensa essas
complexas relações: “O homem, por assim dizer, tornou – se uma espécie
de ‘Deus de prótese’. Quando este faz uso de todos os seus órgãos
auxiliares e objetos por ele criados, ele é verdadeiramente magnífico; esses
órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas
224
dificuldades. As épocas futuras trarão novos e provavelmente inimagináveis
grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a
semelhança do homem com Deus” (FREUD, 2005: 152).
Aqui, transcendência é a palavra chave, já que as criações
tecnológicas implicam extensões e ampliações do corpo finito – mortal e o
acúmulo de poder dos sujeitos em suas relações com a natureza e grupos
sociais. No cibercinema, organismos geneticamente criados em laboratórios
e cyborgs metaforizam a procura por transcendência tanto quanto são
índices de ansiedades culturais do nosso tempo.
Os seres humanos sempre estiveram imersos em universos
metafóricos que permitem a dramatização e o questionamento do
desconhecido, isto é, a atribuição de sentido ao que não se pode saber
com toda certeza. Na verdade, tudo isto é marcadamente político, pois o que
se disputa é o controle do futuro no presente, operação simbólica –
hermenêutica típica das utopias e distopias. Não é incomum que as
metáforas envolvam simulacros, clones, mais ou menos perfeitos, que quase
sempre se revoltam ameaçando seus criadores ou a ordem por eles
estabelecida. Tem sido assim de Adão, passando por Frankenstein, aos
‘replicantes’ do filme Blade Runner.
No mito de origem cristão, o criador, ao ser traído pela criatura, criada
à sua imagem e semelhança, dela retira atributos inicialmente concedidos
para expô – la à finitude, ao controle da dor e da morte. Nesta cosmogonia,
o demiurgo lança mão de uma tecnologia mágico – religiosa, inatingível por
outros. Não é pouco o que a criatura perde: a felicidade e a própria
eternidade. Mas, tudo parece valer a pena contanto que se possa recuperar
a possibilidade de ser sujeito do seu próprio desejo.
225
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta dissertação o sujeito humano maquínico nas
configurações sociais propostas pelo cinema de ciência – ficção considerou
como ponto de partida, o processo de construção de um objeto de estudo
pertencente ao campo da filosofia contextual, sendo a denominação sujeito
uma denominação da ciência ao concebê-lo na dimensão individual e social
um sujeito dividido. Dentro deste campo semântico a palavra sujeito surge
como uma designação dada ao sujeito humano que na sua condição de ser
simbólico foi se definindo na linguagem técnica e da ciência.
O estudo das Revoluções – Industrial, Científica e Estético –
Tecnológica colocou, nesta dissertação, o sujeito frente às criações da era
maquinica, cuja principal invenção foi o cinema, o cinema que surge como
invenção da era moderna, na qual o sujeito encontrou os modos de
representação do seu próprio imaginário.
Constatamos que o cinema, através das narrativas de ficção
científica, provoca no público sensações, emoções e sentimentos com os
quais esse mesmo público vivencia as experiências da identificação. Desde
suas origens, a ficção tem encontrado distintos modos de ser representada
na literatura, no teatro – na tragédia e na comédia – como uma forma de ver
representada no imaginário cultural da humanidade o pulsar da vida.
Um exemplo desse pulsar da vida e da morte em termos de
representação constitui a abordagem do Expressionismo alemão que surgiu
neste trabalho no sentido de amparar e fornecer elementos considerados
ideais para representar os contrastes violentos, a névoa sinistra, as visões
criadas por um estado de alma sombrio e atormentadas pelos efeitos das
revoluções, das guerras do começo do século XX e do futuro configurado na
cultura do ciberespaço, no qual o tempo real funciona como um
226
determinante da morte do sujeito e de suas representações, restando a
experiência estética como uma possibilidade aberta a reivindicação do
humano em uma síntese artística do humano e o maquínico.
A escolha do filme Blade Runner – o caçador de andróides de
Ridley Scott se deve ao seu caráter paradigmático que ilustra a “suposta”
passagem da Modernidade para a Pós – Modernidade que alguns críticos
pretendem delimitar no exíguo espaço de sua critica. Sendo este filme um
produto cultural reconhecido socialmente, seja pela figura do seu produtor,
pelos efeitos midiáticos por ele produzido, haja visto o êxito de bilheteria,
assim como, o reconhecimento da comunidade científica que o considera um
dos três filmes mais importantes da crítica cinematográfica enquanto
prefiguração do espaço virtual hoje reconhecido na arquitetura e em todas
as expressões da arte.
A análise de Blade Runner – O caçador de andróides (1982)
proporcionou neste estudo o momento em que, pelo menos no cinema, o
sujeito moderno transpõe a barreira para se confrontar com aquilo que vem
a ser o sujeito pós – moderno e a relação do humano com o maquínico,
delimitando assim uma característica predominante nesta relação – a
tecnologia.
Inspirado em Metropolis (1926), Ridley Scott ambienta a história em
Los Angeles no ano de 2019, lugar opressivo e caótico, trazendo um cenário
de conflito, uma urbe pós – moderna onde o ser humano luta contra o
avanço desenfreado da tecnologia. Ridley Scott descreve um futuro em que
a humanidade inicia a colonização espacial desenvolvendo os replicantes,
seres geneticamente desenhados e criados em laboratórios, estes
replicantes são utilizados em missões específicas, pesadas, perigosas ou
degradantes nas novas colônias. Desse modo, esta análise possibilitou
227
estudarmos o encontro do sujeito com o seu duplo construído por ele
mesmo, resultado do avanço das técnicas e tecnologias na pós –
modernidade.
Para completar o panorama no qual inserimos a pós – modernidade e
suas conseqüências analisamos, entre outros, filmes como Matrix (1999),
Videodrome (1983) e eXistenZ (1999). Estes filmes tratam das discussões
mais recentes do fenômeno virtual que não deixa de afetar os grupos sociais
aos quais pertencem cientistas e artistas. Configurando o sujeito em
estruturas de metal, ou em estruturas corporais que se conectam para atingir
espaços virtuais e projetando – os para um mundo na fronteira do humano,
Blade Runner – o caçador de andróides, Matrix, Videodrome e eXistenZ
apresentam a imaterialidade dos corpos como poder e conflito entre o ser
humano e a inteligência artificial autônoma.
Após detalhada análise do filme escolhido, do conceito da técnica
proposto por Heidegger, das questões que envolve o pós - humano e sob o
intuito de estudarmos a construção do sujeito – maquínico acreditamos
termos elaborado um percurso conceitual que colocam em questão a
passagem da modernidade para a pós – modernidade. Assim como a
análise de categorias insinuadas pelo próprio produtor que procuramos
transformar em categorias de análises para produção de ciência – ficção.
As possibilidades de cruzamento dos avanços científicos -
tecnológicos e da engenharia genética - trazem para o imaginário ficcional
do cinema, expresso por meio da ficção científica e da popularização de
inovações pelos meios de comunicação de massa, visões de cérebros
inteligentes, transplantes, próteses perfeitas, chips implantados, clones
humanos, que saem progressivamente da ficção ampliando cada vez mais o
228
reino dos simulacros. Defrontamo – nos com uma ampliação do universo
desses simulacros e simulações, com outro regime de visualidade e suas
implicações para as formas de perceber e representar o mundo, implicações
com impactos que se estendem da formação da subjetividade à formação de
grupos sociais.
A conclusão desta pesquisa aponta para a continuidade da
investigação no que se refere à relação entre o cinema – invenção moderna
por excelência e o ser humano em sociedade. Apesar dessa polarização
entre o orgânico – artificial, existem tempos e espaços qualitativamente
diferentes a ser explorados no ciberespaço, revelando o caráter prefigurativo
do cinema que aliado à ciência, transforma-se na máquina que veio projetar
a capacidade do indivíduo de imaginar a utopia de um mundo socialmente
justo e esteticamente admirável.
229
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235
ANEXO (I)
Referência das imagens
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Fig. 2 – Prometeu Leva o fogo à humanidade – Quadro de Heinrich Fueger
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Murnau. www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.
Fig. 7 – Viagem à Lua (1902), filme de George Méliès. Tem a duração de
13 minutos e considerada a primeira ficção científica, foi inspirado na obra
de Júlio Verne. www. notorius,com,br
Fig. 8 – Nosferatu (1922), direção F.W. Murnau. www. cineplayers.com –
capturado em 25.11.06.
Fig. 9 – O gabinete de Dr. Caligari (1919), filme dirigido por Robert Wiene.
www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.
Fig. 10 – Cena do filme Metropolis (1926), dirigido por Fritz Lang. www.
cineplayers.com – capturado em 25.11.06.
Fig. 11 – O primeiro robô do cinema. Cena do filme Metropolis (1926). www.
cineplayers.com – capturado em 25.11.06.
236
Fig. 12 – Los Angeles no filme Blade Runner – o caçador de andróides
(1982), direção Ridley Scott. www. cineplayers.com – capturado em
25.11.06.
Fig. 13 – Replicante Pris, cena do filme Blade Runner – o caçador de
andróides. www. cineplayers.com – capturado em 25.11.06.
Fig. 14 – O cinematográfo de Louis e Auguste Lumière.
www.notoriuns.com.br – capturado em 03.12.06.
Fig. 15 – Rua imaginária da cidade de Los Angeles em 2019 do filme Blade
Runner – o caçador de andróides. skyjude.users.btopenworld.com –
capturado em 03.12.06
Fig. 16 – O gabinete do Dr. Caligari – Murnau, 1919. www.fueradecampo.cl
– capturado em 03.12.06.
Fig. 17 – Replicante Roy - Blade Runner – o caçador de andróides.
www.fantascienza.com – capturado em 04.12.06.
Fig. 18 – Cartaz do filme Blade Runner (1982). www.fantascienza.com –
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Fig. 19 – J.F. Sebastian – Designer genético da Tyrell Corporation e suas
criações – a Replicante Pris e seus bonecos vivos.
skyjude.users.btopenworld.com - capturado em 04.12.06.
Fig. 20 – Cartaz do filme Matrix (1999). www.smoothartist.com - capturado
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Fig. 21 – Replicante Zhora do filme Blade Runner (1982). cineplayers.com -
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Fig. 22 – Replicante Zhora eliminada por Deckard. www.cineplayers.com –
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Fig. 23 – Cenário do filme O gabinete de Dr. Caligari (1919) - Direção:
Murneau. www.fueradecampo.cl – capturado em 03.12.06.
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Fig. 24 – Cena do filme Blade Runner – Roy salva o policial Deckard. www.
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Fig. 25 – Cena do filme Blade Runner – Rick Deckard e a cidade de Los
Angeles – www. cineplayers.com - capturado em 04.12.06.
Fig. 26 – Publicidade em vídeo Wall em Blade Runner. www.
cineplayers.com - capturado em 04.12.06. www.scifi.about.com
Fig. 27 – Los Angeles, 2019 – Blade Runner- o caçador de andróides. www.
cineplayers.com - capturado em 04.12.06.
Fig. 28 – O olho humano – cena do filme Blade Runner. www.
cineplayers.com – capturado em 04.12.06.
Fig. 29 – Leon, o replicante assassino – cena do filme Blade Runner.
www.scifi.about.com – capturado em 05.12.06.
Fig. 30 – Pris e Roy – Replicantes Nexus 6 - cena do filme Blade Runner.
www.scifi.about.com – capturado em 05.12.06.
Fig. 31 – Aparelho para teste de Voigth Kampff. www.scifi.about.com –
capturado em 05.12.06.
Fig. 32 – Aparelho de esper machine. www.scifi.about.com – capturado em
05.12.06.
Fig. 33 – Deckard em sua investigação sobre a cobra artificial.
www.scifi.about.com – capturado em 05.12.06.
Fig. 34 – Rachel sobrinha de Tyrell. www.scifi.about.com – capturado em
05.12.06.
Fig. 35 – Cena do filme Videodrome de David Cronenberg (1983). www.
cineplayers.com – capturado em 04.12.06.
Fig. 36 – Cartaz do filme ExistenZ de David Cronenberg (1983). www.
cineplayers.com – capturado em 04.12.06.
238
Fig. 37 – Los Angeles no ano de 2019. www. cineplayers.com – capturado
em 04.12.06.
Fig. 38 – Los Angeles século XXI e seus veículos voadores. www.
cineplayers.com – capturado em 04.12.06.
Fig. 39 – O espaço da cidade de Ridley Scott. . www. cineplayers.com –
capturado em 04.12.06.
Fig. 40 – J. F. Sebastian, designer genético da Tyrell Corporation em seu
apartamento acompanhado do seu brinquedo vivo e da replicante Pris. www.
cineplayers.com – capturado em 04.12.06.
Fig. 41 – Eldon Tyrell sendo assassinado pelo replicante Roy Batty. www.
cineplayers.com – capturado em 04.12.06.
Fig. 42 – A cena da morte de Roy Batty, último replicante vivo.
www.answers.com/topic/blade-runner – capturado em 09.12.06.
Fig. 43 – Zhora e a cobra artificial. www. jason.similar. selection.org –
capturado em 18.12.06
Fig. 44 – Álbum de fotos. www.imagebank.com – capturado em 18,12,05
Fig. 45 – Cena do filme Blade Runner. www. movies.yahoo.com/movie –
capturado em 17.12.06.
Fig. 46 – Natural versos artificial - www.msnbc.msn.com - capturado em
17.12.06.
Fig. 47 – Linha de montagem humano – maquínico. www.imagebank.com –
capturado em 18.12.05.
Fig. 48 – Cyborgs - www.msnbc.msn.com - capturado em 17.12.06.
Fig. 49 – O mecanismo artificial - www. movies.israel.net/exist/exist.html -
capturado em 17.12.06.
Fig, 50 – Bio – port do corpo humano em ExistenZ. www.msnbc.msn.com –
capturado em 10.03.06
239
Fig. 51 – O design das coisas. www.imagebank.com – capturado em
18.12.05.
Fig. 52 – O mundo midiático. Angelina Jolie e Tom Cruise maquínicos.
www.imagebank.com – capturado em 18.12.05.
Fig. 53 - O corpo fragmentado. www.msnbc.msn.com - capturado em
17.12.06.
Fig. 54 – O ser humano modificado. www.msnbc.msn.com - capturado em
17.12.06.
Fig. 55 – O sujeito conectado. www.imagebank.com – capturado em
18.12.05.
Fig. 56 – O estranho no humano – maquínico. www.imagebank.com –
capturado em 18.12.05.
Fig. 57 – Hibridização (1). www.imagebank.com – capturado em 18.12.05.
Fig. 58 – Hibridização (2). www.imagebank.com – capturado em 18.12.05.
Fig. 59 – Humano – maquínico. www.imagebank.com – capturado em
18.12.05.
240
ANEXO (II)
FICHAS TÉCNICAS DOS FILMES
Filme: O Gabinete do Dr. Caligari (1919)
Título original: Das Kabinett des Doktor Caligari
Diretor: Robert Wiene.
Duração: 76 min. Preto e branco
Gênero: Terror
Origem: Alemanha
Elenco: Werner Krauss, Conrad Veidt, Friedrich Feher, Lil Dagover, Hans
Heinrich von Twardowski, Rudolf Lettinger
Filme: Metropolis (1926)
Título original: Metropolis
Direção: Fritz Lang
Gênero: Ficção Científica
Tempo de Duração: 100 minutos
Ano de Lançamento (Alemanha): 1926
Estúdio: Universum Film S.A.
Distribuição: Paramount Pictures / Kino International
Elenco: Alfred Abel, Gustav Fröhlich, Brigitte Helm ,Rudolf Klein-Rogge,
Fritz Rasp, Theodor Loos, Heinrich George, Erwin Biswanger.
Fime: Nosferatu (1922)
Título Original: Nosferatu, eine Symphonie des Grauens,
Direção: F.W. Murnau
Gênero: Suspense/Terror
241
Origem: Alemanha
Duração: 94 minutos
Elenco: Max Schreck ; Gustav von Wangenheim , Greta Schröder,
Alexander Granach,, Georg H. Schnell , Ruth Landshoff ,John Gottowt
,Gustav Botz , Max Nemetz.
Filme: Fausto (1926)
Título original: Fausto
Direção: F.W. Murnau
Gênero: Drama/Fantasia/Terror
Origem: Alemanha
Duração: 116 minutos
Elenco: Emil Jannings, Gösta Ekman, Camilla Horn, Frida Richard, William
Dieterle, Yvette Guilbert, Eric Barclay, Hanna Ralph, Werner Fuetterer
Filme: O Golem - Como Veio ao Mundo (1920)
Título original: Der Golem - Wie er in die Welt Kam.
Direção: Paul Wegener
Gênero: Fantasia/Terror
Origem: Alemanha
Duração: 91 minutos.
Elenco : Ernst Deutsch, Lothar Müthel, Dore Paetzold, Max Kronert, Hans
Stürm, Albert Steinrück, Paul Wegener, Greta Schröder, Loni Nest.
242
Filme: Tempos Modernos (1936)
Título Original: Modern Times
Direção, roteiro, Produção e música: Charles Chaplin
Gênero: Comédia
Tempo de Duração: 87 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1936
Elenco: Charles Chaplin, Paulette Goddard,Henry , Tiny Sandford ,Chester
Conklin Hank Mann, Stanley Blystone Al Ernest Garcia, Cecil Reynolds,
Mira McKinney, Murdock McQuarrie ,Richard Alexander
Filme: Videodrome (1983)
Título Original: Videodrome
Direção e roteiro: David Cronenberg
Gênero: Suspense
Tempo de Duração: 87 minutos
Ano de Lançamento (Canadá): 1983
Elenco: James Woods, Sonja Smits, Debbie Harry, Peter Dvorsky,,Leslie
Carlson, Jack Creley,Lynne Gorman, Julie Khaner, Reiner Schwartz, David
Bolt, Lally Cadeau, Henry Gomez..
Filme: O Vingador do Futuro (1990)
Título Original: Total Recall
Direção: Paul Verhoeven
Gênero: Ficção / Ação
Tempo de Duração: 113 minutos
Ano de Lançamento (EUA): 1990
243
Elenco: Arnold Schwarzenegger, Rachel Ticotin, Sharon Stone, Ronny Cox,
Cohaagen, Michael Ironside, Marshall Bell, Mel Johnson Jr.,Michael
Champion,Roy Brocksmith, Ray Baker, Rosemary Dunsmore, David Knell,
Alexia Robinson, Dean Norris, Mark Carlton.
Filme: Matrix (1999)
Título original: The Matrix
Direção: Larry Wachowski, Andy Wachowski
Gênero: Ação/Ficção Científica
Origem: Estados Unidos
Duração: 136 minutos
Elenco: Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo
Weaving, Gloria Foster, Joe Pantoliano.
Filme: Matrix Reloaded (2003)
Título original: The matrix reloaded
Direção: Larry Wachowski, Andy Wachowski
Gênero: Ação/Ficção Científica
Origem: Estados Unidos
Duração: 138 minutos
Elenco: Keanu Reeves, Anthony Zerbe, Harry J. Lennix, Harold Perrineau
Jr. Jada Pinkett Smith, Lambert Wilson, Monica Bellucci, Gloria Foster, Hugo
Weaving, Carrie-Anne Moss, Laurence Fishburne, Helmut Bakaitis.
Filme: Matrix Revolutions (2003)
Título original: The Matrix Revolutions
244
Direção: Larry Wachowski, Andy Wachowski
Gênero: Ação/Ficção Científica
Origem: Estados Unidos
Duração: 129 minutos.
Elenco: Keanu Reeves, Tanveer Atwal, Anthony Zerbe, Mary Alice, - Harold
Perrineau Jr., Jada Pinkett Smith, Lambert Wilson, Monica Bellucci, Hugo
Weaving, Carrie-Anne Moss, Laurence Fishburne, Helmut Bakaitis
Filme: Minority Report - A Nova Lei (2002)
Título original: Minority Report
Direção: Steven Spielberg
Duração: 145 min.
Origem: Estados Unidos (2002)
Gênero: Ficção-científica
Elenco: Tom Cruise, Kathryn Morris, Samantha Morton, Max Von Sydow,
Colin Farrell, Tim Blake Nelson, Neal McDonough.
245
ANEXO (III)
Glossário
Biorobótica - O termo biorobótica é comumente usado como referência ao
estudo da criação dos robôs que emulam ou simulam organismos biológicos
vivos, ele é também utilizado ao contrário: tornando organismos biológicos
manipuláveis e funcionais como robôs.Em outro sentido a biorobótica se
refere a uma disciplina teórica da engenharia genética aonde os organismos
são criados e projetados por meios artificiais. A criação de vida de uma
matéria não-viva, por exemplo, é biorobótica. Devido ao seu estado
altamente teórico, ela é atualmente limitada à ficção científica, o campo atual
em seu começo é a biologia sintética.
Blade Runner - codinome dado aos detetives policiais que são
especialmente treinados no manuseio do aparelho Voight-Kampff. Sua função
específica é identificar e eliminar qualquer replicante que volte a conviver
com a sociedade se passando por um ser humano natural.
Ciborg - O neologismo ciborg (cib-ernético mais org-anismo) foi inventado por
Manfred E. Cllynes e Nathan S. Kline, em 1960, para designar os sistemas
homem-máquina auto – controlativo, quando ambos ampliavam a teoria de
controle cibernético aos problemas que as viagens especiais impingem
sobre a neurofisiologia do corpo humano.” (SANTAELLA: 2003, 185).
Esper Machine é o nome dado ao aparelho que amplia a fotografia e opera
a investigação da mesma, no apartamento de Deckard, sob o comando
vocal do blade runner.
246
Replicantes – são seres criados através da biorobótica, são organismos de
tecido vivo e células criadas artificialmente. Uma criatura desenvolvida pela
engenharia genética, composta de substâncias orgânicas. Os replicantes
foram desenvolvidos primeiro para uso como animais. Mais tarde os
replicantes humanos foram criados com propósitos militares e para
colonização do espaço. Depois a Tyrell Corp. introduziu o Nexus 6, uma
geração de replicantes mais forte, mais ágil e virtualmente indistinguível do
ser humano natural. As leis da Terra não permitiam aos replicantes viverem
no planeta, exceto como trabalhadores no grande complexo industrial onde
eles foram criados. As leis não consideravam os replicante humanos e por
isso eles não tinham seus direitos protegidos como os seres humanos
naturais.
NEXUS 6 – Estado de arte dos replicantes. Uma das mais prefeitas máquinas
bio-mecânica, réplica feitas a partir do modelo humano. Os replicantes da
geração Nexus-6 só podem ser diferenciados dos humanos por meio do
teste de Voigt-Kampff.
V-K Test – É um teste aplicado por um policial blade runner com a máquina
de Voigt – Kampff. Um aparelho extremamente avançado, que possui um
detector de mentiras e que mede as contrações do músculo ocular – a íris e
que detectar a presença de invisíveis partículas emitidas pelo corpo dos
replicantes. O designer da máquina Voigt – Kampff é composto por um
mecanismo que insufla ar dando-lhe um aspecto sinistro. O teste de voigt
kampff é usado para determinar se um suspeito é um humano verdadeiro
através da medição do grau de empatia com que as resposta são dadas às
questões feitas pelos blade runners.
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